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MECÂNICO”?
1
Doutor e mestre em filosofia do direito e teoria do estado pela PUC/SP. Pós-doutorando em
filosofia pela UNICAMP. Professor permanente da Faculdade Autônoma de Direito de São
Paulo – FADISP.
1
1 INTRODUÇÃO
2
Um exemplo paradigmático é o caso Marbury vs. Madison cujo precedente originário é a
possibilidade do judiciário realizar a judicial review (controle difuso de constitucionalidade).
Esse exemplo serve certamente também para mostrar a diferença entre jurisprudência e
precedente, tanto pelo fato de não se precisar, no caso do precedente, de decisões reiteradas
como ocorre com a jurisprudência; como pelo fato de que o precedente não precisa identificar
nenhuma similitude fática entre o caso a ser aplicado, o precedente e o próprio caso que
originou o precedente, já a jurisprudência demanda necessariamente uma correspondência
fática entre os casos que originaram e que serão por ela solucionados.
2
construção e aplicação de um instituto no Brasil que não guarda adequada
relação com sua origem no sistema do commom law e acaba se tornando
algo genuinamente brasileiro, porém, infelizmente raso, identificativo de
estudos urgentes e ansiosos que em sua apurada – e decadente – técnica
revelam o símbolo de uma época marcada pelo ritmo da intensificação da
agitação em escala global, cheia do ativismo e do falatório, característicos do
estilo de vida em sociedades tecnologicamente desenvolvidas.3
3
Para não fugir do objeto proposto no texto, não estenderemos aqui a crítica filosófica que
permeia o pano de fundo deste texto. Para uma primeira aproximação, a quem interessar,
sugerimos a leitura de Heidegger, em especial em textos contemporâneos a Ser e tempo.
Basicamente nesses textos contemporâneos Heidegger empreende com seu pensamento pós-
metafísico a tarefa de refletir sobre a essência do homem, tal como esta se determina em
relação à verdade do Ser, num tempo histórico no qual a expansão planetária da tecnologia
ameaça tal essência. Heidegger questiona como o desenvolvimento tecnológico encontra-se
enredado numa escalada compulsiva que ao invés de resolver nossos problemas os acentua
ainda mais a ponto de nos impelir para uma catástrofe. Cf., e.g., HEIDEGGER, Martin. A
questão da técnica in Cadernos de tradução, n. 2, p. 40-93, 1997.
3
ao serem acompanhados de mecanismos secundários como repercussão
geral, ementários jurisprudências e enunciados 4 mostram-se como
destruidores de uma qualificada decisão judicial, porém tonificantes de
mentes embotadas que lidam com o direito e confirmam o indício de uma
ausência de pensamento, em que só há percepção para o elemento
quantitativo, para maximização de performances, numa alucinada,
desesperada e constante busca de satisfações solipsistas imediatas.
A rigor, em nosso país, parece ser que ao tentar construir uma teoria
dos precedentes estamos caindo exatamente na mesma vala da mechanical
jurisprudence, algo que, paradoxalmente, representa um desvirtuamento do
próprio commom law e projeta antagonismos em alguns avanços que nosso
direito conquistou no terreno da hermenêutica jurídica.
4
Cf. STRECK, Lenio Luiz e ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as
súmulas vinculantes. 2 ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, pp. 33-89.
5
A investigação dos fatos contra valores é a primeira linha divisória que demarca a sociologia
americana. Em seu início chega a ficar completamente de lado o estudo sociológico do direito
e das instituições jurídicas, bem como dos sistemas políticos, da ciência e instituições
4
um particular gosto pelas técnicas de pesquisa empírica, os juristas-
sociólogos americanos deixaram se levar pelo modo preconcebido
dogmático-juridicista do nexo conceitual necessário entre o direito e os
tribunais, sendo um exemplo ilustrativo desse momento o pensamento de
Roscoe Pound.6
5
em Pound encontramos o peso do pragmatismo de William James e dos
primeiros sociólogos americanos.
A nosso ver, o principal destaque que cabe a esta escola é o seu viés
crítico sobre a postura dos juízes e o processo de decisão judicial. No final do
século XIX triunfa nos EUA a doutrina dos precedentes que faz do juiz um
órgão puramente passivo e de repetição de soluções já adotadas. Neste
momento estes estudos serão chamados por Pound como Mechanichal
jurisprudence e por Cohen como slot-machine theory, de tal forma que coube
aos membros da sociological jurisprudence fazer um grande esforço para
demonstrar que essa concepção de doutrina do precedente não
corresponderia nem ao que se faz e nem ao que se deve fazer8, uma vez que
os juízes ao tempo em que deveriam ser passivos na repetição das soluções
já adotadas, contribuíam também para as próprias decisões que seriam os
padrões, standards a serem seguidos, provocando um círculo vicioso,
enviesado politicamente.
8
Sobre o desenvolvimento do realismo jurídico norte americano, Cf. CARNIO, Henrique
Garbellini e GUERRA FILHO, Willis Santiago. Introdução à sociologia do direito. São
Paulo: RT, 2016, p. 227-229.
9
ARNAUD, André-Jean. Realismo I – Realismo Jurídico Americano in Dicionário
enciclopédico de teoria e de sociologia do direito. André-Jean Arnaud e outros (orgs.), 2 ed.,
Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 667-670.
6
2.1 Roscoe Pound entre a Mechanical Jurisprudence e a Sociological
Jurisprudence
10
Roscoe Pound (1870-1964) nasceu em Lincoln, Nebraska, onde iniciou seus estudos. De
seu pai, um advogado, ele parecer ter herdado o gosto para o estudo do direito, mais do que
da prática, uma vez que considerava entediante o modo como o exercício do direito era
praticado em sua época. Além da capacidade nos estudos jurídicos, marcada por uma fase de
estudos na faculdade de direito de Harvard, previamente também se interessava por botânica,
matéria na qual chegou a obter o grau de doutor. Ao retornar para Nebraska foi admitido na
ordem dos advogados de seu país e em 1901 e apontado como juiz auxiliar (comissioner) do
estado na Suprema Corte, sendo reconhecido por seu trabalho lá desenvolvido. Apesar deste
trabalho, seus interesses acadêmicos sempre prevaleceram, em 1903 ele chegou a ser membro
das faculdades de direito da Nebraska, Northwestern, Chicago e Harvard. Em Harvard ele foi
decano do curso de direito entre os anos 1916 a 1936. Cf. Roscoe Pound in Encyclopædia
Britannica. Acessado em 22.1.2016 em <http://www.britannica.com/biography/Roscoe-
Pound>.
7
A jurisprudência sociológica de Pound recebe, desde sua formatação,
a marca de uma disciplina analítico-avaliativa que ele mais tarde distingue de
um disciplina analítico-descritiva que seria a sociologia do direito.
8
2.2 A investida contra a Jurisprudência Mecânica
11
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence. Columbia Law Review, Vol. 8, n. 8, dec. ,
1908, pp. 605-623.
12
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence, cit., p. 605. Salvo indicação em contrário,
todas as traduções são de nossa autoria e as palavras entre parênteses nos trechos traduzidos
representam variações que identificamos como possíveis para a tradução. “In other words, the
marks of a scientific law are, conformity to reason, uniformity, and certainty. Scientific law is
a reasoned body of principles for the administration of justice, and its antithesis is a system of
enforcing magisterial caprice, however honest, and however much disguised under the name
9
A afirmação deste caráter científico do direito é seguida de duas
advertências, de dois perigos que devem ser evitados na estruturação de um
sistema científico legal, a saber, o efeito de seu caráter científico e artificial
sobre o público e seu efeito sobre as cortes e a profissão jurídica. Para
Pound, a teoria do direito não pode mais se manter como uma tradição
sagrada no mundo moderno, como ocorreu com a teoria política. Um dos
grandes méritos do direito inglês é ter estabelecido que o direito da Inglaterra
não é uma ciência com o intuito de representar uma crítica contra uma
pseudociência de regras técnicas existentes em si mesmas, servindo
supostamente fins científicos, enquanto derrotavam a própria justiça. Já com
relação ao efeito sobre as cortes e sobre a profissão jurídica, o ponto é
relativo à sua capacidade de engessamento do assunto sistematizado. Tal
concepção tende a barrar novas iniciativas individuais, sufocando
considerações independentes de novos problemas e impondo ideias de uma
geração sobre a outra. Segundo o autor, isto ocorre em todos os
departamentos de ensino e constitui um dos obstáculos para se avançar em
toda ciência.
of justice or equity or natural law. But this scientific character of law is a means,- a means
toward the end of law, which is the administration of justice. [...] Law is scientific in order to
eliminate so far as may be the personal equation in judicial administration, to preclude
corruption and to limit the dangerous possibilities of magisterial ignorance. Law is not
scientific for the sake of science. Being scientific as a means toward an end, it must be judged
by the results it achieves, not by the niceties of its internal structure; it must be valued by the
extent to which it meets its end, not by the beauty of its logical processes or the strictness with
which its rules proceed from the dogmas it takes for its foundation”.
13
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence, cit., p. 607. “[..] a scientific jurisprudence
becomes a mechanical jurisprudence.”
10
período de transição, encontra-se o maior número de fontes do direito. Há
apenas uma fonte atuante de criação organizada do direito que era a
constituição imperial, entretanto, a seu lado, persiste o costume como fonte
de direito, limitado a preencher as lacunas constitucionais imperiais. Ainda
continuam em vigor também as normas decorrentes das fontes de direito não
revogadas dos períodos anteriores. Há uma decadência da jurisprudência,
com muitos práticos, mas poucos juristas e a invocação da obra de juristas
antigos acarretou um grande inconveniente, pois advogados habilidosos
induziam ao erro juízes com citações falsas e capciosas. Em face disso, e da
incerteza que decorria do direito, em 321 d. C. Constantino declarou sem
eficácia as notas que Paulo e Ulpiano haviam feito à obra de Papiniano, mas
o mesmo imperador, pouco despois, confirmou a autoridade das demais
obras de Paulo, especialmente das Sentenças. Influenciados por esse
movimento, um século depois, Teodósio II e Valetininiano III tomaram
providência mais radical, com a criação daquilo que os autores modernos
vieram a chamar de “Lei das Citações”14. Esta lei criou um verdadeiro tribunal
de mortos, pois estabeleceu que somente poderiam ser invocados em juízo
os escritos de cinco jurisconsultos - Gaio, Papiniano, Ulpiano, Paulo e
Modestino -, bem como a opinião de autores citados por eles, desde que o
original fosse trazido à juízo. Havendo divergências, prevaleceria a da
maioria, se houvesse empate, preponderaria a opinião de Papiniano e nesta
última hipótese, se este não tivesse se manifestado, o juiz seguiria a
orientação que lhe parecesse melhor.15
14
No código teodesiano a lei assim previa: "Confirmamos todos os escritos de Papiano,
Paulo, Gaio, Ulpiano e Modestino, de tal modo que a Gaio se dê a mesma autoridade que a
Paulo, Ulpiano e aos demais e se citem os textos de toda a sua obra. Também decretamos
que seja válido o saber daqueles cujos tratados e sentenças se misturaram com as obras dos
antes citados, tal como Cévola, Sabino, Juliano, Marcelo e todos os que eles citam, desde
que, sendo por sua antiguidade duvidoso o códice dos seus livros este seja confirmado pelo
cotejo. Mas onde se exprimam várias opiniões, prevaleça a do maior número de autores; e se
o número for igual, prefira a autoridade daquela parte que tenha por si Papiano, homem de
excelente engenho (...)".
15
Cf. MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito romano. 16 ed., Rio de Janeiro: Forense, ano,
p. 45-46 e Lineamenti di storia del diritto romano. Mario Talamanca (org.), 2 ed., Milano:
Giuffré Editore, ano, p. 606. Neste última obra encontramos a referência da lei no código de
Teodósio II, C. Th. 1. 4. 3.
11
De acordo com Pound, esta Lei confinava o juiz, quando questões de
direito estivessem no tema, a uma pura tarefa mecânica de contar e
determinar a numérica preponderância de autoridade. Princípios não eram
mais recursos com o fim de produzir regras que servem para os casos, as
regras estavam à mão numa fixa e final forma, e os casos deveriam ser
ajustados às regras. Nesse compasso, a jurisprudência clássica dos
princípios se desenvolveu sob o grande peso da autoridade, numa
jurisprudência de regras, e enquanto regras, esta é operada mecanicamente.
12
esquema de deduções de conceitos a priori. [...]. A ideia de
ciência como um sistema de deduções se tornou obsoleta e a
revolução que tomou lugar em outras ciências a este respeito
deve tomar lugar e está tomando lugar na jurisprudência
também.16
16
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence, cit., p. 608. “I have referred to mechanical
jurisprudence as scientific because those who administer it believe it such. But in truth it is
not science at all. We no longer hold anything scientific merely because it exhibits a rigid
scheme of deductions from a priori conceptions. [...] The idea of science as a system of
deductions has become obsolete, and the revolution which has taken place in other sciences
in this regard must take place and is taking place in jurisprudence also.”
17
O aforismo latino que significa “tudo que é vivo provém de um ovo”, foi dito
primeiramente pelo médico inglês Harvey, autor com o qual Linnaeus concorda e utiliza para
desenvolver sua teoria. Para um aprofundamento, cf. MOTT, Frederick. The harveian oration:
on some developments of harvey’s doctrine ‘omne vivum ex ovo’ in The Lancet, Elsevier,
Octber, 24, 1925, pp. 847-851.
18
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence, cit., p. 609.
13
Georges Abboud e Lenio Streck apontam como a doutrina dos
precedentes se estruturou no final do séc. XXVII a partir de uma mudança no
método filosófico que orientava o pensamento da época. A mudança deve-se
ao método experimental de Robert Boyle, que se contrapôs ao cientificismo
de Thomas Hobbes. Além de Boyle, trabalhavam no âmbito dessa discussão
também Issac Newton e o jurista Mathew Halle. Nesse contexto, a doutrina
dos precedentes é baseada na aplicação de uma regra ou princípio jurídico
em diversos casos análogos e é evidência da sua existência e validade de
cada regra e/ou princípio jurídico aplicado, de modo que as decisões não
configuram meros exemplos da aplicação de regras e dos princípios, mas a
prova da existência deles e de sua consequente recepção pelo judiciário, de
tal forma que o juiz tem obrigação de encontrar o direito no análise do caso e
declará-lo.19
19
STRECK, Lenio Luiz e ABBOUD, Georges. O que é isto – o precedente judicial e as
súmulas vinculantes, cit., pp. 43-44
20
BERMAN, Harold. Law and revolution II: the impact of the protestant reformations on the
western legal tradition. Cambridge, Massachusetts, London: Harvard University Press, 2003,
p. 275.
14
demonstrar como a teoria do conhecimento de Hume, baseada na
experiência habitual pode nos fazer refletir sobre a falácia naturalista que
tanto pesava para Kant e que consistia num obstáculo intransponível para
Kelsen. A rigor, esse ponto consiste num profícuo campo de exploração
muito importante para o contexto dessa discussão teórica que estamos
traçando sobre o commom law, como para a base normativista moderna do
civil law com a emblemática relação entre ser e dever-ser.21 A chamada lei de
Hume ou guilhotina de Hume refere-se ao fato de que muitos escritores
fazem afirmações sobre o que deve ser com base em afirmações sobre o que
é. Para Hume, há uma diferença significativa entre afirmações descritivas e
afirmações prescritivas ou normativas, não sendo óbvio derivar,
simplesmente, as últimas das primeiras.
21
Uma passagem fortemente ilustrativa do pensamento de Hume que retrata essa falácia
naturalista e bloqueia a passagem legítima do ser ao dever, pode ser representada neste trecho
de sua obra: “Em todo sistema de moral que até hoje encontrei, sempre notei que o autor
segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existência de
Deus, ou fazendo observações a respeito dos assuntos humanos, quando, de repente,
surpreendo-me ao ver que, em vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não
encontro uma só proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa
mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não deve
expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo
tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que parece totalmente inconcebível,
ou seja, como essa nova relação pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes.”
HUME, David. Tratado da natureza humana. São Paulo: UNESP, 2000, livro III, parte I,
seção II, p. 509.
POUND, Roscoe. Mechanical jurisprudence, cit., p. 610. “Jurisprudence is last in the
22
march of the sciences away from the method of deduction from predetermined conceptions.”
15
final do século XIX, procederam desta forma. O padrão do qual elas derivam
é o da história da especulação jurídica. Desde o desenvolvimento histórico
das fontes romanas até mais tarde, na idade média e na idade moderna - por
meio dos questionamentos metafísicos -, chegou-se a proposições da
natureza humana e deduziu-se um sistema delas. Esta foi a teoria filosófica
por trás de todo movimento da codificação do séc. XVIII.
23
Por mais que seria possível formular uma crítica ao problema metodológico da
jurisprudência dos conceitos na Alemanha, algo que inclusive aparece no texto de Pound, é
interessante notar o reconhecimento de como ele entendia que o sistema dos precedentes – da
mechanical jurisprudence – era muito mais engessado do que o movimento dinâmico do
código alemão. Sobre os movimentos dedutivos e indutivos na composição e aplicação do
BGB, cf. ABBOUD, Georges, CARNIO, Henrique Garbellini e OLIVEIRA, Rafael Tomaz.
Introdução à filosofia e teoria do direito. 3 ed., São Paulo: RT, 2015, pp. 394-395.
16
Para Pound, esse fenômeno da jurisprudência mecânica colocou os
EUA atrás de todo o resto do mundo de língua inglesa. As deduções que
formam a base desta concepção perdem de vista o fim do processo, elas
fazem o processo científico um fim em si mesmo, e então, como resultado,
fazem o direito processual uma agência para derrotar ou atrasar o direito
material e a justiça ao invés de aplica-lo e acelerá-lo. Como se nota, ainda se
estabelece nesse momento, em razão da lógica dedutiva um dualismo
estanque entre o direito material e o direito processual.
24
Uma exploração mais aprofundada nos levaria a um aprofundamento da jurisprudência
sociológica e do próprio movimento do realismo jurídico norte-americano e também do
realismo jurídico escandinavo, para tanto cf. CARNIO, Henrique Garbellini e FILHO, Willis
Santiago. Introdução à sociologia do direito. São Paulo: RT, 2016, pp. 227-230.
17
Nesse compasso, chegamos a extremos em que parcela da doutrina
no Brasil parece esquecer que o próprio commom law padece desses
mesmos problemas, em especial em torno da discussão da segurança
jurídica, e que a formação do precedentes da forma como está sendo
desenvolvida é totalmente alheia ao que estamos propondo neste texto.
Propõe-se que os precedentes sejam instituídos por meio da lei, ou seja,
acredita-se que por meio da legislação (novo CPC) poderá se implantar o
sistema dos precedentes, enquanto, esse sistema, no commom law, no
mínimo é fruto de um desenvolvimento histórico sem vinculação com a
produção legislativa. Além disso, estamos apostando que poderemos
resolver o problema da segurança jurídica e celeridade judicial com a criação
desta teoria e uma gama sofisticada de instrumentos de vinculação decisória
(súmulas vinculantes, precedentes, efeito vinculante à jurisprudência dos
tribunais superiores, efeito vinculante na motivação das decisões das cortes
superiores, equiparação do efeito erga omnes com o efeito vinculante etc.)25,
esquecendo-se que através da procedimentalização do direito (a Constituição
e as leis a esta conformadas) as respostas para e do processo não estão
mais simplesmente dadas, mas sim passam a ser construídas, não há uma
verdade ou decisão já pronta, escondida no processo, na verdade ela se dá
na construção e no desenvolvimento do processo.26
25
ABBOUD, Georges. Discricionariedade administrativa e judicial: o ato administrativo e a
decisão judicial. São Paulo: RT, 2014, pp. 361 e segs.
26
GUERRA FILHO, Willis Santiago, CARNIO, Henrique Garbellini (col.). Teoria da ciência
jurídica. 2 ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 168.
18
sequer poderão ser construídas, o que reflete, posteriormente, de forma
direta nos próprios tribunais, instalando-se um círculo vicioso que suspende o
direito – criando uma situação de exceção – por meio de uma forma
aparentemente muito bem posta e tecnicamente depurada.
27
Art. 520. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e
coerente.
§ 1º Na forma e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão
enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2º É vedado ao tribunal editar enunciado de súmula que não se atenha às circunstâncias
fáticas dos precedentes que motivaram sua criação.
Art. 521. Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da legalidade, da
segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia,
as disposições seguintes devem ser observadas:
I – os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal Federal
em controle concentrado de constitucionalidade;
II – os juízes e tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos e os
precedentes em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas
repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
III – os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal
em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
IV – não sendo a hipótese de aplicação dos incisos I a III, os juízes e tribunais seguirão os
precedentes:
a) do plenário do Supremo Tribunal Federal, em controle difuso de constitucionalidade;
b) da Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, em matéria infraconstitucional.
§ 1º O órgão jurisdicional observará o disposto no art. 10 e no art. 499, § 1º, na formação e
aplicação do precedente judicial.
§ 2º Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica
decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores.
§ 3º O efeito previsto nos incisos do caput deste artigo decorre dos fundamentos
determinantes adotados pela maioria dos membros do colegiado, cujo entendimento tenha ou
não sido sumulado.
§ 4º Não possuem o efeito previsto nos incisos do caput deste artigo os fundamentos:
I – prescindíveis para o alcance do resultado fixado em seu dispositivo, ainda que presentes
no acórdão;
II – não adotados ou referendados pela maioria dos membros do órgão julgador, ainda que
relevantes e contidos no acórdão.
§ 5º O precedente ou jurisprudência dotado do efeito previsto nos incisos do caput deste
artigo poderá não ser seguido, quando o órgão jurisdicional distinguir o caso sob julgamento,
demonstrando fundamentadamente se tratar de situação particularizada por hipótese fática
distinta ou questão jurídica não examinada, a impor solução jurídica diversa.
§ 6º A modificação de entendimento sedimentado poderá realizar-se:
I – por meio do procedimento previsto na Lei nº 11.417, de 19 de dezembro de 2006, quando
tratar-se de enunciado de súmula vinculante;
II – por meio do procedimento previsto no regimento interno do tribunal respectivo, quando
tratar-se de enunciado de súmula da jurisprudência dominante;
19
A tentativa de implementar, via legislação, o sistema de precedentes
é claramente um equívoco. A rigor, estamos criando algo sui generis, apesar
de achar que se estamos criando algo sob a influência do commom law.
20
enunciados, precedentes, decisões, motivações, súmulas e preencher os
casos sócio-jurídicos, isso, na realidade é um “direito jurisprudencial
mecânico”. Essa cegueira pela técnica é o que desde o começo deste texto
invocamos como algo refratário ao direito e todas demais instituições
modernas. Estamos trabalhando com o direito num nível, no mínimo, da
relação produção/consumo, daí, obviamente pretendemos criar mecanismos
para resolver a máxima quantidade possível de questões, deixando clara a
percepção do desconhecimento que nos acerca sobre as próprias questões
fundamentais da filosofia e da epistemologia no que concerne à revolução
das ciências, a superação do dualismo natureza/sociedade e dos métodos
clássicos que mesmo as ditas ciências naturais já superaram, e.g., podemos
remeter, como exemplo, o esforço para o desenvolvimento do método
quântico na física.
Isso tudo fica ainda pior, pois se não bastasse esses equívocos, o
fato é que estamos caminhando para trás, ao tempo em que tentamos criar
um sistema de precedentes e, na verdade, estamos criando um “direito
jurisprudencial mecânico”, acabamos por obliterar conquistas importantes da
hermenêutica constitucional que, ao invés de ser desenvolvida mais
largamente e de modo mais sério, é deixada de lado, preponderando um
ementário para solução de litígios que ignora nossa própria Constituição.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERMAN, Harold. Law and revolution II: the impact of the protestant
21
reformations on the western legal tradition. Cambridge, Massachusetts,
London: Harvard University Press, 2003.
POUND, Roscoe. Justiça conforme a lei. 2 ed. São Paulo: Ibrasa, 1976.
22