You are on page 1of 12

Claude Geffré

A HISTÓRIA RECENTE DA
TEOLOGIA FUNDAMENTAL

TENTATIVA DE INTERPRETAÇÃO
CONTRÃRIAMENTE às outras disciplinas elucidar por forma crítica a essência e o método da
teológicas, desde sempre constituiu o estatuto da teologia como ciência; por outras palavras, a de lhe
teologia fundamental objecto de contestação entre facultar uma epistemologia e uma metodologiaB.
teólogos \ As mais vulgares definições da teologia Esta deslocação de sentido a respeito da teologia
fundamental traem claramente á incerteza fundamental é, de qualquer modo, suficiente para
epistemológica de uma disciplina que pretende, nos precaver contra uma sua concepção demasiado
simultaneamente, assumir a tarefa da antiga apo- rígida, como se de uma vez para sempre ela fosse
logética— isto é, estabelecer a justificação racional perfeitamente senhora de seu objecto, de seus
da fé cristã e exercer a função crítica inerente a * temas . e de seu método. Se é seu papel privi-
toda a ciência — quer dizer, elucidar os funda- legiado explicar a razão do Cristianismo frente às
mentos e o método dessa ciência particular que é a exigências do espírito humano, logo se adivinha
teologia. que o cânone de seus temas e até mesmo seu
Tomemos como exemplo a definição proposta pelo método irão evoluir em função do regime histórico
mais recente dicionário de teologia publicado em do espírito. Mais ainda do que para outros sectores
francês: «Designa a teologia fundamental, quer da teologia, há portanto que admitir grande parte
uma função da teologia, sua função defensiva e de relatividade histórica na estrutura e no
justificativa, quer uma parte da teologia que inclui exercício da teologia fundamental.
o estudo da Palavra de Deus e o acolhimento dessa É à luz desta convicção que quereríamos tentar
Palavra pelo homem»2. Pára Y. Congar, de cuja interpretar a história recente da teologia
definição nos servimos, pode efectivamente fundamental. Não se tratará de esboçar um quadro
considerar-se a teologia fundamental como parte histórico, por breve que fosse, da teologia
integrante da teologia (tratado da Palavra de Deus fundamental, desde o princípio do século 0. Mas jul-
e de seu acolhimento pelo homem), ou então como gamos poder discernir três grandes tendências, que
uma sua parte potencial (função defensiva e se sucedem cronologicamente e segundo uma certa
justificativa) 3. lógica histórica. Começaremos por reflectir no
Seríamos tentados a achar nessa função fracasso da apologética como ciência objectiva, em
justificativa a mais característica tarefa da teologia benefício de uma teologia fundamental cujo ponto
fundamental. Com efeito, a pretexto de não voltar a de partida pretende ser resolutamente teológico e
cair nos excessos apologéticos da antiga ciência histórico. Tomaremos depois consciência da
apologética, não poderia a teologia fundamental perspectiva antropocêntrica que anima a maior
reduzir-se a um tratado da Revelação ou dos parte dos trabalhos da teologia fundamental
Lugares teológicos4. Deve manter sempre aquela contemporânea. Por último, verificaremos que se
preocupação de manifestar o carácter racional do desenha actualmente certa tendência que, para
acto de fé. Mas logo devemos acrescentar que a além do objectivismo e do antropocentrismo,
definição de Congar não explicita directamente procura tomar a sério a existência social e política
uma terceira função da teologia fundamental: a de do homem.

I —DA APOLOGÉTICA À TEOLOGIA FUNDAMENTAL

1. Breve apanhado histórico «manuais de apologética» se encerrou. Cada vez


mais se recorre à expressão «teologia fundamental»
Remonta às origens do Cristianismo a ideia de (já utilizada no século XIX) para designar a
uma «apologia da fé». Já no Novo Testamento se disciplina cujo objectivo é justificar os fundamentos
acha presente, e o texto da Primeira Epístola de da fé e, portanto, da teologia.
Pedro 3:15 é como que a sua carta: «Estai sempre Ora é muito instrutivo reflectir sobre as causas
prontos a responder, embora com doçura e respeito, históricas dessa inflação apologética da teologia
a todo aquele que vos peça a razão da vossa es- católica nos tempos modernos, tal como em seu
perança». Só no século XVH, no contexto da actual declínio. Só em função da Reforma, do
controvérsia confessional, se constituiu uma ciência triunfo do racionalismo com o Aufklärung e do
apologética, como esforço metódico para justificar a ateísmo como fenómeno cultural 7, é possível
fé cristã. Hoje em dia, a palavra «apologética» compreender essa orientação apologética.
tornou-se suspeita e pode dizer-se que a era dos Insistia a teologia luterana naqueles factores
A HISTÓRIA REGENTE DA TEOLOGIA ■ FUNDAMENTAL 10

subjetivo — especialmente no papel do Espírito certeza de sua origem divina. No clima da con- tra-
Santo — que, no próprio momento em que levam o reforma, irá a teologia católica insistir nos factores
crente a aderir ao conteúdo da revelação, nos dão a objectivos: a apresentação normativa
do objecto de fé pela Igreja (ministra objecti) e a Gardeil (1908) e o De Revelatione, de Garrigou-
possibilidade de uma justificação racional do facto Lagrange (1930).
da revelação. Contrariamente à tradição patrística Aquilo que caracteriza estes diversos projectos
e medieval, para a qual a luz' da fé nos leva a de apologé-. tica científica é sua vontade de se
aderir com segurança tanto ao facto da revelação situarem no interior da fé (a apologética não pode
quando a seu conteúdo, irá a teologia católica provar a evidência de seu ponto de partida, a
aceitar uma distinção contestável entre o conteúdo revelação; apenas pode demonstrar a evidência da
da revelação (conjunto de verdades in- crediWAãade dessa revelação), e, todavia, ao
demonstráveis) e o facto dessa mesma revelação, mesmo tempo, devido ao seu complexo frente ao
que, em contrapartida, seria demonstrável. racionalismo, de quererem construir uma
Tendência que foi reforçada pela controvérsia com apologética como ciência objectiva que atinja um
os racio- nalistas e os deístas do Aufklärung, que máximo de evidência. Para Gardeil, «a apologética
procuraram reduz'r ás verdades de fé a verdades é a ciência da credibilidade raciona! da revelação
compreensíveis para a razão. divina». Seu objecto é a credibilidade do dogma ca-
Ora, precisamente nó momento em que a teologia tólico. «A credibilidade é a propriedade que cabe ao
católica reage contra esta dissolução da teologia em dogma católico pelo facto do testemunho divino».
filosofia, insistindo no carácter obscuro e Com efeito, é «propriedade da revelação ser
indemonstrável das verdades estritamente naturalmente demonstrável». Teológica quanto a
sobrenaturais, man- tém-se ainda prisioneira do ra- seu objecto formal, a apologética é, portanto, uma
ciência rigorosamente racional e demonstrativa
cionalismo e procura á todo o custo fornecer um'a
quanto a seu método. Também para Garri- gou-
justificação racional do facto da revelação. Então se
Lagrange tem a apologética por função própria
desenvolve toda uma apologética dos sinais exterio-
apresentar a religião revelada «sub ratione
res—-profecias e milagres, sobretudo —, que com
credibilitatis eviãentiae». Pressupõe a fé e, todavia,
evidência devem provar o facto de que Deus se apenas invoca argumentos de razão9.
revelou.
3. O fracasso da apologética como ciência
2. O projecto de uma apologética como objectiva
ciência objectiva
De há uns trinta anos para cá, e em parte devido
No século XVIII, vamos portanto encontrar
à renovação dos estudos bíblicos, tem sido crescente
manuais de apologética que se aplicam a defender,
a tomada de consciência dos graves limites da
simultaneamente contra os racionalistas e os refor-
apologética clássica, a dos manuais, sobretudo no
mados, a verdade da religião católica, mediante um
que se refere à sua concepção da revelação. Pôde
plano tripartido: 1) a existência de Deus e da
dizer-se que a Constituição Dei Verbum, de Vati-
religião (demonstratio religiosa); 2) a existência da
cano II, veio consagrar o progresso realizado em
verdadeira religião (demonstratio christiana); 3) a
teologia fundamental de há trinta anos a esta
existência da verdadeira Igreja (demonstratio
data10. Não parte ela, como a apologética clássica,
catholica) s. Mas só em princípios do século XX sur-
de um conceito apfiorístico de revelação geral; antes
gem tratados de apologética tentando justificar
parte imediatamente, segundo um método
epistemolò- gicamente seu estatuto, tanto em
resolutamente histórico e teológico, do
relação à filosofia, como à teologia dogmática.
acontecimento concreto da revelação consumado em
Entre outras, podem citar-se duas obras que
Jesus Cristo.
fizeram data: La credibiEité et Vapologêtique, de .
A HISTÓRIA REGENTE DA TEOLOGIA ■ FUNDAMENTAL 11

a) Uma das grandes limitações da portanto da teologia), a saber, do próprio dogma da


apologética como ciência objectiva é a de con- ■ revelação; «(...) fazer a apologia desse dogma e,
ceber a credibilidade como uma nota comum a consequentemente, demonstrar sua credibilidade,
todos os dogmas, antes de haver empreendido uma equivale por esse próprio facto a garantir a de
reflexão teológica e crítica' sobre o mais todos os outros dogmas que nele têm sua origem:
fundamental dos dogmas, a saber, a própria dar à fé seu fundamento e à teologia seus prin-
revelação. A revelação é uma categoria teológica cípios» 12.
transcendental, no sentido que se acha pressuposta b) Uma outra limitação da apologética como
em todo o dado teológico e, ao mesmo tempo, o ciência objectiva, consequência direta de sua
contém11. Por isso deve toda a teologia concepção abstracta da revelação, é a de aceitar
fundamental como justificação crítica dos funda- como evidente a distinção entre «aquilo que Deus
mentos da teologia começar por um estudo da revela» e o facto de Deus revelar. Conduz esta
noção de revelação. A revelação não é termo que se distinção a um perigoso extrinsecismo entre o juízo
próve por qualquer diligência racional. Ê o pressu- de credibilidade que verifica o facto da revelação e o
posto fundamental de que se parte e sem o qual se assentimento de fé ao conteúdo dessa mesma
desmoronam todas as verdades que a teologia revelação. Pressupõe ela uma noção intelectualista
aborda. Pelo que não há que nos interrogarmos da revelação concebida como «comunicação de
sucessivamente, como nos velhos tratados de verdades indemonstráveis», esquecendo, que é o
apologética, sobre a possibilidade, a conveniência, próprio facto da revelação que constitui o objecto da
e a necessidade da revelação. Parte-se Boa Nova do Evangelho. Sob a influência de
directamente do acontecimento da revelação, tal Bultmann, certos autores seriam tentados a dizer
como se acha relatado nas Escrituras, e procura-se que antes cumpre inverter a afirmação e asseverar
libertar seu significado global para o crente e para que todos os homens podem desde já ter uma certa
o homem em geral, em determinada situação pré-cómpreensão do conteúdo da revelação como
cultural. mensagem de salvação, mas que a Boa Nova
Em virtude do método apriorístico aplicado pela imprevisível e indemonstrável reside no facto de
apologética científica, compreende-se que u termo
essa salvação nos ser efectivamente dada em Jesus
apologética tenha vindo a ser cada vez mais
Cristo13.
desqualificado e se lhe prefira a expressão teologia
fundamentai, como ciência do fundamento da fé (e
Enquanto se não superou uma concepção perguntar segundo que perspectiva particular
meramente abstracta da revelação, concebida encara ' a teologia fundamental os mistérios da fé.
como comunicação de verdades sobrenaturais, c) Por último, há ainda que mencionar a mais
pôde pretender-se demonstrar a evidência da grave das lacunas da apologética como ciência
credibilidade do facto da revelação (semelhante objectiva, aquela que mais frequentemente é
revelação não repugna física ou moralmente, nem denunciada pelos apologetas de hoje. Acusam-na
em relação ao homem nem em relação a Deus) sem de pôr em ação uma credibilidade racional que não
qualquer preocupação quanto a seu conteúdo. Se vai ao encontro da credibilidade vivida do crente.
voltarmos a encontrar a noção bíblica de revelação Donde o carácter ilusório dessas apologéticas
— noção histórica, personalista e cristocêntrica—, científicas que pretendem provar através de argu-
precisamente aquela que na Constituição Dei mentos apodícticos de ordem metafísica, física e
Verbum é posta em evidência, então com- histórica a verdade da religião cristã e da Igreja
preenderemos quanto mais difícil não é traçar a católica, e que nunca convenceram ninguém.
fronteira exacta entre teologia fundamental e Actualmente, melhor podemos avaliar do erro de
teologia dogmática. A teologia fundamental cálculo que consiste em utilizar uma apologética
igualmente considera aquilo que tem a ver com os nascida de controvérsias confessionais e que
demais tratados de Dogmática. Mas resta-nos acumula os motivos externos de credibilidade para
justificar a fé concreta de determinado indivíduo. defina segundo suas próprias luzes a verdade da
Por aqui verificamos quanto o contexto socio- vida, com vista a aplicá-la na prática. Com
cultural reage sobre o método e os temas pri- crescente evidência se revelou que o pensamento
vilegiados de uma teologia fundamental. Querer em geral — é, em particular, o pensamento sobre
transpor hoje em dia essa apologética científica as verdades da vida — não pode planar exte-
que nasceu num ambiente cultural diverso, o do riormente ou por sobre a vida, mas que deve
racionalismo, é sujeitar-se ao fracasso. É esquecer exercer-se no interior da vida consciente tomada
que o regime do espírito mudou. Tal como Wal- em sua totalidade»14.
grave afirmou, «para o homem de hoje, a razão Por outras palavras, quando se trata de um
pensante não é já um inteüectus se-paratus que valor como a
CLAUDE GEFFBS
religião, não pode o juízo de credibilidade ser ordem afectiva implícitos na credibilidade real.
puramente racional. Depende de uma livre escolha Não se reduz ela, no entanto, a uma teologia da
existencial ou, pelo menos, de um juízo ético conversão ou a uma arte apologética: procura
fundamental. Deste modo, se uma justificação analisar as estruturas objectivas da subjectividade
racional da fé continua a ser hoje em dia legítima, crente. E aqui se revelam extremamente fecundas
deixará ela de ser feita unicamente a partir de aquelas análises de Blondel que pretendem
provas extrínsecas sobre as origens divinas do esclarecer a lógica interna da ação humana. Pelo
Cristianismo, mas através de uma elucidação da que o objecto de semelhante operação apologética
existência crente no interior da Igreja e do mundo. deixará de ser exclusivamente a credibilidade
Justificar a fé é esclarecer o sentido do Cristia- racional, mas a credibilidade humana do
nismo em função de uma consciência humana Cristianismo10. Acabamos finalmente por nos
moralmente comprometida e situada histori- aperceber de que é impossível contentarmo-nos
camente. com justificar a verdade do Cristianismo a partir
de provas históricas.
Terminada esta breve resenha, compreende-se
4. Á credibilidade humana do Cristianismo
por que razão melhor se adequa à apologética
É em função dessas graves insuficiências da cristã o nome de teologia fundamental. Não só por
apologética objectiva, demasiado intelectualista, a palavra «apologética» se achar desacreditada
demasiado extrinsecista, que há que compreender neste tempo de diálogo. Mais profundamente, é
o êxito da apologética de imanência (cf. a Action, porque tomamos consciência da fragilidade de uma
de Blondel, 1893) e das teses de Rousselot15. Con- ciência apologética que pretendesse provar o facto
sistiu o mérito da chamada apologética subjetiva da revelação à custa de provas históricas. Só no
em ter manifestado claramente que a credibilidade
âmago da experiência da fé se pode experimentar a
tomada formalmente da apologética objectiva,
aquela credibilidade que apenas retém o processo certeza da revelação divina. Logo desde o início,
racional e abstrai dos elementos afectivos tais pretende a teologia fundamental ser
como a intentio fidei, não passa de esqueleto, de resolutamente teológica e histórica. Mas interroga-
uma abstracção. se criticamente acerca dos dois grandes
Ao longo dos últimos trinta anos, cada vez mais fundamentos da existência cristã, a revelação e a
se esforçou o pensamento apologético por superar o fé. E' é nessa reflexão crítica sobre os
falso dilema entre apologética objectiva e apolo- «fundamentos» que ela exerce a sua função
gética subjetiva. E falar-se-á em apologética justificativa. Baseia o carácter racional do acto de
integral para designar certo tipo de apologética fé, manifestando a correspondência entre o
que, em nada desvalorizando as provas _ externas Cristianismo e a existência humana considerada
do Cristianismo, procura valorizar os elementos de em todas as suas dimensões. É esta preocupação
A BISTÕRIA RECENTE DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL lã

principal da teologia fundamental contemporânea sua intenção antropocêntrica.


que quereríamos agora sublinhar, referindo-nos à

A INTENÇÃO ANTROPOCÊNTRICA DA TEOLOGIA . ■


FUNDAMENTAL

Se procurarmos interpretar a evolução sofrida Representa a teologia tradicional, aquela


pela teologia fundamental de há uns trinta anos teologia que achou sua expressão privilegiada em
para cá, verificaremos que corresponde ao desejo de S. Tomás de Aquino, um admirável esforço de
superar a problemática intelectualista e inteligência do conteúdo eterno do Mistério de
objectivista do neotomismo. Não podemos já Deus e dos Mistérios da fé. Antes se preocupará a
teologia contemporânea com manifestar o
contentar-nos com explanar uma análise
significado, para o homem actual, do Mistério cris-
puramente racional da credibilidade, pois que tal tão em seu ,conjunto. Pelo que a teologia moderna
deixou de corresponder à modernidade de nosso pretende ser mais existencial, mais
espírito. Se é ambição da teologia fundamental antropocêntrica. Corresponde, aliás, esta tendência
«justificar» a fé, tanto aos olhos do descrente como ao progresso da reflexão teológica sobre a
do crente, necessàriamente deve ela ter em consi- revelação, a que nos referimos já. Só na sua acção
deração os condicionamentos filosóficos e culturais por nós e a partir dela nos fala a revelação bíblica
do espírito. Pelo que os mais hábeis artífices da do em si de Deus: não deixa nunca de ser
teologia fundamental contemporânea irão esfor- económica e funcional, isto é, salutar. Por outro
çar-se por considerar o condicionamento pós- lado, não se pode separar a reflexão sobre a
kantiano da inteligência; tomarão a sério a realização da revelação na história da reflexão
sobre sua realização no sujeito crente.
historicidade do homem, sem esquecerem que nos
Contrariamente aos esquemas extrinsecistas sobre
achamos na era da crítica, ou melhor, da a revelação como comunicação de verdades
hermenêutica. Ê sobre este pano de fundo que há sobrenaturais a um sujeito humano considerado
que compreender a preocupação «antropocêntrica» passivamente, há que dizer que a actividade
que se manifesta em numerosos trabalhos de significante do Povo de Deus se insere como
teologia fundamental contemporânea 17. elemento constitutivo na própria revelação. Pode
portanto dizer-se que a revelação constitui já uma
tradição e até uma hermenêutica.
1. A orientação funcional da teologia Finalmente, procura a teologia moderna tirar as
consequências da intuição fundamental de
Definir-se-ia bastante bem o programa da
Bultmann acerca da necessária pré-compreensão
teologia fundamental afirmando que é sua tarefa
implícita em todo e qualquer esforço de releitura da
mediatizar a dimensão antropocêntrica de toda a
mensagem cristã. Quereria ela constituir, por
teologia. Este acto de tomar em consideração o
forma inseparável, uma hermenêutica da Palavra
ponto de vista do homem corresponde a uma
de Deus e da existência humana. Não existe
exigência geral de toda a teologia dogmática. Mas o
revelação em sentido profundo, se o dom de uma
que cabe por excelência à teologia fundamental é
Palavra inédita por parte de Deus não coincide com
justificá-la criticamente, em função de uma análise
uma revelação do homem a si próprio. Como nos
transcendental do sujeito humano.
diz Paul Ricoeur, «o revelado como tal é uma
A HISTÓRIA REGENTE DA TEOLOGIA ■ FUNDAMENTAL 11

abertura de existência, uma possibilidade de pocêntrica dos enunciados da fé, quer dizer, em
existência» 1S. A inteligência do Cristianismo é tomar manifesta a ligação entre o objectivo desses
assim inseparável de uma reflexão sobre o homem enunciados e a compreensão que o homem tem de
como mistério de abertura, como busca do sentido. si mesmo. Afirmamos que é esta a tarefa por
Procuram, portanto, certos autores explanar excelência do teólogo fundamental, dado que,
uma dialéctica da existência humana com base na fazendo surgir essa dimensão antropocêntrica de
qual o Cristianismo pudesse surgir como sentido e toda a teologia, simultaneamente nos mostra que
perfeição do homem. Aludimos já ao projecto os mistérios da fé cristã são dignos de crédito.
apologético de Bouillard que, na linha de Blondel, Evidentemente que Karl Ra- hner não nega o
se esforça por mostrar, a partir do desfasamento carácter radicalmente «teocêntrico»4 da teologia
cristã quanto a seu conteúdo. Mas acha que, se
entre a vontade querente e a vontade querida, que
tomarmos a sério a orientação antropológica da
a fé cristã é a condição necessária — ainda que filosofia moderna, devemos procurar manifestar o
inacessível — do destino humano. Mas sentido inteligível da revelação para os nossos
quereríamos sobretudo referir aqui as reflexões de contemporâneos, com base num horizonte de
Karl Rahner sobre as necessárias relações entre a compreensão fundamentalmente «antropocêntrieo».
teologia e a antropologia trans cendental. O perigo de semelhante empreendimento, como
2. Intenção antropocêntrica e problemática facilmente se pode adivinhar, consistiria em
transcendental retirar a gratuidade da revelação como história da
salvação e «deduzir exclusivamente dessa
Por «transcendental» há que entender aquilo que experiência de si, e com rigorosa necessidade,
constitui a condição a 'priori da vida do espírito, todas as proposições teológicas, como se fossem sua
aquilo que toma possível um qualquer objecto de objetivação e articulação conceptual» 20. Rahner
pensamento, de querer ou de amor. E para Rahner, toma explicitamente certa distância em relação a
é Deus a condição a priori de todas as nossas esta nova forma de modernismo. Mas o problema
operações espirituais. Adoptar uma problemática de uma teologia fundamental que assim ponha em
transcendental ou tratar toda a dogmática como campo o método transcendental reside todo ele na
antropologia transcendental equivalerá a delicada articulação entre a existência humana
«procurar, no referente a todo o objecto dogmático, como a priori transcendental da fé e o Cristianismo
as condições de seu conhecimento no sujeito, no como a posteriori histórico. De facto, Rahner
teólogo; mostrará ela que existem, com efeito, apenas pode furtar-se ao perigo de uma dedução
condições a priori para o conhecimento de tal necessária partindo de uma antropologia que em
objecto; que essas condições implicam já algo desse muito é já devedora às luzes da revelação. Sua
objecto, do modo, do método e dos limites de seu concepção da teologia como antropologia trans-
conhecimento» 13. cendental toma-se ininteligível se acaso
Aplicar um método transcendental em teologia esquecemos sua audaciosa posição quanto às rela-
consiste, por último, em manifestar a ligação entre ções da natureza e da graça. É possível manifestar
os enunciados dogmáticos e a experiência humana uma correspondência entre as estruturas da
reflexivamente tema- tizados. A revelação refere-se existência humana e o conteúdo dos enunciados
sempre à salvação do homem. Ora, demasiadas dogmáticos a partir do facto de «a ‘natureza’ —
vezes surgem 3s enunciados dogmáticos da fé entendida como espiritual, pessoal e transcenden-
cristã como esotéricos ou míticos, porque tal — ser um elemento intrínseco, constitutivo e
desprovidos de relação com a experiência do necessário, não da graça como tal, considerada em
homem no esforço por ele empreendido para se abstracto, mas da realidade e do acontecimento nos
interpretar a si próprio. Consistirá, portanto, a quais a graça pode ser efectivamente concedida» 21.
tarefa do teólogo em mediatizar- a dimensão antro-
Não podemos, pois, acusá-lo de partir de uma antropologia que nada devesse à revelação e que
12 GLATJDE GEFFRÉ

ameaçasse reduzi-la a sua própria medida22. Antes acção em todos os tratados de dogmática.
poderíamos acusá-lo de ter uma concepção Conforme Rahner o sugere, deveríamos tender
contestável da autonomia da filosofia. Mas, neste para uma muito mais acentuada «pe- ricorese» da
ponto, somos remetidos para a velha questão das teologia fundamental e da dogmática do que a que
relações, entre a filosofia da religião e a teologia normalmente se verifica23. Sem voltar a pôr em
fundamental. Em todo o caso, o exemplo de causa o papel próprio da teologia dogmática
Blondel nos prova que é possível respeitar a especial em seu esforço de inteligência quanto ao
autonomia da filosofia sem que nos privemos da conteúdo de cada um dos mistérios da fé, parece-
nova contribuição filosófica facultada pela nos acertado dizer que quanto mais a teologia se
revelação. toma numa hermenêutica, tanto mais se dissipa a
distinção entre teologia fundamental e teologia
dogmática.
3. Teologia fundamental e teologia Sempre que Rahner fala do «antropocentrismo»
dogmática da teologia, poder-se-ia igualmente falar de sua
exigência hermenêutica, naquele sentido muito
A nós, importa-nos mais sub-, linhar que este geral de que não há qualquer afirmação a respeito
carácter transcendental da teologia fundamental de Deus que não implique uma afirmação a res-
nos obriga a rever as relações entre a teologia fun- peito do homem, quer dizer, um conhecimento
damental e a teologia dogmática. Se, hoje em dia, teológico que se não preocupe apenas com conhecer
muitos são os homens que duvidam do facto de a verdade objectiva dos enunciados, dogmáticos,
uma revelação divina, é em virtude das mas com revelar seu sentido para os dias de hoje.
dificuldades que encontram frente ao próprio Compreender a função hermenêutica da teologia é
conteúdo da revelação. Dir- -se-ia, portanto, que tirar as consequências da fenomenologia herme-
em medida crescente deveria a função crítica e
nêutica de Heidegger, quando
justificativa da teologia fundamental achar-se em
ele nos diz que todo o conhecimento do ser apenas tarefa própria e complexa em esclarecer
se pode compreender através da elucidação desse mutuamente um pelo outro o a priori e o a
ser que a si próprio põe a questão do ser, o posteriori histórico da fé. E por aí manifesta ela
homem21. que a fé cristã é racional, digna de crédito. Função
Devemos poder manter esta exigência hermenêutica, no sentido em que procura fazer
hermenêutica sem que cheguemos às conclusões de surgir o significado permanente dos enunciados da
um bultmanismo impenitente que ameace fé sob sua forma escriturística, dogmática,
dissolver a teoloçia numa antropologia. Apenas teológica, a partir da inteligência que o homem
posso interpretar essa história em função da tem de si próprio e de sua relação com o mundo.
interpretação viva que faço de mim próprio como Em função do que atrás afirmamos, poder-se-ia
ser histórico em constante projeto para a perfeição dividir o curso de teologia fundamental em duas
de mim próprio. Como afirma Sehillebeeckx, grandes partes: por um lado, o estudo da
«inteligência da fé e interpretação de si são in- realização na história, e, por outro, a realização da
separáveis» 25. revelação na subjectividade crente, precisando bem
Pelo que de bom grado definiríamos hoje a que nos achamos aqui frente a uma distinção
teologia fundamental como a função critica e formal, pois que a revelação implica neces-
hermenêutica de toda a teologia. Função crítica, sàriamente a subjectividade humana na qual se
naquele sentido em que e]a analisa aquilo que é realiza pela fé, e que se não pode estudar a fé sem
condição de possibilidade histórica e condição considerar sua relação com o acontecimento his-
transcendental da fé: o acontecimento' da tórico da revelação.
revelação, por um lado, e ainda a existência hu- Assim nos apercebemos de que, se é verdade que
mana como condição a 'priori da fé. Consiste sua tal função crítica e hermenêutica constitui a
A HISTÓRIA REGENTE DA TEOLOGIA ■ FUNDAMENTAL 13

própria exigência de toda a actual teologia, ela se nos dois grandes capítulos de toda a teologia
acha contudo tematizada por forma privilegiada fundamental clássica: a revelação e a fé.

III —O «FUTURO» COMO HORIZONTE DA TEOLOGIA


FUNDAMENTAL

Tentamos tomar consciência da orientação Deus. Por outro, acusa-se a «problemática trans-
antropocêntrica da teologia fundamental con- cendental» de dar a primazia à subjectividade
temporânea. Deve esta orientação ser interpretada transcendental, em detrimento do homem como
como um sinal da situação histórica criada à fé no história e ser político, e, portanto, de só em
mundo. Muitos são os homens que aderem global- aparência vencer o idealismo.
mente ao Cristianismo, não obstante sentirem O homem, medida da revelação: esta mesma
certo mal-estar no referente a determinada afir- censura tanto pode ser dirigida ao projeto
mação particular da fé cristã. Seria precisamente antropológico da teologia fundamental, como à
tarefa dessa teologia fundamental de «novo estilo», hermenêutica existencial de um Bultmann. A
preconizada por Karl Rahner, facultar uma pretexto de que a linguagem da revelação se tomou
«justificação da fé, vivida antes de ser pensada» 2fl. ininteligível para muitos dos nossos
Tratar-se-ia de inventariar aquilo que, no plano contemporâneos, tão bem a ajustam ao horizonte
existencial e pré-científico, deve legitimar a fé de de compreensão do homem 'moderno que o próprio
um homem culto de hoje em dia (visto que a fé deve conteúdo da mensagem corre o risco de se achar
ser «razoável») 27. esvaziado. Reduz-se Deus ao sentimento que Ele
Todavia, quem tentar interpretar os mais tem para o homem na compreensão de si próprio e
recentes e significativos trabalhos de teologia de sua reação com outrem, e o próprio homem se
fundamental forçosamente terá de verificar que toma a medida da revelação.
começam já a distinguir-se os limites e os riscos A obra de Hans Urs von Balthasar— uma das
dessa inflação antropológica. Por um lado, teme-se mais importantes contribuições para a teologia
ver o homem tomar-se a medida da palavra de fundamental do nosso
Tempo representa precisamente séria advertência numa perspectiva contemplativa, esforça-se por
contra os perigos do antropocentrismo em teologia. manifestar o esplendor da figura de Cristo (aquilo
Sem que cite Rahner por forma direta, ele acha no a que ele chama os aspectos estéticos da revelação)
uso do método de imanência ou do método como manifestação e ce1 ebra- ção do amor
transcendental o perigo de um «filosofismo secreto absoluto, quer dizer, do amor intratrinitário e do
e por vezes manifesto, onde a medida interior do amor de Deus pelos homens.
espírito que procura, seja ela concebida como «Só o amor é digno de fé»... Como figura concreta do
vazio, lugar vago, ‘cor inquietum’, ‘potentia amor absoluto, Cristo acha sua justificação em si
oboeden- tialia’, etc., de certo modo é transformada próprio, independentemente das condições sub-
em medida da revelação» 2S. É de opinião que jectivas do homem. «A figura que encontramos na
semelhante tendência encontra sua forma extrema história é convincente em si própria, pois que a luz
no modernismo, «em que os factos objee- „tivos de através da qual se manifesta irradia de per si e
revelação se acham inteiramente dependentes do prova à evidência que o é, pois que irradia da
dinamismo subjetivo interno de revelação entre própria coisa» 30.
Deus e a alma, e apenas são válidos para o cristão No fundo, von Balthasar lembra aos teólogos
na medida em que sustentam e eficazmente que, em vez de procurarem tomar manifesta a
fomentam tal dinamismo» 29. novidade da revelação a partir de um fundamento
Contrariamente a esta tendência, von Balthasar, prévio que vem finalmente a reduzir-se ao Logos da
razão humana, antes devem deixar que a revelação 1. Uma concepção demasiado individualista
manifeste seu sentido a partir de seu lugar de do homem
origem: a figura do Verbo incarnado. Seríamos
tentados a dizer que von Balthasar tomou a sério a A problemática transcendental não ê apenas
advertência de Heidegger: «Enquanto a contestada por aqueles que a acusam de reduzir
conceitualização antropológico sociológica, tal como em demasia ao horizonte do homem o conteúdo de
a do existencialismo, não tiverem sido ultra- mistério da revelação. Outros há que tentam
passadas e postas de lado, nunca a teologia entrará actualmente ultrapassar tal problemática, na
na liberdade de dizer aquilo que lhe está confiado» medida em que consideram que ela utiliza
31. categorias demasiado individualistas e se liga
Não nos cabe aqui entrar num debate sobre o demasiado unicamente ao presente da fé como
pluralismo das teologias no interior do encontro existencial entre Deus e o homem. Uma
Cristianismo. Apenas faremos notar, na esteira de teologia puramente . transcendental, personalista
Malevez, que o próprio vou Balthasar não pode e existencial é insuficiente no próprio instante em
poupar-se a uma. certa pré-.compreensão. Apenas que a nova inteligência do mundo— neste tempo
apreendo a beleza do mistério de Cristo pela de secularização — exige uma mais profunda
referência a uma norma de beleza em mim inscrita reflexão sobre as relações entre a fé cristã e o
e é em função dessa afinidade que me apercebo de mundo. É especialmente incapaz de tomar
sua credibilidade32. B precisamente tarefa do realmente a sério o mundo como história. Entre os
teólogo fundamental tematizar tal pré- mais lúcidos representantes desta nova tendência,
compreensão. Por outro lado, mesmo no próprio há que citar J. Moltmann, do lado protestante, e J.
Bultmann, nunca o a posteriori histórico da B. Metz, do lado católico33. Assim, diriam eles fa-
revelação como acontecimento de graça pode ser cilmente que o tema privilegiado de uma teologia
deduzido a partir do horizonte da compreensão do fundamental não é apenas, como outrora, o das
homem. Aquilo que define precisamente a relações entre a fé e a razão, mas o das relações
revelação é o facto de se não achar no poder do entre a teoria e a prática, quer dizer, uma reflexão
homem. Finalmente, cumpre não esquecer como sobre as implicações sociais e políticas da fé cristã.
dissemos — que a antropologia transcendental a Por essa razão, cada vez mais será a teologia
partir da qual autores como Rahner manifestam a fundamental o lugar do diálogo entre a fé'e as
credibilidade do Cristianismo muito deve já às ciências humanas, e não apenas entre a fé e a
luzes da revelação. filosofia, tal como outrora.
CLAUDE GEFFRÊ
2. A teologia fundamental como «teologia futuro, tal como da inteligência do mundo como
política» história que daí resulta.
Por outras palavras, o futuro é o horizonte de
Em função da situação pós- -religiosa do nosso pensamento que permite ultrapassar os limites de
tempo, em que o mundo deixou de ser um uma teologia antropocêntrica demasiado exclusiva-
espetáculo que se contempla para ser um vasto mente preocupada com valorizar o momento
lugar de trabalho e onde o homem se define por sua presente da decisão de fé. A partir deste horizonte
ilimitada eficiência e péla construção de um mundo de pensamento, pode interpretar-se «o mundo como
sempre novo, a responsabilidade própria de uma história, a história como história do fim, a fé como
teologia fundamental consistiria em explicitar «a esperança e a teologia como escatologia» 34, Para J.
dimensão de futuro» e a orientação socio-polítiea do B. Metz, não basta pedir ao teólogo fundamental
Cristianismo. Teria especialmente por tarefa que mediatize a dimensão antropocêntrica de toda
mostrar o fundamento bíblico (as palavras do a teologia; a situação espiritual que é a nossa insta-
Antigo Testamento são palavras de promessa) da o a manifestar «a dimensão escatológica» de toda a
orientação de nossa cultura moderna em direção ao teologia cristã. «A escatologia não é uma disciplina
A HISTÓRIA. RECENTE DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL 25

a par de outras disciplinas; é aquela dimensão Esta nova orientação «política» da teologia
fundamental que determina, forma e modela todos fundamental mostra-nos quanto se não acha a sua
os desenvolvimentos teológicos, particularmente os problemática condicionada pela situação da fé no
que se referem ao mundo. A tentativa de mundo. Certamente que os temas tradicionais da
interpretar o conjunto da teologia por forma teologia fundamental (tematização dos
existencial ou personalista constitui importante fundamentos históricos e racionais do Cristianismo;
realização teológica ( . .. ) Não obstante, pode elucidação crítica da essência, do método e da
fàcilmente essa teologia existencial e ‘an- linguagem da teologia) deverão tornar-se objecto de
tropocêntriea’ manter-se alheia ao mundo e à uma investigação cada vez mais exigente. Mas se a
história, se neles não for a teologia considerada tarefa por excelência da teologia fundamental é
essencial. Só no horizonte escatológico da explicar o motivo da esperança cristã em deter-
esperança o mundo surge como história. Só na inte- minada situação histórica, cada vez mais virá ela a
ligência do mundo enquanto história alcança a ser o lugar privilegiado do encontro entre a Igreja e
acção livre seu verdadeiro lugar, que é central» 35. o mundo, na linha da constituição pastoral Gau-
O mundo mais não é do que o vasto campo do dium et Spes. O teólogo não é tão-só a testemunha
«disponível» oferecido à livre creatividade do da Palavra de Deus no que ela tem de permanente;
homem, todo ele tenso em direcção ao futuro. No igualmente é testemunha das novas interrogações
tempo da secularização, a única teologia capaz de dos homens frente ao conteúdo da revelação. Cabe-
manifestar inseparavelmente a esperança cristã e lhe começar por participar na inteligência que o
as esperanças terrestres não é nem uma teologia do homèm tem de si próprio, de seu mundo e de seu
cosmos, nem uma teologia transcendental da futuro, para formular à luz da fé um juízo
existência humana, mas uma teologia política, quer realmente crítico sobre os grandes problemas que
dizer, uma teologia que toma a sério, a dimensão solicitam a consciência cristã. Como o disse Schil-
social e política da existência humana, tal como lebeeckx, «aquele que se puser o problema da
hoje em dia é compreendida. Segundo J. B. Metz, inspiração evangélica exteriormente ao conteúdo
será dupla a tarefa de semelhante teologia. Por um concreto de nossa própria experiência da existência
lado, irá exercer uma função crítica no referente à põe, ao fim e ao cabo, um problema sem conteúdo, a
tendência para a «privatização» de muitas das cor- que apenas se pode dar uma resposta inadequada,
rentes teológicas contemporâneas. Ê inegável que a sem impacto existencial» 37. Demasiadas vezes,
esfera do privado e do inefável encontro entre Deus tanto crentes como descrentes têm o sentimento de
e o homem é o campo por excelência da her- que as Igrejas cristãs continuam a confessar uma
menêutica existencial e de um certo personalismo doutrina admirável, mas sem eficácia no que se
teológico. Por outro lado, a tarefa positiva da refere aos mais urgentes problemas dos homens.
teologia política «procura determinar de forma nova Não basta apelar para uma admirável essência do
a relação entre religião e sociedade, entre Igreja e Cristianismo para desculpar as deficiências do
‘publicidade’ social, entre fé eseatoló- gica e prática Cristianismo histórico. Há que manifestar pelo
social» so. pensamento e a ação a força crítica e libertadora do
Evangelho. A resposta do Evangelho será sempre
3. Teologia fundamental e problemas- paradoxal. Contesta a autossuficiência do homem,
fronteira põe em questão as ideologias demasiado optimistas
quanto ao futuro. Mas ao mesmo tempo,
precisamente em virtude de sua dimensão esca-
tológica, liberta e estimula as esperanças,
terrestres do homem: humanização do homem,
socialização da humanidade, instauração de uma
ordem de justiça e de uma paz universal.
Não nos é possível enumerar aqui todos os
«problemas fronteira» que entram no âmbito de
uma teologia fundamental para o nosso tempo.
Podemos tão só dizer, sem perigo de errar, que se
referirão sobretudo às relações entre a fé e as novas
formas do ateísmo (teologia da descrença), à inter-
pretação cristã do pluralismo ideológico e religioso
(teologia das religiões não-cristãs), à confrontação
da fé com a realidade político-social (teologia da
violência), à reinterpreta- ção da vida cristã a
partir do contexto de vida de um mundo
secularizado (teologia das realidades terrestres).
No termo desta breve investigação histórica,
parece legítimo afirmar que a mais viva das
pesquisas da teologia fundamental se esforça por
superar, tanto o objetivismo da teologia neo-
escolástica, como o antropocentrismo da teologia
existencial. Assistimos ao nascimento de uma
teologia fundamental de novo estilo, que pretende
tomar a sério o novo horizonte de compreensão do
homem moderno, em particular
o seu projeto de futuro terrestre. Como no
passado, procurará tomar o Cristianismo digno de
fé, mas manifestando melhor sua dimensão social
e escatológica. E só quem esquecer o único destino
da Igreja e do mundo no Desígnio de Deus poderá
admirar-se ao ver a teologia fundamental aplicar-
se com tamanho ardor a problemas extra-
históricos.
Clauãe Geffrê CTrad. Máximo Oliveira)
A HISTÓRIA. RECENTE DA TEOLOGIA FUNDAMENTAL 27

You might also like