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As armadilhas da
paIsagem: para
uma epistemologia
do espaço-tempo
IN fRODUCÃO
científico e o olhar jurídico. A alta potência destes olhares permitiu-lhes reivindicar e o direito se mostrassem no seu trabalho de mostrar. A análise dos limites, no
uma profundidade e uma transparência até então nunca alcançadas. Como cen- entanto, criou apenas a possibilidade de identificar os sistemas de apresentação,
tros do sistema de representação, transformaram-se em árbitros das discriminações mas não o identificou. Para isso, é necessário investigar os dispositivos através dos
próprias de um tal sistema: a distinção entre o central e o periférico, o constitutivo quais este sistema opera. É esse o objedivo analítico da Parte 11. Enquanto sistemas
e o contingente, o verosímil e o inverosímil, o relevante e o irrelevante, o legítimo de apresentação, a ciência e o direito são expressivos, ou seja, significam um in-
e o ilegítimo.
cremento em relação a algo que, por ser inerte, estranho ou demasiado óbvio,
Na Parte I, procurei mostrar os limites epistemológicos, teóricos, políticos e tem de ser construído como condição da sua própria inteligibilidade. A investiga-
ideológico-culturais deste sistema de representação. A consciência desses limites é ção da expressividade da ciência e do direito é uma tarefa complexa, dificultada,
a consciência da ilusão da transparência. Trata-se de um conjunto bem urdido de em particular, pelo fado de a ciência e o direito recusarem militantemente essa
discriminações radicais em que o lado errado do exercício (o periférico, o contin- expressividade. Foi na luta contra a racionalidade estético-expressiva que se cons-
gente, o inverosímil, o irrelevante, o ilegítimo) é varrido, segundo os casos, para o tituíram em guardas privilegiados do olhar arrogante, imperial, da modernidade
caixote do lixo epistemológico, teórico, político ou ideológico-cultural. O que se eurocêntrica2 • Essa investigação tem, pois, o seu quê de arqueológico e de analógico.
não vê não se vê porque não se pode ou quer ver, mas sim porque não existe. Os Avança escavando o contexto epistemológico social e político das construções ci-
limites do olhar são, assim, exteriores ao olhar. Levado ao extremo, este sistema de entífica e jurídica na busca de procedimentos ocultos que subjazem aos procedi-
representação é tanto mais transparente quanto mais vasta for a opacidade mentos manifestos. Estes últimos são os garantes da operacionalidade da ciência e
adivamente produzida. Este dilema foi, de resto, eloquentemente antecipado por do direito e como tal são reconhecidos por estes. É a naturalidade destes procedi-
Shakespeare:
mentos que os torna invisíveis. Pelo contrário, os procedimentos ocultos dão indi-
Ham/et. 00 you seI" nothing there? cações sobre a artificial idade e a arbitrariedade dos procedimentos manifestos e,
Queen: Nothing aI ali, yet ali Ihal is 15ee 1 ao fazê-lo, tornam estes visíveis, na medida em que eles próprios, procedimentos
ocultos, se mostram. Esta relação entre procedimentos ocultos que se manifestam
Os limites dos sistemas de representação protagonizados pela ciência e pelo e procedimentos manifestos levados a mostrar o que neles se oculta como condi-
direito não caraderizam apenas, pela negativa, este sistema. Apontam também ção de funcionalidade não é uma relação fácil de investigar. Como já sucedeu na
para as suas virtualidades enquanto sislema de apresentação. Tanto a ciência como Parte I, recorro ao conhecimento retórico e analógico, sob a forma de metáfora,
o direito moderno mostram de modo convincente as suas construções da realida- para me aproximar desta relação.
de. Estes sistemas de apresentação transformam-se em sistema de representação Como também já referi, ao longo deste volume e deste livro privilegio as
na medida em que a ciência e o direito mostram sem se mostrarem. De facto, a metáforas espaciais. Não o faço por desconhecer a relevância das metáforas tem-
ilusão da transparência só é credível através da eliminação ou neutralização do porais, do progresso à evolução, do desenvolvimento à modernização. Pelo con-
meio, veículo ou mediador da apresentação. A ciência e o direito modernos pre- trário, para mim, todos os espaços são espaços-tempos tal como todos os tempos
tendem ser a placa de vidro na simulação de Leonardo da Vinci para demonstrar são tempos-espaços. Aliás, como referi na Parte I, as metáforas temporais têm
a teoria da imitação na arte. Segundo Leonardo, se se interpuser uma placa de dominado o pensamento moderno. Em décadas recentes, contudo, e em resulta-
vidro entre o artista e o motivo e se sobre ela Se pintar o objecto que se vê através do das transformações sociais, económicas e culturais, a dimensão espacial do es-
dela, o olho humano não poderá distinguir entre a percepção do objedo e a per- paço-tempo tem vindo a adquirir maior visibilidade.
cepção do objecto copiado no vidro (Danto, 19B1: 149).
O desenvolvimento das tecnologias da produção, da informação e da comu-
Na Parte I, ao analisar os limites da representação científica e jurídica moder- nicação fez com que se criassem simultaneidades temporais entre pontos cada vez
nas, procurei tornar visíveis os mediadores dela e, portanto, transformar o sistema mais distantes no espaço, e este facto teve um papel estruturante decisivo, tanto
de representação num sistema de apresentação. Procurei, em suma, que a ciência no plano da prática social como no da nossa experiência pessoal. A ponto de John
1 Nu espaço da cultura de língua purtuguesa vem obrigatoriamente à memória () títul" do poema 2. Como vimos na Parte I, sobreviveram sempre outros olhares. modestos. não imperiais. Estes
de Manoel de Bdrrus, em a Gramática Expositiva do Chão: "retrato quase apagado ('m quP se pode ver olhares, igualmeote expressivos a seu modo, tão pouco foram objecto de análise porque a ciência que
[Wrf('itilmentP nada". os poderia analisar declarou-os irrelevantes, ilusórios ou triviais, em suma. inexistentes.
194 INIRODU(,ÀO ACRITICA DA MO INDOLENfE: CONTRA O DESPERDloo DA 195
Bt'rger afirmar que as pessoas não deviam fazer a sua história, mas antes a sua busca adquire um particular sentido epistemológico e sociológico na medida em
gt'ografia J • que a análise dos procedimentos ocultos e manifestos das disciplinas menos ingénuas
O espaço parece, pois, transformar-se no modo privilegiado de pensar e é aplicada às disciplinas mais ingénuas. De todas as ciências sociais, a economia
.tgir o fim do século e o princípio do terceiro milénio. Assim sendo, é de pensar convencional é, na minha opinião, a que, por razões nada ingénuas, se arroga a
que as representações sociais do espaço adquiram cada vez mais importância e mais ingénua das representações científico-sociais da realidade. Por isso, a análise
central idade analíticas. Os nossos próprios tempos e temporalidades serão pro- do Capítulo 4 centra-se nela.
gressivamente mais espaciais. É comum identificar nas nossas trajectórias pesso-
ais a sucessão do tempo da família, da escola e do trabalho. Foi em atenção a
essa sucessão que se constituíram muitos dos ramos da sociologia e de outras
ciências sociais: a sociologia da família e da infância, a sociologia da educação e
da juventude, a sociologia do trabalho e da produção, a sociologia do lazer e da
terceira idade. Começamos hoje a ver que cada um destes tempos é, simultane-
amente, a convocação de um espaço específico que confere uma materialidade
própria às relações sociais que nele têm lugar. A sucessão de tempos é também
uma sucessão de espaços que percorremos e nos percorrem, deixando em nós
as marcas que deixamos neles.
Quando hoje se fala de mobilidade, como forma de sensibilidade emergente
(Thrift, 1996: 260), ou da compressão do tempo-espaço para expressar as altera-
ções drásticas na ordenação dos espaços e dos tempos (Harvey, 1996: 242), os
espaços são concebidos como estando simultaneamente à beira do colapso e na
aurora da infinitude: só há mobilidade entre espaços e, por isso, só se acelera a
primeira multiplicando os segundos; a necessidade da compressão do tempo-es-
paço é tanto maior quanto mais vasto é o espaço.
Por estas razões, privilegiarei nesta parte, e, de resto, também na seguinte, as
metáforas espaciais. Nesta parte, ao contrário do que sucedeu na Parte I, começa-
rei pelo direito, abordando de seguida a ciência. No Capítulo 3, socorro-me da
cartografia para desenvolver uma concepção do direito enquanto mapa cognitivo
dos espaços de ordem e desordem em que nos movemos quotidianamente. De-
signei esta concepção como cartografia simbólica do direito. No Capítulo 4, anali-
so em detalhe os procedimentos manifestos usados por aquelas disciplinas cientí-
ficas ou géneros artísticos que mais intensamente têm experienciado o que desig-
no por ansiedade da representação. A natureza dos seus objectos, porque estão
demasiado longe no tempo (arqueologia) ou demasiado longe no espaço (astrono-
mia) ou ainda porque a sua reprodução é inerentemente problemática (a pintura
e a fotografia), levanta problemas especiais a uma representação ingénua. Por esta
razão, penso ser mais fértil nestas ciências a busca dos procedimentos ocultos. Tal
3. A sua reflexão mais recente sobre o tema: "Estamos a viver actualmente uma nova situação
histórica que pode ser descrita em termos geográficos" (Berger, 1987).
Uma cartografia simbólica das
representações sociais:
o caso do direito
têm um impacto político e ético muito directo 1 • Recorro à cartografia neste capítu- distorcem a realidade para instituir a originalidade; e o direito distorce a realidadl'
lo pela virtuosidade dos seus instrumentos analíticos, mas também, e sobretudo, para instituir a exclusividade. No tocante ao direito, por exemplo, e independen-
porque a cartografia é uma ciência em que o fundacionalismo epistemológico da temente da pluralidade de ordens normativas que circulam na sociedade, cada
ciência moderna e a sua correspondente teoria da verdade são particularmente uma destas, considerada em separado, aspira a ser exclusiva, a deter o monopólio
inverosímeis. da regulação e o controlo da acção social dentro do seu território jurídico. De
São vários os modos de imaginar e representar o espaço. Dentre eles, forma bem patente, este é o caso do direito estatal. Para funcionar adequadamen-
selecciono os mapas e, nestes, os mapas cartográficos. Parto do direito, qUe, como te, uma determinada lei do trabalho, por exemplo, não só deve negar a existência
defendi na Parte I, partilha com a ciência as tarefas de racionalização do Estado e de outras ordens normativas informais (tais como os regulamentos de fábricas, O
da sociedade modernos. A análise cartográfica do direito permite identificar as direito da produção, etc.) que possam interferir no seu campo de aplicação, como
estruturas profundas da representação jurídica da realidade social, quase sempre também tem de revogar todas as leis estatais do trabalho que tenham regido ante-
ausentes nos debates sobre os limites e a crise do direito passados em revista no riormente as mesmas relações laborais. Isto constitui, como sabemos, uma dupla
Capítulo 2. A comparação proposta é, pois, entre mapas e direito. O direito, isto distorção da realidade. Por um lado, há outras ordens normativas que funcionam
é, as leis, as normas, os costumes, as instituições jurídicas, é um conjunto de repre- e são eficazes no mesmo território jurídico. Por outro lado, visto que o direito e a
sentações sociais, um modo específico de imaginar a realidade que, em meu en- sociedade são mutuamente constitutivos, as anteriores leis laborais, mesmo depois
tender, tem muitas semelhanças com os mapas. A análise de tais semelhanças pres- de revogadas, deixam, ainda assim, as suas marcas nas relações de trabalho que
supõe, num primeiro momento, que o direito seja concebido, metaforicamente, regiam. Apesar de revogadas, continuam presentes nas memórias das pessoas e
como mapa e, num segundo momento, que a metáfora seja tomada literalmente. das coisas: a revogação jurídica não significa erradicação social.
Obviamente, o direito é mapa tão-só em sentido metafórico. Mas os tratados de Esta distorção da realidade não é caótica. Dá-se através de mecanismos e de
retórica ensinam-nos que o uso repetido de uma metáfora durante um longo pe- operações determinados e determináveis. Pretendo mostrar neste capítulo os
ríodo de tempo transforma gradualmente a descrição metafórica numa descrição isomorfismos entre as regras e os procedimentos da distorção cartográfica, por um
literal (Perelman e Olbrechts-Tyteca, 1969: 405). As normas jurídicas são hoje mapas lado, e as regras e os procedimentos da distorção jurídica, por outro. Em meu
em sentido metafórico. Amanhã, poderão eventualmente sê-lo em sentido literal. entender, as relações das diferentes juridicidades com a realidade social são muito
A estratégia analítica aqui proposta obriga-nos a um curto-circuito entre o hoje e o semelhantes às que existem entre os mapas e a realidade espacial. De facio, as
amanhã, uma suspensão do tempo que cria espaço para o espaço. juridicidades são mapas; os direitos escritos são mapas cartográficos; os direitos
Os mapas são distorções reguladas da realidade, distorções organizadas de consuetudinários (customary) e informais são mapas mentais. Esta é uma metáfora
territórios que criam ilusões credíveis de correspondência. Imaginando a irrealidade forte, €, como tal, será tomada literalmente. Dai que o subtítulo deste capítulo
de ilusões reais, convertemos correspondências ilusúrids em orientação pragmáti- pudesse muito bem ser: "como tomar as metáforas em sentido literal".
ca, confirmando a máxima de William James segundo a qual "o importante é ser-
Esta abordagem, que pode designar-se por cartografia simbólica do direito,
se guiado" Uames, 1%9). O direito, tal como os mapas, é uma distorção regulada
tem, em meu entender, um duplo mérito. Por um lado, permite resolver alguns
de territórios socJais. Características que, aliás, partilha com os poemas. De acordo
problemas da sociologia do direito até agora sem resolução'. Permite, por exem-
com a teoria da criação poética de Harold Bloom (1973), os poetas (os poemas),
plo, desenvolver uma conceptualização sociológica do direito autónoma da que
a fim de serem originais, têm de distorcer a tradição poética que lhes chegou atra-
vés de gerações e gerações de poetas (e de poemas) que os antecederam. Os tem sido elaborada pelos juristas e pela ciência jurídica e com isso torna possível
poetas sofrem da ansiedade da influência e a poesia é sempre o resultado da ten-
tativa do poeta para a denegar. Os poetas superam a ansiedade da influência
distorcendo a realidade poética. 2. Sobre a exaustão do paradigma tradicional do<; estudos sócio·jurídicos, rir. Santos (1987a: 279
(' ss.), onde tdl fenóm,eno é designado, d partir de Nietzsche, por processo de cameliza<,;ão da sociologia
O mapa, o poema e o direito, embora por diferentes razões, distorcem as do direito (cfr. tambem San1os, 1986). Este processo decorre de uma concepção do direito e da socie·
reafídades sociais, as tradições ou os territórios, e todos os fazem segundo certas d.lde que ambos sdO cOfJsid.eradus como entidades distinta, e ,wtónomas, cabendu à sociolagia
determmar o tipO ou o grau de Justaposição ou correspondência entre elas. Sem e.quecer os méritos
regras. Os mapas distorcem a realidade para instituir a orientação: os poemas objectos investigação que derivam desta concepção, reconhece-se hoje que etes se limitam a
grande, IIpos de reflexões - o impacto do direito na sociedade e o impacto da sociedade no
dirl'itn -, deixando na ,ombra muitas outras queslües, mais interessantes e mai, importantes. Clr" no
I. Vo:!r McH,lfie e( dI., 190/1; Monwunier, 1991d, 1991b; ver larmwm .'Ilrl"r, 1990. I)wsmo 5I:'orido, Nt>lken (1981:0),
200 UIM CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DAS REPRESENTAÇÓES SOCIAIS: O CASO DO OIREIW ACRíTICA DA RAZÃo INDOLENTE, CONTRA O DmRDíClO DA "I<RlIN' I ç
superar um dos mais persistentes obstáculos epistemológicos à constituição d_e um sentação seja arbitrária, desde que os mecanismos de distorção da realidade sejam
objecto teórico próprio da sociologia do direito'. Por outro lado, a concepçao do conhecidos e possam ser controlados. E, de facto, assim é. Os mapas distorcem él
direito em sociedade para que aponta questiona radicalmente alguns dos postulados realidade através de três mecanismos principais: a escala, a projecção e a simbolização.
filosóficos e políticos da teoria liberal do Estado e do direito modernos e, por essa São mecanismos autónomos que envolvem procedimentos e exigem deci-
via, contribui para a construção de um pensamento jurídico próprio da transição sões específicas. Mas também são interdependentes, pois, como diz o cartógrafo
paradigmática, ou seja, para a construção de uma concepção pás-moderna do direito. Mark Monmonier, "a escala influencia a quantidade de detalhe que pode ser mos-
trado e determina se um dado símbolo é ou não visualmente eficaz" (1981: 1).
Os mapas devem ser fáceis de usar, Daqui reSulta uma permanente tensiío
COMPREENDER OS MAPAS entre representação e orientação. Trata-se de duas exigências contraditórias, e os
mapas são sempre compromissos instáveis entre elas. Como vimos no mapa de
A cartografia simbólica do direito pressupõe o conhecimento prévio dos prin- Borges, representação a mais pode impedir a orientação. Inversamente, uma re-
cípios e procedimentos que presidem à produção e ao uso dos mapas, para o que presentação muito rudimentar da realidade pode proporcionar uma orientaçãO
recorro à ciência (e à arte) que os estuda de modo sistemático, a cartografia. Dis- rigorosa. Quando somos convidados para uma festa numa casa cuja localizaçãO
correrei, pois, durante algum tempo sobre mapas. Além de reunir os instrumentos desconhecemos, o nosso anfitrião desenha-nos provavelmente um esboço que nos
analíticos requeridos pela argumentação que me proponho, espero despertar o orienta eficazmente, apesar de não representar ou representar muito pobremente
interesse pelo mundo fascinante dos mapas. Como diz Josef Konvitz, "é uma ironia as características do caminho e do espaço envolvente que temos de percorrer até
suprema que os mapas, apesar de serem uma das metáforas mais ao nosso destino. Ilustração semelhante pode ser retirada dos portulanos, os ma-
muns, estejam ainda longe de ocupar o lugar que merecem na hLstotla das mentalL- pas medievais das costas e dos portos que, apesar de representarem muito imper-
dades" (1980: 314)4. Fernando Pessoa (Álvaro de Campos) expressa assim o seu feitamente o globo terrestre, orientavam com segurança os navegadores". Há ma-
fascínio pelos mapas: pas que resolvem a tensão entre representação e orientação privilegiando a repre-
E o esplendor dos mapas! caminho ab.,tracto para [a imaginação concreta, sentação. Designo-os, seguindo a cartografia, por mapas-imagem. Outros mapas
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha resolvem a mesma tensão privilegiando a orientação. São os mapas instrumentais
(pessoa, 1969: 386).
(Wahl, 1980: 42).
A principal característica estrutural dos mapas reside em que, para desempe- Escala
nharem adequadamente as suas funções, têm inevitavelmente de distorcer a rea-
lidade. Jorge Luís Borges conta-nos a história do imperador que encomendou um A escala é o primeiro grande mecanismo de representação/distorção da rea-
mapa exacto do seu império. Insistiu que o mapa devia ser fiel até ao lidade. A escala é "a relação entre a distância no mapa e a correspondente distân-
detalhe. Os melhores cartógrafos da época empenharam-se a fundo neste Impor- cia no terreno" (Monmonier, 1981: 41) e, como tal, implica uma decisão sobre o
tante projecto. Ao fim de muitos trabalhos, conseguiram terminá-lo. Produziram grau de pormenorização da representação. Os mapas de grande escala têm um
um mapa de exactidão insuperável, pois que concidia ponto por ponto com o grau mais elevado de pormenorização que os mapas de pequena escala porque
império. Contudo, verificaram, com grande frustração, que o mapa não era muito
cobrem uma área inferior à que é coberta, no mesmo espaço de desenho, pelos
prático, pois que era do tamanho do império (1974: 847).
Para ser prático, o mapa não pode coincidir ponto por ponto com a realida-
deS. No entanto, a distorção da realidade que isso implica não significa que a repre- 6. Cfr. A. G. Hodgkiss (1981: 103). No século XVI, Merr.ator, o notável geógrafo flamengo que
desenvolveu um tipo d(> projE'cção a que po,teriormente foi dado o seu nome, esueveu a seguinte
advertência no seu famoso mapa de 1669: "Se n<lVCg.Jr de um porto para outro, aqui tendes
o mapa e uma linha recta desenhada nele; se seguirdes cuidado,amente esta linha,. chegareis com
3. Cfr. também Richard Abel (1980). segurança ao porto de destino. Mas o çomprimento da linha pode não estar correcto. Podereis chegar
4. Semelhantemente, A. Robinson e B. Petchnik çon,ideram que os mapas são a analogia básiça lá mais cedo ou mais tarde do que esperáveis, mas chegareis lá com certeza (citado em W. W. Jervis
N
da nossa cultura 11976: 2). (1936: 27), Sobre a história cartográfir.a, consultar, entre outros, Blakemore e Harley, 1980. Em Portu-
5, Sobre as funções e limites dos mapas ver, por exemplo, Monmuni('r, 19"1, 1991; Campbell, gal, deve salientar-se o trabalho notável de Luis de Albuquerque (1994). Ver também a vasta obra de A.
1'I'H; Mil<.E.n:hren, 1995. Pinheiro Marques (1987; 1991; 1997).
ACRíTICA OA RAZÃO INOOlfNTf' CONTRA O OEsPERoím OA IA 101
202 UMA CARTOGRAfiA SIMBÓLICA DAS SOCIAIS: O 000 DO DIREITO
9. Cfr., entre outros, M. Monmonier (1981: 15), J. S. Keates (1982: 72); P. Muehrcke (1986: 456);
1). Muracciole (1980: 235); A. G. Hodgkiss (1981: 32).
7. Em linguagem comum, a grande escala e a pequena escala sáo usadas num sentido inv(orsD do
que têm na cartografia, A grande escala sugere a cobertura de um te;ritório ou de um acontecI- 10. Este tema fui desenvolVido no Capítulo 1.
mento amplo, enquanto a pequena escala sugere o oposto. Neste capItulo usareI estes conceitos no seu 11. Sobre o uso de mapas para fins de propaganda cfr, M. Monmonier (1981: 43): A. G.
11 '181: 15): P. Muehrcke (1986: 395): J.-L. Rivii"r(' (1 qOO: 3.51); H, Speier (1941: 310): L. Quam (1 '14,1:
,entido teóricu, cartográfico.
O. Cfr., por exemplo, Y. Larm,te (l'l7f,; 1900: 17), No mesmo sl'ntido,!, B. Racine et ai. (1982). s. W. B\)ggs (lq47; 4fm: M. Sholrkl'Y (l'lfl4: 1411); Burnett, 1985; to Reitan, 148b.
204 UMA CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: O CASO DO DIREITO ACRITICA DA MO INDOlENTE: CONTRA O DESPERDIClO DA 205
A segunda obseNação sobre a projecção é que todos os mapas têm um cen- A linguagem cartográfica é um tema fascinante e a semiótica tem vindo a
tro. Cada período histórico ou tradição cultural selecciona um ponto fixo que fun- fornecer novos instrumentos analíticos para o seu estudo. Os sistemas de sinais
ciona como centro dos mapas em uso, um espaço físico ou simbólico a que é têm evoluído ao longo dos tempos e ainda hoje os sistemas variam segundo o
atribuída uma posição privilegiada e à volta do qual se dispersam organizadamente contexto do produtor do mapa ou segundo o uso específico a que este último se
os restantes espaços. Por exemplo, os mapas medievais costumavam pôr um lugar destina. Baseado na semiótica, J. S. Keates distingue entre sinais icónicos e sinais
sagrado no centro, Jerusalém nos map'as europeus, Meca nos mapas árabes12 • A convencionais (1982: 66). Os sinais icónicos são sinais naturalísticos que estabele-
mesma relação centro-periferia pode ser obseNada nos mapas actuais, quer nos cem uma relação de semelhança com a realidade representada. Por exemplo, um
mapas cartográficos quer nos mapas mentais. A respeito destes últimos, que são, conjunto de áNores para designar a floresta. Os sinais convencionais são mais ar-
afinal, as imagens cognitivas visuais do mundo que nos rodeia, diz Muehrcke, com bitrários. Por exemplo, convencionou-se usar linhas para designar estradas e fron-
base em múltiplos estudos sobre a percepção cognitiva do espaço, que a maioria teiras e círculos de diferentes tamanhos para designar vilas e cidades (Monmonier,
dos nossos mapas mentais salienta e privilegia a nossa vizinhança, o sítio que nos 1981: 6). Se relancearmos o olhar pela história dos mapas, verificamos que os
é mais familiar, atribuindo menos significado a tudo o que nos rodeia. sistemas de sinais começaram por ser predominantemente convencionais (Caron,
1980: 9). Mas ainda hoje e segundo múltiplas circunstâncias, os mapas podem ser
Simbolização mais figurativos ou mais abstractos, assentar em sinais emotivos ou expressivos ou,
, pelo contrário, em sinais referenciais ou cognitivos. Em suma, os mapas podem ser
A simbolização é o terceiro grande mecanismo da representação/distorção
cartográfica da realidade. Diz respeito aos símbolos gráficos usados para assinalar , feitos para serem vistos ou serem lidos.
os elementos e as características da realidade espacial seleccionados. Sem sinais, o
mapa é tão inútil quanto o mapa de Borges. É este o caso do mapa de Bellman na UMA CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DO DIREITO
história de Lewis Carrol, o mapa que pretendia representar o mar sem vestígios de
terra e que, como tal, era uma folha de papel absolutamente em branco13. A digressão que acabo de fazer pela cartografia permitiu reunir alguns dos
conceitos e demais instrumentos analíticos em que se funda a cartografia simbólica
12. A. G. Hodgkiss (1981: 29). Uma visão ligeiramente diferente, mostrando como o centro dos do direito que apresentarei a seguir. Parto da verificação - feita no Capítulo 2 e
mapas foi evoluindo ao longo da Idade Média, em D. Woodward (1985: 510). Segundo A. Henrikson, a a desenvolver no Capítulo 5 deste volume e nos 2º e 3º volumes - de que, ao
deslocação progressiva dos E.U.A. da periferia para o centro da cena mundial - uma deslocação comple-
tada na Segunda Grande Guerra - produziu mudanças no tipo de projecçães cartográficas adoptadas ou
contrário do que pretende a filosofia política liberal e a ciência do direito que
privilegiadas: "A relação dos E.U.A. com os teatros de guerra mais importantes exigia uma nova imagem sobre ela se constituiu, circulam na sociedade, não uma, mas várias formas de
do mundo, um novo mapa estratégico global. As projecções cilíndricas, como, por exemplo, a de Mercator, direito ou modos de juridicidade. O direito oficial, estatal, que está nos códigos e
centrada no Equador, não mostravam a continuidade, a unidade e a organização da 'worldwide arena',
é legislado pelo governo ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bem
como Roosevelt lhe chamou. Daí que começassem a ser preferidas outras projecções, centradas no Pólo
Norte. Nestas, os E.U.A. assumiam uma posição central" (1980: 83). Cfr. também A. Henrikson (1975: 19) que tendencialmente a mais importante. Essas diferentes formas quanto
13 .... One could see he was wise, campos da acção social ou aos grupos sociais que regulam, quanto a sua durabili-
the moment one looked in his face!
dade, que pode ir da longa duração da tradição imemorial até à efemeridade de
He had bought a large map representing the sea, um processo revolucionário, quanto ao modo como previnem os conflitos indivi-
without the least vestige of land:
And the crew were much pleased when they found it to be.
duais ou sociais e os resolvem sempre que ocorram, quanto aos mecanismos de
A map they could ali understand. reprodução da legalidade, e distribuição ou sonegação do conhecimento jurídico.
"What's the good of Mercator's North Poles and Equators,
Parto, assim, da ideia da pluralidade das ordens jurídicas ou, de forma mais sinté-
Tropics, Zones and Meridian Unes?" tica e corrente, do pluralismo jurídic014 •
50 the Bellman would cry: and the crew would reply.
"They are merely conventional signs!"
"Other maps are such shapes, with their islands and capes!
14. Sobre o pluralismo jurídico, cir., entre muitos outros, F. Snyder (1981); P. Fitzpatrick (1983); B.
But we've got our brave Captain to thank"
Santos (1985b); J. Griffiths (1987); J.G. Belley (1988); S. Merry (1988; 1997); A. C. Wolkmer (1994); D.
(50 the crew would protest) "that he's brought us the best -
Nina and P.J. Schwikkard (1996); G. Teubner (1997); F. Benda-Beckmann (1997); R. A. MacDonald
A perfect and absolute blank!"
(1998); S. Roberts (1998); N. Rouland (1998). O tema da pluralidade sociológica de direitos em circu-
(L. Carrol, 1976: 757) lação nas sociedades é tratado em detalhe nos 2º e 3º volumes.
206 UMA CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DAS REPRESENTAÇÕES 5OClAIS' O CA50 DO DIREITO ACRíTICA DA RAZilo INDOLENTE: CONTRA O DESPERDíCIO DA fXf'EMIINflA •
Procurarei mostrar que as várias formas de direito têm em comum o facto de associações internacionais dominadas por umas ou por outros (Kahn, 1982; Wallílftt,
serem mapas sociais e de, tal como os mapas cartográficos, recorrerem aos meca- 1982). O capital transnacional criou, assim, um espaço jurídico transnacional, um"
nismos da escala, da projecção e da simbolização para representar e distorcer a legalidade supra-estatal, um direito mundial. Este direito é, em geral, muito infor-
realidade. Mostrarei, também, que as diferenças entre elas se podem reconduzir a maI. Baseado nas práticas dominantes, ou seja, nas práticas dos agentes dominan.
diferenças nos tipos de escala, de projecção e de simbolização utilizados por cada tes, não é um direito costumeiro no sentido tradicional do termo. Só poderá ser
uma. Para ilustrar a minha argumentação, recorro a vários estudos de sociologia do considerado costumeiro se admitirmos a possibilidade de práticas novas ou recen-
d·lreito e, particularmente, às investigações empíricas que neste domínio realizei tes darem origem ao que poderíamos designar quase paradoxalmente por costu-
no Brasil, em Portugal e em Cabo Verde". A investigação no Brasil foi realizada, mes instantâneos como, por exemplo, quando uma empresa multi nacional inventa
em 1970, no Rio de Janeiro e, em 1980, no Recife e trata das lutas sociais, jurídi- um novo tipo de contrato e tem poder suficiente para o impor a outros agentes
cas e políticas dos moradores das favelas contra o Estado e os proprietários priva- económicos. Tão-pouco faz sentido considerar este novo direito mundial como
dos do solo urbano no sentido de garantirem o direito à habitação nos terrenos não oficial, uma vez que ele cria diferentes formas de imunidade, quer face ao
por eles ocupados ilegalmente (Santos, 1977; 1982b; 1983). A investigação reali- direito nacional estatal, quer face ao direito internacional público e, neste sentido,
zada em Portugal, em 1977 e 1978, estuda as contradições entre a chamada "le- constitui a sua própria oficialidade (Farjat, 1982: 47)17.
galidade democrática" e a chamada "legalidade revolucionária" durante a crise
revolucionária de 1974-75 (Santos, 1979; 1982a; 1985a). Por último, a investiga- Estes desenvolvimentos sócio-jurídicos revelam, pois, a existência de três es-
ç-ão em Cabo Verde, realizada em 1984-85, tem por objecto as estruturas e os paços jurídicos diferentes a que correspondem três formas de direito: o direito
modos de funcionamento dos tribunais de zona ou tribunais populares criados ou local, o direito nacional e o direito global. É pouco satisfatório distinguir estas for-
institucionalizados depois da independência (Santos, 1984). Trata-se de tribunais mas de direito com base no objecto de regulação pois, par vezes, regulam ou
não profissionalizados compostos por cidadãos comuns, organizados nos diferen- parecem regular o mesmo tipo de acção social. Em meu entender, o que distingue
tes locais de residência e com competência para julgar pequenos delitos e conflitos estas formas de direito é o tamanho da escala com que regulam a acção sodal. O
de pequena monta. direito local é uma legalidade de grande escalai o direito nacional esta.tal é uma
legalidade de média escala; o direito mundial é uma legalidade de pequena escala.
Esta concepção tem muitas implicações. Em primeiro lugar, e uma vez que a
o direito e a escala
escala cria o fenómeno, estas formas de direito criam diferentes objectos jurídicos
Uma das virtualidades mais interessantes da cartografia simbólica do direito a partir dos mesmos objectos sociais empíricos. Usam diferentes critérios para de-
consiste na análise do efeito da escala na estrutura e no uso do direito. O Estado terminar os pormenores e as características relevantes da actividade social a ser
moderno assenta no pressuposto de que o direito opera segundo uma única esca- regulada. Estabelecem diferentes redes de factos. Em suma, criam realidades jurí-
la, a escala do Estado. Durante muito tempo, a sociologia do direito aceitou criti- dicas diferentes. Tomemos, como exemplo, o conflito de trabalho numa fábrica
camente este pressuposto. Nas três últimas décadas, a investigação sobre o pluralismo operando em regime de subcontratação para uma empresa multi nacional de pron-
jurídico chamou a nossa atenção para a existência de direitos locais nas zonas to-a-vestir. O código da fábrica, ou seja, o conjunto dos regulamentos internos que
rurais, nos bairros urbanos marginais, nas igrejas, nas empresas, no desporto, nas constituem o direito local da fábrica, regula com grande detalhe as relações na
organizações profissionais. Trata-se de formas de direito infra-estatal, informal, não produção (as relações entre operários, entre operários e supervisores, entre estes e
oficial e mais ou menos costumeiro l ". os directores, etc.) a fim de garantir a disciplina no espaço da produção, impedir
Mais recentemente, a investigação sobre as trocas económicas internacionais a ocorrência de conflitos e tentar diminuir o seu âmbito sempre que ocorram 1H • O
permitiu detectar a emergência de uma nova lex mercatoria, um espaço jurídico conflito de trabalho é o objecto nuclear do código da fábrica porque confirma, a
internacional em que operam diferentes tipos de agentes económicos cujo com- contrario, a continuidade das relações na produção que é a sua razão de ser.
portamento é regulado por novas regras internacionais e relações contratuais No contexto mais amplo do direito laboral estatal, o conflito de trabalho é
estabelecidas pelas empresas multi nacionais, pelos bancos internacionais ou por tão-só uma das dimensões, se bem que importante, das relações de trabalho.
É parte de uma rede mais ampla de factos econômicos, políticos e sociais em que sócio-jurídica, não se pode falar de direito e de legalidade mas antes de interdireito
facilmente identificamos, entre outros, a estabilidade política, a taxa de inflação, a e interlegalidade. A este nível, é menos importante analisar os diferentes espaços
política de rendimentos, as relações de poder entre organizações sindicais e patro- jurídicos do que identificar as complexas e dinâmicas relações entre eles. Mas, se,
nais. No contexto ainda mais amplo do direito global da subcontratação internaci- ao procedermos a tal identificação, descuidarmos a questão da escala, cairemos
onal 19 , o conflito de trabalho transforma-se num pormenor minúsculo das relações numa situação tão frustrante quanto a do turista que se esqueceu em casa do
econômicas internacionais que não merece sequer ser assinalado. transformador que lhe permitiria usar a máquina de barbear no país estrangeiro.
As diferentes ordens jurídicas operam, assim, em escalas diferentes e, com Ao realizar a investigação sobre a justiça popular em Cabo Verde, deparei
isso, traduzem objectos empíricos eventualmente iguais em objectos jurídicos dis- com um facto de algum modo intrigante. A filosofia subjacente à organização da
tintos. Acontece, porém, que na prática social as diferentes escalas jurídicas não justiça popular era a de envolver ao máximo as comunidades locais no exercício
existem isoladas e, pelo contrário, interagem de diferentes maneiras. Retomemos o da justiça, incorporando nesta, sempre que possível, o direito local (costumes, prá-
exemplo do conflito de trabalho. Numa tal situação, os objectivos de regulação ticas respeitáveis e respeitadas). Esta incorporação era facilitada pelo facto de os
dos três direitos acima referidos convergem na mesma acção social, o conflito juízes dos tribunais de zona serem leigos, membros das comunidades locais, e
concreto. Isto pode criar a ilusão de que os três objectos jurídicos se sobrepõem e também pelo facto de o direito escrito que regulava a actividade dos tribunais ser
coincidem. De facto, assim não é; tão-pouco coincidem as imagens jurídicas de propositadamente vago e lacunoso. Detectei, no entanto, que, nalguns casos pelo
base, os universos simbólicos dos diferentes agentes econômicos mobilizados no menos, o processo de selecção dos juízes pelo Estado e pelo partido não facilitava
conflito. a incorporação do direito local. Assim sucedia, por exemplo, quando eram
Os operários e, por vezes, o patrão tendem a ter uma visão de grande escala seleccionadas pessoas jovens. Tal selecção, baseada na identificação activa com os
do conflito, uma visão dramatizada, plena de detalhes e de discursos particularísticos, objectivos gerais da acção política do Estado e do partido, provocava, por vezes,
em suma, uma visão e uma concepção moldadas pelo direito local da produção. alguma tensão no seio das comunidades locais, para as quais o exercício da justiça
Os dirigentes sindicais e, por vezes, o patrão tendem a ver o conflito como uma devia ser deixado aos mais velhos, com maior sabedoria e prudência.
crise, mais ou menos momentânea, no processo contínuo das relações de traba- Uma reflexão mais aprofundada sobre esta discrepância permitiu-me con-
lho. É uma visão predominantemente moldada pelo direito estatal e as acções que cluir que estava perante uma situação de interlegalidade, ou seja, de uma relação
dela decorrem procuram um compromisso entre o conflito concebido em grande complexa entre dois direitos, o direito estatal e o direito local, usando escalas di-
escala no direito da produção e a sua concepção em média escala no direito es- ferentes. Para as comunidades locais, sobretudo rurais, os costumes locais eram
tatal. Finalmente, para a empresa multi nacional o conflito de trabalho é um por- um direito Jocal, uma legalidade de grande escala, adaptada às exigências de pre-
menor ou acidente mínimo que, se não for prontamente resolvido, pode ser facil- venção e resolução de conflitos locais. Para o Estado, o direito local era parte in-
mente ultrapassado, transferindo a encomenda para a Malásia ou Taiwan. tegranle de uma rede mais ampla de factos sociais e políticos, entre os quais as
Explicar estas discrepãncias e descoincidências exclusivamente em função das exigências da consolidação do Estado e da criação da sociedade soCialista, a uni-
diferenças entre os interesses em conflito ou dos graus de consciência de classe dade do sistema jurídico, a socialização política, etc., etc. A esta escala mais pe-
torna-se pouco convincente, sabido que o direito tende a construir a realidade quena, o direito local era parte integrante do direito estatal e, portanto, um instru-
que se adequa à sua aplicação. Tal construção obedece a certas regras técnicas, mento específico de acção social e política20 (Santos, 1984: 33).
uma das quais, como defendo aqui, é a regra da escala. Em boa verdade, sô po- A primeira implicação da identificação de diferentes escalas de juridicidade
demos comparar interesses sociais e graus de consciência de grupo dentro do mesmo é, como acabamos de ver, o chamar da nossa atenção para o fenômeno da
espaço sócio-jurídico e, portanto, no interior da mesma forma de direito. A dificul- interlegalidade e para o seu complexo funcionamento. A segunda grande implica-
dade de uma tal empresa reside em que, como já deixei dito acima, a vida sôcio- ção tem a ver com os padrões de regulação associados com cada escala de
jurídica é constituída, na prática, por diferentes espaços jurídicos que operam si- dade. Mencionei já a tensão dialéctica entre representação e orientação. Em ver-
multaneamente e em escalas diferentes. A interacção e a intersecção entre os di- dade, estamos perante dois modos antagónicos de imaginar e constituir a realidd-
ferentes espaços jurídicos é tão intensa que, ao nível da fenomenologia da vida de, um adequado a identificar a posição e o outro adequado a identificar o
mento. A legalidade de grande escala é rica em detalhes, descreve pormenorlzlId,l
19. Uma análise aprofundada da natureza jurídica e económica da subc(lntratação em M. M.
Mdrqul's (1986; 1987). 20. Este estud(l está inclufdo no ]11 Volumt'.
210 UMA. CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DAS RFPRfSfNTAÇÓES SOCIAIS: O ÜlSO DO DIREITO
ACRÍTICA DA RAZÃo INDOLENTE, CONTRA O DESPERDíCIO DA EXPERIÊNCIA 211
Durante a crise revolucionária por que passou a sociedade portuguesa em ser neutralizada ou compensada Io
1974-1975, José Diogo, assalariado rural, foi acusado do homicídio do seu antigo outras escalas de direito (o diretel de r_egulamentação ao nível
ca
patrão, um grande latifundiário alentejano, Em sua defesa, o réu invocou a provo- transacções internacionais), Obvi o °t pro,duçao, ou o direito global das
cação da vítima e um longo rol de acções prepotentes e violentas contra os traba- regulação social dominada pelo e, a qualidade" política e social de uma
. . Id ' Irei o estatal é d'f d d
lhadores cometidas pelo latifundiário durante o longo período da ditadura salazarista, sOCla ommada pelo direito não estatal 27 , I erente a e uma regulação
Depois de muitas peripécias, devidas à atenção pública que o caso obteve e às
manifestações de solidariedade para com o réu, este acabou por ser julgado e
condenado, De uma das vezes em que o julgamento foi adiado, quando o proces-
o direito e iJ projecção
so fora transferido para o tribunal de Tomar, um tribunal popular constituído por
, As formas de direito distinguem-se també '
operários da cintura de Lisboa e por assalariados rurais reuniu-se no exterior do realIdade social que adoptam A ' _ ,m segundo o tipO de projecção da
tribunal da comarca e condenou postumamente o latifundiário ao mesmo tempo ordem jurídica define as suas' f e o ,procedimento através do qual a
que absolveu o réu, apesar de reconhecer que a sua acção, sendo um acto de d I I ron eiras e organiza o ' 'do
e as, Ta como a escala e pel espaço Jun ICO no interior
violência individual, não podia ser considerada revolucionária, A discrepância en- , as mesmas razoes '- ,
mento neutro, Tipos diferentes d '_ ,' a nao e um procedi-
tre o tribunal estatal e o tribunal popular reside, entre outras coisas, nos diferentes cada objecto jurídico favorece ume proJec;ao cnam obJectos jurídicos diferentes e
patamares de regulação das formas do direito adoptadas por cada um dos tribu- " a certa lormulação d '
çao propna dos conflitos e do d d e Interesses e uma concep-
nais, Para o direito estatal, então chamado "legalidade democrática", as duas acções, smo os eosresolve C d d '
num facto fundador um supe,-'a ., r, a a or em Jurídica assenta
' ' I, C o ou uma super t 'ií
a acção do réu e as acções anteriores da vítima, tinham conteúdos éticos muito d_e proJecção adoptado ,As 'ela " -me a ora que determina o tipo
distintos, Para o direito aplicado pelo tribunal popular, a "legalidade revolucioná- ç o e s economlcas p' d ' ,
o super-facto em que assenta d' , b nva as constltUldas no mercado
ria", como então se chamava, e em face do patamar de avaliação e de discrimina- o Irelto urguês d d
que a terra e a habitação cone b.d mo erno, o mesmo modo
ção mais baixo por esta adaptado, os dois tipos de acção eram eticamente seme- f' e I as como relaçõ I' . , ,
acto subjacente ao direito não f ' I d e s po ItJcas e sociais são o super-
lhantes, Se a acção do réu não podia ser considerada revolucionária, poderia pelo , o ICla as favelas do Rio de Janeiro
menos ser desculpada enquanto reacção compreensível contra as acções anterio- , o tipO de projecção ado tado cad ' " '
( uma penferia, Isto significa em ,P, " a ordem Jundlca tem um centro
res da vítima (Santos, 1982.1: 272), , pnmelro ugac q ,
passa com o capital financeiro . I' " ' ue, a semelhança do que se
Os três patamares variam segundo a escala do direito, mas a mesma escala _, ' o caplta Jundlco de d d
nao se distribui igualmente pelo ' " uma a a forma de direito
jurídica comporta diferenças internas no patamar da regulação, Por exemplo, pode n'giões centrais, pois é aí que desta, Tende a concentrar-se nas
ter um elevado patamar de detecção mas um baixo patamar de avaliação ou, ao e maiS rentável e tem ' b'l'
rt'gloes, o espaço é cartografado 'd maIs esta I Idade, Nessas
contrário, as discrepâncias podem ocorrer entre diferentes áreas ou ramos da mesma , . , , com mais etalh b
JIlstltuclonals, tais como tribunais f'" e e él sorve mais recursos
escala de direito (por exemplo, o direito estatal do trabalho pode ter um patamar . e pro ISSlonalS de di 't '
ILOS, Como sejam os tratad _ rei o, e mais recursos simbó-
de regulação mais elevado que o direito criminal ou o direito social), Acresce que ", 'd'Icas dominantes18, Inversamente
Jun
os e os pareceres dos J' 't
n ,_,
'
as e a Ideologia e cultura
o patamar de regulação, longe de ser uma entidade fixa, pode mover-se dentro de rfdico é cartografado com tra " a s regloes Jundlcas periféricas, o espaço J'u-
certos limites, O movimento, no entanto, é sempre o produto dos movimentos ' ,", ço mUito grosso absorve p , ,
I Justiça macesslvel assistência J·ud', '" d b' , oucos recursos JIlstltucionais
combinados (e frequentemente desiguais) dos três patamares que constituem o ' clana e .lIxa qualid d d
r.l( fos, etc) e igualmente pouc , a e, a vogados mal prepa-
patamar de regulação, No contexto político e social actual em que se apela estri- , , d os recursos SImbólico I " ,
prestlgla as, teorização J'uríd' , , s pratIcas Jurídicas menos
dentemente à desregulamentação da economia e da vida social, o patamar de Ica menos sofIstIcada etc)
regulação do direito estatal sobe em resultado da subida dos patamares de detecção , ,Prosseguindo com o exemplo acima dado' ",
e de discriminação, Contudo, como, na prática, a vida sócio-jurídica envolve sem- (onstrtuem o centro do direito d ' d d ' pode dizer-se que os contratos
.t ' as socle a es moderna 'I'
pre interlegalidade, a desregulamentação ao nível da escala do direito estatal pode ,IS eonas, os princípios gerais e as regra d . s caplta IstaS, Os conceitos
s e Interpretação desenvolvidos em
rizar-se por um patamar de regulação mais baixo que a segunda, quer enquanto patamar de detecção
(a caracterização de sintomas que podem constituir uma questão de saúde). quer enquanto patamar de
discriminação (a distinção e a localização dos sintomas), quer ainda enquanlo patamar de avaliação (a
dil>lTiminação entre o que é saúde e o que é d{)('nça),
214 UMA CARTQCRAflA SIMBÓLICA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: O ülSO DO DIREITO
A(RíTlüI lJA RAZÁ() INDOLENTE: CONTRA O DESPERDíCIO DA EXPERltNClA
estas novas formas de direito global criam um espaço jurídico transnacional que normativa e a descrição factual da realidade, uma distinção teorizada até à exaustiío
frequentemente colide com o espaço jurídico nacionapl. pela ciência jurídica. Com base em múltiplas investigações antropológicas, Clifford
Os conflitos têm origens diversas. Eis algumas delas a título de exemplo: a Geertz chama a nOSSa atenção para as diferenças nos modos como as várias cultu-
determinação da responsabilidade dos novos contratos não respeita as leis nacio- ras jurídicas a entre direito e facto (1983: 232). Por privilegiar,
nais; os contratos incluem cláusulas gerais sobre o direito aplicável, tais como os enq.ua.nto obje;t0s. de regulaçao, as características gerais e objectivas da realidade,
princípios gerais do direito ou os usos comerciais, com o único propósito de fugir o direito geocentnco tende a radicalizar a distinção entre direito e facto e a ser
à aplicação do direito nacional; recorre-se ao sistema de arbitragem com o mesmo mais exímio na fixação das normas do que na fixação dos factos. Dominado pelo
propósito; os parceiros comerciais subscrevem acordos de cavalheiros que violam medo dos factos, o direito geocêntrico reage, esterilizando-os, reduzindo-os a es-
abertamente as leis nacionais, sobretudo as que regulam a concorrência; a legisla- que.'etos. Os quando nomeados pelas normas, são já meros diagramas da
ção nacional promulgada para policiar os contratos de transferência de tecnologia como diria Geertz (1983: 173). O direito geocêntrico produz uma jus-
tem uma eficácia quase nula; e, finalmente, as empresas multi nacionais mais po- tiça legalista para usar um termo de um outro antropólogo, Pospisil (1971: 23). Ao
derosas chegam mesmo a impor as suas leis aos Estados nacionais. A violação do contrário, o direito egocêntrico tende a apagar a distinção entre direito e facto e a
direito nacional assume tais proporções que o código deontológico para as empre- ser mais exímio na fixação dos factos do que na fixação das normas. Permite a
sas multi nacionais proposto pelas Nações Unidas inclui esta norma surpreendente: explosão dos factos, como no caso, acima referido, da constituição de costumes
"a empresa multi nacional respeitará as leis nacionais do país onde opera" (Destanne : por essa razão pode dizer-se que produz uma justiça de factos,
de Bernis, in Farjat, 1982: 65P2. para utilizar ainda a expressão de PospisiL
Todos estes conflitos, latentes ou manifestos, são sintomas de uma tensão
crescente entre o direito geocêntrico dos Estados-nação e o novo direito egocêntrico o direito e a simbolização
dos agentes económicos transnacionais. Em minha opinião, estamos a assistir à
emergência de novos particularismos estruturalmente semelhantes aos estatutos A ê a face visível da representação da realidade. É o procedi-
pessoais e corporativos da sociedade antiga e medieval descritos por Weber. Tal mento. tecnlCO mais complexo, pois que a sua execução é condicionada, tanto
como os antigos grupos de status, as empresas multi nacionais e as associações pelo tipO de escala, como pelo tipo de projecção adoptados. A semiótica, bem
económicas internacionais têm um direito próprio que regula os seus negócios onde como a retórica e a antropologia cultural, têm dado contributos importantes para
quer que eles tenham lugar e quaisquer que sejam as leis nacionais que aí vigo- o, da simboJização jurídica da realidade. Do meu ponto de vista, é neces-
rem. As novas formas de particularismo, corporativismo e personalismo caracteri- Juntar contributos o cOntributo da crítica literária e é precisamente a
zam-se ainda pelo facto de este direito mundial ser talhado segundo os interesses partir desta .ultlma qu.e distingo dois tipos-ideais de simbolização jurídica da reali-
das empresas ou bancos mais poderosos. Logo no início da década de sessenta, dade: o estilo homériCO e o estilo bíblico. Estas designações metafóricas referem-
Bertold Goldman pôde verificar que muitos dos "contratos-tipo" são criados por se, com? a. tipos-ideais, isto é, a construções teóricas extremas de que as
uma única empresa multi nacional suficientemente poderosa para os poder impor ordens jundlcas vigentes na realidade social se aproximam em maior ou menor
aos seus parceiros (1964: 180). Assim se explica como uma nova prática instituída grau. As designações são retiradas da obra clássica de Erich Auerbach sobre as
por uma empresa influente pode transformar-se num costume instantâneo. Esta formas de representação da realidade na literatura ocidental (1968: 23). Auerbach
nova forma de privilégio de status pode também ser detectada nos códigos de identifica duas formas básicas de representação literária da realidade e ilustra a
conduta das associações económicas ou profissionais internacionais (por exemplo, oposição entre eras com o contraste entre a Odisseia de Homero e a Bíblia. A
no código deontológico da Associação Internacional de Franchisingl. Como nota Odisseia descreve a natureza trágica e sublime da vida heróica, uma descrição
Farjat, há uma estreita coincidência entre os agentes económicos poderosos e as totalmente exteriorizada, uniformemente iluminada, com todos os acontecimentos
autoridades profissionais que redigem os códigos deontológicos (1982: 57). ocupand.o o e a todos sendo atribuído um significado inequívoco, sem
A análise do direito segundo os tipos de projecção permite-nos ainda ver a perspectiva nem lastro histórico. Ao contrário, a Bíblia representa o
relatividade da distinção entre o direito e os factos, ou seja, entre a avaliação eo no contexto da vida comum, quotidiana, e a descrição é sen-
slvel à compleXidade dos problemas humanos, salientando alguns aspectos e dei-
xando obscuridade: e caracteriza-se pelos não-ditos, pelos panos de fundo,
]1. Sobre estes conflitus, dr. Kahn (1982); Farjat (1982); Wallace (1982); Marques, 1987. pela ambtgUldade dos sentidos e pela centralidade das interpretações à luz do
:12. As múltiplas furmas de globalização do direito sãu o tema central do ]g Volumt'. devir histórico.
218 UMA CARTOGRAFIA SIMBÓLICA DAS REPRESENTA.ÇÓES SOCIAIS: O CASO 00 DIREITO A CRíTICA DA WÃü INDOLENTE: CONTRA O DESPERDíCIO DA EXPERI!N('IA 219
Em meu entender, este contraste na representação literária da realidade ve- direito e os factos sem grandes distinções entre um e outros, recorrendo a expres-
rifica-se também na representação jurídica da realidade. Daí a referência aos dois sões figurativas e informais e a sinais gestuais e verbais de tipo icónico, emotivo e
sistemas polares de sinais. Falo de um estilo jurídico homérico quando a simbolização expressivo. Outros juízes, geralmente mais jovens e com educação formal, procu-
jurídica da realidade apresenta as duas características por um lado, a ram imitar os juízes profissionais ou mesmo os quadros políticos, para o que adaptam
conversão do fluxo contínuo da acção social numa sucessao de momentos uma visão instrumental do direito, com distinções inequívocas entre direito e fac-
descontínuos mais ou menos ritualizados, como, por exemplo, a celebração e ter- to, descrevendo ambos em termos abstractos e formais mediante o recurso a sinais
minação de contratos, a instauração de acções judiciais e o seu julgamento, etc., gestuais e verbais de tipo convencional, cognitivo ou referencial.
etc.; e, por outro lado, a descrição formal e abstracta da ac,ção atra.vés de
Mas o mesmo juiz pode, em situações diferentes, adaptar estilos de
sinais convencionais, referenciais e cognitivos. Este eslilo de slmbohzaçao cna uma
simbolização jurídica diferente. Por exemplo, Nha Bia, uma mulher notável e juiz
forma de juridicidade que designo por juridicidade instrumental. Em contraste, o
presidente do tribunal popular de Lém Cachorro, nos arredores da cidade da Praia,
estilo jurídico bíblico cria uma juridicidade imagética e pela preocu-
adapta um estilo bíblico no julgamento dos casos que lhe são mais familiares e em
pação em integrar as descontinuidades da interacção sOCIal e nos contex-
que ela se sente com mais autonomia para "fazer justiça à sua maneira", como ela
tos complexos em que ocorrem e em em termos figurativos e concre-
costuma dizer. É o caso, por exemplo, dos conflitos de água, protagonizados em
tos através de sinais icónicos, emotivos e expressivos,
geral pelas mulheres. Trata-se de disputas que ocorrem normalmente nas bichas
Independentemente da precedência histórica de qualquer destes estilos de de água junto aos fontenários públicos, sobre a ordem na bicha ou sobre a ração
simbolização e do predomínio momentâneo que qualquer um deles obtenha so- diária de água, Dada a seca prolongada, este tipo de conflitos é muito frequente.
bre o outro, existe sempre, em cada período histórico, uma tensão dialéctica entre Ao contrário, Nha Bia tende a adaptar um estilo homérico no julgamento dos
ambos. Assim, embora o direito do Estado moderno tenha um estilo predominan- casos que lhe são menos familiares ou naqueles em que a sua competência ou
temente homérico, o estilo bíblico está presente, e com grande intensidade, nou- jurisdição possam ser contestadas, como, por exemplo, nos casos com tonalidades
tras formas de clireito que circulam na sociedade. Voltando ao exemplo do direito políticas ou que envolvem moradores influentes na comunidade ou no clparelho
pessoal dos novos sujeitos jurídicos transnacionais, é que o direito ,gl?bal do Estado ou do partido (Santos, 1984: 105).
emergente é formulado num estilo bíblico de representaçao. Alfuns espeClal,lstas
A investigação sobre as lutas sociais e jurídicas no Recife revela que tanto os
têm chamado a atenção para a retórica moralista e para o uso de 51mbolos emotivos,
moradores das favelas como a Igreja Católica que os apoia buscam uma relação de
expressivos e não-cognitivos nos códigos de conduta ou nos elabo-
complementaridade momentânea e instável entre o direito não oficial das favelas
rados pelas empresas multi nacionais ou pelas associações internacionais cooptadas
e o direito nacional estatal. A construção e imaginação da realidade nestas duas
por elas, como se demonstra pelo uso recorrente de expressões _como
formas de direito segue sistemas de sinais divergentes, o bíblico e o homérico,
interesse comum, confiança recíproca, solidariedade, cooperaçao, asslstenCla, leal-
respectivamente. Os líderes comunitários e os advogados contratados pela Igreja
dade, etc., etc.]J
para defender os favelados são frequentemente forçados a mudar de estilo e de
Mas o contraste entre os dois estilos de simbolização é ainda mais evidente sistema de sinais de acordo com o auditório relevante perante quem têm de argu-
nas situações de pluralismo jurídico em que a prática social obriga a ,uma mentar no momento. O estilo bíblico, usado nas assembleias no interior das fave-
ção permanente através de ordens jurídicas com estilos diferentes de las, tem de ser traduzido no estilo homérico quando se trata de argumentar no
De uma forma ou de outra, todas as investigações empíricas que realizei envolvem tribunal ou numa repartição administrativa. Mas também pode acontecer que, em
situações deste tipo. Começando pela investigação em Cabo Verde, é fácil conc,luir determinados momentos, os dois estilos e sistemas de simbolização se sobrepo-
que a institucionalização da justiça popular depois da Indepe.ndênci,a visa realizar nham e interpenetrem, como, por exemplo, quando grupos de moradores das
uma síntese ou fusão entre o direito costumeiro local e o direito nacional do novo favelas vêm assistir, como "público", ao julgamento de um conflito de terra e, de
Estado, No entanto, as tensões entre os dois estilos de simbolização da realidade repente, começam a gritar slogans e a cantar cantigas religiosas em plena sala de
são visíveis de muitos ângulos e nomeadamente no modo como os juízes julgam audiências (Santos, 1982b: 21),
os conflitos que lhes são presentes. Alguns juízes, geralmente mais velhos, adoptam Por último, da investigação sobre a crise revolucionária da sociedade portu-
um imaginário jurídico local, característico do direito imagético que descreve o guesa em 1974-75 resulta evidente que não há qualquer tentativa de
complementaridade ou fusão, mas antes uma contradição aberta entre duas for-
n, Cir,. por exemplo, Farja! (1982' 65), mas de direito, a legalidade democrática e a legalidade revolucionária. A legalida-
120 UMA ÜlRTOCRI\flA SIMBÓUÜI DAS REPRESENTAÇÔES SOCIAIS: O 0\50 DO DIREITO A CRíTICA DA Rl\ZÁo INOOL[NTE. CONTRA o DESPERDíCIO DA EXPERIÉNCIA 221
de democrática procura isolar a representação jurídica da realidade da vivência pluralismo jurídico. Não se trata do pluralismo jurídico estudado e teorizado pela
convulsa e quotidiana da crise revolucionária e para isso sublinha a distinção entre antropologia jurídica, ou seja, da coexistência, no mesmo espaço geo-político, de
direito e factos e procede a uma descrição abstracta e formal da realidade em que duas ou mais ordens jurídicas autónomas e geograficamente segregadas. Trata-se,
domina o sistema de sinais próprio do estilo homérico de representação e sim, da sobreposição, articulação e interpenetração de vários espaços jurídicos
simbolização. Ao contrário, a legalidade revolucionária procura integrar e até diluir misturados, tanto nas nossas atitudes, como nos nossos comportamentos, quer em
a representação jurídica no contexto político e social em que tem lugar e para isso momentos de crise ou de transformação qualitativa nas trajectórias pessoais e so-
atenua ou apaga a distinção entre direito e factos e privilegia uma descrição figu- ciais, quer na rotina morna do quotidiano sem história. Vivemos num tempo de
rativa e informal da realidade, em suma, um estilo bíblico de representação e porosidades e, portanto, também de porosidade ética e jurídica, de um direito
simbolização (Santos, 1982a: 254). poroso constituído por múltiplas redes de ordens jurídicas que nos forçam a cons-
tantes transições e transgressões. A vida sócio-jurídica do fim do século é constitu-
ída pela intersecção de diferentes linhas de fronteiras e o respeito de umas implica
PARA UMA CONCEPÇÃO PÓS-MODERNA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS necessariamente a violação de outras. Somos, pois, transgressores compulsivos, o
outro lado da liberdade multiplicada por si própria segundo o ideário da
Os mapas são objectos vulgares, triviais. Fazem parte do nosso quotidiano ao modernidade.
mesmo tempo que nos orientam nele. Como diz Hodgkiss, A intersecção de fronteiras éticas e jurídicas conduz-nos ao segundo concei-
to-chave de uma visão pós-moderna do direito, o conceito de interlegalidade. A
é difícil não sermos confrontados na nossa rotina diária com pelo menos doi5 interlegalidade é a dimensão fenomenológica do pluralismo jurídico. Trata-se de
mapa5. De manhã, ao pa55arm05 05 olhos pelo jornal a caminho do trabalho, é quase
um processo altamente dinâmico porque os diferentes espaços jurídicos não sâo
certo depararm05 com um mapa a preto e branco para assinalar e localizar um qual-
sincrónicos e por isso também as misturas de códigos de escala, de projecção ou
quer acontecimento importante. Ao chegarmos, a casa, ao fim do dia, o noticiário da
televisão também nos mostrará um mdpd com u objectivo. Além disso, a pre- de simbolização são sempre desiguais e instáveis. A mistura de códigos é visível em
visão do tempo é-nos feita quotidianamente, tanto na imprensa, como na televisão, todos os processos sociais que investiguei. É também visível no modo como o di-
com a ajuda de fotografias de satélite e de mapas particularmente concebido5 para reito global emergente, a que fiz referência, se apropria dos vernáculos jurídicos
facilitar a compreensão {1981: 11 l. locais ou tradicionais. Penso ter mostrado que esse direito, enquanto juridicidade
de pequena escala, mistura uma visão telescópica da realidade com uma retórica
Ao usar como metáfora de base um objecto tão comum e vulgar como o moralista típica da juridicidade local e de grande escala. Ao mesmo tempo que
mapa, a cartografia simbólica do direito pretende contribuir para vulgarizar e amplia o espaço jurídico até à escala planetária, cria particularismos e personalismos
trivializar o direito de modo a abrir caminho para um novo senso comum jurídico. que ecoam os privilégios de status medievais ligados às diferentes professiones juris.
O tema central deste livro é a construção de um novo senso comum capaz de A mistura de códigos de representação e de simbolização é ainda visível nas
sustentar a inteligibilidade e as lutas emancipatórias na transição paradigmática. O imagens do direito na cultura de massas. Num estudo sobre este tópico e em que
novo senso comum jurídico proposto neste volume é parte constitutiva do novo analisa muitas das séries da televisão americana, algumas das quais já passadas nos
senso comum para que deve orientar-se o conhecimento do paradigma emergen- nossos écrans, Stewart Macauly mostra que os meios de comunicação de massa e,
te. Como referi no Capítulo 1, ele terá de estar suficientemente longe do senso sobretudo, a televisão promovem uma visão inconsciente e fragmentada do direi-
comum existente para o pocler criticar e eventualmente recusar, mas, por outro to, com mensagens sobrepostas e contraditórias, feitas de regras e de contra-regras
lado, tem de estar suficientemente próximo dele para manter presente que o úni- que incitam tanto à obediência, como à desobediência, tanto à acção legal, como
co objectivo legítimo do conhecimento-emancipação é a constituição de um novo à acção ilegal (1987: 185).
senso comum. Os conceitos de pluralismo jurídico e de interJegalidade aqui apresentados
A cartografia simbólica do direito aqui traçada é uma das vias possíveis de apontam para objectos teóricos cuja investigação empírica requer instrumentos
acesso a uma concepção pós-moderna de direito. Ao longo da exposição, fui apre- analíticos complexos. Os que aqui desenhei mostram que a fragmentação da rea-
sentando alguns dos componentes básicos desta concepção. Alguns deles foram já lidade e da legalidade pressuposta por aqueles conceitos não é caótica. É uma
apresentados no Capítulo 2 e serão retomados no Capítulo 5, outros serão desen- construção social segundo as regras da escala, da projecção e da simbolização,
volvidos no 22 e 3 2 volumes. O primeiro e talvez mais importante é o çonceito de Aliás, num universo ético e jurfdico poJicêntrico, como o aqui defendido, é impor-
222 UMA. CARTOGRAFIA SIMBÓLICA REPRPiENTAÇÓfS SOCIAIS: O O\SO 00 DIREITO A CRíTICA DA RAZÃo INDOLENTE: CONTRA O DESPERDíCIO DA m
tante reconhecer que o direito estatal continua a ser, no imaginário social, um Em primeiro lugar, é um modo de pensar e analisar as práticas
direito central, um direito cuja centralidade, apesar de crescentemente abalada, é dominantes sem depender das formas de auto-conhecimento produzidas pelos
ainda um factor político decisivo. Tal central idade é, de resto, reproduzida por quadros profissionais que as servem. Esta dependência tem sido um dos obstáculos
múltiplos mecanismos de aculturação e socialização. epistemológicos mais persistentes à construção do pensamento sociológico. Talvez
Tal como existe um cânone literário que define o que é literatura e o que para superar, sem êxito, em meu entender, este obstáculo, a sociologia refugiou-se
não é, existe também um cânone jurídico que define o que é direito e o que não no exterior das representações sociais institucionalizadas pela sociedade moderna
é. Porque é socializado nos tipos de escala, de projecção e de simbolização carac- e dedicou-se ao estudo do seu impacto social, quer para estabelecer a sua
terísticos do direito nacional estatal, o cidadão comum tende a não reconhecer positividade, como no caso do funcionalismo, quer para estabelecer a sua negati-
vidade, como no caso do marxismo. O estudo do impacto social, ou seja, do que
como jurídicas as ordens normativas que usam escalas, projecções e simbolizações
está a jusante das instituições, foi complementado pelo estudo do que está a
diferentes. Tais ordens estão aquém do patamar mínimo ou além do patamar
montante das instituições, ou seja, o estudo dos interesses sociais ou grupais, quer
máximo de cognição jurídica. Algumas (as várias formas de direito local) estão
para estabelecer a universalidade dos interesses, como no caso do funcionalismo,
demasiado próximas da vida quotidiana para parecerem direito, enquanto outras
quer para estabelecer a sua natureza classista, como no caso do marxismo. Este
(as várias formas de direito global) estão demasiado longe. A crítica destas percep- processo, que monopolizou o que de melhor se produziu na sociologia durante
ções sociais e dos processos de inculcação em que assentam é feita pelos concei- muitos anos, fez esquecer que entre os interesses e os impactos estavam as coisas
tos de pluralismo jurídico e de interlegalidade. A alternativa que a cartografia simbó- instituídas, a sua materialidade própria, as suas formas de auto-organização onde
lica do direito oferece está resumida no conceito de novo senso comum jurídico. se geram resistências e efeitos perversos, neutralizações e bloqueamentos, autono-
Ao contrário do senso comum jurídico hoje dominante, o novo senso co- mia e criatividade. A atenção a esta materialidade e às regras específicas da sua
mum parte de uma concepção de direito autónoma da que é produzida pelas eficácia constitui a segunda virtual idade da abordagem aqui proposta.
profissões e instituições jurídicas do Estado moderno e que está na base da ideo- As regras da escala, da projecção e da simbolização são procedimentos que,
logia jurídica dominante. Ao questionar esta ideologia enquanto forma de auto- sem serem neutros, têm uma dimensão técnica própria que preside às mediações
conhecimento que legitima e naturaliza o poder social dos profissionais e das clas- e até às rupturas entre interesses e instituições, entre estas e o seu impacto. A
ses sociais que eles servem com maior ou menor autonomia, o novo senso comum abordagem cartográfica parte do postulado' de que os interesses grupais ou de
jurídico é um conhecimento vulgar mais crítico. Trivializar e vulgarizar o direito classe fazem acontecer tudo mas não explicam nada. E isto porque a explicação
implica necessariamente, numa fase de transição ideológica, questionar e criticar o nunca explica o que acontece mas antes o como acontece, ou, por outras pala-
poder social dos que insistem na sacralização, ritualização e profissionalização do vras, porque "o quê" do acontecer só é susceptível de explicação enquanto "como"
direito. do acontecer. As regras da escala, da projecção e da simbolização dirigem-se ao
"como" do acontecer enquanto via única de acesso ao "quê" do acontecer. Uma
Disse acima que mereceria a pena testar as virtual idades teóricas e analíticas abordagem deste tipo, atenta à mecânica terrestre das coisas, pode ser acusada de
da cartografia simbólica no estudo de outras representações sociais para além do formalismo analítico. Julgo, no entanto, que o nosso século tem sido demasiada-
direito. Penso que merecerá particularmente a pena o caso das representações mente polarizado pela oposição formal/informal, tanto na acção social, como na
sociais que têm um conteúdo normativo explícito cuja reprodução alargada é as- análise científica, tanto na arte, como na Iiteratura 1.\. Agora que nos aproximamos
segurada por organizações formais servidas por conhecimentos e práticas do fim do século, é tempo de vermos o formal no informal e o informal no formal
profissionalizados. Assim será o caso da religião e da educação mas em verdade de e não assumir posições dogmáticas a respeito da positividade ou negatividade de
todas as demais práticas e representações sociais cristalizadas em instituições for- qualquer deles.
mais, profissionalizadas, das forças armadas ao movimento sindical, do desporto à
segurança sociap4. As virtual idades da cartografia simbólica, ou seja, de uma abor-
3.5. Sobre esta polarizaçJo do formal e du informal, dr., entre outros, Umberto CE'froni (1986).
dagem assente no estudo das escalas, das projecções e das simbolizações, são fun- Cfr. também a importante análise do informalismo no direito de E Fitzpatrick (1 <)88). O maior ou me-
damentalmente três. nor formalismo de uma dada representação social depende de ml1itos faclores, entre eles a e,trutura e
a função da organizaçãu social que a suporta, u nível de profiSSionalização do, produtores da represen-
tação, o tipo e o grau de conhecimento que o público deve possuir pdrd que a representação social ,eja
eficaz, os limites éticos do mnteúdo repreM'ntado, as considerações orçamentais, etc" etc.. Cfr. H.
34, Cfr. nutas 21 e 26 para algumas sugestões sobre a aplicação amplidd'l dI! \·,lrloW'lfia simbólir.a. Becker, 1IJ86: ,nbwtudo 121 '" ",
224 UMA C'\RTOCRAFIA SIMBÓLICA DAS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: O CASO DO DIREITO