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FLORIANÓPOLIS
2014
IURY MENDES DA SILVA
FLORIANÓPOLIS
2014
“Estamos na mesma situação de uma
criancinha que entra numa biblioteca repleta
de livros em muitas línguas. A criança sabe
que alguém deve ter escrito esses livros.
Ela não sabe de que maneira nem
compreende os idiomas em que foram
escritos. A criança tem uma forte suspeita
de que há uma ordem misteriosa na
organização dos livros, mas não sabe qual é
essa ordem.” (Albert Einstein)
AGRADECIMENTOS
1. INTRODUÇÃO ….................................................................................................... 7
2. O ADIMPLEMENTO E AS MODALIDADES DE INADIMPLEMENTO …............ 10
2.1. A NOÇÃO DE ADIMPLEMENTO NA MODERNA DOUTRINA OBRIGACIONAL . 10
2.2. A CARACTERIZAÇÃO E A EXTENSÃO DO INADIMPLEMENTO
CONTRATUAL ................................................................................................... 15
2.2.1. O inadimplemento relativo e o cumprimento inexato ou retardado da
obrigação …..................................................................................................... 16
2.2.2. O inadimplemento absoluto e o incumprimento definitivo da obrigação …..... 20
2.2.3. A violação positiva e a infração aos deveres acessórios à obrigação ............ 23
3. O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL COMO LIMITE À RESOLUÇÃO
CONTRATUAL …...............................................................................….............. 28
3.1. AS ORIGENS DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL: O CASO
BONEE V. EYRE ............................................................................................... 29
3.2. O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NOS SISTEMAS ESTRANGEIROS E
NO DIREITO INTERNACIONAL ….................................................................... 31
3.3. OS CONTORNOS TEÓRICOS DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL NA
DOUTRINA BRASILEIRA ….............................................................................. 36
3.3.1. A boa-fé objetiva e a função social do contrato ….......................................... 37
3.3.2. As duas faces do abuso de direito na relação obrigacional …....................... 41
3.4. AS HIPÓTESES DE EFETIVAÇÃO DA TEORIA DO ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL .................................................................................................. 44
4. AS PERSPECTIVAS DE APLICAÇÃO DO DIMPLEMENTO SUBSTANCIAL ... 54
4.1. OS CRITÉRIOS ADOTADOS PELOS TRIBUNAIS BRASILEIROS NA
ANÁLISE DO INADIMPLEMENTO .................................................................... 56
4.2. OS NOVOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO E O ADIMPLEMENTO
SUBSTANCIAL DAS OBRIGAÇÕES …............................................................ 61
4.3. O OVERBOOKING E O ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DA OBRIGAÇÃO
DO TRANSPORTADOR AÉREO ...................................................................... 65
5. CONCLUSÃO …................................................................................................... 69
REFERÊNCIAS ….................................................................................................... 71
1. INTRODUÇÃO
1 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil, vol. II,
Obrigações. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 55.
2 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 250.
3 Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos.
13. ed. São Paulo: Atlas, 2013, pp. 173/174.
4 GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, ob. cit., p. 147.
expressões com sentidos praticamente idênticos, não se vislumbra qualquer óbice
ao seu emprego como forma de indicar o meio normal de extinção das obrigações.
Como efeito, para que o adimplemento seja considerado válido,
extinguindo a obrigação, devem estar presentes alguns requisitos, entre os quais se
incluem a existência de um vínculo obrigacional e o cumprimento, ao menos parcial,
da prestação, pois, inexistindo o dever de pagar ou a satisfação substancial dos
interesses do credor, será irregular o pagamento assim efetuado, gerando àquele
que o recebeu, no primeiro caso, o dever de restituição, e, na segunda situação, a
faculdade de resolver o contrato ou de exigir a sua complementação 5.
Por conseguinte, é necessário acentuar que o objeto do pagamento é a
prestação, não podendo o credor, nos termos dos arts. 313 e 314 do Código Civil
Brasileiro, ser compelido “a receber prestação diversa da que lhe é devida, ainda
que mais valiosa”, ou “a receber […] por partes, se assim não se ajustou”.
E, nesse contexto, também é interessante registrar que a Lei Civil,
associando as noções de obrigação e de responsabilidade, estabelece que, além da
pessoa do devedor, podem legitimamente cumprir a prestação os seus sucessores e
os terceiros, interessados ou não na extinção da obrigação6, ressalvados as suas
particularidades, nos termos de seu art. 304, que assim dispõe:
Art. 304. Qualquer interessado na extinção da dívida pode pagá-la, usando,
se o credor se opuser, dos meios conducentes à exoneração do devedor.
Parágrafo único. Igual direito cabe ao terceiro não interessado, se o fizer em
nome e à conta do devedor, salvo oposição deste.
Entretanto, salienta-se que “somente cabe o pagamento por terceiro
quando há fungibilidade da prestação”, pois quando “a obrigação é contraída intuitu
personae debitoris – em razão da pessoa do devedor – [apenas] a este incumbe a
solução”, hipótese em que “o credor não pode ser compelido a aceitar de outrem a
prestação, ainda que se lhe apresente melhor do que fora de esperar do [verdadeiro]
devedor”7.
Já no que se refere as pessoas a quem se deve pagar, são legítimos para
receber o crédito, de acordo com o disposto no art. 308 do Código Civil, abaixo
transcrito, não apenas os credores e seus sucessores, mas também aqueles que de
5 Cf. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. II, Teoria Geral das
Obrigações. 25. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, pp. 166/167.
6 Cf. SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e Extinção das Obrigações. In: REALE, Miguel;
MARTINS-COSTA, Judith (coordenadores). Biblioteca de Direito Civil – Estudos em homenagem
ao Professor Miguel Reale, vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, pp. 105/108.
7 PEREIRA, ob. cit, pp. 167/168.
direito os representem:
Art. 308. O pagamento deve ser feito ao credor ou a quem de direito o
represente, sob pena de só valer depois de por ele ratificado, ou tanto
quanto reverter em seu proveito.
Ou seja, o pagamento efetuado a outra pessoa gerará o direito à
repetição, vigendo no direito brasileiro, salvo no caso de credor putativo, a máxima
de que “quem paga mal, paga duas vezes”8.
Nesse norte, mostra-se interessante ressaltar que:
O pagamento será […] o fim normal da obrigação. Mas não o único, porque
pode ela cessar: a) pela execução forçada, seja em forma específica, seja
pela conversão da coisa devida no seu equivalente; b) pela satisfação direta
ou indireta do credor, por exemplo, na compensação; c) pela extinção sem
caráter satisfatório, como na impossibilidade da prestação sem culpa do
9
devedor, ou na remissão da dívida.
De fato, caracteriza-se o adimplemento, sob a perspectiva de uma
obrigação simples, quando o devedor cumpre voluntariamente a prestação que
havia sido anteriormente contratada, satisfazendo o interesse do credor na medida
de sua legítima expectativa e nos termos convencionados pelos contratantes quando
da celebração do negócio.
Contudo, convém brevemente destacar que o denominado pagamento
indireto da obrigação, outra forma de liberação do devedor, restará configurado
quando o credor tiver seu crédito satisfeito através de outros mecanismos, aos quais
o legislador atribuiu como consequência a extinção da obrigação, citando-se,
exemplificativamente, a consignação, a dação e a compensação.
Destarte, pode-se dizer que o pagamento em consignação consiste no
“depósito [...], feito pelo devedor [ou por quem lhe faça as vezes], da coisa devida,
visando liberar-se de uma obrigação assumida em face de um credor
determinado”10. Por óbvio que:
Pagar não é apenas um dever, mas também um direito do devedor. [Assim,
se] não for possível realizar o pagamento diretamente ao credor, em razão
de recusa injustificada deste em receber, ou de alguma outra circunstância,
poderá valer-se dá consignação em pagamento, para não sofrer as
11
consequências da mora.
A dação em pagamento, por seu turno, expressa-se na “realização de
uma prestação diferente da que é devida, com o fim de, mediante acordo do credor,
12 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. 7. ed. Porto: Almedina, 1997, p. 171.
13 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: teoria geral das obrigações. 7. ed. São
Paulo: Saraiva, 2010, p. 345.
14 GAGLIANO e PAMPLONA FILHO, ob. cit., p. 149.
15 SILVA, Rafael Peteffi da. Teoria do adimplemento e modalidades de inadimplemento, atualizado
pelo novo Código Civil. São Paulo: Revista do Advogado, v. 68, 2002, p. 11.
16 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. Adimplemento e Extinção das Obrigações. In: REALE, Miguel;
MARTINS-COSTA, Judith (coordenadores). Biblioteca de Direito Civil – Estudos em homenagem
ao Professor Miguel Reale, vol. VI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 52.
17 SOUZA, Carlos Affonso Pereira. Teoria geral das obrigações e dos contratos. 4. ed. Rio de
Janeiro: FGV, 2011, p. 96.
18 SILVA, ob. cit., p. 51.
O cumprimento de uma obrigação de fazer seria rigorosamente diferente do
adimplemento de uma obrigação de dar que envolvesse a transferência da
propriedade, sendo este também distinguível dos pagamentos decorrentes
de negócios jurídicos preliminares, cujo adimplemento demandaria um
acordo das duas partes. Assim, o pagamento configuraria um gênero do
qual se incluiriam hipóteses que exigem a manifestação volitiva e outras que
19
não a exigem.
Tais divergências, todavia, apenas refletem uma evolução da noção de
adimplemento, pois, se os romanos, por um lado, enxergavam a obrigação como um
poder do credor sobre a pessoa do devedor”, fazendo “com que o adimplemento
fosse considerado uma atividade de caráter [eminentemente] pessoal” 20, desprovida
de natureza econômica e social, os doutrinadores clássicos deram objetividade ao
conceito de pagamento, valorizando a autonomia da vontade e afastando a
intervenção do Estado nos ajustes celebrados.
Em contraposição a essa visão, as doutrinas objetivas deslocaram,
posteriormente, “o eixo da relação obrigacional para a satisfação do interesse do
credor”, pois “a ocorrência do adimplemento [seria] patrimonial e não pessoal, ou
seja, o conteúdo da obrigação [seria] o bem devido e não o dever de prestar”21.
Assim, “a prestação realizada por terceiro, bem como a realização da
prestação coativamente, até mediante meios sub-rogatórios praticados pelo Poder
Judiciário, [seria], necessariamente, tida como cumprimento”22, de modo que,
entendido o “conceito de obrigação como 'o poder de um indivíduo (o credor) sobre
um outro indivíduo (o devedor)', […] o objeto da obrigação já não era um ato de
cumprimento pelo devedor, mas o próprio efeito deste ato”23.
Por fim, no entanto, com o desenvolvimento da concepção
contemporânea de adimplemento, passou-se a considerar o cumprimento como “a
realização do conteúdo da obrigação pelo devedor”24. Nesse caso, pode-se:
[…] dizer que tanto o elemento pessoal como o elemento patrimonial são
essenciais para o perfeito adimplemento da obrigação. Portanto, o credor
tem um direito a uma prestação útil por parte do devedor, e somente em
uma possível fase executiva é que o direito do credor recai sobre o
patrimônio do devedor. Mas, apesar da alteração de seu objeto, a relação
obrigacional não perde a sua identidade, pois vista a obrigação como um
processo, esta prossegue até conseguir o seu objetivo: a satisfação do
36 FIUZA, César. Direito civil: curso completo. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 373.
37 GONÇALVES, ob. cit., pp. 388/389.
38 GONÇALVES, ob. cit., p. 389.
39 GONÇALVES, ob. cit., p. 389.
40 FIUZA, ob. cit., p. 375.
principal efeito, de acordo com o art. 400 do Código Civil, o de subtrair do “devedor
isento de dolo a responsabilidade pela conservação da coisa”, obrigando o credor a
ressarcir as despesas empregadas em conservá-la e sujeitando-o a recebê-la pela
estimação mais favorável ao outro contratante, se o seu valor oscilar entre o dia
estabelecido para o pagamento e o de sua efetivação.
Assim, são seus pressupostos:
a) vencimento da obrigação, pois antes disso a prestação não é exigível, e,
em consequência, o devedor não pode ser liberado; […]
b) oferta da prestação, reveladora do efetivo propósito de satisfazer a
obrigação; […]
c) recusa injustificada em receber; […]
41
d) constituição em mora, mediante a consignação em pagamento.
Nesse ponto, convém destacar que o devedor, no intuito de afastar sua
responsabilidade pelo perecimento da prestação, pode recorrer a consignação,
passando a usufruir dos efeitos da mora do credor, que, “em linhas gerais,
resumem-se em dois: isenção de responsabilidade do devedor e liberação dos juros
e da pena convencional”42.
Com efeito, pode-se dizer, ainda, que:
Enquanto não há dívida vencida e exigível, não há [que se] falar em direito
do devedor de libertar-se dela, uma vez que, se não pode ainda ser
molestado pelo credor, nem está exposto a qualquer risco, não há direito de
forrar-se a estes efeitos. Ainda quando se trate de termo instituído a
benefício do devedor, a antecipação do pagamento não pode ser imposta
ao credor, com a consequente constituição em mora, pois que por direito
somente no momento em que a obrigação está vencida é que se reputará
43
aparelhado para o recebimento.
Isto posto, verifica-se que, isoladamente, as moras de credor e de
devedor afastam, em regra, a responsabilidade pela conservação da coisa. Todavia,
é imprescindível registrar que as moras podem, ainda, ser simultâneas ou
sucessivas. Nesses casos:
Quando as moras são simultâneas (nenhum dos contratantes comparece ao
local escolhido de comum acordo para o pagamento, p. ex.), uma elimina a
outra, pela compensação. As situações permanecem como se nenhuma das
duas partes houvesse incorrido em mora. Se ambas nela incidem, nenhuma
44
pode exigir da outra perdas e danos.
E:
Quando as moras são sucessivas, permanecem os efeitos pretéritos de
cada uma. Assim, por exemplo, se, num primeiro momento, o credor não
112 Tradução livre do autor. No original: “§ 323 Rücktritt wegen nicht oder nicht vertragsgemäß
erbrachter Leistung […] (5) Hat der Schuldner eine Teilleistung bewirkt, so kann der Gläubiger
vom ganzen Vertrag nur zurücktreten, wenn er an der Teilleistung kein Interesse hat. Hat der
Schuldner die Leistung nicht vertragsgemäß bewirkt, so kann der Gläubiger vom Vertrag nicht
zurücktreten, wenn die Pflichtverletzung unerheblich ist”.
113 BUSSATA, ob. cit., p. 47.
114 BUSSATA, ob. cit., p. 48.
115 MARTINS, ob. cit., p. 63.
decorre da interpretação do princípio da boa-fé objetiva.
Nesse sentido, nota-se que há na jurisprudência espanhola “uma
marcada tendência para a manutenção do vínculo contratual, pois se exige, para o
êxito da ação resolutiva, um incumprimento substancial”116 da obrigação. Com efeito,
“infere-se o reconhecimento da teoria do adimplemento substancial, ainda que não
positivada expressamente, admitindo-se a relativização do princípio do pacta sunt
servanda diante do descumprimento mínimo da prestação”117.
Já na Argentina,
[…] tanto a doutrina como a jurisprudência têm destacado que o
incumprimento deve ser importante, de não escassa importância, grave, de
grande magnitude, uma vez que o contrato é orientado pelo princípio da
conservação, bem como seria contrário a boa-fé contratual o exercício do
118
direito subjetivo de resolver o contrato em tais casos.
Por oportuno, é importante registrar que a doutrina do adimplemento
substancial também está presente na esfera internacional, mais precisamente na
Convenção de Viena de 1980 sobre os contratos de compra e venda internacional
de mercadorias, que assim se manifesta:
CAPITULO I – DISPOSIÇÕES GERAIS
Artigo 25 – A violação ao contrato por uma das partes é considerada como
essencial se causar à outra parte prejuízo de tal monta que
substancialmente a prive do resultado que poderia esperar do contrato,
salvo se a parte infratora não tiver previsto e uma pessoa razoável da
mesma condição e nas mesmas circunstâncias não pudesse prever tal
119
resultado.
Nesse viés, ao abordar a violação fundamental, “a Convenção de Viena
não distingue se a violação foi de cláusula fundamental ou acessória, condition ou
warranty, obrigação principal ou secundária, decorrente do contrato, da própria
convenção ou do princípio da boa-fé”120:
O que interessa, para que se configure uma fundamental breach, é que seja
causado um prejuízo substancial à contraparte, ainda que imprevisível para
uma pessoa razoável, não importando se a infração foi de dever ou
121
obrigação acessória ou dever ou obrigação principal.
Com efeito, convém destacar que:
O que importa em se tratando de adimplemento substancial ou
inadimplemento fundamental não é a natureza do dever violado, mas a
135 NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia
privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 82.
136 RENAULT, ob. cit., p. 81.
137 GOMIDE, ob. cit., p. 75.
138 RENAULT, ob. cit., p. 82.
139 BECKER, ob. cit., p. 70.
140 BECKER, ob. cit., p. 70.
pouca gravidade, pois tal alternativa “seria manifestantemente desproporcional,
injusta e contrária à finalidade econômica do contrato”141.
De acordo com o art. 187 do Código Civil Brasileiro, “também comete ato
ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestantemente os limites
impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”.
Assim, contata-se que:
O ordenamento jurídico brasileiro veda de forma expressa o abuso de
direito, ao impor à parte que não prejudique a contraparte ou terceiros,
prescrevendo que as condutas devem observar a boa-fé e os bons
costumes, estes defluentes do fim social e econômico do contrato, sendo o
primeiro (fim social) critério que limita o exercício de qualquer direito
(mesmo o de propriedade), enquanto o segundo tem aplicação apenas no
142
universo do negócio jurídico.
Com efeito, o princípio da boa-fé objetiva, acima estudado, “exerceria a
função de não permitir o exercício desequilibrado de direitos subjetivos, entendendo-
se abusivo o (exercício) que seja desconforme a ela, à função econômica ou social
do direito subjetivo em questão, ou ainda aos bons costumes”143.
Nesse sentido, acrescenta-se, também, que:
Diante da ordenação contratual, o princípio da boa-fé e a teoria do abuso de
direito completam-se, operando aquela como parâmetro de valoração do
comportamento dos contratos: o exercício de um direito será irregular, e
nesta medida abusivo, se consubstanciar quebra de confiança e frustração
de legítimas expectativas. Nesses casos, o comportamento formalmente
lícito, consistente no exercício de um direito, é, contudo, um comportamento
144
contrário à boa-fé e, como tal, sujeito ao controle da ordem jurídica.
Dessa forma, é interessante salientar que o abuso de direito era,
inicialmente, ligado à imagem do exercício de um direito com a finalidade de
prejudicar terceiros, ainda que o desenvolvimento de sua teoria tenha acabado por
objetivar essa visão, passando a englobar todas as hipóteses em que um direito,
embora formalmente lícito, acaba por se tornar moral e materialmente ilegítimo.
Por conseguinte, “no caso de adimplimento substancial há um
adimplemento bom o suficiente para satisfazer o interesse do credor, pelo que não
há comprometimento da comutatividade”, de modo que “eventuais diferenças serão
158 CAVALCANTI, Marisa Pinheiro. O adimplemento substancial como causa impeditiva da resolução
contratual. Teresina: Revista Jus Navigandi, ano 17, n. 3.450, p. 1. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/23219>. Acesso em 30 de maio de 2013.
159 CAVALCANTI, ob. cit., p. 6.
160 CAVALCANTI, ob. cit., p. 6.
161 RENAULT, ob. cit., p. 145.
Face ao exposto, observa-se que o adimplemento substancial constitui
“um adimplemento tão próximo ao resultado final que, tendo-se em vista a conduta
das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo[-se] tão somente [à parte
lesada] o pedido de indenização”162.
Assim, ainda que não positivada no ordenamento jurídico brasileiro, a
doutrina do adimplemento substancial é plenamente aplicável no sistema jurídico
nacional, com fundamento, sobretudo, no princípio da boa-fé objetiva e na vedação
ao exercício abusivo de direitos.
Com efeito, tem-se que, embora estejam disponíveis à parte não
inadimplente a resolução do contrato e a execução específica, já previstos no
Código Civil de 1916, estas não parecem ser as soluções apropriadas a todas as
situações, pois se mostra indispensável avaliar se a resolução é uma faculdade do
credor ou apenas o último recurso que este pode empregar em face do devedor,
tendo de exigir, a princípio, a prestação devida ou o ressarcimento das perdas e
danos de eventual defeito na prestação.
De fato, verifica-se que “a resolução é o remédio jurídico posto a
disposição do contratante para que busque a dissolução do vínculo contratual
quando a outra parte descumprir a prestação ou o dever contratual a que estava
legalmente obrigada”163. No entanto, não pode a parte inadimplente ficar a mercê
dos desejos do outro contratante, circunstância em que:
[…] a teoria do adimplemento substancial afigura-se como um verdadeiro e
efetivo limite ao direito formativo de resolver atribuído ao credor, uma vez
que a ausência de limites pode levar a situações de manifesta iniquidade,
em especial nos casos em que o programa obrigacional foi cumprido
substancialmente pelo contratante, ou tendo a outra parte obtido
164
substancialmente o programa contratual que almejava ao contratar.
Destarte, observa-se, da análise do parágrafo único do art. 395 do Código
Civil, segundo o qual “se a prestação, devido à mora, se tornar inútil ao credor, este
poderá enjeitá-la, e exigir a satisfação das perdas e danos”, que “é o interesse do
credor pela prestação – a sua utilidade para ele – o critério de aferição da gravidade
do incumprimento”165, isto é, o parâmetro a ser utilizado para se averiguar se o
credor pode legitimamente optar por resolver a obrigação.
Nessa direção, “não basta a prova da boa-fé objetiva se, com o
162 COUTO E SILVA, Clóvis Veríssimo do. O princípio da boa-fé no Direito Brasileiro e Português, in
Estudos de Direito Civil Brasileiro e Português. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 56.
163 BUSSATA, ob. cit., p. 94.
164 BECKER, ob. cit., p. 87.
165 BECKER, ob. cit., p. 68.
inadimplemento, deixou de ser atingida a finalidade principal ou única do negócio”,
pois, se este, “mesmo tendo sido em grande parte adimplido, acabou resultando
inútil ao credor, não caberá aplicar a nova teoria”166.
Por consequência, é interessante notar que, sendo ainda útil ao credor e
tendo agido o outro contratante com probidade e honestidade, não se mostra
aceitável a adoção da via resolutória, a qual, na realidade, apresenta-se como último
recurso disponível à parte não inadimplente, exigindo-se “um inadimplemento que
comprometa a substância do contrato para outorgar ao credor o direito de
resolução”, uma vez que se ainda lhe for útil a prestação, “mesmo que inexata, o
exercício de tal direito é abusivo, contrário aos ditames da boa-fé objetiva”167.
Por outro lado, deve-se registrar que:
[…] no âmbito do Código de Defesa do Consumidor, aparentemente é um
pouco mais difícil a aplicação da doutrina. Todas as disposições acerca de
imperfeições do produto ou serviço fornecido, objeto da prestação
contratada, sem cogitar de sua gravidade, consagram sempre o direito do
consumidor à opção entre exigir sua substituição por outro (ou a reexecução
do serviço), o abatimento no preço e a restituição da quantia paga (a
168
resolução do contrato).
Dessa forma, caso se procedesse a uma interpretação literal da
legislação consumerista, em cujo espírito encontra-se a proteção do consumidor,
mostrar-se-ia inaplicável a teoria do adimplemento substancial, cujo emprego
acabaria por conduzir a discussão de maneira contrária aos interesses imediatos do
consumidor.
Ocorre que, de modo a compensar sua natural vulnerabilidade, o Código
de Defesa do Consumidor elevou o consumidor a uma posição de superioridade
jurídica em relação ao fornecedor, gerando conflitos em sua própria efetivação.
Com efeito, “o próprio CDC consagra o princípio da boa fé objetiva e, em
seu artigo 4º, [...] indica […] que tal princípio atua face às duas partes da relação de
consumo – o que, aliás, é da própria essência da boa fé objetiva”169.
Assim:
A melhor solução […] parece ser deixar ao julgador a possibilidade de,
diante do caso concreto, avaliar a gravidade de tal inadimplemento, com
base no princípio da boa-fé objetiva e no conjunto de princípios consignados
no art. 4º do CDC, e, se entender abusivo o exercício do direito de
166 CLARINDO, Aniêgela Sampaio. Teoria do adimplemento substancial relacionada à boa-fé objetiva
e à função social dos contratos. Teresina: Revista Jus Navigandi, ano 16, n. 2.889. Disponível em:
<http://jus.com.br/revista/texto/19210>. Acesso em 30 de maio de 2013.
167 BECKER, ob. cit., p. 68.
168 BECKER, ob. cit., pp. 68/69.
169 BECKER, ob. cit., p. 69.
resolução, restringir a escolha do consumidor à substituição do produto (ou
170
reexecução do serviço) e ao abatimento do preço.
Isso porque:
[…] [como] a boa-fé objetiva funciona como “janela do sistema jurídico”,
permitindo o conhecimento de elementos externos ainda não positivados na
lei (ou já positivados na jurisprudência), é possível que a decisão se dê para
além do que estava programado ou mesmo em contrário a algum preceito
expresso, que assim é reelaborado ou desconsiderado, face à atuação
171
prevalente do princípio.
Nesse sentido, tem-se a esclarecer que toda e qualquer espécie de
inadimplemento pode ser analisada à luz da doutrina do adimplemento substancial.
Nas hipóteses de inadimplemento mínimo da prestação principal, por
exemplo, “em que o devedor tenha cumprido parte substancial do que foi pactuado
com o credor, [...] o contrato mantém incólume sua função social e econômica” 172,
não se justificando o desfazimento da relação obrigacional.
Por conseguinte, ainda que, nos termos da legislação civil nacional, não
esteja o credor obrigado a receber por partes, é sabido que o cumprimento parcial
da prestação, em diversas oportunidades, revela-se útil aos contratantes, hipóteses
nas quais a adoção da via resolutória se mostra abusiva, impondo-se a manutenção
do vínculo contratual.
Ressalta-se, no entanto, “que, em razão do pagamento a menor feito pelo
devedor, este não poderá enriquecer à custa do credor, [...] podendo ser acionado a
pagar pelas perdas e danos em pecúnia em favor do credor”173.
Nessa situação, ainda que existam dispositivos expressos na legislação
brasileira prevendo a resolução da obrigação, contata-se de uma análise sistemática
do ordenamento jurídico nacional, orientado pela boa-fé objetiva, que tais
disposições devem ser relativizadas. Por exemplo,
[…] o art. 763 do Código Civil, que, ao tratar do contrato de seguro, diz que
“não terá direito a indenização o segurado que estiver em mora no
pagamento do prêmio, se ocorrer o sinistro antes de sua purgação”, só deve
ser aplicado na hipótese de a mora verificar-se sobre parte considerável do
prêmio. Se houver descumprimento de parte ínfima, insignificante, será
devido o pagamento da indenização, descontado o valor do prêmio em
174
atraso e demais verbas decorrentes da mora.
E mais, no que tange ao contrato de alienação fiduciária, regido pelo
Decreto-Lei n. 911/69, que autoriza a resolução do contrato e a busca e apreensão
215 SANTA CATARINA, Tribunal de Justiça do Estado de. Acórdão proferido na Apelação Cível n.
2013.087511-5. Relator: Des. Henry Petry Junior. Órgão julgador: Quinta Câmara de Direito Civil.
Data do julgamento: 05.06.2014.
216 RIO GRANDE DO SUL, Tribunal de Justiça do Estado do. Decisão monocrática proferida no
Agravo de Instrumento n. 70061421806. Relatora: Desa. Judith dos Santos Mottecy. Órgão
julgador: Décima Quarta Câmara Cível. Data do julgamento: 02.10.2014.
considerada a sua natureza, afinal quase que completamente
adimplido. Adimplemento substancial. Princípio da boa-fé objetiva.
217
Necessidade de prévia cobrança. Sentença revista. Recurso provido.
(sem grifos no original)
Esclarece-se, com relação a este último precedente, que:
[…] a pressuposição de utilidade da prestação, no caso e considerando-se
que a mesma foi feita em desacordo com o contratado, constituí uma clara
invasão do plano dos motivos contratuais, que não integram o ajuste.
Assim, esta pressuposição, que não está assentada em qualquer base
fática (de motivos) ou científica, poderá acabar, ela sim, por provocar
verdadeira injustiça, trazendo problemas e constrangimentos à parte
credora. Suponha-se, por exemplo, que o credor cuidado no acórdão acima
transcrito tenha, ao vender seu imóvel, imaginado comprar outro,
comprometendo, portanto, todo o produto da venda neste novo negócio.
Ter-se-á, então, situação em que o novo negócio não se realizará, em razão
do comportamento do devedor inadimplente, desaparecendo, por evidente,
218
todo e qualquer interesse do credor no negócio que com aquele encetou.
De modo semelhante:
[…] se for apenas analisada a utilidade da prestação abstratamente, sem
avaliar outros interesses integrantes da relação obrigacional orgânica,
podem ser cometidas injustiças. A prestação pode ser útil para um
determinado credor, mas não ser para outro credor, quando pensamos, por
exemplo, em deficiente físico que contrata a compra e venda de um
automóvel, que lhe é entregue sem as adaptações necessárias à
compensação de sua deficiência, embora possamos admitir que o referido
219
bem, ainda assim, seria útil à generalidade dos consumidores.
Por conseguinte, o critério objetivo, na realidade, “é apenas parcial e
serve para excluir do campo de aplicação da teoria aquelas hipóteses de
adimplemento bastante afastadas do efetivo conteúdo contratual”220.
Nesse diapasão, “não se pode olvidar que se deve, necessariamente ter
em consideração o interesse do contratante não inadimplente na manutenção do
contrato”221, pois ainda que “o descumprimento seja mínimo, quantitativamente
falando, ou seja, mesmo que a prestação realizada pelo devedor se aproxime muito
daquilo que efetivamente é devido, o contrato, na forma que foi cumprido, não
satisfaz os interesses do credor”222.
Ademais,
[…] as partes contratam tendo conhecimento da existência da cláusula
resolutiva, seja contratual ou legal, afirmando as respectivas obrigações e
esperando sejam estas cumpridas, de parte a parte, em ambiente no qual
se tem uma ideia de equilíbrio e igualdade, a qual não se pode dizer
217 SÃO PAULO, Tribunal de Justiça do Estado de. Acórdão proferido na Apelação Cível n. 0019845-
43.2013.8.26.0008. Relator: Des. Cláudio Godoy. Órgão julgador: Primeira Câmara de Direito
Privado Data do julgamento: em 07.10.2014.
218 RENAULT, ob. cit., p. 141.
219 LINS, ob. cit., p. 9.
220 BUSSATA, ob. cit., p. 111.
221 BUSSATA, ob. cit., p. 45.
222 BUSSATA, ob. cit., p. 112.
rompida ou quebrada por presunção, demandando prova. Diante do
incumprimento por uma das partes, entretanto, diz-se que a outra não pode
resolver o contrato, eis que 20% do preço seria parte não substancial do
valor. Sujeita-se a parte credora, assim, a longos prazos de processo de
cobrança ou execução, os quais, fossem de seu conhecimento antes da
223
contratação, certamente a fariam não contratar.
Consequentemente, “o cumprimento da obrigação não poderia ser
analisado, tão somente, pela sua quantidade, mas também por outros fatores, ou
seja, o adimplemento substancial não pode se limitar apenas a uma análise
puramente matemática”224.
De fato:
[…] um critério puramente objetivo, matemático, que leva em conta a
simples aproximação entre a conduta realizada e a devida, não é totalmente
correto, haja vista que a prestação inexata pode não trazer nenhuma
utilidade para o credor. Assim, deve-se entender como de escassa
importância o inadimplemento que não afeta o fim econômico-social do
contrato, observado caso por caso, o que importa dizer, de acordo com as
225
circunstâncias relevantes em cada relação contratual.
Nesse sentido, colhe-se o seguinte julgado:
FINANCIAMENTO. BUSCA E APREENSÃO. TEORIA DO
ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA.
Busca e apreensão pela qual a parte Autora alega que a parte Ré restou
inadimplente em contrato de financiamento, com veículo alienado em
garantia. O juiz a quo aplicou a Teoria do Adimplemento Substancial e
julgou improcedente o pedido.
Para a adoção da Teoria do Adimplemento Substancial, devem ser
considerados alguns aspectos inerentes à sua aplicação. Em um
primeiro momento necessário aferir-se se existe uma proximidade
entre o efetivamente cumprido e o previsto nas cláusulas contratuais e
se a prestação imperfeita satisfaz os interesses do credor, ou seja, se
remanesce débito não desprezível, a ponto de ensejar a cobrança.
O Réu pagou 2/3 das parcelas, ou seja, 16 (dezesseis) prestações de um
total de 24 (vinte e quatro) .
Restou configurado, portanto, um inadimplemento significante, além da
insatisfação dos interesses do credor, consubstanciada na interposição da
ação.
Em um segundo momento impende averiguar o esforço e a diligência
do devedor em adimplir integralmente o contrato. A ação data de
31/03/1999, sendo que o Réu deixou de pagar a partir da parcela que
vencia em 14/04/1998, ou seja, apesar do lapso temporal de mais de 10
(dez) anos, não demonstrou qualquer intenção de quitar seu débito, apesar
de reconhecê-lo em sua contestação (fls. 61/71). Sequer fez qualquer
consignação judicial referente às parcelas não pagas.
O Réu não zelou pela observância do princípio da boa-fé objetiva,
impedindo, assim, a aplicação da Teoria do Adimplemento Substancial.
226
Recurso provido, nos termos do voto do Desembargador Relator. (sem
grifos no original)
227 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Acórdão paradigma proferido no Recurso Especial n.
415.971/SP. Relatora: Mina. Nancy Andrighi. Órgão julgador: Terceira Turma. Data do
julgamento: 14.05.2002.
228 MARTINS, ob. cit., p. 94.
229 OLIVEIRA, Eulina. Comércio eletrônico no país fatura R$ 28,8 bilhões em 2013. Disponível em:
<http://exame.abril.com.br/economia/noticias/comercio-eletronico-no-pais-fatura-r-28-8-bi-em-
2013>. Acesso em 10 de setembro de 2014.
que protegem demasiadamente o consumidor, devem ser adequadas a essa nova
realidade, através de sua interpretação à luz dos princípios da boa-fé objetiva e da
preservação dos contratos, vedando-se o exercício abusivo de direitos e o
enriquecimento sem causa de um dos contratantes.
Isso, entretanto, não quer dizer que o consumidor, em regra a parte mais
vulnerável das relações de consumo, não deva ser protegido, mas apenas que essa
proteção não deve ultrapassar os limites de sua real necessidade, ocasionando ao
fornecedor, por exemplo, sua total submissão àquele. É preciso, pois, ponderar os
interesses em conflito, de modo a encontrar a solução adequada a cada caso
concreto, adotando-se, por exemplo, critérios de razoabilidade ou proporcionalidade.
Com efeito, a teoria do adimplemento substancial em nada se contrapõe à
proteção do consumidor, ao contrário, considerando que sua não aplicação gera,
consoante destacado, o abuso de direito, ela atua evitando que “o credor
desarmonize todo um sistema econômico apenas porque o devedor inadimpliu de
alguma forma uma das várias parcelas que teria de lhe pagar, maculando doravante
a função econômica social da relação contratual e de seu respectivo termo”230.
Nesse norte, é interessante observar que, apesar de a doutrina do
adimplemento substancial ser considerada pelos tribunais brasileiros como aplicável
às relações de consumo, “em todo o cabedal jurisprudencial só são encontradas
decisões reconhecendo [seus] efeitos […] em prol do consumidor, não sendo
encontrados julgados aplicando a teoria do adimplemento substancial em prol do
fornecedor”231.
Evidentemente, no entanto, os princípios que orientam a formação do
vínculo consumerista, entre os quais o da boa-fé objetiva, previsto no art. 4º, III, do
Código de Defesa do Consumidor, não se aplicam somente aos fornecedores, mas a
ambos os contratantes.
Assim, embora o art. 49 do Código de Defesa do Consumidor estabeleça
que o consumidor “pode desistir do contrato, no prazo de 7 dias a contar de sua
assinatura ou do ato de recebimento do produto ou serviço, sempre que a
contratação de fornecimento de produtos e serviços ocorrer fora do estabelecimento
230 LIMA, Adaut Sacchi D'Albuquerque. Teoria do adimplemento substancial na defesa contratual do
consumidor. Brasília: UniCEUB, 2013, p. 72.
231 DORIA, Alexandre. A teoria do adimplemento substancial e sua aplicação nas relações de
consumo. Teresina: Revista Jus Navigandi, n. 1.897, 2008. Disponível em:
<http://jus.com.br/artigos/11703>. Acesso em 21 de outubro de 2013.
comercial [...]”, tem-se que tal faculdade deve ser visualizada com certa restrição.
De fato, se a oferta e o produto atendem substancialmente às
especificações previstas no art. 31 do Código de Defesa do Consumidor, entre os
quais se incluem “informações corretas, claras, precisas, ostensivas e em língua
portuguesa sobre suas características, qualidade, quantidade, composição, preço,
garantia, prazos de validade e origem, entre outros dados”, não se mostra razoável a
adoção da via resolutória, ainda que a legislação consumerista nesse sentido
expressamente se manifeste.
Isto porque:
É perceptível que a resolução do contrato é medida extrema do credor para
o devedor, uma vez que encerra todos efeitos jurídicos produzidos ou que
poderiam vir a ser produzidos. Desta forma o inadimplemento insignificante
para o credor que acarrete a resolução do contrato é abusivo e vai contra as
diretrizes da função econômica do contrato, assim a proibição da resolução
pelo princípio da boa-fé, visa apenas atender também as exigências de
232
outro princípio: o da função social.
Em outras palavras,
[…] é necessário que o exercício deste direito seja moderado, valendo-se
principalmente do princípio da boa-fé objetiva. Caso contrário, este exercício
poderá incorrer em prejuízos aos fornecedores de produtos e serviços. É o
caso do consumidor que adquire uma revista pela internet e resolve
devolver o produto poucos dias depois. Ou então aquele que apostou 100$
na loteria, através de um sítio eletrônico, não se sagra vencedor do prêmio
e requer a devolução do valor pago pelo bilhete.
Caso o direito de arrependimento seja exercido em hipóteses como essas,
estaríamos diante de situações de injustiça frente aos comerciantes. Nos
casos mencionados, exercido o direito de arrependimento, o que poderiam
fazer os comerciantes com uma revista antiga ou um bilhete vencido?
Além disso, em determinadas hipóteses, o consumidor poderá incorrer em
enriquecimento ilícito. É o caso daquele que adquire um CD musical, grava
233
todo seu conteúdo em outro suporte e exercita o arrependimento.
Aliás, é também conveniente destacar que o direito de arrependimento, à
época em que o Código de Defesa do Consumidor foi redigido, mostrou-se de fato
relevante, uma vez que as negociações à distância dificultavam ao consumidor
verificar as especificações dos produtos ou serviços adquiridos. Com o rápido
desenvolvimento tecnológico, todavia, essa dificuldades foram drasticamente
reduzidas, na medida em que atualmente se encontram disponibilizados ao
consumidor diversos mecanismos, tais como fotografias, vídeos e, inclusive,
modelagens em três dimensões, que tornam o produto ou serviço ofertado cada vez
mais próximo do efetivamente adquirido.
234 PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. Teoria do adimplemento substancial. Brasília: Revista Fonte do
Direito, n. 1, 2010, p. 24.
235 DIDIER JÚNIOR, Fredie. Notas sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial no
direito processual civil brasileiro. Revista Eletrônica de Direito Processual, v. 4, 2009. Disponível
em: <http://www.arcos.org.br/periodicos/revista-eletronica-de-direito-processual/volume-iv/>.
Acesso em 12 de outubro de 2014.
este resolver o negócio, uma vez que, “se obrigado a aceitar prestação que não
mais lhe interessa, assumirá um ônus além do aceitável”236.
Por conseguinte, pode-se afirmar que, assim como nas relações regidas
pela legislação civil, também nas relações de consumo, entre as quais se incluem
aquelas realizadas à distância, “o direito do credor de resolver o contrato face ao
inadimplemento não é absoluto, já que se deve respeitar o princípio da boa-fé
objetiva na formação e na execução”237 da obrigação.
236 DUQUE, Bruna Lyra; CANZIAN, Bruna Braga. O adimplemento substancial nos contratos de
empreitada: uma análise civil e consumerista. Rio Grande: Âmbito Jurídico, n. 104, 2012.
Disponível em: <http://www.ambito-
juridico.com.br/site/index.php/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=11919&revista_caderno=1
0>. Acesso em 12 de outubro de 2014.
237 LIMA, Aliciene Bueno Antocheves. A teoria do adimplemento substancial e o princípio da boa-fé
objetiva. Santa Maria: Revista do Curso de Direito da UFSM, v. 2, n. 2, p.79.
esperado pela parte adimplente é atingido, ainda que não totalmente, mas
de maneira satisfatória e útil, caracterizando um resultado diverso do
esperado apenas quanto à pequena ausência da concretude da obrigação
238
prometida.
De modo semelhante, a mudança para a classe econômica também não
pode ser vista como motivo apto a autorizar a resolução do contrato, embora,
obviamente, autorize o cliente a receber a restituição dos valores pagos, bem como
a pleitear indenização, se entender necessário, pois o consumidor jamais pode ser
obrigado a receber um serviço inferior se pagou por um de melhor qualidade.
Aliás, quanto aos atrasos, como já destacado, sendo este de pouca
monta, não tem o credor o direito de optar pela via resolutória, podendo, conforme a
situação, pleitear da companhia aérea perdas e danos, que incluirão, por exemplo,
gastos com hospedagem, alimentação e transporte, bem como outros que o atraso
lhe tenha gerado, inclusive lucros cessantes.
De fato,
[…] o adimplemento próximo ao resultado final pretendido pelo credor que
caracteriza o adimplemento substancial reveste-se de certeza, liquidez e
exigibilidade da obrigação, não configurando uma grave violação no
cumprimento causado pelo devedor. A ausência da desnaturação do
programa contratual enseja a manutenção do contrato, exatamente pelo fato
de que a inexecução insignificante da obrigação não se aproxima do
inadimplemento absoluto que causa o esvaziamento no interesse do credor
e na imprestabilidade da obrigação por destruir, completamente, o equilíbrio
necessário no programa contratual formado por obrigações
239
correspectivas.
Por outro lado, tratando-se de atraso substancial, abre-se ao consumidor
a possibilidade de resolver o contrato, pleiteando a restituição dos valores que
pagou à companhia, além de perdas e danos. Nessa hipótese, a mora converte-se
em inadimplemento absoluto e autoriza a adoção da via resolutória, tal como ocorre
quando a viagem não é mais útil ao credor, à semelhança do que se verifica nos
casos de reuniões agendadas, conexões de voos e eventos com horário
determinado, pois:
Se a prestação executada já não atende ao interesse que seria satisfeito
com a prestação prometida e cumprida regularmente, desaparecendo
totalmente o interesse do credor em receber a prestação, não há como
240
manter o contrato com fundamento no adimplemento substancial.
Isto é, o inadimplemento relativo torna-se absoluto, permitindo a
resolução do contrato, “quando a obrigação não é cumprida no prazo e nem pode
238 SILVA, Vivien Lys Porto Ferreira da. Adimplemento Substancial. São Paulo: PUCSP, 2006, p.
116.
239 SILVA, ob. cit., p. 199.
240 SILVA, ob. cit., p. 183.
mais ser cumprida […] por imprestabilidade da prestação ao credor” 241, sendo esta
hipótese a que mais comumente se verifica quando, descumprida substancialmente
a obrigação do transportador aéreo, não tem mais o consumidor interesse na
realização da viagem programada.
Em um contexto tal, tendo-se em vista que o overbooking é o termo
usualmente empregado para indicar a venda de um produto ou de um serviço em
quantidades superiores à capacidade de fornecimento do fornecedor, tem-se que a
doutrina do adimplemento substancial não pode ser empregada, a princípio, para
afastar a resolução do contrato pelo consumidor, haja vista a prática, pelo outro
contratante, de conduta manifestantemente contrária ao princípio da boa-fé.
Nessa senda, mesmo o art. 232 do Código Brasileiro de Aeronáutica, que
dispõe que o direito do consumidor só tem início após quatro horas de atraso, deve
ser relativizado, pois:
O “overbooking”, [...] prática recorrente das companhias aéreas, significa a
reserva de assentos em uma aeronave em número superior à capacidade
desta. Esta prática, utilizada pelas companhias aéreas, sob pretexto de
defender seus interesses econômicos, tendo em vista prejuízos causados
por reservas que nunca são confirmadas (“no-show” ou não
comparecimento), viola as garantias do Código de Defesa do Consumidor,
242
plenamente aplicáveis às relações entre passageiros e companhia aérea.
Em que pesem essas considerações, entretanto, vislumbra-se a
possibilidade de aplicação da teoria do adimplemento substancial se a imediata
oferta de assentos em outros voos, com horário e qualidade semelhante, não causar
maiores transtornos ao consumidor, mantendo-se incólume o negócio jurídico,
ressalvada a aplicabilidade de sanções pelos órgãos competentes. Nesse sentido:
[…] jurisprudencialmente tem sido assentado, como mínimo, que a
companhia aérea deve embarcar o passageiro em outro avião com mesmo
destino, mesmo que seja de outra companhia. Caso, no outro voo da
própria companhia ou de outra só existir lugar em classe superior à
adquirida pelo passageiro, este deve ser embarcado sem nenhum
243
acréscimo.
Acrescenta-se, também, que:
Se a empresa de transporte aéreo não puder embarcar o passageiro com
reserva confirmada, nesse interregno, deverá oferecer-lhe outro horário
para voo destinado à mesma localidade (podendo ser até de outra
companhia aérea, através do chamado endosso do bilhete de passagem)
ou, caso o passageiro prefira, reembolsar-lhe o valor gasto com a compra
do bilhete. [...]
[E,] caso o passageiro venha a sofrer prejuízos de maior monta que repute
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