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sala preta

A cinética do invisível

M atteo Bonfitto

1. Edward Gordon Craig: da idéia hipóteses. A ópera, como sabemos, ao contrá-


rio do teatro de prosa, era uma forma de arte
cênica que oferecia uma estrutura precisa de re-
“O Simbolismo está nas raízes não somente
de toda a arte como também da vida, é so-
lações entre os diferentes elementos do espetá-
culo. Tal quadro teria influenciado a escolha do
mente por meio de símbolos que a vida se
torna possível.” (Craig, 1971, p. 163)
artista inglês? Uma das razões poderia estar li-
gada à existência de tal estrutura. Uma vez que
se dispõe de uma estrutura clara de relações en-
Craig e a Ópera

O
tre os seus elementos constitutivos, tornam-se
objetivo aqui não é o de revelar a obra de mais perceptíveis as implicações derivadas das
Craig como um “produto” do movimento alterações que nela são feitas. Desta forma,
simbolista, mas sim tentar evidenciar in- Craig poderia dispor de um terreno mais pal-
fluências importantes para a constituição pável de experimentação.
do pensamento e da prática do artista in- Mas além disso, um outro aspecto pode
glês. Sem dúvida o Simbolismo foi importante ter influenciado Craig na opção feita pela ópe-
nesse sentido e, desta forma, buscarei reconhe- ra, este diretamente ligado ao movimento sim-
cer suas ressonâncias no decorrer do discurso. bolista: a sinestesia. Para o Simbolismo, que bus-
Como se sabe, a atividade profissional de cava a fusão entre a percepção sensorial e
Craig como diretor começou na Purcell elementos espirituais, a sinestesia era um meio
Operistic Society, e sua primeira grande produ- de concretização desses valores. Também neste
ção foi uma ópera: Dido e Enéias. Este fato, se sentido a ópera oferecia inúmeras possibilida-
considerado historicamente, pode tornar-se o des de intervenção, pois já continha música,
ponto de partida de algumas reflexões. Por palavra, canto, dança...
exemplo, o que teria levado Craig a optar pela Tais hipóteses – a da opção pela ópera es-
montagem de uma ópera para dar início à sua tar relacionada ao fato de esta ser uma forma
atividade profissional como diretor? Tal escolha cênica mais fortemente codificada, e a de reco-
poderá ter sido casual? Mesmo sem ter em mãos nhecer a presença de valores simbolistas já em
dados históricos que possam comprovar as ra- Dido e Enéias – podem ser reforçadas se consi-
zões de sua escolha, podemos levantar algumas derarmos os registros históricos do evento. No

Matteo Bonfitto é doutorando do Royal Holloway College da Universidade de Londres.

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programa para a representação no Hampstead, dito, podemos dizer que tal forma cênica irá
comunica-se que “ao desenhar a cenografia e os proporcionar a Craig a possibilidade de, através
figurinos de Dido e Enéias, o diretor de cena se das sinestesias, iniciar uma prática que perma-
preocupou especialmente em ser absolutamen- necerá como uma característica marcante em
te incorreto em tudo aquilo que diz respeito aos seu trabalho posterior: a mobilidade do signo
particulares” (Craig, 1971, p. xx). Torna-se ain- teatral.
da mais clara a intenção polêmica com a qual
Craig desejava apresentar seu espetáculo, se le- Craig e a supermarionete
varmos em conta que naquele momento a in-
“Para salvar o teatro é preciso destruir o tea-
fluência dos Meininger e da escola realista era
tro: os atores e as atrizes devem todos morrer
grande na Inglaterra.
de peste.”
Já neste espetáculo Craig descobre possi-
Eleonora Duse
bilidades de representação inovadoras para a
época. Na segunda cena, por exemplo, onde se Segundo fontes históricas, esta frase de
dá o Conselho das Bruxas, Craig utilizou toda Eleonora Duse foi repetida por Gordon Craig
a profundidade do palco, fazendo assim com em vários momentos de seu percurso artístico.
que o espaço se tornasse mais dinâmico. O pal- Não sabemos se as razões que moveram Craig e
co e os degraus do fundo, área onde atuava o Duse a dizê-la coincidem. É provável que não
coro, eram cinza. Havia também uma tela de completamente. De qualquer forma, é interes-
gaze, colocada em várias posições do palco, so- sante notar que tal frase foi pronunciada por
bre a qual eram projetadas luzes verdes e azuis. aquela que era considerada uma das maiores
O ritmo de projeção de tais luzes estabelecia di- atrizes de sua época. Sabemos que em meados
ferentes níveis de relação com a música, além do final do século XIX e início do século XX,
de criar uma atmosfera sugestiva. O espaço confi- os atores muitas vezes “ditavam” as regras do fa-
gurava-se, desta forma, em relação à ação e ao zer teatral, regras que levavam freqüentemente
desenvolvimento do tecido sonoro. O black-out o teatro a se transformar simplesmente num ca-
era quebrado por aparições de feixes de luz e nal de expressão das próprias habilidades artís-
máscaras, estas construídas pelo próprio Craig. ticas. Talvez neste aspecto, as críticas feitas por
O que se via, assim, não era o Conselho das Craig e por Duse encontrem um terreno co-
Bruxas, e sim elementos de diferentes esferas mum. Mas o artista inglês foi muito além em
perceptivas que sugeriam tal contexto e situação. suas formulações e em sua prática. Ele desejava
Em 1901, Dido e Enéias foi apresentado elevar o teatro ao nível de obra de arte, ou seja,
durante uma semana a partir do dia vinte e seis um fenômeno artístico preciso que pode ser
de março, no Teatro Coronet de Londres. Um reproduzível, mantendo no tempo a mesma
importante depoimento foi dado por Haldane identidade estética.
MacFall, que sublinha a qualidade inovadora e Ocupando-se de todos os elementos do
não-realista da encenação: fenômeno teatral (sonoro, iluminotécnico, ceno-
gráfico, etc), Craig depara-se com dificuldades
“O primeiro passo de um novo movimento
ao lidar com as limitações que, segundo ele, o
que é destinado a revolucionar a encenação mo-
corpo do ator apresenta. A tridimensionalidade,
derna do drama poético... O espírito de cada
a emoção, a falta de consciência espacial e o aci-
cena era representado por um esquema de co-
dental, eram problemas centrais neste sentido.
res que buscava acentuar o significado emo-
Mas além das questões ligadas à impre-
cional de cada cena.” (Craig, 1971, p. xxiii)
cisão do ator, que não foram uma preocupação
Mesmo desconhecendo as intenções en- somente sua, mas também de Stanislavski, Meyer-
volvidas em sua escolha pela ópera, como já hold e outros, para Craig existia uma outra, esta

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também ligada ao movimento simbolista: o O Movimento em


imaterial como manifestação de uma espiritua- Edward Gordon Craig
lidade pura. Já Kleist e Hoffmann haviam visto Nos textos de Craig, há muitas passagens
na marionete possibilidades superiores àquelas onde ele se refere ao termo “movimento”.
do ator e do bailarino. Para Craig, ao menos
num primeiro momento, o corpo do ator é “Ao preparar um trabalho, enquanto está pen-
inutilizável enquanto material artístico, sendo sando na cenografia, passe instantaneamente
assim necessária a criação de gestos simbólicos a um outro argumento: a interpretação, o
e a utilização de máscaras (já presentes em Dido movimento ou a voz. Não tome ainda ne-
e Enéias). O ator deveria, segundo ele, ter cons- nhuma decisão e volte a pensar numa outra
ciência espacial e conhecer suas possibilidades parte deste conjunto unitário. Considere o
plásticas. movimento independente da cenografia ou
Tal descrição, porém, corre o risco de im- dos figurinos, o movimento em si. Integre de
pedir o reconhecimento da existência de aspec- alguma maneira o movimento específico com
tos específicos relacionados à visão de Craig so- aquele que, através da imaginação, consegue
bre o ator. Se buscarmos pensar de maneira ver em cena. Agora despeje no todo as tuas
menos localizada, veremos que o artista inglês cores. Em seguida tire-as. É o momento de
projetava um ator que estivesse completamente recomeçar do início. Considere somente as
inserido no fenômeno teatral. O ator deveria palavras, insira-as num quadro amplo, utó-
compreender as necessidades artísticas relacio- pico, e retire-as: depois torne possível o qua-
nadas, por exemplo, ao deslocamento de um dro através das palavras. Compreende o que
screen1, ou saber porque a iluminação num de- quero dizer? Olhe o drama de todos os pon-
terminado momento deveria ser aquela e não tos de vista, servindo-se de todos os meios, e
outra. Ou seja, Craig desejava um ator comple- não tenha pressa de começar o trabalho de
tamente integrado ao fenômeno, um ator-cria- fato até que um desses meios não se tenha
dor; e neste sentido poderíamos reconhecer em imposto e te obrigue a começar.” (Craig,
tais elaborações uma antecipação da figura con- 1971, p. 19)
temporânea do performer. No entanto, não fica claro nesta passagem
Ao contrário do que freqüentemente se se ele se refere ao movimento enquanto processo
diz, caberia a questão se Craig queria realmente receptivo resultante das sugestões criadas no pal-
‘eliminar’ o ator do fenômeno teatral, ou se bus- co, ou se o movimento seria realmente o deslo-
cava, através da supermarionete, ter a possibili- camento espacial dos elementos em cena.
dade de recolocar o ator como eixo na produ-
ção de sentido da obra.2 Uma obra que buscava “Com os meios oferecidos pela cena, o dire-
alinhar o teatro às outras formas de arte, no que tor poderá estudar os movimentos dos atores
diz respeito ao desenvolvimento das possibili- e, sem acrescentar um só homem aos quaren-
dades de representação, ou seja, de seu potenci- ta ou cinqüenta que você tem à disposição,
al estético. Para Craig, o ator deveria celebrar o deverá criar a impressão de um grupo mais
‘espírito do movimento’. numeroso.” (Craig, 1971, p. 16)

1 Os screens são painéis verticais giratórios concebidos por Craig. Cada face destes painéis deveria repre-
sentar um aspecto diferente da cenografia.
2 Importante nesse sentido foi o contato de Gordon Craig com os teatros orientais, em que o ator está
no centro de uma estrutura rígida, composta de códigos extremamente precisos.

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Já aqui é clara a utilização do termo mo- nobreza sobre o povo, este transformado em
vimento enquanto ações ou estruturas gestuais massa disforme.
produzidas pelos atores. O movimento, portanto, está no deslo-
camento espacial dos atores ou de outros ele-
“E como uma esfera é semelhante a uma ou-
mentos; está no desencadeamento dos proces-
tra, assim o Movimento é semelhante à Mú-
sos receptivos a partir das sugestões feitas pela
sica. Parece-me importante recordar que to-
cena; e está também na mobilidade do signo te-
das as coisas são desencadeadas pelo Movi-
atral presente na execução do fenômeno teatral.
mento, a Música também.[...] Os teatros de
Mais que um termo, o movimento é uma cate-
todas as partes, oriente e ocidente, evoluíram
goria central na poética de Craig, que será
a partir do Movimento, o movimento da for-
determinante para o alargamento das possibili-
ma humana.” (Craig, 1971, p. 28)
dades expressivas do teatro, pensado talvez pela
Para Craig, então, todas as coisas parecem primeira vez como forma de arte autônoma e
ser desencadeadas pelo movimento, e o movi- específica.
mento perfeito será “uma combinação entre o ***
movimento viril do quadrado com aquele femi- A obra de Craig, a partir das considera-
nino do círculo”. O único elemento a não do- ções feitas neste escrito, mereceria ser revista em
minar o movimento é o corpo humano, e por muitos aspectos. Longe de ser uma especulação
isso a necessidade da supermarionete. datada, sua prática e reflexão podem encontrar
Se retornarmos ao trecho citado anteri- fortes ressonâncias na cena contemporânea, seja
ormente, veremos que para Craig o fenômeno no que diz respeito ao fato teatral, seja no que
teatral deveria, no ato de sua criação, ser revisto diz respeito à atuação do ator. Através da mobi-
mais de uma vez a partir de cada elemento: luz, lidade do signo teatral, Craig parece ter deseja-
palavra, atores, etc. Tal ponto de vista mostra- do explorar ao máximo as possibilidades da
nos claramente que Craig tinha uma percepção cena; e a partir da supermarionete, Craig bus-
global do fenômeno, antecipando assim muitas cava não o autômato, mas o ‘super-humano’,
poéticas contemporâneas em que a vertica- capaz de produzir, através de um rigor absolu-
lização e a questão autoral estão presentes de to, precisas emanações sensíveis, geradoras das
maneira evidente. Além disso, podemos ver nes- experiências cênicas verdadeiramente significati-
se mesmo trecho a presença subterrânea do mo- vas. Neste sentido, Craig poderia ser considerado
vimento no processo de composição do fenôme- o antecipador do performer e de muitos dos pro-
no a partir de cada elemento. Este contínuo cedimentos presentes na cena contemporânea.
‘rever’ o objeto contém um movimento circu- No que diz respeito ao movimento, ape-
lar, de retorno. Este retornar ao todo a partir de sar da amplitude de suas utilizações, ele repre-
cada elemento possibilita, por sua vez, a opera- senta um eixo, um elemento fundamental para
ção de mobilidade dos signos. Um determina- a compreensão não somente da obra de Craig,
do conteúdo, por exemplo, pode ter diferentes como também de muitas manifestações ligadas
formas de representação, assim como uma re- às artes cênicas contemporâneas. A partir das
presentação pode veicular mais de um conteú- diferentes práticas e reflexões desenvolvidas por
do. Alguns conteúdos, neste sentido, podem ser Craig, que podem estar sintetizadas na abertura
melhor traduzidos pela luz, outros pela ceno- semântica proporcionada pelas diferentes utili-
grafia, outros pelos atores... Na encenação de zações do movimento, podemos reconhecer pos-
Hamlet no Teatro de Arte de Moscou Craig, síveis antecipações. A primeira delas está relaci-
utilizava o figurino (que, neste caso, devido às onada à imagem e à função do ator na cena.
suas proporções, passa a adquirir outras funções) Como já foi dito, o ator, para Craig, passa a
também para representar o poder exercido pela exercer um papel de criação, um papel autoral

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que envolve todos os elementos do espetáculo. wagnerianas. Os modos de concretização da


Este dado deveria superar as interpretações ‘obra de arte total’ deveriam ser outros. Wagner
banalizantes ligadas a uma possível ‘mecani- havia possibilitado a existência de um drama
cidade’ da supermarionete. Ele acreditava que o que revela a interioridade das personagens e fa-
‘ser’ que ocupa a cena deveria ser capaz de estar tos por meio da música, mas as relações entre
completamente integrado aos outros elementos os elementos do espetáculo impediam o pleno
do espetáculo, além de ser a verdadeira matriz manifestar-se da música.
de significações. Craig queria um corpo trans- Influenciado pelos movimentos de reva-
parente, que revelasse de maneira precisa as lorização do corpo e da natureza, sobretudo a
complexas artimanhas da mente. Parece ser este Lebensreform e a Körperkultur3, ele reconhecia a
o sentido das inúmeras referências feitas ao tra- necessidade de centralizar um elemento orgâni-
balho de Craig por diretores como Grotowski e co dentro do sistema da ‘arte total’. Segundo
Peter Brook. Ao contrário das reduções tecni- Appia, se um elemento orgânico não estivesse
cistas presentes em muitos estudos sobre Craig, ao centro deste processo, a desejada síntese en-
o movimento não é para ele somente o elemen- tre as artes não se daria. É neste ponto que o
to desencadeador do fato teatral. O movimen- ator, através de sua corporeidade, adquire um
to está presente já na esfera do humano, na ma- papel fundamental em suas elaborações.
nifestação de seus desejos mais profundos. A música, assim como para Wagner, ain-
da se mantém, para Appia, como sendo a for-
“Você é jovem e sentiu o desejo de movimento.
ma de arte que exprime mais diretamente a alma
Talvez discutiu com os pais aos dezoito anos
humana. Porém, para o artista suíço, no pro-
por que queria fazer teatro e eles não concor-
cesso de criação e materialização da obra, a pas-
davam. Talvez perguntaram a você por que
sagem entre a música e as outras formas de arte
queria fazer teatro, e você não pode dar uma
deveria ser intermediada pelo corpo do ator. Ou
resposta razoável, porque aquilo que gostaria
seja, é por meio da atuação do ator que os ele-
de fazer nenhuma resposta razoável pode ex-
mentos espirituais contidos na música seriam
plicar: você queria voar. Talvez você tivesse
‘traduzidos’ pelas outras formas de arte presen-
feito melhor se dissesse ‘quero voar’ ao invés
tes no espetáculo.
de pronunciar aquelas palavras assustadoras:
‘quero fazer teatro’.” (Craig, 1971, p. 4)
Figurino

2. Adolphe Appia: da música MÚSICA → ATOR → LUZ → Palavra



As principais fontes de estímulos para as elabo- Cenografia
rações do artista suíço Adolphe Appia foram a
obra e as reflexões de Richard Wagner. Porém,
se por um lado ele também via a música como Refletindo ainda influências de idéias
a maior das artes, por outro, ele não concorda- wagnerianas, para Appia, uma vez assimilados
va com as formalizações cênicas dadas às obras os conteúdos da música, o corpo do ator deve-

3 A Lebenreform, movimento social que tinha como objetivo um “retorno às forças regeneradoras da
vida”, sobretudo através da não utilização de carne e álcool na alimentação, contribuiu, por sua vez,
para o surgimento da Köperkultur, manifestação mais abrangente que prioriza a relação entre o homem
e a natureza.

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ria ser a expressão não da individualidade do ar- através dele que todos os elementos envolvidos
tista, mas de uma espécie de ‘corpo social’, o adquirem um sentido.
qual favoreceria a instauração de um evento que Por outro lado, se a cinética cênica, assim
seria antes de tudo comunitário. como a síntese diretorial e a busca de uma
Já a luz ocupa uma posição privilegiada teatralidade, deveria diferenciar-se do realismo
em relação à cenografia e o figurino, pois ela, a as une, vários são os aspectos que as diferenci-
luz tonal, possibilitaria, a partir do ator, a fusão am. Se Appia buscava, através do ator, o orgâ-
entre a cenografia, o figurino e as palavras. nico musical que reuniria a comunidade em
Também com relação ao espaço cênico, uma catedral do futuro, Craig buscava, através
Appia reconhecia a necessidade de uma trans- da supermarionete, o ‘inanimado’ que deveria
formação. Para poder dar vida à obra teatral, era refletir a essência das idéias e a complexidade
necessário não um espaço realista que buscasse dos processos mentais.
a ilusão, mas um espaço rítmico, construído a Apesar de poder ser considerado um elo
partir de princípios acústicos e ópticos. Tal es- entre as poéticas dos artistas examinados, tal re-
paço conteria elementos que se tornariam sig- conhecimento a respeito da cinética, porém,
nificativos a partir da relação com o ator. demonstra-se insuficiente diante de um exame
Mas, para que a obra de arte viva pudesse mais atento. Eleger a cinética como o elo acima
se materializar, era necessário servir-se do movi- mencionado pode desencadear ambigüidades,
mento. É a partir dos movimentos sugeridos pela uma vez que não é o movimento ‘em si’ o as-
música e materializados pelo ator e pelos outros pecto mais importante das práticas e elabora-
elementos que tal obra pode existir. Se o ator é ções de Appia e Craig.
o elemento primeiro de tradução da música, o Vimos como Craig recodifica o espaço
movimento é o regulador das fusões entre as ar- através de zonas de significação e revê procedi-
tes que coexistem no espetáculo. mentos de atuação, buscando, desta forma, no-
As elaborações de Appia, desta forma, vas possibilidades de materialização cênica. A
eram claras com relação ao funcionamento de mobilidade dos screens e das luzes assumia uma
seu sistema. Com relação ao ator, porém, ele função ‘emocional’ no espetáculo, ao passo que
reconhecia que estava diante de um impasse. O ao ator caberia a criação de gestos simbólicos e
artista suíço intuía a necessidade de uma práti- da musicalidade das palavras. Já em Appia, o
ca para o ator, uma ginástica que pudesse tornar ator, sendo o elemento orgânico do espetáculo
seu corpo o veículo de expressão dos variados por excelência, tem a função de captar e tradu-
matizes contidos na música. Não chegou, po- zir a riqueza espiritual da música, para então
rém, a elaborá-la.4 transmiti-la aos outros elementos da cena – o
figurino, a luz, a cenografia.
Se refletirmos mais atentamente sobre a
3. A cinética do invisível obra destes dois artistas, porém, veremos que o
elemento cinético não sintetiza a ‘razão de ser’
Através das idéias e práticas de Craig e Appia, de suas criações. Tal elemento é somente um
podemos considerá-los como os representantes meio que é gerado pelos verdadeiros motores
de uma poética que poderíamos denominar criativos de Appia e Craig. No caso do artista
cinética cênica. Para ambos, é através do movi- inglês, poderíamos dizer que, acima de tudo, é
mento que o fato teatral deve se concretizar; é a idéia o ponto de partida que instaura suas ne-

4 Somente a partir de seu encontro com E. Jacques-Dalcroze, Appia poderia ver materializadas algumas
de suas intenções artísticas, no que diz respeito ao performer.

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cessidades artísticas, como podemos constatar mente o símbolo, mas a materialização da idéia.
em seus escritos. Diversamente, em Appia é a E Appia, por sua vez, busca tornar visível a mais
música, e mais especificamente a música de invisível das artes, a música. Portanto, não é a
Wagner, o núcleo gerador de suas elaborações. valorização do movimento, simplesmente, o as-
Neste sentido, diferentes são as matrizes que pecto unificador das obras dos dois artistas
utilizaram, nesses casos, a cinética como instru- examinados, mas, sim, a função de materializar
mento de materialização cênica. matrizes invisíveis. Nestes casos, a idéia e a música.
No entanto, se as matrizes citadas dife- Não seria, portanto, a cinética ‘dos cor-
renciam-se, um outro elemento une-as nova- pos’ o motor do fato teatral para ambos, porém
mente: o invisível. Buscando a sugestão, o a cinética do ‘invisível’.
impalpável, o espiritual, Craig não persegue so-

Referências bibliográficas

CRAIG, E.G. Il mio Teatro. Milano: Feltrinelli, 1971.

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