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Desenhando doenças1

Nenhuma classe de doenças que afligem o homem é tão variada em suas manifestações
do que aquelas conhecidas sob o termo geral de ‘insanidade’. Nenhuma doença
apresenta tal variedade de luz e sombra.. e portanto o diagnóstico de nenhuma outra
classe de doenças taxa tanto a engenhosidade e a paciência do médico
(John Charles Bucknill, superintendente, Devon County Lunatic Asylum, 1858)

Existem duas formas de criar novas doenças na psiquiatria. A primeira é a lenta cristalização de uma
ideia por longos períodos de tempo em um fluxo de convergência. Um consenso clínico parece
congelar através de diferentes culturas de forma que isso e aquilo representa uma doença real. Essa
cristalização pode ser vista como formando um ponto nodal. Então, repentinamente, o nó torna-se
uma realidade e todo mundo concorda que ele existe. Até o momento em que não existem mais. A
mania delirante é um exemplo perfeito disso.
A outra aproximação é o decreto do Grande Homem: um titã decide reformar toda a classificação de
doenças de um campo, e por virtude de seu prestígio e peso escolástico consegue impô-la ao resto.
Emil Kraepelin, no fim do século XIX, e Robert Spitzer, o arquiteto do DSM-III em 1980, são
exemplos perfeitos disso.
Nenhum desses métodos é perfeito. Um fluxo de convergências pode carregar algum conceito
estranho e com base estritamente cultural, como “histeria”, consigo. Ou o Grande Homem, agindo
por capricho, pode impôr algo ridículo ao campo que gerações posteriores podem esquecer – ou
não. A doutrina da “inveja do pênis” de Sigmund Freud – a crença de que “quando a menina
descobre que o menino possui um órgão genital que ela não possui”, como explicava o principal
dicionário de psiquiatria de 1940, “ela passa a invejar o menino e desejar ter um pênis” – seria um
bom exemplo. Essa crença foi durante muito tempo amplamente aceita na psiquiatria como uma
explicação para a “psiconeurose” em mulheres. Já não o é.
Como o processo de desenhar uma doença desenrolou-se com o tempo?

O desenho das doenças se inicia


Descrever novas doenças está entre as tarefas mais difíceis. Os pacientes não vêm ao médico com o
nome de sua doença. Eles reportam um conjunto disperso de sintomas, sentimentos, e experiências.
Mas a que doença essas queixas correspondem? Existem alguns testes laboratoriais e biomarcadores
em psiquiatria, mas não são muitos. Como podemos descobrir o que escrever na prescrição e no
prontuário? A questão é importante, porque a regra em medicina é que não há prescrição se não
houver diagnóstico. Entretanto, qual é a doença do paciente? (Hoje usamos o termo “transtorno”,
uma espécie de trapaça). Em 1849, Luther V. Bell, médico-chefe do Asilo McLean Para os Insanos
no subúrbio de Boston, lamentou a dificuldade de escavar uma nova entidade de doença “a partir da
massa de detrito – de conglomerados confusos e irregulares de aparência amorfa, separando-a do
peso das questões incidentais, e então apresentá-la de forma que outras pessoas podem se satisfazer
1 Traduzido de: SHORTER, E., What psychiatry left out of of the DSM-5. Historical mental disorders today, pp.
10-25. Nova Iorque: Routledge, 2015.

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de sua individualidade genuína”. De fato, isso é tão difícil de fazer que hoje temos muitas dúvidas
sobre se estamos fazendo da maneira correta, apesar de todo o alvoroço que acompanha o
lançamento de cada edição do Manual Diagnóstico e Estatístico da American Psychiatric
Association (DSM), agora em sua quinta edição.
Durante a primeira metade do século dezenove, o francês – a língua de Pinel e Esquirol – era a
língua da psiquiatria. Pelo período de 1861, quando foi publicado o livro de Wilehm Griesinger que
dominou o campo, a 1933, o alemão era a linguagem da psiquiatria. E o foco fortemente biológico
da psiquiatria alemã significava que doenças do cérebro em vez de sofrimento psíquico davam o
tom do diagnóstico. Como escreveu o psiquiatra Wendell Muncie, após passar um ano na Alemanha
de 1934 a 1935 como bolsista da Fundação Rockefeller: “a psiquiatria americana reconhece na
Alemanha o domínio da ideia de entidade de doença, no qual a doença psiquiátrica é praticamente
sinônima à doença do cérebro… em geral, assumem que essa ‘doença’ ataca o corpo, enquanto os
fenômenos mentais são só consequências secundárias”.
A psiquiatria americana, por contraste, ainda estava emaranhada com as “reações” postuladas pelo
suíço Adolf Meyer, professor de psiquiatria na Johns Hopkins University e promotor do conceito de
que doenças mentais eram “reações” a problemas da vida, cada caso sendo individual e pouco
passível de generalização. Assim, a aproximação germânica emprestava-se bem à especificação de
doenças variadas envolvendo sintomas mentais que tinham origem presumivelmente cerebral. Não
está longe do que acreditamos hoje, com nossa confiança de que diferentes neurotransmissores
estão na raiz de diferentes transtornos.
De fato, existiam, de Berlim a Viena, vinte e sete universidades germanófonas com departamentos
de psiquiatria, quase todas com um hospital psiquiátrico universitário dedicado. Contraste isso com
a França e sua única grande universidade centralizada em Paris, e diversas escolas satélite
insignificantes de psiquiatria nas províncias, ou com o Reino Unido, que se gabava de Londres,
“Oxbridge”, Edimburgo e Dublin com professores mal pagos e sem laboratórios. Fica claro que esse
desembarque maciço do poder de fogo germânico levou à predominância teutônica no campo, e à
aproximação distintivamente orientada para a doença ao diagnóstico psiquiátrico.

Cortando a “insanidade” em pedaços


Conforme olhamos, com estrelas nos olhos, para o DSM atual, com suas centenas de diagnósticos,
podemos sentir o apelo dos sistemas anteriores. Mesmo antes de Kraepelin, os psiquiatras estavam
inclinados à classificação das doenças, e seus esforços não são sem interesse. Mas um parêntese
preliminar é necessário: a história do que aconteceu na história contradiz a narrativa usual da
descoberta médica, na qual algum novo insight é ligado a um artigo-chave de um dado indivíduo
em uma dada data. Assim, “Kasanin, 1933” seria a citação-padrão para a “descoberta” da psicose
esquizoafetiva, e a afirmação de que sintomas psicóticos e depressivos podem coexistir no mesmo
paciente. No entanto, esse tipo de “grande salto avante” ignora o fato de que, por décadas, os
psiquiatras vinham descrevendo pacientes psicóticos cujas doenças se iniciaram com a depressão,
que eram psicóticos e depressivos ao mesmo tempo, e que estavam deprimidos após a resolução de
suas psicoses. É um tema vasto, em outras palavras, e seria impossível dizer quem foi o primeiro a
“descobri-lo”. Um consenso acerca da questão ascendeu no campo com o tempo. De forma similar,
na classificação das doenças não houve um único indivíduo que “descobriu” que a loucura pode ter

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um componente afetivo, que fazia mais sentido classificar as doenças com base no curso e
desfechos ao invés de um quadro clínico momentâneo, e que uma forma agitada da “mania” não era
realmente mania (que terminou entendida como euforia patológica), mas um tipo de fúria violenta,
reminiscente da catatonia. A sabedoria coletiva de dúzias – se não de centenas – de autores
acumulou-se em uma grande torrente da qual esses insights lentamente emergiram. É esse o tipo
saudável de “consenso” da vida médica; a variedade não-saudável surge quando um grupo de
especialistas faz uma troca de favores, como ocorreu na série dos DSMs, encontrando, em um
espaço de horas ou dias, alguns poucos pontos com os quais todos no grupo – ou pior, todos
participando de um jantar – finalmente concorda. Essa troca de favores estava patente na criação do
DSM-3, como os arquivos da American Psychiatric Association revelam. Robert Spitzer, o
classificador-chefe, rejeitou o diagnóstico de “disforia histeróide” proposto por Donald Klein, mas
Klein era uma figura influente, e eles tiveram que dar algo em troca. “Don insistiu na inclusão do
transtorno de pânico e no transtorno de ansiedade generalizada”, disse Paula Clayton em uma
entrevista posterior. “O TAG entrou porque eles não cederiam a disforia histeróide a Don”.
Em teoria, os primeiros classificadores de doenças basearam seu trabalho no conceito de mente
tripartite da Antiguidade, que durante séculos a entendia como a união de mente, sentimentos, e
vontade. De grande influência na Alemanha eram as categorias do filósofo Immanuel Kant:
sensibilidade, entendimento, imaginação. Kant não era psiquiatra, mas entre os psiquiatras do
século dezenove a mente de três partes ganhou uma quarta parte. Da maneira como Emil Kraepelin
via as divisões da mente em 1896, existiam “transtornos da percepção”, “transtornos do
entendimento” (entendido como intelecto), “transtornos da vida afetiva”, e “transtornos da vontade
e da ação”.
Também haviam os aglomeradores e os divisores. Os primeiros classificadores influentes, o
psiquiatra de Leipzig Johann Heinroth e o psiquiatra parisiense Philippe Pinel, posicionaram-se em
pontos opostos do espectro. Heinroth era um divisor que dividia coisas em muitas doenças; Pinel, o
aglomerador, as dividia em quatro.
Em 1809, Pinel, então médico-chefe no Salpêtrière, um hospício para mulheres que incluía uma
divisão psiquiátrica, afirmou existirem quatro tipos de insanidade ou psicose (délire): mania,
melancolia, demência, e idiotia. Entretanto, com esses termos ele significava algo bastante diferente
do uso que hoje damos a eles:

1. A mania acreditava ser um transtorno geral do pensamento, com o paciente preso em uma
agitação furiosa ou emaranhado em um sistema delirante extravagante, como acreditar que é
Maomé. Pinel assim juntou delírios fixados e sistematizados com graus elevados de agitação
(Pinel fazia uma distinção crucial entre “mania com psicose” [manie avec délire] e mania
sem psicose, a última correspondente ao tipo de furiosa raiva que seria mais tarde chamada
de “mania delirante”).
2. A melancolia era um delírio fixado sobre algum tipo de objeto em particular, uma crença
paranoica, por exemplo, de um paciente de que outras pessoas planejavam envenená-lo no
passado (mas que também inclui a forma clássica da melancolia que poderia levar ao
suicídio).

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3. A demência era a ausência de pensamento ordenado ou juízo: “Ele entra no quarto.
Rapidamente moveu ou revirou toda a mobília; ele pega uma mesa, uma cadeira, a agita, e a
retira do quarto, sem um plano ou intenção direta”.
4. A idiotia era a ausência completa de pensamento, como no estupor, e aproxima-se mais do
que pensamos como esquizofrenia. Alguns de seus pacientes tinham uma condição que
lembra o que depois era chamado de estupor catatônico.

Por contraste, Johann Heinroth, em Leipzig, produziu uma nosologia mais extensa que combinava a
divisão tripartite da mente com o tipo de preocupação moral então característica da psiquiatria
alemã:

1. Insanidade (Wahnsinn), significando “falta de liberdade do humor ou sentimentos”


(Gemüth), com delírios e alucinações psicóticas. Poderia transformar-se em melancolia.
2. Delírios (Verrücktheit), significando “falta de liberdade da mente”, com pensamentos
desordenados. Poderia transformar-se em demência, com ausência de pensamentos.
3. Mania (Tollheit), significando “falta de liberdade da vontade”, com um desejo de destruição.
Uma vontade “deprimida” seria incapaz de tomar decisões.

Mais conhecido como nosologista do que Pinel era seu estudante Etienne Esquirol, médico-chefe do
asilo estatal de Charenton, um subúrbio de Paris, que, a partir de 1816, produziu diversos
diagnósticos sólidos, descendentes dos quais ainda estão conosco. Esquirol diferenciou a
“monomania”, transtornos delirantes fixados que não apresentavam humor melancólico, e
“lipemania”, com o qual referenciava humor melancólico com agitação. A monomania e a
lipemania representam o início da descrição moderna das doenças psiquiátricas.
Os sistemas de Pinel, Esquirol, e Heiroth deram origem a toda a indústria da nosologia dos meados
do século dezenove. Muitos dos sistemas eram bastante diretos. Henry Monro, quinta geração em
uma linhagem de famosos psiquiatras, era chefe no hospital mental de St. Luke em Londres, um dos
primeiros asilos terapêuticos. Em 1851, Monro afirmou que a classificação era algo bastante
simples: “a insanidade ativa crônica é a condição de uma grande parcela dos internos de um asilo de
lunáticos”. Havia um estágio agudo sobreposto, a “mania aguda”, e um estágio muito crônico sob
ela, a “imbecilidade sem esperança”. E só.

A desorientação anglo-americana
Edimburgo era uma fonte particular de refinamentos novos e cada vez mais caprichosos. David
Skae, médico superintendente do Royal Edinburgh Asylum, procurou, em 1873, produzir uma
classificação baseada em “causa” e – adivinhem só! – chegou a causas principalmente sexuais e
reprodutivas. Propôs a “insanidade da masturbação”, a insanidade da “satiríase e da ninfomania”, a
“insanidade histérica” – significando a insanidade, em mulheres, causada pela masturbação – a
“insanidade amenorréica”, e a “insanidade pós-conubial, ou insanidade que se segue das relações

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sexuais. A classificação de Skae causou tantos conflitos entre os colegas que se diz que a causa da
nosologia na Grã-Bretanha atrasou-se uma centena de anos.
O psiquiatra e neurologista Edward Spitzka, de Nova Iorque, um cuidadoso autor que foi
injustamente ignorado pelos historiadores, cansou-se das classificações infindáveis. Em 1883, ele
lamentou a duplicação causada pela separação da insanidade ideacional da insanidade afetiva – em
outras palavras, o intelectual do emocional. Alguns escritos foram obrigados a listar “mania” e
“melancolia” duas vezes, porque esses transtornos apresentavam componentes intelectuais e
afetivos. Ele ridicularizou a classificação que os ingleses adotaram em 1869 e que dividia
insanidade em “curável” e “incurável”. Achava Skae ridículo. Spitzka chamou atenção à magnitude
do problema:

Aqui temos um paciente cuja insanidade é caracterizada por um profundo matiz emocional, ali
um com perversão moral, acolá outro com propensões mórbidas, e ainda um outro com ideias
fixas. Aqui todo um grupo de internos do asilo sem alucinações, ilusões ou delírios; lá, outro
grupo com demência… O curso dessa psicose é crônico, daquela é agudo; enquanto em alguns é
estável, em outros é progressiva. Em certos casos encontramos evidências características de
insanidade em cadáveres, em outros não… Resumindo, existem todas as associações possíveis
de fatores a distinguir diferentes grupos de insanos, e nenhum desses pode ser totalmente
ignorado na classificação. Por essa razão, todas as tentativas de classificar a forma de
insanidade de acordo com qualquer princípio invariável estão predestinadas à falha.

Mas essa avaliação era negativa demais.

A primeira classificação internacional


A primeira classificação internacional de doenças na psiquiatria foi criada na época da Exposição
Internacional Universal em Paris, em 1889. Simultaneamente, os franceses organizaram um
Congresso Internacional de Medicina Mental, que deveria criar uma classificação única das
doenças, comparável aos documentos posteriores da Organização Mundial da Saúde.
Houve uma consulta preliminar em que se pediu a cada país que submetesse suas ideias. Em
setembro de 1886, os rascunhistas americanos, liderados por Clark Bell – que tinha sido o delegado
americano em um encontro anterior na Antuérpia –, encontraram-se em Saratoga para produzir um
documento altamente convencional que desenvolveu a questão pouco além do ponto onde Pinel a
deixou em 1809. Haviam mania e melancolia – nenhum desenvolvimento além de Pinel aqui (ainda
que o grupo de Saratoga as tenha dividido nas categorias previsíveis de aguda, crônica, e
recorrente); a demência e a idiotia foram incluídas, como em Pinel. Pinel não conhecia a
neurosífilis, mas a “paralisia geral do insano” estava lá – ainda não se sabia que sua causa era uma
infecção. A única diferença de Pinel era a “monomania” de Esquirol, ou transtorno delirante, que
Esquirol lançou em 1819.
Sob a liderança de Jules Morel de Ghent, o grupo belga propôs em 1889 uma classificação muito
mais sofisticada que incluía um termo precursor para a insanidade em jovens que decai rapidamente
(mais tarde chamada de esquizofrenia), chamada de “psicose progressiva sistemática”. O transtorno
delirante crônico estava lá; também o estavam as “insanidades nervosas”, referindo-se à histeria,

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hipocondria, epilepsia, “e assim por diante”. A “insanidade moral e impulsiva” foi incluída, e mais
tarde se sucederia nos transtornos de personalidade, e, obviamente, também estavam lá a mania e a
melancolia. Existiam onze categorias no todo. O sistema pineliano de aglutinar aos invés de dividir
ainda tinha força.

Curso
Enquanto isso, Karl Kahlbaum estava trabalhando obscuramente no asilo do leste prussiano em
Allenberg. Em 1863, então com 35 anos, Kahlbaum anunciou que havia de fato um princípio
unificador: o curso.
Classificando as doenças com base no curso e no desfecho, ao invés dos sintomas, é uma das
grandes conquistas da psiquiatria moderna, porque o desfecho – seja a recuperação, seja a demência
– diz muito, de fato, sobre a natureza da doença. Mesmo que outros autores tenham falado sobre a
importância do curso e do desfecho, Kahlbaum foi o primeiro a demonstrar que essas variáveis
podiam organizar quase todo o espectro das doenças psiquiátricas. Com base nessas variáveis,
Kahlbaum dividiu as doenças em três categorias (infelizmente, ele cunhou seus próprios
neologismos para quase tudo, tornando o seu trabalho não muito acessível):

1. As “vesânias”, termo familiar para uma doença séria: “um processo de doença rapidamente
progressivo que mesmo nos estágios iniciais afeta quase toda a vida psíquica”. Se a
recuperação não ocorresse, as vesânias terminavam em debilidade mental. A vesânia típica
progrediria em estágios, iniciando com a melancolia, passando pela mania e psicose, e
terminando em demência.
2. As “vecordias”: iniciando na puberdade, incluíam os transtornos de humor maiores e a
paranoia. Elas estabilizavam após alcançar um pico.
3. As “disfrenias”: baseadas em doenças corporais, carregando uma impressão de recuperação
mas sujeitas a recaída. Em linguagem moderna, seriam chamadas de psicoses sintomáticas.

A terminologia de Kahlbaum não era familiar, e boa parte dela foi abandonada. Mas o conceito de
diferenciação através do curso teve um impacto duradouro na psiquiatria e ecoa até nossos tempos.

Forma, mais que conteúdo


Assim como muito na história da classificação psiquiátrica surgiu lentamente em vez de através de
um único artigo seminal, por décadas acumulou-se a consciência de que fazia mais sentido
classificar as doenças com base na forma do que no conteúdo. Previamente, Esquirol e seus
estudantes haviam descritos longas listas de monomanias, ou transtornos delirantes, focando-se em
um dado objeto, como se fossem doenças distintas em vez de aspectos de uma forma maior, que
seria o de crenças falsas fixadas de qualquer tipo. Esquirol, por exemplo, distinguia em 1819 entre
“erotomania”, “ninfomania”, e assim por diante. Seguindo Pinel, as chamava de “insanidades
parciais”, em vez de loucura generalizada plenamente desenvolvida.

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Então começou a ficar claro que a forma triunfava sobre o conteúdo. É interessante notar quão lenta
é essa percepção, de perto e de longe. De longe: em 1848, Franz Richarz, que quatro anos antes
havia fundado um sanatório privado em Endenich, perto de Bonn (e que não era muito conhecido),
disse:

A principal causa da confusão de visões [sobre o diagnóstico] na psiquiatria tem sido, desde o
nascimento do campo, a tendência a focar a visão no conteúdo dos fenômenos psíquicos
patológicos, a concentrar-se no assunto simples… Mas há necessidade, na pesquisa e na
doutrina psicológicas, de se concentrar nas formas básicas da doença psíquica, especialmente no
âmbito em que correspondem a condições patológicas do cérebro.

É claramente uma defesa inicial da predominância da forma.


Na França, Jean-Pierre Falret, psiquiatra chefe da seção de mulheres do Hospício de Salpêtrière, era
uma figura enormemente influente. Em 1864, ele ridicularizou a ideia de Esquirol de “insanidade
parcial”, e afirmou que esta dava origem à classificação de monomanias supostamente parciais com
base no conteúdo:

monomanias intelectuais, afetivas e instintivas, ou ainda, de acordo com as ideias do tempo,


monomanias ambiciosas, monomanias eróticas e místicas, delírios de perseguição; ou,
finalmente, com base nas ações, monomanias de assassinato, suicídio, incêndio, roubo, etc. Eu
acredito que essas distinções são anti-científicas, e apoiam-se em fenômenos secundário que são
frequentemente acidentais.

Chegar ao cerne da doença por si só daria origem a uma classificação apropriada, ele dizia.
A preferência pela forma em detrimento do conteúdo ganhou força com os anos e finalmente
culminou no grande trabalho em psicopatologia do psiquiatra (e posteriormente filósofo) de
Heidelberg Karl Jaspers, em 1913, e acredita-se amplamente, ainda que incorretamente, que Jaspers
originou essa doutrina. De fato, Jaspers escreveu “Principalmente as formas têm mais interesse para
o psicopatologista. Os conteúdos parecem comumente mais acidentais e inteiramente individuais”.
Mas ele não foi o primeiro (nem o último: em 1956, Kurt Schneider, agora professor em
Heidelberg, ainda fazia a distinção entre o “como” e o “o que” – forma e conteúdo – para alfinetar a
psicanalise e seu interesse no “conteúdo”).
Toda a mudança de ênfase de forma para conteúdo – que agora ameaça ser revertida com
diagnósticos ultramodernos do DSM-5 focados em conteúdo, como “transtorno de acumulação” – é
uma ilustração perfeita de como a lenta germinação na psiquiatria, e no mundo da mente no geral,
das ideias em conceitos que ascendem gradualmente de uma sementeira em vez de surgirem
subitamente com um artigo seminal.

Emoções

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As “paixões” foram descobertas no século dezoito, mas o século dezenove foi o século das
emoções. As pessoas se orgulhavam de estarem infinitamente mais afinadas à sensibilidade do que
os povos coloniais que o canto noroeste da Europa estava subjugando, ou do que os europeus que
viveram em períodos anteriores. Em seu Dissertation on the Influence of the Passions de 1788, o
médico londrino William Falconer marcou essa transição da paixão para a sensibilidade. Sobre o
tema da “histeria” que se dizia assolar o gênero feminino, Falconer dizia “uma sensibilidade
antinatural e mórbida é comumente encorajada pela ideia de delicadeza e sentimentos ternos”. A
leitura de novelos, costumava-se afirmar, aumentava essa sensibilidade patológica.
Ainda assim, a sensibilidade era normalmente considerada uma virtude enobrecedora. Em 1858, o
psiquiatra de asilo John Charles Bucknill e o psiquiatra acadêmico Daniel Hack Tuke, um membro
da famosa dinastia psiquiátrica dos Tuke, produziu uma verdadeira apoteose dessa auto-
congratulação: “existe uma agudeza de sensibilidade”, eles escreveram, “uma susceptibilidade das
emoções, uma intensa atividade dos sentimentos, que parece ser peculiar a vida altamente
civilizada”. Esse juízo, obviamente, era uma calúnia monstruosa a todos que viveram antes da era
romântica, ou fora de seu alcance. Ainda assim, o ponto é que esses europeus do século dezenove
viam a si mesmo como altamente sensíveis, e consequentemente caracterizaram os transtornos das
emoções como o lado patológico da civilização.
O que jogou de lado essa visão inicial da insanidade como “doenças do intelecto” foi a descoberta
no século dezenove do sentimento. A “loucura” sempre foi vista como pensamentos insanos, e a
insanidade era a insanidade das ideias, não dos sentimentos. Mas o século dezenove, em seus dois
primeiros terços, é o século romântico, o século que valorizava as emoções junto com a
racionalidade. E também a psiquiatria descobriu a insanidade das emoções, que hoje iríamos
distribuir entre os transtornos de humor e de personalidade. Henry Maudsley, o professor de
jurisprudência médica do University College London, não foi o primeiro a descobrir os transtornos
das emoções, mas acertou em cheio em 1874 ao discutir as consequências legais da “doença
mental”: “Carecemos muito de um termo para denotar sentimentos insanos, que deverão carregar
um significado tão distinto na esfera moral e transmitir uma noção de perturbação mental tão
definitiva quanto o termo ‘delírio’ quando aplicado a uma ideia insana”. O “delírio”, ele dizia, era o
termo que os advogados entendiam marcar a insanidade. “Quem ajudará o seu entendimento pela
invenção de um termo que, se aplicado às condições mais fundamentais do sentimento insano e da
vontade insana, os permitirá perceber e falar sobre esses estados?”
Assim, na nosologia que estava se cristalizando, escrever sobre emoções insanas começaria a
ocupar um lugar de proeminência, um conceito que em nossa própria época perdemos de vista,
exceto na noção de uma personalidade patologicamente desorganizada. Entre os primeiros autores a
se ocupar dessa ideia de um transtorno das emoções estava James Prichard, de Bristol, que originou
a doutrina da “insanidade moral”, que significava o comportamento irracional na ausência de
psicose. Prichard disse, em 1835: “A intensidade excessiva de qualquer paixão é um transtorno em
um sentido moral [psicológico]”.
Como a oposição à escravidão ou a busca pelo sufrágio feminino na cultura geral, esse foi um
conceito que demorou bastante a penetrar na cultura da psiquiatria, tão acostumados estavam os
psiquiatras a lidar com o tipo de loucura da mente que exigiria a admissão a um asilo. O psiquiatra
Jean Christian, então funcionário do asilo Montdevergues no departamento de Vaucluse, disse em

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1876 que os franceses sequer tinham uma palavra para o conceito de que “a insanidade… não é
somente um transtorno da inteligência. Esse transtorno da inteligência não existe só; adicionados a
ele estão transtornos do sentimento [sensibilité] e do movimento”. Sentimentos e emoções
constituem “la sensibilité morale” (“moral”, nesse contexto, refere-se à psicologia, não à
moralidade). “É certamente lamentável”, continuou Christian, “mas a língua francesa não possui
uma palavra para designar essa consciência íntima reconhecida pelos fisiologistas tanto quanto
pelos philosophes… os alemães têm uma palavra para isso; é Gemüth… os ingleses a chamam de
‘moral’”.
Assim, os conceitos de humor e Gemüth demoraram a se estabelecer ao lado de “loucura”. E cada
autor individual que descobriu as emoções escreveu como se ele (ai de mim! Ainda não elas) fosse
o primeiro. Aqui está o que Carl Flemming, diretor do asilo de Saschenberg na Alemanha e entre os
primeiros a usar o conceito de “psicose”, escrevia em 1859 sobre a forma como a loucura viaja: do
intelecto às emoções, ou das emoções ao intelecto:

[A doença] começa com uma desarmonia inicialmente subjugada mas cada vez menos passível
de confusão na área do sentimento corporal, que aumenta, torna-se cada vez mais geral, e joga
toda a capacidade de sentir em uma disposição anormal. O transtorno psíquico começa aqui…
Logo essa disposição não-usual afeta o humor… A depressão da capacidade de sentir aumenta
gradualmente, de forma que a mente, o intelecto e a razão, ainda que nesse ponto não estejam
afetados, não são mais capazes de dominar essas desarmonias do sentimento, de fato sujeitando-
se a elas, e sendo varridas junto com o transtorno. Agora toda a vida psíquica… está
emaranhada com o transtorno… A insanidade do humor é acompanhada da insanidade do
pensamento [Zu dem Irrfülen gesellt sich das Irrdenken].

Ainda assim, o conceito de doença emocional tinha um prestígio que a loucura não possuía: os
transtornos do humor não eram necessariamente hereditários, e portanto eram menos aterrorizantes
do ponto de vista de evitar uma reputação familiar por “sangue ruim”. Os sanatórios privados
rapidamente capitalizaram em cima desse prestígio em sua busca por pacientes. Em 1858, o
Sanatório Hertz em Bonn, o sanatório Engelken em Bremen (os Engelkens eram uma família que
reviveu ópio como tratamento para depressão), e o sanatório na cidade ocidental de Görlitz, que
logo seria adquirido por Karl Kahlbaum, estavam todos propagandeando tratamentos para pacientes
com transtornos das emoções (Gemüth). Consequentemente, na prática as emoções passaram a
significar qualquer coisa que não era loucura, em oposição aos nossos conceitos específicos de
humor, que é uma emoção que dá colorido à vida e vai da elação à depressão. Em 1882, Heirich
Laehr, que ele próprio administrava um grande sanatório privado em Berlim, comentou sobre como
era agradável que tais instituições não fossem mais referidas como “asilos para insanos”:

Agora que tomamos o amplo campo dos transtornos emocionais [Gemüthskrankheitein] –


histeria, hipocondria, neurastenia – em resumo, todas as doenças do sistema nervoso geral que
raramente não tem influência sobre a função psíquica… o nome “asilo para insanos” não mais
corresponde a realidade.2

2 Heinrich Laehr, Die Heil- und Pflegeanstalten des deutschen Sprachgebietes, nova ed. (Berlin: Reimer, 1882), iii–
iv. Em alemão, Gemüth (Gemüt) tinha na época diversos significados, indo de qualquer doença mental das emoções
não envolvendo o intelecto, até uma referência específica à melancolia. Os “transtornos afetivos” não traduzem

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Assim, o Gemüth trovejou sobre a psiquiatria europeia. Em 1852, Joseph Guislain, professor de
psiquiatria em Ghent e um dos principais arquitetos das doenças no mundo francófono, disse:
“Todas as melancolias representam uma lesão de um sentimento, uma afecção dolorosa”. Ele
considerava as doenças melancólicas não como uma forma de loucura – a visão tradicional – mas
“um exagero mórbido de qualquer sentimento de tristeza”. Guislain prestou reconhecimento aos
alemães: “[A melancolia] é, com toda a força do sentido, um transtorno das emoções
[Gemütskrankheit] no sentido dos psiquiatras alemães”.
Ainda que a psiquiatria americana desses anos era uma pequena cauda abanada por um grande cão
europeu, também nos Estados Unidos esse interesse nas emoções subiu à superfície. Se a insanidade
era principalmente uma perturbação da função intelectual, perguntava Henry Hurd em 1886, então
superintendente do Asilo do Michigan Ocidental em Pontiac (três anos depois tornar-se-ia professor
de psiquiatria na Johns Hopkins University), porque então as emoções saem tão facilmente dos
eixos? “A explicação”, ele disse, “não está tão distante. As emoções estão na superfície e estão
desassociadas da vida intelectual, mas proximamente aliada à vida ativa, executiva ou volicional da
pessoa, e portanto muito mais facilmente agitadas do que as faculdades intelectuais”. Isso era
especialmente verdadeiro, dizia, “em pessoas que não possuem muita cultura ou treino mental, que
pensam raramente mas sentem muitas vezes ao dia”. Assim, distúrbios emocionais podem manter-se
muito depois que o paciente se torna livre dos delírios, e de fato “podem nunca passar inteiramente,
e a recuperação é perfeita em todos os particulares exceto esse”.
Deve-se dizer que nem todos estavam contentes com essa articulação saindo da “insanidade” na
direção das “emoções”. Caspar Max Brosius é uma figura interessante. Ele administrava um
sanatório privado dado ao “cuidado israelita”, fundado em 1870 em Bendorf, próximo a Coblenz,
por seu padrasto, Meyer Jacoby, o único sanatório privado, até onde sei, que atendia
especificamente judeus ortodoxos, ainda que ele aceitasse pacientes não-judeus. Mesmo que o
próprio sanatório fosse dedicado a cuidar de “pacientes com transtornos nervosos e de humor”,
Brosius era bastante dúbio em relação à questão do humor, e considerava doenças mentais sérias
somente àquelas do pensamento, não do humor. Ele disse, em 1894, com 69 anos, três anos antes de
se aposentar como médico-chefe:

Mesmo as pessoas educadas e instruídas ainda não entenderam que “caráter”, “humor”, e
“vontade” não são qualidades independentes da mente, junto com o pensamento e a
compreensão, mas são tão somente abreviações para processos e relações do pensamento, a
única atividade mental [existente]. Certas mudanças no caráter, transtornos de humor, e
perversões da vontade são nada mais do que transtornos do pensamento, fenômenos da doença
mental.

adequadamente, e não existe equivalente exato em inglês. Délire, em francês, tinha um espectro similar, indo de um
termo genérico para insanidade ou psicose até o significado moderno de delirium, uma condição orgânica do
encéfalo envolvendo a inabilidade em fixar a atenção em conjunto com o pensamento desorganizado. O termo
“Gemüth” significava, no alemão do século dezoito, “emoções”, ao invés de humor, e Gemüthsbewegungen eram
consideradas formas de expressividade emocional ou literária. Ver o texto do professor de filosofia de Halle, Georg
Friedrich Meier, Theoretische Lehre von den Gemüthsbewegungen überhaupt (1744), rev. ed. (Halle: Hemmerde,
1759)

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É claro que não podemos conhecer a história prévia aqui, mas chutaria que Brosius adimitiu um
grande número de judeus de origem no Leste Europeu que apresentavam transtorno maníaco-
depressivo sério – uma ocorrência não infrequente nessa população. As famílias, claro, todas
acreditavam que “a mudança de caráter” era a culpada. Mas Brosius deve ter passado por maus
bocados para convencer os próprios pacientes que seus sentimentos por suas famílias e entes
queridos eram perfeitamente normais, e que, sob os cuidados de seu sanatório, seus pensamentos
seriam corrigidos também.

Kraepelin
Na medida em que essa história tem heróis – em vez de idiotas e metidos –, é Emil Kraepelin, o
ácido e abstêmio alemão do norte atravessando pudicamente a Bavaria encharcada de cerveja, quem
é esse herói. Com seu famoso livro-texto, a partir de 1883 Kraepelin desenvolveu a primeira
classificação moderna das doenças psiquiátricas; muitos elementos foram incorporados no DSM, e
Kraepelin agiganta-se hoje sobre o campo como certa feita o fez Freud. Nascido em 1856, o mesmo
ano de Freud, Kraepelin estudou medicina na cidade enólatra de Würzburg, mas treinou-se na
psiquiatria em Munique com Bernhard von Gudden, famoso por ter sido arremessado ao fundo do
Lago Starnberg pelo louco Rei Ludwig II da Bavaria. Kraepelin tornou-se professor de psiquiatria
em Dorpat (Tartu), na Estônia, em 1886, com 30 anos, e então conquistou as prestigiosas cadeiras
de psiquiatria em Heidelberg e Munique, onde morreu em 1926.
Kraepelin tomou a ideia de Karl Kahlbaum de distinguir as diferentes doenças psiquiátricas umas
das outras com base no curso, ao invés do quadro sintomático atual, uma ideia que abordou já em
1892, quanto, em um encontro, recomendou que as doenças fossem estudadas através de grupos
pequenos e homogêneos de pacientes que apresentassem a mesma etiologia, curso, duração, e
desfecho. Ele foi auxiliado, nesse empreendimento, por resumos de uma página sobre cada um de
seus pacientes, que deram a ele uma visão geral da história do paciente. Ele então organizou esses
resumos em pilhas com base no desfecho: aqueles pacientes cujo curso tendia a deteriorar
progressivamente e pareciam apresentar principalmente deterioração da personalidade; os
chamaremos de dementia praecox, demência prematura (Eugen Bleuler batizou-a de esquizofrenia
em 1908); e os pacientes cujo curso ondulam sem necessariamente deteriorar e parecem apresentar
principalmente sintomas de humor; os chamaremos de “insanidade maníaco-depressiva”. Essa
classificação se iniciou com a quarta edição de seu livro-texto em 1893, e concluiu com a divisão
estrita entre humor e loucura, entre as duas grandes entidades de doença da psiquiatria, que ele
erigiu com a sexta edição de seu livro-texto em 1899. A dicotomia teve uma profunda influência no
campo, e nos acompanha até hoje.
Após Kraepelin, a área descansou. Não houve sínteses posteriores rivais das doenças, com exceção
da psicanálise, que era indiferente em relação à classificação. Em 1946, Karl Jaspers, de Heidelberg,
então com 63 anos, olhando um século de esforços psiquiátricos para classificar doenças, disse que
“[o sistema de Kraepelin] conquistou todo o mundo, algo que nenhuma classificação prévia das
psicoses não-orgânicas conseguiu – e hoje, em princípio, permanece inconteste”.
Não houve nada depois de Kraepelin – isto é, até a série dos DSMs.

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O que fez com que as coisas mudassem?
Os principais avanços na terapêutica que se iniciaram com as terapias físicas – coma insulínico,
terapia convulsiva química, e terapia eletroconvulsiva – nos anos 1930 e com as novas
farmacoterapias dos anos 1950 induziram na psiquiatria uma sede por novos diagnósticos,
descrições de doenças para os quais esses tratamentos fossem específicos. Ugo Cerletti, o professor
de psiquiatria romano que, em 1938, originou a terapia eletroconvulsiva, afirmou que a psiquiatria
estava mudando de uma “ciência funérea” para “um portal de entrada para a vida”. Os novos
tratamentos colocaram a primazia da psicanálise em risco, com sua limitada paleta diagnóstica da
“psiconeurose”, e iniciou um novo gosto por “dissecar a natureza em suas juntas”, ou encontrar
diagnósticos que correspondem a entidades naturais de doença.
Essa busca alcançou seu apogeu em 1980, com a terceira edição do Manual Diagnóstico e
Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM-3) da American Psychiatric Association. A primeira
edição, em grande extensão despercebida, apareceu em 1952; a segunda, ainda mais orientada
psicanaliticamente, apareceu em 1968. Como no caso da tradição alemã, a série americana “neo-
kraepeliniana” enfatizava a fenomenologia, o estudo de entidades de doença distintas, mas
concentrou-se no quadro atual das doenças em vez de em toda a história do paciente, sua biologia,
árvore familiar, e outros fatores que antes eram considerados importantes para a classificação das
doenças. A ênfase na fenomenologia atual sempre foi vista com desaprovação pela tradição
europeia, que objetivava produzir uma visão completa. Como Sante De Sanctis, professor de
psiquiatria em Roma, disse em 1906, “Para criar uma entidade clínica de doença, não é suficiente
ter encontrado uma síndrome característica, mas [também é preciso] conectá-la a um curso típico,
uma dada etiologia, e, se possível, explicar o mecanismo [una patogenesi]”. Hoje, estamos longe de
realizar essas esperanças, mas ao menos existe uma tradição, na construção de doenças
psiquiátricas, de ir além das coleções momentâneas de sintomas – uma síndrome – que aparecem
em um dado momento, buscando uma visão mais ampla.

Um efeito cascata sobre o desenvolvimento de drogas


O que ajudou a consolidar uma série de diagnósticos atuais em sua posição atual era a insistência
dos reguladores na Food and Drug Administration de que novas drogas fossem indicadas para as
doenças do DSM. Assim, toda a indústria farmacêutica foi implacavelmente forçada a se conformar
aos moldes do DSM. Essa insistência foi um fator majoritário na manutenção do DSM. Mas quão
válido a FDA acredita ser o DSM? Quão baseado em ciência? Não muito, aparentemente. Em uma
entrevista com David Healy em 2008, Paul Leber, antigo chefe da divisão de
neuropsicofarmacologia da FDA, possivelmente a principal figura na aprovação de psicofármacos,
disse que a FDA usava o Manual não porque a FDA pensasse que essas doenças realmente
existissem, mas porque era necessário simplificar as coisas para os médicos da família:

Penso que a razão pela qual a agência celebrou um sistema taxonômico com regras muito
definidas [o DSM] não é porque eles acreditam que estão realmente descrevendo [a droga
proposta] quando dizem se tratar de um antidepressivo – diabos, eu sei que ‘depressão’ significa
milhares de coisas, algumas delas provavelmente endogenomórficas e guiadas por um gene,
algumas delas sem qualquer relação com genes. Eu sei lá. Eu nem sei quantas esquizofrenias

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existem, quantas demências existem, e por aí vai. Mas é uma forma de organizarmos o que
avaliamos, o que testamos, e que efeitos observamos. Tem efeitos de comunicação…
claramente essas drogas não são usadas somente por psiquiatras. Elas são usadas por clínicos
gerais. Achamos que seria razoavelmente útil se pudéssemos dar a elas uma descrição
razoavelmente padrão. É tudo [o que a indicação oficial] intenta ser.

A citação é deliciosa porque mostra que a manutenção de uma única “depressão”, uma única
“esquizofrenia”, e assim por diante, à la DSM, não tinha nada a ver com a ciência, e foi mantida
parcialmente por uma conveniência regulatória.
Diz-se que não se pode desenvolver drogas para doenças que não existem. E demonstra-se que se
alguns dos diagnósticos importantes do DSM apresentam populações altamente heterogêneas de
pacientes, pode-se mais ou menos dizer adeus ao desejo de superar o efeito placebo em um ensaio
clínico: somente metade da população clínica será responsiva. Não é de surpreender que droga após
droga foi descartada, normalmente nos grandes ensaios de “fase III” que apresentam precisamente
essas populações não-homogêneas de pacientes. Isso custou centenas de milhões de dólares à
indústria, e desencorajou muitas empresas a buscarem desenvolver drogas para a
psicofarmacologia. Muitas drogas com benefício potencial para a humanidade podem ter sido
perdidas. É uma interessante ilustração da noção de que ideias tem consequências.
Assim, os lamentos que receberam o maciço volume púrpura do DSM-5 quando do seu lançamento
em 2013 mandaram um sinal: eram um sinal de que a aproximação do DSM de classificar baseada
no quadro clínico atual havia se esgotado. O que se encontra além? Michael Alan Taylor da
University of Michigan escreve:

Eu não acho que o DSM pode ser consertado. É um construto do século XIX formulado por
entusiastas do século XXI que fizeram diversas barganhas faustianas. A neurociência cognitiva
atual nos diz que o encéfalo é um órgão de partes, redes neurais que funcionam de maneira
semi-independente, cada qual gerando comportamentos específicos da rede. Quando uma rede
está disfuncional, mudanças comportamentais características emergem. Examinar as síndromes
psiquiátricas clássicas dessa perspectiva faz sentido para mim.

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