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nº3

Novembro 2015
Edição #03
Novembro 2015

Capa
Carlos H. Andreassa do Amaral

Site da Revista
http://www.circus.org.br/#!circuito-02/c16tr

Conselho Editorial
Eder Capobianco
Colaboradores desta Edição
Andréa de Moraes Barros
Adílio Rodrigues
Carlos H. Andreassa do Amaral
Baruana Calado dos Santos
Guilherme G. D. Providello
Carlos Eduardo Xavier e Jay Malaga
Priscila Constantino Sales
Daniel Pereira
Rafael de Oliveira Rodrigues
Diego Pontes
Fernando Zanetti
Fernando Del Mando Lucchesi
Fernando Zanetti
Editora Responsável
Guilherme G. D. Providello
Priscila Constantino Sales
José Benjamim de Lima
Lívia Pellegrini
Projeto Gráfico
Márcio Blanca
Carlos H. Andreassa do Amaral
Naná Boletini
Priscila Constantino Sales
Revisão
Rafael Duarte Oliveira Venancio
Luiz Fernando Martins
Raquel Nascimento Gomes
Tassiana Carli
Assessoria Técnica
Fernando Zanetti
Proponente do Projeto
Wender Urias
Rafael de Oliveira Rodrigues
Assessoria Contábil e Fiscal
Rosana Ambrosim Erratas:
Contracapa: Falta do logo da Circus - Circuito de Interação de Redes Sociais,
instituição responsável pela concretização da revista Circuito, nossas desculpas;
Pg. 9: Foto que acompanha a música Cancioneiro da Paqueri-
Contato nha, de Vinicius Dias Zurlo: créditos de Leandro Stunti;
revista.circuito@circus.org.br
Pg. 29: A foto é do cinema Cine Avenida. Foto de 1941, cedida por Iva-
www.circus.org.br
ni Cury (Blog Salas de Cinema de São Paulo), e não Cine São José;
Pg. 30: A foto do Cine São Vicente data de 1967, e não 1937;
Revisor da Circuito nº 2: Luiz Fernando Martins de Lima.
para baixar o app de
leitura do qr code acesse:
https://goo.gl/gPBK4

Apoio
EDITORIAL
Cá chegamos! Por meio de variáveis interco-
nexões, a Revista CIRCUITO lança sua tercei-
ra edição. Em parceira com a CIRCUS e a
Secretaria da Cultura do Estado de São Pau-
lo, por meio do Programa de Ação Cultural
(PROAC), o capítulo que começou a ser es-
crito na edição passada continua e a revista
se materializa mais uma vez em suas formas
digital e impressa.
Buscando cada vez mais fugir da lógica de
produção serial, os materiais recebidos com-
põem e direcionam o produto final da revista.
Uma experiência cultural que busca de modo
harmonioso dar alcance e espaço aos mais di-
versos anseios, sejam da escrita, da imagem
ou do som, enfim, tudo que toque o campo
da arte e da cultura e permita criar links para
o exercício da reflexão ou do puro deleite, dos
escritores, leitores e mesmo dos editores.
De nossa parte, esperamos que a idéia aqui
concretizada de uma revista cultural atinja
seu sentido pretendido: cultura para cultivar
pensamentos, sonoridades, visualidades, e
tantas outras inflexões presentes nesta edi-
ção. Que a aleatoriedade torne-se, nestas
páginas, um personagem, e que sua principal
característica seja a de ser um coeficiente po-
tencialmente subversivo do mercado cultural
superlotado de produções artísticas e literá-
rias e até mesmo, de certo modo, do desen-
canto com a leitura. E o que dizer sobre a arte
cultivada fora dos grandes centros?
Partindo da idéia da diversidade em nosso
agir, pensar e sentir, a CIRCUITO vem buscan-
do, desde seu primeiro número, criar conexões
entre a pluralidade e as múltiplas formas de
se expressar. Tarefa não muito fácil se levar-
mos em conta os 54 materiais que recebemos
– e já aproveitamos este espaço para agrade-
cer os autores e autoras! Mas ainda resta um
último e especial agradecimento, à CIRCUS,
cujo investimento nos permitiu ampliar as
páginas desta terceira edição, possibilitando
a parceria com mais autores e autoras.
Se “ler é sonhar pela mão de outrem”, como
nos lembrou Fernando Pessoa, esperamos
que nestas páginas, estejam impressas ou on-
-line, os sonhos também possam ser atraves-
sados pelos diferentes sentidos que compõem
nossa corporeidade. Desejamos um encontro
rebelde, inquieto e que a leitura seja um ato
de amor...
04

por Fernando Zanetti

Somos homens escurecidos pelo asfalto cindido


E o instante caminhado na velocidade impercebida
Quando vir o mundo já à porta da morte
Quando esse instado de morte nos faz ridículo e desespero
Até onde seguir?

Meus antepassados eram homens marinhos


Caçadores de baleias e talvez um pouco tristes
Eu tenho o asfalto áspero
E linhas de dias inacabados
Quando o chegar não se tem um dono e nem um encanto sortilégio
Nossos dias são como verdades risíveis
E uma alegria já um tanto mofada
E corar
Verdade de urbanidade cansada e nada além
Existência de delicados e gestos vendidos ao acaso de olhos

Quando puder
Estaria aqui

Alegria indita
Verdade de Olhos
Tomar de si olhos facínoras
E aonde chegar?
Minha pequena virtude
Senhora de eternos cantares
E um incêndio de mágoa
Quando puder entrar
Ela se revelará
Quem?
A cidade aberta
E escurecida.
05

José Benjamim de Lima

Não é Teseu quem quer sair daqui. sespero; sou touro nesses momentos, um alçapão, cujo segredo não con-
Teseu está morto agora, porque assim e nada disso adianta. Outras vezes, segui descobrir. Periodicamente, os
o quis; Teseu e seus jovens gregos. quieto, penso; sou homem então, mas engenheiros de meu pai descem as
Estou cansado desta vida entre quatro nada disso resolve, pois não posso escadas (ouço o ruído de seus passos
paredes, cansado de sacrifícios san- descobrir a saída desse labirinto que e vislumbro, longe, um facho de luz).
grentos. Aqui me puseram com que não fiz. Conseguirei libertar-me? Os Virão ver se tudo anda bem? Rever,
fim não sei; talvez para cumprir um que fizeram essas paredes, com que ainda uma vez, sua obra de arte, orgu-
rito e um destino que me foi reserva- fim as fizeram? Homem, reinicio lho da engenharia cretense? Quem me
do, mas nada disso pedi; se me deram mais uma vez a inútil tentativa. Às pôs aqui e para quê? Não há resposta,
essa vegetação de pedras, não foi por- apalpadelas tento, no escuro, vislum- nunca houve resposta.
que escolhi. Cumpro meu destino, brar a luz lá fora, naquele mundo que
Meu alimento: pobres prisioneiros
porque assim é o inevitável, mas estou desconheço. Meus algozes espreita-
que aqui soltam, para apaziguar mi-
farto desses corredores sombrios e rão de alguma secreta janela?
nha fome e minha fúria. Homem, ten-
dessas escadas escuras que conduzem
Minha vegetação: essas pedras onde to controlar-me, faço firme propósito
sempre a falsas saídas.
não bate nenhuma vida. Aqui me pu- de não sucumbir. Mas touro, posses-
Às vezes arranho as paredes com as seram: que crime cometi? A água que so, caio sobre eles, devorando-os, ur-
mãos, esbravejo raivoso e berro de de- bebo e o alimento que como vêm por rando de prazer e gula. Depois, choro
sobre aqueles ossos e aquele sangue. Que Teseu viu a luz lá fora e gozou da liberdade.
fizeram eles, vítimas como eu? Poderíamos ter voltado juntos, mas ficou
horrorizado ao ver-me, meio homem, meio
Teseu é mito lá fora. Aqui dentro, está mor-
touro (como meus algozes, como Ariadne,
to. Teseu, o vitorioso, o que ganha sempre,
minha irmã). Não quis guiar-me pelo labi-
aplaudido pelo povo. Teseu, o libertador.
rinto e preferiu morrer. Que Deus me fez
Teseu, vítima, também, mas embriagado de
assim, que não sei se sou touro ou se sou
vitórias, herói: assim são os heróis: vítimas gente? Tenho cabeça de touro, mas o peito
também; objetos do poder que sempre ven- é humano e penso às vezes como homem
ce. Mentira ter-me matado, mentira toda a pensa, tenho desejos e vontades. Que mal
história de Ariadne e seu fio. Os homens fiz eu? Sinto meus chifres e olho minhas
inventam mitos, quando não querem en- mãos. Estou cansado dessa vida entre qua-
xergar a sua própria condição. Teseu esteve tro paredes, cansado de sacrifícios sangren-
aqui, sim, e conversamos. Tentei conven- tos. Como rebelar-me, se meu destino é ca-
cê-lo a tirar-me daqui, tentei mostrar-lhe minhar sem destino por esses corredores e
que era vítima também, como eu: vítima escadas onde a luz não penetra? Os homens
do próprio poder e suas vitórias, objeto de enxergam em mim a própria imagem, e por
sua própria presunção. Com que tortura lhe isso me escondem, horrorizados? Que mal
falei! Tenho dificuldade de falar: ora esca- eu fiz? Nada disso pedi. Terei alguma cul-
pa-me um berro, às vezes um mugido ou pa? Terei? Essas paredes sem luz pesam-
então um urro. Sou touro, também, e nunca -me como um fardo terrível.
sei se no minuto seguinte serei homem ou Lá fora o mito de Teseu atravessa o dia, o
besta. Mas Teseu era demasiado presunço- tempo, os homens. O Minotauro está mor-
so; cego pela força e poder, riu de mim. Por to! O monstro morreu! Teseu, o vitorioso,
isso, num acesso de fúria o matei, e por isso o luminoso Teseu o matou. Matou-o? Ah!
criaram o mito de Teseu, o vitorioso. Ah! Ah!
07

não há tempo para a música


trabalhotrabalhotrabalho

Desde menino,
trabalho ouvindo música,
na esperança de que
a parte direita
continue andando
enquanto
a sinistra
fique dançando

por Fernando Del Mando Lucchesi


Psicólogo, doutorando em Psicologia, nasceu em Guarulhos-SP
e atualmente reside em Bauru-SP. Trabalha com pesquisa e es-
crita científica e escreve poesia nas horas vagas.
08

por BARUANA CALADO


09

De um sonho antigo à realidade de sua 5ª edição, o


Encontro de Palhaços encanta, emociona, instiga, ale-
gra e transforma, não apenas o sonho da CIRCUS, mas
de todos os admiradores do artista do riso, o palhaço.

O V Encontro de Palhaços é formado por encontros,


desencontros e trombadas. São palhaços de muitos
lugares e com muitas histórias, trombando com o pú-
blico assisense, com os artistas da região, com pessoas
envolvidas em projetos culturais pelo interior. Todos
eles se encontram no picadeiro armado pela CIRCUS
durante esse grande evento.

Respeitando todas as facetas do palhaço, convidamos


artistas mambembes, circenses tradicionais, do circo
contemporâneo, artistas locais, pesquisadores, e tan-
tos outros. Juntos, formarão um circuito cultural no
interior, que tem Assis-SP como ponto de encontro, o
palhaço como protagonista e o riso como enredo.
Estão todos convidados para mais essa festa do riso,
repleta de encontros e muitas trombadas.

Equipe de Produção do V Encontro de Palhaços


10
12

*Rafael Malvar Ribas

E
m 1971, Raul Seixas trabalhava
como produtor da CBS no Rio
de Janeiro. Ainda na Bahia ele
havia gravado o LP Raulzito e
os Panteras, que teve pouca vendagem
e praticamente não teve divulgação que
não local. Entretanto, sua mudança para
o Rio de Janeiro e seu vínculo à grava-
dora tinham a ver com o sonho de conti-
nuar gravando e cantando seus próprios
discos. Na época, ele produzia discos
normalmente ligados à Jovem Guarda,
com ritmos mais ao estilo Rock and Roll
de que tanto gostava. Nomes como Jerry
Adriane e Diana são alguns dos cantores
dos quais Raul Seixas trabalhou como
produtor.
A essência contracultural de Raul Seixas
vem à tona na gravação de um disco que
também praticamente não teve venda-
gem de início, essência esta que começa
no longo nome do disco: A Sociedade
da Grã Órdem Kavernista Apresenta –
Sessão das Dez. O tamanho do nome do Integrantes da Sociedade da Grã Órdem Kavernista
disco faz com que até hoje seja citado de estar à frente do movimento, o disco foi lendas que gravitam em torno de sua
forma abreviada, ora como Grã-Ordem gravado de forma conjunta com Sérgio imagem: juntamente com seus amigos
Kavernista, ora como Sessão das Dez. Sampaio, Edy (Star) e a sambista Mi- e artistas contratados da gravadora
Segundo Sérgio Sampaio, em entrevista riam Batucada. O próprio Raul Seixas – Edy Star, Sérgio Sampaio e Miriam
concedida à Editora Abril, “o nome da contou algumas vezes que, aproveitan- Batucada –, Seixas teria se utilizado do
sociedade saiu na hora. O “kavernista” do sua condição de produtor, gravou o estúdio da CBS sem permissão do dire-
pintou porque naquela época a gente fala- disco de forma rápida, sem autorização, tor Evandro Ribeiro para gravar o LP
va muito de volta às origens, aquele papo aproveitando a ausência do diretor da Sociedade da Grã-Ordem Kavernis-
que os homens iriam viver em cavernas CBS, o que acarretou em sua demissão, ta (CBS, 1971). Tal ato de insurgência
depois da explosão da bomba atômica, como cita Neto: teria resultado na expulsão sumária
essas maluquices” (PRUDÊNCIO apud de Seixas dos quadros da CBS, pondo
NHMPB, 2010, p.22). ão teria sido ele um tipo de produtor
N fim à sua promissora carreira. (NETO,
musical comum, afinal, quantos deles 2013, p.7)
Talvez influenciado pelo movimento tro- teriam se aproveitado da ausência do
picalista com o disco Tropicália ou Panis chefe para gravar um oneroso LP de pesar de Raul Seixas normalmente
A
et Circenses, que inovou com um notá- caráter experimental às escondidas, não ser associado a nenhum movimen-
vel hibridismo de influências e estilos, quase na calada da noite? Essa histó- to específico, formando uma espécie de
a Sociedade da Grã-Ordem Kavernista ria, narrada diversas vezes pelo pró- movimento próprio, o Raulseixismo,
não foi diferente. Apesar de Raul Seixas prio Raul Seixas, se tornou uma das esse álbum é de grande relevância, pois
Referências Bibliográficas
DUNN, Christopher. Brutalidade jardim. São Paulo:
UNESP, 2009.

NETO, José Rada. Raul(zito) Seixas como produtor


musical: Aprendizado prático e construção da imagem
artística. Natal: ANPUH, 2013.

PRUDÊNCIO, Whashington Luís Teodoro. Sérgio


Sampaio: Antritropicalismo na canção de um tropica-
lista convicto. Porto Alegre: UFRGS, 2010.

*Psicólogo formado pela UNESP – Assis, especia-


lista em Psicologia Política, Políticas Públicas e Mo-
vimentos Sociais pela USP e mestrando em Educa-
ção, Arte e História da Cultura pelo Mackenzie – SP.

foi a tentativa de se formar um movi- apresentação de circo e termina com o e sátira, representante de uma atitude
mento e obter assim sua ascensão. Foi som de uma descarga. Na verdade, uma oportuna de quebra de paradigmas,
a primeira vez que o antigo Raulzito se vinheta com tons de ironia introduz Seixas e Sampaio ousaram tomar à
autodenominou como Raul Seixas. O cada canção – influência de Frank Zap- frente. Ou, como provocou o Piauiense
caráter contracultural se inicia na capa pa, artista norte-americano cujo des- Torquato Neto, poeta-suicida de Pau-
do disco, na qual escorre sangue pelas taque era justamente o romper com as péria, “desafinar o coro dos contetes”.
letras do título “Sessão das Dez”, e eles normas musicais e sociais. Prudêncio Sessão das Dez é, dentro da disposição
aparecem com vestimentas irônicas, nos demonstra esse aspecto do disco identificada na Tropicália de Gil e Ca-
com destaque para Miriam Batucada em sua monografia de graduação sobre etano, um rompimento atrevido com a
vestida de Super Homem: Sérgio Sampaio: ordem ou a linha evolutiva de qualquer
espécie (PRUDÊNCIO, 2010, p.21).
J á nas melodias e letras, essa ruptura Sessão das Dez rompia com qualquer
com o que havia no cenário musical linha. A exemplo do músico americano Após o lançamento do disco e a de-
da época fica ainda mais evidente. A Frank Zappa, na admissão do processo missão de Raul Seixas da CBS, o LP
exemplo disso, o disco abre como uma criativo e anárquico, de improvisação foi retirado das lojas, ficando apenas
poucas cópias de divulgação enviada
Capa do Disco às rádios. Após o sucesso dos primeiros
discos solos de Raul Seixas, a Grã-Or-
dem Kavernista foi relançada em 1974,
ainda com a contracapa com as fotos
significantes dos artistas em poses
nada convencionais. Já nas outras duas
edições em LP mais comum de serem
encontradas, a contracapa foi lançada
sem as fotos.
movimento durou muito pouco e os
O
artistas partiram para sua carreira solo,
cada qual com sua devida importância
para a música brasileira. Por isso este
disco possui valor histórico, ficando
muito à margem de sua importância.
Tanto que quase não encontramos ma-
terial a seu respeito. Nas bases de dados
acadêmicas de relevância como a Scie-
lo, não aparece qualquer resultado ao
se pesquisar pela palavra Kavernista.
Quando encontramos material acadê-
mico sobre o movimento, é sempre um
breve resumo ao se falar sobre o Raul
Seixas ou sobre Sérgio Sampaio, nunca
sobre a Sociedade da Grã-Ordem Ka-
vernista em si.
14

O PODER DA
CAPOEIRA ANGOLA
na volta que o mundo deu
na volta que o mundo dá
se eu conseguir nesta roda, colega véi
na outra dá pra levar, Camaradinho
por Márcio Blanca Ladainha retirada do CD Brincando na Roda, do Grupo de Capoeira Angola Pelourinho (GCAP)

Em uma viagem com os integrantes


do projeto Moleque é tu realizado
pela Gerência de Cultura de Echa-
porã e pela Escola de Capoeira “Os
Angoleiros do Sertão”, observei uma
criança de aproximadamente 7 anos
que, com olhar atento, nos observa-
va enquanto afinávamos os instru-
mentos e nos aquecíamos realizando
alguns movimentos corporais. Isso
antes de nossa apresentação repre-
sentando o município de Echaporã na
festa de 7 de Setembro da cidade de
Lupércio/SP.
Tive certeza com relação à atenção do
menino quando conversava com ou-
tro profissional. Este menino chegou
até mim e me questionou se nossa
Fotografia Mirian Antonia - Roda de Capoeira Angola - Feira de Santana/BA
apresentação começaria logo, pois ele
queria muito vê-la. Seus olhos brilha-
ficando envergonhado, até que disse você pode me treinar?
vam!
que não conseguia. Abaixei-me junto
Fiquei emocionado! Tal olhar ativou a ele e, no mesmo instante, uma aluna Surpreso com a vontade do menino,
minha memória com relação à pri- se aproximou e começou a me ajudar. avistei um moleque da Escola de Ca-
meira vez que vira capoeira e a quan- Na verdade, ela assumiu a posição de poeira “Os Angoleiros do Sertão”,
do começara a praticá-la, em 1993. ensino e eu de auxílio, mas o mais aparentemente de mesma idade, pra-
Diante daqueles olhos encantados e importante foi que o menino retomou ticando bananeira encostando-se à
encantadores, disse que não sabia, parede, e disse: comece seguindo ele!
a confiança, e quando nos apresenta-
mas que enquanto não começava, po-
mos ele se juntou a nós, apesar da ma- Ele feliz foi praticar e, com o roncar
díamos praticar um pouco. Ele topou
de imediato! Comecei a ensinar-lhe a neira ainda acanhada devido à quan- do ônibus, percebi que meu jogo com
tocar agogô e, enquanto tocávamos, tidade de pessoas que nos observava. o menino havia chegado ao fim. No
falei para ele que se apresentasse co- Quando terminamos ele veio até mim olhar e no peito, a vontade de encon-
nosco, pois não é que o danado levava e disse: você pode me treinar? trá-lo novamente para um novo jogo,
jeito! pois assim acredito na Capoeira An-
Assustado com tal pergunta, falei
Curiosos começaram a se aproximar gola: a Roda da Capoeira simboliza a
para ele que já estava indo embora.
vendo a interação e o som que produ- Roda da Vida e ela, neste caso, tem
zíamos. O menino foi, rapidamente, Ele disse: enquanto você não vai, grande potencial junto a esse menino.
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por ** Daniel Pereira

Há quanto tempo o senhor fuma? A pergunta, que não era hipertenso, obeso, sedentário e fumante invetera-
queria calar desde que, há alguns anos, fui admitido do. Fico imaginando como deveria ser o diálogo entre
no clube dos hipertensos, agora era assustadora. A o médico e o escritor. Eleito imortal da Academia Bra-
sentença do terrorista de jaleco branco depois de uma sileira de Letras, despediu-se com um discurso apote-
breve aula sobre fibrilação atrial (FA), o tipo mais insi- ótico e premonitório: “As pessoas não morrem, ficam
nuante de arritmia cardíaca, foi curta e grossa: apague encantadas”. Encantou-se três dias depois.
definitivamente o cigarro, beba com moderação e pra-
*
tique uma atividade aeróbica. Caminhe!
e volta à terra. A decisão de não levar o cão foi acer-
D
Era sexta-feira. Medrei. Não fui ao happy hour. No do-
tada: ali ele seria apenas mais um na matilha. Aliás,
mingo, 11 de setembro, acordei com o rádio repetindo
para quem é cinófobo, o calçadão da Caetano Álvares
à exaustão a retrospectiva dos 10 anos do pior pesa-
não é lugar mais recomendável para uma caminhada
delo do século XXI. Girei o dial para a Bandeirantes e
tranquila.
pesquei o âncora desafiando os ouvintes a responder
a pergunta que copiou da propaganda de uma empre- Caninos à parte, o percurso de quase cinco quilôme-
sa aérea: Quando foi a última vez que você fez alguma tros logo se revela um prato cheio de informações em
coisa pela primeira vez? todos os sentidos. A paisagem dos dois lados da ave-
nida reserva situações que vão do hilário ao bizarro.
Topei a proposta. Ainda não conhecia o calçadão (an-
Ou trágico, como o assassinato de um valente coronel
tigamente isso era conhecido como pista de cooper)
da PM, em 2008.
da Avenida Caetano Álvares. Poderia ir ao Horto Flo-
restal, como sempre fazia. Mas não seria conveniente Um caminhão se intromete entre os carros na pista em
para um sedentário e ex-fumante recente enfrentar direção à marginal, e até esse intruso tem o que dizer
subidas que exigem muito esforço físico. De qualquer com sua filosofia de para-choque copiada de Charles
forma, ou por cagaço mesmo, pensei que seria boa Chaplin: “A vida é uma tragédia quando vista de perto,
ideia levar uma companhia. Ninguém estava disponí- mas uma comédia quando vista de longe”. Talvez seja
vel. Levo o cachorro? Melhor não, o cara é antissocial. assim que se sente a garota-propaganda com pernas
Já sei! Vou levar Sagarana, do Guimarães Rosa para de pau, que se arrisca no asfalto 40 graus berrando as
ler à sombra de uma bela árvore depois da caminha- atrações de uma concessionária de carros. Um pou-
da. O mineiro de Cordisburgo (hibridismo do latim e co à frente, o exemplo de banalização do sincretismo
alemão que significa Vila ou Cidade do Coração), tam- sexo-religioso: no andar de cima do sobrado, a escola
bém foi diplomata e médico (entre outras atividades), de dança do ventre; no térreo um templo evangélico,
que bem poderia chamar-se “Igreja das Putas Tristes” porque, nos fundos, funciona um bordel com o
sugestivo nome de “Vem cá, meu bem!” E como tem freguês, meu camarada! Aleluia, irmãs, aleluia!
Perto do meio-dia, o aroma de picanha na brasa que exala das churrascarias é um desafio torturante
para os ‘atletas’ do calçadão. Melhor acelerar o passo e segurar a vontade. É o que faz a menina de
walkman vermelho e rabo-de-cavalo esvoaçante que me ultrapassa, como Peter Pan flutuando entre as
árvores da alameda. Visual interessante e generoso, um colírio, mas que dura só o tempo de ela sumir
na primeira curva. Gostosa!
*
Nesse devaneio não me dei conta do magote de gente invadindo o calçadão. Era
uma gincana. Uma pretensa sacada de merchandising. À frente, um agitador de tre-
jeitos delicados tentava imitar Silvio Santos, Faustão, Lula, Clodovil e similares. Se
tivesse planos de seguir carreira de comediante estaria ferrado. O fato é que o sujeito
convidava os transeuntes a aderir ao que ele chamava de passeata ecológica. Uma
fajutice, claro!
A primeira vítima do animador foi um afrodescendente com silhueta de armário e
cara de Vovó... Zona, personagem do ator Martin Lawrence. Tipo enjoado, logo se
via pela elegância do agasalho de grife marrom com listras amarelas. No peito um
brasão, em amarelo e vermelho, com as iniciais KGB.
– Alemão?!
Diante do olhar de galinha do animador, não deixou dúvida:
– É, isso mesmo: A-LE-MÃO!
(“Além de tudo um gozador”, pensou o rapaz. “Me ferrei”).
Não teve tempo de engatar o papo. Um camarada, com jeitão de leão-de-chácara, tomou-lhe o micro-
fone e despejou um caminhão de esporros na cabeça dele. Aos trancos e barrancos o rapaz ameaçou
correr, mas foi barrado logo à frente por dois homens que saíam de uma viatura da polícia. Um dos
policiais identificou-se como delegado. O outro, investigador. O rapaz tremeu na base, mas logo foi
tranquilizado. “Fica calmo. A gente sabe da bronca da pensão alimentícia da tua mulher, mas essa
aqui não é contigo”.
– Então, doutor, tô liberado?
– Negativo, campeão. Este (mostra a foto) é o sujeito com quem você estava conversando,
certo? É seu amigo?
– Ah, doutor! O negão é um gozador. Disse que se chama Alemão. Sujeito esquisito. Pelo
tamanho, tem jeito de ser jogador de basquete americano, ainda mais porque no peito do
seu agasalho tinha umas letras...Q...não..K...G...B. Isso, KGB.
*
Os policiais se entreolharam. “Hum, aí tem”, balbuciou o delegado. Reuniu a equipe. Até
aquele momento ele não havia revelado aos seus subordinados o verdadeiro motivo da caça-
da ao tal Alemão.
– Bem, pessoal. Chegou a hora da verdade. Prestem atenção. Vocês estão participando da
Operação KGB. Estamos cooperando com a Interpol na busca de um alemão criminoso de guer-
ra. Ele era agente duplo e também trabalhava para a polícia secreta da antiga União Soviética, a
KGB. É acusado de crimes contra a Humanidade. O rapaz aí é conhecido como o Alemão da KGB
e seria o filho do criminoso. Entendido? Vamos lá. Tá no papo.
Os incautos transeuntes começavam a se aglomerar, impressionados com o aparato policial na
porta da LAN house onde o Alemão acabara de entrar. “Será que prenderam o Beira-Mar?” “Não”
– pitacava outro – “ouvi que o Marcola fugiu. Pode ser ele”. “Vi na televisão que o Bandido da luz vermelha
voltou a atacar...” “Sai da tumba, meu, esse aí já era...” “Ah! Deve ser pegadinha...” E por aí caminhava o
besteirol quando surgia a equipe do programa policial Brasil Alerta. Afagos, loas e confetes ao delegado
que conduzia a operação e lá vem o Alemão de braços dados com dois soldados (que ninguém é herói e
a PM também havia sido chamada para reforçar o cerco ao perigoso meliante).
Já viram um boi entrando no corredor da morte? O olhar de tristeza do animal é um misto de autopiedade
com pedido de socorro que corta até mesmo o coração de uma pedra. Esse era o Alemão que chegava à
delegacia. Documentos e burocracias de praxe, começa o interrogatório. Ele, cabisbundo e meditabaixo,
olhar perdido na frase fria de Paul McCartney desenhada na parede atrás da cadeira do delegado: “Se os
matadouros tivessem paredes de vidro todos seriam vegetarianos”.
– Então, senhor Gunther Benedito da Silva – nome chique, hein! – O senhor pode nos explicar por que é
conhecido como o Alemão da KGB, conforme nos disseram várias pessoas que o conhecem e...
– Com licença! – Irrompe na sala elegante senhora que se identificara como advogada do suspeito.
Chamava a atenção pelo vistoso casaco branco sobre a saia vermelha que generosamente deixava
seus alvos joelhos à mostra. Pinta de balzaquiana da elite. Um must para o gosto dos policiais,
acostumados a lidar com a ralé, aquela era uma visão de embasbacar. E o Alemão ali, tão pasmo
e surpreso quanto os tiras.
– Está havendo um terrível equívoco com o méu cliente (Ela tinha um leve sotaque estrangei-
ro). Na verdade, abuso de autoridade. Um delírio egomaníaco. O homem que vocês estão
procurando definitivamente não é este aqui... E nem existe.
– Como?! – subiu nas tamancas o estupefato delegado chefe da operação – Se a dou-to-

-ra se atreve a vir no meu quintal dizer besteiras desse tipo deve também saber que, advogada ou não,
posso detê-la por desacato. Quem lhe deu o direito de apontar o dedo para mim?
– ISSO AQUI! – E atira sobre a mesa o documento que deixa brocha qualquer delegado: o habeas
corpus preventivo.
– Puta que pariu! Catso! Estou ferrado! Do que se trata, afinal de contas, doutora (agora, num tom
civilizado)?
Sem perder o fair play, Ingrid Oliver Mezzacappo abriu a pasta e despejou um calhamaço de
documentos que, além do HC, cancelavam a iminente prisão do Alemão e comprovariam a sua
inocência. Foi um soco no fígado do policial, um flash do inferno. Perplexo, incrédulo, provavel-
mente já antevia as consequências de todo aquele imbróglio... Que ainda não tinha terminado.
– Doutor, o que o levou a empreender uma investigaçon como essa sem o aval de seus
superiores? Fique sabendo que amanhã mesmo vou representar contra o senhor na Corre-
gedoria de Polícia Civil.
– Podemos conversar a sós, na minha sala? – Pediu, humilde, o delegado.
– Não temos nada mais para conversar.
Àquela altura, o repórter do Brasil Alerta já não estava mais sozinho. O DP saía
pelo ladrão.
– Doutora (implorando, patético), a senhora precisa
levar em conta que tínhamos uma pista muito forte.
Não é todo mundo que é conhecido como o Alemão da
KGB, concorda?
– Discordo. Passar bem.
*
Os urubus da imprensa já a rodeavam no tradicional corpo-a-corpo, ávidos
por torturar a entrevistada com microfones e câmeras fotográficas. A doutora
Ingrid chamou para perto dela o Alemão, que a abraçou, beijou-lhe o rosto e
derramou-se em lágrimas:
– Danke, Schwester, mein Engel, danke!
Cena emotiva, ninguém entendendo lhufas. Irmã? Obrigado, meu anjo???
– É isso mesmo. Não se iludam com as aparências. O Gunther, que vocês
chamam de Alemão, é meu irmão. Filho da segunda esposa de meu pai. Não
é o bandido que a polícia está querendo fazer crer.
– Então a polícia pegou a pessoa errada? Do que ele está sendo acusado?
A senhora vai processar a polícia?
– Calma. Vou explicar tudo de uma vez. Não quero perguntas.
alvoroço na delegacia cresce vários decibéis com a chegada do delegado-geral de polícia e do secretário de
O
segurança pública. Todos os olhares se voltaram para o delegado que chefiara a busca e que, àquela altura, pro-
curava um buraco para enfiar a cabeça. Desafeto dele, o assessor de imprensa se apressava em anunciar que
depois da advogada o secretário daria rápida entrevista.
– Fale, doutora – pediu o secretário, um sujeito com aquela eterna cara de mau do Lee Marvin. Eficiente e respei-
tado, diziam.
A advogada foi didática no passo-a-passo do esmerdalho. Primeiro, mostrou o habeas corpus preventivo, que ela
carregava já há um ano quando soube que a Interpol procurava o seu pai. É um alívio finalmente poder contar tudo
de uma vez – começou. O pai tinha sido da Gestapo, a temida polícia secreta da Alemanha. Trabalhava no setor
de contraespionagem com atuação na União Soviética.
onfundido com o irmão gêmeo, que também era da Gestapo, em 1943, foi acusado de traição – teria ajudado a
C
facção anti-Hittler conhecida como Círculo de Oster. O irmão soube antes e o ajudou a sair do país. Ele se refugiou
com amigos prussianos que pertenciam à KGB – a polícia secreta da União Soviética. Mudou de identidade. Dois
anos depois teve que fugir. Com o fim da guerra e a derrota do Eixo (Alemanha, Itália e Japão), também seria alvo
da Mossad, a polícia secreta de Israel que vingava os judeus. Foi para o Canadá, Estados Unidos e finalmente
chegou ao Brasil. Havia ouvido maravilhas daqui. Com nova identidade, refugiou-se no oeste do Paraná e depois
fixou-se em uma colônia de alemães no interior do estado de São Paulo.
Tendo estudado engenharia, também conhecia e manuseava explosivos, fazendo dele mão-de-obra requisitada
na construção de Brasília, para onde foi em 1958. Ficou lá até 1965, quando foi convidado para trabalhar na área
de segurança de uma multinacional alemã fabricante de armas e munições, em São Paulo. As iniciais da empresa:
KGB. Casou-se com uma descendente de alemães e teve uma filha – ela, Ingrid. A esposa morreu no parto. Dois
anos depois, envolveu-se com Luzia, uma negra baiana que trabalhava na casa dele. Dessa união nasceu Gun-
ther, o nosso Alemão. Os negócios prosperavam e a vida secreta do pai já eram águas passadas. “Ele não era um
criminoso de guerra”, insistia Ingrid.
a multinacional, ganhou prestígio e galgou posições até chegar ao topo como acionista e diretor da empresa. A
N
filha foi estudar no exterior, casou-se com um italiano, e Gunther ajudava o pai na empresa, cuidando da área de
atividades culturais. Ele queria mesmo era ser ator.
– Meu pai morreu em 2009, aos 94 anos. Nesse mesmo ano fui procurada por agentes da Interpol. Eles me dis-
seram que só vieram a descobrir a verdadeira identidade de meu pai recentemente, e que não encontraram ne-
nhum indício de que ele tivesse participado das ações criminosas da Gestapo. Disseram para eu ficar alerta com
informações falsas e chantagens contra a nossa família e recomendaram ter sempre em mãos o habeas corpus
preventivo para os herdeiros do meu pai. O delegado não checou direito a validade da informação que recebeu de
um amigo dentro da Interpol e armou essa pataquada toda. Acho que está tudo explicado.
*
Antes que os jornalistas pudessem interpelar a advogada, o secretário de segurança pública pediu o microfone e
fez a seguinte declaração:
– Nós já sabíamos desde a manhã de hoje dos riscos dessa operação, mas preferimos prestigiar e confiar na pa-
lavra do delegado que a comandou por se tratar de um dos mais competentes policiais de São Paulo. No entanto,
também é nosso dever informar que um erro desse tamanho não o exime de punição. Ele errou, sabia disso e
está afastado até a conclusão do inquérito que vai apurar o caso. Boa tarde
a todos!
Enquanto o delegado saía pelas portas do fundo, jurando depenar o
amigo da Interpol que o pusera naquela gelada, os repórteres reserva-
vam uma última pergunta à advogada:
– Doutora, a senhora acha que a polícia foi induzida ao erro pela de-
núncia anônima equivocada?
– Venham aqui, por favor – e chamou o pessoal até a janela. Estão
vendo aquela BMW cinza ali fora? Meu irmão é quem mais a usa. Ve-
jam a placa: KGB 1109, iniciais da empresa e a data de nascimento
dele.
Era isso!!! Eu sabia. Já tinha visto, mesmo de relance, o tal alemão
saindo daquele carro. Eles moravam em uma mansão perto do Hor-
to Florestal, por onde eu passava nas minhas caminhadas antes
da pane elétrica no coração. Belo, que dia! Auf Wiedersehen!

**Daniel Pereira é jornalista. Ex-futuro biólogo, e


de vez em quando se acha escritor de haicais, po-
esias, contos, crônicas. Até pretende lançar um
livro chamado “O Esquife do Caudilho”, cuja
história começa em Assis no exato dia da mor-
te do ex-presidente Getúlio Vargas e fala de
vários personagens da cidade, onde o autor
morou por muitos anos. Atualmente é asses-
sor de Imprensa do Memorial da América
Latina, em São Paulo.
20

Corria. Eu corria. As imagens passavam. Eram árvores, plantas, ruídos e sensações. Cor-
ria ao encontro de minha fuga. Corria para afastar-me do estéril vórtice dos homens.
Corria para sanar minhas memórias. Era um bosque. Corria.
O cheiro sobrepôs-se com sua imponência e suavidade. Envolveu-me em um
delírio onírico e ilusório. Desses que, de tão extasiantes, precisam da re-
dundância para que sejam definidos com propriedade. A lembrança
proporciona e a falta desperta. Parei. Eram as jabuticabeiras com
suas flores perfumadas. O vento típico de um dia hibernal disse-
minava o frescor. Vontade do cheiro, visão da alma. Um fluxo
sinestésico.
Veio à tona a hiância devastadora e cruel decorrente da
notícia daquele dia de domingo. Sentia sua falta.
***
Um domingo qualquer, em que se cumpriam os de-
veres predestinados para tal dia. O celular. Irmã.
Estarão chegando para uma visita? Não! Irmão:
– (...) se foi!
– Quem se foi? Está ruim a ligação!
– Ele se foi...
Estremeci. Minhas pernas não suportavam a
notícia. Retomei-me. Urrei. Debulhei-me em
prantos. Foi. Maldito livre-arbítrio. Ou seria
bendito? Decidiu por interromper sua jorna-
da. Seu fardo era ominoso. A arma. A vida.
A morte. Meu pai. As jabuticabeiras.
***
Revoltei a mim. Estava sentada. As nuvens
caminhavam, uniam-se formando unicór-
nios. O céu era de um azul calmo como a
paz. O sol me aquecia para buscar algumas
saudades pueris. Ah! O cheiro... Leva-me,
traz-me, enleia-me, enleva-me. Tudo era de
uma sórdida sutileza, como se me comple-
tasse e, ao mesmo tempo, devastasse.
***
Ele havia sido nomeado delegado de polícia.
Dúvida: mudar-se para o interior ou perma-
necer próximo à capital? Amante de “som-
bra e água fresca” em seus períodos vacantes,
escolheu o interior. “Fuga da desolação em
forma de cidade”, suas palavras à outra opção.
Chegamos. Ele era a única autoridade na ci-
dade. Pasmem! Confesso que me atraía sentir
aquela autoridade transferida quando, ao míni-
mo conflito de ideias entre mim e meus pares,
bastava proferir “Meu pai é o delegado!”, e tudo se
resolvia. Ele ria. Dizia que já carregava comigo o
“sangue xerife”.
A vizinha da esquerda era tão pequenina quanto a
cidade. Cidadezinha com pouco mais de 20 mil habi-
tantes. Resplandecia toda liberdade para alguém de
tenra idade. Eu e minha Caloi Ceci. Faltavam quilô-
metros na cidade para tanta ânsia de pedalar. Ele nisso me iniciara. Levava-me ao cume
de uma deserta avenida (e era a principal da cidade!) e segurava a garupa, testando
meu equilíbrio, enquanto dizia sobre o guidão, o breque e os carros. Aprendi e,
finalmente, pude sair a explorar. Era como me sentia: uma desbravadora.
Daí veio minha fixação por árvores. Subir em árvores. Falar com elas. E
só não parti para a Biologia por ter aprendido, ainda com quatro anos,
a devanear pelo mundo dos signos. Não houve jeito, fez-se paixão.
Aliás, o universo das palavras também me fora incorporado por
ele.
Jogávamos queimada na rua. Aquela vizinha, sempre tão
bem humorada, resolveu nos convidar (a mim e a alguns
amiguinhos) para um café em sua casa. Não teve filhos.
Gostava de crianças. Entramos: foi fascínio. Amor
eternizado. As flores, tão delicadas, vestiam-na de
noiva. Era como ter nevado num dia de calor. Seu
aroma me tornou grande apreciadora de olores.
Majestosa árvore!
Ao ver-me parada, Dona Inês pôs em prática
seu dom pedagógico. Desses suados, conquista-
dos com a vida. A mulher que havia cursado
apenas até a antiga 4ª série era mais sábia que
muito “dotô”, como dizia.
– É uma jabuticabeira, minha criança! – e
aproveitando para mostrar conhecimento
(ela adorava!) – É uma árvore daqui da ter-
ra, do nosso Brasil.
Foi ela quem, por suas incitações sempre
poéticas e sutis, me abriu os olhos para a
desigualdade, injustiça e tornou minha
alma patriota enérgica. Ademais, plantou
em mim a admiração pelo encanto oferta-
do pela natureza. Principalmente quando
passei a perceber que tanto portento me
proporcionava relações com minhas lem-
branças e, quiçá, com minhas memórias de
um futuro bom.
***
O tempo passara. A memória embalada pela
brancura das flores e pelo magnetismo da-
quele cheiro. Sonhos construídos. Ele estava
lá. Realidade em cacos. Ele estava lá. Febres,
choros, machucados, pesadelos, incontinências
urinárias. Ele estava lá. Agora. Mulher feita.
Feita de medos. Ainda de pesadelos. Ainda de
machucados e tristezas. Ele não está mais. Pau-
sa. Lágrimas. Dor. Permiti-me embalar uma vez
mais.
***
Prestes a fazer oito anos. Notícia avassaladora.
Minha ninfa brasileira seria cortada. Dona Inês,
que falecera havia pouco mais de dois meses, deixara
em testamento, orientada pela própria, a casa a uma
sobrinha. A essa altura, eu já havia sido apresentada ao romance O Meu Pé de
Laranja Lima, e minha paixão por árvores tornara-se ainda mais intensa.
Da calçada:
– Por favor, moça! Deixa a árvore.
Indiferença.
– Moça, ela gostava da árvore e eu também gosto!
Frieza.
Reconheceu-se em mim o pior lado do homem. Sentia-me invi-
sível. Tentei mais uma vez.
– Ei, ei, ei! Ela dá lindas flores e frutas muito boas!
Só me olhou. Nunca me esqueci: olhar impiedoso, pene-
trante, assombroso. Recuei. Não havia conversa. Corri.
Daquela vez para os braços dele. Abraçou-me e me
explicou sobre a vida, os homens, o dinheiro. Fa-
lou-me sobre a sensibilidade, as angústias e decep-
ções. Aprendi. Ele estava lá. Eu estava lá. Era
meu amparo, meu acalanto. Desespero.
***
Um barulho. Assustei-me. Briga de saíras-
-militares. Tirou-me do transe. Levou-me
o presente. Lágrimas escorridas. As jabu-
ticabeiras em sua estação alva, coberta
pelas flores e pelo cheiro. Sua ausência.
Sua falta. Eu não sabia seguir. Não
sabia retroceder. Não sabia encarar.
Não queria acreditar. Não buscava
entender. Abruptamente, invadiu-
-me aquela fragrância que, apesar
de conhecida, se apresentou nova,
e com ela a constatação de uma
herança paterna: otimismo, te-
nacidade, resiliência, amor. A
si, ao próximo e até mesmo a
quem menos se deseja.
“Eu jamais cortaria uma
jabuticabeira!” Assim, meu
inverno se fez em flores,
e eu pude, enfim, cami-
nhar. Caminhei. Eu ca-
minhei...
23

Por Naná Boletini


Aspirante a poeta em tempo integral

Fala praquela menina


Que é primavera
E já é época
De colher erros maduros
Do pé de amores.

Leia escutando “Eu Caminho Sozinho”


Letra: Carlos Eduardo Xavier e Jay Malaga
Interpretação: André Luiz do Carmo
24

a fotografia prenhe de Gabraz Sanna

por Raquel Nascimento Gomes >>


A poesia dos olhos adensa a foto- da poesia. Imagem vista no senti- grafia, exaurida pelo retrato fiel ao
grafia de Gabraz Sanna; os olhos do primordial. Os antigos persas mundo.
da poesia vêm do encontro do ser acreditavam no conceito de ima-
O método mecânico da fotogra-
humano com o mundo tangível gem como advindas da mesma raiz
etimológica de magia. O fio da ori- fia permite que a captação desse
das coisas. Eidulis contemplante
gem de uma tece o significado da movimento seja feita por meio da
do cosmo visível das ruas, estradas
forma de perceber a outra. demonstração do instante prenhe.
e destinos. Ver é tocar a imagem,
sentindo-a como uma pele revesti- Deste modo, temos uma fotografia
Imagem é magia. Magia é a ima- marcada pelo momento. Neste en-
da de conhecimento. Tocar, sentir e gem inteligível do cosmos.
conhecer densamente a fotografia saio de Sanna, a pregnância na su-
de Sanna é penetrar no mundo líri- Magie em francês vem da palavra perfície da foto aparece pela ima-
co que há no cotidiano. grega mageia, que significa magos. gem fantasmagórica da realidade
Neste sentido, a fotografia possui prenhe do tempo. O parto do fotó-
Olhar é a ação de pháos: olho e luz a arte de empregar efeitos fantás- grafo é a magia de revelar o tempo
são diálogos que adentram as invi- ticos através da manipulação do aos olhos que passam desatentos
sibilidades do cotidiano. Vir à luz é absoluto domínio do sobrenatural. ao dia.
fotografar sob o signo de conhecer Sanna manifesta em sua fotografia
os pormenores do dia-a-dia. Visu- O reflexo da poça de água deixa
um olhar que se afasta da realidade transparecer outra perspectiva
alizar é vidência, decifrando a vida empírica. A realidade compreende
através da ação de captar o tempo sob a qual olhar o mundo. Suscin-
o inteligível, além dos vestígios do tamente, a fotografia capta o ins-
da imagem, o percurso das linhas que é o documento subjetivo por-
do destino de cada foto evidencia- tante. Prenhe, apreende o tempo.
tado pelo fotógrafo: enxergar as
da no alumbramento da imagem O borrão registra muito mais que
invisibilidades.
que revela o mundo. a imagem, porque capta o tempo.
Logo notamos um retrato que se O tempo registra muito mais que a
Fotografar é verbo ação. afasta das fotografias do século ação, porque registra l’air da foto-
Poesia tecida pelos olhos. Olhos XVII, cuja premissa principal com- grafia: ar invisível da vida, ou, po-
despretensiosos, mas atenciosos à preendia no retrato verossímil a demos dizer: registrar o tempo.
luz que aparece e desaparece das tônica para a produção fotográfica.
ruas, ou mesmo das poças de água Fotografar tinha o significado de
espreitadas pela curiosidade do fo- retratar a realidade pura e simples-
tógrafo em velar durante o clique o mente como ela é. Verossimilhan-
que existe diante de seus olhos: a ça ignorada pelos impressionistas
revelação do dia a dia. que, com o pincel, captam a luz em
suas pinturas.
Ver é tocar o mundo.
No Impressionismo, o tempo é te-
Braço, corpo, mão. Mente, olho. cido na pintura, que deixa de ter a
Ver a partir da lente a janela que visão estática do mundo. O tempo
acessa a alma das coisas. Alma dos pregnante compõe-se de uma ideia
olhos – opheio – desejo de ver o que permite entender o movimen-
retrato não como uma realidade to como uma maneira de retratar
empírica, o que ocorre na criação o mundo. Desta maneira, o tempo
do fotógrafo é o acontecimento, aparece dentro das bordas do qua-
ou o não acontecimento em posse dro, antecedendo o borrão na foto-
26

ENTRE OLHARES, LUZES


E ESCRITOS

***

Em sua obra A câmara clara, Roland Barthes traz uma análise bem sin- por Diego Pontes
gular sobre a fotografia. Ela, Linguagem universal, passa a ser “lida”
sob o ponto de vista dele, indivíduo. O que é a fotografia? Como se
compõe a sua estética? Como se dá sua percepção? Ora, depende de
como eu me sinto perante ela! Ela me tocou? Por quê? São essas ques-
tões sobre as quais apenas nós, indivíduos, podemos refletir ao dia-
logar com a imagem. Por isso, o que faz uma fotografia tornar-se boa
– ou ruim – são os pontos de conexões subjetivos que estabelecemos
ao admirar e ao “conversar” com um retrato fotográfico.
ou fotógrafo amador, amante da fotografia, amante dos diálogos que
S
consigo estabelecer com a luz. Sendo assim, vejo a fotografia como
indivíduo, porém não a vejo individualmente. Ela não é uma partícu-
la isolada, um instante de 1/250s congelados e sem conexão com o
mundo. Ela está ali, pronta para dialogar. Esperando nossos olhares de
percepções.
eu diálogo com a imagem, especialmente com as minhas imagens,
M
é feito através de livros, conversas, práticas e erros (muitos erros), que
fui somando, milésimo por milésimo de cliques, sempre aberto às
críticas e observações paralelas. Esses milésimos, então, tornaram-se
fragmentos de tempo, os quais, se somados, resultariam em mais ou
menos alguns segundos de vida, recortados e agrupados a partir de

UM PA
inúmeras vivências.
essa perspectiva, embora seja linguagem universal, a fotografia seria
N
órfã, seria iletrada, não fôssemos nós, os indivíduos que lhes depo-
sitam milhões de impressões e significados; não fôssemos nós, com
nossos anseios e formas de interpretar e reinterpretar o mundo, re-
tirando das imagens sentimentos que foram outrora “ceifados” pelo
olhar de outro indivíduo muito especial, o fotógrafo!
Sem mais delongas, finalizo brevemente sobre fotografias de palco.
Há algumas pelas quais tenho especial carinho. Foram momentos que
tive o privilégio – ou a sorte – de eternizar. Porém, muito mais do que
criações feitas por mim, essas imagens foram cocriações. Elas nasce-
ram da soma. E somaram-se a partir de um diálogo. Foram conversas
gostosas! Conversas em meio a danças, luzes, sombras e dramas.
Fotografar palcos é um desafio, exige prática e antecipação. É preciso
conversar com os artistas, com o “rapaz da luz”, é preciso sentir a peça,
antes mesmo de ela ser encenada. E o mais gostoso? Você sempre
se surpreende com a mesma. Para nós fotógrafos, são esses fatores
que mais contam ao fotografar. Não é o clique em si, e sim o proces-
so de criação da fotografia. Para nós, fotógrafos, o gundo, para mim, é o melhor. É o recorte da arte e
“palco” não é somente um diálogo artista-plateia, a junção das artes. É a eternização da obra de dois
nele há também o diálogo artista-luz. As expres- artistas que, juntos, formaram um texto. Um texto
sões mudam muito com a luz. O fundo preto é algo passível de ser lido, sentido e refletido. E podem,
crucial, ele destaca os protagonistas da encenação. agora, contar uma história.
Deixa a cena ainda mais única, expressiva. Para a
Para alguns, pode até gerar um papo legal, para ou-
fotografia, é algo sublime.
tros, nem tanto. Talvez isso seja o mais apaixonante
São dois os momentos capturados na fotografia de em uma imagem fotográfica. É a sua capacidade de
palco. O primeiro é a cena como ela é. Resume-se se relacionar e revelar impressões. É a sua liberdade
ao ato fotográfico, é a captura do acontecido. O se- de depositar e ser depositada em emoções.

ALCO
28

eis que
do lado
de cá

rumores
que
do lado
de lá
muralha
já não há
e sim!
brotam por Lívia Pellegrini
a todo
instante
cores
sem que
haja fim
para os
amores
nada
que
não haja
do lado

FOTO: Diego Pontes


de cá
e já que
nada
morre
lá e cá
lado
não há
assim
o que há
de haver
senão
o que
não começa
nem termina?

|visite: insensateza.wordpress.com |
29
ENTREVISTA

JOÃO
BATISTA
DE ANDRADE por Priscila Sales e Guilherme Providello

O
s trabalhos do cineasta e escritor João perguntas que vimos se desdobrar em outras
Batista de Andrade – e aqui o plural não paragens. Não poderia ser diferente, estávamos
é mera concordância gramatical – sem- diante de uma pessoa cindida entre emoção e
pre estiveram presentes no cotidiano razão. Como nos contou: “sou uma pessoa es-
dos entrevistadores que aqui escrevem. Seja por sencialmente emotiva e acho que essa racionali-
meio da imagem em movimento, dos passeios dade veio para me aguentar”. Dono de uma tra-
pelas páginas de seus livros, das discussões na jetória marcada pela história política brasileira
mesa do café sobre os temas que seu trabalho dos últimos 50 anos, suas obras enunciam uma
provoca ou mesmo colhendo os frutos de suas vontade de intervir e provocar a sociedade. Por
políticas culturais que ressoaram aqui, numa ci- meio de um percurso criativo e distante de um
dadezinha do interior. O contato, pouco formal discurso polarizador, elege o diálogo como ferra-
pelas redes sociais, permitiu-se avançar, e a re- menta para incitar a reflexão. Neste caso, pouco
ceptividade generosa pelo universo virtual nos importa se tem em suas mãos uma câmera ou
levou ao Memorial da América Latina para uma uma caneta. Cineasta engajado – mas que não
entrevista. Ou melhor, para um diálogo, porque se importa em vestir uma gravata para atuar na
observamos naquele momento manifestar-se direção de instituições culturais – trouxe às telas
sua capacidade de intervenção: um roteiro de mais dúvidas do que certezas. Juntamente com
outros cineastas, ousou levar à TV documentários que mostravam “um Brasil não oficial”: um
ruído que versava contra a autoridade e o conformismo. Uma vasta obra cinematográfica que
não nos deixa esquecer a complexidade de um passado de ditadura: não para nos lembrar que
esse passado existiu, mas para discutir esse passado em nossa atualidade. João Batista de An-
drade transitou por diversas esferas: da militância dos movimentos sociais na década de 1960,
criou produtoras e festivais, escreveu livros, seus filmes ganharam o mundo e diversos prêmios,
produziu documentários para TV, trabalhou na Cinemateca Brasileira, foi Secretário da Cultura
do Estado de São Paulo e atualmente é presidente da Fundação Memorial da América Latina.
Não por acaso, em 2014, recebeu o Prêmio Juca Pato como “Intelectual do Ano” e o Prêmio de
Direitos Humanos da OAB. Enfim, uma trajetória intensa, multifacetada e cheia de inspirações
tão cultivadas no palco da arte e da política, ou da política e da arte, distinção realmente difí-
cil de mensurar. Sensível às questões sociais travestidas em imagens, literatura e ações, João
Batista de Andrade observa “tenho uma relação direta com a vida”, axioma presente em cada
linha desta entrevista.

Acesse a entrevista na íntegra pelo site e tenha acesso ao vídeo


deste encontro - www.circus.org.br

CIRCUITO: Você foi Secretário de por fora. Eu passei muito tempo verem aqueles filmes, muita gente
Cultura e responsável pela criação isolado no Brasil central, no cerra- nova para pensar, gente que tinha
do ProAC, que, inclusive, possibili- do, mas quando voltei parecia que perdido o contato comigo. Foi o
ta a revista Circuito em sua versão o tempo tinha feito uma dobra, maior espanto para mim, e acabei
impressa. Primeiro gostaríamos de puxado o tempo que eu tinha ido sendo convidado para a secretaria.
saber sobre o contexto de criação do embora e emendado com o tempo Na secretaria, eu acabei perce-
ProAC. Segundo, passados 10 anos em que eu voltei. O convite para bendo o seguinte: existia uma luta
da criação do ProAC e pensando Secretaria de Cultura se deu mui- aqui, desde meu tempo de estu-
nas duas formas de financiamento, to pelo fato de que, quando voltei, dante, por um programa cultural
estatal e empresarial, tão defen- fizeram uma bela mostra do meu de São Paulo. O Governador era o
didas por você naquele momento, cinema, e logo em seguida ou- Geraldo Alckmin, que foi quem me
tra mostra grande, sobre o Globo convidou – e o pessoal trabalhava
como você avalia seu impacto para
o campo da cultura? Essas duas for- muito com parlamentares da opo-
mas de financiamento têm cumprido EU NÃO CONCORDAVA COM sição na Assembleia Legislativa.
Então, como secretário, eu disse:
seus papeis? A VISÃO QUE ELES TINHAM
“para começar é o seguinte, se
JOÃO: Bom, fui Secretário de DE POLÍTICA CULTURAL, quer criar um programa de cultu-
Cultura do Estado de São Paulo PORQUE EU ACHO QUE NÃO ra precisa ter o governo”. Cultura
em 2005, isso depois de um longo PODE BUROCRATIZAR O é um problema que compete ao
afastamento de São Paulo. Devido GOVERNO, MONTA-SE UMA governo do Estado. Eu acho que
ao plano Collor, que acabou com a MÁQUINA TERRÍVEL QUE não tem muito sentido trabalhar
minha carreira, fui para o interior pedindo para o governo fazer um
SE MOSTRA IRREAL!
do Brasil em 1990, um autoexílio plano de cultura e trabalhar com
que durou 12 anos. Não queria os deputados de oposição (risos).
saber de nada não! E olha que re- Repórter do qual eu fiz parte nos Tudo bem, os deputados de opo-
comecei minha carreira lá tam- anos 70, que era um programa de sição incorporarem e apoiarem,
bém. Depois de alguns anos, criei cineastas, eu era um deles, e meus sugerirem fazer parte do processo,
uma produtora eu voltei a filmar. filmes tiveram muita repercussão: isso faz sentido. Quando fui convi-
No final de 2002, voltei para São eram filmes muito autorais, muito
dado, falei para o governador que
fortes, ligados às questões sociais.
Paulo. E foi engraçado, porque eu queria elaborar um programa para
E foi um espanto para as pessoas
achei que estaria completamente a cultura, a resposta foi positiva.
Iniciei a discussão, mas eu achei então tem que fazer o máximo de TV Cultura, e assim disparo a pro-
que faltou um componente demo- abertura possível. Naquele mo- dução de filme através do ProAC.
crático, por exemplo: “Poxa vida!” mento, tinha três possíveis: uma Eu criei muito mais janelas do que
doze anos fora, para depois voltar para uma TV, outra para incentivo se propunha, mas foi difícil. Se fos-
a discutir com um pessoal que fi- fiscal e o edital. Por exemplo, se se para renovar a lei agora, eu ia
cou aqui batalhando. Era assim: o produtor cultural não ganha um estudar outras possibilidades. Por
edital, tem a chance de procurar exemplo, o Estado e a Assembleia
um empresário, e se tiver a TV, Legislativa criariam uma comissão
FAZIA QUINZE DIAS QUE tem a chance de o julgamento da de seleção e um centro empresa-
ESTAVA AQUI, EU PEDI TV ser diferente, porque cada um rial criaria outra. Enfim, abrir a
PARA CONVOCAR REPRE- tem um defeito: o empresário cos- possibilidade de seleção. Estar na
SENTANTES DAS ENTIDA- tuma julgar: “ele só olha o dele”. mão do Estado não é necessaria-
DES MAIS OU MENOS LIGA- Mas todo mundo “olha o dele”! mente melhor do que estar em ou-
DAS COM CULTURA DESSA Essa afirmação, “o empresário só tras mãos. Então foi assim, muito
vai produzir obra reacionária ou rápido. Tive apoio do governador
REGIÃO [...] EU FIZ UMA então alienada”, não é verdade, para fazer, mas eu corri atrás. Das
REUNIÃO GRANDE AQUI E por mais crítico que a gente seja próprias comissões eu corri atrás e
ELES FICARAM EMOCIONA- a qualquer modelo, pois existem tinha muita resistência. Então, em
DÍSSIMOS. SABE QUAL ERA peças de teatro e filmes malditos um ano essa lei estava feita, e no
A PERGUNTA RECORRENTE: que tem apoio empresarial. É con- ano seguinte eu apliquei a lei, en-
A GENTE PODE ENTRAR? traditório! A vida não é tão simples treguei os 500 primeiros prêmios.
como as pessoas querem que seja,
tudo no seu quadradinho, e, as-
CIRCUITO: E pensando as cidades
Ribeirão Preto representa tanto do interior: como poderia ser estru-
sim, não se faz nada fora. Não é
do PIB, então teria que ter 4,75% turada uma política cultural que não
assim! As comissões internas, por
dos incentivos fiscais, uma demo- deixasse os produtores reféns dos
exemplo, não são perfeitas: as cor-
cracia puramente burocrática. Eu editais?
porações dominam as comissões,
não concordava com a visão que e o momento político também. JOÃO: Para o interior, eu pen-
eles tinham de política cultural, Por exemplo, o secretário de cul- sava assim: eu sabia que ia ser
porque eu acho que não se deve tura da prefeitura, Carlos Augusto importante, porque eu tinha uma
burocratizar o governo, monta- Machado Calil – inclusive, me rela- relação muito grande com o in-
-se uma máquina terrível que se ciono muito bem com ele – queria terior. O pessoal costuma falar
mostra irreal! Eles bateram o pé, fazer o seguinte: fomentar produ- que eu era o único secretário
eu estive em duas audiências pú- ções cinematográficas, mas tinha da cultura que atendia o pessoal
blicas na Assembléia Legislativa: que ser sobre São Paulo. Contudo, do interior. Quando me ligavam,
foi a primeira vez que um secretá- se o cara nasce em São Paulo, ele prefeito, secretário, eu atendia
rio de cultura foi a uma audiência é um cidadão do mundo. Se quiser pessoalmente. Política cultural
pública, discutir política cultural. falar de Beirute, qual o problema? tem que ser com uma abertura
Foi um debate muito amplo e não O problema é que o estado dá o muito grande, se não vira uma
abri mão da minha visão: tem que dinheiro e se dá o direito de dizer o ditadura cultural. E esse é o erro
ser uma coisa mais livre, quan- que você tem que pensar! Eu falei: das prefeituras, é muito claro o
to mais janelas abrirem, melhor, o estado não é esse paraíso que porquê disso. É uma relação de
ao contrário do que se propunha, vocês estão pensando. Então re- respeito com a liberdade da pro-
que era um fundo de cultura com solvi fazer o programa sem aquela dução cultural, com interferência
condições para balizar um proje- democracia burocrática que eles mínima. Eu dizia para os prefei-
to. Eu tenho quilometragem de propunham e, ao mesmo tempo, tos: o importante é criar também
produção cultural, de realização criando janelas, o incentivo fiscal uma lei municipal. Eu cheguei a
pessoal e conheço vários modelos: e o fundo para editais. Não conse- formular uma ideia de lei, pois
a participação do estado na cultu- gui incorporar naquele momento pode ter um dinheiro também
ra, não tem nenhuma que é muito a criação de um programa na TV, para as comissões, e pode ter um
boa, todas elas são problemáticas, mas criei depois um programa de incentivo fiscal, IPTU, serviços,
interferem na produção cultural, telefilmes que existe até hoje na coisas assim. Porque o produtor
cultural que está numa cidade pulação. Quando iniciei a minha eles. Imagina como era a relação
do interior e tem um apoio local gestão, eu até criei um novo slo- antes: não é que os caras eram
vem mais forte para competir na gan: “Memorial: espaço público da ruins, mas não tiveram essa preo-
lei estadual. O produtor que tem cultura”, com a ideia de valorizar cupação. Sabe, aqui no metro pas-
a lei estadual está mais forte para não só o que está aqui dentro dos sam 300 a 400 mil pessoas por dia.
competir na esfera federal, uma prédios, mas também a praça e o Como é que eu posso virar as cos-
coisa vai fortalecendo a outra. A espaço, dizendo o seguinte: quem tas para essas pessoas que vêm de
idéia é sempre diversificar a re- vem para a praça está cercado de longe? Batalhei assim, um acordo
lação do produtor cultural com o ofertas culturais e vai aprender a com o metrô para poder interligar
Estado, não submeter o produtor visitar a galeria, a Biblioteca Lati- mais o metrô com o Memorial, e
cultural aos mandos do Estado. no-americana, vai ver o Portinari, resolvi criar uma praça da cultu-
o Pavilhão da Criatividade, vai ver ra com eventos aos sábados e aos
CIRCUITO: Como diretor do Me-
o que eram os povos originais da domingos, e aí o pessoal começou
morial da América Latina, você de-
América. Fazia quinze dias que es- a aparecer. E dizia: não vejo dife-
clarou diversas vezes ser contra a
tava aqui, eu pedi para convocar rença, a não ser de forma e mais
subdivisão da cultura e em prol de
representantes das entidades mais ou menos de intensidade, entre
um espaço que abarque a pluralida-
ou menos ligadas com cultura des- culturas. Por exemplo, o Palha-
de cultural. Como tem se dado essa
sa região: jornais de bairros, Metrô ço na praça é uma representação
gestão? Qual o impacto e receptivi-
News, Lions, Rotary, entidades que cultural tão forte quanto uma or-
dade?
trabalham com jovens, sociedades questra sinfônica. O palhaço joga
JOÃO: Eu vim para o Memorial de amigos de bairros, uma quanti- com o comportamento do outro,
com essa visão que eu tenho so- dade grande de entidades. Eu fiz a forma do outro, a malandragem
bre política cultural. Eu achava o uma reunião grande aqui e eles oculta do outro. É um personagem
Memorial extremamente fechado ficaram emocionadíssimos. Sabe que a humanidade viu uma forma
nele mesmo, e com acontecimen- qual era a pergunta recorrente: a de representação do próprio ser
tos que mais valorizavam quem gente pode entrar? Foi aí que eu humano, uma grande comédia. Eu
estava aqui do que serviam a po- criei esse slogan para responder a sou o maior fã do palhaço, porque
Foto: Bruna Sanches (Memorial da America Latina)
uma das sagas da origem é o in- basicamente, em 10 dias, foram 20 tema quase que obrigatório da ci-
divíduo que perante a população mil pessoas visitando a exposição; nematografia. Dessa forma, parti-
se mostra como sendo o pior de aproveitavam e entravam no Pavi- cipei também em Goiás da criação
todos, o mais feio, o mais ridícu- lhão da Criatividade e já ficavam de outra instituição independente
lo, o mais vagabundo, o mais falso, sabendo o que era o Memorial, ao que tratava de cinema ambien-
o mais traidor, tudo o que tem de mesmo tempo satisfaziam o de- tal, direitos humanos, cultura e
pior. Todo mundo adora, não sabe sejo, ficavam na fila horas para ir meio ambiente. Eu fui presidente e
que estão falando deles [o públi- lá ver o cenário do Chaves. Então, criador, junto com duas moças de
co]! Então, o que eu dizia: tem tenho o maior prazer de ter feito. Goiás. Foi criado na minha casa.
Articulo, hoje ainda, um festival
de curtas que faz muito sucesso.
O FILME QUE, POR INCRÍVEL QUE PAREÇA, TOCOU NISSO DE O pessoal de Goiânia gosta mui-
UMA FORMA MUITO FORTE FOI O MELANCOLIA [...] NO 3° FES- to, tem um pessoal muito bom.
TIVAL, ESCREVI NO JORNAL SOBRE DUAS COISAS QUE ME Quando voltei para São Paulo, fiz
CHAMAVAM À ATENÇÃO: O RELATÓRIO, E A ALEGRIA DE MUI- parte de outra entidade que se
TA GENTE, PORQUE TINHAM DESCOBERTO UM PLANETA MUI- chama Festival Ecocine. Eu achava
que isso seria uma coisa cada vez
TO LONGÍNQUO E MUITO PARECIDO COM A TERRA. ERA MUITO
mais forte no cinema. Eu confes-
COMUM CONVERSAR COM AS PESSOAS E AS PESSOAS TEREM so que não aconteceu muito isso.
UM CLIMA DE SUCESSO: “JÁ TEMOS PARA ONDE IR!”. O QUE Foi o intuito do FICA, mas parece
SIGNIFICAVA ISSO? JÁ TÍNHAMOS DESISTIDO DA TERRA! que na época o cinema sobre o
meio ambiente não explodiu como
que ter palhaço na praça, circo na Aliás, eu gosto do Chaves, sem pre- achava. A questão ambiental está
praça, pipa, teatro de rua e tudo conceito. Aquela coisa, eu gosto do cada vez mais forte, mas vejo que
quanto é coisa que puder. E bons Beethoven e gosto de uma coisa de reflete pouco no cinema. Eu acha-
shows do mais alto nível aos mais raiz. va que ia ser mais forte, pelo peso
populares. Assim, o Memorial foi que tinha aquele relatório do meio
CIRCUITO: Você participou de vá-
mudando nesse sentido. Por isso, ambiente. Mas olha: é um assunto
rias instituições que articularam
a frase fazia sentido: o Memorial que está em pauta hoje em dia,
cultura e meio ambiente, tal qual
é um espaço público da cultura. o cinema comercial tem falado
a CIRCUS, da que fazemos parte.
É dessa forma que estamos tra- muito de um final apocalíptico,
Como se deu seu envolvimento com
balhando, com muita dificuldade, fim do mundo, evasão espacial,
esses campos e como avalia o diálo-
porque o espaço é muito grande e terremoto, maremoto, tsunami,
go dessas esferas no Brasil de hoje?
o orçamento muito pequeno para explorando por meio de uma visão
o espaço. E orçamento, por mais JOÃO: Olha, eu instaurei em Goi- muito comercial. O filme que, por
boa vontade e boas relações, não ás o FICA, o maior Festival de Ci- incrível que pareça, tocou nisso de
muda, ainda mais em época de nema e Meio Ambiente. Era uma uma forma muito forte foi o Melan-
crise. Cheguei aqui há dois anos ideia que existia no governo, então colia. Esse filme captou o clima do
e pouco, as coisas difíceis, aí você organizei e dei forma para ela em qual eu tinha falado quando fiz o
pensa: o orçamento aqui é 16, 17 1989. Fui até o 3º, depois eu vim festival lá. No 3° Festival, escrevi
milhões, mas deveria ser 30 mi- embora e saí da organização. Ele no jornal sobre duas coisas que me
lhões. Isso não existe, o Estado é continua com muito sucesso. No chamavam à atenção: o relatório,
uma coisa que, para mudar, de- 3º, eu levei para Goiás cientistas e a alegria de muita gente, porque
manda certo esforço, ir pensando brasileiros que tinham participado tinham descoberto um planeta
em novos sentidos, convencendo do relatório do meio ambiente da muito longínquo e muito pareci-
os secretários das áreas. Então, UNESCO e debateram o tema por do com a terra. Era muito comum
eu tenho que trabalhar com esse três dias. Quando foi? Acho que em conversar com as pessoas e as pes-
orçamento e ter bastante criativi- 2002, logo que saiu o relatório do soas terem um clima de sucesso:
dade para tocar um projeto. Mas o meio ambiente, um relatório terrí- “já temos para onde ir!”. O que
Chaves foi fruto dessa visão ampla vel, riscos muito grandes, a “causa significava isso? Já tínhamos desis-
que tenho da cultura sem precon- humana”. Apontava-se para que o tido da terra! Eu tinha razão, em
ceito. E foi espetacular, porque, meio ambiente passasse a ser um 2002: o comportamento humano
hoje é assim, torcendo para apa- de estacionamento. O cinema no CIRCUITO: Mas o que fazer diante
recer outro planeta, dizer como é shopping, onde paga-se estacio- desse aumento da produção do cine-
que vai, como que a humanidade namento, a pipoca que vale dois ma brasileiro que não chega ao pú-
pode povoar esses outros lugares. reais na rua você paga dez no ci- blico. Qual a solução pra isso?
Se formos sondar, uma porcenta- nema. Então o cineclube sofre com
gem alta desse sentimento, não é a dificuldade desse deslocamento
JOÃO: Nós vivemos um momento
de estranhamento com relação ao
qualquer coisa! e com a perda do sentido de mili-
próprio país. Você vai à internet,
tância, temos o sentido de consu-
CIRCUITO: Sua formação se deu quais são as brincadeiras: “devolve
mo que é o que a atual tecnologia
dentro do movimento estudantil e para os índios e pede desculpas”,
propicia. É um momento de porre:
também do movimento cineclubista. “chamam os portugueses de novo,
parece um bando de crianças com
Posteriormente, seus filmes foram as caravelas e tudo, levam o que é
um brinquedo novo, que é a inter-
distribuídos pela Dinafilme. Na pro- de vocês”. É uma brincadeira, mas
net. Eu acho que só o tempo para
dução, você fundou diversas produ- como é que uma brincadeira sur-
dizer para a gente, eu acho que
toras. Tendo participado em várias ge assim tão frequentemente nas
dificilmente vai voltar como era.
esferas do cinema – produção, dire- redes? É um sentimento de que
No tempo da Dinafilme, meus fil-
ção e público – perguntamos: existe não tem jeito, uma desconstrução
mes eram muito procurados, mui-
saída para essa problemática histó- enorme do Brasil. Filmes sobre o
to gente locando esses filmes, e
rica do cinema brasileiro que é o de Brasil não tem muita gente que-
levavam para lugares clandestinos
fazê-lo chegar ao público? Qual o rendo ver. Então, mesmo numa
para discutir as temáticas que le-
papel e o lugar dos cineclubes hoje? fase relativamente boa do cinema
vantavam: educação, alimentação
brasileiro, tem essa barreira, às
JOÃO: Não sei, porque de certa e transporte. Então, a minha tese
vezes o pessoal prefere filmes de
forma o cineclube foi para a teli- é que ninguém mais vai até a dis-
fantasia e ação que é o que domi-
nha. É muito difícil todo esforço tribuidora para pegar uma cópia,
na o mercado. Mas, você vai ver
de recriar a cultura: deslocar as baixa-se um DVD ou do Youtube
os filmes brasileiros e dá tristeza:
pessoas para ver um filme espe- e exibe-se numa tela, e, se quiser
sempre poucas pessoas, é muito
cial numa sala não é muito fácil. um negócio com mais qualidade,
raro dobrar a semana. O filme está
E o sentido de militância cultural foca-se num projetor. Vai ter que
lançando numa sala, passado uma
também caiu muito. Porque a tec- se adequar a isso e trabalhar. Por
semana, ele está em outra sala
nologia obstruiu um pouco a mobi- exemplo, quando um grupo cria o
pequena em um horário. Agora,
lidade das pessoas, você não pre- Canal Arte e o Canal Curta! está
eu acho uma coisa muito difícil de
cisa sair de casa para assistir um fazendo um cineclube. Bastaria
analisar, você tem que analisar um
filme, você compra pela internet e que ele fosse mais aberto a uma
complexo de dificuldades brasilei-
vê em casa. Antes comprava-se o participação mais ativa. O próprio
ras. As livrarias, por exemplo. Eu
DVD nas lojas, agora compra pela espectador participando da pro-
sou escritor também, no lança-
internet. Encontramos também gramação com sugestão, que tives-
mento do meu livro Confinados,
essa dificuldade de deslocamen- se um momento de debate, seria
na Saraiva, tinha muita gente, re-
to: insegurança, trânsito, flaneli- um belo cineclube, sem ter que se
percutiu pra burro, ganhei prêmio,
nha, local para estacionar, preço deslocar.
ganhei Santa Pátria. Passei lá, para
ver se tinha um livro meu, procurei
na estante e nada, perguntei para
“O LULA MESMO NUM DISCURSO OUTRO DIA FALANDO PARA o vendedor: “só sob encomenda”.
OS OPERÁRIOS, UMA COISA QUE EU NÃO GOSTO DELE, POR- A livraria enorme, aquelas mesas
QUE ELE DIZIA “EU, POR EXEMPLO, NÃO ESTUDEI, OLHA MEU com livros de auto-ajuda, aí tem
EXEMPLO VOCÊS TAMBÉM PODEM CHEGAR LÁ”. PERGUNTO: uma estante assim “Literatura
CHEGAR LÁ O QUÊ? ONDE? O QUE É CHEGAR LÁ? CHEGAR LÁ É Nacional”. Eu pergunto: literatura
UMA ILUSÃO BURGUESA, É UMA VISÃO CONSUMISTA. A RELA- nacional? Quem disse que eu sou
nacional? Quem falou que só por-
ÇÃO QUE EU TENHO É MUITO CRÍTICA MESMO COM A PESSOA
que nasci no Brasil eu sou nacio-
DE QUEM ESTOU AO LADO.” nal? Eu sou brasileiro por razão de
estar aqui. Se quiser chamar de
literatura brasileira dá-se um sen- não parava de se ser exibido, o ne- eu ia para cima, era de uma fúria,
tido para literatura feita no Brasil. gativo virou um bagaço, foi preciso um incomodo terrível. Então, não
Já com literatura nacional espera- fazer restauro. E eu tenho o siste- podia ficar assim, tinha que passar
-se um sentido de nação, é muito ma de captura pela internet, e é a entender melhor, com a prática
ligado ao nacionalismo. Quem vai raro o dia em que o filme não está teórica também, fui criando essa
escrever lá “Thomas Mann: litera- lá no alerta do Google. Inclusive, estrutura racional. Que é terrível!
tura nacional alemã” ou “Stendhal: há alguns meses atrás foi lançado Tem muita gente que me acha ter-
literatura nacional francesa”? A um livro sobre a questão do capi- rível, que vem discutir comigo e,
própria relação do povo brasileiro talismo nas grandes metrópoles, no final, a pessoa fica calada me
com o mercado brasileiro e das uma análise do capitalismo através ouvindo porque sou muito pesado.
instituições brasileiras com a cul- dos filmes nas grandes cidades. O Mas eu sou essencialmente essa
tura brasileira é muito ruim. Quem livro deve ter 200 e poucas pági- emoção que está muito ligada a
tem algum interesse é o Estado, nas. Tem 70 páginas sobre O ho- uma insatisfação imensa com o
que se preocupa, cria sala, me- mem que virou suco. mundo, com a desigualdade, com
morial, o teatro, leis de incentivo. a injustiça. Mas eu não sou pater-
CIRCUITO: Você passa a imagem
Agora, as próprias instituições que nalista. Por exemplo, o meu filme
de um homem de ação que sempre
trabalham com cultura têm essas Wilsinho Galiléia foi proibido, e eu
reinventou sua carreira mesmo com
preocupações absurdas como, no queria fazer a seguinte pergunta:
toda adversidade, enfim, toda uma
meu caso, o livro que lancei lá foi por que que um menino preso com
imagem de otimismo e ação Apesar
um sucesso, ganhou prêmio, todo nove anos por roubar uma fruta se
disso, diz que seu cinema é marca-
mundo elogiou. Chega lá, não tem transformou em um facínora com
do pela perda, pelo abismo social e
um livro para vender. Você tem 18 anos? Por que a polícia o matou?
seus personagens raramente não vi-
que concordar que dá para desa- O filme começa com o delegado
ram “suco”. Você é um sonhador ou
nimar. Você vai lá procurar Graci- falando o quanto ele era violento
um crítico da sociedade? Como você
liano Ramos e é maior dificuldade e bárbaro por matar amigos e até
lida com essas duas esferas?
para achar. Então, é isso. Brasil é enfiar caneta no ouvido de outro
complicado, não é à toa que existe JOÃO: Acho que tenho um pouco garoto. O ator que faz o Wilsinho
uma crise das pessoas e das enti- das duas coisas. Eu gostaria muito olha para a câmera rindo enquan-
dades com o próprio país. de me entender também. Nos últi- to o delegado estava falando es-
mos anos, eu comecei a perceber sas barbaridades dele. Não estou
CIRCUITO: Continua acontecendo uma coisa: eu tenho uma raciona- falando que ele não é facínora,
o mesmo que com seus filmes. Saem
lidade muito grande, numa con- estou dizendo o seguinte: esse me-
do Brasil, vão para os festivais, fa-
versa destas, por exemplo, eu sou nino tinha nove anos quando foi
zem sucesso e ganham prêmios...
muito articulado. Então, não sou preso pela primeira vez, por uma
JOÃO: No caso d´O homem que uma pessoa muito fácil, porque razão fútil. O que fez esse meni-
virou suco não foi bem no circuito
eu tenho conhecimento e vivência no virar esse facínora? Trata-se da
quando lançado. Saiu do circuito e,
de leitura, de estudo, discussões e origem social da violência, a falta
acho que um mês depois, ganhou
tal. Então, para discutir a realidade de saída na infância. Conversando
o Festival de Moscou. Voltou para
comigo tem que ter muita bala na sobre isso com o Vlado, um dia ele
cá e eu não aguentava mais falar
agulha. Mas descobri que sou uma disse: é compaixão. Então, eu sou
do filme, de tanta repercussão.
pessoa essencialmente emotiva e muito crítico, uso uma frase mi-
Porque era medalha de ouro num
acho que essa racionalidade veio nha que mede um pouco do que
festival muito grande – tinha uma
para me aguentar – estou falando eu faço, a minha relação com a
quantidade enorme de filmes do
com você e já estou emocionado. É população, com os próprios movi-
mundo inteiro, filmes americanos,
impressionante, sou essa emoção, mentos sociais. Eu digo: “eu estou
franceses, japoneses, soviéticos,
então a estrutura que eu montei do seu lado, mas nem sempre eu
italianos, uma competição grande.
pra mim, o aprendizado de uma concordo com você. Mesmo para
Quando o filme voltou para o mes-
relação mais racional com a reali- estar do seu lado, às vezes me sin-
mo circuito, a repercussão foi enor-
dade, foi uma necessidade diante to obrigado a estar contra a sua
me. Daí os cineclubes começaram
tudo. Olha, quando eu vim para opinião”. Não tem paternalismo.
a distribuir e ninguém aguentava
São Paulo eu era um perigo! Eu Quer ver uma coisa engraçada,
tirar mais cópia do filme. O filme
via injustiça na rua! Quantas vezes uma vez filmei um programa na
TV em que um cara que tentava que ser honesto com ela, não pos- assistir, eu estava preocupada com
resolver a vida dele inventando so passar a mão na cabeça e dizer elas, não ligava para o resto. Liga-
formas e métodos para criar coi- “você é um coitado”, aí é uma trai- va porque os outros iam ver aquilo
sas, como lâmpadas que não apa- ção, você precisa ter capacidade como arena, mas o importante era
gavam. Ele mostrava que parecia de dar uma visão para a pessoa o diálogo com aquelas pessoas, di-
que dava certo. Mas eu tinha uma partir para uma análise. Fiz muito álogo crítico. Então, sonhador no
coisa em mente: bom, mas como isso, principalmente com as lutas sentido de que o que estava por
é que você pensa que vai mudar sociais e os conflitos sociais que trás era a utopia de uma sociedade
a vida, o que vai acontecer com filmei, os filmes eram profunda- que não tivesse essas coisas.
você? Ele disse “trabalhando uma mente críticos à forma. Acontecia
CIRCUITO: O que significou o seu
hora eu chego lá!” Antes dele fa- que, muitas vezes, o pessoal ia à
autoexílio para sua cinematografia,
lar isso eu já pensei em perguntar: TV pra pedir uma cópia do filme.
e mesmo a nível pessoal? E ainda:
como é produzir no interior?
JOÃO: Isso foi uma coisa impres-
sionante, porque em 1990 eu perdi
o maior filme da minha carreira,
que era o filme sobre o Vladimir
Herzog. Uma coprodução interna-
cional inédita no cenário brasileiro,
com quatro países envolvidos, dis-
tribuidor internacional e contrato
assinado com a TV espanhola. Veio
a política do Collor e congelou os
recursos. Fui para o interior de Goi-
ás e lá vivi de certa forma isolado.
Quando chegou por volta de 1995 –
meu último filme era O país dos te-
nentes, de 1978 – eu não aguenta-
va mais: eu queria fazer um filme
nem que fosse em xerox, qualquer
José Dumont no filme *O homem que virou suco
coisa! Consegui, assim, ganhar um
Foto de 1980 [Acervo Cinemateca Brasileira/SAv/MinC]
concurso, um dinheirinho vagabun-
“chegar lá onde?” Porque “chegar E nesse diálogo com o movimento do para fazer um filme em Brasí-
lá”, na expressão, era um valor. eu fazia algo quase revolucionário lia, o filme O cego que gritava luz.
E que valor era esse? É ficar rico, que era dizer que a TV atira quase Foi quando o pessoal de Goiás co-
chegar lá. O que é chegar lá? O para todos os lados, não sabe para meçou a descobrir que eu estava
Lula mesmo num discurso outro quem está atirando, mas quando encantoado lá na cidadezinha do
dia falando para os operários, uma eu ia num bairro filmar: problema interior. Eu entrei num ambiente
coisa que eu não gosto dele, por- de briga de classe média com fave- de Goiânia, carente de cinema.
que ele dizia “eu, por exemplo, la, problema de migrantes vivendo Viram-me assim [risos], como uma
não estudei, olha meu exemplo embaixo de viaduto, grilagem. En- possibilidade cinematográfica. O
vocês também podem chegar lá”. tão eu pensava: a TV atira para to- próprio governador depois foi me
Pergunto: chegar lá o quê? Onde? dos os lados, mas eu estou fazendo procurar por intermédio de amigos
O que é chegar lá? Chegar lá é uma o filme para estas pessoas, só pen- da época de militância no movi-
ilusão burguesa, é uma visão con- sava nelas. Então, eu transformava mento estudantil, antes de 1964.
sumista. A relação que eu tenho é a TV, ideologicamente, para aque- Tudo isso se espalhando acabou
muito crítica mesmo com a pessoa las pessoas verem, porque todo criando um movimento de cinema
de quem estou ao lado. Agora, é a mundo assistia. Então eu chegava em Goiás. Quando fui fazer o Fes-
concepção que eu tenho também ao bairro pra filmar e as pessoas tival de Cinema, o Marconi me con-
do meu papel como intelectual: se perguntavam: que horas vai passar vidou, levei um monte de gente, a
quiser mudar a sociedade, tenho na TV? Eu sabia que a população ia essa altura já estava mergulhando
no cinema cheio de projetos. Foi Miguel Jorge, melhor escritor da estrutura de racionalidade pura,
quando resolvi fazer O Tronco, do nova geração. Acabei adaptando o essa capacidade de explicar as
escritor goiano Bernardo Élis, que romance dele e filmando em uma coisas porque, ao contrário, não
também foi do Partido Comunista visão muito política da história. Fiz tem como se defender. Mas você
Brasileiro, mas não por isso – quan- também um filme chamado Vida não sabe o que é! É uma ligação
do conheci sua obra nem sabia que de artista, sobre um artista extre- tão forte! Estava na estrada e vi
ele era ligado ao partido – mas mamente complexo: fiz sozinho só aquele andarilho: vocês não imagi-
porque eu sempre gostei mui- eu e uma câmera e com ele ganhei nam como eu sou filmando! Eu dis-
to do livro, um escritor brasileiro um prêmio em 2004 de melhor fil- se: “PARA! PARA! Pega a câmera
sensacional. Consegui o dinheiro me na Mostra do Filme Livre no Rio e grava isso! Não corre, corre!” O
porque quando o Sérgio Motta era de Janeiro. Muito filme pegando Chico Botelho saiu correndo, caiu
ministro da Comunicação, ele me essa onda digital. Então, fui voltan- no chão e virou até piada porque
ajudou também, começou a pegar do a toda e fiz uma obra lá. Falo quando ele caiu e eu disse: “Chico
vai filmando, liga essa câmera!” E
ele, filmando, desceu um barran-
co caindo. Eu perguntei: “é... es-
tragou alguma coisa?” (risadas) Eu
preocupado com a câmera porque
eu tinha que filmar o cara! É im-
pressionante. Mas é isso que falo,
é uma coisa que a racionalidade
não controla, depois tem que ter
uma racionalidade para explicar.
Mas não se controla, é uma entre-
ga muito grande. Eu convivi muito
com isso, uma emoção terrível.
Tem coisa que eu não consigo nem
falar, como a história do Vlado.
CIRCUITO: Para encerrar, gostarí-
amos de saber sobre seus próximos
projetos no cinema e na cultura.
Aliás, o filme Vila dos Confins ain-
João batista de Andrade no filme **Wilsinho Galiléia da está em produção? Circulou pela
Foto de 1978 [Acervo Cinemateca Brasileira/SAv/MinC] internet fotos suas filmando nas ma-
nifestações atuais. Podemos esperar
o dinheiro do incentivo fiscal da que partiu de uma energia. Não
algo desse material?
empresa e jogar no cinema. Meu digo que não a tenho mais, mas
filme foi aprovado e levei todo não sei como eu conseguia. JOÃO: Acho que Vila não vai sair.
mundo para fazer cinema, muito Entrei em vários editais e não ga-
CIRCUITO: Seu cinema é marca- nhei nenhum. Sou cineasta, tenho
gente aprendeu a fazer cinema
do por constantes “ feelings”, uma
comigo: técnico, assistente, cenó- uma carreira consolidada, ganhei
espécie de inspiração que até já foi
grafo. Então, criei um movimento prêmios, um dos mais importantes
nomeado como “cinema de inter-
em Goiás, fiz uma obra, contando dos anos 70. Eu entrei em uns dez
venção” numa perspectiva política.
com: O cego que gritava luz, que editais assim. Aí eu desisti de fa-
Como você trabalha com esses im-
foi feito em Brasília; O Tronco, em zer. Eu fiz várias minisséries muito
provisos na hora de filmar? Interes-
Goiás; depois Rua 6, Sem Número interessantes: uma delas é Traves-
sante foi o “ feeling” do andarilho
(ficção/2003), e um documentário sia, que era a travessia de quan-
no filme Céu aberto...
sobre a restauração da Igreja que do se sofreu o golpe da ditadura.
tinha queimado; um filme sobre JOÃO: Eu trabalho muito com isso, Vou dizer uma coisa: é um docu-
o caso Matteucci, que é o massa- como já disse, sou pura emoção. mento. Quer ver como aconteceu
cre de uma família nos anos 1950, Eu tenho uma ligação com a vida a ditadura, a divisão da esquerda,
contado no livro Veias e Vinhos de direta. Eu acho que eu criei essa a luta armada, a luta democrática,
a opinião publica? Está lá. Depois, tão, ele, com o revólver, olha para
fiz uma minissérie muitíssimo inte- o pai e a mãe, parecem estranhos,
ressante para a TV SESC, está aca- o pai sorri para ele, e ele diz as-
bando de passar agora, Na som- sim: “eu nunca tinha visto esse
bra da história, que é a história sorriso”. É uma crueldade, mas é
brasileira contada pelas pessoas de um realismo crítico muito forte.
comuns da rua: escolhia aleatoria- É um continho pequenininho, mas
mente e levava um textinho para é de uma densidade muito grande.
ela ler e para comentar, para sa- No cinema, depois dessa tentativa
ber o que ela sabia daquilo. Geral- fracassada de contar com o apoio
mente não sabe nada. Junta gente para a Vila dos Confins, eu tenho
e começam a discutir. Uma histó- vontade de voltar a fazer cine-
ria brasileira contada por pessoas ma, mas eu quero fazer uma coisa
comuns: muitíssimo interessante. bem diferente, outra coisa. Eu te-
Como eu filmei depois da passeata nho uma vaga idéia do que quero
de julho de 2013, conta com cenas fazer, mas tenho que me dar um
da passeata e as pessoas sempre tempo para pensar. Não tenho
se referem a isso. No entanto, a pressa nenhuma mais, se morrer
TV SESC saiu do ar e ficou só na amanhã já tenho uma obra pronta,
internet. Tem uma audiência boa uma obra literária e cinematográ-
na internet, mas fiquei desencan- fica. Não tenho que ficar corren-
tado por não estar na TV. O pesso- do atrás. Quero voltar ao cinema
al da TV SESC elogia muito, é uma à vontade, ou não voltar. Não sei!
minissérie muito atual e forte. Eu Estou gostando muito de literatu-
continuo venenoso! (risos) Ago- ra. O pessoal diz que eu escrevo
ra meu projeto é o livro Poeira e bem! (risos)
Escuridão, que acabo de lançar.
Mas agora estou com um roman-
ce novo para lançar no começo do
ano que vem, que tem muito a ver
com o Brasil. O público está gos-
tando muito, estou contente com
a repercussão do meu último livro.
Eu estava aqui e acabei de rece-
ber um texto, falando do livro e de
um dos contos. Um dos contos é
pequeno: é um garoto pobre, que
mata o pai e a mãe. E do jeito que
João Batista de Andrade
conta a coisa, chega ao final, o pai Ano: 2015
e a mãe querem que ele atire, e Editora: letra Selvagem
ele faz isso pelo pai e a mãe. En- * 160 páginas

Acesse a entrevista na íntegra pelo site e tenha acesso ao vídeo


deste encontro - www.circus.org.br

Suporte técnico: Baruana Calado dos Santos


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Adílio Rodrigues

Pequeno teaser do curta 3D que estamos desenvolvendo com


recursos próprios sob plataforma de open sources

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