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Edição #04 EDITORIAL

Dezembro 2016

Capa
Carlos H. Andreassa do Amaral Seguindo seu multifacetado estilo, a Circuito
nº 4, aporta!
Conselho Editorial
Neste momento em que as políticas e vivên-
Carlos H. Andreassa do Amaral cias cotidianas pedem tanta atenção e luta,
Guilherme G. D. Providello fazer passar 'as poesias' e multiplicar as sen-
Manoela Maria Valerio
Ricardo Abussafy sibilidades são também modos de oxigenar a
brutalidade que o cotidiano nos explicita.
Projeto Gráfico
Carlos H. Andreassa do Amaral
E então, agora, no intuito de não deixar a
chama apagar, pois os patrocínios para a
Assessoria Contábil e Fiscal versão impressa foram escassos, a equipe
Rosana Ambrosim editorial aposta todas as fichas nesta edição
digital (E desta aposta faz surgir a novidade
Colaboradores desta Edição de podermos abarcar em novas experimenta-
DANIEL PEREIRA ções, além das escritas... sonoras... visuais).
ENIA CELAN
FERNANDO ZANETTI Entendemos também que este formato ganha
ITAMARA amplitude contando com as redes quentes
JEFFERSON MOURA
KAROLINE FUIN para fazer circular e divulgar os trabalhos
LIVIA PELLEGRINI aqui presentes. Ou seja, que cada leitor possa
LORENA DUFF
LORENA SGANZERLA ser um possível aliado nesta tarefa tão silen-
LUIZ BOSCO ciosa quanto potente de fazer acontecer
MAICO F. COSTA
MANOELA M. VALERIO novos circuitos!
RICARDO ABUSSAFY As conexões que pudemos perceber nesta
THOMAS LEE
edição estão nos temas e estilos, mas a diver-
sidade de autores/criadores das obras certa-
mente encontrará em cada leitor, a originali-
dade de uma experimentação singular. Ou
seja, a cada novo leitor, a cada nova leitura,
um novo mar sensitivo. E assim, seguimos
juntos, compondo: multiplicando não só os
circuitos por onde transitam nossos auto-
res/parceiros, mas também os encontros com
Site da Revista
http://www.circus.org.br/#!circuito-02/c16tr suas obras, os sentidos e sensações que elas
possam provocar.
Contato
revista.circuito@circus.org.br Importante assinalar que a Circus, financia-
www.circus.org.br dora exclusiva desta edição, agraciou-nos
com total liberdade de ação, sendo parceira e
grande incentivadora de Circuitos - inclusive
da CIRCUITO. Agradecemos!
MANOELA M. VALERIO
Profusões 04
ENIA CELAN
Entre linhas 06
JEFFERSON MOURA
De frente pra trás 08 32 GRUPO PROSA DE 5
Conversa de Botequim

RICARDO ABUSSAFY
Retratos I 10 34 FERNANDO ZANETTI
Lucifer (ou Demônio)

LUIZ BOSCO
Pequena Farsa 12 40 KAROLINE FUIN
Sobre a nobre noite

LORENA SGANZERLA
Pudor 18 42 ENIA CELAN
Catedral de sonhos

RICARDO ABUSSAFY
Retratos II 22 44 RICARDO ABUSSAFY
Retratos III

ITAMARA
Mulher adubo 24 46 DANIEL PEREIRA
Cante pra ela Bob

LIVIA PELLEGRINI
Ela e o Rio 26 52 MAICO COSTA
Buracos

54 THOMAS LEE
Vontade
PROFUSÕ
Dores rasgadas deste vento incansável que
sangra em vibra- sã.
Espiralado ativo. Em si todas direções do incerto,
as durações arrítmicas e belezas devoradas, os
climas e vertigens sísmicas, sacolas plásticas e

ÕES
poeiras...o visível da pele.
Sem excesso. Sem falta. Só pelos pêlos ouriçados
que calam frios e alimentam nus.
No (seu) ponto exato de limites e esquinas...o infindá-
vel, as saias - de repente avesso- menininhas safadas
... esses tais beijos paradoxais em gelo ardente nas
bocas generosas da cidade.
E ali, ainda... imanência púrpura... como num gemido
sussurrado.
Leve, forte, presente.
Pronto-escape, encurva esquecido.
Quem sabe(?) ainda vivo...
esse vento, ainda e tanto incansável, existe...
insiste...
assim...meio assim...num corpo dado quando
diz o que não basta.
por Manoela Maria Valério
ENTR
RE LINHAS
no horizonte
um sinal de fumaça,
porcos estão sendo castrados
o urubu se desenrola
da linha de pipa,
um outdoor em branco,
um helicóptero pousa
sobre os meus pulsos;
não há mensagens para mim,
na rodovia os caminhões
vem e vão e nenhum
deles me trazem rosas,
não há decodificações
para minha tristeza.
por Enia Celan
POR JEFFERSON MOURA

Pra quê tanto dente numa boca


Pertencente ao século vinte e um?
Ganância vigente e caráter roto.
Cada um pensa no seu cada um
Escalando a escápula do outro,
Outro degrau, apenas mais um.

Pra quê tanto dente numa boca


Debilmente sorridente?
O cérebro inativo... O coração que dormita...
Lobo arquejante correndo em círculo,
Salivando a presa abatida:
Ração pouca que a fome por ser muita não sacia.

Pra quê tanto dente numa boca


Em que praticamente revolta já não há?
Havendo é muito pouca:
No vermelho e ultrajado olho do rei
Olhando do raso orifício,
Caolho olho gordo d’umbigo.

Pra quê tanto dente numa boca


Que sorri diariamente com motivo pra chorar?
Sorri meio de lado,
E sente a esperança escapar,
Pelos vãos dos dedos Da mão da miséria que só faz apertar.
por RICARDO
O ABUSSAFY
PEQUENA FARSA
por Luiz Bosco
[...]
Bonachão volta-se para a platéia:
- É muito bom receber vocês em nossa casa. Daqui a pouco,
o show começa. Vocês já conhecem...
Katiuscia entra, de calcinha e salto alto, interrompendo: -
Acha!? Que choque! Não vou usar essas coisas feias!
Bonachão: - O que aconteceu? Calma, coração!
Entra Pequena Farsa.
Pequena Farsa: - Ela não gostou de nenhuma.
Bonachão: - Anda ficando cada vez mais exigente!
Pequena Farsa:- O que se pode fazer?
Bonachão: - Alguém da plateia poderia dispor de sua
calcinha?
Pequena Farsa: - Depois a gente resolve isso. Aí vem
o cliente.
Entra o Cliente.
Bonachão: - Meu caro! Há quanto tempo! Por que esse
sumiço?
O Cliente: - Da úrtima vez ela num feiz do jeito certo.
Pequena Farsa o olha com desdém.
Bonachão: - Mas hoje ela vai se comportar como deve,
não é, Pequena Farsa?
O Cliente: - Sem farsidade?
Bonachão: - A não ser a falsa idade... bom, a casa é
sua, você sabe. (sai)
O Cliente: - Vamu começa?
Pequena Farsa (grita): - Calaboca!
O Cliente se senta na cadeira. Pequena Farsa amarra as
mãos do Cliente às costas e venda a boca dele; busca uma
cozinha de brinquedo e se põe a brincar no chão, defronte
ao cliente. Conforme vai brincando, O Cliente geme e se
estrebucha. Em certo ponto, ela abaixa a venda do Cliente e
começa a lhe dar papinha de mentira, falando como se
fosse criança.
- Olha o aviãozinho pro vovô gordo e feio. Come tudinho.
Parece um porco. Cadê o pipi do feioso?
Começa a abrir a calça do Cliente. Ele geme alto. Ela recolo-
ca a venda nele, irritada. Abre a calça e olha:
- Credo, que pipi pequenininho.
Vira-se de costas para ele. Começa a mexer na calcinha,
como se fosse tira-la. Ao invés disso, tira a camiseta e volta
a brincar. Entra Katiuscia soltando palavrões. Quando per-
cebe o que está acontecendo, desculpa-se.
Pequena Farsa, irritada: - Já que entrou aqui, me traz
o ursinho.
Katiuscia sai e volta com um ursinho de pelúcia. Pequena
Farsa simula sexo com o ursinho. O Cliente se estrebucha
cada vez mais. Perto do clímax, O Cliente fica em silêncio.
Pequena Farsa percebe apenas depois do orgasmo.
- O bestinha resolveu ficar quieto?
Ela o olha por uns instantes.
- Ei. Ô, vovô!
Vai até ele, e se dá conta de que ele está morto..
- Porra... Bonachão! Vem cá agora, merda!
Entra Bonachão, afobado.
Bonachão: - Fala, minha princesa.
Pequena Farsa: - Esse filho da puta ta morto!
Bonachão: - Ai, Virgem Santa!
Pequena Farsa: - O coração não aguentou o tranco...
Bonachão:- O que a gente faz, meu Deus?
Entra Katiuscia, que não se dá conta do que está aconte-
cendo.
Pequena Farsa (cochichando para Bonachão): - Que
hora pra essa babaca estar aqui!
Katiuscia: - Escuta aqui, Bonachão, eu quero uma cal-
cinha decente!
Pequena Farsa (tirando a calcinha): - Pega a minha.
Katiuscia (deslumbrada): - Mas você sempre recusou... ai!
Finalmente!
Pequena Farsa: - Mas você vai ter que topar um jogo.
Katiuscia (colocando a calcinha): - Topo tudo!
Pequena Farsa: - Você vai se exibir pro vovô aqui. Ele
está proibido de se mexer, falar, fazer qualquer coisa! Certo,
vovô? Ah, e você não pode tocar nem falar com ele.
Katiuscia: - Além de me dar a sua calcinha, vai me pôr
pra voyeur? Escuta aqui, quanto vai sair essa brincadeira?
Pequena Farsa: - Nada, o vovô ali ta bancando tudo.
Katiuscia: - Meu dia de sorte!
Bonachão (aparte): - E de azar pro velhinho...
Pequena Farsa: - Calaboca, Bonachão! Enquanto
isso a gente pensa em alguma coisa...
Entra O Vendedor.
Bonachão: - Jesus Cristo!
O Vendedor: - Não, eu sou o...
Pequena Farsa: - O que você quer?
O Vendedor: - Vim pelo nosso cliente (aponta O Clien-
te). Mas... (olha para Katiuscia, que se exibe, e para Peque-
na Farsa, que está nua).
Pequena Farsa: - Que foi, nunca viu? (sai)
Bonachão (transpirando): - Em que podemos servi-lo?
Ataulfo: - Tenho mercadorias para O Cliente.
Bonachão: - Não vê que agora ele está ocupado?
Ataulfo: - Não sabia que O Cliente gostava destas
coisas.
Bonachão: - Surpreendente, não? (pega um uísque e
toma de uma golada; oferece)
Pequena Farsa retorna vestida com short e camiseta. Apro-
xima-se de Bonachão e cochicha: - Manda esse mala
embora, porra!
Bonachão: - Ai, tá. (para O Vendedor) Meu caro, venha
cá. Tenho certeza de que seu cliente está satisfeito...
Katiuscia (para O Cliente): - Olha, me cansei... tá bom
por hoje? Desculpa, não to acostumada.
O Vendedor: - Vou aproveitar o ensejo...
Bonachão e Pequena Farsa: - Não!
O Vendedor: - Mas o número já terminou...
Bonachão: - Não, falta...
Pequena Farsa: - É que ainda...
Katiuscia: - Número? Você tá me achando com cara de
quê, macaca de circo, é? Isso aqui é uma arte, meu bem,
das mais refinadas! (senta no colo do Cliente) Não é, meu
amor?
Pequena Farsa: - Sai daí! (puxa Katiuscia, que resis-
te)
Katiuscia: - Ai, grosseria! Não saio! Para, tá doida?
Ficam no estica-e-puxa até que Katiuscia se levanta e O
Cliente cai duro ao chão. Todos correm até ele, mas O Ven-
dedor chega primeiro.
O Vendedor: - Eu ajudo o senhor... senhor?
Pequena Farsa (tentando erguer o falecido): - Ele
está cansado, deixe ele em paz. (o defunto cai duro ao chão
novamente).
O Vendedor: - Ele está morto!
Katiuscia grita. Para quando Pequena Farsa lhe dá um tapa
no rosto.
Bonachão: - É. Não. Bom, morto de cansado, diga-
mos...
[...]
Meu amor, quando você me encontrar, não se afobe.
Olha bem pra mim. Repara em tudo, no meu corpo, na
minha falta de jeito. Antes de me dizer qualquer pala-
vra, pega uma régua. Um esquadro e um compasso.
Põe na balança. Porque, meu amor, a palavra é concre-
ta. Ela tem a consistência de tudo o que você já viveu.
E pode ser pesada demais para que a gente desperdi-
ce nosso silêncio em sons que se esparramam, sem
significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar, mergulha


no meu olho. Respira. Lembra do meu toque, do
cheiro, do meu cabelo se derramando no seu rosto.
Não pensa no meu perfume, mas sente o cheiro que
ficava na sua pele, no seu travesseiro, na sua roupa.
Que só você conhece. Que é meu e é seu. A memória,
você sabe, ela habita o mundo dos sentidos. Às vezes
despertam momentos que ficaram adormecidos na
fantasia, aqueles que a gente só quis, mas não viveu. E,
assim como as palavras, a memória também é concre-
ta. Concreta demais para que a gente desperdice
nosso silêncio em sensações que se esparramam, sem
significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar, espera.


Observa e me aprende. Aprenda o meu idioma, o meu
léxico. Calma. Não desperdice o seu, enquanto eu
decoro de novo o que gostaria de dizer, mas já esque-
ci. Não sei a língua que você fala. Por isso, vou esperar
que a gente descubra um dialeto nosso. A gramática,
ela é rígida demais para que a gente desperdice nosso
silêncio em sons que se esparramam, sem significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar escuta a


minha respiração. Aprende meu ritmo. Ouve a minha
música pra que a gente invente uma melodia com
intervalos que só a gente entende. Um vocabulário
secreto, que só a gente canta baixinho, na duração do
tempo certo, para preservar as letras do vazio que nos
habita na hora de traduzir sons que se esparramam,
sem significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar se preserve


no meu desejo para que a gente não se perca um no
outro na ânsia do gozo. Aprende meu corpo. Estuda
meus movimentos. Conheça o ritmo do meu prazer. O
prazer também é um idioma, com uma métrica pró-
pria, que a gente vai ter que inventar, e não quero des-
perdiçar meus gemidos em sons que se esparramam
em você, sem significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar, me encara


de frente. Vem com a lógica profunda dos lagos. Para
eu poder descobrir a vida que você esconde, impassí-
vel, quase impenetrável, a uma respiração de distân-
cia. Quando me encontrar, não tenha medo. Eu não
vou ter a imprudência de rastrear todos os seus rele-
vos. Eu prezo pela discrição. Não quero fisgar os seus
peixes mais medonhos. Nem trazê-los pra superfície.
Não tenho fôlego para desperdiçar em profundidades
que podem se esparramar em mim, sem significado.

Por isso, meu amor, quando me encontrar, não me


assuste. Vem com calma. Mostra que você também
tem medo. Porque eu sou como aquelas cavernas pro-
fundas, que exigem paciência. Mas lá no fim há um
lago e um raio de sol, que ninguém espera. É pra você.
Mas eu preciso da sua demora para você acostumar o
olho e reconhecer a beleza das minhas estalactites.

Então, meu amor, quando me encontrar, não nos


assuste. Seja generoso. Porque não quero desperdiçar
os meus morcegos em aventureiros, ruidosos, que
querem se esparramar em mim, sem significado
algum.
por Lorena Sganzerla
por RICARDO
O ABUSSAFY
por ITAMARA RIBEIRO
por Livia Pellegrini
“Sempre que me acontece alguma coisa
importante está ventando”
(Ana Terra por Érico Veríssimo)

Meio-dia.
O vento sopra manso, sol a pino, en-
quanto inala-se o aroma de terra umedecida.
Margem. Cílios. Mato crescendo, nostalgia!,
a travessia das originárias sementes.
Ela à beira do rio. Pensando. Espreita a
água quase transparente mover-se. Lenta. Ár-
vores em contemplação. Espasmo das folhas
que em queda livre tocam o espelho d’água.
Ondas: tracejadas em círculos ao redor da
folha. Espaços que se abrem. Ela flutua.
Inspira o ar pelas narinas, enquanto o
suor escorre, lembrando a tez morena que o
fluir do desejo que não se represa se expressa
e quer. Desvenda saídas. Escoa. Naquele ins-
tante, acaricia lembranças, enquanto venta o
presente em constante criação do tempo
futuro.
Quem do lado de lá do rio há de sentir o
que por ela passa?
Nunca saberia, a não ser que... A não ser,
como o que tem acontecido, acreditasse em
destino. O destino trama o curso da vida
como também os caminhos de um rio. Mo-
mento em que toca, dentro dela, a canção
Vento de maio e as palavras soltam-se de seu
corpo, as imagens esvoaçam-se, memórias
circundam-na, e a brisa a lembra de esquecer
e ficar aqui.
Duas horas.
Sente o imã. Ela, pé ante pé: adentra
aquelas águas, enquanto a temperatura de
seu corpo muda e mudam seus pensamentos.
Estar em meio à largueza do ri(s)o.
As pedras, pedrinhas, pequenos galhos,
a areia encontram seus pés, pernas, coxas. E
pequeninos peixes envolvem o ventre e os
seios dela. Mergulhar os cabelos n’água, en-
quanto feixes de luz atravessam a retina. Ine-
xatidão. Desmemória.
O instante-agora. Apenas pra não parar nem
voltar atrás.
Ela caminha um pouco, agacha-se, abre
os braços. Boia. A flutuação requer entrega e
a água regozija-se com tal abraço levando-a
ao voo dos pássaros. Ameríndios. Doura-se o
céu. E a pele torna-se líquida – a morada dos
reinos. Todos.
E quase que eu me esqueci que o tempo
não pára nem vai esperar...
Quatro-horas.
O leito do rio é largo e mais alargado
fica com a presença dela. A correnteza-mãe
embala a filha. Ela, moça, agora é (a)tingida.
O vermelho vem vindo. É a hora, no ciclo de
sua lua. O canal em flor escoa o líquido
quente, de aroma oceânico e gosto sanguí-
neo.
Há mar dentro dela. Rainha dos raios de
sol. Enquanto ouve as vozes das crianças, lá
longe, ela brinca na correnteza agora aver-
melhada, recebendo os carinhos sutis da
tarde gestada em perfume & calor.
Seis horas.
Ocaso no horizonte. Vento solar... Ela
chega à outra margem. Apanha a flor de jas-
mim-manga e adorna os cabelos. Está quase
nua. E ao intuir a presença de alguém avista,
ancorado, um barco. Chama. Voz que alcança
a primeira estrela. Chama outra vez.
É quando do interior da canoa vão sur-
gindo dois olhos – lumes – e um largo sorri-
so. Pausa. Olham-se. Ela reconhece. É. O
antigo olhar.
A mão se estende com o gesto: - vem! –
em convite. Embarcar. Agora já não dá mais
pra voltar atrás.
Seriam aqueles olhos nos dela: o olho
d’água? Foi assim, que ela soube que sim.
Que o olho dela no dele, o dele no dela
fecundados faziam brotar olhos d’água –
nascidos, nascente, nativos do instante.
Rio estendido. Lua nascendo.
É noite.
Ela, ele. Ele, ela.
Ela e o rio.
Grupo Prosa de 5, fazendo uma versão
para Conversa de Botequim,
canção de Noel Rosa e Vadico

Acesse utilizando QrCode ou o link abaixo

( https://goo.gl/nWvg1Z (
por FERNANDO ZANETTI
Rudeza estanque e mofados ensejos
Tentar seguir e indícios buscar
Quando podia
Entreatos de formas encatida
Veemente de fermes que me águo
Entre elas
Entre ela um lacaio de brutas favas
Inferno ladado sob o sol
Poderia seguir sem essas verdades
Teríamos eles
Os caídos em nosso lúmen
Insurgidos de couro vistoso
Asado reluzente de latrina antiga
Ainda que ousassem seriam caçados
Um a um
Morte sob lápide
Então era
Quando podia

E como ter entre grandes o silêncio dos dias?


Teríamos um fim insistido
E um não
Ela do sim
Mas às vezes
Ele
O cansado
Ele o não
As forjas de dores e a verdade do mundo
Então era
Então era essa
Litania que inebriadas formas teríamos que
aturar
E por onde “senhor”
Um pequeno lampejo
E um pouco de baba cairia de tuas ventas
Ele o de três cabeças
E seus pequemos mastigados
Ó ou aquele que ainda a fissura latina da luz
encanta
Ele o caído do norte
Ele tão amado e que deveríamos envidar
Ou ainda o pequeno Urizen e sua nova morada
Exu de singelos pêlos
Indício do que entre nós já estaria dado
Servir de deuses e aquilo que temos
Homúnculo

Por seguir
E entre eternos cantar
Mas onde chegaríamos
Como ter entre estranhos o Amor
E inditos frêmitos
Gozo indito
E algo que jamais se saberá
E Ele será
Um instante
“Máquina de qualidade fatais”
E estaria aqui
Entre malditos cometida
Entre as canalhas da carne
E gosto insinuado
Cortar de inditos
Canto de semente
E dias febris
E ainda poder jurar
Como prometer a quem não conheces
Filho do cão e da morte indigna
Esse era nosso dado
E lançar de acaso novas brumas
Ainda em ensejo
E dizer o Sim
Mesmo que “rudemente violada
Tuí tuí tuí”
Quando podia
Quando podia o sol era sol
E tua carne estaria aqui
Entre nós
Por em olhos e vestígio
E seria assim
Quando podia
Mataria tua fonte
Tartarugas que voam em indícios de pedras
Entre nós cometidas

Bruto de ensejo
Gosto iníquo
Veludadas vozes sangradas
Estufos de flores em flora de mortes
E poderia
E onde chegar
E cantar de vida novas vozes.
``Sobre a nobre noite que têm sido palco da fome, da
morte, do gozo, da viagem na fumaça de simples cor-
deiros que desfiguram com complacência sua condição
inópia aos olhos de qualquer cobertura concretada sob
o suor daquele desgraçado corpo que ocupa seu espaço
nas ruas, configurando a realidade de um retrato des-
configurado pela alienação do que a constituição há
decretado como passos em linha reta, restando a aque-
les que caminham em zigue e zague as frías paredes
descascadas pela loucura, amarrados pela extinção de
sua criatividade, anestesiados pela nudez de seu cére-
bro, afogados em delírios medicamentosos eles fogem,
para onde sua mente possa desnudar em sanidade.``

Karoline Fuin
(ao demônio de Compostela)

Escavando manuscritos raros


De nossa catedral de sonhos
Deixe-me mostrar, o erro do copista,
Encurralar-te neste canto.
Existem os homens pelos quais
Os joelhos se dobram,
As bocas se emudecem,
Os sinos d’alma ensurdecem...
E Eu! Que faço deste relicário?
Sem senhas e chaves,
Penetrável apenas para o
Mais ousado verme...
Que faço?
Se putrefato em mim
O insondável sonho,
Não faço,
Confesso!
Lapido poemas de pecados...
por Enia Celan
por RICARDO
O ABUSSAFY
POR DANIEL PEREIRA

“Aprendi que um homem só tem o direito de


olhar o outro de cima para baixo para ajudá-
-lo a levantar-se”
Caí na cama com o aforismo de Gabriel
García Márquez latejando na cabeça, já ala-
gada de chuva e cerveja no bate-bola com
os amigos escritores Joaquim Maria Botelho
e Luis Avelima em um boteco próximo ao
falecido parque antártica. Nosso destino era
o Bar do Alemão, onde, quem sabe, podería-
mos encontrar jornalistas que em horas de
folga se disfarçam de músicos, como o consi-
derado Luis Nassif ou o próprio dono do
lugar, o cantor Eduardo Gudin.
O bar famoso está em reforma. Não sabía-
mos e, como a chuva crescia de intensidade,
nos aboletamos no boteco ao lado, onde
seríamos testemunhas de uma cena – nada
inusitada nessa pauliceia desvairosa -, que
variou do hilário ao trágico, dependendo da
sensibilidade ou do ângulo de quem estava
na plateia.
Como qualquer boteco, aquele também era
ressoante como uma concha marítima, diria
o inquieto Nelson Rodrigues, certamente
salivando crônica saborosa se ali estivesse
como testemunha ocular de mais um episó-
dio da vida como ela é. Ou não, pois está
ficando rotineira a banalização de determina-
dos comportamentos suscitados pelo efeito
de drogas, seja lá a que espécie ou reino per-
tençam.
Estávamos proseando em torno de uma
dessas – que chamam de política – quando
ela surgiu, esvoaçante como uma borboleta
órfã, frágil e vacilante, talvez ainda recuperan-
do-se da difícil jornada do casulo para a luz.
Vestia azul, moldando a silhueta morena e
espigada com generoso decote. Cerca de
1,70m. Modelo quase pluz size. O que podia
ser sua aura parecia terrivelmente opaca. Por
trás dos traços do seu rosto, macerado de
inconfundível desprezo pela vida, os julgado-
res da cena logo deduziram que naquele
corpo cambaleante já houvera habitado um
ser de melhor cepa – agora transformado, aos
nossos olhos, em farrapo humano.
A caminho da porta do bar, quase desabou
sobre a mesa em que estávamos. Ensaiou um
discurso engrolado, desses, típicos de quem
ultrapassou o limite do escracho moral. Súbito,
porém previsível, vai ao chão, de costas, empor-
calhando-se na enxurrada da calçada. Confir-
mou a regra de que bêbados e crianças têm
algum tipo de proteção diferenciada, essas
interferências da natureza que ninguém explica.
Melhor assim.
Não era moradora de rua, nem pedinte, atesta-
vam os empregados e frequentadores do
boteco. Seria casada com o traficante mór da
região, disseram outros. Era filha de um rico
industrial que foi desprezada pela família. Não,
ninguém sabia quem era aquela moça. Provavel-
mente nem ela mesma. Quem também saberia
mensurar o tamanho da dor que ela carregava?
Ou, como cantou Renato Russo, o tamanho do
desejo de não sentir dor?
A chuva cresceu de intensidade. E ela continua-
va lá, no chão, fora de controle, emitindo mono-
córdico e ininteligível grunhido. Agora, um soli-
dário bebum lhe fazia companhia e pelos
gestos, tentava, acreditem, conquistar a borbo-
leta. De qualquer forma, já estavam unidos pela
mesma desdita.
Assim como caiu, de repente, num passe mágico
ela conseguiu sair da horizontal, sentou-se com
as pernas em V, ajeitou a calcinha branca, deu
uma geral no indistinto público, recolocou os
peitões dentro da casinha, ergueu a cabeça,
meneou a cabeleira negra espargindo água
para os lados, levantou-se e, segurando-se no
vácuo, saiu bamboleante sobre os saltos de
seus sapatos. Incrível! Agora ela era mariposa,
uma borboleta noturna. Ninguém a olhou de
cima para baixo. Por comiseração, falta de co-
ragem ou por vergonha mesmo, sabe-se lá!
Certo, mesmo, é que ninguém ali tinha esse
direito.
Na mesa ao lado, Bob Marley, travestido de
boêmio paulistano, dedilha um desses seus
poemas que parecem feitos para curar feridas,
ou sorrir para o perigo e até mesmo resgatar
do inferno almas penadas como uma maripo-
sa bêbada em busca de luz. Ela não está mais
sozinha: a voz rouca à la Nelson Cavaquinho
do anônimo regueiro segue os seus passos,
não importa em que direção esteja indo
agora. Cante para ela, Bob, cante! Somos
jovens, belos, bêbados e Karetas...|Sempre em
bandos e às vezes em dois...|Curtindo grandes
amores, chapados...|Pirados...|Pelados, olhan-
do as estrelas à espera de | carinho e a procu-
ra| de um futuro que não chega.
por Maico Costa

Quando não quero palavras


Por empanturrarem minhas sobrancelhas
Por assolarem as estradas das traças destas ressacas
Quando a fala não conduz quem fala de uma sala
Ah, estas alas de uma sala de onde não me vejo
E grito. Vivo se viver for para ser
Mas tenho sido onde não quero estar por estar
É que sou para ser somente para o quê
O que rasga meu peito e diz: - Avante!
Ao lugar de uma lua que não é qualquer
Às sombras de uma estrela não tão... Fugaz
E se fugaz, é para não se findar
Estes “se”, sempre estes “se”. Revisitam as pontes
Servem os buracos. Eles servem. Meus buracos
VONTADE
Às vezes me vem uma vontade
(dessas de não se agüentar)
De morder minh’ alma
Mastigá-la de maneira lenta
Engolindo-a,
Pedaço por pedaço,

Esperar pela digestão


(normal nesses momentos)
E sair por ai
Sem medo de ficar nu por dentro
Sem passado e sem futuro
Sem claro ou escuro

Começar a me reinventar
Como se agora fosse meu começo
Descobrir que o corpo é leve
E que a alma pesa
Pelo seu pesado passado

Sem memória, sem marcas, sem rastros e pegadas


Apenas um primeiro passo a construir um novo
caminhar
Um começar do nada pro nada
Como se “nada” me empurrasse
E “nada” me segurasse

Às vezes, mas somente às vezes...


Me da essa vontade...

por THOMAS LEE

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