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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

A formação da professora alfabetizadora: reflexões sobre a prática


/ Regina Leite Garcia (Organizadora) – 6. ed. – São Paulo:
Cortez, 2015.

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-2330-2

1. Alfabetização 2. Professores – Formação profissional 3. Professores


Formação profissional – Brasil I. Garcia, Regina Leite.

15-00744 CDD – 370.71

Índices para catálogo sistemático:

1. Professoras alfabetizadoras: Formação profissional: Educação


370.71
REGINA LEITE GARCIA
(Org.)
Carmen L. Vidal  Carmen Sanches Sampaio

Denise Barata Gomes  Eveline B. Algebaile  Kita Eitler  Edwiges Zaccur

Maria Teresa Estehan  Maria Tereza Goudard Tavares  Mairce de S. Araújo

Marilene Calheiros Alvarenga  Regina Yolanda M. Werneck


Sandra Santos Cabral Baron

A FORMAÇÃO DA
PROFESSORA
ALFABETIZADORA:
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA

6ª Edição
3
Alfabetização tem conteúdos?
Mairce da Silva Araújo*

Ao fazer esta pergunta para as professoras, tenho encontrado uma


reação de surpresa diante de uma questão, cuja resposta parece obvia: o
conteúdo da alfabetização é ensinar a ler e a escrever. Ler e escrever, porém,
incidem sobre um objeto socialmente contextualizado – ler o quê?, escrever o
quê?

Trabalhando junto com outras companheiras do grupo de pesquisa, no


projeto de formação continuada para as professora alfabetizadoras em Angra
dos Reis, pude perceber em vários momentos que, também lá, essa apreensão
não era muito diferente. Parecia já estar incorporado à conversa sobre
alfabetização o consenso de que o seu conteúdo refere-se apenas à análise da
estrutura da escrita.

Em diferentes situações, propostas de trabalho com a leitura e a escrita,


consideradas pelas professoras como interessantes e desafiadoras para as
crianças, foram também classificadas como não apropriadas às classes de
alfabetização, pois as crianças “ainda não sabiam ler”.

*Mestre em Educação pela Universidade Federal Fluminense – UFF, professora da


Rede Estadual de Ensino. Professora substituta da UFF e professora da Faculdade de Filosofia
e Letras de Cabo Frio – FERLAGOS.
No entanto, se pensarmos na aprendizagem da leitura e da escrita como
a apropriação de meios que vão possibilitar às crianças a construção do seu
próprio conhecimento, potencializando-se a conhecer e atuar sobre um
conhecimento já acumulado historicamente, vamos concluir que a discussão
sobre os conteúdos é inerente à discussão sobre alfabetização.

Em princípio, a reflexão sobre conteúdos pedagógicos deve nos remeter à


própria especificidade da escola. Se a escola não é o único local de
apropriação e produção do conhecimento, e talvez não seja nem o mais
importante, ela é, no entanto, a instituição criada, essencialmente, para este
fim: ser um espaço de socialização do conhecimento. Para que se atualize a
função da escola é indispensável que todos se apropriem da linguagem escrita,
já que é primordialmente por meio dessa linguagem que o conhecimento foi
registrado, transformando-se em conhecimento escolar.

Se a função primordial da escola está ligada à questão do conhecimento,


não tem sentido pensarmos qualquer momento dessa escola em que os
conteúdos culturais/pedagógicos não sejam o seu eixo central. É, portanto, a
partir da relação escola/conhecimento que precisamos pensar a pré-escola e a
alfabetização.

Por que destacar esse momento? Porque historicamente a pré-escola tem


sido vista, como nos aponta Garcia (1993), ora como uma escola
desinteressada, ora como uma escola “preparatória” que, apesar de objetivos
diferentes, caracterizam-se como “momentos anteriores à escola, sem nenhum
compromisso mais específico com a produção e circulação do conhecimento.”

Na escola desinteressada, a preocupação vai estar voltada para um


“desenvolvimento integral da criança”, nunca muito bem explicitado e,
contraditoriamente, promovido por meio de atividades soltas, sem articulação
umas com as outras. Já a escola preparatória se limita a preparar a criança
para uma aprendizagem futura da leitura e da escrita, que se dará no nível da
escola. Em nenhuma delas o conhecimento aparece como um processo a ser
construído, como se o fato de pensar, questionar, levantar hipóteses, buscar
respostas só acontecesse com as crianças depois que elas entrassem para a
escola.
Superando esses dois modelos, apontamos para uma pré-escola/escola,
que já está presente em algumas salas de aula, e que, além de procurar dar
continuidade ao processo de alfabetização, no qual as crianças já estão
envolvidas antes mesmo de entrar para a escola, compromete-se também em
ser um espaço de transmissão/apropriação de conhecimentos e base para a
produção de novos saberes.

Currículo oculto: os conteúdos que não são explicitados

Não basta reconhecer o papel central que os conteúdos pedagógicos


desempenham na escola, é preciso analisar de que forma eles têm sido
selecionados e trabalhados dentro dela.

Algumas situações vivenciadas na escola nos confirmam que, dentre os


mecanismos internos de reprodução, o currículo escolar ocupa, sem dúvida,
papel principal. Entenda-se o currículo como um conjunto de conteúdos,
habilidades, valores selecionados pela escola para serem oferecidos aos
alunos e que estão sempre articulados a interesses mais amplos da sociedade.

Uma das formas de viabilizar o saber-poder é “ocultar” as diferenças que


vão sendo reforçadas e legitimadas na seleção de conteúdos, habilidades e
valores que se apresenta como neutra e universal, mas que na verdade, revela
interesse relacionados a uma visão política, econômica e social do mundo.

Perceber esses interesses e a que classe social estão articulados nos


ajuda a desvelar o que autores, como Apple, identificam como o currículo
oculto da escola, que também envolve conteúdos, habilidades e valores, ainda
que não explicitados.

As diferenças vão aparecendo dentro das escolas e beneficiando alguns


desde o ponto de partida. Quem fala a mesma linguagem da escola e cultiva os
mesmos hábitos e valores faz parte, “naturalmente”, do grupo dos mais
capazes; os demais precisarão “ser educados”.

Um exemplo disso é a preocupação com a formação de hábitos de


higiene, presente na escola desde as classes pré-escolares, e que revela a
eleição de hábitos e valores de uma dada classe social como os “mais
corretos” e “desenvolvidos”, sem que se questione, em momento algum, as
condições materiais concretas possibilitadas a uma ou outra classe social para
adquiri-los e mantê-los.

Uma situação vivida numa das escolas que investigo ilustra bem essa
afirmação. As crianças assistiam a uma dramatização que tinha como tema,
juntamente, a importância dos hábitos de higiene. No palco, inspiradas por uma
campanha apresentada pela televisão – “Povo desenvolvido é povo limpo” -, as
normalistas ensinavam para as crianças, por meio de dramatizações, as regras
básicas de higiene, alertando também para os cuidados com os animais
domésticos. Após a apresentação, avaliando o vivido, uma das crianças
demonstrou sua tristeza e revolta, pois, sentindo-se humilhada, afirmava que,
se na casa dela as galinhas não dormissem dentro de casa, provavelmente, no
dia seguinte, já teriam sido roubadas. Esta era a sua realidade, uma favela, ao
lado da escola, onde não há rede de esgoto e muito menos água encanada.

Sem considerar o universo sociocultural das crianças, atividades como


lavar as mãos, escovar os dentes, tratar o lixo, preservar o ambiente etc.
acabam sendo desenvolvidas na escola de uma forma “natural” e não ajudam
as crianças a compreender a realidade social em que vivem.

A falta dessa reflexão impõe às crianças um “padrão de limpeza” que


destaca algumas por já o possuírem, devido à sua situação de classe,
humilhando outras, que assim vão se identificando cada vez menos com a
escola e assumindo cada vez mais a culpa por sua pobreza.

É, também, mediante vivências sutis como essas que a divisão social vai
sendo reproduzida pela escola, a partir de um currículo que “naturaliza” e
“subjetiva” sucessos e fracassos dos alunos, escamoteando suas origens de
classe.

Estabelecer a relação entre currículo/controle e poder, no entanto, não


significa que a reprodução social se dê de forma mecânica e absoluta, ou
mesmo que seja automaticamente assimilada por alunos e professores. Nesse
sentido, o desabafo da criança pode ser visto como uma recusa em aceitar o
papel que estavam lhe impingindo.
A resistência da criança à imposição de valores e hábitos, impossíveis
para ela, dadas as suas condições materiais de vida, é denunciadora da
alienação do currículo. Como apresentar como valor hábitos higiênicos só
possíveis a quem não é obrigado a botar as galinhas dentro de casa, pois, se
não o fizer, alguém as roubará? Se o currículo fosse construído considerando
as condições materiais de vida das crianças, é claro que as crianças não se
veriam expostas a humilhações, como aconteceu no caso citado, e como
frequentemente acontece em escolas que recebem crianças que moram em
favelas.

Essa preocupação não significa, porém, defender que temas relativos à


higiene ou aos cuidados com a saúde não sejam trabalhados com as crianças
desde os primeiros momentos em que elas entram para a escola. Significa,
sim, apontar para uma outra forma de trabalhar a questão para que se possa,
em vez de imprimir a subalternização, ajudar as crianças das classes populares
a perceberem que tanto a questão da saúde, quanto questão da doença
dependem muito mais das condições concretas que devem ser garantidas à
população por políticas sociais, do que da vontade individual.

Os dados publicados pela Folha de S. Paulo (17/7/1988) denunciando


que mais de 71% da população não tem rede de água, mais de 85% não tem
esgoto, mais de 50% das casas não tem luz elétrica, servem para ilustrar o
quanto uma grande parcela da população tem ficado à margem dos serviços
essenciais básicos.

Participando das atividades que, diferentemente da já antes relatada,


contribuam para “desnaturalizar” a falta das condições básicas no lugar onde
moram, identificando-as como produto de políticas públicas favoráveis ou
desfavoráveis às classes populares, as crianças estarão aprendendo a pensar,
argumentar, desenvolvendo uma consciência social e crítica.

E se, também, os pais forem envolvidos nas atividades e com eles se


trabalhar nessa perspectiva, a escola vai estar contribuindo para desenvolver o
que Valla (1993) chama de “cidadania da sobrevivência”, isto é, a exigência de
que o governo respeite os direitos da população, devolvendo os impostos que
já foram pagos sob forma de serviços básicos que garantam a sua
sobrevivência, pois, sem estes serviços, muitas pessoas correm o risco de até
morrer. E, a partir daí se percebendo com direitos aos serviços públicos
essenciais, se organizem e lutem por esses direitos.

Daí a necessidade de se construir o currículo considerando a cultura de


origem e a experiência de vida do aluno como pontos de partida de uma prática
pedagógica voltada para os interesses dos setores populares.

Embora essa necessidade já encontre eco nas escolas, o que se vê,


ainda, na prática, é um distanciamento significativo entre os conteúdos
escolares e a realidade de vida dos alunos, principalmente das classes
populares. O que o aluno já sabe, a sua bagagem cultural, tem sido bem pouco
valorizado na escola. A necessidade de se partir da realidade do aluno, por
vezes, é transformada em um discurso sem consistência, contribuindo para
uma estranha associação entre currículo para as classes populares e redução
de conteúdos e “facilidades” na avaliação – “Deixa passar pois ele não vai
continuar mesmo, pois vai ter de trabalhar”, “Pra que ensinar tanta coisa se ela
vai ser empregada doméstica?”

É importante considerar que a construção de um currículo que se


comprometa com os interesses das classes populares exige uma preocupação,
não só com a qualidade dos conhecimentos que seleciona, como também com
uma metodologia que potencialize os alunos a responderem os desafios que o
mundo lhes apresenta.

Currículo e Alfabetização

Valer-se da prática vivida pelos alunos como um ponto inicial para o


planejamento das atividades e, a partir dela, extrair conteúdos que os ajudem a
compreender o que se passa no mundo e as possibilidades de ação e
transformação dessa realidade apontam para uma proposta curricular apoiada
em interesses emancipatórios.

Nas classes de alfabetização, no entanto, essa proposta parece ficar


ainda mais distanciada da realidade, na medida em que, nesse momento, a
preocupação de professoras e alunos vai estar mais voltada para “atividades
específicas” que possibilitem apenas o domínio da escrita e da leitura,
entendidas leitura e escrita em seu sentido mais limitado.

Assim, se a preocupação central é lançar palavra-chave, desdobrá-la em


famílias silábicas, formar novas palavras etc., não sobra muito tempo para
outras atividades que impliquem, por exemplo, fazer uma visita à comunidade,
entrevistar moradores, fazer um levantamento da origem do bairro etc. e que
possibilitariam à professora se aproximar bem mais da realidade vivida pela
criança.

Dúvidas como essas aparecem expressas nas discussões nas escolas e,


também, foram objeto de indagação de uma professora em Angra dos Reis,
quando discutíamos a possibilidade de tornar a análise da realidade vivida
como ponto de referência para a alfabetização.

Como registrar o processo de visita à comunidade, se o aluno da C.A não sabe


escrever?

Perguntava-nos aflita a professora, dividida entre o que ela percebia como


sendo uma proposta interessante e coerente e a justa preocupação com o seu
fazer específico de alfabetizadora, que lhe atribui responsabilidade diante das
crianças, dos pais e da escola.

Porém, será que realmente uma proposta anula a outra? Será que não dá
para conciliar no estudo com a criança a análise de sua realidade e o processo
de alfabetização? Será que, na verdade, os dois processos não fazem parte de
uma totalidade? E sobre tudo, não será mais rica uma alfabetização cujos
conteúdos tenham sentido para as crianças?

Ao responder que sim, estaremos caminhando para superar uma


concepção do ato educativo que o separa em conteúdo e forma. Segundo essa
concepção, a forma de educação diz respeito aos procedimentos pedagógicos:
métodos e técnicas, por meio dos quais o ensino é ministrado. Já o conteúdo
está relacionado à totalidade dos conhecimentos que são transmitidos da
professora para o aluno.
Quando se trata da alfabetização, então, a preocupação parece centrar-
se fundamentalmente na forma, isto é, na busca de um melhor método ou de
melhor cartilha, já que o conteúdo da alfabetização também parece estar
previamente definido: a estrutura e a análise da escrita.

Se entendermos assim, realmente fica muito difícil desenvolver toda a


“mecânica” da alfabetização e, ao mesmo tempo, trazer para a sala de aula
novos conteúdos que explorem a curiosidade, a vivência e a experiência de
vida das crianças.

Na verdade, conteúdo e forma são indissociáveis, fazendo parte de uma


mesma totalidade dialética – no caso, o ato educativo. Se assim é, um
determina e é determinado pelo outro, seja qual for a concepção de
alfabetização subjacente à prática pedagógica.

Assim, o conteúdo determina a forma na qual se desenvolve o currículo;


se o conteúdo é entendido como a estrutura e a análise da escrita, a forma só
poderia ser um método que efetivamente realizasse a análise (palavração,
sentenciação etc). Por outro lado, a forma limita a possibilidade de variação do
conteúdo – a utilização desses métodos amarra o processo de apropriação da
linguagem escrita num caminhar mecânico e sem sentido para a criança,
produzindo uma escrita “escolarizada” e empobrecida.
Como, por exemplo, pode ser observado no exercício em que a
professora procura verificar o que a criança já aprendeu a ler e a escrever, sob
o ponto de vista da forma, que é o aspecto priorizado por ela em sua prática
alfabetizadora. No entanto, na situação em si, parece que até a professora se
incomodou com o conteúdo empobrecido da escrita, quando questionou a
criança sobre o sentido da última frase. Nesse momento, ela lançou mais um
desafio para a criança: atribuir um sentido a um processo que lhe foi
apresentado sem sentido. De que forma a produção de frases isoladas,
descontextualizadas, que não possuem encadeamento entre si, podem ajudar
a criança a se apropriar da linguagem escrita como instrumento de expressão e
comunicação de suas ideias, sentimentos, necessidades, descobertas etc.?

Se o que queremos possibilitar à criança é descobrir o sentido da escrita,


a questão dos conteúdos se torna preponderante, pois a partir dos mesmos
podemos investir numa relação orgânica entre a criança e a linguagem escrita.

Se os conteúdos selecionados para a alfabetização forem conteúdos


extraídos da necessidade da criança conhecer-se e conhecer o mundo à sua
volta, a forma, ou seja, o processo de trabalhar esses conteúdos, de possibilitar
a apropriação da leitura e da escrita, consequentemente, não será o mesmo. A
forma, nesse caso, deverá garantir as mais variadas vivências possíveis com a
escrita, no seu uso e função social.

Alfabetização: conteúdo e forma – investigando essa relação


na escola

A dificuldade da escola em lidar com os alunos das classes populares que


se traduz, ainda que em parte, pelos altos índices de evasão e repetência é
também sentida e assumida frequentemente pelas próprias professoras dentro
das escolas. Especialmente as professoras da classe de alfabetização.

Como eu posso ensinar meu aluno se ele chega na sala de aula e me conta que
ficou a noite inteira acordado presenciando a briga entre os pais? De que forma
vou conseguir prender a atenção dele para ensiná-lo a ler e escrever?
Por trás da justa preocupação e angústia da professora, evidencia-se
mais uma vez a distância entre os dois mundos: a vida fora e a vida dentro da
escola; para que a criança aprenda a ler e escrever é preciso que ela se
“desligue” da vida “lá fora”. E, ao mesmo tempo, desenha-se o fracasso
escolar, já que a total falta de identidade entre a sua própria vida e a escola
levanta para a criança barreiras imensas, que dificultam, se não impedem, a
apropriação e construção de conhecimentos.

Por outro lado, o desafio de “prender a atenção da criança” se transforma


num dilema para a professora, na medida em que a concepção de
alfabetização com a qual trabalha, interpõe entre a criança e o ato de
ler/escrever uma habilidade considerada pré-requisito para que possa dar
conta da tarefa de aprender a ler e a escrever.

Assim, o processo de alfabetização, mesmo quando envolvido num


discurso novo, construtivista, apontando a necessidade de se estar atento ao
processo de construção da criança, continua a cair na armadilha de preparar
primeiro para alfabetizar depois. Exemplo disso é a difusão de exercícios e
atividades que, ao pretenderem ajudar a criança a passar da fase silábica para
a alfabética, reproduzem a mesma lógica que defende a necessidade de a
criança precisar ser preparada para finalmente se alfabetizar.

Essa prática revela a leitura aligeirada e superficial sobre o construtivismo


que tem penetrado nas escolas, por meio de inúmeros cursos de atualização e
aperfeiçoamento que, ao não oferecerem uma base segura para a professora
refletir sobre a sua prática, qualificando-a como autora do seu fazer
pedagógico, não contribuem para que ela reconheça o seu aluno como um ser
que pensa e produz conhecimento, traindo, assim, a própria essência do
construtivismo. Professora e criança acabam vítimas do mesmo processo de
desqualificação.

Acreditando que vão aprender a ler e a escrever para resolver situações


específicas (ler um gibi, a legenda do filme, as informações do álbum de
figurinhas, os rótulos no supermercado etc.) e sem conseguir estabelecer ponte
entre um processo mecânico e sem sentido e as suas expectativas, as crianças
vão aos poucos desanimando e acabam incorporando como sua a
incompetência da escola em lhes garantir a apropriação desse saber.

Em vez de aprender a ler o gibi, aprendem a fazer deveres. Foi


exatamente essa a resposta que ouvimos, em nossa pesquisa, quando
perguntamos à criança: “Para que você quer aprender a ler e a escrever?”. Ela
não teve dúvidas em responder:

- Para aprender fazer dever, né?

Realmente, analisando um modelo de tarefa muito comum em nossas


salas de aula, podemos refletir se não contribui muito mais para moldar a
criança a um mundo de conhecimentos escolarizados e superficiais, que não
lança nenhum desafio, nem estimula descobertas, do que para ajudá-la a se
apropriar de conhecimentos concretos sobre a linguagem escrita.

Junte – Separe – Copie – Obedeça – Reproduza – Não Questione –


Aprendizagem da leitura e da escrita ou modelagem de comportamento?
Aprender a analisar a escrita como um pré-requisito para a aprendizagem
da escrita e da leitura é semelhante a aprender a nadar fora da água. Em
nenhum lugar se ensina a nadar assim. Somente a escola trabalha com
atividades e conteúdos escolarizados, isto é, conteúdos que só existem dentro
dela. Em que livro, jornal ou revista a criança encontra um “separe a sílaba” ou
mesmo um “ligue e forme palavras”? Que contribuição efetiva esse tipo de
atividade e de conteúdo pode oferecer para ajudá-la na apropriação da
linguagem escrita?

Aprendendo a ler, lendo, e a escrever, escrevendo

Organizar o ensino da leitura e da escrita procurando criar condições para


a apropriação da linguagem escrita como um instrumento de compreensão e
intervenção na realidade implica, em primeiro lugar, possibilitar vivências com a
leitura e a escrita que tenham relevância e significado para a vida da criança,
algo que se torne uma necessidade para ela e que lhe permita refletir sobre
sua realidade e compreendê-la.

Para isso é preciso que as crianças sejam constantemente desafiadas por


situações diversificadas e significativas, a refletirem sobre o seu próprio
processo de construção de conhecimento, experimentando/exercitando a
escrita – escrevendo –, e, da mesma forma, experimentando/exercitando a
leitura – lendo. Contrapondo, dessa forma, ao uso escolarizado que se faz da
escrita, um uso social que de fato possibilite a apropriação dessa linguagem.
Adquirindo o que Fairclough denomina de consciência da linguagem.

Foi a vivência desse processo que permitiu a produção do texto seguinte


por uma turma de 3º período.
A proposta do trabalho começou na rodinha, momento e lugar onde a
professora abre espaço para que as crianças levantem assuntos e tragam
sugestões de temas que gostariam de estudar. Como essa tem sido uma
prática com que as crianças já se acostumaram, apareceram várias sugestões:
O cometa que ia se chocar com a Terra; o real – a nova moeda que estava
sendo colocada em circulação; os Planetas, a Lua, e tantos temas quantas
eram as crianças.

Diante de tantas sugestões, surgiu a proposta, também já vivenciada em


outras situações, e que resolve o problema de não se poder discutir todos os
temas ao mesmo tempo: “- Tia, vamos votar”

O processo de votação vivido pelo grupo exercitava a prática da


consciência coletiva, pois possibilitava a todas as crianças que defendessem
suas ideias, garantindo a cada uma vez e voz, respeitando o direito de outros
expressarem suas ideias, aprendendo a confrontar as suas ideias com outras
ideias diferentes e, ao mesmo tempo, permitia que as necessidades e
interesses da maioria fossem priorizadas em relação aos interesses individuais.

Para a votação as crianças foram desafiadas a listarem no blocão a


relação dos temas que surgiram e, após a listagem, cada uma assinalava sua
preferência, marcando com um traço o tema preferido. Contados os votos,
descobriu-se o tema que canalizava o interesse da maioria – a Lua.

Aquilo que as crianças sempre viram, ao olhar para o céu, à noite,


transformava-se em conteúdo pedagógico de alfabetização. A astronomia
alfabetizava.

A partir daí, a professora propôs às crianças que começassem o estudo


sobre a Lua refletindo sobre o que o grupo já conhecia a respeito. Mais uma
vez a escrita se tornava uma necessidade para registrar informações e planejar
o trabalho. Tinha sentido aprender a escrever.

Assim, foi sendo registrado no blocão:

Já sabemos sobre a Lua:

- O Sol ilumina a Terra

- O Sol ilumina a Lua.

- Na Lua não tem luz.

- A Lua parece no céu à noite.

- A Lua é redonda.

- Na Lua tem água.

- Na Lua não tem gente.

Nessas falas, as crianças traziam para a escola não só o fruto de suas


próprias reflexões e observações sobre o mundo físico que as cerca, como
também fragmentos de informações que recebem dos adultos, e de outras
fontes, como televisão, jornais, revistas, livros, filmes, vídeos etc.

O passo seguinte foi buscar novas fontes que pudessem esclarecer as


dúvidas sobre o assunto. As famílias foram solicitadas e alguns livros
chegaram até a escola, porém, a professora, comprometida em ampliar ao
máximo as vivências e experiências das crianças, planejou junto com elas uma
visita à Biblioteca Municipal.
No interior da biblioteca, múltiplas situações de interação com a leitura e a
escrita se produziam: manusear, conhecer, ler livros de literatura, história,
ciências, livros velhos e novos, finos e grossos, infantis e de adultos etc.; ler os
cartazes e as etiquetas das paredes e das prateleiras, conhecer as fichas onde
os livros são registrados e, até mesmo, o livro de assinaturas para visitantes,
em que as crianças fascinadas foram convidadas a registrar suas presenças, o
que as encheu de orgulho de si mesmas. Sentiam-se capazes, o que lhes dava
coragem para avançar.

Desafiadas pelas informações adquiridas na leitura das enciclopédias e


estimuladas em sua imaginação, as crianças entravam na Apollo II e junto com
Aldrin e Armstrong pisavam pela primeira vez o solo lunar. Misturando fantasia
e realidade, a professora oferecia às crianças elementos que as ajudavam a
construir a noção de tempo histórico, ao comprar os dois momentos: o de
ontem, com a Apollo II, e o de hoje, com os ônibus espaciais.

_____________

* Trabalho realizado no jardim de infância Professor Murilo Braga. Barra do Piraí, Estado do
Rio de Janeiro.
Elas aprendiam que o que acontece em outro lugar e em outro tempo
pode ser trazido para o aqui e o agora graças à escrita.

Mesmo que ainda fosse difícil para as crianças, naquele momento, terem
uma dimensão mais clara sobre o tempo percorrido, ao trazer informações
sobre os acontecimentos históricos a professora contribuía para a construção
do conceito de tempo, já que a atividade desenvolvida possibilitava novas
aprendizagens que, por sua vez, provocavam novos desenvolvimentos.

Retornando à escola, professora e crianças fizeram o inventário das


novas informações adquiridas confrontando-as com as anteriores. Concluíram
não ser a Lua que ilumina a Terra, mas o Sol, e interessaram-se por estudar os
satélites artificiais. A curiosidade sobre os outros planetas que compõem o
Sistema Solar também aumentava. Abriram-se novas possibilidades de estudo
para as crianças. Ampliava-se o seu interesse por conhecer e maravilharam-se
com o que aprendiam.

Sidnei, um dos alunos, concluiu: “O satélite serve para filmar as imagens


da Lua para a Terra”.

O estudo sobre as fases da Lua também mobilizou bastante a atenção e o


interesse das crianças, que encontraram um grande prazer em trocar
informações sobre suas descobertas e observações. A oportunidade de expor
ideias, de ouvir as opiniões de outras crianças e de adultos, a respeito dos
fatos observados, possibilitava às crianças recolherem novas informações que
as ajudavam a pensar e a elaborar suas próprias teorias sobre o mundo.

As crianças desenhavam, pintavam e recortavam cada uma das fases da


Lua, nomeando-as e levantando elementos que pudessem distingui-las umas
das outras; o brilho, a direção do desenho voltado para a esquerda ou para
direita. Paralelo a isso, acompanhavam na folhinha a duração de cada fase,
contando o número de dias correspondentes, descobrindo que variavam entre
sete e oito dias. Diante das novas indagações, a professora, cumprindo o seu
papel de informante e representante se um saber mais elaborado, esclarecia
que essa variedade se dá em função do tempo que a Lua leva para completar
uma volta em torno da Terra. A partir dessas descobertas, durante algum
tempo, registrar a fase da Lua foi mais uma tarefa prazerosa incorporada à
rotina diária da montagem do calendário.

Observar, pesquisar, vivenciar atividades como essas apenas


possibilitavam às crianças uma aprendizagem inicial sobre o seu tema de
interesse, porém foi a partir dessa aprendizagem que as crianças começaram a
fazer generalizações, mobilizando funções psicológicas como atenção,
memória, capacidade de comparar e diferenciar que, segundo Vygotsky, se
desenvolvem ao longo de um processo complexo e levam à formação dos
conceitos científicos.

Fugindo inteiramente da escrita artificial e escolarizada presente na


maioria das escolas, crianças e professoras, foram buscar na “Casa dos Livros”
as informações que necessitavam para entender melhor o mundo à sua volta.
E, lá, entravam em contato com o conhecimento já produzido historicamente e,
ao mesmo tempo, construíam referenciais para produção de novos
conhecimentos. Quanto mais ideias eram colocadas à disposição das crianças,
maiores possibilidades lhes eram dadas produzirem novas ideias, formularem
novas perguntas e encontrarem novas respostas.
Para concluir a pesquisa, resolveram que a melhor forma de registro das
novas informações seria um livro, para o qual escolheram um título: “A Lua, o
nosso satélite artificial”. Decidiram, também, que o livro teria o formato de uma
das fases da Lua – a Lua crescente.

Interessante refletir que tanto no título do livro, quanto no seu formato, as


crianças fizeram questão de deixar pistas dos conhecimentos construídos
durante a vivência do processo – a Lua, um satélite natural, em contraposição
ao satélite artificial que o homem manda para o espaço e que tanto despertara
o seu interesse.
Concluíram que o formato do livro não podia ser uma lua qualquer,
estática no céu, mas sim a Lua em movimento, mostrando uma de suas fases.

Na produção do livro, durante todas as etapas, desde o primeiro momento


em que se lançou a ideia da pesquisa, até o último, no qual as crianças
registraram, utilizando mimeógrafo, foi sendo construída uma relação entre as
crianças e o conhecimento. Uma relação de sujeitos de aprendizagem, de
quem vai se apropriando do próprio processo de construção de conhecimento e
se tornando cada vez mais potente.

O aprendizado da língua escrita foi sendo conquistado a partir do uso da


linguagem. Num processo de tentativas, aproximações, confrontos e conflitos,
as crianças foram realizando um conquista pessoal e coletiva, construindo
conhecimentos e incorporando-os à sua atividade cotidiana.
O conteúdo da alfabetização

A escola pode ser um espaço privilegiado para plantar a semente do


prazer de aprender. Para isso, é preciso reconhecer a criança como produtora
de conhecimentos, alguém que está sempre indagando e procurando respostas
para tudo que vê, ouve, toca, sente... e, nesse sentido, à medida que encontra
respostas, vai produzindo conhecimentos a respeito do mundo. A curiosidade é
uma característica natural, que provoca no ser humano o desejo de aprender.
Plantar a semente do prazer de aprender significa dar respostas a essa
curiosidade, e não matá-la ou silenciá-la, como frequentemente o fazem o
adulto e a escola.

Uma escola comprometida com as crianças das classes populares tem,


portanto, como uma de suas principais tarefas responder ao desejo da criança
de aprender, construindo para isso um ambiente desafiador e significativo.

Em tal ambiente, a escrita aparece plena de sentido, cumprindo sua fun -


ção social, possibilitando que novos conteúdos de alfabetização, que se afinem
com essa concepção, reafirmem a escola como um espaço de
construção/reconstrução de conhecimentos. Os conteúdos de alfabetização
passam a ser infinidade de questões e indagações que a criança traz para a
escola para dar conta de sua necessidade de construir/reconstruir
conhecimentos sobre o mundo, a sociedade, a natureza e sobre si mesma.
Conteúdos que possibilitem articular no trabalho pedagógico a realidade
sociocultural das crianças, as características do desenvolvimento infantil e que
também garantam o acesso aos conhecimentos acumulados historicamente
pela humanidade.

A escola que se coloca a partir dessa proposta, muito longe de estar


esvaziada de conteúdos, é na verdade uma escola que cumpre o papel
fundamental de socializar o conhecimento.

Os conteúdos que, de uma forma direta ou indireta, foram mobilizados


pela professora durante a pesquisa sobre a Lua ilustram bem essa afirmação:

 em Língua Portuguesa – ampliação do universo linguístico; a produção de


textos que formam um todo significativo e articulado; o exercício da gramática
mediante a utilização dos sinais de pontuação, das concordâncias nominal,
verbal etc.; o contato com os diferentes gêneros de textos; o desenvolvimento
da escrita e da linguagem escrita;

 em Educação Artística – desenvolvimento da linguagem pictórica;


experiências com cor, forma, texturas, perspectiva, movimento; uso de duas,
três e quatro dimensões; relação forma e conteúdo; relação figura-fundo;
desenvolvimento da sensibilidade; desenvolvimento do sentido estético;
respeito às diferentes formas de representar a realidade; o desenho como
ilustração do texto escrito e o desenho como expressão autônoma;

 em Ciências Sociais – o respeito ao outro; o desenvolvimento do espírito


coletivo; vivências de normas de conduta e relação social; relação direito-
dever; o trabalho como valor – seu sentido criativo e seu sentido social; a
exploração dos recursos culturais do município como a visita à biblioteca; o
reconhecimento de outras profissões, como a de bibliotecário; a exploração do
espaço físico – o centro da cidade, deslocamento espacial, a construção do
conceito de tempo histórico;

 em Ciências Naturais – a interação com o meio físico e social, o estudo da


Natureza, seus atributos e transformações; em Astronomia – estudo dos corpos
celestes como estrelas, planetas, cometas, constelação, Sistema Solar, Via
Láctea, Universo, relação macro (Universo) micro (a Terra), distância entre a
Lua e a Terra; relação entre o Sol, a Terra e os demais planetas; a Lua e suas
fases; em Astronáutica – os satélites naturais e os homens construindo
satélites artificiais;

 em Matemática – conceitos de numeração cardinal e ordinal, comparação de


quantidades (igual, a mais, a menos), conceitos de adição, subtração,
multiplicação e divisão (um dia a mais, a menos, quantos faltam etc.). E,
também conceitos de Geometria – a Lua redonda semelhante ao Sol e a Terra,
e diferente de outras formas quadradas, triangulares etc., a representação da
trajetória da Lua em torno da Terra e da Terra em torno do Sol e o Sol com os
seus satélites também se movimentando na Via Láctea.
E tantos outros conhecimentos que iam sendo produzidos com o uso de
diferentes linguagens: oral, escrita, pictórica, musical e corporal. Iniciavam-se
na linguagem científica (para quem a Lua era uma bola que brilha no céu,
passou a ser Lua – satélite da Terra, um corpo celeste, que tem movimento,
que gira no espaço e que, ao girar, muda de posição e nos deixa ver partes
que se mostram diferentes de onde vemos). Faziam incursões na linguagem
poética, lendo e reproduzindo poemas. A Lua científica é diferente da Lua dos
poetas.

O mais importante a ser considerado, porém, é que o trabalho


pedagógico, que se propunha a estar atento e se sensibilizar diante dos
interesses e das experiências de vida das crianças, acabou abrindo o espaço
da sala de aula para a análise dos mais variados temas, como por exemplo: A
alta do custo de vida; As eleições presidenciais; A camada de ozônio que cobre
a terra etc., possibilitando a crianças e professores uma compreensão mais
ampla da realidade, potencializando todos a nela interferirem.

As situações vivenciadas por crianças e professora, aqui discutidas, foram


algumas das inúmeras situações que levei para reflexão do grupo em nosso
curso de Atualização em Angra dos Reis, visando que as professoras,
estimuladas pelas práticas de outras professoras, também trouxessem muito
mais da sua própria experiência e se enriquecessem com a troca.

A partir daí, refletindo sobre essas experiências, construíamos respostas


para as questões que iam surgindo e, nesse processo, produzíamos novos
saberes.

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