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Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-249-2330-2
A FORMAÇÃO DA
PROFESSORA
ALFABETIZADORA:
REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA
6ª Edição
3
Alfabetização tem conteúdos?
Mairce da Silva Araújo*
Uma situação vivida numa das escolas que investigo ilustra bem essa
afirmação. As crianças assistiam a uma dramatização que tinha como tema,
juntamente, a importância dos hábitos de higiene. No palco, inspiradas por uma
campanha apresentada pela televisão – “Povo desenvolvido é povo limpo” -, as
normalistas ensinavam para as crianças, por meio de dramatizações, as regras
básicas de higiene, alertando também para os cuidados com os animais
domésticos. Após a apresentação, avaliando o vivido, uma das crianças
demonstrou sua tristeza e revolta, pois, sentindo-se humilhada, afirmava que,
se na casa dela as galinhas não dormissem dentro de casa, provavelmente, no
dia seguinte, já teriam sido roubadas. Esta era a sua realidade, uma favela, ao
lado da escola, onde não há rede de esgoto e muito menos água encanada.
É, também, mediante vivências sutis como essas que a divisão social vai
sendo reproduzida pela escola, a partir de um currículo que “naturaliza” e
“subjetiva” sucessos e fracassos dos alunos, escamoteando suas origens de
classe.
Currículo e Alfabetização
Porém, será que realmente uma proposta anula a outra? Será que não dá
para conciliar no estudo com a criança a análise de sua realidade e o processo
de alfabetização? Será que, na verdade, os dois processos não fazem parte de
uma totalidade? E sobre tudo, não será mais rica uma alfabetização cujos
conteúdos tenham sentido para as crianças?
Como eu posso ensinar meu aluno se ele chega na sala de aula e me conta que
ficou a noite inteira acordado presenciando a briga entre os pais? De que forma
vou conseguir prender a atenção dele para ensiná-lo a ler e escrever?
Por trás da justa preocupação e angústia da professora, evidencia-se
mais uma vez a distância entre os dois mundos: a vida fora e a vida dentro da
escola; para que a criança aprenda a ler e escrever é preciso que ela se
“desligue” da vida “lá fora”. E, ao mesmo tempo, desenha-se o fracasso
escolar, já que a total falta de identidade entre a sua própria vida e a escola
levanta para a criança barreiras imensas, que dificultam, se não impedem, a
apropriação e construção de conhecimentos.
- A Lua é redonda.
_____________
* Trabalho realizado no jardim de infância Professor Murilo Braga. Barra do Piraí, Estado do
Rio de Janeiro.
Elas aprendiam que o que acontece em outro lugar e em outro tempo
pode ser trazido para o aqui e o agora graças à escrita.
Mesmo que ainda fosse difícil para as crianças, naquele momento, terem
uma dimensão mais clara sobre o tempo percorrido, ao trazer informações
sobre os acontecimentos históricos a professora contribuía para a construção
do conceito de tempo, já que a atividade desenvolvida possibilitava novas
aprendizagens que, por sua vez, provocavam novos desenvolvimentos.