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MNEMOSINE REVISTA.

Programa de Pós-graduação em História/UFCG


Vol. 3 – nº 2 Jul/Dez 2012.
Campina Grande: PPGH, 2012.
Semestral.
ISSN: 2237-3217.
Universidade Federal de Campina Grande. Programa de Pós-graduação em História.

Programa de Pós-graduação em História


Endereço: Rua Aprígio Veloso, nº 882, Sala 107 – Bodocongó –
Campina Grande – Paraíba
BRASIL – CEP:58.429-140
Telefone: 2101-1495
E-mail: mnemosinerevista@gmail.com
Site: http://www.ufcg.edu.br/~historia/ppgh/

Equipe de Realização:
Edição de Texto: Alisson Pereira Silva / Rodrigo Ribeiro de Andrade
Arte: Lays Anorina Barbosa de Carvalho
MNEMOSINE REVISTA
Número 2 - Volume 3 – Jul/Dez 2012

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


Reitor: Prof. Thompson Fernandes Mariz

DEPARTMENTO DE HISTÓRIA
Coordenadora Administrativa: Profª. Drª. Marinalva Vilar de Lima

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Coordenadora: Profª. Drª. Juciene Ricarte Apolinário

COMITÊ EDITORIAL
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos - Editor
Profª. Michelly Pereira de Sousa Cordão

CONSELHO EDITORIAL
Alarcon Agra do Ó (UFCG)
Antônio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)
Elizabeth Christina de Andrade Lima (UFCG)
Gervácio Batista Aranha (UFCG)
Iranilson Buritide Oliveria (UFCG)
João Marcos Leitão Santos - Editor Chefe (UFCG)
Juciene Ricarte Apolinário (UFCG)
Keila Queirós (UFCG)
Luciano Mendonça de Lima (UFCG)
Maria Lucinete Fortunato (UFCG)
Marilda Aparecida de Menezes (UFCG)
Marinalva Vilar de Lima (UFCG)
Osmar Luiz da Silva Filho (UFCG)
Regina Coelli (UFCG)
Roberval da Silva Santiago (UFCG)
Rodrigo Ceballos (UFCG)
Rosilene Dias Montenegro (UFCG)
Severino Cabral Filho (UFCG)
Sumário

Apresentação
João Marcos Leitão Santos________________________________________ 04

DOSSIÊ TEORIA E MÉTODO

O sequestro de bens como fonte de pesquisa para o


estudo da Inconfidência Mineira
André Figueiredo Rodrigues_______________________________________ 06

História & fotografia: alguns apontamentos


teóricos e metodológicos
Severino Cabral Filho ___________________________________________ 20

História e novas linguagens: a problemática


da literatura como fonte
Gervácio Batista Aranha _________________________________________ 34

Maquiavel: a política como história


João Marcos Leitão Santos _______________________________________ 42

Charles Dickens para historiadores: um capítulo


da história do Método Indiciário
José Benjamin Montenegro / Joachin Melo Azevedo Neto _______________ 56

ARTIGOS DE FLUXO

De representação e entrelaçamentos políticos:


religiosidade e jogos de poder do Vigário António
Soares Barbosa na Capitania Real da Parahyba (1766-1785)
Muriel Oliveira Diniz ____________________________________________ 64

Os padres parlamentares do Império:


um fenômeno entre dois mundos
Françoise Jean de Oliveira Souza __________________________________ 79
Apresentação
Dr. João Marcos Leitão Santos
(Editor)

É lugar comum a constatação revisão na literatura selecionada,


de virada epistemológica a que foi com vistas a indicar a importância de
submetida as ciências históricas no tratar as imagens fotográficas como
século passado tipificado na indícios históricos que, pelo apelo
apropriação de novas abordagem, visual que lhes é inerente, são
novos objetos, e novos problemas potencialmente capazes de
(LeGoff & Nora, 1988), exigindo redimensionar a interpretação dos
novos exercícios teórico s e eventos sob análise do historiador,
metodológicos para o sabre e o fazer onde os homens, as cidades, os
históricos. objetos e as paisagens dão a ver de
Em 1985 a professora Sandra modo que o passado quase que pode
Pesavento dava conta de que oitenta ser tocado no presente.
por cento do que se fazia em história Dois trabalhos, do Dr.
no Brasil era em diálogo com a Gervácio Batista e de Benjamim
história cultural. Isto pode significar Montenegro nos quais a problemática
uma demarcação identitária para a é a relação com a literatura. O
historiografia brasileira, mas não primeiro pondera sobre a presença
deixa de acender um sinal de alerta, de uma determinada técnica de
no sentido de submeter todo e composição que se apresenta nas
qualquer objeto a um paradigma crônicas de jornalismo literário do
comum de análise, como, por escritor inglês Charles Dickens.
exemplo, na crítica que Gomes Voltado a supressão das fronteiras
(2002) faz sobre as relações desta entre texto e imagem, aquele autor
com a historiografia religiosa. elaborou um meticuloso e preciso
Este número de nossa revista estilo de interpretação da vida
dedicou-se a teoria e o método, urbana na Londres vitoriana, pautado
notadamente na sua aplicação a em uma postura indiciária, não
objetos potencializados dentro da explorada satisfatoriamente nas
história como a literatura e a investigações dos historiadores.
imagem. No texto do Dr. Cabral Filho Na segunda interpelação sobre
são discutidas possibilidades teóricas literatura e história, Montenegro
e metodológicas do uso da imagem busca identificar relações entre
fotográfica no trabalho história e literatura ficcional “do
historiográfico, a partir de uma ponto de vista da recorrência a

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imagens literárias recortadas pelo mecanismo em operação na
historiador” quando se elege uma Inconfidência Mineira.
fonte sensível às vivências cotidianas Fecha este número dois
de outro tempo, e por ela o artigos na seção de fluxo contínuo.
historiador se dedica a exploração, Um do Dr. Aldenor Alves Soares
da condição humana, dentre outras voltado a um estudo do presente na
sensibilidades. Do ponto de vista análise que faz de um conflito havido
operativo a abordagem é propositiva da Igreja Anglicana do Brasil, na
no sentido de indicar como os textos diocese do Recife, em torno da
ficcionais são documentos como questão da sexualidade, e o de Muriel
quaisquer outros, e a universalidade Diniz, tratando da história política da
dos gêneros literários para tal fim e a Paraíba no século XVIII, da
possibilidade de recorrência aos perspectiva das relações entre a
Romances históricos tomados como igreja e do Estado a partir da
documentos de epocais no âmbito do biografia do padre Antônio Soares
diálogo história e literatura. Barbosa envolto nas relações
O Dr. João Marcos Leitão se políticas que margearam o governo e
volta ao esforço de resgatar a interesses privados nas Capitanias de
perspectiva história dos primórdios Pernambuco e Paraíba
dos tempos modernos, trazendo a Este número tem uma
baila uma perspectiva da concepção peculiaridade: reflete parte das
de história de Nicolau Maquiavel, discussões que têm aparecido no
pouco referido como historiador, âmbito da Pós-Graduação em História
dada a “paternidade da política da UFCG, pela contribuição dos seus
moderna” que lhe foi atribuída, docentes, na história política, na
enfatizando sua contribuição a literatura, na imagem, etc. A
politologia em detrimento da questão aparência de um dossiê doméstico, a
histórica. aparência apenas, vai revelar ao
O Dr. André Figueiredo leitor num espaço menos disperso, as
apresenta um exercício de possibilidades de interlocução com
metodologia no tratamento da paradigmas diversos e proposições
Inconfidência Mineira a partir da de investigações criativas.
apresentação da documentação
selecionada, se dedica a indicar a Boa leitura a todos!
recorrência do sequestro de bens,
apontado como relevante recurso
analítico por se constituir uma fonte
privilegiada para a compreensão dos
5
O SEQUESTRO DE BENS COMO alferes Joaquim José da Silva Xavier, 1
Doutor em
FONTE DE PESQUISA PARA O apelidado de Tiradentes, a maior pena: a História pela Faculdade
ESTUDO DA INCONFIDÊNCIA morte e o sequestro de seus bens; aos de Filosofia, Letras e
demais, degredo para várias partes do Ciências Humanas da
MINEIRA Universidade de São
1 Império português e sequestro (alguns
André Figueiredo Rodrigues Paulo (FFLCH-USP).
parciais) de seus pertences pela coroa.
Professor do
Quando se estuda esse movimento,
Departamento de
percebe-se que muitos pesquisadores
Resumo História da Faculdade
ativeram-se às instâncias discursivas (a de Ciências e Letras da
No artigo se discute o uso do sequestro
análise dos depoimentos prestados pelos Universidade Estadual
de bens como fonte de pesquisa para o
réus na devassa) compiladas nos Autos Paulista “Júlio de
estudo da Inconfidência Mineira.
de Devassa da Inconfidência Mineira. Mesquita Filho”
Esta obra, que reúne inúmeros (UNESP), campus de
Palavras chave Assis.
documentos, permite, além do estudo
Sequestro; Dívida; Inconfidência Mineira.
das delações, confissões e da avaliação
da amplitude da repressão metropolitana
imposta aos sediciosos, que se analise –
Abstract
ou que pelo menos permita o início de
In the article discusses the use of the
pesquisas sobre – a trajetória e as
distress a source of research for the
práticas econômicas e sociais dos
study of Inconfidência Mineira.
envolvidos. Documentação importante
são os sequestros de bens, publicados no
Keywords
sexto volume da coleção, que fornecem
Distress; Debt; Inconfidência Mineira.
imagens notáveis do cotidiano mineiro do
século XVIII.

OS SEQUESTROS DE BENS: TRAÇOS


Foi de uma denúncia feita ao
GERAIS DA DOCUMENTAÇÃO
governador visconde de Barbacena, em
1789, que veio à tona a Inconfidência
O sequestro de bens é uma fonte
Mineira, um movimento que pretendia
valiosa de pesquisa. Seu alcance como
eliminar a dominação de Portugal sobre
fonte de estudo e de análise histórica
Minas Gerais e criar ali um país livre. A
depende, de um lado, da quantidade e da
acusação, feita pelo coronel Joaquim
variedade de informações contidas no
Silvério dos Reis, em março daquele ano,
documento e, de outro, do enfoque
dizia que alguns indivíduos pretendiam
metodológico utilizado pelo pesquisador.
organizar um motim contra a derrama –
Estudiosos interessados em
cobrança sobre cada cidadão da região
percorrer temáticas relacionadas às
para completar a quantia mínima de cem
revoltas e revoluções, durante o período
arrobas anuais de ouro.
colonial, encontram terreno fértil de
Após a delação de Silvério dos
pesquisa neste tipo documental, uma vez
Reis foi aberto na cidade do Rio de
que o sequestro é um processo em que
Janeiro, por ordem do vice-rei Luís de
se faz a descrição, avaliação e partilha de
Vasconcelos e Sousa, um processo de
todos os bens de uma pessoa presa por
devassa para apurar e julgar a traição
se insurgir contra o Estado. No final do
cometida por pessoas abastadas da
século XVIII, rebelar-se seria praticar
capitania de Minas contra o Estado e a
atos de inconfidência ou crime de lesa-
ordem política e social (crime de
majestade. Por lei, nas disposições
inconfidência). Os revoltosos foram
contidas no Livro V das Ordenações
presos e, ao fim da investigação, julgados
Filipinas, a anotação do que seria
e sentenciados no ano de 1792. Coube ao
sequestrado deveria ser feita com
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minuciosidade e exatidão, de modo a Os sequestros possibilitam a
ficar bem conhecido o complexo de bens reconstituição da vida social e econômica
a ser canalizado para os cofres públicos. de uma pessoa, permitindo encontra os
(ORDENAÇÕES, 1985, v. 3, p. 1299- livros, as dívidas ativas (a receber), as
1300) dívidas passivas (a pagar), o dinheiro, o
A elaboração do sequestro cabia à ouro e a prata armazenados, as terras de
justiça local, perante ordens dos juízes ou cultura, as sesmarias, as lavras minerais,
corregedores do domicílio do réu, sob a os instrumentos agrícolas e minerais, os
ingerência do desembargador engenhos, os animais de tração, as
responsável pela devassa ou inquirição louças, os utensílios de fabrico de açúcar
judicial. Como uma das penalizações pelo e aguardente, o vestuário, a escravaria, a
crime de lesa-majestade era a perda total prataria, as práticas religiosas e toda
de bens, o que acarretaria em um golpe espécie de objetos de uso pessoal dos
decisivo no destino das famílias acusados, que nos ajudam a investigar a
envolvidas, sua ordem era delegada de formação e a acumulação de capital no
instância superior, após esgotarem-se as curso de vida de um indivíduo e, muitas
possibilidades de defesa dos réus. Como vezes, a acumulação de cabedal em vidas
os envolvidos na Inconfidência de 1788- pretéritas, de seus antepassados.
1789 mantinham residência em Minas Abandonando os aspectos gerais
Gerais, competia ao governador nomear dos bens sequestrados, e se restringindo
o juiz ou a comissão encarregada de às mais prosaicas das avaliações,
processar os indicados no crime de entramos em contato com assuntos que
inconfidência, fazendo cumprir a lei em estão no centro do atual debate
sua jurisdição administrativa. historiográfico: o movimento dos preços,
(ORDENAÇÕES, 1985, v. 3, p. 1299) os mecanismos de mercado e de crédito
Sua preparação não era – sugeridos ou mesmo indicados pelas
plenamente objetiva, descrevendo prestações de contas, listas e declarações
unicamente bem por bem, mas dependia de dívidas – e as redes de sociabilidade,
da personalidade e critérios do escrivão. solidariedade, interesses e negócios que
Como agentes ativos na sociedade em envolvem parentes, vizinhos, amigos,
que se inserem, seus atos notariais são agentes comerciais, oficiais de justiça,
reveladores não apenas do pulsar de oficiais de fazenda, administradores
questões de caráter econômico, coloniais e negociantes.
antropológico, espiritual, cultural e Os sequestros, assim, nos
material (exemplo dos testamentos e permitem vasculhar dados da vida
inventários), mas, também, dos discursos cotidiana e das estruturas econômicas e
que os indivíduos produzem em seu sociais dos conjurados, pois tornam
nome e em nome dos conjuntos sociais possível o contato com as precariedades
em que se inserem. (AMORIM, 2002- vitais e a miséria de uns, com o conforto
2003, p. 97) Deste ponto de vista, cada e a opulência de outros. Para que estas
ato testemunha o encontro entre várias informações nos cheguem, totais ou
realidades: a do meirinho e a do escrivão, parciais, é imprescindível conhecer a
envolvidos e identificados em estratégias estrutura de normatização de um
pessoais. Alcântara Machado, em seu sequestro, para que se compreenda e
estudo Vida e morte do bandeirante, desvende sua organicidade e
indica-nos que cada peça possuída e entrelinhamentos correlatos ao processo
mostrada na relação de bens constitui oficial da devassa, assim como no estudo
“depoimentos incomparáveis do teor da da reconstituição da fortuna preservada
vida e da feição das almas na sociedade por algumas famílias dos participantes do
colonial”. (MACHADO, 1930, p. 11) movimento insurreto mineiro.

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A NORMATIZAÇÃO DOS REGISTROS declarando-se a importância e os nomes
DE SEQUESTRO dos respectivos devedores, os juros
convencionados, as datas de seus
De acordo com André Figueiredo vencimentos, as prestações já pagas, as
Rodrigues, em A fortuna dos garantias que tiverem e os títulos
inconfidentes: caminhos e descaminhos (escrituras públicas ou instrumentos
dos bens de conjurados mineiros, as particulares) de que constem. Bens
partes principais de um processo de alheios, encontrados posteriormente ao
sequestro são (RODRIGUES, 2010a, p. processo de apreensão, também serão
51-64): sequestrados e descritos na
documentação com clareza e minúcia, em
 Autos de Inventário e Apreensão processo de adição ou em um novo auto
de sequestro. Caso algum bem preso
Os Autos de Inventário e pertença a uma terceira pessoa, esta
Apreensão são a peça mais importante do deve solicitar em juízo a restituição
processo de sequestro, pois neles estão daquele patrimônio, comprovando sua
(ou pelo menos deveriam estar) afirmação.
arrolados a descrição de todos os bens, O sequestro se iniciava no
cuja finalidade é tornar perfeitamente domicílio do preso, independente se ele
certo e conhecido tudo aquilo que se possuía bens situados em outras regiões
encontrava em poder do inconfidente ao ou comarcas. Praticamente tudo o que
tempo de sua prisão. era usado no dia-a-dia, desde que não
O processo de exposição dos bens fosse feito de palha, barro ou madeira
pertencentes ao réu preso é sumaríssimo comum, e tivesse valor monetário, foi
e de caráter judicial. Todos os bens apreendido pela devassa. Vivia-se em
devem ser descritos individualizados, uma “economia de reaproveitamento”,
declarando-se separadamente o dinheiro em que comercializar roupas de uso
e as pedras preciosas possuídas, os pessoal e objetos de casa não
imóveis (bens de raiz), os móveis, os constrangia vendedores e consumidores,
semoventes e as dívidas ativas. Quanto daí a necessidade de se elaborar um rol
aos bens de raiz (imóveis, terras e áreas minucioso dos bens da casa, já que estes
de cultura) devem ser apontados a poderiam voltar ao mercado. (FARIA,
situação, a extensão, confrontações ou 1998, p. 181)
limites, bem como todas as indicações
elucidativas que ajudem na descrição de  Avaliação dos bens
seus ônus reais e condições de
exploração e produtividade. No que se A avaliação dos bens constitui o
refere aos bens imóveis (utensílios corpo do sequestro. Nos Autos de
domésticos, mobílias em geral, vestuário, Devassa da Inconfidência Mineira
jóias e instrumentos de trabalho), os publicaram-se os Autos de Inventário,
tabeliães devem indicar sinais alguns parciais, e a avaliação do
característicos, que os distinguissem de patrimônio de cinco sediciosos: do poeta
outros semelhantes, tornando-os bem e fazendeiro Alvarenga Peixoto, do
conhecidos a todo o tempo. Quanto aos cônego Luís Vieira, do guarda-livros e
semoventes (bens que se movem como caixeiro Vicente Vieira da Mota, do padre
animais e escravos), seu número, Carlos Correia de Toledo e do seu irmão
espécies, marcas ou sinais distintivos sargento-mor Luís Vaz de Toledo Piza.
deveriam ser anotados nas listas dos Dos demais conspiradores, as avaliações
bens sequestrados. e seus documentos comprobatórios são
As dívidas ativas também devem desconhecidos da historiografia.
ser minuciosamente descritas,
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A documentação que serviu de futuramente reconhecida a sua
base para a edição impressa dos Autos de identidade. Os animais da mesma espécie
Devassa foi o Códice 5: Inconfidência de são avaliados juntos, mencionando-se o
Minas Gerais – Levante de Tiradentes seu número e o valor. As plantações
1788-1792, pertencente ao acervo do devem ser avaliadas com designação
Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, que expressa de sua situação e área
reúne todas as peças do processo como plantada. As dívidas ativas não
as cartas-denúncia, os ofícios, as ordens, dependem de avaliação, pois já a trazem
as portarias, as inquirições de nominalmente. Bens em sociedade
testemunhas, os autos de perguntas também serão avaliados,
feitas aos réus, as acareações, as proporcionalmente, à quota que o
petições, os atestados, os embargos, os inconfidente possuísse na sociedade.
autos de exame e separação realizados Depois da realização do
em papéis julgados comprometedores inventário, o procurador da Real Fazenda
apreendidos aos inconfidentes, as passava “Precatória para o juiz do
sentenças e os autos de sequestro de domicílio do confiscado para fazer avaliar
bens. (FIGUEIREDO, 1989, p. 140) (...) os bens apreendidos, procedendo-se
O trabalho mais recente que depois disso na sua arrematação,
procurou sistematizar e quantificar os recolhendo o produto [das vendas] (...)
bens inconfidentes é o de João Furtado, O aos reais cofres”. (IHGB, 1799, DL 70.9,
manto de Penélope. Na pesquisa, como fl. 8v)
advertiu, ao avaliar monetariamente o Após ser preso, os bens do padre
patrimônio dos 24 sentenciados, os Carlos Correia de Toledo passaram por
valores para efeito de cálculo foram cinco sequestros em 1789. Quatro deles
obtidos aritmeticamente por um preço constam na versão impressa dos Autos
médio estimado. Com exceção dos cinco de Devassa; o último, ocorrido em 29 de
sequestros citados acima, todas as setembro, determinou a avaliação de dois
avaliações recebidas pelos demais de seus escravos que estavam em São
revoltosos foram realizadas por meio da João del-Rei.2 No Termo de Avaliação
teoria da probabilidade e não condizem destes dois cativos, observamos os
com a realidade. (FURTADO, 2002) procedimentos realizados na avaliação de
Dentre as informações fornecidas um bem:
a partir da leitura dos Autos de Sequestro
originais constam a avaliação recebida Aos dezoito dias do mês de dezembro
pelos bens apreendidos aos sediciosos, do ano de mil setecentos e oitenta e
assim como os acréscimos e decréscimos nove, nesta vila de São João del-Rei,
Minas e Comarca do Rio das Mortes,
dos patrimônios.
em casas de morada do Furriel
A avaliação é a determinação do
Manuel Ribeiro Quinta, onde eu
justo preço de um bem, feita pela geral e Escrivão ao diante nomeado fui vindo,
comum estimação, levando-se em ai apareceram presentes o mesmo
consideração o tempo, o lugar em que as Furriel e José Lucas Álvares, providos
coisas existiam, o estado em que se e juramentados pelo Senado da
encontravam no momento da avaliação, Câmara desta vila na forma da Lei
os ônus e as condições a que estavam para avaliadores dos escravos e por
eles foi uniformemente dito que
sujeitas e o proveito que delas se
tinham visto e examinado o crioulo
pudessem tirar, regulando-se o preço.
José Manuel, e o mulato Alexandre,
Cada bem é avaliado sequestrados ao Reverendo Carlos
separadamente, especificando as Correia de Toledo e Melo, vigário
dimensões, situações e confrontações dos colado da Vila de São José, e que
imóveis e os sinais característicos dos entendiam em suas consciências, e
móveis e semoventes, de modo a ser debaixo do juramento dos seus

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ofícios, avaliavam o crioulo que é da residência (“na casa debaixo”), alegou
carreiro na quantia de cento e dez mil que entre as peças sequestradas ao
réis, e o mulato que tem princípio de inconfidente Cláudio Manuel da Costa se
alfaiate em outra igual quantia: E que
encontravam artigos que lhe foram dados
estes eram os preços que seguindo
suas inteligências valiam
por seu tio João de Souza Costa e
presentemente os ditos escravos: e entregues ao seu pai, o capitão Antônio
de como assim o disseram, assinaram de Souza Mesquita, que os deixou sob a
este termo, que faço para constar. Eu guarda de Cláudio, quando se mudou de
João Batista Lustosa, Escrivão das Vila Rica para as lavras que possuía em
Execuções Cíveis, que o escrevi. = Itabira e Pitangui, além de alguns papéis
Manuel Ribeiro Quintas / José Lucas e clarezas do seu pai que também foram
Álvares. (IHGB, 1789, DL 101.3, fl. 18
sequestrados:
– grifo nosso)

... entre os bens que a este foram


As formalidades da determinação
sequestrados se contemplaram os que
do preço passavam pelo juramento constam da lista inclusa que
lavrado pelo escrivão e a assinatura do pertencem ao Suplicante por lhos ter
termo por parte dos avaliadores, que dado o falecido seu tio João de Souza
[Digite uma citação do documento ou o Costa e foram entregues ao falecido
pai do Suplicante o Capitão Antônio
resumo de um ponto interessante. Você de Souza Mesquita que os deixou em
pode posicionar a caixa de texto em guarda em casa do dito falecido seu
tio na mudança que fez desta vila
qualquer lugar do documento. Use a guia
para as suas Lavras da Itabira e
Ferramentas de Desenho para alterar a Pitangui, além de vários papéis e
formatação da caixa de texto de citação.] clarezas do mesmo seu pai para o fim
geralmente são duas pessoas. A não- de que tudo lhe seja entregue.
(AZEVEDO, 1943, p. 282)
realização de qualquer uma destas
práticas invalidava o ato.
Após apresentar justificativas
comprobatórias, o então governador
 Restituição de bens visconde de Barbacena passou-lhe
Despacho favorável à restituição dos
bens que lhe pertenciam e que estavam
Qualquer bem sequestrado podia
na casa do inconfidente e sob a guarda
ser restituído ao seu verdadeiro
do fiel depositário Francisco Xavier de
proprietário, desde que este comprovasse
Andrade. Na listagem dos bens que lhe
com documentos ou testemunhas que o
foram restituídos constam:
objeto apreendido fosse seu e não do
inconfidente.
Doze cadeiras de damasco
Caso revelador da prática da
encarnadas = uma mesa de jacarandá
restituição de bens na Inconfidência em pés de burro = uma dita redonda
Mineira pode ser observado na Precatória grande = uma dita pequena de
encaminhada ao Tribunal da Junta da jacarandá = um dita com pés de
Real Fazenda, de Minas Gerais, por jacarandá torneado = um colchão de
Francisco de Souza Martins, sobrinho do lã que o dito partiu em dois = dois
poeta e magistrado Cláudio Manuel da catres torneados = duas canastras de
Campanha com o que nelas se achar
Costa, solicitando a devolução de objetos
= um cavalo alazão na roça = uma
que lhe pertenciam e que foram
Prosódia = dois Virgílios e outros mais
apreendidos pela justiça dentro da casa livros que se acham em um quarto
de seu tio. onde estão os catres e mais papéis
No documento, Francisco Martins, que estão no mesmo quarto e casas
provavelmente morador no andar térreo do dito Doutor, pois dos ditos papéis

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há de constar pertencerem ao falecido (nos Autos de Devassa – versão impressa
Capitão Antônio de Souza Mesquita e –, temos “duas canastras cobertas de
Testamentárias deste = dez lâminas couro cru”); “dez lâminas de meia folha,
de meia folha, seis douradas com
seis douradas com vidros mais pequeno”
vidros mais pequeno = uma papeleira
de jacarandá com o que nela se achar
(nos Autos de Devassa – versão impressa
e seu oratório = uns bilhetes do –, aparece citado “quatorze lâminas
Serro, extração diamantina, que em pequenas com seus vidros, na casa
quantia avultada os quais vieram debaixo”). (AZEVEDO, 1943, p. 282-283;
remetidos do Serro do Frio ao Doutor ANRJ/ADIM-C5, v. 7, doc. 4, fls. 4; 6-6v;
Desembargador Intendente desta Vila 2v) O “cavalo alazão”, indicado no
para os entregar ao dito Doutor documento e que seria o sétimo bem,
Cláudio e este entregar os mesmos ou
estava confiscado na “roça” do Fundão,
o seu produto ao Suplicante como
localizada na “divisa da Freguesia da Sé,
Procurador do Tenente Manuel
Antônio Dias a quem pertencia a da Cidade de Mariana”. Os demais
mesma cobrança por ser credor de pertences não conseguimos localizar. Os
José Antônio Leite e o dito Tenente bilhetes da extração régia foram
ter dado essa cobrança ao pai do atendidos, segundo o documento, em 1º
suplicante por contas que entre si de agosto de 1804. Quanto aos livros
tinham = Francisco de Souza indicados – Prosódia e dois títulos de
Mesquita. (AZEVEDO, 1943, p. Virgílio –, eles poderiam estar entre as
282-283) obras que foram quantificadas, mas não
nomeadas pelo tabelião. (ANRJ/ADIM-C5,
A casa de Cláudio Manuel da v. 7, doc. 4, fl. 5v) No sequestro
Costa, localizada em Vila Rica, passou por apareceu indicado: “Na quarta coluna da
três processos de sequestro: em 25 de estante da parte direita, quarenta tomos;
junho e 31 de julho de 1789 e 21 de na quinta da mesma, quarenta e quatro
março de 1791. O primeiro sequestro tomos de livros” etc.. Disto ficam-nos
ocorreu 21 dias após a sua morte na três perguntas: como Francisco de Souza
prisão (4 de julho de 1789) e todos os Mesquita conseguiu restituir parte de seu
Autos de Inventário foram coordenados patrimônio, que se encontrava
pelo ouvidor José Caetano César Manitti. sequestrado junto aos bens de seu tio
Ao comparar as duas únicas Cláudio Manuel da Costa, se pouco mais
fontes documentais sobre o sequestro de da metade deles não constava na relação
Cláudio, notamos que dos 14 bens oficial dos sequestros publicada nos Autos
referenciados na lista elaborada por de Devassa? Será que o escrivão
Francisco de Souza Mesquita, apenas seis escreveu com falhas ou omissões o que
objetos fizeram-se presentes em um dos encontrou dentro da casa? No momento
sequestros empreendidos à casa de de elaboração do sequestro se fazia nítida
Cláudio em Vila Rica – “doze cadeiras de a separação entre pertences do próprio
damasco encarnadas” (nos Autos de Cláudio e os de seus parentes que
Devassa – versão impressa – aparecem residiam na casa?
como “doze cadeiras com assentos de
damasco”); “uma dita [mesa] redonda  Justificação de dívidas passivas
grande” (nos Autos de Devassa – versão
impressa – “uma mesa redonda”); “um De acordo com a lei, bens
colchão de lã que o dito partiu em dois” sujeitos a sequestro permaneciam sob a
(nos Autos de Devassa – versão impressa custódia da Real Fazenda que separava
– encontramos “um colchão de lã metade desse patrimônio para quitar
acolchoado, com seu travesseiro e fronha eventuais dívidas do condenado, em
de pano de linho”); “duas canastras de processos de cobrança movidos contra o
Campanha com o que nelas se achar” procurador do Fisco e Câmara Real,
11
responsável pelos bens do sequestrado. totalizavam 989$725 réis. (ANRJ/CIM,
Esses processos eram chamados de 1794, cx. 3011, pacotilha 19, fl. 10v)
Libelo Cível. Por dona Bárbara Eliodora ser
Inicialmente, o autor da ação casada por comunhão de bens, o
devia qualificar a si e ao seu advogado patrimônio de sua casa foi dividido em
para, em seguida, apresentar a duas partes (meação), uma para ela e
justificativa da dívida, detalhando a outra para a Real Fazenda. Da parte que
quantia devida e os juros estipulados (se pertencia ao sedicioso e que passou a ser
houvesse), os recibos ou cartas assinados gerenciada pela Real Fazenda, metade
e datados pelo confiscado e todo tipo de era reservada para o pagamento de suas
comprovante que o habilitasse a ser dívidas, ou seja, 50% do patrimônio
ressarcido. direcionado para o Erário Régio era
Sob um ângulo muito particular, destinado ao acerto de contas que o
os autos de Libelo Cível permitem-nos inconfidente tinha com credores. Isto
justificar as dívidas cobradas contra a equivale a 25% do total geral do
casa dos sediciosos e nos ajudam a sequestro. As dívidas cobradas, por
investigar o ambiente formador de um conseguinte, também eram meadas e só
inconfidente e o foco de suas se pagava uma daquelas partes. O
insatisfações. (FIGUEIREDO, 1989, p. quinhão da esposa era preservado e se
144) Entre as várias petições movidas mexia unicamente na porção patrimonial
por terceiros contra o patrimônio que cabia à Real Fazenda. Assim, ao
sequestrado a Alvarenga Peixoto solicitar o ressarcimento da dívida, o
destacam-se o Libelo de seu credor, sargento-mor Luís Antônio pôde protestar
amigo e compadre, o sargento-mor Luís somente 494$862 ½ réis, metade do
Antônio da Silva, tesoureiro dos Ausentes devido por Alvarenga Peixoto. A dívida
da vila de São João del-Rei, que, por recaía, portanto, somente sobre a
vezes, o acompanhava em suas viagens metade pertencente ao confiscado.
ao sul da capitania, em direção às lavras (ANRJ/CIM, 1794, cx. 3011, pacotilha 19,
de Alvarenga na Campanha do Rio Verde. fl. 7v)
Pelo documento se percebe a desordem e Entre os documentos
as ruínas financeiras da casa daquele comprobatórios apresentados, constam
magistrado e fazendeiro. Além das sete recibos de empréstimo de ouro a
mesadas regulares que Luís Antônio lhe Alvarenga (292$500 réis), 19 recibos,
afiançava, apareceram descritas dívidas que vão de 3 de agosto de 1785 a 14 de
de aspectos corriqueiros como janeiro de 1787, de ouro com que Luís
empréstimo para o funeral e luto da avó Antônio assistiu Bárbara Eliodora
de Bárbara Eliodora, pagamento de (286$200 réis) e bilhetes de diversos
mantimentos de sua casa e despesas de pagamentos, entre eles, o valor de
uma festa de Santa Bárbara, em que 511$312 réis de “custas do funeral e
Alvarenga foi o juiz. (ANRJ/CIM, 1794, fazendas para os lutos” da avó de
cx. 3011, pacotilha 19, fls. 4-5v) Bárbara. (ANRJ/CIM, 1794, cx. 3011,
Luís Antônio apresentou uma pacotilha 19, fl. 10)
carta, um crédito, 26 recibos e 9 bilhetes As provas e justificativas
em que constavam os auxílios financeiros apresentadas pelo sargento-mor e
e pagamentos das contas daquela casa, defendidas pelo seu advogado Diogo
desde a chegada de Alvarenga Peixoto à Pereira Ribeiro de Vasconcelos foram
vila de São João, em 1776, para ocupar o aceitas e se determinou ação executória
cargo de ouvidor da comarca do Rio das contra os bens do inconfidente. Esta ação
Mortes, até maio de 1788, quando não se procedeu, pois o ex-contratador
transportou sua família para sua fazenda João Rodrigues de Macedo, em Petição
na Campanha do Rio Verde, que encaminhada à Fazenda Real, requereu
12
cessão de crédito da dívida de Alvarenga, contas de sua gestão, ao deixar o cargo
uma vez que arrematara, em 30 de maio ou sempre que o juiz lhe determinasse. O
de 1795, em leilão, a parte sequestrada cumprimento irregular dessa obrigação
ao dito sedicioso, ficando responsável ou a rejeição das contas prestadas podia
pela quitação das dívidas precedentes. levar o depositário à responsabilização
Neste mesmo dia, a dívida de indenizatória.
Alvarenga com o sargento-mor Luís Como regra, a prestação de
Antônio foi transferida para Macedo e contas era realizada em Apenso aos
com ela apareceram outros débitos que Autos de Inventário, como processo
também deveriam ser quitados pelo ex- incidental. Em algumas situações, como
contratador. No total, a dívida contraída, nos levantamentos de dinheiro, venda de
já com todos os seus ajustes, era de bens, etc., a comprovação era feita
2:975$574 réis. Este valor foi parcelado diretamente nos autos principais. No caso
por Macedo – conforme se constata no de acordo entre a atividade do fiel
documento de cessão da dívida – em sete depositário e o gerenciamento das
vezes iguais, sendo anual o vencimento famílias sequestradas, as contas eram
de cada parcela. Após o pagamento de aprovadas; mas se houvesse
três prestações, Macedo decidiu, em 27 discordância, com instauração de litígio,
de março de 1798, quitar o restante era de rigor o uso das vias ordinárias
daquela dívida de 1:784$639 réis, para destituí-lo, nomeando-se outro fiel.
inocentando-se de quaisquer pendências. O reverendo Bento Cortês de
(LAPA, 1960, p. 300) Toledo, procurador e irmão do padre
Toledo, testemunhando o modo irregular
 Partilha dos bens entre a Fazenda com que os depositários dos bens
Real e a esposa, no caso de sequestrados a seu irmão estavam se
casamento regido pela comunhão utilizando dos mesmos, dirigiu
integral de bens reclamação ao doutor Luís Ferreira de
Araújo e Azevedo, ouvidor e corregedor
O processo de divisão dos bens da comarca do Rio das Mortes, em São
inventariados no sequestro era definido João del-Rei, chamando atenção daquela
pelo Auto de Partilha ou Auto de autoridade judicial para os fatos que
Separação dos Bens para Pagamento da relatava e pedindo providências
Meação. Primeiramente, deveria ser acautelatórias para o “removimento dos
calculado o monte-mor. Esse montante bens sequestrados das mãos dos
líquido era dividido em duas partes, depositários deles”:
sendo uma delas encaminhada
integralmente à esposa do inconfidente. Ilustríssimo e Excelentíssimo Senhor
A outra metade era dividida em duas
partes, sendo uma delas destinada ao Diz o Padre Bento Cortês de Toledo
que sendo seu irmão o Padre Carlos
pagamento, se necessário, de débitos
Correia, vigário da vila de São José,
deixados pelo preso e, a outra, destinada
preso e sequestrado por ordem de
à Fazenda Real. Vossa Excelência, foram todos os seus
bens depositados. E porque Manuel
Francisco, depositário da lavra, cuida
 Prestação de contas dos fieis mais em fazer tráfico com os bens do
depositários que em os administrar, de modo que
não sendo as terras de todo ruins fez
ultimamente uma apuração de seis
Todos os bens apreendidos em
oitavas de ouro, e devendo aplicar os
sequestro eram deixados sob a guarda de
escravos no serviço lhes dá a
um fiel depositário, responsável pela liberdade de irem faiscar para terem
administração dos bens e prestação de com que comprem os gêneros e
13
bebidas, que sua mulher vende no fossem administrados por um único fiel
mesmo lugar; nem dá de vestir aos depositário e que este fosse o capitão
pretos, que vem pedi-lo ao Domingos Barbosa Pereira, de São José
Suplicante; outro, o Alferes Antônio
del-Rei, por possuir competência e saber
Correia, residindo a maior parte do
tempo nos Olhos d’Água, distantes
lidar com terras de cultura e de
umas poucas léguas da Laje, não mineração, além de ser homem
pode com aquele zelo e cuidado “abonado”. Requisitos tidos pelo
assistir ou administrar a fazenda, de reverendo como indispensáveis à boa
que é depositário; e um único escravo administração de qualquer propriedade.
tem um depositário na vila de São (IHGB, 1789, DL 101.3, fls. 11v-12)
João, onde se acha vindo, deste modo
os bens e estado antes de perdição do
 Arrematação dos bens em leilão
que de utilidade para a Real Fazenda,
requer o Suplicante a Vossa
Excelência se digne mandar que os Os sequestros, avaliações,
bens sejam removidos dos depósitos pagamentos e partilha de bens, se
em que se acham e que sejam de necessários, antecediam a arrematação
novo depositados em poder de quem dos bens confiscados aos inconfidentes.
os administre e para administrá-los Cabia ao porteiro do Juízo do
bem e fielmente e com aquele zelo e Contencioso da Real Fazenda anunciar o
cuidado devidos à Fazenda Real,
“pregão de venda e arrematação” dos
fazendo o Ministro do sequestro a
bens em leilão. Foi o que fez Joaquim
nomeação e removimento.
Para a Vossa Excelência se Barbosa do Amaral, em oito ocasiões, ao
digne para maior utilidade de Sua proclamar “em praça pública”, na vila de
Majestade, assim o mandar. São João, a “venda e arrematação” de
E Receberá Mercê. (IHGB, dois escravos (os citados José Manuel e
1789, DL 101.3, fls. 13-13v) Alexandre, do item “Avaliação de bens”)
e dois cavalos baios apreendidos ao
O alferes Antônio Álvares Correia, padre Toledo. Entre os dias 7 e 15 de
responsável pelo gerenciamento da janeiro de 1790, Joaquim Barbosa
paragem que o padre Toledo tinha “ao pé apregoou “muitas vezes” os bens, mas
da Lage, termo da vila de São José” foi “neles não houve lanço algum”. (IHGB,
acusado de residir longe da propriedade 1789, DL 101.3, fls. 19-20v)
e, por isso, não despender os esforços Concluídos os pregões pelo
necessários para sua perfeita porteiro, iniciava-se o leilão propriamente
administração. As acusações contra seu dito. Joaquim Barbosa do Amaral
primo, o tenente Manuel Francisco de declarou os bens em arrematação:
Toledo, foram mais ríspidas, ao acusá-lo
de permitir que escravos sequestrados ... um crioulo por nome José Manuel,
deixassem de trabalhar em atividades de carreiro, avaliado na quantia de cento
mineração nas terras do padre Toledo e dez mil réis; um mulato por nome
para praticarem faisqueiras, por conta Alexandre, com princípios de alfaiate,
própria, e com os lucros obtidos nessas avaliado na quantia de cento e dez
jornadas, tais escravos adquiriam bebidas mil; um cavalo baio chamado o Cova,
avaliado na quantia de quarenta mil
e gêneros alimentícios vendidos por sua
réis. Outro cavalo também baio
esposa “na paragem do Monte Alegre, da
chamado o Bode, avaliado na quantia
Aplicação de São Tiago”, lucrando com a de quarenta mil réis; todos estes
desgraça alheia. (IHGB, 1789, DL 101.3, cavalos e escravos foram
fls. 9; 7v; 5v) sequestrados ao reverendo Carlos
Para resolver essas contendas, Correia de Toledo e Melo, vigário
Bento Cortês de Toledo sugeriu que todos colado da freguesia de Santo Antônio
os bens sequestrados ao seu irmão da vila de São José. (IHGB, 1789, DL
101.3, fl. 22)
14
preço de suas avaliações, cujo lançou a
Após qualificar os objetos do ficarem oitenta mil e duzentos réis à
leilão, passavam-se aos lances, dizendo vista”. (IHGB, 1789, DL 101.3, fls. 22v-
“em voz alta”: “Afronta-se só por que 23)
mais não acha, se mais achara mais
tomara, dou-lhe uma, duas, três, e uma  Taxas e custas judiciárias
mais pequenina”, e por não haver quem
mais lances descem, o porteiro dirigia-se As taxas e as custas judiciárias
ao arrematante e entregava-lhe “um também deveriam ser incluídas nas
ramo verde”, dizendo-lhe “faça lhe muito contas finais do processo de sequestro.
bom proveito”. (IHGB, 1789, DL 101.3, fl. As despesas gastas com o cumprimento
23) da sentença condenatória e o embarque
A arrematação dos dois cavalos dos sediciosos degredados para a África,
foi feita pelo tenente Francisco José por exemplo, foram pagos com os bens
Álvares, morador da vila de São João, que lhe haviam sido sequestrados no Rio
pelo lance de “duzentos réis sobre o de Janeiro.

Assim, de acordo com o exposto, a estrutura de um sequestro é a seguinte:

FLUXOGRAMA 1
Estrutura de um sequestro

15
OS SEQUESTROS COMO sequestrados de Francisco Antônio de
POSSIBILIDADES DE ESTUDO DA Oliveira Lopes.
FORTUNA DOS INCONFIDENTES O fazendeiro e coronel Francisco
Antônio nasceu em 1750, na Borda do
Campo (atual Barbacena / Minas Gerais).
Como vimos, por lei, todos os Era filho de José Lopes de Oliveira e
bens pertencentes a pessoa presa deviam Bernardina Caetana do Sacramento. Em
ser apresentados, por meio de sequestro. 1781, aos 36 anos de idade, casou-se
Aparentemente, os inquiridores da com Hipólita Jacinta Teixeira de Melo,
devassa buscaram realizar tal tarefa. A filha do capitão-mor Pedro Teixeira de
historiografia reteve a ideia de que os Melo e irmã do então ocupante desse
sequestros representavam um posto na vila de São José del-Rei (atual
instantâneo verdadeiro de todos os bens cidade de Tiradentes / Minas Gerais),
pertencentes aos inconfidentes no Gonçalo Teixeira de Carvalho. O casal
momento de sua prisão e que a listagem morava na fazenda da Ponta do Morro,
publicada desses bens nos Autos de entre a Vila de São José e o arraial de
Devassa indicaria o valor desse Prados. (JARDIM, 1989, p. 149-151;
patrimônio. RODRIGUES, 2010a, p. 25-26)
Por se constituírem como Quando ele foi preso, em 1789, a
processos à parte da devassa, os autos devassa apreendeu sua fazenda da Ponta
originais de sequestro não foram do Morro, 430 animais de criação e 74
pesquisados e publicados integralmente. escravos, assim como os 51 utensílios e
os rendimentos das extrações de ouro da
O que se conhece e está propriedade. Naquela ocasião, dona
publicado no sexto volume dos Autos de Hipólita, que vinha de família abastada,
Devassa da Inconfidência Mineira são declarou à justiça, estrategicamente,
apenas traslados parciais dos bens dos bens que em grande parte eram de sua
envolvidos no levante mineiro, exigidos sogra, e não os que pertenciam ao seu
pelos juízes da devassa para se ter uma patrimônio.
ideia do patrimônio de cada um dos réus. Inconformado por ver o
Tramitando em diferentes comarcas de patrimônio de sua mãe, Bernardina
Minas Gerais, os autos de sequestro Caetana, apreendido pela coroa como se
seguiram rumo judicial independente, ora fosse do irmão Francisco Antônio – e sem
incluindo informações após a descoberta ter como recebê-lo como herdeiro –, o
de novos bens, com a realização de sargento-mor Manuel Caetano Lopes de
novas penhoras, ora com o acréscimo das Oliveira, solicitou, em agosto de 1794, a
prestações de contas promovidas pelos devolução os bens de sua mãe, que
fiéis depositários, ora com a devolução a estavam em poder do casal Francisco
terceiros de pertences que estavam Antônio e Hipólita Jacinta. O patrimônio
emprestados aos revoltosos, até sua da matriarca foi confiscado pela devassa
liquidação final, com as formalidades de como se pertencesse ao inconfidente.
encerramento. (RODRIGUES, 2010b) (IHGB, 1790, DL 101.2, fl. 15)
Em consequência do Por “repetidas vezes”, o sargento-
desconhecimento dos sequestros mor apresentou certidões para que o fiel
originais, ou à causa da publicação depositário – que era primo de dona
parcial de alguns de seus dados, o que se Hipólita – entregasse os bens de sua
conhece, portanto, são informações que mãe, desmembrando-os do sequestro
não condizem plenamente com a ocorrido em 25 de setembro de 1789.
realidade do patrimônio apreendido aos Como não obteve êxito, Manuel Caetano
inconfidentes. Caso específico, por recorreu ao juiz responsável pela
exemplo, ocorreu com os escravos devassa, Antônio Ramos da Silva
16
Nogueira, explicando-lhe o ocorrido. Hipólita havia conseguido evitar o
Alegou que a não restituição dos bens confisco de 74 escravos, duas
estava desfavorável aos seus interesses propriedades, bois, vacas e cavalos, além
e, também, aos do Estado metropolitano, de muitas bugigangas de casa, como
pois, enquanto o que lhe pertencia por jarros, bacias, louças, faqueiros, baús,
herança estava listado como patrimônio cadeiras e armários. Mas, de todas estas
do inconfidente, o que cabia ao seu irmão omissões, as mais significativas foram as
e deveria ser objeto da real apreensão dos cativos subtraídos da devassa.
estava omitido da devassa. Manuel Caetano entregou ao juiz Antônio
Com a denúncia da artimanha Ramos da Silva Nogueira lista contendo
articulada por sua cunhada, esperava os nomes dos escravos furtados do
ganhar a confiança e o respeito do inquérito da Inconfidência.
devassante quanto à solução da disputa Estes números são
familiar. Eis os fatos: impressionantes: metade de sua unidade
escravista esteve subtraída às escondidas
Diz o sargento-mor Manuel da devassa. Nos Autos de Devassa, em
Caetano Lopes de Oliveira, que sua edição impressa, está registrado que
no sequestro que se procedeu por Francisco Antônio teve 69 mancípios
este Juízo na Ouvidoria do Rio apreendidos. Na documentação original
das Mortes contra o coronel seus números chegam a 74 pessoas
Francisco Antônio de Oliveira listadas como sendo o seu patrimônio
Lopes compreendido, condenado, realmente apreendido. Somando-se estes
e definitivamente sentenciado números, temos que o plantel de
pelo delito de Sublevação se escravos do sedicioso Francisco Antônio,
ocultaram muitos bens, que o na época do sequestro, em 1789, era
suplicante denuncia quais são os composto por 148 escravos. Se todos
do Rol junto, e poderão ainda esses negros fossem apreendidos pela
haver muito mais como há de devassa, poder-se-ia atribuir a ele o
constar do Inventário feito entre epíteto de o maior escravista da
dona Hipólita Jacinta Teixeira, Inconfidência Mineira. (RODRIGUES,
mulher do dito proscrito, e seu 2010a, p. 176-181)
irmão capitão-mor Gonçalo Em abril de 1795, Hipólita Jacinta
Teixeira, que todos pertencem ao foi chamada pela justiça para prestar
referido sequestro por ser o esclarecimentos. Mesmo reconhecendo os
suplicante dito condenado no atos de sonegação, ela não foi
perdimento de sua inteira penalizada. A fortuna que havia sido
meação, e para segurança dos escondida permaneceu nas mãos da
mesmos, e sobre eles requer o família, sem que sofresse nova
suplicante seus direitos, e ações apreensão. Seu cunhado recebeu a parte
que lhe competirem. (IHGB, que lhe cabia da herança, subtraindo-a
1790, DL 101.2, fl. 42 – grifo dos bens que foram confiscados. O
nosso) conhecimento deste fato somente foi
possível graças aos sequestros utilizados
como fonte de pesquisa.

Fontes

Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro [IHGB] – Rio de Janeiro

17
Autos de sequestro em bens do vigário Carlos Corrêa de Toledo e Melo. 1789. [DL 101.3]

Sequestro em bens de Francisco Antônio de Oliveira Lopes. 1790. [DL 101.2]

Sequestro em bens do capitão José de Resende Costa por parte da Fazenda Real. 1799.
[DL 70.9]

Arquivo Nacional [ANRJ]– Rio de Janeiro

Coleção Inconfidência Mineira / Fundo 3A – caixa 3031, pacotilha 19 – Libelo Cível entre o
sargento-mor Luiz Antônio da Silva e o procurador do Fisco, pelos bens do inconfidente
Inácio José de Alvarenga Peixoto – réu. Vila Rica, 1794.

Códice 5 – Inconfidência em Minas Gerais – Levante de Tiradentes. 10 v.

Bibliografia

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18
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<http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/acervo/rapm_pdf/2010D03.pdf>. Acesso em: 22
dez. 2012.

19
HISTÓRIA & FOTOGRAFIA: ALGUNS para tanto, ele deve sempre ter em
APONTAMENTOS TEÓRICOS E mente que a busca pela análise e
METODOLÓGICOS compreensão do passado fotografado não
Severino Cabral Filho1 pode dissociá-lo do meio pelo qual ele 1
Universidade
chega até nós, isto é, para que se Federal de Campina
Resumo compreenda melhor o que se vê é Grande
imprescindível que se considere a
Procuramos abordar as possibilidades narrativa fotográfica e os eventos
teóricas e metodológicas do uso da fotografados como um uno indivisível.
imagem fotográfica na obra A fotografia foi resultado de um
historiográfica e realizar uma breve contexto de considerável efervescência
incursão pela produção acadêmica, que experimental, científica, numa Europa em
também aborda a questão. Aqui, as que muitos dos seus homens de ciências
imagens são tratadas como evidência desejavam ardentemente registrar e
histórica de que, pelo apelo visual, documentar fidedignamente a realidade.
contribuem para ampliar a interpretação Tal proeza teve como desdobramentos
dos fatos sob análise. mais perceptíveis a disponibilidade no
mercado de um produto potencialmente
Abstract inovador e o deslumbramento quase que
generalizado com uma invenção que, por
We seek to address the theoretical and sua vez, instituiu novas maneiras de ver,
methodological possibilities of the use of pensar e imaginar o mundo.
the photographic image in historiographic O cenário urbano, desde o
work and conducted a brief excursion into advento da fotografia em 1839,
the academic production that also tackles constituiu-se em um dos principais
the issue. Here, the images are treated campos de interesse dos fotógrafos –
as historical evidence that, for the visual profissionais e amadores – a partir de
appeal, contribute to expand diversas demandas, que vão desde os
interpretation of the events under explícitos interesses das administrações
analysis. públicas com a entrada em cena das
metrópoles no século XIX, cujo objetivo
quase sempre era o dar publicidade às
grandes obras de reurbanização, até o
O que seria do nosso passado quase ingênuo diletantismo de camadas
sem as imagens que dele temos? As enriquecidas das sociedades européias
imagens fotográficas fascinam; que se compraziam em “reproduzir”
fotografias nos remetem ao passado por cenas do cotidiano, inaugurando uma
mais próximo que esse passado esteja de atividade lúdica que passou a ser muito
nós, nos incita a imaginarmos praticada.
experiências sociais a partir de simples Não demorou muito para que a
paisagens, sejam urbanas, sejam rurais; prática da fotografia chegasse ao Brasil e
aproxima-nos de modos de vida aqui fosse recebida com crescente
diferentes dos nossos, de modas, de entusiasmo (VASQUEZ: 2002; ANDRADE:
hábitos, de formas de viver. Elas, enfim, 1990). Ainda no século XIX (1840), um
tendem sempre a nos colocar a questão: pouco depois do anúncio oficial de sua
como as pessoas viviam o seu cotidiano, invenção na França, as primeiras
como deveria ser o mundo daquele máquinas fotográficas aportaram no
passado? O historiador, uma vez de Brasil, principalmente sob o patrocínio
posse dessas imagens, procura lançar imperial de D. Pedro II, que se tornou
novas luzes sobre o já vivido com o qual também um fotógrafo amador e cliente
ele se depara por meio da fotografia; contumaz de alguns fotógrafos
20
profissionais que se estabeleceram no Rio memorável em Combates pela História,
de Janeiro (VASQUEZ: 2002; CARVALHO Lucien Febvre propôs:
e WOLFF: 1992).
Toda essa herança em imagens A história faz-se com documentos
escritos, sem dúvidas. Quando estes
fotográficas tem despertado cada vez
existem. Mas pode fazer-se, deve
mais interesse entre pesquisadores da
fazer-se, sem documentos escritos...
área das Humanidades, na medida em Com tudo o que o engenho do
que os materiais de pesquisa propiciados historiador pode permitir-lhe utilizar
por essas para fabricar o seu mel, à falta das
imagens/documentos/monumentos não flores habituais. Portanto, com
apenas ampliam as possibilidades do palavras. Com signos. Com paisagens
conhecimento social, mas impõem e telhas... Numa palavra, com tudo
aquilo que, pertencendo ao homem,
também uma necessária discussão de
depende do homem, serve o homem,
caráter teórico e metodológico acerca
exprime o homem, significa a
desta produção. É nessa encruzilhada presença, a atividade, os gostos e as
entre as imagens fotográficas e a História maneiras de ser do homem. (FEBVRE,
que nos encontramos. 1989: 249).
Com a consolidação da Escola dos
Annales e o seu vigoroso projeto de Jacques Le Goff, ao refletir sobre
renovação no seio da historiografia, tanto a idéia de monumentos, sugeriu que eles
no que respeita às temáticas como em são “o resultado direto do esforço de
sua dimensão conceitual e metodológica, sociedades históricas para imporem-se ao
os historiadores lograram ampliar sua futuro, voluntária ou involuntariamente”
capacidade de pensar sobre o passado de (LE GOFF, 1994: 548). Somente com
forma que as possibilidades da produção uma abertura metodológica dessa
historiográfica foram definitivamente magnitude é que podemos tratar as
alteradas. Esse esforço levou os imagens fotográficas como documentos
historiadores a considerarem também a e, na senda aberta por Jacques Le Goff,
vida cotidiana, as ações de homens e também como monumentos; essas
mulheres comuns a partir de seus premissas permitem-nos pensar a
valores, de sua cultura, de sua visão de imagem fotográfica como uma
mundo, enfim, do seu universo mental, documentação que torna possível a
como legítimos objetos da história. Marc realização da pesquisa histórica e, em
Bloch, Lucien Febvre e os seus conseqüência, a ampliação das
seguidores da segunda e terceira possibilidades do discurso historiador.
gerações dos Annales, incentivaram a Desde o seu surgimento a
comunidade de historiadores para a Fotografia impôs uma nova maneira de
promoção de uma verdadeira revolução representar o mundo, fazendo
nas formas de abordagem da História, desencadear um apaixonado debate
sugerindo o diálogo franco com outros sobre a sua capacidade de reprodução da
campos de saber das chamadas realidade, sendo imediatamente utilizada
Humanidades, como a Antropologia, a como prova, no sentido jurídico do termo.
Sociologia e a Geografia. Essa nova Artefato moderno, produto da revolução
formulação conceitual, condição tecnológica em curso no século XIX, a
imprescindível à exeqüibilidade da fotografia tornou-se, num espaço de
abertura na pesquisa histórica, repercutiu tempo surpreendentemente curto, um
particularmente sobre dois conceitos – produto de consumo quase que
documento e monumento – já bem generalizado entre as camadas mais
conhecidos dos historiadores: documento abastadas nos países ocidentais.
e monumento. Numa passagem Com a rápida evolução das
técnicas de reprodução de imagens, as

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fotografias logo passaram a ser utilizadas indício histórico, têm procurado abordar a
pelos pesquisadores como ilustração em questão com bastante cautela.
livros: mas não se tratava de simples Falar em imagens é falar em
ilustrações: elas se prestaram à representações, e o homem sempre
“comprovação” de determinadas teorias, sentiu necessidade de representar a si
já que não foram poucos os homens de próprio e o mundo em que vive através
ciência que saudaram a imagem da produção de imagens – alegóricas, nos
fotográfica como irrefutável reprodução seus primórdios, e analógicas,
do real. Charles Baudelaire, por exemplo, posteriormente. As primeiras
apesar de sua aversão a ser fotografado, manifestações das imagens ditas
desejava que a fotografia fosse “a alegóricas estão nos primitivos desenhos
secretária e o caderno de notas de encontrados nas cavernas, com destaque
alguém que tenha necessidade em sua para o conjunto de cavernas de Lascaux,
profissão de uma exatidão material cujas pinturas, encontradas em 1942,
absoluta” (DUBOIS, 1993: 29). Esse estão datadas em aproximadamente
caráter científico, objetivo, realístico e dezessete mil anos.
documental atribuído à imagem O conjunto de tais imagens tem
fotográfica também foi muito útil às especial significado na medida em que
necessidades de controle social das nos informa sobre um estágio de arte
instituições policiais que doravante cuja produção se realizou intimamente
poderiam dispor de um equipamento vinculada a efeitos mágicos, religiosos. A
técnico para identificar e perseguir aos elaboração de desenhos através de
que fossem tidos como adversários da incisões na pedra, sendo outras pedras os
ordem então estabelecida. instrumentos de que se dispunha para a
Walter Benjamin já afirmara que produção pictórica, representam e
uma fotografia não diz quase nada sobre significam a luta dos homens pela
as instituições – ainda mais no mundo da sobrevivência; representam ainda um
produção fabril; a realidade da imagem estágio espiritual que expressa uma
transformara-se numa realidade relação paradoxal desses homens com os
funcional, onde as relações humanas, gigantescos animais que os alimentavam,
com o que elas têm de conflitos e mas também os devoravam. Fayga
antagonismos, não se manifestam, pois, Ostrower traça este itinerário, mostrando
não obstante todo o planejamento e as várias nuances e possibilidades de
intenção do fotógrafo para produzir tal interpretação dessas obras.
imagem, somos tomados pela Importa destacar nesta auto-
necessidade de buscar nela a centelha do representação um estreito sentimento de
acaso, do aqui e agora, com a qual a ligação dos homens com a natureza, com
realidade chamuscou a imagem, de os animais, expresso na nobreza,
procurar o lugar imperceptível em que o dignidade e majestade com que estes
futuro se aninha ainda hoje em minutos últimos eram projetados através das
únicos, há muito extintos e com tanta imagens, tais qualificações certamente
eloqüência que podemos descobri-lo, eram admiradas pelos homens que com
olhando para trás (BENJAMIN, 1993: 94). elas mantinham vínculos identitários: a
Mas as concepções acerca do força dos bisontes, a rapidez dos cavalos,
realismo expresso nas imagens a beleza das cervas. Ao mesmo tempo,
fotográficas tomaram outras dimensões a em sua dimensão mágica, os locais onde
partir de questionamentos relativos às eram realizadas tais imagens serviam
intencionalidades que estas imagens como ambientes para o culto: pedia-se
guardam em si. Estudiosos aos deuses, através daquelas figuras, que
contemporâneos, que privilegiam a os animais ali representados se
fotografia como objeto de estudo ou tornassem caça abundante e não

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instrumentos de morte (OSTROWER, Essas transformações na
1988: 167-182). estrutura da arte têm a ver com outras
André Bazin levou mais longe transformações operadas nas
ainda a relação entre as artes plásticas e sensibilidades. Para Michael Baxandall, os
a proteção contra o tempo e a morte. pintores estavam atentos às mudanças
Para ele a gênese de uma psicanálise das no estatuto da arte, mas, ao mesmo
artes plásticas estaria nos processos de tempo, se apoiavam na capacidade visual
embalsamamento desenvolvidos pelos de seu público. Independentemente dos
egípcios – com sua reconhecida seus talentos de especialistas, eles
preocupação em preservar o corpo morto compartilhavam a experiência e hábitos
para uma vida post mortem –, cuja visuais da sociedade da qual faziam parte
religião era orientada contra a morte. e para quem trabalhavam (BAXANDALL,
Desta forma, satisfazia-se uma 1991: 48).
necessidade fundante da psicologia André Bazin avalia que foi o mal
humana, já que a morte significa a vitória entendido entre o estético e o psicológico
do tempo sobre os sujeitos. que causou a polêmica quanto ao
Ainda segundo Bazin, a evolução realismo na arte, isto é: um verdadeiro
da arte e das civilizações lograra destituir realismo – que implica na expressão da
as artes plásticas de suas funções significação concreta e essencial do
mágicas através da inserção do mundo; e um pseudo-realismo – que se
pensamento lógico, cuja produção contentava com a ilusão das formas. E
artística, a fabricação da imagem como esse conflito foi sanado pela emergência
projeção realista, torna insignificante a da Fotografia, que resolveu
manutenção do corpo físico. O que definitivamente o problema da busca pela
importaria doravante seria “a criação de semelhança, tirando das artes plásticas
um universo ideal à imagem do real esse peso e mal estar.
dotado de um destino temporal O realismo daí advindo opera por
autônomo” (BAZIN, 1991: 19-25). neutralidade, ou seja, sem a intervenção
Foi a intervenção da ciência, direta do homem em sua produção, pois,
ainda no século XV, materializada na por mais hábil que fosse o pintor, ele não
camera obscura, que permitiu a ilusão da poderia livrar-se de sua subjetividade
perspectiva, a perspectiva artificialis, que que, fatalmente, se faria presente em sua
permitia ao pintor dar a sensação de um obra. Desta forma, sugere-se que foi o
espaço de três dimensões onde os dispositivo tecnológico do qual a
objetos podiam se situar como em fotografia é resultado que possibilitara a
percepção direta. Este processo teria originalidade da Fotografia em relação à
colocado a pintura entre dois mundos: o pintura; isto é, a sua objetividade
da estética, marcado pela expressão das essencial, onde se instituía a reprodução
realidades espirituais em que o modelo é de um objeto inicial por meio de outro
transcendido pelo simbolismo das objeto, sem nenhuma outra interferência.
formas; e o psicológico, que enseja a Uma imagem do mundo exterior se dava
ilusão da produção das semelhanças, a conhecer sem a intervenção criadora do
resultado de um desejo de substituir o homem, de acordo com um rigoroso
mundo exterior pelo seu duplo. Mas não determinismo. Portanto, a fotografia se
foi difícil para grandes artistas incorporar expressaria como análogo ao real; as
as duas tendências e transmiti-las em pinturas e os desenhos expressariam
suas obras: dominar a realidade e alegorias, isto é, imitações da realidade,
transpô-la para a arte, associando a daí o peso atribuído à subjetividade dos
forma estética ao desejo psicológico por seus produtores; daí a sua dimensão
semelhança. artística, todavia negada à fotografia
associada tão somente à técnica e à

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mecânica. O que apareceria do fotógrafo “que não existe fora dela, nem antes
na imagem seria apenas a escolha do dela, mas precisamente nela”. A
tema, do ângulo, da direção. Ele não se produção fotográfica seria, portanto, um
identifica na fotografia como o pintor na fenômeno ideológico: “como apropriação
sua pintura. A fotografia impõe uma cisão do referente, não para fins de
no campo das artes: se até então a conhecimento, mas para garantir uma
presença do homem por meio de sua posse, um poder ou pelo menos um
subjetividade era imprescindível à controle”. Assim fica a sugestão segundo
produção da obra de arte, pela primeira a qual a imagem fotográfica implica em
vez, com a fotografia, essa subjetividade ilusão especular, uma vez que a visão
é dispensável. “realista” que se institui por tal imagem
O caráter automático da coincide com uma concepção ingênua e
fotografia teria lhe atribuído um poder de largamente aceita por todos de que a
credibilidade até então desconhecido fotografia fornece uma evidência: não se
entre as artes pictóricas porque coloca em dúvida que ela “reflete”
praticamente nos obriga a acreditar na alguma coisa que existe ou existiu fora
existência do objeto representado, isto é, dela e que não se confunde com o seu
presente numa determinada dimensão código particular de operação. A ênfase
espaço-temporal, transferindo a realidade no referente, a concepção de fotografia
do objeto para a sua reprodução. Não como reflexo “bruto” da realidade,
deve ser uma mera coincidência que se apenas se justificaria como postura
denomine “objetiva” ao conjunto de estratégica visando defender demandas
lentes que constituem o olho fotográfico de grupos interessados na produção de
que, em tese, substituiriam o olho determinadas imagens (MACHADO, 1984:
humano. Nesse sentido, a virtude 39-40). Portanto, a fotografia não
estética da imagem fotográfica estaria na expressaria nem neutralidade nem
revelação do real –, o acontecimento tampouco a produção realista e objetiva
mais importante da história das artes das coisas do mundo, mas é ela o
plásticas, no entender de André Bazin. resultado de condicionantes históricos
Graças a sua objetividade e ao poder de interessados em construir uma realidade
reproduzir o real, a fotografia liberaria a idealizada para atender a demandas bem
pintura ocidental de sua obsessão objetivas de grupos no poder. Este
realista, fazendo-a pacificar-se com a sua esforço implica na instituição de uma
autonomia estética. forma de educar o olhar.
Arlindo Machado insurgiu-se Pierre Bourdieu assinala que a
contra esta pretensa neutralidade da fotografia proporciona o meio de
imagem fotográfica insinuada por Bazin, dissolver a realidade sólida e compacta
ao defender que não há objetividade na da percepção cotidiana numa infinidade
fotografia. A imagem fotográfica existe de perfis fugazes como imagens de
para atender determinados objetivos de sonhos, de fixar momentos únicos, de
natureza ideológica. A produção em captar aspectos imperceptíveis em
réplica do mundo visível, sem mediações, instantâneos do mundo percebido, de
não nos informaria suficientemente sobre imobilizar os gestos humanos. No
a realidade que, a rigor, não seria aquilo entanto, o autor afirma que é apenas em
que nos é entregue prontamente, nome de um realismo ingênuo que pode
impressa, mas é uma construção e, assim ver-se como realista uma representação
sendo, precisa ser “intuída, analisada e do real e, que tal aparência objetiva,
produzida” – subjetivamente, diríamos. ocorre não pelo fato de haver nas
A fotografia não seria imagens fotográficas uma reprodução fiel
simplesmente o registro de um objeto em da realidade das coisas, mas por existir
sua materialidade: ela cria uma realidade uma concordância socialmente partilhada

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segundo a qual as regras que identificam documentos para a produção da História,
a sintaxe da imagem fotográfica definem nos alerta para o fato de que as imagens
a visão objetiva do mundo. Assim, fotográficas, assim como qualquer outra
quando outorga à fotografia a modalidade de documento, não devem
exclusividade do realismo, a sociedade ser tomadas como expressão fiel da
confirma a si mesma na certeza realidade e, nesse caso, devemos nos
tautológica de que uma imagem do real, precaver contra os perigos das
de acordo com sua representação de impressões especulares, uma vez que as
objetividade, é verdadeiramente objetiva imagens fotográficas, graças às suas
(BOURDIEU, 2003: 138-139). ambigüidades, comportam significados
Para Roland Barthes, a imagem e/ou omissões, e a sua capacidade
fotográfica implica em objetividade, uma informativa depende da contextualização
vez que ela expressa o real por analogia. das imagens com a experiência histórica
Nesse caso, é o referente fotográfico (a no tempo e no espaço que propiciaram a
coisa real que esteve diante da objetiva, sua realização. A interpretação das
sem a qual não haveria fotografia) que imagens passa certamente pelo filtro
lhe confere status de realidade. Em cultural no qual está inserido o receptor
Barthes, a imagem fotográfica não que, a partir dos seus valores, elabora as
rememora o passado, mas afirma que a suas narrativas (KOSSOY, 1993: 13-24).
coisa fotografada de fato existiu,
reproduzindo ao infinito o que ocorreu Para Miriam Moreira Leite, o
apenas uma vez, repetindo trabalho com fotografias requer estudos
mecanicamente o que não mais poderá que permitam as mediações entre a
repetir-se existencialmente. Designação realidade que se quer interpretar e as
de realidade (BARTHES: 1984). imagens dessa realidade. Se as
Em Philippe Dubois, a riqueza da fotografias não contêm toda a verdade e
imagem fotográfica reside no seu caráter apenas nos permitem o acesso a alguns
indicial. O que o pesquisador deve traços visíveis da experiência social que
considerar primeiramente em uma pretendemos estudar, é fundamental que
fotografia – “antes de qualquer outra se proceda a um cotejamento com outros
consideração representativa” – não são materiais que nos sirvam para melhor
as aparências de um objeto, de uma significar o nosso objeto de estudo
pessoa ou de qualquer materialidade que (LEITE: 1993).
possa ser capturada pela objetiva, mas a Ana Maria Mauad defende
sua condição de índice, isto é, os signos proposição metodológica semelhante,
que expressam num determinado uma vez que esta historiadora sugere
momento histórico uma relação de que, para uma melhor compreensão da
ligação, de pertencimento, de existência imagem fotográfica, é fundamental que
contemporânea com o seu referente se atente também para outros níveis para
(DUBOIS: 1993). Acreditamos que a essa além daqueles expostos na superfície do
preocupação de Dubois pode-se texto visual, níveis estes que podem ser
perfeitamente acrescentar a necessidade buscados em outras modalidades de
de compreensão das motivações que textos contemporâneos ao objeto dos
geraram tais fotografias: no processo de nossos estudos. Há que se considerar,
realização do seu trabalho com essas nesse caso, as fontes de natureza escrita
imagens, é fundamental que o e oral (MAUAD: 1996).
pesquisador identifique os interesses que Para José de Souza Martins, a
as fizeram surgir, o que as informou, que fotografia é um artefato cuja elaboração
realidade social propiciou a sua produção. compreende a redução do tempo de
Boris Kossoy, um dos pioneiros determinadas realidades sociais ao
no Brasil a tomar as fotografias como espaço e tempo da imagem fotográfica

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que são imaginados pelo fotógrafo que a informar. Sorlin parece querer dizer-nos
partir de uma visão de mundo que o que não há verdade ou informação fora
informa, elabora a sua mensagem da palavra. Se este enunciado faz sentido
fotográfica. Se para a ideologia ele é, ao mesmo tempo, contraditório. As
fotográfica a imagem que ela produz palavras podem conduzir-nos a equívocos
implica num “congelamento” do tempo, a ou a mentiras mesmo, pois o próprio
sua contrapartida, as leituras que podem Sorlin afirma a falsidade de determinadas
ser feitas dessas imagens a partir dos fotografias em função de falsas
decodificadores a ela agregados, informações veiculadas sobre elas
permitem o seu “descongelamento”, na (SORLIN: 2005).
medida em que possibilitam a revelação Partindo desta premissa podemos
da dimensão sociológica e antropológica certamente concordar com Lewis Hine
do que foi fotografado. É a operação quando este afirma que as fotografias
imaginativa, portanto, que ao remeter a não mentem, mas mentirosos podem
imagem fotográfica para o âmbito da fotografar (BURKE, 2004: 25). O
história, da cultura e das relações sociais problema é que Pierre Sorlin não deseja
lhe atribui significados, que a descongela, questionar as razões do falseamento na
que a faz pulsar (MARTINS: 2002). fotografia, ele não coloca a indagação:
Podemos pensar a imagem por que determinados fotógrafos
fotográfica para além do que está mentem? Quais os condicionamentos ou
representado na sua superfície plana? Ou imperativos que os impelem à mentira?
podemos, como o faz Pierre Sorlin, Baseado na fotografia do Cerco de Gaeta,
afirmar que a fotografia é, desde o seu feita em 1861, portanto menos de três
início, um falseamento? Segundo Sorlin, décadas após o surgimento da fotografia,
diferentemente da imagem alegórica, a Sorlin se compraz em afirmar apenas que
imagem analógica não narra, mostra; as fotografias são, desde o seu início,
mesmo que isso implique uma seqüência falsas. A sua argumentação não
com começo, meio e fim. Tudo o que a convence, está eivada de má vontade: “a
imagem analógica faz, uma vez que é razão do falseamento é muito simples: é
uma produção mecânica – não obstante sempre muito mais fácil fazer uma
todo um investimento intelectual e fotografia falsa do que uma verdadeira”.
emocional daquele que faz a imagem – é Não estamos certos disto. Talvez
produzir um reflexo do homem ou das o inverso seja mais razoável. O ponto
coisas. É reflexo a fotografia assim como central da questão – queremos insistir –
é reflexo a nossa imagem no espelho. O parece residir nas razões do falseamento
seu limite é fazer-nos ver algo (SORLIN: das imagens fotográficas porque
2005). tendemos a acreditar, como Roland
Barthes, que aquilo que esteve diante da
Para este autor a imagem objetiva realmente existiu (BARTHES:
analógica nada diz, ela nada comunica; o 1984). Concordamos, no entanto, com
dizer, o comunicar é uma atribuição da Sorlin num aspecto: é necessário buscar
palavra. Sem este aporte comunicativo, informações acerca das imagens
sem os comentários que dêem um fotográficas objetos do nosso interesse,
sentido às imagens elas não valeriam não pelo risco de incorrermos em
absolutamente nada. Sem as informações devaneios, fantasias ou quaisquer outras
verbalizadas que as referenciem modalidades de “irrealidade”, mas pela
corremos o risco de, em contato com necessidade, a nosso ver premente, de
uma imagem fotográfica, podermos uma contextualização histórica que nos
imaginar qualquer coisa ao sabor de conduza a uma compreensão destas
nossas fantasias. Assim, essas imagens imagens não apenas como artefatos
têm o poder de impressionar, interessar, capazes de produzir desejos ou
comover, apaixonar. Mas não de
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imperativos de fotógrafos, mas, por isso fábricas. Ninguém tinha noção de que ali
também, como uma relevante prática havia um campo de concentração”. “Por
social e cultural que, uma vez inserida no que não vimos? Porque não pudemos
mundo, incorpora, reforça e eterniza o imaginar, não pudemos pensar. É
ininterrupto fluxo de experiências. Afinal, impensável, portanto não é visível”
como nos lembra Ulpiano Menezes, o (DUBOIS: 2003: 146-155).
documento em causa forneceria apenas a Dubois reconhece e distingue as
referência inicial, quase um „corpo de duas tendências básicas no domínio da
delito‟, que remeteria às motivações e às imagem: os que dizem que a linguagem
ações humanas: não custa lembrar que supera a imagem por ser a única via
autenticidade ou o seu contrário não são através da qual se podem articular e
atributos das coisas (das imagens), mas formular os sentidos das coisas, enquanto
do discurso dos homens a seu respeito ou a imagem não é capaz de fazê-lo ou por
por seu intermédio (2003: 137). querer dizer tudo ou por não dizer
Uma fotografia pode ser o absolutamente nada. Há, por outro lado,
resultado de uma contingência, os que consideram a imagem superior
retratando o que foi encontrado pelo porque esta “passaria por outras coisas
fotógrafo. Todavia, a riqueza de uma além do sentido formulado das palavras;
imagem não consiste apenas em é um pensamento que se exprime por
reproduzir fatos, mas também em colocar outra forma que não a discursiva”.
em sincronia o olhar do receptor com um Dubois situa-se na segunda opção
mundo que – mesmo não mais existindo mesmo reconhecendo que não se trata,
– passa a fazer parte do universo deste por isso, de excluir a primeira; reconhece
receptor através do que a imagem a dialética havida entre esses dois
eternizou, do resultado de um trabalho campos e torna ainda mais complexa a
que se consubstancia em memória com questão ao afirmar que “o pensamento
toda a plenitude da visualidade. visual é algo que não se consegue ver
Aqui nos encontramos, mesmo inteiramente” – isto talvez pela proposta
que por uma via diversa, com uma metodológica conflituosa que faz àqueles
premissa proposta por Phillippe Dubois: é que se dedicam ao estudo das imagens:
possível exceder o que a imagem nos é preciso confiar nas imagens, mas, ao
mostra ou, dito de outra forma, pode-se mesmo tempo, delas desconfiar
encontrar numa fotografia “traços de (DUBOIS, 2003:147).
coisas que não estão visíveis”? (DUBOIS: No entender de Ariosvaldo da
2003). Silva Diniz, as imagens fotográficas nada
A problemática, a argumentação mais são que delírios que a ordem atribui
e a justificativa de Dubois para a idéia de aparência de razão. A fotografia,
uma “imagem do invisível” têm constitutiva do campo da imaginação,
dimensões filosófica, histórica e política. esforça-se tanto para apreender
Ele se reporta a algumas imagens realisticamente um objeto impossível
produzidas no período da Segunda como para extrapolar os limites realistas,
Guerra Mundial quer no cinema quer na constituindo uma dialética da construção
fotografia, entre 1940 e 1945. “Como foi da imagem do mundo, do homem e dos
possível”, pergunta ele, “não se ter visto seus dilemas.
os campos de concentração nazistas nas Tal argumentação se ampara na
fotos tiradas pelos militares das tropas premissa segundo a qual a fotografia é
Aliadas em reconhecimento aéreo sobre a uma representação visual do sujeito
cidade de Auschwitz?” E ele mesmo dá a sobre um objeto e, nesse sentido, a
resposta: “o que se queria fotografar imagem fotográfica, esta perseguidora da
eram as fábricas da IG Farben, e para verdade e da realidade, diz respeito a um
eles essas imagens continham as processo de elaboração simbólica e de

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atribuição de significados que, ao final, lo para que se possa emitir impressões
nada mais faz que produzir máscaras ou, sobre ele. As imagens, por si, talvez não
no dizer do autor, “fantasmas”. Tais sejam capazes de produzir um
fantasmas seriam os resultados de uma pensamento, mas aqueles que as vêem,
inversão de referenciais ou de uma que as estudam, tornam-se capazes de
substituição: “no lugar da estrutura melhor compreender os acontecimentos
imaginária do sujeito cultural, cultiva-se a por elas representados e sobre estes,
função referencial a objetos”. Assim, o sim, produzir um pensamento.
imaginário manifestar-se-ia de duas Acreditamos que as imagens fotográficas
maneiras: apreendendo o mundo de iluminam, interferem, inspiram e
forma supostamente realista, através da contribuem para a ampliação do saber
imagem fotográfica e do conceito e, que já é conhecido.
através da arte e da ficção, expressaria a É a recepção que se faz das
perda de contato com o real (DINIZ: imagens que permite a sua mobilidade,
2001). ainda mais se aquele que a olha for
Questionar uma imagem contemporâneo dos acontecimentos que
fotográfica talvez não seja uma tarefa ela registra. É uma relação – revigorada
muito fácil. Para fazer tal abordagem – com o passado na qual a imagem
devemos estar cientes das duas facetas estática parece ganhar movimento ao
que envolvem a fotografia: em primeiro possibilitar o aflorar de lembranças e de
lugar ela é um objeto de cultura, na experiências vividas. Este processo nos
medida em que é uma produção conduz a representações sobre este
culturalmente orientada, produto de um passado através da recepção a suas
meio historicamente localizado. Nesse imagens, materiais que o indiciam,
sentido tais imagens ganham a condição significam e atualizam.
de documentos e de monumentos e isto Certamente este indiciamento do
nos impõe um conhecimento sobre o passado, da sua realidade, não tem nem
tempo em que estas imagens foram deve ter uma pretensão cartesiana com a
produzidas; faz-se necessário estarmos exatidão absoluta, passível de
antenados com o recorte espaço- comprovação matemática. Afinal, Alfredo
temporal de sua produção para podermos Bosi nos lembra que o olhar não seria
fazer com alguma segurança uma leitura apenas comparável à luz que entra e sai
mais confiável dessas imagens; em pelas pupilas como sensação e
segundo lugar, a fotografia é também um impressão, mas teria também
evento para o olhar. Assim sendo, nos propriedades dinâmicas de energia e
deparamos com a necessária reflexão calor graças aos seus enraizamentos nos
acerca da recepção e também com a afetos e na vontade. O olhar não é
possibilidade de exceder o que está apenas agudo, ele é intenso e ardente. O
expresso nas imagens fotográficas. olhar não é só clarividente, é também
Dubois reafirma a parcialidade do desejoso, apaixonado (1988: 77). A frase
olhar – e que por isto este olhar deve ser de Bosi também pode ser útil para
o mais modesto possível em relação à pensarmos sobre as possibilidades das
imagem, “o mais despojado possível de imagens fotográficas para além de sua
saber”, que não deve sobre ela interferir capacidade de evidenciar o passado. Elas
para que a imagem produza o se prestam também para impactar e
pensamento por si mesmo. Discordamos mobilizar a imaginação histórica (BURKE:
desta premissa porque acreditamos que 2004; MILLS, 1980: 242).
as imagens, ao serem recepcionadas, são Miriam Moreira Leite já rechaçou
capazes de lançar luzes sobre o passado, a máxima que diz que “uma imagem vale
dando-lhe movimento e fazendo mais que mil palavras”, numa indicação
desencadear esforços para compreendê- que não se pode pensar a fotografia

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como uma reprodução da realidade. Ela é percepção do mundo. A paixão com que a
produto de um determinado meio social prática fotográfica foi realizada, a sua
cuja compreensão passa pelo rápida disseminação e as discussões que
conhecimento da visão de mundo ela fez desencadear quanto à reprodução
compartilhada pela sociedade que a da realidade são emblemas importantes e
produziu. Dessa forma, no estudo das que nos conduzem a uma dada
fotografias devem-se considerar os compreensão do deslumbramento que
signos que as compõem, uma vez que esse fantástico artefato causou. A
esses tendem a expressar a articulação exploração das imagens fotográficas em
entre as experiências vividas e as sua inesgotável riqueza documental pode
imagens, através dos indícios nestas constituir-se, para os pesquisadores,
contidos (LEITE: 1993). numa estratégia metodológica capaz de
Esta afirmação de existência não permitir a atribuição de significados
implica numa explicação de sentido. Para novos a representações já elaboradas
Phillippe Dubois as fotografias nada sobre o passado, operando a sua
interpretam, nada explicam, tendem, diversificação, afinal a imagem
inversamente, a constituir-se em fotográfica, em seu apelo visual, tem o
enigmas. O índice fotográfico, mais do condão de ligar o passado ao presente,
que qualquer outro meio de lugar de onde o historiador parte para
representação, implica de algum modo questionar e compreender o passado.
um peso, um poder, uma plenitude de Aqui nos deparamos com a
real que opera apenas na ordem da necessidade de amparos conceituais que
existência e em caso algum na ordem do nos permitam estudar mais
sentido. O índice pára com o „isso foi‟. adequadamente as imagens fotográficas.
Não o preenche com um „isso quer dizer‟. Nesse sentido podemos recorrer aos
A força referencial não se confunde com conceitos de iconografia e de iconologia.
qualquer poder de verdade (DUBOIS, Baseamo-nos em Boris Kossoy (2001). É
1993: 85). certo que Kossoy tomou de empréstimo e
Essa perspectiva contrasta das utilizou como ferramenta teórica para o
lições de método propostas pelo estudo da imagem fotográfica os
historiador italiano Carlo Ginzburg, postulados sobre iconografia e iconologia
sobretudo no ensaio denominado “Sinais: elaborados por Erwin Panofsky que,
raízes de um paradigma indiciário”, onde originalmente, os desenvolvera visando
o autor retoma o conceito de paradigma introduzir-se ao estudo da Arte realizada
indiciário - associando-o ao conceito de no Renascimento (PANOFSKY: 2004).
semiologia médica – a partir de métodos Resumidamente, para Panofsky a
de investigação suscitados por textos Iconografia trata do tema ou mensagem
escritos pelo médico e crítico de arte das obras de arte em contraposição à sua
Giovanni Morelli, pelo novelista inglês forma, e a Iconologia, diz respeito a um
Conan Doyle (também médico e criador método que pressupõe uma exata análise
do célebre detetive Sherlock Holmes) e das imagens, estórias e alegorias, como
pelo psicanalista Sigmund Freud. Esses requisitos essenciais para uma correta
textos implicariam na possibilidade de interpretação (PANOFSKY, 2004: 47 e
construção de um método interpretativo 54).
no qual a atenção no detalhe, nos Kossoy pretendeu avançar nesta
sintomas, nos indícios, nas pistas formulação ao sugerir que a análise
permitiria ao historiador captar uma iconográfica visa detalhar
realidade mais profunda, de outra forma minuciosamente o conteúdo das imagens
inatingível (GINZBURG, 1990: 150). em seus elementos icônicos formativos; o
É bem verdade que a imagem aspecto literal e descritivo prevalece,
fotográfica transformou a nossa sendo o assunto registrado e identificado

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no tempo e no espaço. A análise como deve ser a realidade se essa é a
iconológica da representação fotográfica sua aparência‟. As fotografias, que por si
busca o significado do conteúdo que a só nada podem explicar, são inesgotáveis
imagem expressa, o que significa que convites à dedução, especulação e
ver, descrever e constatar não é fantasia (SONTAG, 1986: 30-31).
suficiente, a complementação apresenta- Cornelius Castoriadis já nos
se como imprescindível (KOSSOY, 2001: ensinou que as significações imaginárias
95). que a sociedade institui não podem ser
Roland Barthes propõe a interpretadas como réplicas, decalques
interpretação conotativa das imagens ou reflexos de um mundo real, mas, em
fotográficas, cuja definição implica numa contrapartida, não podem nem devem
imposição de sentido ao conteúdo ser dissociadas do mundo que as faz
fotografado. Assim, a conotação se emergir porque o que lhe dá sustentação,
produz não apenas com a descrição da seu ponto referencial é a experiência, é o
imagem propriamente dita, mas quando vivido. Partindo dessa premissa podemos
se faz a interpretação do que está considerar os anseios, os desejos e os
denotado na imagem. Portanto, sonhos como projeções mentais que os
arriscamo-nos deliberadamente ao homens elaboram e que têm lugar no
atribuir significados a imagens que não campo do pensamento que, por sua vez,
foram tomadas com este objetivo; em é formado e informado por vivências
outras palavras, extrapolamos o que reais. Experiências e imaginação
essas fotografias, tomadas por nós como (CASTORIADIS: 1992).
indícios históricos, expressam em suas José de Souza Martins equipara o
superfícies planas (BARTHES, 1978: trabalho dos fotógrafos ao trabalho dos
307). sociólogos e dos antropólogos na medida
Trilhar por estes caminhos e em que tal trabalho, tendo por base as
enfrentar os desafios que nos impõem imagens produzidas pelos primeiros,
significa somar esforços para construir a somente se realiza mediado pela
necessária renovação das contribuições capacidade de imaginação que se deve
que a História, na condição de produtora fazer presente quer na tomada das
de conhecimento, pode oferecer às fotografias quer nos textos que os
sociedades. E essa possibilidade se cientistas sociais produzem a partir
mostra ainda mais gratificante quando destas imagens (MARTINS: 2002).
sabemos que o trabalho do historiador Esse realmente é um grande
depende muito de sua capacidade de desafio metodológico para aqueles que se
imaginar. E poucas são as fontes para o aventuram no pantanoso terreno da
trabalho em história que tanto nos pesquisa tomando como ponto de partida
estimulam para a operação imaginativa indícios de natureza visual,
como o fazem as imagens fotográficas. particularmente com a documentação
Na superfície plana dessas imagens fotográfica. Mas talvez esse desafio se
podemos “viajar” pelos hábitos sociais, torne menos angustiante a partir do
pelas formas, pelos comportamentos, momento em que pensarmos esses
enfim, por muito da experiência documentos sem a preocupação de
compartilhada por homens e mulheres no encontrarmos neles a reprodução
mundo: podemos, enfim, inventar. objetiva da realidade social que os
Inventar em consonância com a premissa produziu, muito embora não devamos
proposta por Susan Sontag para quem o cair no extremo da ficção.
ensinamento maior da imagem Georges Duby já nos chamou a
fotográfica é poder dizer: „aqui está a atenção para o fato de que a história
superfície. Agora pensem, ou antes, deve dar prazer, agradar e divertir, sem
sintam, intuam o que está por detrás, que se negligencie o rigor empírico, os

30
cânones próprios do ofício do historiador também revela o lado prazeroso da
em sua tarefa de produzir conhecimento pesquisa histórica, principalmente quando
(DUBY: 1993). A apreensão do real é compreendemos que essas imagens
metodologicamente impossível, mas é podem constituir-se num meio através do
perfeitamente possível buscarmos uma qual podemos chegar a uma
aproximação dessas experiências sociais compreensão do nosso passado a partir
vividas através do plausível, do de sua dimensão imaginária.
verossímil, como propõe Carlo Ginzburg
(GINZBURG: 2002).
Trabalhar com imagens, perseguir
o objetivo de atribuir-lhes sentidos,

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33
HISTÓRIA E NOVAS themselves to such uses? Historical
LINGUAGENS: A PROBLEMÁTICA romances can be taken as documents of
DA LITERATURA COMO FONTE the time? This is to mention just some of 1
O autor é
the concerns that preoccupy those who
Gervácio Batista Aranha1 doutor em história pela
reflect on the dialogue history and UNICAMP e professor
literature. da UFCG
Resumo

O objetivo deste trabalho é refletir sobre


a história e interface da literatura
2
Cf. LIMA, Luiz
Sobre os usos literatura na Costa. Mímesis: desafio
ficcional do ponto de vista das imagens
pesquisa histórica há que atentar para ao pensamento. Rio de
literárias recorrentemente cortadas pelo
uma série de inquietações. Algumas Janeiro: Civilização
historiador como fonte de conhecimento Brasileira, 2000, p.
interrogações podem se revelar
histórico. É uma fonte sensível às 286-287.
esclarecedoras: textos literários são
experiências cotidianas de outro tempo,
documentos como qualquer outro? Uma
através do qual o historiador pode
pergunta como essa é passível de
explorar, por exemplo: a mentalidade, a
inúmeras respostas, tudo dependendo de
vida trágica, a intolerância e/ou
quem seja interrogado a respeito. Um
ressentimentos, a grande ou pequena
seguidor da escola formalista em
miséria humana, a condição humana de
literatura, por exemplo, a consideraria
vidas vividas no limite, entre outras
desprovida de sentido; um seguidor do
sensibilidades. Uma reflexão capaz de
estruturalismo lingüístico da escola de
fornecer respostas para as perguntas:
Ferdinand de Saussure, por sua vez, não
textos ficcionais são documentos como
a estranharia menos; o mesmo
qualquer outro? Todos os gêneros
aconteceria com todos os que consideram
literários se prestam a tais usos?
a literatura ou outros campos estéticos
Romances históricos podem ser tomados
como arte tão-somente, sem quaisquer
como documentos da época? Isso é para
pretensões miméticas ou cognitivas
mencionar apenas algumas das
quanto à apreensão do mundo real. Na
preocupações que preocupam aqueles
literatura, por exemplo, um Samuel
que refletem sobre a história do diálogo e
Beckett poderia ser mencionado como
da literatura.
exemplo radical de um autor que
pretendia tornar a arte a que se dedicava
Abstract
liberta de todo e qualquer vínculo como o
mundo empírico2. Mas se essa pergunta
The objective of this paper is to reflect on
fosse dirigida a historiadores sociais ou
the history and literature fictional
culturais que trabalham atualmente na
interface from the viewpoint of the
interface da história com a literatura tudo
recurrence literary images cropped by the
mudaria.
historian as a source of historical
Um historiador social como
knowledge. It is a source elect sensitive
Nicolau Sevcenko, por exemplo, não nega
to everyday experiences from another
o caráter poético da literatura. Para ele, a
time, through which the historian can
literatura é, “antes de mais nada, um
explore, for example: mentality, tragic
produto artístico, destinado a agradar e a
life, intolerance and / or resentments,
comover”. Todavia, assim como é
large or small human misery, the human
impensável uma “árvore sem raízes”,
condition of lives lived on the edge,
assim também é impensável uma
among other sensitivities. A reflection
literatura desenraizada, fora do mundo
capable of providing answers to the
que lhe deu origem. Até porque, “todo
questions: fictional texts are documents
escritor possui uma espécie de liberdade
like any other? All literary genres lend
34
condicional de criação, uma vez que os Afinal, até o mais exagerado dos textos
3
seus temas, motivos, valores, normas ou do realismo literário é marcado por Cf. SEVCENKO,
Nicolau. Literatura como
revoltas são fornecidos ou sugeridos pela alegorias ou recursos poéticos jamais missão, tensões sociais
sociedade e seu tempo - e é destes que encontrados em textos ou documentos e criação cultural na
eles falam”.3 Ora, preocupado com as não literários, a exemplo de um censo Primeira República. 3a
ed. São Paulo:
tensões sociais e com a problemática das demográfico, uma lei de terras ou um
Brasiliense, 1989, p. 20.
mudanças culturais na Primeira República inventário, dentre outros. Isto pode ser
no Brasil, tema de um de seus trabalhos, indicativo de que a vida real imitada no
o historiador em questão parece sugerir romance, por maior que seja a 4
Cf. Idem, p.
que o tema dificilmente seria focalizado a preocupação deste último com a verdade, 237.
contento caso não tivesse se valido de não inibe o processo de recriação dessa
dois literatos do período, Euclides da mesma vida real.
Cunha e Lima Barreto, autores para Assim, a interrogação parece 5
Cf. CHALHOUB,
quem a literatura encerrava uma missão, pertinente: “é a mesma a Paris de Balzac Sidnei e Pereira,
Affonso Leonardo de
a de se inserir criticamente em relação e a Paris, por exemplo, de Karl Marx, em Miranda.
aos processos históricos dos quais faziam sua obra o 18 Brumário?” A resposta é “Apresentação”. In
parte. Afinal, suas obras “se revestem de negativa. É que “a Paris de Balzac é uma Chalhoub, Sidnei e
Pereira, Affonso
uma dupla perspectiva documental: como Paris vista pelos olhos do criador, é uma
Leonardo de miranda
registro judicioso de uma época e como Paris recriada apesar de toda intenção de (orgs.). A história
projetos sociais alternativos para sua „verdade‟ e registro”.6 E quanto às contada: capítulos de
transformação”.4 pretensões de verdade do romance história social da
literatura no Brasil. Rio
Seguindo esta linha de raciocínio, naturalista, que encontra em Aluízio de Janeiro: Nova
os historiadores sociais não só Azevedo uma de suas maiores Fronteira, 1998, p. 7.
consideram os textos ficcionais simples expressões no Brasil? Por exemplo, no
documentos, a exemplo de qualquer romance O Cortiço, deste último autor, a 6
Cf.
outro, como são de opinião que nós cidade do Rio de Janeiro ali retratada é FERNANDES, Ronaldo
historiadores não devemos fazer-lhes uma cópia da cidade real? Mais uma vez Costa. “Narrador,
cidade, literatura”. In
qualquer concessão, diante dos quais a resposta é negativa. Isto porque, LIMA, Rogério e
devemos passar altivos, sem ter que “mesmo em sua visão de testemunho e Fernandes, Ronaldo
tirar-lhes o chapéu? Dois desses registro de realista, Aluízio constrói uma Costa (orgs.). O
imaginário da cidade.
historiadores sociais, falando em nome cidade à sua maneira”. Ronaldo Costa Brasília: Editora
dos colegas de profissão que recorrem a Fernandes esclarece: “A cidade do Rio de Universidade de
textos literários, são de opinião que Janeiro, dentro de O Cortiço, Brasília; São Paulo:
Imprensa Oficial do
devem se “apropriar da literatura com a reconhecemos, é a cidade do Rio de
Estado, 2000, pp. 29-
maior sem-cerimônia”. E categóricos: Janeiro, em uma época, com as tensões 30.
“diante dos poetas e prosadores do do confronto de classes sociais com
Olimpo das letras, não passamos com o interesses divergentes. Mas temos de 7
Cf. Idem, p.30
chapéu à mão, curvando-nos reconhecer, também, que a cidade do Rio
respeitosamente. Chapéu à banda, de Janeiro, de O Cortiço é a cidade do Rio
passamos gingando. Por obrigação de de Janeiro vista pelo seu autor. Não é
ofício, historiadores sociais são uma cidade do ensaio, cheia de números,
profanadores”5. estatística, análise”.7
Talvez tenham razão quando Em que pese o caráter ficcional
sugerem que a literatura ficcional não da obra literária, isto não diminui sua
deva ser encarada pelo historiador como importância como fonte para o estudo da
um texto de natureza superior; talvez história. Não obstante o romancista crie
tenham razão quando opinam que não livremente a trama que compõe sua obra
devemos qualquer reverência à literatura e, com ela, situações e personagens
tomada como fonte. Todavia, parece que fictícios, isto não o torna menos
exageram ao não chamarem a atenção sintonizado com o mundo em que vive
para a natureza poética do texto literário. sua experiência existencial, seja

35
profissional, afetiva etc. Assim, sua obra dos autores que saem em defesa da arte 8
Cf.
tende a vir impregnada dos valores como pura abstração, o irlandês Samuel COMPAGNON, Antoine.
adquiridos no universo cultural em que Beckett, um autor cujo “empenho, nos O demônio da teoria:
está mergulhado. O fato é que pessoas romances e nas peças cada vez mais literatura e senso
comum. Tradução de
ligadas ao mundo das letras, poeta, curtas que escreve nos seus últimos Cleonice Paes Barreto
romancista ou crítico literário, anos, consiste em aumentar a dificuldade Mourão e Consuelo
dificilmente tomariam obras ficcionais de serem reconhecidos como Fortes Santiago. Belo
Horizonte: Editora
como simples documentos históricos. correspondentes a alguma situação
UFMG, 2003, 126-127.
Contudo, não são poucos os autores de espaço-temporal humana”. Logo, uma
contos, romances ou crônicas, aos quais literatura com a pretensão de eliminar
vêm se somar inúmeros críticos literários, “qualquer cor local” ou “qualquer
que admitem que o universo da ficção determinação histórica”.10 Contra
tem muito a dizer sobre o mundo social e posturas como esta, o crítico é de opinião 9
LIMA, Luiz
histórico. Críticos literários, por exemplo, que nenhuma obra literária pode Costa. Op. Cit., pp. 24-
como Antoine Compagnon, que ao prescindir do sujeito ou do mundo onde 25 e 398.

explorar a relação entre literatura e ele está inserido. É que a “literatura de


mímesis, sugere o que chama de “regime Beckett não forma um texto sem raiz
do mais ou menos, da ponderação, do nem teto, sem pré-texto ou pós-texto. A
aproximadamente: o fato de a literatura seu texto, como a qualquer texto
falar da literatura não impede que ela literário, é impossível desligar-se do
também fale do mundo”. E complementa: antes e do depois do texto”11.
“Afinal de contas, se o ser humano Quanto a Antônio Cândido,
desenvolveu suas faculdades de renomado crítico literário brasileiro, são
linguagem, é para tratar de coisas que conhecidas suas reflexões em torno da
não são da ordem da linguagem”8. relação entre literatura e mundo
histórico. Em texto relativamente antigo,
Também críticos literários como
pois remonta ao ano de 1958, ele é o
Luiz Costa Lima ou Antônio Cândido, no
primeiro a defender a idéia, no Brasil, de
Brasil, admitem o estreito vínculo entre
que a literatura é eminentemente social,
literatura e sociedade. O primeiro, por
e isto independente do nível de
exemplo, deixa isto bem claro ao emitir a
consciência que possam ter, a esse
opinião de que tomar o texto literário 10
Cf. Idem, pp.
respeito, tanto os seus produtores quanto
como uma simples “poética auto- 287-288.
os seus receptores, valendo lembrar que,
referente”, conforme a postura
em Cândido, essa idéia não é válida
antimimética sustentada pelos
apenas para a literatura e sim para
desconstrucionistas, é transformar a
qualquer forma de expressão artística.
leitura em “morada de fantasmas”. Se
Daí ele opinar que a investigação sobre a
não aceita a noção de uma mímesis 11
Cf. Idem, pp.
obra de arte, incluindo a literatura, deve
absoluta, conquanto é de opinião que a 288-289.
estar atenta para as seguintes
literatura não deve ser tomada como
indagações: em que medida a arte
representação do real em sentido literal,
expressa o social? Em que medida o
isto não significa perder de vista a noção 12
CÂNDIDO,
influencia? Isto porque, para o referido
de representação literária. Trata-se de Antônio. “A literatura e
crítico, o produto artístico é social em a vida social”. In
encarar a literatura como base numa
dois sentidos: “depende da ação de Literatura e sociedade:
nova mímesis, à qual, mais que uma estudos de teoria e
fatores do meio, que se exprimem na
leitura com vistas à recuperação do real, história literária. 7ª ed.
obra em graus diversos de sublimação; e São Paulo: Companhia
deve ser vista como uma leitura com a
produz sobre os indivíduos um efeito Editora Nacional, 1985,
pretensão de indiciá-lo, capaz de dar-lhe pp. 18-21.
prático, modificando a sua conduta e
significação9. A título de exemplo, há que
concepção do mundo, ou reforçando o
se referir à leitura do crítico
sentimento dos valores sociais”12.
relativamente à literatura nos termos
daquele que parece ser o mais radical
36
A ressalva acima parece operária por meio do alcoolismo, com a
importante pela constatação seguinte: se conseqüente perda de vontade para lutar.
as reflexões em torno das raízes sociais Na verdade, um realismo que provoca
da literatura remontam, em termos de reações por todos os lados: da direita,
Brasil, ao mencionado texto de Antônio que o acusa de pornográfico; da
Cândido, originariamente publicado nos esquerda, para quem o livro calunia a
anos 1950, este mesmo autor reconhece classe operária; dos partidários da arte
que trata-se de uma reflexão ainda mais pela arte, que não aprovam seu
antiga a nível de mundo, conquanto engajamento social.15
atribui a Madame de Staël, na França Marcel Proust, ao contrário, não é
13
setecentista, a autoria do primeiro um autor com esse tipo de engajamento. Cf. Idem
esboço sistemático sobre a questão, De maneira que sua obra Em busca do
razão pela qual deixa claro, já naqueles tempo perdido deve ser vista menos 14
Cf. ROUANET,
distantes anos 1950, que constitui como uma literatura produzida com a Sérgio Paulo. “Da
“verdadeiro truísmo” dizer que a arte intenção de retratar esse ou aquele religião da verdade ao
exprime a sociedade.13 aspecto da vida social e mais como um culto do
espermetazóide”. In Os
Ademais, parece pertinente projeto eminentemente estético. É que dez amigos de Freud.
alertar para o fato de que existe na trama proustiana, nos assegura Leyla São Paulo: Companhia
literatura e literatura. Compare-se, por Perrone-Moisés, prestigiada crítica das Letras, 2003, pp.
139 e seq.
exemplo, o romance naturalista de Zola literária, esse ou aquele lugar não
com o romance simbolista de Proust, em existem “como puros referentes”.
15
que esses autores pensam a relação Segundo ela, ninguém espere encontrar Cf. Idem, pp.
132-133.
entre literatura e sociedade de forma em Proust a descrição de uma paisagem
diametralmente oposta. Em relação a tal como o faziam os escritores realistas,
Zola, por exemplo, era visível sua isto é, com o fim de produzirem um
intenção de produzir uma literatura “verossímel espacial”. É que a descrição
pautada em pressupostos cientificistas, objetiva, no romance em questão, “nunca
um retrato vivo da sociedade da época. É vai além de uma frase. A seguinte já é
o caso da grande saga romanesca em divagação, projeção, transfiguração”.16
torno da família Rougon-Marquart, num Ora, espaço remete a tempo, um tempo
total de vinte episódios, com a qual que nunca é linear para Proust,
pretendia traçar um amplo painel da vida conquanto não passa de “um conjunto de
social no Segundo Império, valendo-se, momentos-lugares memoráveis
para tal, de métodos da ciência natural, separados por imensas distâncias, sem
em especial no tocante ao crédito continuidade”. Logo, um tempo
atribuído a certos imperativos biológicos fragmentado que por sua vez remete a 16
CF. PERRONE-
como determinantes da conduta humana, espaço, este também fragmentado, MOISÉS, Leila. “Espaços
proustianos”. In Inútil
tão em voga naquele momento.14 “como o dos vitrais”, fragmentação que poesia e outros ensaios
A título de exemplo, vejamos um “advém das iregularidades da breves. São Paulo:
dos episódios dos Rougon-Macquart, o mémória”.17 Companhia das Letras,
2000, pp. 70-71.
romance Na taverna, o 7º volume da E, no entanto, tanto a obra de
série, com “o qual Zola alcança uma Zola quanto a obra de Proust são
notoriedade fulminante e com ela a passíveis de leituras por parte do 17
Cf. Idem, pp.
prosperidade”. Trata-se de uma trama profissional de história. Imagens 72-73.
que retrata a condição humana em eu presentes em Zola, por exemplo,
degrau mais baixo, conquanto marcado interessariam sem dúvida historiadores
pela miséria e pelo alcoolismo. O sociais da cultura interessados na
determinismo biológico é claro: o apreensão do modo de vida das pessoas
alambique, colocado no centro da taverna comuns em seus ambientes de trabalho,
(“assommoir” no original francês) moradia e/ou lazer. Mesmo que ao aos
representa simbolicamente a degradação historiadores em questão não interessem

37
as motivações próprias do realismo com a vida mundana nos salões
naturalista, como a suposição de que os aristocráticos e/ou burgueses, em
trabalhadores que aparecem na trama de particular no que se refere ao modo como
Zola são seres naturalmente fadados à as relações e os gestos, nesses
degradação e à perda de qualquer ambientes, são pura teatralização ou
referência humanitária, ainda assim terão fingimento, onde vivem-se experiências
muitos filtros ao seu dispor ao retratarem que, na opinião de um crítico, são puro 18
Cf. BRADBURY,
o objeto referido. desperdício, para não falar em Malcolm. “Marcel
Proust”. In O mundo
Já Proust - a despeito da leitura “atividades sociais frívolas, em interesses
moderno: dez grandes
da crítica literária citada, para quem o fúteis, em coisas irrelevantes”.19 escritores. Tradução de
autor francês teria produzido uma obra Atraindo a questão para o Brasil, Paulo Henriques Britto.
que é pura divagação ou transfiguração, compare-se a literatura de Lima Barreto São Paulo: Companhia
das Letras, 1989, pp.
dentre outras razões porque espaço e com a de Graciliano Ramos. Por exemplo, 126-127.
tempo aparecem aí completamente a sátira Os Bruzundangas, de autoria do
fragmentados -, contempla inúmeras primeiro, ao romance Angústia, de
imagens que poderiam interessar autoria do segundo. Esta sátira, que trata
historiadores culturais preocupados em de um país imaginário com o nome de
retratar certas sensibilidades modernas Bruzundanga, é uma representação
em Paris na transição para o século XX. alegórica do Brasil à época, alegoria que
Sensibilidades aos usos do telégrafo e/ou remete a um país onde nada funciona,
telefone, poderosos meios de onde tudo é corrompido, a literatura, a
comunicação que a civilização política, as instituições de um modo em
proporciona; sensibilidades decorrentes geral. A cada página aqui manuseada
da vertigem provocada pela velocidade sobre esse país inventado, é uma página 19
C. Idem, p.
dos novos meios de transporte que retrata um país semelhante em tudo 120.
modernos, o trem de ferro, o automóvel, ao Brasil, pois o país da Bruzundanga não
o avião; sensibilidades na apreensão do é outro senão o país onde nasce o autor.
significado de inúmeros motivos Ao falar dos políticos e da política da
arquitetônicos, tão ao gosto do narrador, Bruzundanga, o narrador não tem
os quais são captados, dentre outros dúvida: “Não há lá homem influente que
lugares, em Paris e Veneza; não tenha, pelo menos, trinta parentes
sensibilidades relativas ao cultivo das ocupando cargos do Estado (...)”. E, “no
artes, em especial pintura, literatura e entanto, a terra vive na pobreza; os
música, haja vista tratar-se de um latifúndios, abandonados e indivisos; a
romance com muitas menções a diversas população rural, que é a base de todas as
obras de arte, do passado e do presente, nações [lembrar que esta fala é emitida
e em que um personagem como Swann é em 1922], oprimida por chefões políticos,
cortejado pela aristocracia não porque é inúteis, incapazes de dirigir a coisa mais
rico e sim por ser um profundo fácil desta vida”.20 Qualquer semelhança
conhecedor de obras de arte.18 Ademais, com o Brasil à época...
outras imagens proustianas poderiam Já no romance Angústia, ao
interessar ao historiador atual contrário, o drama pessoal do narrador,
preocupado com questões de gênero, em um personagem atormentado, vivendo
especial no tocante à homossexualidade um cotidiano acizentado e opressor, onde
tanto masculina como feminina, para não há lugar senão para o tédio, um anti-
verificar como os personagens que herói que parece ter consciência de uma
encarnam essas opções sexuais são única coisa, a de que ninguém deve
julgados pela voz narrativa; ao esperar muita coisa dessa vida. Todavia,
historiador preocupado com a questão se prestaria muito bem para explicar a
judaica, haja vista retratar o polêmico sordidez, hipocrisia ou caráter
caso Dreyfus; ao historiador preocupado interesseiro que teriam marcado as

38
relações sociais em uma cidade recorrentes no trabalho do historiador
provinciana (Maceió) nos anos 1930, conforme a natureza do objeto. 20
LIMA
onde sentimentos como amor, amizade Assim, é provável que a poesia de BARRETO, Afonso
ou fidelidade, não fosse o julgamento um Baudelaire tenha pouco a dizer a um Henrique de. Os
moral do narrador- personagem, historiador que explore temas políticos Bruzundangas. (sátira).
Porto Alegre: L& PM,
estariam irremediavelmente perdidos. e/ou econômicos relativos ao século XIX, 1998, p. 67
Ademais, em que pese o caráter de embora tenha muito a dizer para um
introspecção, e sem que o autor tenha historiador cultural preocupado com as
21
tido tal pretensão, inúmeras imagens ou sensibilidades modernas presentes na Cf. Citado em
MACHADO, Ivam
fragmentos remetem ao modo de vida da vida urbana do mesmo período, haja Pinheiro.
Maceió de então, que muito interessariam vista tratar-se de uma poesia marcada “Apresentação: A
a um historiador que se interessasse com por um sem-número de imagens sobre comédia humana ”. In
Balzac, Honoré de. O
formas de representação da vida urbana Paris enquanto metrópole oitocentista.
pai Goriot (romance).
própria das pequenas cidades do início do Em contrapartida, a literatura de um Tradução de Celina
século XX. Balzac, por exemplo, teria a muito a dizer Portocarrero e Ilana
Sem dúvida, gêneros literários para historiadores de um modo em geral Heineberg. Porto
Alegre: LP&M, 2006, pp.
nada parecidos. O primeiro se encaixaria relativamente à França oitocentista. Ou 7-8.
como uma luva para um historiador que não é verdade que o romance A casa
pretendesse explorar a visão engajada de Nucingen teria sido mais útil a Marx e
um homem de letras na Primeira Engels, no tocante à compreensão do
República no Brasil, cuja sátira a essa universo das altas finanças, do que 22
Cf. CALVINO,
República poderia ser um sintoma do inúmeros tratados de economia política? Ítalo. “A cidade-
romance em Balzac”. In
desencanto geral para com uma forma de O comentário de Engels, numa carta a
Por que ler os clássicos.
governo que se instalou sob o signo de Marx, é esclarecedor: “Aprendi mais em Tradução de Nilson
promessas coletivas de um mundo Balzac sobre a sociedade francesa da Moulin. São Paulo:
melhor, mas que, no final das contas, primeira metade do século, inclusive nos Companhia das Letras,
1993, p. 150.
nada de concreto realizou. O segundo seus pormenores econômicos [...], do
romance, haja vista seu caráter que em todos os livros dos historiadores,
introspectivo e/ou sondagem psicológica economistas e estatísticos da época,
do comportamento humano, teria pouco todos juntos”.21 E quanto ao romance La 23
Cf. Idem, pp.
a oferecer para uma crítica mais severa duchesse de Langeais, não se prestaria 147-149.
às instituições no Brasil, embora se ele à compreensão sociológica das
preste a outras leituras, conforme classes sociais em Paris, com um capítulo
demonstrado acima. dedicado ao estudo da aristocracia do
A par desses diferentes gêneros Faubourg Saint-Germain?22 E em se
literários, parece se dissipar qualquer tratando do romance Ferragus, para citar
dúvida de que o historiador é capaz de um último exemplo, não poderia ser
deles se aproximar, por mais díspares tomado como uma espécie de “cidade-
que sejam. Assim, o romance simbolista romance”, com sua visão sobre Paris
ou psicológico, independentemente da “como um organismo vivo”, uma cidade
vontade de seus autores, forneceria ao “monstro”, ela própria transformada no
profissional de história, tanto quanto o protagonista por excelência?23
romance social, imagens literárias com É sabido que os historiadores,
vistas à apreensão do mundo social e incluindo os novos historiadores, a
histórico. Os textos literários, exemplo dos que trabalham com as
independentemente da intenção autoral representações imaginárias, não têm a
e/ou de sua linguagem estética, se mesma liberdade do romancista, uma vez
prestam igualmente ao tratamento que o que, não podendo se furtar ao uso de
historiador lhes atribui como documento certas evidências empíricas no momento
histórico. A única ressalva é a de que as de elaboração de sua atividade criadora,
imagens literárias são mais ou menos o máximo que podem almejar é

39
“divertir”, especialmente quando historiador que dialoga com literatura de
elaboram uma história voltada para o ficção não pode se furtar remete ao
grande público, mas sem perderem de seguinte questionamento: os
vista, como diria Georges Duby, que o personagens e situações presentes na
que muda, aqui, é a maneira de escrever, trama ficcional representam ou não
levando-os a “flexibilizar o estilo”, para personagens e situações presentes na
fins de tornar o discurso histórico “menos trama histórica? A esse respeito, há que
áspero”, isto é, de leitura agradável, não levar em conta que existe uma literatura 24
Cf. DUBY,
significando, com isto, que “o curso das que é tão representativa do contexto Georges. A história
investigações históricas tenha sido social a que está engajada, que é continua. Zahar
Editor/Ed. UFRJ, 1993,
desviado”24. impossível estabelecer um limiar entre
pp. 107-108.
De fato, o romancista tem, no ficção e o que poderíamos chamar de
plano da linguagem, uma imensa simples representação mimética do real
liberdade de criação, uma liberdade a que vivido. As imagens aí contidas transitam
o historiador não pode almejar, livremente entre uma e outra forma de 25
Cf. WATT, Ian.
porquanto a história jamais será representação e é impossível operar sua A ascensão do
considerada ficção. Daí, o romancista não separação. No final, o leitor fica sem romance: estudos sobre
ter maiores preocupações com evidências saber em que território se encontra. Este Defoe, Richardson e
Fielding. Tradução de
empíricas, por mais acentuada que possa é o caso, por exemplo, da ficção em José Hildergard Feist. São
ser sua capacidade de elaborar obras que Lins do Rego, cuja recriação literária de Paulo: Companhia das
imitam a realidade, como parece ser o cenários e personagens da vida real nem Letras, 1990, p. 31.
caso do que se convencionou chamar de sempre são fictícios, e, quando fictícios,
romance “realista”, cuja narrativa chama a atenção a facilidade como são 26
Cf. Idem, pp.
pressupõe, desde o século XVIII com identificados com esses cenários e 31-32
Defoe e Richardson, a premissa, por eles personagens da vida real. Para não ir
aceitas literalmente, “de que o romance muito longe, basta que se compare duas
constitui um relato completo e autêntico de suas obras: de um lado, Menino de
da experiência humana e, portanto, tem Engenho, romance que abre o Ciclo da
a obrigação de fornecer ao leitor detalhes Cana-de-Açúcar; de outro, Meus Verdes
da história como a individualidade dos Anos, livro em que rememora sua
agentes envolvidos, os particulares das infância de menino de engenho. Afora o
épocas e locais de suas ações (...)”25. efeito próprio da imaginação literária,
E, no entanto, o romance “realista” pouca coisa muda no tocante aos
apenas dá a “impressão de total cenários e personagens contidos nas
autenticidade” em comparação a outros duas tramas, havendo tão-somente a
gêneros literários. Se ele “permite uma substituição de alguns nomes entre os
imitação mais imediata da experiência atores. Por exemplo: o Carlinhos do
individual situada num contexto temporal romance personifica o próprio José Lins
e espacial do que outras formas das memórias. Já Cazuza Trombone, do
literárias”, isto não significa que essas engenho Corredor, é o mesmo nos dois
outras formas não a imitam, embora essa textos e assim por diante.
imitação se dê de outra maneira. A Porém, mesmo que certas obras
conclusão que se impõe é que “não há literárias se prestem a uma correlação
razão para que o relato da vida humana tão direta entre o contexto da trama
apresentado através dele [romance literária e o da vida real, não é isto que
„realista‟] seja mais verdadeiro que ocorre com a maior parte da literatura à
aqueles apresentados através das disposição dos historiadores para fins de
convenções muito diferentes de outros tratamento histórico. O que realmente
gêneros literários”.26 interessa, na maior parte dos casos, é
Uma reflexão que reputo que a trama literária possa iluminar as
importante e em relação à qual o sensibilidades próprias da época

40
estudada, entendendo, por tal, o
sentimento de pertencimento a um
momento cultural dado, seus valores ou
visões de mundo, seus hábitos cotidianos
etc. É o caso dos usos da literatura por
parte do historiador cultural, com sua
consciência de que não há verdades
definitivas em história, de que as
verdades são sempre provisórias, embora
devam ser verossímeis e convincentes.
Afinal, sua preocupação maior é tentar
traduzir, para o seu próprio presente, o
vivido passado, suas sensibilidades,
sendo a literatura um ótimo portal para
este trabalho de tradução.

41
MAQUIAVEL: A POLÍTICA COMO Maquiavel a quem foi dada a
HISTÓRIA “paternidade” da política moderna. Este
João Marcos Leitão Santos1 trabalho quer chamar a atenção para 1
Doutor em
Maquiavel a ser visto em uma faceta, História Social/USP.
Professor Adjunto II da
menos referida, e outras vezes referida Universidade Federal de
desabonadoramente: Maquiavel o Campina Grande/PB.
Resumo
historiador. Professor nos cursos de
Não raro um pensador se destaca por Graduação e Pós-
Não propomos este
uma proposição, por uma tese, e fica Graduação em História
reconhecimento por acaso, mas da Mesma
assim associado definitivamente àquela
assumindo como pressuposto a ser Universidade.
enunciação. Não foi diferente com Nicolau tmejph@bol.com.br
demonstrado, que a teoria política à qual
Maquiavel a quem foi dada a
se ligou Maquiavel se erige a partir da
“paternidade” da política moderna. Este
história. Ou seja, a história está na base
trabalho quer chamar a atenção para
do fundamento da teoria política: o
Maquiavel a ser visto em uma faceta,
pensamento maquiaveliano conforme
menos referida, e tantas vezes, se
sugerido geralmente é dependente da
referida, com uma compreensão
concepção e da construção que Maquiavel
desabonadora: Maquiavel o Historiador.
desenvolveu da história.
As dimensões deste ensaio não
Palavras-Chaves
nos permitem expor o pensamento
Maquiavel, História, Política
político de Maquiavel, de resto,
sobejando na literatura mais ou menos
especializada. Também não nos é
Abstract
facultada a possibilidade de visitar as
Often a thinker stands for a proposition, a
diversas concepções de história
thesis, and thus is definitely associated to
construidas no século XX, sobretudo.
that statement. It was no different with
Assim, é importante que
Niccolo Machiavelli who was given the
coloquemos pelo menos como
"fatherhood" of modern politics. This
perspectiva operativa com a qual
paper wants to draw attention to
trabalhamos o pensamento político de
Machiavelli to be seen in a facet, least
Maquiavel, enquanto “teoria política” e a
said, and many times, if that, with an
compreensão da história a partir da qual
understanding unflattering: Machiavelli's
lemos o trabalho maquiaveliano, com
The Historian.
ênfase para os Comentários sobre a
Primeira Década de Tito Lívio.
Key-words
Finalmente, advirta-se o leitor que este
Maquiavel, History, Policy
exercício foi construído em diálogo com
uma provocação do professor Nelson
Não há caráter histórico inerente aos fatos,
Saldanha, em 1993, num artigo que
histórica é a forma de conhece-los. chamou: como construir uma teoria
A história não é uma ciência, política.
ela é somente um processo de conhecimento. Partimos de uma concepção
Seignobos blocheana que a história tem por objeto o
homem no tempo e por isto o passado
não é apenas o lócus da experiência
humana que se quer resgatar, mas uma
Introdução remissão inevitável para a intervenção no
Não raro um pensador se destaca presente, no cotidiano conhecido-vivido,
por uma proposição, por uma tese, e fica segundo a conhecida expressão de José
assim associado definitivamente àquela Honório Rodrigues que a história não é
enunciação. Não foi diferente com Nicolau dos mortos mais dos vivos. A própria
42
dinâmica que caracteriza as formações Finalmente o referente dialogal de
sociais torna os conceitos ab-stratos à Saldanha para a construção de uma
materialidade de uma realidade objetiva teoria política, ofereceu as matrizes de
que condiciona a cognoscibilidade dos um empreendimento deste perfil,
sujeitos, reflexos de seu tempo/momento partindo da afirmação que “[...] sempre
presente ao qual se ligam novos há necessidade de simetria e
conteúdos de verdades particulares e proporção[...] verificação dos materiais e
coletivas, que gera a faculdade de o sentido dos níveis[...] funcionalidade e
intervenção social, condicionado por este de um mínimo de estética[...]”
conhecimento conquistado. A história (SALDANHA, 1993, p. 71); o que lhe
torna-se dessa forma o conhecimento permite concluir “na construção de uma
relativo da verdade e possibilidade de teoria política se engloba (ou se
intervenção social. pressupõe) uma teoria da história e com
ela uma teoria do homem – daí seu
História fundamento da política fascínio, sua complexidade, sua
Diria Bobbio, que a teoria política precariedade” (Id.p. 71)(grifo nosso).
constitui-se na reflexão “[...] sobre a Neste ponto é possível enunciar
justificação ou legitimação do poder nossa tese: Maquiavel construiu um
[...]”,(BOBBIO, 2000, p. 70) via pela qual modelo de teoria política, somente
se aproxima mais da ciência do que da possível em função da recepção que fez
filosofia políticas, uma vez que a filosofia da história. A história estava colocada a
política remete as “causas finais” do serviço de uma proposta teórica, para a
poder e sua legitimidade. Em sua qual buscou sentido e funcionalidade,
ardorosa defesa da filosofia política como somente possível porque se ancorava
distinta da ciência política afirma mesmo numa antropologia e numa concepção
autor, tomando o hegelianismo como teleológica da realidade.
exemplo, que é difícil separar na Filosofia
do Direito de Hegel “o problema da A TEORIA POLITICA DE MAQUIAVEL
representação histórica e o problema da Como anunciamos não vamos nos
legitimação ideal do estado [...]” (Id. p. deter numa análise da política
70) e conclui: maquiaveliana. Em 1963 Isaiah Berlin
afirmava que já eram mais de três mil os
[...] não se pode pensar em uma estudos sobre Maquiavel, portanto, não
análise do conceito e política que não vamos inflacionar a investigação.
considere os dados recolhidos e os Todavia, importa saber, uma vez que
fenômenos examinados pela pesquisa
Maquiavel foi “pai da política moderna”, o
factual. Não há hoje análise científica
que propunha como “projeto político”?
dos fenômenos políticos que não
comece propondo uma teoria geral É pacifico que Maquiavel se situa
do poder. [...] Todavia, mais do que na teoria política já que se propôs a
filosofia, neste caso seria melhor falar pensar o que se considera objeto da
de uma “teoria geral da política [...] política: o poder. Como outros, mas à sua
Dessa forma a história não era maneira, Maquiavel visitou os temas
totalmente excluída, mas estava clássicos: a posse, a legitimidade, e o
colocada a serviço de uma proposta
exercício do poder, naturalmente, e foi
teórica (id. p 71, 94)(grifo nosso).
inevitável que propusesse a temática do
governante e do governado, do povo, do
Embora ainda voltaremos a
príncipe, e o Estado, como ícones sob os
referência dos sentidos de teoria política,
quais converge o conjunto de temas que
este é o paradigma do qual nos
desenvolve.
apropriamos, o inseparável binômio
Diplomata e funcionário público
conceito-dados recolhidos, que darão
de carreira em desgraça, não vamos
conta de uma concepção do poder.
43
imaginar que daria a suas reflexões nome Aqui outra questão é importante,
do que hodiernamente chamamos Teoria a que nos permite entender a acusação
Política. Há em Maquiavel um feita a Maquiavel (mais citado do que
pragmatismo inescapável, já que lido), que imitava Cícero com uma teoria
supunha que sua terra mergulhada no histórica Mater Vitae. É de conhecimento
caos político, fatalmente seria destruída. geral a difusão da literatura à qual se
Inclusive como mecanismo de chamou “espelho do príncipe”. Voltaire a
convencimento, não poderia nosso autor fez escrevendo História de Carlos XII,
recorrer a “invencionices”, embora se sem que sobre ele se operasse o repúdio
saiba como e onde inovou. com que se trata Maquiavel.
Ao afirmar que não “inventou”, Na construção da teoria política
mas apresentou modelos exemplares que os materiais se
deram certo, não queremos dizer que [...] arrumam” em determinados
Maquiavel agiu de forma “funcionalista”, planos, que se suportam e se apóiam
usando uma história colocada a serviço, ou se desencontram, convergem ou
separam-se, justapõe-se ou
como no engano de Bobbio. Porém, fez
interagem
dela fundamento da sua leitura
[...] o material conceitual é uma
compreensiva da realidade. Ou seja, em espécie de equipagem, que se articula
Maquiavel a história tem dois em forma de referências e se sustenta
componentes inalienáveis, um afinal sobre “convicções”
epistemológico e outro cognitivo. [...] e como a ressonância de certos
Deste ponto de vista cognitivo, conceitos (ou suas “conotações”) têm
Maquiavel aponta como inimigo que ver com sua procedência ou sua
relação com âmbitos culturais, há que
fundamental do exercício do poder a
ver-se se a teoria política que se
ignorância, trazida pela religião, quando
constrói se destina ao “mundo”
se refere a “[...] fraqueza que a moderna inteiro, visando valer para orientes e
religião fez mergulhar o mundo... na ocidentes, ou se volta para
ignorância” (MAQUIAVEL, 2000, p. 18) determinado contexto, nação ou
que no seu caso associa ás práticas da classe. (MAQUIAVEL, 2000, p. 72, 73)
Cúria Romana de sua época. Isso importa
para corrigir um erro mais ou menos A tese de Maquiavel é que havia
universalizado que Maquiavel era formas de governar que eram mais
contrário a Religião. Nunca o foi e a ela eficientes, diversas formas em diversos
atribuía uma função estratégica no contextos. O ignorante estava menos
controle social, o que não tolerava era as apto ao exercício do poder do que “... os
práticas do catolicismo do seu tempo homens que tendo conhecimento mais
(MAQUIAVEL, 2000, p. 55), chegando genuíno do mundo” (MAQUIAVEL, 2000,
mesmo a afirmar que entre “todos os p. 394) aqueles que se apropriaram,
mortais que mereceram elogios... [estão] como o próprio Maquiavel, de “...tudo
os fundadores das religiões[...] das que me ensinaram uma longa experiência
repúblicas[...], os letrados[...]” e o estudo contínuo das coisas do
(MAQUIAVEL, 2000, p. 53) mundo” (MAQUIAVEL, 2000, p. 13) e
A questão fundamental era que o neste esforço, conclui, “não encontrei...
príncipe tinha deveres, e estes deveres coisa alguma que eu mais prezasse...
exigiam conhecimento, que por sua vez quanto as ações dos grandes homens[...]
estava na história, outra vez, mais (MAQUIAVEL, 2000, p. 17).
pragmatismo do que, por exemplo, em Do ponto de vista de Maquiavel a
relação a filosofia com a qual não se teoria política que explica e expõe a
podia exercer o poder. Afirma: “Um prática do poder deriva do conhecimento
príncipe não pode faltar as razões dele da história, inevitavelmente, da
esperadas (MAQUIAVEL, 2000, p. 232). experiência, que ele mesmo testemunha

44
e do exemplo que outros eventos e instrumental que reuniu foi a história, de
personagens podem sugerir. Obviamente, Roma principalmente. No modelo
alguém pode fazer uma inferência com a proposto por Saldanha, afirma o autor:
tese ciceroneana, mas não se considere Passemos ao material histórico, cuja
uma visão precisa. Estes elementos são importância não se precisa enfatizar.
absolutamente pertinentes com a Sem ele não se pode elaborar uma
teoria política. ”a história” é um
construção de “uma moldura apreciável
conceito vago que ganha sentido (e
de referência” como nos diz Gunnel imagem) se se pensa nas partes que
(1981), onde o poder pode ser exercido a constituam: partes, fases,
com ou sem eficiência como é passível de “contextos”. E naquelas linhas se
constatação. situa (porque a história é feita de
A exemplo do dissemos acima. espaços, onde as coisas se situam) a
Bigo e Ávila também afirmam que: problemática do antigo. 74
Um sistema é uma determinada O antigo seria o antecedente
organização da sociedade como primeiro [...] A ele se atribui sentido
expressão de uma antropologia, de de base, ponto de partida e
uma filosofia sócio-política e, de modo paradigma, confirmado e negado
mais abrangente, de uma pelas modernidades que se lhe
cosmovisão. seguem. (74, 75)2 (grifo nosso)
Um modelo, é uma determinada (grifo do autor).
organização dos diversos elementos
de um conjunto, dos sub-sistemas de
um sistema, em vista de um Neste sentido nos referimos a
desempenho pré-definido. questão paradigmática. Afirma 2
O conceito de sistema contém uma Este assunto
Maquiavel:
conotação inevitavelmente doutrinal, pode ser objeto de
É necessário imitar os reflexão, inclusive a
modelo tem um significado mais
governantes sábios... partir da diferença
operacional (BIGO & ÁVILA, 1986, p.
perspectivas: a
296). moderna (e sobretudo
Deve o príncipe ler a história dos contemporânea), ligada
É nesse sentido a proposição de vários países... considerar os às ciências
grande homens[...] imitar[...] relativizantes –
Gunnel que a teoria política que destina- sociologia, antropologia,
se a construir um padrão sistemático deixando então de lado as coisas psicologia – e, a antiga,
sobre o comportamento político e a que se imaginam sobre um presa a uma visão mais
príncipe e discorrendo sobre ética, mais formal, mais
operação das instituições marcou a crise
hierática dos fatos.
da teoria política do século XIX, que na coisas verdadeiras[...] O estudo
(SALDANHA, 1983, p.
esteira do positivismo e do behaviorismo. da história ensinará também 75)
Respeitamos os limites da periodização como fundar um bom governo
desta discussão, não exigimos a
Maquiavel uma Teoria dos Sistemas, pois Se os cidadãos... [e] príncipes
as vezes se tende a esquecer que aprendessem as lições da
Maquiavel escrevia história com os história[...]
instrumentos – renovados – do fim da Se a história desses monstros [os
idade média, sendo ele mesmo uma tiranos] fosse bem estudada
inovador no usos de fontes (FONTANA, servira de ensinamento aos
1998). príncipes... [para] apoiar-se no
O que afirmamos é que exemplo da antiguidade[...]
Maquiavel, dotado de um referente (MAQUIAVEL, 2000, p. 17, 53,
antropológico1 e de uma filosofia sócio- 55)(grifo nosso)
política, nos limites do século XVI, que
propunha mecanismos operativos para Esta epistemologia, não é
agentes e instituições da ordem política, rigorosa, senão por analogia a de Thomas
e que seu principal parâmetro neste Kuhn das “conquistas científicas
45
universalmente reconhecidas, que por forma o assunto se trata por si
certo período fornecem um modelo de mesmo.
problemas e soluções aceitáveis aos que Não tenho a pretensão de decidir
praticam em certo campo do se ele estava certo ou
conhecimento” (KUHN, 1992, p. 81), equivocado(MAQUIAVEL, 2000, p.
mais com a prudência necessária na 80.129, 166)
conquistas “científicas” do século XVI, a
historiografia contida no método de E porque eu sei que muitos já
Maquiavel, eram soluções aceitáveis, escreveram sobre isto, duvido
para os problemas do seu contexto. que, escrevendo também eu, não
Mesmo com a advertência de Feyerabend me considerem presunçoso,
que “a história em geral, e a história das afastando-me, principalmente, ao
revoluções em particular são sempre discutir este assunto das opiniões
mais ricas em conteúdos, mais variadas, alheias (MAQUIAVEL, 2006, p.
mais multilaterais[...]” (FEYERABEND, 92)
2007, p. 26) que está além do modelo
convencionado de fazer ciência. Portanto está caracterizado um
Das declarações de Maquiavel conhecimento que é ao mesmo tempo
pode-se inferir o caráter que ele atribuía instrumental (p. 18, 42, 54),
ao conhecimento: exemplaridade (p. 80, 129), não-
Tudo que me ensinaram uma dogmático (p. 166), que gera mais
longa experiência e o estudo importância a uma teoria da ação do que
contínuo das coisas do mundo[...] ao singular da realidade (p. 59), porque a
teoria política possui um fundamento
Não encontrei... coisa alguma que empírico. (2006, p. 92)
eu mais prezasse... quanto as Dos já conhecidos debates do
ações dos grandes homens... século passado onde se cogitou o fim da
para apoiar minha opinião. teoria política em favor de uma ciência
política, uma vez que a filosofia política
Se a história desses monstros também era uma investigação
fosse bem estudada servira de heterogênea e instável, oscilantes entre o
ensinamento aos príncipes[...] empirismo da visita ao passado e optimo
[... ]fraqueza que a moderna statu do saudosismo dos platônicos,
religião fez mergulhar o mundo... Maquiavel está isento. Segundo Jasmim,
mais na ignorância (MAQUIAVEL, os debates precedentes desde o século
2000, p. 13, 17, 18, 42, 54) XVI trouxeram a racionalidade para o
pensamento político, seja pela
Baseando-me em exemplo... que normatividade ou pelo empirismo, e
este exemplo ilumine todos os justificavam
soberanos. a ênfase ora nos princípios
...propondo os remédios já racionais, ora na história, como
utilizados pelos antigos [...] caminhos mais adequados à
Há disso numerosos exemplos concepção da ordem social.
[apoio popular à covardia] Ao mesmo tempo, é patrimônio
E embora de tudo isso não se comum [...] a suposição de que
possa formar determinado juízo, falam do mundo como ele é [...]
se não se examinarem as recorrem a historiografia
particularidades dos Estados, dos apropriando-se delas por várias
quais se teria que tirar alguma vias, mas que destas diversas
ilação, mesmo assim direi de que apropriações resulta que cada
uma dessa operações requer um
46
significado específico que ponto de vista privilegiado,
chamamos história. Ora a história terminaram por esquecer o sentido de
é tomada por ontologia, ora como contingência histórica.

representação da Ontologia. Insisto em opor uma obstinada


(JASMIM, 1998, p. 10, 11) (grifos resistência a toda forma de
do autor) Methodenstreit (disputa de métodos)
conduzida até a exclusão recíproca
O método analítico e o histórico não
Para o nosso objeto imediato de
são incompatíveis. Ao contrário,
interesse dessa remissão ao autor
integram-se mutuamente. Todas as
importa constatar que a relação teoria épocas têm duas faces. A observação
3
Os críticos da
política e história está posta há muito Teoria Política que
de uma ou de outra depende da
defendiam sua extinção
tempo (sendo uma das causas da sua posição em que nos colocamos (é raro
em favor da Ciência
crise mencionada)3, e que, em nosso que consigamos encontrar uma Política, afirmavam que
caso, nos propomos a dar um passo postura na qual podemos ver as duas aquela não tinha
ao mesmo tempo). Nasce aí a objeto, ou se quiser,
além, que o caráter desta relação se
extraordinária ambigüidade da tinha como objeto a
caracteriza pela dependência da teoria história do pensamento
história humana (que corresponde a
política da história, tomando Maquiavel político, por isso mesmo
ambigüidade da natureza humana),
como demonstração. se a História e Teoria
na qual o bem e o mal se contra- realizavam o mesmo
Quando insistia no caráter dual da põem, se misturam e se confundem. empreendimento ela
teoria das formas de governo, prescritiva (BOBBIO, 2003, p. 72, 181) era prescindível.
e descritiva, dizia mais Bobbio: Ampliado o argumento
para a filosofia política,
Em sua função descritiva o estudo das Que dizer então do depoimento
encontrou em Bobbio
formas de governo se restringe a uma de Bobbio? A começar pelo final, realçar a ardente defensor a
tipologia ou em uma classificação dos extrema semelhança entre sua assertiva distinção da filosofia e
diversos tipos de constituição política da ciência política.
sobre a natureza humana e Maquiavel,
que de fato, quer dizer, na
que os homens são maus e fazem o bem
experiência histórica e mais
precisamente, na experiência histórica por necessidade.
conhecida e analisada pelo autor, que É evidente que Bobbio está
apresenta ao observador. referindo-se a história do pensamento
[...] derivam dos dados recolhidos da político e não a teoria política, mas o que
observação histórica, e refletem a há de relevante é: “o subsidio que pode
variedade de formas em que se oferecer aos teóricos”; a inevitabilidade
organizaram as cidades gregas da
de “observar os escritores do passado” e
idade homérica em diante. (BOBBIO,
que o tratamento analítico do fenômeno
1987, p. 9) (grifo nosso).
político “integram-se mutuamente”. Ver o
Para retornar ao argumento em outro passado de onde estamos é inevitável, e
ponto: é onde nasce a “extraordinária
Também posso admitir que há textos ambigüidade da história humana”, à qual
que se prestam mais e outros menos Maquiavel referiu afirmando: “deixando
à metodologia analítica, como já se então de lado as coisas que se imaginam
disse sobre os livros de história, e que sobre um príncipe e discorrendo sobre 4
Está citando M.
nem todos são iguais no subsídio que coisas verdadeiras” (MAQUIAVEL, 2006, Virolli, 1987
pode oferecer aos teóricos. p. 93) e que “[...] O estudo da história
Mas, em relação aos historiadores
ensinará também como fundar um bom
analíticos das idéias, não me inclino a
governo” (MAQUIAVEL, 2000, p. 55) que
acusá-los de que “seus esforços
orientados para uma história contínua em pouco difere do vaticínio de Skinner:
representam tentativas infrutíferas de entendo que a vida política coloca os
misturar as questões filosóficas com principais problemas para o teórico da
os problemas sociais, políticos e política
religiosos”,4 e a considerar um erro o meu terceiro interesse consiste em
fato de que quando observar os ilustrar o modo de proceder ao estudo
escritores do passado a partir de um e interpretações dos textos teóricos
47
para compreender o significado sofreu...”
tendo por objetivo construir um (VEREKER, 1967, p. 11), mas que não se
quadro geral no qual se possam situar escapa no pensamento antigo de uma
os textos dos teóricos mais
concepção da teoria política como a
importantes da política
se temos em mira compreender
investigação sobre a ordenação justa das
sociedades anteriores à nossa, relações sociais, e à direção geral, ao
precisaremos recuperar suas controle e a ordenação das variadas entre
mentalités de dentro e de forma mais os membros de uma comunidade.
empática possível Quando Durveger afirmava que a
E está evidente que enquanto os dificuldade de construir uma
historiadores da teoria política sistematização da política está no fato de
continuarem a pensar sua tarefa em
que os problemas muitas vezes são
termos basicamente de interpretação
irredutíveis aos seus contemporâneos,
de um cânone de obras clássicas, não
deixará de ser difícil estabelecer que “não conseguem se situar num
vínculos mais próximos entre as conjunto” – é a expressão do autor
teoria políticas e a vida política. (DUVERGER, 1974, p. 8), parece acordar
(SKINNER, 1996, p. 10, 11). com a sugestão de Greaves, que “a teoria
política é pragmática: por mais universais
Na apresentação do seu livro, ou eternos que sejam os termos em que
Friedrich afirma que “tudo que aqui está é vazada, ela, de fato, é colorida, e
não pretende ser nada mais do que os provavelmente criada pelos problemas
títulos indicam: uma introdução para enfrentados pela geração que os postula”
principiantes no vasto campo da Teoria (GREAVES, 1969, p. 9) (grifo nosso).
Política”, e distingue a teoria da história Pelos textos que aqui referimos
do pensamento com esta afirmação nesta digressão, Maquiavel não era um
conclusiva: “a sua disposição no livro “historiador de ofício” quando muito, um
mostra claramente que não existe a “analista político”, um “comentarista”
pretensão de serem uma incursão na (comenta Tito Lívio), em compensação,
história do pensamento político”, completamente entregue aos problemas
(FRIEDRICH, 1970, p. 7) donde é enfrentados pela geração que os viveu. E
possível inferir a distinção da história do desta perspectiva, oferecia como
pensamento e de uma teoria política, “resposta” uma Teoria Política, e como
mas não sua indissociabilidade. Weber afirmara , a ciência não tem
Segundo Runciman, citando Weil: sentido porque não dá resposta a nossa
Há, porém, uma distinção tríplice pergunta, a única pergunta importante
possível entre ciência política, teoria para nós: o que devemos fazer e como
política e filosofia política [...] A
devemos viver Maquiavel, com uma
Teoria Política, no sentido de Weil, é
teoria política dá, e para ele, através da
prescritiva, mas também
explanatória: supõe certos fins história.
políticos básicos e mostra ao estadista A política é o esforço em
como alcança-los, mas também se responder porque preferimos esta e não
empenha em identificar “lês forces outra forma de organizar nossa vida em
profondes dês événements de sur sociedade. Que outra? As circundantes.
face, lê factures décisifs dês As do passado. Respondendo a isso as
eépiphenomenmènes” (RUNCIMAN,
sociedades, escolhem fins, métodos, e
1966, p. 11).
mecanismos. E se assim entendemos a
política, a teoria política é uma tentativa
Semelhante trilha é apontada por
de nos dizer a maneira de responder ou
Vereker afirmando que “os termos
esgotar-se e cessar a organização social.
política e teoria são ambos palavras
Sem entrar no mérito – porque
gregas tão próximas do original que é
não é objetivo deste trabalho – do
preciso um grande esforço de imaginação
48
conteúdo das teses políticas necessidade de ultrapassar as exigências
maquiavelianas, sua teoria política era éticas da virtude tradicional [...]”
exatamente o que dela se espera: a (JASMIN, op. cit. p. 19). A história era a
sugestão de como conduzir uma solução, negação da eficácia do modelo
referindo a uma natureza para os convencionado. Caminhamos, então, de
procedimentos, e o que conservar ao uma teoria política precedente para as
considerar estas coisas. A natureza da ações políticas: o fim e a condução do
Teoria Política é o fundamento das Estado e do Poder. Sem ação política a
sociedades. Por isso é dinâmica, plural, teoria política é indemonstrável, mas sem
como queria Bobbio, e transdisciplinar a teoria a ação política não vai além da
para usar parâmetros lingüísticos “história penosa” das relações humanas,
hodiernos. Portanto, o eixo sobre o qual se
É por isso que se impõe a erige o sistema político maquiaveliano
exigência de mapear os pressupostos da está no conhecimento, e este derivado da
própria teoria e até onde possível, história. Com esta citação de Saldanha,
estabelecer as conseqüências da sua passamos a tratar das relações de
adoção. Esta re-leitura pode conduzir a Maquiavel com a História.
ênfase sob dimensões específicas da vida Interpretações: do mesmo modo que
política de uma sociedade, às vezes um conjunto de fatos se torna
menos frisados nos períodos precedentes, inteligível em função de uma idéia
unificadora que remete as partes a
ou nas palavras do próprio Maquiavel:
uma perspectiva maior, assim os
“como o curso do tempo altera
dados e os elementos de uma teoria
necessariamente aquela virtude, todos os se organizam segundo um
seres sucumbem se algo não lhes faz pensamento mais ou menos central
voltar ao seu princípio” (MAQUIAVEL, que corresponde a um
2000, p. 301) uma vez que as “[...] “entendimento” e, portanto, a uma
desordens se renovam em todas as interpretação. Cada uma das grandes
épocas” (MAQUIAVEL, 2000, p.129). O teorias (ou dos grandes “sistemas”)
historicamente dadas são montagens
tempo, a virtude, a mudança, o regresso,
interpretativas organizadas dessa
a anomia, interessa a teoria política como
forma [...] 76
fim social. O problema consiste aí, como em
Na tese de Duverger a política se outras áreas, em uma busca de
interessa pelo conflito, e Greaves lembra constantes. Mas também é uma busca
que do estudo da política se esperam de diferenças, pois a compreensão
propostas de solução, mais precisamente, histórica das coisas sempre comporta
as vantagens de uma solução sobre um jogo de semelhanças e diferenças.
(SALDANHA, 1993, p. 76, 77)
outra. À antipática, para alguns
contemporâneos, idéia de sentido
voltaremos ao investigar a história, mas
1. O PROBLEMA DA HISTÓRIA
neste ponto afirmamos que é o sentido
Em obra celebrada Falcon afirma
que se estabelece que determina o 5
A este respeito
que história e poder são como irmãos
essencial, o processo, a reflexão e a ação não deixa de ser
siameses5, e que a maneira de ver esta expressivo o título do
política. Tese maquaiveliana plena,
relação é “detectar e analisar as muitas terceiro capítulo de
sugerida como solução para a Stephen Bann: A
formas que revelam a presença do poder
desagregação social a legitimação dos história e suas irmãs:
na própria história [...]” indagar acerca direito, medicina e
fins da polis.
dos “inúmeros mecanismos e artimanhas teologia.
Para Jasmim, ao interpelar a
através dos quais o poder se manifesta
racionalidade predominante e o senso
na produção do conhecimento histórico”
comum do seu tempo, Maquiavel teve
(FALCON, 1990, p. 61), ao que parece
como arma principal “o recurso a
sua sugestão foi precedida em cinco
evidência histórica como comprovação da
49
séculos pela prática historiográfica de Efetivamente, ao referir-se com
Maquiavel.6 elogios tantas vezes a república do
6
Quando LeGoff colocou os império romano, não deixa de reconhecer Do ponto de
vista teórico-formal,
problemas da construção do conceito de que foi um “conjunto de circunstâncias
Maquiavel adota como
história, indicou seis, e na última que o levaram a perfeição” (MAQUIAVEL, fontes os cássicos,
menciona a substituição da história como 2000, p. 24), e acrescenta: “não se deve notadamente Tito Livio.
E como método adota a
história do homem, substituída pela culpar Atenas ou louvar Roma, mas
comparação e a
história dos homens em sociedade simplesmente reconhecer a situação a analogia como se
(LeGOFF, 1994, p. 127ss) Os homens em que as conduziram acontecimentos depreende, por
sociedade é ainda o objeto da política: diferentes” (MAQUIAVEL, 2000, p.97). exemplo, das
afirmações relação
sua organização e suas relações de Não se pode inferir que ao entre os fatos antigos e
poder. É sobre esta realidade social que remeter o homem ao conhecimento das contemporâneos c18 e
Ortega y Gasset afirmou ser a história o experiências gassetianas do passado, 150 /se
considerássemos os
sistema das experiências humanas. seja sinônimo de uma história Mater
seus motivos...
A história de Maquiavel é aquela Vitae. Maquiavel não via constrangimento examinando os
que se contrapõe ao destino, ao qual se em tomar o passado como paradigma resultados c 33.
referia como [...] maldade do destino ético para minimizar o erro, pois “deve o
(MAQUIAVEL, 2006, p. 46), e não se príncipe ler a história dos vários países...
deixar “[...]girar ao sabor dos ventos e considerar os grande homens... imitar”
do destino ((MAQUIAVEL, 2006, p. 107), (MAQUIAVEL, 2006, p. 90), nem ignorou
porque a história em Maquiavel é produto a necessidade do pragmatismo político,
da construção humana, uma vez que as reafirmando ser inevitável “deixando
relações humanas são uma realidade então de lado as coisas que se imaginam
inconclusa, e neste ambiente humano sobre um príncipe e discorrendo sobre
[...] jamais se encontrará nada que seja coisas verdadeiras” (MAQUIAVEL, 2006,
perfeitamente puro” (MAQUIAVEL, 2000, p. 93), abandonar o romantismo porque
p. 39), nem política, nem história, nem uma exigência se impõe: “o estudo da
religião, etc, senão que tudo está a história [que] ensinará também como
construir, pois entendia que “nada é fundar um bom governo” (MAQUIAVEL,
estável, é natural que as coisa melhorem 2000, p. 54). No dizer de Bann, “os
ou piorem” (MAQUIAVEL, 2000, p. 40). historiadores estão conscientes de que
Ao que isto nos indica, o estudo não existe um único e privilegiado
da história representa o esforço por processo de exprimir a realidade do
discutir as bases sobre as quais se devem passado” (BANN, 1994, p. 61).
assentar “os estados para a compreensão Apartando-se da tese de história
de certas formas de pensamento, Mater Vitae, Maquiavel declara primeiro
revelador eficaz de estados mentais” (Cf. que não vê o histórico como dogmático:
MOTA, 1979), e que são indicadores para “E embora de tudo isso não se possa
a tomada de consciência dos processos formar determinado juízo, se não se
históricos vividos. Propondo uma teoria examinarem as particularidades dos
política com a perspectiva do historiador, Estados, dos quais se teria que tirar
busca-se identificar circunstâncias alguma ilação, mesmo assim direi de que
concretas que produziam as elaborações, forma o assunto se trata por si mesmo”
às quais Mota se referiu, insistindo num (MAQUIAVEL, 2000, p. 123), realça o
processo chamado de tomada de valor da concreticidade, e recusa-se a
consciência; assumindo que tais oferecer fórmulas, quando diz: “Não
ocorrências de formas de pensamento e tenho a pretensão de decidir se ele
de conceitos são indicadores dos estados estava certo ou equivocado (MAQUIAVEL,
sociais, comunitários que não se pode 2000, p. 59) e reconhece na prática
impunemente ignorar. política o caráter empírico: “porque eu sei
que muitos já escreveram sobre isto,
50
duvido que, escrevendo também eu, não legislador não descobre, cria Ele nem
me considerem presunçoso, afastando- governa nem sustenta. Se a estrutura
me, principalmente, ao discutir este da felicidade como Maquiavel a
entende, deve ser mantida, então os
assunto das opiniões alheias”
cidadãos devem fazê-lo, mesmo que
(MAQUIAVEL, 2000, p. 92). seja num mundo tenso e de conflitos.
Como disse, o passado é um (BURNS, 1980, p. 181).
paradigma ético para inibir o erro de
todos somente “se os cidadãos... Mas o que quer Maquiavel afirmar
príncipes aprendessem as lições da quando fala dos mesmos desejos e as
história (MAQUIAVEL, 2000, p. 53). Seria mesmas paixões? Segundo Collingwood
desnecessário o tirano que em regra No final da idade média uma das
caminha para o despotismo, a quem principais tarefas do pensamento
chamou Maquiavel de monstros, “se a europeu era introduzir uma nova
história desses monstros fosse bem orientação nos estudos históricos.
estudada servira de ensinamento aos Quando um escritor como Maquiavel,
nos princípios do século XVI, exprimiu
príncipes” (MAQUIAVEL, 2000, p. 55)
suas idéias acerca da história, sob a
dando-lhe a chance de adotar um
forma de um comentário aos dez
paradigma específico de conduta ao primeiros tomos de Tito Lívio, não
“apoiar-se no exemplo da antiguidade...” retomou a concepção de Tito Lívio em
(MAQUIAVEL, 2000, p. 17). relação à história. O homem, para o
Maquiavel temia que as gerações historiador do renascimento, não era
mais novas, não conhecendo os males a o homem representado pela filosofia
que foram submetidos seus antepassados antiga [...]
A história, deste modo, tornou-se a
pelas ações políticas erradas de príncipe
história das paixões humanas,
e povo, caminhassem na mesma direção.
consideradas como manifestações
Se o bom governo se aprende na história, necessárias da natureza humana.
fugir ao erro também se aprende. “Quem (COLLINGWOOD, 1989, p. 78).
estudar a história[...] verá que os
mesmos desejos e as mesmas paixões A história daria a Maquiavel a
reinaram [...]Por isso é fácil[...] prever o chance de propor uma interpretação da
futuro 129 e completa: não houve um realidade na qual se devia intervir, uma
acontecimento importante que não tenha vez que a história se constrói e o destino
sido previsto” (MAQUIAVEL, 2000, p. é mau. Pela história, pretendia o
175). florentino, influir na história de um povo,
Assim, Maquiavel assume que a e a memória histórica seria sua aliada. É
história tem como vocação dotar de inevitável que as teses maquiavelianas
memória esta nova geração, e por isso sejam resposta ao seu momento
mesmo a história faculta a experiência conjuntural, já nos referimos a como
política como já descrevemos, como Roma e Atenas refletiram as
sugestão procedimentos, ou seja, gerar circunstâncias, e Maquiavel insistia que
utopias, projetar um futuro, e que, se impor as circunstâncias, controlá-las
naquilo que é tão caro a nosso autor, a era possível e desejável.
preservação da liberdade, e mais, o que Embora como tenhamos referido,
conservar ao considerar estas coisas. a idéia de sentido para a história seja
Segundo Burns, “[era] da compreensão hostilizada entre diversas tendências
de Maquiavel de que a lei e a liberdade historiográficas, a argumentação ainda
tem que realizar seu trabalho em um não se mostrou consistente para,
mundo em conflitos” (BURNS, 1980, p. pressupormos uma história sem sentido.
182), e conclui: Acompanhamos Kahler que a história não
Nada há de inerte ou inevitável na se entende apenas como a investigação
vida do Estado livre de Maquiavel. O ou a inquirição do acontecimento, mas a
51
história é o acontecimento mesmo e não conexão com a consciência”. (KHALER,
sua investigação. 1992, p. 21). Seria também importante
Levi-Bruhl, citado por Glénisson, neste contexto considerar Jaguaribe,
afirma que “um fato é histórico quando (1983) e seu conceito de conjunto
possui, conjuntamente, as qualidades de significativo.7 7
Jaguaribe
um fato do passado e de fato portador de Relacionado a isto, sobre o papel sugere que a
organização social se
conseqüências” (GLENISSON, 1986, p. da história disse Burns: “Com isso [o funda sobre uma ordem
127). Para forjar a história, conexões são papel da história] quero dizer que ele tem sistêmica dividida em
necessárias, porque repousa no que contribuir efetivamente para a nossa quatro sub-sistemas.
Neste conjunto, o
acontecimento algum substrato, e é este, experiência humana, tanto quanto essa
político opera sobre os
operando as conexões, que há de prover experiência nos é outorgada demais subsistemas e
de coerência a atividade historiográfica, historicamente através de documentos condiciona o conjunto
coerência que não se dá por si mesma, preservados de épocas passadas. de sua sociedade
(JAGUARIBE, 1983, p.
mas demanda ser submetida a uma razão (BURNS, op. cit, p. 177). A afirmação de 63).
que a compreenda, “é criada como Burns não é de compreensão atípica se
conceito, quer dizer, com significado” lembrarmos que não é factível a
(KHALER, 1992, p. 15) e continua: separação da experiência da atividade
O que me proponho a demonstrar na política, de qualquer espécie de
continuação é que por em evidência o pensamento político. Destacamos o
juízo, como perseguir um significado qualquer para dizer histórico.
da história são exigências de
Ora se a ação contida na
princípios. Não há “história”, não há
experiência política do passado esteve
história sem significado.
[Há homens e eventos] que têm inevitavelmente provida de idéias que a
dedicado a sua vida ao bem comum, justificaram, as idéias retêm para nós
pela constância do seu empenho, pela significados, daí a sua importância para o
subordinação de cada detalhe a uma historiador, nos homens que encaram
idéia dominante ou a um conjunto situações concretas, situações que
congruente de idéias, têm mostrado a constituem o fenômeno histórico dos
vida mesma como um todo coerente,
quais nos apropriamos na expectativa de
como uma idéia que é válida também
que nos informe sobre a condição
para outras vidas, que têm
simbolizado a vida do homem, e se humana. Uma comunidade é uma
têm convertido em signo, e se hão entidade contínua e sua vida é
feito “significativa” transmitida entre as gerações.
O significado, pois, é uma indicação Assim, para além do
de algo que está além da mera irracionalismo contemporâneo, a história
existência [...] (KHALER, 1992, p. 16, que Maquiavel remete à consideração do
17).
príncipe e do povo, é a que se dá em
conexão com a consciência, que possui
Como nos lembra Rabuske, no
uma antropologia e uma filosofia que as
âmbito da ambiência sócio-existencial o
engendra, uma cosmovisão, que lhe
sentido “é aquilo no qual uma vida pode
permite o reconhecimento da situação-
encontrar concretamente uma
realidade. Desta antropologia não estava
justificação incessante e como
alheio Maquiavel e nem se distingue mais
consagração definitiva” e diz mais,
tarde Dilthey estabelecendo que “na
“aquilo relativamente ao qual uma vida
compreensão histórica está em causa um
se perde ou se salva”. Portanto, o sentido
conhecimento pessoal do que significa
é a motivação profunda, que abraça o
sermos humanos”. (PALMER, 1989, p.
homem inteiro (RABUSKE, 1986, p. 63),
123) (grifo nosso).
e Khaler completa: “como uma coerência
Ao interpretar o passado,
significativa requer uma mente
Maquiavel não ignora que a nossa leitura
consciente que a conceba, a história só
é o prolongamento de uma interpretação
pode produzir-se e desenvolver-se em
52
anterior, e a possibilidade de uma podem levar a perfeição”
interpretação posterior. Propondo um (MAQUIAVEL, 2000, p. 24).
sentido, ele indica simultaneamente que Além disso, a perspectiva sobre a
este, no fundo, ainda deve ser qual opera a concepção de tradição não é
descoberto, e o faz a partir das estática, pois nela “cada dia os
categorias interpretativas, que formam acontecimentos obrigavam a promulgar
seu próprio aparelhamento intelectual. novas leis... para operar em favor da
A grande questão a perseguir liberdade” (MAQUIAVEL, 2000, p. 157),
Maquiavel foi seu ponto de partida, novas leis que se fundavam na tradição,
antagônico ao convencionado, como e apenas acomodavam conjunturas novas
vimos com Jasmim. Se temos, então, o conforme a dinâmica do tempo. Assim,
fato de que a mudança de um sistema Maquiavel fixa a relação entre liberdade
explicativo do mundo, implica a mudança como projeto humano fundamental, como
da ordem social que o legitima, sendo as experiência da perfeição, a ser
cosmovisões o elemento fundante da conquistada no olhar sobre a tradição,
manutenção do mundo individual e social sobre a história.
que se colocam em crise, a história ganha Seu fim precípuo era permitir a
ainda maior preeminência.8 “conquista dos homens através dos 8
Jaguaribe
Torna-se, portanto inevitável ...atos admiráveis que a história sugere que a
para ler um “novo sistema”, especificar registra... atos mais friamente admirados organização social se
tanto quanto possível, quais motivações, do que imitados” (MAQUIAVEL, 2000, p. funda sobre uma ordem
sistêmica dividida em
baseadas em que valores se apresentam, 17) mas que se destinavam a preservar a quatro sub-sistemas.
para analisar as tradições dentro de cada vida idealizada para a sociedade Neste conjunto, o
sistema social, e mapear a configuração político opera sobre os
demais subsistemas e
que assume a ação imaginada, e Considerações finais condiciona o conjunto
perguntar ainda, em que medida a Em qualquer história o texto se de sua sociedade
ambiência social completa opera como vincula ao contexto de sua elaboração, (JAGUARIBE, 1983, p.
63).
inibidor ou facilitador de tal ação. guarda-se uma distância limitada do
O último, porém não menos contexto, e as mudanças do contexto
importante para a teoria política de dependem do texto produzido,
Maquiavel e sua derivação histórica, é o respectivamente. Por isso, as idéias de
lugar e função da tradição. A tradição, Maquiavel se afirmam sobre e além do
inclusive a religião, opera na lógica memoraialismo e da exemplaridade.
maquiaveliana sobre o exercício do As idéias políticas a que se
poder, sob a ótica da conservação da entrega uma sociedade vão
ordem, por isso considerava “infeliz, definitivamente influenciar as suas
porém, é a cidade que não tendo um instituições em sua constituição, em seu
legislador sábio, é obrigado a re- desenvolvimento; e segundo Prelot
estabelecer a ordem em seu seio... “constituem um elemento do devir [...]”
porém, a mais infeliz é a que está mais (PRELOT, 1964, p. 75). É claro que ao
afastada da ordem” (MAQUIAVEL, 2000, considerar Maquiavel como dotado de
p. 23) uma percepção histórica que engendrou
Esta tradição, que visava sempre sua teoria política, se considera que na
á estabilidade social, tinha como história não transmite idéias senão
pressuposto que “reformas são sempre através de matrizes ao longo da
perigosas...”, e é aí que a tradição elaboração de uma verdadeira tópica, e
deveria operar como princípio didático, que tal fato acontece mais
sem ênfase no caráter coercitivo sobre as recorrentemente na história política. A
várias gerações, na expectativa que se expectativa de Maquiavel era que a
possa adotar as “[...]. formas que “consciência social” que se incorpora em
nossa consciência individual, pudesse
53
produzir os efeitos naturais de um neutros, os sistemas de idéias colorem os
aumento dos interesses comuns com fatos de “verdades” e sua contra-face, o
homogeneidade psicológica, que erro. E aí as rupturas nem sempre são
Basbaum chamava espírito de época. evidentes porque já estão implícitas
(BASBAUM, 1982) dialeticamente, como adaptações
É igualmente óbvio que Maquiavel inevitáveis, as vezes não reconhecidas.
entedia que a apropriação da história Mas, tão importante como a
poderia – como ele desejava – ou não visibilidade das idéias, concorre, nessa
trazer uma analítica das transformações e importância, o “invisível”, os fatores que
adaptações de sistemas ideológicos e de conduzirão a adoção a adaptação e
poder do seu ambiente, uma vez que freqüentemente a distorção das matrizes
todo sistema de idéias produz verdades adotadas
transitórias, ou o que consideram
verdades, e como os fatos não são

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55
CHARLES DICKENS PARA metrópole onde viveu. Ao construir um 1
Doutor em
HISTORIADORES: UM CAPÍTULO estilo criativo e astucioso que visava História pela UFPB –
Professor Adjunto de
DA HISTÓRIA DO MÉTODO capturar, assim como fazem os fotógrafos
História da UFCG
por trás das câmeras, a luminosidade, as
INDICIÁRIO
sombras e os contornos da vida em uma
José Benjamim Montenegro1 grande cidade, a literatura de Dickens
2
pode auxiliar, de várias formas, os Doutorando em
Joachin Melo Azevedo Neto2 História Cultural pela
historiadores em seu ofício.
UFSC – Bolsista pela
Além do diálogo entre história e CAPES
Resumo: O presente texto tem como
literatura, propomos aqui também
escopo construir uma reflexão sobre a
adentrar no território da
presença de uma determinada técnica de
interculturalidade das artes para cotejar
composição que está presente nas
as relações entre escrita e imagem. Esse
crônicas de jornalismo literário do escritor
diálogo entre diferentes campos das artes
inglês Charles Dickens. Ao diluir as
tem suscitado posicionamentos
fronteiras entre texto e imagem, Dickens
interessantes. Dentro dessa discussão,
elaborou um meticuloso e preciso estilo
um exemplo proveitoso seria o ensaio
de interpretação da vida urbana na
“Regimes representativos da
Londres vitoriana, pautado em uma
modernidade”, de Karl Erik
postura indiciária.
SchØllhammer. No citado texto, o autor
Palavras-Chave: Charles Dickens,
aponta para várias questões pertinentes,
escrita, método indiciário
entre elas o fato de críticos como Wellek
Abstract: This paper has the objective to e Warren, em Theory of literature, na
build a reflection on the presence of a década de 1950, terem refutado as
particular technique of composition that comparações interartísticas alegando que
is present in the chronicles of literary as artes plásticas, literárias e musicais
journalism of the English writer Charles são singulares. SchØllhammer vai de
Dickens. When you blur the boundaries encontro a esse posicionamento teórico e
between text and image, Dickens coloca em pauta a atualidade das
produced a meticulous and precise style discussões que versam sobre os
of interpretation of urban life in Victorian elementos pitorescos e expositivos da
London, based on an evidentiary posture. literatura e os elementos retóricos ou
Keywords: Charles Dickens, writing, narrativos da pintura. 3
Dentro desses
method evidentiary A postura de SchØllhammer se pressupostos, pode-se
aproxima da adotada por Thomas concluir que o mundo
Mitchell, que em 1980, se contrapôs a dos objetos não se
limita apenas ao que é
Sabe-se que as discussões em Deleuze ao postular que os meios de enquadrado pelo
torno do método indiciário já não são comunicação – dentro de uma concepção artista. A representação
ampla do termo – são meios mistos. A está longe de
nenhuma novidade para historiadores ou
comportar apenas em si
estudiosos da literatura em geral. Porém, concepção purista que dissocia texto e
seus próprios
o leque de possibilidades aberto pela imagem é utópica. Falar que as artes significados. A
temática ainda suscita inúmeros possuem significado apenas dentro de representação é uma
seu próprio regime estético já é, por si, centelha de luz lançada
questionamentos e possibilidades de boas pelo artista ou narrador
reflexões. Com base nessa constatação, a uma concepção socialmente em torno da turbulenta
intenção desse texto não é discutir as condicionada. De acordo com o realidade que nos cerca
SchØllhammer (2007, p. 17) “nenhum e a imagem já não pode
representações elaboradas pelo escritor mais ser tratada como
Charles Dickens da Londres vitoriana. O signo artístico se apresenta como
uma mera ilustração da
que está em pauta é colocar em cena a puramente verbal nem como puramente palavra ou o texto como
possibilidade de se pensar em um visual”3. Por essas e outras razões, nosso uma explicação da
presente está propício para a incursão de imagem.
Dickens comprometido com um
determinado método de interpretação da estudiosos da literatura no campo da
56
história da arte. Atualmente, pode-se interpretada por meio de pontes,
constatar uma verdadeira eclosão de aparentemente, anacrônicas e submetida
pesquisas interculturais que diluem as a análises comparativas com outras
fronteiras entre os conceitos de visão e expressões estéticas. Essa postura pode
olhar; discurso e figuração. conduzir o estudioso a uma compreensão
Outra postura metodológica que nada convencional de um escrito literário.
considero interessante é inserir a Estes são apenas dois proveitosos
literatura em contextos documentais mais exemplos de como transitar por uma
vastos. Em Nenhuma ilha é uma ilha: interpretação que busque compreender
quatro visões da literatura inglesa, o as artes em suas multiplicidades mais do
historiador italiano Carlo Ginzburg traçou que nas suas singularidades.
uma genuína discussão sobre a influência A noção de singularidade parece
que pinturas verossímeis, como o Retrato ter sido recebida de forma bastante
de um cartuxo, de Petrus Christus e os distorcida entre alguns historiadores e
escritos satíricos de Luciano de Samósata estudiosos da cultura brasileiros. A ideia
inspiraram os efeitos de realidade usados de que ao contextualizar e interpretar as
por Thomas More na composição da particularidades de seu objeto de estudo
Utopia. Mesmo jogando com inversões de pode levar a uma anulação do que existe
valores aparentemente absurdas, de único nesse objeto é confusa e acaba
presentes na descrição de um reino por pregar uma postura irracionalista
distante no qual a propriedade privada bastante inócua. Nenhum sujeito ou
havia sido abolida, More elaborou um discurso histórico está apartado ou pode
diagnóstico sobre a Inglaterra, de sua ser separado dos contextos mais vastos
época, que pode ter influenciado no que o cercam. Em suma, as linguagens
desfecho das guerras camponesas da ou os sujeitos não podem ser retirados
Alemanha do começo do século XVI. arbitrariamente das condições sociais e
A principal hipótese levantada por culturais que favoreceram seu
Ginzburg consiste na ideia de que, ao desenvolvimento. Prezar por essa diretriz
buscar referências na pintura e em obras é buscar encontrar conexões e dialogismo
filosóficas da Grécia clássica, como a até nos fenômenos artísticos mais
República, de Platão, Thomas More se particulares.
valeu de uma fábula “para tornar mais Sem mais delongas, trazemos para
atraente a verdade que queria transmitir esse debate a escrita do literato que
aos leitores” (GINZBURG, 2004 : 28). motivou essas considerações. Teria
Ainda seguindo o raciocínio desse Charles Dickens algo a dizer para algum
historiador: estudioso da história literária, situado a
mais de um século de distância, que usa
As intenções explícitas – ou quase – a literatura como fonte? Passemos a
de More são claras. Mas tentar palavra para o próprio autor britânico:
compreender o significado do livro
que ele escreveu é questão mais
Talvez daqui a algum tempo, um
complicada. Por que More decidiu
arqueólogo de uma outra geração,
declarar suas próprias intenções de
observando alguns dos registros
maneira tão tortuosa? A ficção
embolorados a respeito das disputas e
brincalhona encenada por More e seus
paixões que agitaram o mundo nessa
amigos era um mero expediente
época, acabe pousando os olhos sobre
literário, ou algo de mais sério?
estas páginas que acabamos de
(GINZBURG, p. 29)
escrever. E mesmo com todo
conhecimento de história e passado,
Dando vazão ao potencial desse não será a erudição em letras de
questionamento e as suas inúmeras fôrma, nem a habilidade em
possibilidades, a literatura pode ser colecionar livros, nem os áridos

57
estudos de uma vida inteira, muitos burguesas e representarem preconceitos
menos os volumes empoeirados pelos de classe, a ficção acaba dando acesso
quais pagou uma fortuna que o aos valores de uma época. O método
ajudarão a se aproximar do Scotland
desenvolvido por Peter Gay para
Yard e de outros pontos que
mencionamos ao descrevê-lo.
interpretar a escrita de Dickens como
(DICKENS, 2003 : 99-100) fonte histórica foi inserir a literatura do
londrino no contexto político e literário de
A crônica “O Scotland Yard”4 foi seu tempo, enfatizando também o autor
publicada, inicialmente, no periódico como ator histórico. 4
Conforme
inglês Morning Chronicle, em começo de O Charles Dickens analisado por adverte Marcello
Rollemberg, tradutor da
outubro de 1836. Dickens estava, até Peter Gay é o da fase madura, com 42
versão em português de
então, com 24 anos de idade e já anos. A principal obra discutida pelo Retratos londrinos, o
apresentava bastante habilidade para historiador é Casa sombria, publicada em nome da crônica é uma
1854. Trata-se de uma narrativa referência a uma
ironizar as torpes vaidades intelectuais de localidade nobre da
seus leitores. Poderia essa postura dramática na qual vários personagens capital britânica. A
praticamente profética, alicerçada na morrem de formas trágicas e inusitadas. famosa polícia inglesa
Por exemplo, o personagem Krook, que leva o mesmo
consciência de que sua escrita possuía
nome ficou assim
uma aura de testemunho histórico, estar proprietário grosseiro e mesquinho de
conhecida porque sua
embasada apenas em uma mera uma loja empoeirada de sucata, morre primeira sede estava
estratégia retórica? Concordar com essa em decorrência de uma combustão localizada nesta área da
espontânea. Ao rebater as críticas que cidade.
interrogação seria empobrecer a
discussão antes mesmo de começá-la. recebeu, Dickens alegou ter investigado o
O jovem Dickens acreditava assunto e listado mais de trinta casos
piamente que seus textos sobre o dia-a- desse fenômeno que efetivamente
dia na Londres vitoriana iriam despertar o aconteceram. Recorrendo a uma situação
interesse de estudiosos do passado. Sua aparentemente absurda, Dickens “queria
literatura captou os ritmos e os matizes que todos soubessem que tinha a
do cotidiano urbano. Um leitor mais realidade firmemente presa as mãos”
impaciente poderia considerar essas (GAY, 2010 : 32).
convicções impróprias para um criador de Confrontando testemunhos,
ficções. Talvez até fossem, porém incursões biográficas e a trama de Casa
existem várias afirmações do literato que sombria, Peter Gay sugere que os
confirmam sua obsessão em relação à personagens do citado romance foram
elaboração de relatos os mais construídos com base em experiências
verossímeis possíveis. vivenciadas ornadas pelo estilo
Em Represálias selvagens: característico do escritor. O Dickens de
realidade e ficção na literatura de Charles Casa sombria foi um ferrenho crítico do 5
Nutrindo
descaso com o qual os órfãos londrinos opiniões reformistas,
Dickens, Gustave Flaubert e Thomas Dickens, além de
Mann, o historiador Peter Gay salienta eram tratados e um carrasco dos escrever um grande
que por mais que funcionários públicos, que costumavam romance, construiu uma
externar publicamente sua indignação em imagem fidedigna das
esses escritores, cada um a seu modo,
tramas políticas e das
tenham representado situações relação às caricaturas que o literato
pessoas que estavam
plausíveis, se valeram da criatividade pintou deles. Nesta obra, em particular, imersas na mediania e
própria das artes. Constatar esse fato Dickens hostilizou tanto as instituições mesquinhez. Com
oficiais britânicas a ponto de ser chamado certeza, o literato
não significa que a literatura deixe de ser estava mais do que
uma grandiosa fonte de conhecimento de de anarquista zangado pelo parlamentar atento para a fauna
costumes situados em uma determinada George Ford.5 social que compunha a
Ainda segundo Peter Gay (op. cit. : vida urbana na Londres
temporalidade. Para Peter Gay, não é que
da metade do século
os escritores imprimiram no papel a 50), “Dickens raramente revelava as
XIX.
realidade, mas ao criarem personagens fontes de seus personagens na vida real”.
maliciosos, ridicularizarem as pretensões A hipótese que sustentamos é que a
58
leitura do jornalismo literário do escritor, manchas de gordura nos bolsos e na
exercido no início de sua carreira altura do pescoço, que nem toda a
enquanto homem de letras, é a principal habilidade do vendedor havia
conseguido remover com sucesso.
chave para se compreender as
Eram pessoas dignas, mas longe de
implicações cognitivas do realismo do serem abastadas. Senão, ele não teria
autor de As aventuras de Oliver Twist. de aumentar tanto a roupa á medida
Teria Dickens, jovem jornalista ou que crescia, tendo de completar o
romancista maduro, um método que paletó com pedaços de veludo. De
embasava a sua arte? Na crônica qualquer forma, ele aprendeu a
“Reflexões em Monmouth Street”, datada escrever – e com tinta preta, se é que
de setembro de 1836, ao descrever os o lugar no qual ele costumava limpar
a caneta pode servir de evidência.
aspectos de uma das ruas mais populares
(DICKENS, op. cit. : 105)
para a compra de roupas usadas em
Londres, Dickens afirma ser possível
Em um ensaio publicado no Brasil,
visualizar os antigos donos das
em 1989, na obra Mitos, emblemas,
vestimentas a partir da interpretação das
sinais: morfologia e história, Carlo
marcas de uso presentes nessas vestes.
Ginzburg já havia falado sobre a
Para o escritor, “ajustando um paletó
importância de um modelo de deduções
falecido, depois, um par de calças
baseado em uma postura detetivesca que
moribundo e, logo mais, os restos
estavam norteando suas pesquisas. De
mortais de um vistoso colete” e graças a
modo geral, o historiador italiano explica
uma boa dose de criatividade é possível
como Arthur Conan Doyle, criador do
visualizar , “(...) do próprio corte da
famoso personagem Sherlock Holmes; o
roupa, (...) seu antigo proprietário diante
crítico de arte italiano Giovanni Morelli e
de nossos olhos” (DICKENS, op. cit. :
o psicanalista Freud aperfeiçoaram uma
102).
espécie de conhecimento indiciário,
Vejamos como Dickens aplica esse
guiado pelas interpretações de pistas,
conhecimento indiciário a partir dos sinais
sinais pictóricos e do subconsciente, que
que os usos e o tempo deixaram em um
poderia proporcionar a compreensão de
traje infantil, exposto nas vitrines dessa
experiências que não foram presenciadas
rua repleta de brechós:
diretamente por um pesquisador ou
interlocutor.6
As calças eram presas diretamente no
De forma semelhante ao médico, 6
Assim como o
paletó, o que dava a impressão de
que emite diagnósticos sobre a saúde do conhecimento do
que as pernas do garoto estariam médico, o conhecimento
“enganchadas” logo abaixo de suas paciente a partir da análise dos sintomas histórico é indireto e
axilas. Essa era a roupa do garoto. que este apresenta, o estudioso das conjetural. A literatura
Tinha pertencido a um jovem da Ciências Humanas conseguiria acessar ressignificou o
cidade, dava bem para se ver, já que conhecimento indiciário.
contextos culturais e sociais mais vastos Ao longo do século XX,
havia pequenos detalhes a esse dependendo da forma como interrogasse o privilégio dado ao
respeito tanto nas pernas quanto nos
os discursos, pinturas, escrituras e outros estudo das formas da
braços do traje. A parte dos joelhos linguagem, nas Ciências
estava protegida com pedaços de
sinais que investiga. A proposta de
Humanas, revela que a
estopa, uma característica dos Ginzburg é que o historiador, ao se face semiótica do
garotos que crescem nas ruas de deparar com suas fontes, realize uma conhecimento indiciário
Londres. Evidentemente, ele não deve leitura atenta, voltada para detalhes e – a decifração dos
signos – foi muito bem
ter frequentado muito a escola. Se conexões que passam despercebidas para recepcionada como
tivesse sido um aluno contumaz, não a maioria dos leitores. Trata-se de uma procedimento
o deixariam brincar tanto ajoelhado leitura do tipo nada convencional. metodológico.
no chão a ponto de esfregar as calças
Carlo Ginzburg sugere que o conto
até deixá-las rotas. Ele teve também
uma mãe bem tolerante e desleixada,
Zadig, de Voltaire, está no rol das
como indicavam as inúmeras principais influências de Conan Doyle

59
enquanto um dos fundadores da transmitir ao leitor a sensação de que
literatura policial. Evidentemente, essa este, ao ler as crônicas, estaria
afinidade é mais do que concreta. Porém, segurando um legítimo retrato do
chama a atenção o fato de que nas cartas cotidiano londrino.
e escritos autobiográficos do criador de Em abril de 1835, na crônica “Um
Sherlock Holmes, não existe nenhuma esboço parlamentar”, Dickens se vale
menção ao escritos do iluminista francês mais uma vez do estilo fotográfico para
ou ao citado conto. Talvez, Doyle não inserir seu leitor no universo burlesco dos
fosse muito fadado a mencionar políticos ingleses. As experiências que
frequentemente seus cânones. gestaram um Dickens extremamente
Já no tocante a Dickens temos ácido no que condiz com essa realidade
algumas confissões de Doyle, no mínimo, foram vivenciadas no começo de sua
interessantes. Ao mencionar algumas carreira enquanto jornalista. O escritor
lembranças da infância, o escritor era o correspondente do Parlamento
relembra dos açoites que um professor inglês no periódico Evening Chronicle e a
destinou a ele e alguns colegas da partir das observações que traçou já se
Edinburgh School. Um patife que poderia pode notar a presença do “anarquista
ter saído das páginas de Dickens, zangado”, de Casa sombria. Eis o
segundo o romancista que, naquela fase parlamento vitoriano, sob a lente de
áspera da vida, buscava conforto nas Dickens:
leituras do autor de Tempos difíceis.7
Em uma carta para Charlotte Agora, dê uma olhada a sua volta. O
Drummond, não datada, mas que, corpo principal da Câmara e as
segundo a organização da edição norte- galerias laterais estão repletos de
parlamentares. Alguns apóiam as
americana de A life in letters,
pernas na cadeira da frente. Outros
provavelmente tenha sido escrita em
esticam-nas o mais que podem no
1882, Doyle (2008: 177) admite mais chão enquanto estão sentados. Alguns
explicitamente sua dívida com Dickens. estão indo embora, outros chegando.
Ao fazer muitas referências em relação às Todos conversam, riem, perambulam,
dificuldades financeiras que enfrentou, tossem, impressionam-se, fazem
quando acabou de se graduar em questionamentos ou roncam. Eles
medicina, período no qual respondeu até representam uma reunião de barulho
e confusão que não pode ser
a um anúncio para prestar serviços
encontrada em nenhum outro lugar
veterinários, o criador de Sherlock
no mundo, nem mesmo em uma feira 8
Segue a transcrição
Holmes explica que, nessa época, superlotada ou numa gloriosa rinha do texto original em
almejava construir fotografias literárias de galos. (DICKENS, op. cit. : 190-1) inglês: “My work was a
nas quais cinco ou seis influências sort of debased
composite photograph
disputavam a precisão de seu estilo. Neste sentido, tal qual o fotógrafo, in which five or six
Entre as principais dessas influências Dickens cria uma segunda realidade a different styles were
estava, decidamente, a literatura de partir do real. Uma realidade construída e contending for mastery.
Stevenson was a
Dickens.8 codificada de acordo com suas strong influence; so
O que sugiro aqui é que essa noção impressões. Ao direcionar o foco da was Bret Harte; so was
de fotografia narrativa não é mencionada narrativa sobre o parlamento para um Dickens; so were
casualmente. Esse método de escrita several others… For ten
assunto e dar a impressão de
years I wrote short
baseava-se, sobretudo, na descrição de congelamento de uma cena através da stories; roughly , from
detalhes dos cenários e dos personagens escrita, o escritor realiza uma 1877 to 1887. During
que ocupam esses espaços. As luzes, os that time I do not think
manipulação de detalhes e temas de
that I earned £50 in
sons, as sombras, o clima, a arquitetura, modo a produzir uma verdadeira any year by my pen
os comportamentos, traços psicológicos, imagem. Essas reflexões foram levadas a through I worked
as vestimentas e até o ritmo da cena cabo por Boris Kossoy, em Realidades e incessantly” (DOYLE,
2008, p. 177).
também são evocados pelo autor para ficções na trama fotográfica. Porém,
60
segundo Kossoy, existe uma hierarquia 267) eram eles os próprios responsáveis
nítida entre literatura e fotografia em “(...) por um imenso dano a própria
termos de representação e causa, não importa quão boa ela seja”.
reconfiguração do real, pois Esse posicionamento até certo
“diferentemente da criação literária, a ponto reticente de Dickens converge sim
fotografia pode fornecer „provas‟ de uma para uma ótica de mundo na qual a
realidade que se pretende mostrar” e dimensão catastrófica do imperialismo
adquirir a função de testemunho, sujeito acaba sendo relativizada . George Orwell
a inúmeras finalidades e interpretações, escreveu um famoso ensaio sobre
“ao longo de sua trajetória documental” Dickens publicado em 1940, sob o título
(KOSSOY, 2000 : 76). Inside the whale and other essays. No
A postura que adoto aqui é que citado texto, Orwell rebate as leituras
essa hierarquia deve ser dissipada. Um marxistas que foram realizadas em torno
escritor como Dickens demonstra que as da obra do seu compatriota. Certamente,
fronteiras entre imagem e literatura o texto de Orwell, assim como o de Peter
podem ser habilmente borradas. Também Gay, considera a literatura de Dickens um
é preciso salientar que existem inúmeras artefato carregado de teor subversivo e
formas e conceitos de literatura. A noção não conservador. Porém, Orwell é muito
de testemunho literário e sua imensa categórico ao afirmar que Dickens não foi
riqueza cognitiva já foi explorada por um intelectual “revolucionário” e sim um
estudiosos da cultura de diferentes fino moralista.
orientações teóricas. Basta lembrar a Segundo o autor de 1984, Dickens
magistral obra Cultura e imperialismo, de dotou sua escrita de ressonâncias
Edward Said. Ao buscar pelas intimas autobiográficas e seu universo literário
conexões entre práticas como a partilha da mentalidade da baixa
escravidão, a opressão racial e o burguesia urbana londrina, para a qual o
colonialismo com a poesia, a ficção e a mundo dos poderosos é regido por
filosofia das sociedades europeias, no condutas perversas e a realidade dos
século XIX, Said (1995 : 23) enfatiza o trabalhadores de baixa renda é pitoresca.
quanto a literatura é indispensável como Nesse sentido, Orwell privilegia o Dickens
testemunho porque “a cultura e suas das novelas e preocupado em
formas estéticas derivam da experiência compreender a relação humana com o
histórica”. poder, mas esquece de que o Dickens
Duas crônicas de Dickens, em cronista da vida urbana é igualmente
Retratos londrinos, podem ser lidas como importante.
índices dessa relação entre a literatura e Voltando ao questionamento
o colonialismo. Em “O cura, a velha suscitado no começo desse artigo,
senhora e o capitão reformado”, o buscamos elaborar até aqui um
escritor ironiza o pároco do bairro que mapeamento da presença do
profere discursos em reuniões de conhecimento indiciário na literatura do
sociedades antiescravistas em troca de autor de Retratos londrinos. E no tocante
generosos presentes; já na crônica “O ao campo da historiografia? Quais as
orador de salão”, um acalorado debate reverberações contemporâneas desse
entre um líder abolicionista e um cético é método em termos de escrita da história?
narrado por Dickens. O cerne do texto Recentemente, o filósofo francês Paul
reside em transmitir a ideia, para o leitor, Ricoeur, em A memória, a história, o
de que o comportamento dos esquecimento, realizou um deslocamento
antiescravistas era demagogo. Quando em direção aos debates entre pensadores
esses cavalheiros ingleses resumiam sua antigos, como Platão e Aristóteles, em
atuação política a uma questão de torno do conceito de lembrança,
oratória pública, para Dickens (op. cit. : esquecimento e das patologias
61
provocadas pelo excesso da memória. A e indício vem inscrever-se no círculo
historiografia contemporânea é herdeira da coerência externa que estrutura a
desses dilemas na medida em que a prova documental.
De um lado, com efeito, a noção de
memória é constantemente acionada
rastro pode ser lida como a raiz
como um paliativo que auxilie a cicatrizar comum ao testemunho e ao indício.
os ferimentos abertas pela violência física (RICOEUR, 2007 : 185)
e simbólica exercida contra o outro ao
longo da saga dos imperialismos, Essa outra menção às reflexões de
escravismos, guerras, totalitarismos e Carlo Ginzburg sobre o paradigma
genocídios que margeiam a história indiciário são necessárias na medida em
ocidental. que esse historiador é um dos principais
Na medida em que o trabalho dos interlocutores contemporâneos dessa
estudiosos das artes se baseia no uso dos postura que aproxima o trabalho do
rastros e dos testemunhos do passado, historiador com a postura detetivesca,
na confrontação entre diversas fontes – tão intrínseca aos protagonistas das
como a pintura, a literatura, entrevistas e narrativas policiais do século XIX. Seja
outras fontes – no levantamento de com Charles Dickens ou, de forma mais
hipóteses, bem como em toda uma elaborada empiricamente, Ginzburg
bateria de suspeitas que são dirigidos aprendemos que a literatura e a
para a fala da testemunha e dos fotografia podem ser interrogadas como
documentos encontrados nos arquivos fontes colocadas em constante diálogo,
entra em cena a questão da pelo pesquisador, ao invés de dissociadas
confiabilidade – um ato ético – que irá e hierarquizadas. Ainda mais se tratando
auxiliar historiadores, críticos e filósofos a da compreensão de obras de escritores
compreender as narrativas do outro em que almejaram desenvolver uma forma
suas singularidades, mas também em de criar narrativas fotográficas.
suas multiplicidades. O documento, Embora Dickens tenha respirado da
interpretado como rastro a ser decifrado atmosfera intoxicada pelo etnocentrismo
induz o pesquisador a uma forma de inglês – por isso não escapou das
conhecimento indireto do passado. De análises criteriosas de Edward Said – os
acordo com Ricoeur, a maior contribuição estudiosos do passado podem ser
fornecida pelo historiador Carlo Ginzburg auxiliados de inúmeras formas, em seu
para esse complexo debate, que dilui as ofício, se estiverem dispostos a
fronteiras entre teoria e metodologia da compreender melhor como as artes
história, consistiu em aproximar as configuram esse método que embaralha
noções de indício e testemunho: as noções de técnica e magia e dele se
apropriarem, deixando de lado o ranço
O benefício da contribuição de C. iluminista: esse caquético legado das
Ginzburg é então o de estabelecer
tentativas frustradas que visaram
uma dialética do indício e do
testemunho no interior da noção de
equiparar a interpretação do humano
rastro e de, assim, dar ao conceito de com os esquemas lógicos das ciências
documento toda sua envergadura. Ao naturais.
mesmo tempo, a relação de
complementaridade entre testemunho

Referências:

DOYLE, Arthur Conan. A life in letters. Edited by Jon Lellenberg, Daniel Stashower &
Charles Foley. New York: The Penguin Press, 2008.
62
DICKENS, Charles. Retratos londrinos. Tradução de Marcelo Rollemberg. Rio de Janeiro:
Editora Record, 2003.

GAY, Peter. Represálias selvagens: realidade e ficção na literatura de Charles Dickens,


Gustave Flaubert e Thomas Mann. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.

GINZBURG, Carlo. Nenhuma ilha é uma ilha: quatro visões da literatura inglesa. Tradução
de Samuel Titan Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

______. Sinais: Raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, Emblemas e Sinais.


Morfologia e História. Tradução Federico Corotti. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

ORWELL, George. Charles Dickens. In: Inside the whale and other essays. London: Print-
run, 1940.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François {et.


al.}. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007.

SCHØLLHAMMER, Karl Erik. Além do visível: o olhar da literatura. Rio de Janeiro: 7Letras,
2007.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. 2ª. ed. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2000.

SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Tradução de Denise Bottman. São Paulo:


Companhia das Letras, 1995.

63
DE REPRESENTAÇÃO E De tal reflexão, enredada pelos jogos de 1
O recorte
influência de Soares Barbosa, (que se faz temporal, é
ENTRELAÇAMENTOS POLÍTICOS:
condicionado pelas
RELIGIOSIDADE E JOGOS DE importante uma compreensão, num
informações
primeiro momento, da categoria analítica encontradas nos
PODER DO VIGÁRIO ANTÓNIO
de representação), é criteriosa uma processos jurídico-
SOARES BARBOSA NA CAPITANIA administrativos do
análise da administração colonial, a qual
REAL DA PARAHYBA (1766- Arquivo Histórico
é referenciada nas discussões Ultramarino (Lisboa),
1785)1 metodológicas da Micro-história e avulsos tanto
teóricas da Nova História Política. ascendentes quanto
Muriel Oliveira Diniz2 descendentes,
referentes tanto à
Resumo
capitania da Paraíba
Destarte, da necessidade de elencar Introdução: quanto de Pernambuco,
previamente algumas informações a Na tessitura de um enredo digitalizados pelo
respeito das tramas políticas do vigário Projeto Resgate Barão
introdutório: as tramas políticas de do Rio Branco,
António Soares Barbosa, o presente António Soares Barbosa disponíveis no Setor de
artigo versa sobre a relação entre Igreja Documentação e
e Estado, sobre a possibilidade de História Regional
Logo no princípio que tomei posse
(SEDHIR) da Unidade
simbiose entre os poderes religioso e deste governo que Sua Majestade se de História e Geografia
político na Capitania Real da Parahyba dignou em confiar-me, pretendeu o da Universidade Federal
nos setecentos. Assim sendo, dito vigário desta cidade destronar- de Campina Grande.
problematizar a respeito de como na me, pois concedendo-me o uso da
prática, efetivavam-se as imbricações cadeira no arco da capela mor da 2
Mestranda pelo
Matriz praticado com meus Programa de Pós
entre tais poderes, de como esses Graduação de História
antecessores, como comprova a sua
amálgamas podiam ocasionar conflitos própria atestação junta depois o da UFCG
políticos, constitui-se o objeto de estudo. negou, e persuardiu com paixão
De tal reflexão, enredada pelos jogos de notória a todos os Prelados das 3
OFÍCIO do governador
influência de Soares Barbosa, (que se faz Religiões, me não permitissem. da Paraíba Jerónimo
importante uma compreensão, num Jerónimo José de Melo e Castro José de Melo e Castro
Governador da capitania da Paraíba, ao secretário de estado
primeiro momento, da categoria analítica da Marinha e Ultramar
de representação), é criteriosa uma 1766.3
Francisco Xavier de
análise da administração colonial, a qual Mendonça Furtado.
é referenciada nas discussões Era o ano de 1766 de Nosso 1766, julho, 16,
Senhor Jesus Cristo. O então governador Paraíba. AHU_ACL_CU_
metodológicas da Micro-história e 014, Cx. 23, D. 1798.
teóricas da Nova História Política. da Paraíba, Jerónimo José de Melo e
Castro, enviou ao Conselho Ultramarino
4
ofício em denúncia contra o vigário da Idem, ibidem.

Abstract cidade da Paraíba, António Soares


Barbosa. Da proibição a Melo e Castro em
Destarte, da necessidade de elencar
previamente algumas informações a se sentar na cadeira do arco da capela
mor da matriz da Igreja de Nossa
respeito das tramas políticas do vigário
António Soares Barbosa, o presente Senhora das Neves, o referido padre
artigo versa sobre a relação entre Igreja secular confrontou a autoridade civil a
e Estado, sobre a possibilidade de quem que devia obediência e respeito,
simbiose entre os poderes religioso e conforme regia o sistema do Padroado4.
político na Capitania Real da Parahyba Ora, enquanto dois gestores do projeto
nos setecentos. Assim sendo, luso, Igreja e Estado amalgamados por
problematizar a respeito de como na vezes e em diversas ocasiões, deviam
primar pela efetivação das prerrogativas
prática, efetivavam-se as imbricações
entre tais poderes, de como esses de El Rei: colonização dos corpos e das
amálgamas podiam ocasionar conflitos almas. Entretanto, nesse caso, tal relação
políticos, constitui-se o objeto de estudo. na Capitania Real da Parahyba foi

64
5
OFÍCIO do
conflituosa, ocasionando desestabilidades circunstancias alcanse perfeita
governador da Paraíba
em seu ordenamento. melhora (Grifo meu). 8
Jerónimo José de Melo
António Soares Barbosa, vigário e Castro ao secretário
de Igarassú, Pernambuco, desde 1741, de estado da Marinha e
A partir do trecho dessa carta Ultramar Francisco
fora transferido para a Paraíba em 1750. Xavier de Mendonça
No entanto, anterior a isso já mantinha escrita por Soares Barbosa, datada de 2 Furtado. 1768, julho,
relações com outros governadores de junho de 1766, o referido padre 25, Paraíba.
Bandeira de Melo foi designado por Melo AHU_ACL_CU_ 014, Cx.
paraibanos, como é o caso de Antonio 24, D. 1842.
Borges da Fonseca – que administrou a e Castro de “vomitário” das tiranias,
6
OFÍCIO do
capitania de 1745 a 1748–, e nutriu uma heresias, insultos para depreciá-lo em
[governador da
amizade5 e, de Luiz Antonio de Lemos de público. Endossa a trama política entre o Paraíba], brigadeiro
Brito, gestor de 1753 a 1757, que ao secular portador de um “luciferino Jerónimo José de Melo
espírito” e o governador paraibano, a e Castro, ao [secretário
contrário deste, entrou por inúmeras de estado da Marinha e
ocasiões, em desavenças (Pinto, 1977: acusação deste, da maquinação do seu Ultramar], Martinho de
148). De acordo com Melo e Castro, as assassinato e o de seu secretário José Melo e Castro. 1785,
Pinto Coelho, pelos ditos cúmplices do maio, 6, Paraíba.
diferenciações de tratamento se
AHU_ACL_CU_014, Cx.
processavam conforme a possibilidade ou vigário, a seu mando.
29, D. 2144.
a restrição de aumento de poder político. Segundo Melo e Castro, o 7
Segundo o
Pois bem, ao invés de pregar pelo religioso cooperou para o atentado que
bispo Dom Tomás da
desapego aos interesses no campo sofrera, no qual “Prendendose Encarnação Costa e
político dos homens “comuns”, as tramas casualmente o cabra Constantino escravo Lima, António Soares
doreferido Padre Antonio Bandeira quando da ocasião em
e jogos de influência de Soares Barbosa que mandado, pelo
fizeram com que ele fosse removido para confesiou geminadamente quesua bispo frei Luis de Santa
Olinda a 2 de junho de 1767, afastado senhora moça Dona Quitéria Bandeira de Teresa, retirar-se em
Mello irmã do dito Padre, lheordenara Alagoas ou Penedo (Rio
assim de seu vicariato6. Grande) visto que em
Todavia, apesar do afastamento, mematasse, eaomeu secretario (...)”9. No Recife continuava a
as transgressões religiosas7 e os referido documento, é posto em perturbar o governo
evidência a participação de Dona parahybano, desacatou
comportamentos/intrigas do vigário
e transgrediu as ordens
continuaram a afrontar a autoridade Quitéria, amiga e posteriormente tida por
de seu superior.
governamental até o ano de 1785, amante do vigário, na medida em que
8
quando da época da remoção do vigário, OFÍCIO do
quando de seu retorno à Paraíba e
governador da Paraíba
disposição a obedecer (segundo os havia jurado publicamente que o
Jerónimo José de Melo
escritos documentais) a seus superiores. restituíria a sua residência e, no e Castro ao secretário
Intrigas fomentadas por um rol de momento que tomou conhecimento da de estado da Marinha e
prisão do cativo de sua família, fugiu para Ultramar Francisco
“sócios” de Soares Barbosa, ensejavam a Xavier de Mendonça
promoção de discórdias entre Melo e Pernambuco em busca de amparo do Furtado. 1768, julho,
Castro e o governo de Pernambuco, que mesmo, não o conseguindo, foi 25, Paraíba.
considerada culpada e presa. Apenas AHU_ACL_CU_ 014, Cx.
devido ao período de anexação – 1755 a
24, D. 1842.
1799 –, detinha o controle das instâncias após quase uma década é que Quitéria
política, econômica e religiosa paraibana. Bandeira de Melo foi solta10. 9
CARTA do
De religiosos, autoridades civis, governador da Paraíba,
A fim de “ridicularizar” a administração
o brigadeiro Jerónimo
desta (capitania) perante membros mulher e escravo envolvidos na trama de
José de Melo e Castro,
daquela, o vigário incentivou o padre Soares Barbosa, seus acordos políticos ao rei D. José I. 1770,
Antonio Bandeira de Melo que: com o governo pernambucano fizeram fevereiro, 10. Paraíba.
com que sua relação com Melo e Castro AHU_ACL_CU_014, Cx.
(...) que chegando logo aessa Praça
24, D. 1873.
tomasse vossamerce alguo vomitorio fosse conturbada. Autorizado pelo
para alimpar o estomago, porem gabinete de Pernambuco a atuar no 10
REQUERIMENTO de
como menão não falta nesta materia campo político da Paraíba, confrontou Quitéria Bandeira de
entendo que o remedio tem feito Melo, à rainha [D. Maria
assim, a autoridade de seu governador.
pouca obra: estimarey que daqui por I]. [ant. 1778, maio, 22,
Das ações desse teor, as dissensões já Paraíba].
diante tenha mais efficacia, eque
existentes entre os governos foram AHU_ACL_CU_014, Cx.
vossamerce mediado todas as 26, D. 2008.
65
endossadas11, haja vista que em busca cósmico” (BERGER, 1985, p. 46)(grifo 11
Conforme elucida
de ascensão sócio-política, o padre meu). Aqui, a Igreja e o Estado luso,
Kalene Alves Souza,
secular teceu uma rede de influências unidos que estavam pela instituição do Melo e Castro enviou
que desencadeou uma série de Padroado (questão abordada mais inúmeras queixas ao
desordens, conflitos que iam de encontro adiante), validavam suas ações numa secretário de estado da
Marinha e Ultramar,
à intencionalidade do projeto colonizador simbologia religiosa: a colonização dos Francisco Xavier de
pautado da interpenetração do religioso corpos e almas. Mendonça Furtado,
ao secular, de forma harmoniosa. António Soares Barbosa, vigário ressaltando que fora
impedido de sua
colado da igreja matriz Nossa Senhora jurisdição: do
I. Sobre representação e/ou religião das Neves desde 1750, localizada na provimento das tropas
enquanto guia das ações de Soares capitania da Paraíba, é oriundo de um de ordenanças e de
auxiliares, ou seja, das
Barbosa lugar institucional bem definido: a Igreja
nomeações dos oficiais
Católica. De caráter religioso, a Igreja inferiores como
A religião está inscrita no sistema também é dotada de força ideológica. elucidava a ordem régia
de representação do mundo que constrói Nessa perspectiva, apesar de não ser (2008: 08).
a sociedade, humana. Enquanto a uma instituição eminentemente política, é
produção do homem, a sociedade em portadora de uma doutrina, de uma
contrapartida, o produz. Num processo mensagem política, haja vista que
dialético, conforme alude o sociólogo contribui ideologicamente em termos de
austro-americano Peter Berger (1985), a inspiração, estimulação, animação (BOFF,
edificação da sociedade se procede em 1978). Ora, de acordo com Louis
três momentos: a exteriorização Althusser, relido por Stuart Hall, a
(produção do mundo humano/ cultural, ideologia é uma prática, surgida em
material e simbólica, pelo homem), a práticas sociais dentro dos rituais dos
objetivação (os produtos dessa atividade aparelhos, instituições sociais ou
do homem, são dotados de uma organizações específicas. Elas, pois
realidade, exterior e distinta dele, existem inúmeras, “(...) constituem
compartilhados com as outras pessoas e, estruturas de pensamento e avaliação do
existentes fora de sua consciência) e mundo – as “idéias” que as pessoas
interiorização (reapropriação desses utilizam para compreender como o
produtos objetivados pela consciência mundo social funciona, qual o seu lugar
subjetiva). O homem como participante, nele e o que devem fazer (HALL, 2003, p.
apropria-se ativamente do mundo social. 163).
Este, por sua vez é ordenado, É dentro dos sistemas de
organizado, dotado de sentidos, representação da cultura e através deles
significados: é cultural (GEERTZ, 2008). que o homem “experimenta o mundo”: a
A religião é entendida, assim, experiência é o produto de seus códigos
enquanto manifestação cultural. Qualifica de inteligibilidade, de seus esquemas de
o mundo como sagrado, transcendente e interpretação. A compreensão do lugar
inclusivo do homem. Uma expressão de social do referido vigário, faz-se 12
Nessa linha
legitimidade, explicação, justificação da importante para o entendimento de suas interpretativa, não se
realidade, manutenção do mundo. No práticas políticas. Pois bem, Soares desconsidera a
período histórico desse estudo, esse existência de outras
Barbosa ocupava um lugar na sociedade crenças, formações
caráter da religião é significativo, haja da América Portuguesa, em espaços do culturais, etnias dos
vista que na Cristandade colonial, os nordeste colonial. Parte de uma elite, a inúmeros grupos
valores culturais eram permeados pela humanos que estiveram
da “cura das almas”, a citar a expressão
em contato na América
religião, católica12. Como atenta Berger, citada por António Manuel Hespanha Portuguesa.
“A religião legitima as instituições (2005, p. 42), suas práticas foram
infundido-lhes um status ontológico de condicionadas pela instituição a qual
validade suprema, isto é, situando-as pertencia. Seu pertencimento, os
num quadro de referência sagrado e sistemas simbólicos eram apropriados
66
para ele interpretar, experimentar, dar Acerca da problematização da categoria
sentido as condições de sua existência. analítica, apropriação, fundante é a
As teorias da representação social contribuição de Roger Chartier.
(de caráter interdisciplinar), Referência para os estudos da dimensão
principalmente as contribuições do da Nova História Cultural, afirma que tal
psicólogo social Serge Moscovici, focam o teoria tem por objeto “(...) identificar o
estudo das teorias do senso comum, de modo como em diferentes lugares e
“(...) origem nas práticas sociais e momentos uma determinada realidade
diversidades grupais cujas funções é dar social é construída, pensada, dada a ler”
sentido à realidade social, produzir (CHARTIER, 1989, pp. 16, 17). Nessa
identidades, organizar as comunicações e perspectiva, defende a ideia que ao
orientar condutas” (SANTOS, 2005, p. considerar o simbolismo que influi nas
22). Numa mediação entre percepções diferentes modalidades da apreensão do
individuais e coletivas (processos real, pensa na variedade e pluralidade de
cognitivos e simbólicos), as compreensões, nas práticas que são
representações sociais são visões condicionadas pelas visões de mundo e,
funcionais de mundo, que permite ao na importância da reflexão sobre a
indivíduo ou grupo dar sentido a suas apropriação desses códigos pelos
condutas e compreender a realidade indivíduos.
através de seu próprio sistema de Soares Barbosa respirava esses
referência. Processo de imaginação, ou sistemas de representação. Como sujeito
seja, capacidade de concretizar o que é ativo, ele não produziu códigos simbólicos
ausente. Conforme afirma Geraldo José haja vista essa atividade é de cunho
de Almeida: coletivo, mas lia a realidade de forma
O imaginário simbólico está ligado a própria. Assim, diluí-lo na sociedade
uma atribuição de sentidos, na brasílica do Setecentos, simplifica a
medida em que é através do símbolo complexidade de suas ações, generaliza
que se processa tal atribuição. Os
um entendimento a seu respeito. A trama
símbolos não são evidentes por si
política que o envolve, é um caso
mesmos. Toda manifestação que vem
a ser apreendida pelos sentidos e destoante, atípico. O desvio, já dizia o
manifestada através da linguagem, historiador italiano Giovanni Levi, é a
gera, pó sua vez, conhecimento. Todo preocupação dos estudiosos que se
símbolo adquire significado quando munem da metodologia da micro-história.
ele se relaciona com outros símbolos Para ele cada indivíduo constrói
e, também, quando está inserido em significados simbólicos particulares.
uma rede de símbolos. Os sentidos e
Assim:
os significados são expressos através
Neste tipo de investigação, o
de conceitos, uma vez que eles não
historiador não está simplesmente
são evidentes por eles mesmos. A
preocupado com a interpretação dos
atribuição de sentidos é de natureza
significados, mas antes em definir as
coletiva, na medida em que ela é
ambiguidades do mundo simbólico, a 13
compartilhada por um grupo, ou mais, É importante
pluralidade das possíveis
de pessoas (ALMEIDA, 2005, p. 62). ressaltar que religião e
interpretações desse mundo e a luta religiosidade diferem de
que ocorre em torno dos recursos sentido, na medida em
simbólico e também dos recursos que enquanto a
A interiorização da religião13, materiais (LEVI, 1992, p. 136). primeira refere-se à
ainda em diálogo com Berger, fazia-se crença institucional,
ortodoxa, a segunda diz
em conversação com os demais Ora, é importante ressaltar que o respeito as suas mais
indivíduos que compartilhavam os contexto, fator criterioso para a micro- variadas expressões,
códigos da cristandade colonial e, ao história, particular que influenciou a nuances, intensidades
(DEL PRIORE, 2004:
mesmo tempo, de forma subjetiva. Sua especificidade desse caso e que foi, por 05).
apropriação era também particular. conseguinte, remodelado por ele,

67
corrobora o posicionamento de Levi, linguagem em forma de denúncias para
quando afirma que: com as ações do religioso, codificava,
(...) toda ação social é vista como produzia sentido de acordo com a sua
o resultado de uma constante percepção dos acontecimentos (POCOCK,
negociação, manipulação, 2003).
escolhas e decisões do indivíduo, Soares Barbosa, todavia, que
diante de uma realidade atuou em terras brasílicas antes da
normativa que, embora difusa, administração de Pombal, compreendia
não obstante oferece muitas tal contexto de forma diferenciada.
possibilidades de interpretações e Insatisfeito, ficou com a distribuição dos
liberdades pessoais. A questão é, papéis sociais conforme ordenados por
portanto, como definir as Pombal. Dessa reformulação da
margens – por mais estreitas que interação entre Igreja e Estado, a
possam ser – da liberdade diminuição de sua área de interferência,
garantida a um indivíduo pelas influência, fez com que o referido vigário,
brechas e contradições dos articulasse acordos políticos, com o
sistemas normativos que o intuito de aumentar ao seu poder
governam (Idem, Ibidem: 135) religioso, o eminentemente político. As 14
Regalismo é a
(Grifo meu). transformações intencionadas pelo teoria que dá ao Estado
marquês, foram percebidas, sentidas por todo o poder sobre a
O período da gestão do marquês Soares Barbosa, gradativamente (se Igreja e,
conseqüentemente,
de Pombal, Sebastião de Carvalho e Melo, assim foram). A influência política da coloca os interesses
foi marcado por um controle mais Igreja de outrora, fez-se notória nos atos daquele acima dos
expressivo da Igreja pelo Estado. Para do religioso. Entretanto, para que desta. Já o Jansenismo
se apresenta de várias
legitimar as suas ações, o então ministro analisemos suas tramas, é necessário
formas, mas sua
do rei José I, de 1750 a 1777, formulou tecermos algumas considerações a importância aqui reside
uma combinação de Regalismo- respeito da administração colonial. no fato de que a teoria
Jansenismo14 que serviu de justificativa II. Entrelaçamentos políticos: micro- difundida em Portugal
atacava a primazia do
para os seus ataques contra a Igreja. poderes e poder estatal Papa. Pombal favoreceu
Acresceu o controle do Estado sobre a A reflexão acerca da relação entre a publicação de folhetos
Igreja e em contrapartida, diminuiu-se o religião entendia enquanto manifestação jansenistas, dando
assim larga divulgação
poder de Roma não somente em Portugal cultural e política, não se faz em
à teoria (BRUNEAU,
como em suas colônias. Tal postura desconsideração aos demais aspectos 1979).
política de Pombal, fez com que os conjunturais, até mesmo porque nesse
religiosos atuantes na América período estudado, tais idiomas (religioso,
14
Portuguesa, negociassem seus lugares político, social, cultural, econômico) não Apesar de seus
insistentes pedidos em
sociais. No caso da capitania da Paraíba, se dissociavam uns dos outros. Apenas, a deixar o cargo (devido o
o governador Jerónimo José de Melo e ênfase é dada a reflexão da política e desrespeito dos
Castro, nomeado pelo rei D. José I, religião. É o vigário Soares Barbosa governadores
pernambucanos
enquanto representante na América enquanto ator político, impulsionado por causados pela situação
Portuguesa, do monarca luso, deveria sua representação de mundo, foco de de subordinação da
efetivar as ordens vindas da metrópole atenção. Entendendo política enquanto o capitania), sua gestão
no tocante à restrição do poder dos sistema de relações entre os sujeitos, apenas termina quando
de sua morte.
religiosos. Contrariando a média usual da que configura a organização da
época de 3 a 6 anos que um gestor sociedade, regula a existência coletiva,
passava no cargo, Melo e Castro dirige a ou para citar Carl Schmitt, “determina a
capitania por 33 anos (1764-1797). normatização dos agrupamentos
Administrador de confiança e importância humano” (distinção entre amigo e
para os preceitos pombalinos da relação inimigo), há a valoração nessa pesquisa
entre Estado e Igreja, ele lia a realidade, do entendimento da administração
a conjuntura social por esse prisma. Sua colonial no Setecentos.
68
A análise das ações políticas de processavam as naturezas de mando na
Soares Barbosa, sem o intento de América Portuguesa?
engrandecer seus feitos, de enaltecer Ora, Soares Barbosa, legitimado
suas atitudes em separação aos aspectos pelo poder religioso, angariou o
conjunturais que as condicionaram e que engrandecimento de sua influência
dão certo sentido de entendimento, é política. O relato do frei Bento da
fundamentada pelas problematizações Conceição, procurador do mosteiro de
acerca do poder, do pensar a respeito da São Bento, é elucidativo quanto a isto.
faculdade para mandar, dominar, da Segundo o regular, a 26 de julho de 1760
relação de regulamentações dos papéis – no mosteiro de sua Ordem - em
sociais na América Portuguesa. No comemoração a festividade de Santa
tocante ao estudo dessa categoria, as Ana, o referido vigário, por permissão do
contribuições de Michel Foucault, por Abade Frei Manoel da Graça, encontrava-
exemplo, são importantes no sentido de se sentado no arco da capela-mor em
que ao enfatizar que o poder é entendido uma cadeira com todos os preparos
como uma prática social, constituída destinados aos governadores da
historicamente, integrada em toda a capitania. As relações com o abade
sociedade, não localizável em um ponto beneditino se fizeram proveitosas, assim
da estrutura social, e inexisente enquanto como aquelas com o ex-governador
objeto natural, colaboram com as paraibano António Borges da Fonseca.
discussões sobre o alargamento do que Neste caso, o religioso e o secular se 15
OFÍCIO do
se concebe por campo político, ou seja, a harmonizaram de forma tal que, o vigário governador da Paraíba
politização de uma série de ações e tanto fez uso de militares no auxílio dos Jerónimo José de Melo
e Castro ao secretário
introdução de novos atores como serviços eucarísticos, quanto interferiu na
de estado da Marinha e
participantes da política (RÉMOND, política da capitania, conforme seus Ultramar Francisco
2003). interesses pessoais15. Xavier de Mendonça
Assim sendo, os trabalhos No entanto, das interações Furtado. 1768, julho,
25, Paraíba.
costurados pela teoria da Nova História interpessoais entre Soares Barbosa e AHU_ACL_CU_ 014, Cx.
Política, a exemplo desse, interessam-se religiosos, autoridades civis, da 24, D. 1842.
pelo poder em suas outras modalidades, percepção aos micro-poderes não se
por massas anônimas ou indivíduos que desconsidera os poderes institucionais, do 15
OFÍCIO do
exerceram certa autoridade em meio à Estado e da Igreja, por exemplo. Atenção governador da Paraíba
Jerónimo José de Melo
sociedade, como é o caso do vigário em ao macro e ao(s) micro-poder(es), à e Castro ao secretário
questão. Dessa perspectiva foucaultiana, sobreposição de poderes existentes nas de estado da Marinha e
o que nos interessa é justamente essa relações políticas na América Portuguesa. Ultramar Francisco
Xavier de Mendonça
forma como ele percebe o poder: Poderes divergentes, coexistente. É
Furtado. 1768, julho,
imiscuído na sociedade, nas relações relevante frisar que da mesma forma 25, Paraíba.
cotidianas, nas redes interpessoais, que, a existência de um poder central AHU_ACL_CU_ 014, Cx.
entretanto, sem negligenciar a relevância não implicava na impossibilidade de 24, D. 1842.

do poder estatal/ religioso. Mas, constituição de outras esferas de poder, a


conforme atentou Max Weber, se “(...) composição desses outros nichos não se
toda dominação [entendida aqui, como os fez em autonomia absoluta daquele.
mecanismos de legitimação do poder] As relações interpessoais
manifesta-se e funciona como envolvendo Soares Barbosa e o abade
administração (...)” (grifo meu) e, “(...) frei Manoel da Graça, afrontaram a
toda administração, de alguma forma, autoridade de Melo e Castro. De sua
precisa da dominação, pois, para dirigi-la, atitude em se sentar na cadeira mor,
é mister que certos poderes de mando se localização de destaque, que simbolizava
encontrem nas mãos de alguém” tanto a imponência de autoridade política
(WEBER, 1999, p. 193), afinal como se do administrador da capitania, o seu
fervor religioso, quanto a sua figuração
69
enquanto representante da monarquia Bandeira de Melo (o já citado padre
lusa, dos reis católicos, Melo e Castro Antonio Bandeira de Melo, os seus
comunicou o ocorrido ao secretário de irmãos, o sargento pago José Bandeira de
estado da Marinha e Ultramar, Francisco Melo e Quitéria Bandeira de Melo e, seu
Xavier de Mendonça Furtado, que por sua sobrinho Bento Bandeira de Melo), com
vez, repassou a informação a metrópole. os governadores de Pernambuco António
Desses conflitos ocasionados pelas ações de Sousa Manuel de Meneses, conde de
do dito vigário, uma instância de Vila Flor (gestão de 1763 a 1768), José
hierarquia superior, interligada ao poder da Cunha Grã Ataíde e Melo
central de El Rei, foi acionada. Aqui, não (administração de 1768 a 1769) e,
se defende a exacerbação do poder Manuel Inácio da Cunha e Meneses
estatal, sua centralidade na (governo de 1769 a 1774)
administração colonial e minimização ao desestabilizaram o ordenamento
mando local, à ruralização e papel dos paraibano, modelaram a administração
grandes proprietários rurais, como assim dos espaços a nordeste colonial conforme
o fez Raymundo Faoro no primeiro tais dinâmicas sociais particulares e os
volume de Os donos do poder: formação atores envolvidos nas tramas políticas.
do patronato político brasileiro, no qual a Da tentativa de assassinato de Melo e
imagem de um Império centralizado era a Castro pelo escravo da família Bandeira
única que fazia jus ao gênio colonizador de Melo, a referida Quitéria Bandeira de
da metrópole. Melo foi acusada de ter sido a mandante
A natureza do mando na América principal do crime e presa, como já foi
Portuguesa não era simplista como dito. Ocorreu que, seu irmão José
afirmou o referido autor: “Vinho novo Bandeira de Melo, quando soube da
lançado em odres velhos, mas vinho sem confissão do cativo Constantino, dirigiu-
capacidade para fermentar e romper os se ao gabinete do governador e,
vasilhames tecidos por muitos séculos” confrontou sua autoridade por meio de 16
OFÍCIO do
(FAORO, 1979, p. 177). O sistema ultrajes e violência física (um chute). governador da Paraíba,
administrativo português (odres) não foi Desse episódio, esse Bandeira de Melo foi brigadeiro Jerónimo
transposto para colônia sem alteração preso. No entanto, por intercessão de seu José de Melo e Castro,
ao secretário de estado
alguma, imaculado. As elites locais (vinho irmão religioso ao governador Cunha e
da Marinha e Ultramar,
novo), deram tonalidades específicas a Meneses, ele foi solto um ano após seu Martinho de Melo e
administração metropolitana. As redes encarceramento em 177016. Castro. 1770, julho, 6,
complexas de relações sociais que o As elites locais, entretanto, não Paraíba.
AHU_ACL_CU_014, Cx.
religioso fez parte, dinamizaram as detinham um poder inteiramente 24, D. 1889.
normatizações lusas. O funcionário deliberado, como assim pensou Gilberto OFÍCIO do governador
enquanto outro eu do rei, por vezes Freyre em Casa-grande e Senzala: da Paraíba, brigadeiro
Jerónimo José de Melo
destoava à pretensa rigidez formação da família brasileira sob o e Castro, ao secretário
administrativa: regime da economia patriarcal, de estado da Marinha e
(...) o mundo das colônias – e aqui, principalmente no que diz respeito aos Ultramar, Martinho de
lembrem-se as ressalvas feitas por senhores de engenho, “(...) donos de Melo e Castro. 1771,
Caio Prado Jr. – não pode ser visto março, 14, Paraíba.
terras e de escravos que dos senados de AHU_ACL_CU_014, Cx.
predominantemente pela ótica da
Câmara falaram sempre grosso aos 25, D. 1905.
norma, da teoria ou da lei, que muitas
representantes del-Rei e pela voz
vezes permanecia letra morta e
outras tantas se inviabilizava ante a liberada dos filhos padres ou doutores
complexidade e a dinâmica das clamaram contra toda espécie de abusos
situações específicas (SOUZA, 2006: da metrópole e da própria Madre Igreja”
56). (FREIRE, 2006, p. 66). Na interpretação
freyriana, a exacerbação ao mando dos
Os jogos de poder de Soares agentes locais, fez-se em conseqüência
Barbosa e de alguns membros da família do enfraquecimento excessivo do papel
70
do Estado (e da Igreja, que aqui é da hierarquia política imperial e as elites
salutar), o que leva de um extremo ao locais gozavam de poderes autônomos.
outro. Essa elite local, ou para citar a No entanto, é importante divergir, pelo
expressão problematizada por Evaldo fato de que, quando das nomeações aos
Cabral de Mello, por exemplo, em Rubro cargos administrativos, os oficiais
Veio: o imaginário da restauração públicos e El Rei enredavam alianças, 17
Termo
pernambucana, essa nobreza da terra17, laços de reciprocidade que, constituíam- reivindicado pelos
descendentes dos
detentora de influência política, não se pela fluidez das relações políticas.
restauradores de
estava imune às ordens da coroa lusa. A Desses entrelaçamentos de poderes Pernambuco a El-Rei,
aplicabilidade das normatizações da variados, as elites coloniais e a coroa lusa com o intuito de serem
metrópole se dava de acordo com a se interdependiam, interligavam-se de agraciados com o título
de nobreza.
configuração contextual específica e, seus maneira diferenciada sim, haja vista o
tons eram condicionados pelos homens monarca encontrava-se no topo da 18
Acerca do uso
envolvidos, como os senhores de terra de hierarquia, estendendo sua malha de desse conceito, é
Pernambuco. Contudo, suas redes de influência (variada, de diversas formas, salutar a
problematização feita
poder estavam entrelaçadas ao poder extensão, intenção) nos espaços
pela historiadora Laura
central. Este, imprimia interferência. brasílicos, mas cada qual interferindo na de Melo e Souza, no
Os estudos de António Manuel composição das normatizações primeiro capítulo da
Hespanha sobre poderes locais e metropolitanas. parte I de seu livro O
Sol e a sombra: política
fragilidade estatal, merecem atenção e Pois bem, o fato de o monarca e administração na
ponderação, crítica e discordância. ser a figura central do poder não América Portuguesa do
Pautado na idéia de que o Estado perdeu significava que tivesse o controle século XVIII. De acordo
com a autora, sua
sua centralidade no exercício do poder, absoluto daquela sociedade. A essa utilização deve ser feita
percebe as sociedades de Antigo interface do poder, no deslocamento do com cuidado, clareza
Regime18, como assim as concebe, centro gravitacional do poder, eram quanto as suas
implicações, atenção
aparelhadas em um modelo de tecidos laços infindáveis, de diversas
para com as
organização polisinodal, corporativo. formas, composições, tons. As especificidades, por
Embasado nos textos jurídicos, afirmou instituições, grupos, indivíduos envoltos vezes contraditórias aos
que “(...) os oficiais régios gozavam de nessas tramas políticas se enredavam interesses europeus, do
mundo que se construiu
uma proteção muito alargada dos seus nas malhas reais, por vezes destoando nos trópicos.
direitos e atribuições, podendo fazê-los expressivamente delas, outras nem
valer mesmo em confronto com o rei e tanto. As relações de poder ora 19
Sobre a
tendendo, por isso, a minar e expropriar convergiam, ora divergiam, seja em composição da
o poder real” (HESPANHA, 2001, p. 167). alguns aspectos ou em muitos. No caso hierarquia dos oficiais
Conforme aludiu Laura de Melo e Souza, específico das tramas políticas do vigário da política
administrativa
essa supervalorização a tais tipos António Soares Barbosa na capitania da concernente à América
documentais, o apreço excessivo à Paraíba nos setecentos, é seminal uma Portuguesa, ver Os
microfísica do poder, ao enfraquecimento problematização acerca dos contatos Donos do poder:
formação do
do papel do Estado, pela doutrina jurídica entre Igreja e Estado, contatos esses que
patronato político
(jurisdictio), o descuido quanto à se fizeram de forma dinâmica, inovadores brasileiro de
especificidade do império português na à administração colonial. Raymundo Faoro,
América, são alguns aspectos de especificamente o
capítulo VI, Traços
fragilizam sua interpretação e merece III. Entre a cruz e a espada: uma gerais da organização
cuidado, problematização. especificidade administrativa administrativa, social,
Ora, para o jurista português, a O sistema do padroado era econômica e financeira
da colônia, do volume I.
falta de homogeneidade, centralidade e representava possibilidade de amálgama
hierarquias rígidas, implicava uma entre Igreja e Estado, de forma a
estrutura administrativa descerebrada, a contribuir para com o ordenamento
qual os oficiais (vice-reis, governadores, social, para a colonização dos corpos e
ouvidores, desembargadores, oficiais das catequização das almas. Imbricação dos
câmaras, dentre outros)19 componentes poderes religioso e político, de tal
71
maneira, que em muitas circunstâncias, tais regulamentações, os interesses 20
Para leitura
tanto religiosos se portavam enquanto pessoais, contextos sociais, político, mais aprofundada ver
funcionários públicos, quanto autoridades religioso condicionavam sua AZZI, Riolando; BROD,
civis atuavam como missionários/ aplicabilidade. A metáfora do sol e da Benno; GRIJP, Klaus
Van Der; HOORNAERT,
evangelizadores (MARQUES & SERRÃO, sombra, usada por Laura de Mello e
Eduardo. Capítulo II: O
1986, p. 178). Entretanto, dessa Souza – em apropriação de um escrito de padroado português.
possibilidade de interpenetração de padre Antônio Vieira –, possibilita a IN: História Geral da
papéis (quando de harmonia entre as análise da administração colonial pelo Igreja na América
Latina. História da
partes), ao secular devia-se obediência, prisma das peculiaridades, no sentido de Igreja no Brasil:
haja vista que de acordo com o sistema elucidar as variedades das sombras Primeira Época.
de Padroado, fora sancionado pela Santa (autoridades civis de representatividade
Sé o direito de administração pela Coroa real) projetadas em solos brasílicos visto
dos negócios eclesiásticos20. Desse que o sol (monarcas lusos) que lança sua
compromisso firmado entre religiosos e luminosidade sobre a colônia não se
seculares, o rei português sobressaiu-se encontrava no zênite. “Assim, se em
e se tornou o chefe efetivo da Igreja no princípio as diretrizes metropolitanas
Brasil (AZZI, 1987, p. 26). Sob benção deviam ser seguidas, a distância
divina, solidificou-se gradativamente, o distendia-lhes as malhas, as situações
controle e subserviência do religioso nas específicas coloriam-nas com tons locais”
colônias de domínio português. (2006: 11).
Ao Estado tinha sido impresso o Ora, imbuído da autorização do
selo sagrado, ao monarca a governo pernambucano, ao vigário
representação do Deus terreno. Nessa Soares Barbosa fora permitida a atuação
linha de raciocínio é válido ressaltar que em alguns âmbitos do campo político
aos governadores das capitanias, fora paraibano. Da permissão a ele concedida,
figurada a representação real, na medida Melo e Castro queixou-se ao secretário da
em que a ausência da Coroa em terras Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de
brasílicas, houve a necessidade de Mendonça Furtado, afirmando que “Deu
21
delegar funções, sob o respaldo omesmo Governo de Pernambuco OFÍCIO do
governador da Paraíba
metropolitano (FAORO, 1979, p. 186). faculdade ao vigario desta cidade Jerónimo José de Melo
Referente ao campo do político – afinal denomear capellao para a Fortaleza de e Castro ao secretário
de contas, no tocante a matéria Cabedelo, como nomeou, usurpando a de estado da Marinha e
Ultramar Francisco
eclesiástica, ao governo espiritual, a juridição Reyal, que sempre pertenceu
Xavier de Mendonça
Mesa de Consciência e Ordens era aos governadores desta capitania (...).” Furtado. 1768, julho,
21
acionada –, aos representantes de El Rei Disso, o que está em análise não é a 23, Paraíba.
devia-se respeito. No entanto, dessa habilitação de Pernambuco para com o AHU_ACL_CU_014, Cx.
24, D. 1840.
normatização, as ações políticas exercício das atividades do vigário, e sim
perpetradas por Soares Barbosa, fizeram- o fato de que enquanto ele fazia acordos
se incomodativas ao governador políticos com as autoridades
paraibano, ameaçadoras ao ordenamento pernambucanas, (o que era
colonial lusitano, flexíveis aos compreensível) suas desavenças com
regramentos régios. Melo e Castro se agravaram. Além dessa
Da especificidade dos acordos intriga entre os gestores das duas
políticos efetuados pelo vigário, discute- capitanias, pesa o episódio de 22 de
se a interação entre Igreja e Estado pelo fevereiro de 1766, ocorrido na dita
viés da percepção das particularidades, Fortaleza do Cabedelo, em que o
da maleabilidade das ordens régias governador paraibano fora insultado pelo
conforme as conjunturas, situações capelão indicado, o padre Bartolomeu de
peculiares. Se o sistema do Padroado Brito Baracho, em presença dos militares,
normatizava controle e subserviência do por tê-lo mando oficializar a ladainha e
religioso pelo temporal, a praticidade de liturgia religiosa. De acordo com aquele,
72
o mesmo fora influenciado por Soares engrandecimento, por influência política,
Barbosa. o religioso enquanto representante da
Dessa conjuntura específica, Igreja Católica, imbricou a esse poder
período da gestão do marquês de que já possuía, o político. Nesse
Pombal, de anexação da Paraíba à entrelaçar de poderes micro e macro,
Pernambuco, permeado pelas desavenças religioso e político, os interesses pessoais
entre os governos envolvidos, a de Soares Barbosa, deram um tom
efetivação da jurisdição a respeito da diferenciado à administração paraibana.
atuação de religiosos e autoridades civis, Sobre vontades particulares interferindo
deu-se de forma particular, peculiar. na política colonial, Sérgio Buarque de
Formulação lusa, modelada em solos Holanda já dizia que: “No Brasil, pode
coloniais. O que também não significa dizer-se que só excepcionalmente
dizer que, transpassado o Atlântico, as tivemos um sistema administrativo e um
distâncias entre metrópole e colônia corpo de funcionários puramente
fizessem com que as jurisdições daquela dedicados a interesses objetivos e
fossem completamente deixadas para fundados nesses interesses” (HOLANDA,
trás. Nesse ínterim, o estudo de caso dos 1976, p. 106). Traço do então homem
jogos de poder do vigário António Soares cordial, a percepção individual, do
Barbosa, contribui para que se pense a referido vigário a respeito da relação
América portuguesa à luz das entre representantes da Igreja e do
dissonâncias, da fluidez dos contatos e, Estado – isto, no momento em que
não do engessamento das relações, das Pombal mandou que os religiosos se
instituições das leis conforme formuladas subjugassem às autoridades civis –, foi
em Portugal. As suas tramas políticas, condicionada por um conjunto de valores,
condicionadas pela maneira como ele orientações – crenças, sentimentos –,
percebia a conjuntura social que estava opiniões compartilhadas ou não, pelas
inserido, analisadas por meio da redução autoridades civis e religiosas que com ele
de escala (metodologia da micro- mantiveram contato.
história), é o fio condutor para a Ora, a estrutura administrativa e
problematização da tessitura das relações organizacional era modelada de acordo
entre Igreja e Estado, todavia, sem as com conjunturas históricas específicas. As
considerar como o espelho do contexto tramas políticas de Soares Barbosa,
geral. deram um tom específico as relações de
É válido salientar que a Igreja é poder entre Estado e Igreja na Paraíba
uma instituição heterogênea. Nessa colonial. Em meados de 1770, a referida
perspectiva, em determinados contextos capitania tinha “(...) vigario
ou conjunturas, há a possibilidade de encommendado, e da vara, por se achar
divergências de posicionamento entre removido em Pernambuco o vigario
seus membros. Soares Barbosa foi um collado (...)”. Suas intrigas tinham
religioso que aderiu aos votos de ocasionado sua retirada à Pernambuco,
pobreza, castidade, simplicidade. No como já foi aludido. Dos trinta e três anos
entanto, destoou dos preceitos católicos da administração na Paraíba de Jerónimo
e, usando de astúcia, tratou em fazer José de Melo e Castro, dezenove anos
acordos políticos, o que era foram conturbados, dada as intrigas
compreensível numa busca pela fomentadas pelo religioso. Mesmo
sobrevivência – seja de natureza física ou removido, suas tramas, articulações não
política. Assim, à influência enquanto cessaram, como é elucidativo o trecho de
membro da Igreja, acresceu sua busca uma carta escrita a 20 de setembro de
por prestígio político. 1770, ao visitador Manoel Bernardes
Autoridade religiosa, atuante no Valente, em alusão a “perseguição que foi
campo do político. Na busca pelo seu
73
vitimizado” e por isso removido de seu Costa e Lima a gama de documentos que
ministério religioso. Assim ele pede que: o dito secular arrolou e, ordenou o exame
(...) investigue os escândalos, note os de tais papéis, seu parecer sobre eles 22
OFÍCIO do
insultos, observe os costumes, inquira para que assim, deferisse seu retorno a governador da Paraíba
as maldades, ouça as mentiras, Jerónimo José de Melo
sua freguesia na Paraíba. Na malha e Castro, ao secretário
pondere as calumnias, efinalmente
documental, inventariada, havia de estado da Marinha e
veja os mexericos, mizerias,
inúmeros depoimentos de algumas Ultramar Francisco
estúrdias, intrigas, injustiças e Xavier de Mendonça
violências que perduminão nessa autoridades civis e religiosos que teceram
Furtado. 1772,
cidade digo terra, elogo conhecera, relações com ele. Relações estas fevereiro, 25, Paraíba.
que do aumento da malicia he que pessoais, políticas, jogos de influência AHU_ACL_CU_014, Cx.
nasceo aquela diferença (...)22. que se fizeram positivas ao ensejo do 24, D. 1919.

religioso, na medida em que possibilitou


Com a intenção de persuadir o seu retorno à Paraíba em 1785, através
visitador que iria analisar seu caso, em do parecer do bispo Dom Tomás da
apuração de mais informações nas Encarnação Costa e Lima.
localidades em que as intrigas se Destarte, diante de todos os fatos
efetivaram, o vigário articulou que diante mencionados, ao pautar a análise da
de todos os fatos, ele era o mais relação entre Igreja e Estado pelo prisma
capacitado para inquirir. Enfatizou ainda das tramas políticas do vigário António
que tinha pleno conhecimento que seria Soares Barbosa, problematizamos acerca
uma tarefa árdua, haja vista das duas da administração colonial,
uma ou ele portava-se a favor dele e especificamente da capitania da Paraíba,
ficava embaraçado com o governador, ou sob o governo de Jerónimo José de Melo
apoiava este, deixando-o perdido. e Castro (quando da anexação desta à
Entretanto, explicitou a sua confiança, Pernambuco), pela percepção das
para com o discorrer da investigação, no especificidades. Nessa perspectiva, a
sentido de que a prudência de Manoel investigação desse caso em particular é
Bernardes Valente em utilizar as “armas instigante, haja vista que contribuindo
da indiferença”, ou seja, da para as discussões a respeito das
imparcialidade, de sua postura imaculada relações de poder na América
conduziria a uma conclusão digna de Portuguesa, atenta para a fluidez das
aceitação e insuspeita. interações, para os contextos sociais,
Acresce a essa artimanha política, políticos e religiosos, para os interesses
o ofício de 1º de maio de 1777, enviado pessoais que condicionaram as tramas
por Soares Barbosa ao secretário da que envolveram esses dois gestores da
Marinha e Ultramar, o qual afirma que: efetivação do projeto metropolitano
(...) sendo tal o meo infortúnio, que português, que geraram conflitos e 23
OFÍCIO do
sendo axioma certo em todo o direito, desestabilidades em espaços a nordeste padre Antonio Soares
que ninguém seja condenado, sem de Barbosa ao
do Brasil colonial. Pois, no estudo desses
primeiro ser ouvido, e convencido, secretário de estado da
contra mim se praticou tanto pelo
fragmentos da história política das Marinha e Ultramar
contrario, que sem ser ouvido, nem o referidas capitanias, em sua interligação Francisco Xavier de
a El Rei, as relações de poder entre Mendonça Furtado.
meo Prelado, nem o Excelentissimo
1777, maio, 1, Olinda.
conde de VilaFlor, que então Soares Barbosa e Melo e Castro, deram
AHU_ACL_CU_015, Cx.
governava Pernambuco, se fulminou a um tom específico a possibilidade de 126, D. 9593.
sentença mais rigorosa, sem que imbricação entre os poderes religiosos e
nunca a minha innocencia fosse político/ secular.
ouvida.23

Considerações finais
Desse pedido, Martinho de Melo
Igreja e Estado eram os dois
e Castro remeteu ao atual Bispo de
pilares do projeto colonial português.
Pernambuco Dom Tomás da Encarnação
Interação que possibilitou o amálgama
74
das duas instituições. No tocante ao caso eram prioritários em relação aos
específico estudado, das interações entre eminentemente políticos da Coroa e, os
António Soares Barbosa e Jerónimo José interesses de ambos encontravam em
de Melo e Castro, tal imbricação se fez harmonia a todo custo, em todas as
através de conflito. Motivado por seus situações, assuntos. Pela instituição do
interesses, condicionado pela forma como Padroado, os assuntos de Estado diziam
compreendia o contexto social vigente, o respeito à Igreja, e vice-e-versa, não
vigário articulou tramas políticas que havendo mais rígida sua separação. Isso,
suscitou desordens em espaços a não implicava na impossibilidade de
nordeste da América Portuguesa. Das divergência de opinião, no trato de
normatizações metropolitanas a respeito questões. Os jogos de influência de
da administração colonial, das Soares Barbosa são interessantes para
transformações instituídas por Pombal, a contrariarmos essa enganosa
fluidez das relações, os contextos sociais, uniformidade. E, mais ainda se
os fatores políticos, econômicos, considerarmos o período em questão, o
religiosos, os ensejos pessoais qual as ordens da metrópole afirmavam
condicionavam sua praticidade. Através que o Estado tinha total controle para
da análise dos jogos de poder do referido com a Igreja. O dito vigário, contestou
vigário, são problematizadas as relações essa pretensa normatização, subjugação.
entre Igreja e Estado na perspectiva da Ora, do caso atípico do religioso,
percepção das particularidades, da destoante, o cuidado com a análise dos
flexibilização das ordens régias conforme manuscritos (criticidade das informações
as conjunturas, situações específicas. contidas) é fundante. Nesse sentido, a
Pensando a respeito dessa redução de escala possibilita que com um
relação entre poder religioso e secular, olhar acurado, atentemo-nos como um
Luis Palacin afirma que “O serviço de detetive, às pistas contidas nas fontes e,
Deus [estava] em primeiro lugar, mas façamos filtros dos filtros já feitos pelos
por feliz coincidência o serviço de Deus e seus produtores (GINZBURG, 1987).
o serviço do Rei, seu representante Nessa viagem a um tempo que não o
temporal, apresentam-se nosso, a atenção para com o
indissoluvelmente unidos” (PALACIN, distanciamento se faz importante.
1981, p. 269) (Grifo meu). Há que se Todavia, uma aproximação em justa
considerar que esse estudo refere-se aos medida também. Exercício complexo de
anos de 1500. Entretanto, é importante moderação, criterioso ao historiador, que
para pensarmos as mudanças da o aguçar da imaginação torna realizável.
interação entre Igreja e Estado, iniciadas Ao pesquisador, comedimento e ousadia,
por Pombal. Pois, antes de sua gestão e diálogo com seus pares e embasamento
postura quanto a esse quesito, não documental.
necessariamente, os assuntos religiosos

FONTES

 Manuscritas

OFÍCIO do governador da Paraíba Jerónimo José de Melo e Castro ao secretário de estado


da Marinha e Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1766, julho, 16, Paraíba.
AHU_ACL_CU_ 014, Cx. 23, D. 1798.

75
OFÍCIO do governador da Paraíba Jerónimo José de Melo e Castro ao secretário de estado
da Marinha e Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1768, julho, 23, Paraíba.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1840.
OFÍCIO do governador da Paraíba Jerónimo José de Melo e Castro ao secretário de estado
da Marinha e Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1768, julho, 25, Paraíba.
AHU_ACL_CU_ 014, Cx. 24, D. 1842.
CARTA do governador da Paraíba, o brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao rei D.
José I. 1770, fevereiro, 10. Paraíba. AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1873.
OFÍCIO do [governador da Paraíba], brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro. 1770, julho, 6,
Paraíba. AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1889.
OFÍCIO do governador da Paraíba Jerónimo José de Melo e Castro, ao secretário de estado
da Marinha e Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1770, outubro, 26, Paraíba.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1896.
OFÍCIO do [governador da Paraíba], brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro. 1771, março, 14,
Paraíba. AHU_ACL_CU_014, Cx. 25, D. 1905.
OFÍCIO do governador da Paraíba Jerónimo José de Melo e Castro, ao secretário de estado
da Marinha e Ultramar Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1772, fevereiro, 25, Paraíba.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 24, D. 1919.
REQUERIMENTO de Quitéria Bandeira de Melo, à rainha [D. Maria I]. [ant. 1778, maio, 22,
Paraíba]. AHU_ACL_CU_014, Cx. 26, D. 2008.
OFÍCIO do [governador da Paraíba], brigadeiro Jerónimo José de Melo e Castro, ao
[secretário de estado da Marinha e Ultramar], Martinho de Melo e Castro. 1785, maio, 6,
Paraíba. AHU_ACL_CU_014, Cx. 29, D. 2144.
OFÍCIO do padre Antonio Soares de Barbosa ao secretário de estado da Marinha e Ultramar
Francisco Xavier de Mendonça Furtado. 1777, maio, 1, Olinda. AHU_ACL_CU_015, Cx. 126,
D. 9593.
AVISO do secretário de estado da Marinha e ultramar Martinho de Melo e Castro ao bispo
de Pernambuco D. Tomás da Encarnação Costa e Lima. 1777, julho, 11, Queluz.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 127, D. 9636.

 Impressa
Idéia da população da capitania de Pernambuco, e das suas annexas, extenção de suas
costas, rios, e povoações notáveis, agricultura, numero dos engenhos, contractos, e
regimentos reaes, augmento que estes tem tido desde o anno de 1774 em que tomou
posse do governo das mesmas capitanias o governador e capitam general Jozé Cezar de
Meneses. Anais da Biblioteca Nacional. Vol. XL, 1918. Rio de Janeiro: Officinas

76
Graphicas da Biblioteca Nacional, 1923. (Publicados sob a administração do diretor geral
interino Doutor Aurelio Lopes de Souza).

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78
OS PADRES PARLAMENTARES DO success of the clergy when they 1
Doutora em

IMPÉRIO: UM FENÔMENO ENTRE began the news paces of political História pela UERJ
representation in
DOIS MUNDOS
Brazil after independence. Finally, we
Françoise Jean de Oliveira
investigated the context from which
Souza1
it is disrupting the scaffolding that for
Resumo
some decades, ensured the
O presente artigo dedica-se a
presence of clergy in the parliament.
conhecer as origens do alto desempenho
Keywords: clergy, parliamentary
eleitoral do clero nos pleitos transcorridos
elections, monarchical period
durante o Primeiro Reinado e os anos
regenciais. Analisando a maneira pela
qual foi estruturada a cristandade colonial
Ao longo da primeira metade do
brasileira e os diversos papeis assumidos
século XIX, o clero brasileiro ajudou a
pelos sacerdotes nesta sociedade,
conformar a elite dirigente do Império. A
procuramos perceber em que medida a
emergência do clero no cenário político
posse do hábito sacerdotal contribuiu
nacional, via espaços oficiais de
para o êxito eleitoral do clero quando
representação política, ocorreu,
surgiram os novos espaços de
exatamente, no período inicial de
representação política no Brasil, após a
organização do Estado imperial, primeira
independência. Finalmente, investigamos
forma do Estado brasileiro. A força
o contexto a partir do qual foi se
político-eleitoral do clero manifestou-se
desestruturando o arcabouço que, por
justamente na ocasião em que a
algumas décadas, garantiu a presença do
problemática da acumulação de poder do
clero no parlamento brasileiro.
Estado, da elaboração de suas novas
Palavras-chave: clero, eleições
estruturas e da construção da unidade
parlamentares, período monárquico
nacional mais desafiou os dirigentes do
país.
Abstract
Na primeira Câmara dos
This article is dedicated to know
Deputados, formada em 1826, os padres
the origins of the high electoral
representaram 22% dos membros
performance of the clergy in the
eleitos. Este número se repetiu na
elections passed during the First
segunda legislatura do Império,
Empire and the Regency years. Looking
transcorrida entre1830 e 1833. Já para a
at the way it was structured Brazilian
terceira legislatura, referente aos anos de
colonial Christianity and the
1834 a1837, o número de sacerdotes
various roles assumed by the priests in
eleitos deputados atingiu a marca de
this society, we realize to what
24% do total das cadeiras disponíveis na
extent the possession of the sacerdotal
Câmara, conformando, portanto, o
habit contributed to the electoral
79
período de maior participação política dos Bem diferente dos dias atuais,
presbíteros no Parlamento brasileiro. aquele era um mundo inteiramente
Ressalta-se que durante o governo das estruturado pela religião, como
regências, no qual se desenrolaram a heteronomia (FERRY & GAUCHET, 2008).
segunda e a terceira legislatura do A sua organização social e política era
Império, a representação eclesiástica no vista como resultante de um princípio
legislativo nacional, em termos exterior e anterior aos homens, isto é,
numéricos, só perdeu para outro setor um princípio transcendente. Por
burocrático do Estado, o dos magistrados conseguinte, a concepção religiosa
(CARVALHO,1981). impregnava todos os setores da vida
Este cenário político começou a pública e privada, confundindo-se com o
se transformar a partir da quarta que hoje entendemos por esfera política,
legislatura do Império (1838-1841), cultural, ética e social (NEVES, 2008).
quando a porcentagem de padres eleitos Além disto, ou, justamente por isto, de
deputados caiu para 16% do total de todos os poderes que existiram nesse
membros da Câmara, conservando, no mundo do Antigo Regime, a Igreja foi o
entanto, uma força numérica ainda único que se afirmou com bastante
relevante. No entanto, da quinta eficácia desde os âmbitos mais humildes,
legislatura em diante (1843-1844), a cotidianos e imediatos, como as famílias
presença de padres na Câmara dos e as comunidades, até ao âmbito
Deputados foi tornando-se cada vez internacional, em que convivia com os
menos significativa numérica e poderes dos reis e imperadores
qualitativamente (BRASIL,1979). Fato (HESPANHA, 2001).
similar pôde ser constatado no Senado O Brasil colonial organizou-se em
para onde 13 padres foram eleitos, entre meio a este mundo ordenado e regido por
1826 e 1841, ao passo que durante todas Deus. Deste universo mental adveio a
as demais legislaturas do Segundo cristandade colonial brasileira,
Reinado, somente 4 conseguiram caracterizada pela interpenetração
ascender a tão alto cargo político. estreita da religião com a sociedade, da
As explicações para o grande Igreja com o Estado. Nessa comunidade
desempenho eleitoral do clero brasileiro cristã, Igreja e sociedade se
não podem se limitar às análises que identificavam, não havendo
levam em conta tão somente os anos nos “autocompreensão da Igreja enquanto
quais se realizaram os primeiros pleitos Igreja, mas, sim, como uma sociedade
do Império. Ao contrário, este fenômeno global” (WERNET, 1987:19).
possui raízes mais antigas que devem ser Em função desta relação de
buscadas naquele Mundo que nós simbiose entre o campo terreno e o
perdemos, como Peter Laslett denominou espiritual, entre a atuação do Estado e da
o Antigo Regime (LASLETT, 1975). Igreja, o padre, assim que tomava o

80
hábito de Cristo, era lançado autoridade que transitava entre o poder
necessariamente ao campo da política. temporal e o espiritual.
Mais do que uma opção, o envolvimento Some-se a isto o fato de que a
do padre com a política, com as vida associativa pública e legal, durante
atividades públicas de natureza temporal, os anos de dominação colonial, existiu
foi uma consequência natural do lugar quase que unicamente sob o manto da
ocupado pela Igreja na cristandade religião. Seja dentro dos templos,
colonial. durante as missas e sermões, seja na
A atrofia da estrutura burocrático- rua, em realizações de festejos religiosos,
administrativa do Estado português na ou ainda por intermédio das confrarias e
sua colônia americana acabou fazendo irmandades, os eventos religiosos eram
com que, por vezes, a autoridade um dos raros momentos em que as
religiosa se fizesse mais presente junto à pessoas convivam com outras de fora de
população local, comparativamente à suas famílias, tornado-se alvo de
presença da autoridade civil laica. diferentes apropriações e formas de
Quando a cruz não chegava junto com o sociabilidade. Nas palavras de Dênis
poder civil, antecipava-se ao mesmo na Bernardes, era no interior da religião que
tarefa da colonização. Onde houvesse um muitos conflitos tinham lugar, “sob o
ajuntamento de pessoas, erigia-se uma manto das questões religiosas, mas
capela. Sergio da Mata, ao se debruçar encobrindo outras motivações e
sobre a história das formas mais interesses que, de alguma maneira,
elementares dos espaços urbanos no somente assim podiam expressar-se”
Brasil, concedeu destaque ao papel da (BERNARDES, 2006:126).
religião neste processo. Segundo ele, As missas, por exemplo, tinham
inúmeras foram as cidades que nasceram um significado que em muito
e se desenvolveram como expressão ultrapassavam o campo espiritual. Em
espacializada do universo religioso, visto uma sociedade cuja aptidão para ler e
que “para os nossos antepassados, o escrever era limitada a muito poucos e a
urbano e a religião são expressões de comunicação oral predominava, o pároco
uma mesma e indissociável realidade” pregador constituía o grande elo entre a
(MATA, 2002:19). Consequentemente, massa iletrada e os mundos político,
muitos sacerdotes viram-se diretamente técnico e culto (LASLETT, 1975:32). E
envolvidos no processo de ocupação do não raras foram as vezes em que os
espaço brasileiro, na conformação do sacerdotes apropriaram-se das homilias
chão de suas vilas e arraiais. E ao adequando-as às suas conveniências e
assumirem funções que extrapolavam as aspirações. Neste gênero de pregação,
tarefas de natureza religiosa, ocupando o permeado por temáticas políticas, “era
vazio de autoridade deixado pelo Estado, comum procurarem os ouvintes sentidos
os padres tornavam-se uma ambígua ocultos nas palavras do orador” (HAUCK,

81
2008:102). Ademais, é importante demandas e sentimentos que seus fiéis.
considerar que as palavras do sacerdote Consequentemente, os padres tornavam-
vinham revestidas de uma enorme se mais aptos a assumirem o papel de
autoridade. Como nos lembra Pierre porta-vozes do povo, transformando-se
Bourdieu, o poder de influência de um em líderes populares em potencial
orador encontra-se proporcionalmente (CARVALHO, 1981).
associado ao capital simbólico que este Concluí se, portanto, que o
ostenta, ou seja, ao reconhecimento, fenômeno do padre parlamentar,
institucionalizado ou não, de que ele é verificado na primeira metade do século
um porta-voz autorizado XIX, foi, em boa medida, um resquício da
(BOURDIEU,1996:59). No caso dos cristandade colonial organizada sob o
padres, suas palavras conseguiam agir manto do Antigo Regime. Neste, a
sobre os ouvintes na medida em que sua carreira sacerdotal fundia-se e confundia-
fala concentrava o capital simbólico se com a carreira política, tornando os
acumulado pelo grupo que lhe conferiu o representantes da Igreja potenciais
mandato e do qual ele era o procurador, candidatos aos cargos formais de
isto é, a Igreja. representatividade. Acrescente-se a isto o
Cabe ainda destacar que, em fato de que um dos grandes efeitos da
função da maneira precária com que foi política pombalina no Brasil foi a
conduzida a reforma tridentina no Brasil, formação de religiosos para os quais a
o catolicismo brasileiro assumiu algumas atuação pública se fizera natural, uma
feições muito particulares, afastando-se parte da vida eclesiástica (KIEMEN,
da ortodoxia religiosa. Por conseguinte, 1975). De maneira que instaurada a
grande parte dos padres descuidou-se da novidade do sistema representativo no
orientação tridentina, segundo a qual o Brasil, após 1821, a vitória eleitoral
clero deveria destacar-se em meio aos obtida pelos padres aparece como um
leigos, assumindo uma áurea de pureza e natural desdobramento da sua longa
santidade. Sustentando uma postura tradição de inserção na vida pública e
contrária, os padres do Brasil colonial civil. Esta inserção, que por muitos
pouco se distinguiram de seus fiéis, no séculos realizou-se em várias frentes,
dia a dia. Além do seu envolvimento com com a independência, ganhou um novo
as questões de natureza temporal, não lócus: o Parlamento brasileiro.
raro podiam-se ver padres sem o hábito A condição do sacerdote como um
sacerdotal, participando de festas funcionário público também foi um fator
profanas, amasiando-se e criando filhos que favoreceu, ou melhor, impeliu a sua
(AZZI, 1992). Esta proximidade dos entrada para os espaços de poder do
padres com a vida cotidiana da população Estado. Como bem mostrou José Murilo
fez com que eles acabassem de Carvalho (CARVALHO, 1982), o
compartilhando dos mesmos problemas, emprego público foi a ocupação que mais

82
favoreceu e treinou para a tarefa de das eleições no Brasil, para além da
construção do Estado brasileiro na sua questão da falta de infra-estrutura do
fase inicial. O Estado foi o maior Estado, era uma opção que levava em
empregador do tipo de gente que foi conta a força moral e espiritual que os
levada ao poder público, aos cargos valores e ritos religiosos exerciam sobre a
eletivos do legislativo ou aos cargos do sociedade católica (BASTOS,1997). Uma
executivo. Além disto, por ocasião da vez que as paróquias já eram o centro de
independência brasileira e da constituição mobilização religiosa da população, nada
das nossas primeiras instituições mais natural do que utilizá-las como
nacionais, os homens da Igreja instrumento eficaz de mobilização
conformavam o restrito círculo dos que daqueles que participariam do processo
possuíam algum tipo de formação eleitoral. No entender daquela autora,
intelectual no país. essa “utilização” do poder da Igreja no
O grande desempenho eleitoral processo eleitoral não caracterizou uma
do clero também encontra explicação no novidade política advinda da
fato de o Estado brasileiro independente independência. Ao contrário, ela
não ter podido abrir mão da estrutura demonstrava o reconhecimento, pelo
adminstrativa-burocrática, há muito novo Estado, daquilo que o velho Estado
organizada pela Igreja. Ao contrário, no colonial e metropolitano sempre
momento da implantação deste Estado, reconhecera: “a força organizadora da
houve uma dependência em relação à Igreja junto ao povo” (BASTOS,
Igreja, no tocante ao seu sistema de 1997:19).
documentação e controle de informação Antes do início propriamente dito
sobre a população local, bem como de da eleição, cabia ao pároco afixar os
sua infra-estrutura de pessoal e edifícios. editais de convocação dos votantes nas
O melhor exemplo desse fenômeno pode portas das suas igrejas. No dia marcado
ser verificado na dependência em que o para as eleições paroquiais, os cidadãos
Estado, no período inicial de sua votantes e eleitores eram reunidos na
formação, manteve dos padres para a matriz onde o pároco celebrava uma
realização dos pleitos. Com isto, ele missa e fazia uma pregação,
promoveu o envolvimento dos sacerdotes contemplando os objetivos daquela
com o processo eleitoral, naturalizando assembleia, isto é, o processo eleitoral.
ainda mais a associação entre prática Era, portanto, pelas mãos de um
religiosa e prática política, bem como sacerdote e a partir de uma celebração
fornecendo aos homens da Igreja os religiosa que se iniciava, oficialmente, o
instrumentos de controle e manipulação pleito para a escolha dos membros do
das eleições. legislativo brasileiro. Desta forma,
Segundo Bastos, a escolha da estabeleceu-se no nosso sistema eleitoral
igreja matriz como o local de realização uma espécie de “simbiose entre o

83
político-administrativo e o religioso, entre junta ficava livre para decidir conforme
o temporal e o clerical, o profano e o sua própria preferência política (GRAHAM,
sagrado” (BASTOS, 1997:19). 1997). Em função disto, a mesa eleitoral,
A participação do clero não se da qual o clero fazia parte, acabou por
limitou à abertura das eleições, tendo se tornar-se o núcleo que “determinará o
mostrado também importante na reduto das manipulações, da fraude e da
aplicação das exigências legais de violência eleitoreiras” (FAORO,
qualificação dos cidadãos votantes e 1996:367).
eleitores. Como o recém formado Estado Por conseguinte, é possível inferir
brasileiro não criara uma estrutura de que alguns sacerdotes tenham
pessoal e repartições necessárias à aproveitado de sua posição privilegiada,
verificação da situação dos eleitores e no processo eleitoral, para fraudar alguns
votantes, ele teve que lançar mão da resultados em seu favor ou em favor de
documentação e das informações algum amigo de profissão. Afinal, a
controladas pela Igreja, sobre a despeito dos valores éticos e morais que,
população local. Somente os registros teoricamente, deveriam ser guardados
religiosos que estavam sob a posse do pelos portadores do sacerdócio, foram
clero possibilitavam ao Estado obter as freqüentes as denúncias de práticas
informações que interessavam para a abusivas por parte destes. Em outras
realização das eleições, ficando a cargo palavras, muitos sacerdotes compuseram
dos párocos elaborar as listas dos o conjunto daqueles que, “com o auxílio
eleitores qualificados para votar. das autoridades, do dinheiro, da fraude (
Consequentemente, os párocos eram ...).” (SOUSA, 1979:19), ajudaram a
designados a participar das mesas construir o que Richard Graham chamou
eleitorais, esclarecendo as dúvidas de de “teatro das eleições” (GRAHAM,
inclusão ou exclusão dos votantes, 1997). A passagem do ofício de um
atuando como árbitro nas contendas das ministro do Império ao presidente da
apurações e, consequentemente, província da Paraíba, em 6 de março de
assumindo um papel definidor dos 1837, ilustra bem esse fenômeno:
resultados eleitorais. Tendo chegado ao
conhecimento do regente
Ao presidir a junta de qualificação
que (...) miseráveis
dos votantes, os padres tornavam-se a ambiciosos de um partido
(...) induziram os párocos
chave da eleição. Como a lei não
a apresentarem listas
especificava quais documentos falsas de seus
paroquianos, introduzindo
comprovariam se um eleitor tinha ou não
nelas nomes de indivíduos
as qualificações requisitadas, em caso de supostos, com a promessa
de serem os mesmos
contestações, a junta recorria às
párocos atendidos e
declarações juramentadas de contemplados nas votações
(....), e sendo constante a
testemunhas. Mantendo-se a dúvida, a
falsidade com que os ditos
84
párocos na apresentação políticas, o correspondente a 72% do seu
de suas listas atestaram
total, desempenharam outras atividades
indignamente o aumento
da população em suas de caráter econômico e intelectual,
respectivas paróquias no
mantendo, muitas vezes, uma tripla ou,
curto espaço de um ano
(Citado por BASTOS, até mesmo, quádrupla ocupação,
1997:48).
algumas de maneira intermitente. Estes
Outro importante aspecto a ser dados são reveladores na medida em que
considerado a fim de se compreender o ajudam a entender as razões pelas quais
somatório de fatores que deram aos o clero permaneceu politicamente
padres as condições necessárias para influente, e ajudam a explicar como
serem amplamente eleitos, diz respeito à muitos padres conseguiram se enquadrar
múltipla atuação profissional acumulada dentro dos critérios censitários
por estes. Afinal, além de se ocuparem estabelecidos em lei para a definição dos
do múnus sacerdotal, 61 batinas votantes e dos eleitores.

Gráfico 3 – Outras atividades desempenhadas pelos padres parlamentares.

Ocupação não
existente ou
não
identificada: 24
Professores: 38
Minerador: 1
Industrial: 1
Empregados
Públicos (de
natureza laica):
18

Redators/Edito
Magistrados: 5 res de
periódicos: 21
Fazendeiros:16 Comerciante: 1
Advogados: 7

Segundo a legislação eleitoral do senadores e membros dos Conselhos das


Império, vigente durante a primeira Províncias era preciso a renda anual de
metade do século XIX, poderiam votar 200 mil réis. Já para poder ser eleito
nas assembléias paroquiais aqueles que deputado a renda necessária subia para
possuíssem renda líquida anual superior a 400 mil réis. Por fim, para ser senador,
100 mil-réis. Para ser eleitor e poder exigia-se a renda de 800 mil réis anuais.
votar nas eleições dos deputados, Quanto ao valor das côngruas

85
recebidas pelo clero sabe-se que estas através de uma discussão instaurada, na
oscilaram muito, conforme a região onde Câmara dos Deputados, durante uma
paróquia se encontrava, como explicou o sessão preparatória do ano de 1830.
arcebispo da Bahia, d. Romualdo Antônio Naquela ocasião, os deputados
de Seixas, em um discurso no mostraram-se em dúvida quanto a
Parlamento: validade da eleição do padre Venâncio
(......) enquanto os [padres] do Pará, Henrique de Resende, visto que este não
Minas, São Paulo e não sei mais
algum bispado, percebem a côngrua havia comprovado a posse da renda de
de duzentos mil réis, os da Bahia,
400$ anuais, como exigia a lei. Durante
apesar de ser a Igreja metropolitana e
a segunda província do Brasil, os debates, o padre Francisco de Paula
conservam ainda as antigas côngruas
de cinquenta¸ oitenta e cem mil réis Barros alegou ser fácil comprovar que o
(...)”2.
padre Henrique de Resende estava de 2
BRASIL. Anais
Quanto aos componentes do posse daquela renda, lembrando que o da Câmara dos
Deputados. Sessão de
corpo capitular, as prebendas variavam mesmo a completava através de 15 de junho de 1827.
Brasília: Câmara dos
muito. Um tesoureiro na província inúmeras outras funções que lhe rendiam Deputados. p. 65-66.
eclesiástica da Bahia, por exemplo, emolumentos. E concluiu dizendo que, no Disponível em:
<http://www.camara.g
ganhava cerca 224 mil réis. Já o Deão, tempo em que ele próprio exercia ov.br>.

primeira dignidade do cabido, poderia aquelas funções do sacerdócio, sempre


ganhar 600 mil réis anuais. O Arcebispo ganhou 600$, “e por consequência não
primaz do Brasil, por sua vez, recebeu 2 pode haver dúvida, que qualquer
3
contos e 680 mil réis em 1835. Os sacerdote ganhe 400$” . Em igual sentido
religiosos completavam suas rendas falou o deputado Martim Francisco, em
cobrando taxas no exercício do defesa de Henrique de Resende:
ministério, como as conhecenças e pé- “Pergunto: em Pernambuco teria 400$ de
3
BRASIL. Anais
de-altar. Em muitos casos, a côngrua renda esse sacerdote? É inegável que da Câmara dos
medíocre poderia ser compensada pela sim. Em uma cidade populosa como Deputados. Sessão de
27 de abril de 1830. p.
posse de uma boa paróquia, conformada aquela não há homem decente que possa 22

por uma mais abastada e numerosa viver por menos.”4


população cuja frequência na realização Todavia, a realidade de Henrique
de casamentos, missas e batizados fosse de Resende, que tal como lembrado pelos
grande (MATTOSO, 1992). deputados, tinha uma paróquia na capital 4
BRASIL. Anais
Os valores acima apresentados da província pernambucana, o que da Câmara dos
Deputados. Sessão de
permitem concluir que muitos sacerdotes, aumentava a sua chance de ganhar mais 27 de abril de 1830. p.
22
sobretudo os que pastoreavam nas com emolumentos, não foi compartilhada
regiões mais distantes, não se tornariam por todos os padres parlamentares. A
elegíveis caso vivessem, exclusivamente, prova disto encontra-se na grande
das côngruas pagas pelo Estado. Um caso quantidade de pedidos de aumento de
exemplar da controversa aptidão côngrua por parte dos sacerdotes.
financeira do clero pode ser analisado Solicitações desta natureza avultam nos

86
arquivos da Mesa da Consciência e municipalidades. Aquele deputado saiu
Ordens, o que nos permite deduzir que a em defesa da dupla ocupação do clero,
posse de outra ocupação paralela, ou de lembrando o quão dependente estava a
propriedades herdadas da família foram educação das “luzes” sacerdotais:
importante para a qualificação dos padres Os senhores eclesiásticos são as
pessoas mais dignas, de mais respeito
como eleitores. Todavia, para além da e de mais instrução que existem em
quase todas as províncias do Brasil, e
questão financeira, o envolvimento do
por isso, não havemos de querer que
clero com outras atividades favoreceu a os povos sejam privados de
transcendentes luzes dos senhores
sua eleição na medida em que muitas eclesiásticos; eles são aqueles que
dirigem a maior parte dos negócios no
delas reforçaram o capital simbólico do interior do Império, eles formam o
sacerdote, garantindo-lhe mais influência maior número das pessoas letradas e
em conclusão, todos aqueles que não
e autoridade junto à sociedade. pertencem à classe da magistratura
são quase sempre dirigidos pelos
Refletindo a permanência de votos dos senhores eclesiásticos;
alguns valores típicos do Antigo Regime, podem dizer que eles são o depósito
das ciências na maior parte do
onde a educação era vista sob a ótica da império e o seu voto é ordinariamente
decisivo. Esta reflexão é de muita 5
BRASIL. Anais
transcendência, como uma atividade de importância.
5
da Câmara dos
padres e, não, de intelectuais foi no Deputados. Sessão 18
de junho de 1828. p.
magistério que 29% dos sacerdotes do A atuação de alguns religiosos na
50.
Império vislumbraram uma maneira de educação foi tão destacada que merece
sobreviver em condições mais dignas. aqui, uma análise mais pormenorizada.
Entre os padres parlamentares Este destaque se deu em função da
encontraram-se toda a sorte de situações dedicação demonstrada por alguns
relacionadas à educação: professores presbíteros em introduzir o ensino nos
régios e particulares (em geral, lentes de mais distantes rincões do país,
retórica, de gramática latina, de filosofia colocando-os entre os pioneiros da causa
racional e moral e de teologia), diretores da educação no Brasil.
da instrução pública, visitadores do O zelo do padre deputado Marcos
ensino primário, diretores de liceus, de Araújo Costa pela difusão do ensino
reitores de seminário e até proprietários no Piauí valeu-lhe, por exemplo, um lugar
de escolas particulares, o que bem no Dicionário de Educadores do Brasil
demonstra como a educação brasileira (FERRO, 2002). Nesta obra, o sacerdote
permanecia sob a influência do é apresentado como um presbítero
catolicismo e na dependência dos homens virtuoso e caracterizado por uma grande
da Igreja. Bem ilustrativo do papel do disposição de ajudar os mais
clero na educação foi o discurso proferido necessitados, já que assumia “como
pelo deputado Cunha Matos quando se próprias”, as necessidades e solicitações
discutiu na Câmara se os eclesiásticos tanto do governo civil, eclesiástico ou das
poderiam acumular o múnus sacerdotal demandas da população (FERRO, 2002).
com outros cargos públicos nas Diante da inexistência da instrução

87
pública na província piauiense, ele fundou toda a região do Seridó. De longe
vinham rapazes em procura do padre,
e manteve por 30 anos, em sua fazenda que ensinava gratuitamente e
hospedava os alunos pobres. A
Boa Esperança, situada em Jaicó, uma
pequenez do instituto não diminui a
escola em regime de internato para projeção fantástica, com elemento
precípuo da formação mental de
garotos – sobretudo os filhos dos colonos muitas gerações. (MELQUÍADES,
1987:46).
– que, mantidos às próprias expensas do
padre, recebiam todos os serviços
Nem mesmo a educação na
educacionais e até alimentação.
capital do Império deixou de se colocar
Outro padre-mestre de destaque
sob o campo de influência de padres
foi João de Santa Bárbara, um dos
políticos, como José Antônio Marinho.
primeiros professores públicos do Rio
Após ter sido professor do Seminário do
Grande do Sul. Nesta província, a
Caraça e lecionado filosofia em
instrução pública teve início em 1820,
Congonhas, Ouro Preto e São João Del
com a nomeação de seus primeiros
Rei, este sacerdote mineiro fundou, no
professores régios, dentre os quais João
Rio de Janeiro, o Colégio Marinho,
de Santa Bárbara, que recebia como
instituição de ensino que gozou de
proventos 300 réis anuais (BASTOS,
grande prestígio na Corte. Voltado para a
2006). Foi este sacerdote quem se
formação secundária de jovens do sexo
responsabilizou por estabelecer a
masculino, este colégio, embora de
primeira aula pública de matemática,
natureza privada, reservava uma quarta
geometria e rudimentos gerais de
parte de suas vagas aos meninos pobres
engenharia, em Porto Alegre. Não por
“a quem gratuitamente ministrava
acaso, quando d. Pedro II esteve naquela
ensino, casa e alimento, no pé da mais
cidade pela primeira vez, “ouviu, em sua
perfeita igualdade com os filhos das
própria casa, uma aula de Santa Bárbara
famílias opulentas” (VALADÃO,
que, dias antes, do púlpito saudara.
1951:199). Com efeito, na ocasião do
Impressionou-se o imperante ilustre pela
falecimento de padre Marinho, em 1853,
elevação do mestre, insigne em várias
a imprensa carioca não deixou de louvar
gerações riograndenses e por decreto
o pároco como sendo o “instituidor do
(....) conferiu-lhe as insígnias de
mais vasto e afamado dos
cavalheiro da Ordem de cristo”
estabelecimentos de ensino existentes”
(CAVALCANTI, 1935:532).
(VALADÃO, 1951:201).
Já a destacada atuação do padre
Casos como os citados são
e senador Brito Guerra, fundador de uma
inúmeros entre os padres políticos, sendo
escola de latim em Caicó, Ceará, que
impossível resgatá-los todos aqui. De
permaneceu ativa por cerca de 50 anos,
qualquer modo, é possível inferir que o
mereceu de Câmara Cascudo o seguinte
ofício de professor foi um dos fatores
relato:
responsáveis pela alta elegibilidade do
A escola do padre Guerra foi o núcleo
irradiante de sabedoria sertaneja, em clero. Primeiro, porque a atuação no
88
magistério acabava por assumir uma práticas modernas de atuação política
dimensão filantrópica na medida em que também lhes ajudou na obtenção de
muitos padres atendiam, em maior ou cargos eletivos. Muitos foram os padres
menor grau, a estudantes carentes. E, que, por exemplo, ganharam notoriedade
como bem mostrou Marco Morel, a em função de sua atuação à frente de
filantropia foi uma maneira eficaz de criar periódicos e publicações impressas, seja
redes de poder e laços de clientela como editores, redatores ou
(MOREL, 2005). Aliás, a pedagogia em si colaboradores eventuais. Isabel Lustosa,
já compartilhava de um terreno comum em estudo acerca da imprensa brasileira
com a beneficência: “levar as luzes do no início do XIX, percebeu a presença
saber para os que não possuíssem, constante de padres na redação de
retomando, pela instrução, a jornais. Analisando, por exemplo, a
incorporação de setores da população aos redação do jornal Gazeta do Rio de
costumes, ideias e ao progresso Janeiro, editada por funcionários públicos
civilizatório, bem como formação de mão e sacerdotes, a autora afirma que esta
de obra” (MOREL, 2005:222). Assim, os era “uma mistura de redação
padres educadores que se encontravam propriamente dita com repartição pública
bem mais próximos da população local, e claustro” (LUSTOSA, 2000:71). A
acabavam ganhando a admiração e a publicação periódica, aliás, acabou por
gratidão pela dedicação à causa da configurar-se como uma extensão das
educação dos excluídos, o que, atividades parlamentares dos padres na
consequentemente, garantia-lhes mais medida em que a imprensa tornou-se um
votos. Por fim, não se pode omitir o fato foro alternativo para a tribuna, onde se
de que o papel de mestre, detentor e diziam coisas que não se ousavam dizer
difusor do saber, conferia poderes aos na Câmara ou no Senado
padres educadores. Afinal, como bem (CARVALHO,1981:44), além de traduzir
lembra Focault, o saber e o poder para um público leitor mais amplo o que
possuem implicações mútuas. Não existe ocorria em ambientes restritos, como o
relação de poder sem constituição de um da Assembleia Geral. Como bem
campo de saber, como também, destacou Morel, os homens de letras
reciprocamente, todo saber constitui eram, com frequência, homens públicos,
novas relações de poder (FOUCAULT, isto é, seguiram carreira política. Tal
1979). imbricação de atividades, caracterizada
Se, por um lado, a expressiva pelo binômio, homens de letras, homens
eleição dos padres foi favorecida pela públicos, fez-se também presente entre
permanência de valores típicos do Antigo os 16% dos padres políticos que se
Regime, como a vinculação da educação dedicaram à imprensa (MOREL, 2005).
com o sacerdócio, por outro lado, o Com efeito, muitos sacerdotes
envolvimento dos sacerdotes com foram atores importantes no processo

89
inicial de conformação e divulgação da tipografia, procurou-o pedindo ajuda.
imprensa, no Brasil, fazendo parte da Segundo alguns relatos da época, padre
primeira geração de jornalistas Antônio treinou dois seminaristas que
brasileiros, surgida a partir de 1820, com mais tarde foram ordenados padres e
a promulgação das leis de liberdade de também se tornaram os primeiros
imprensa. Consequentemente, estes redatores oficiais da província do Piauí
padres contribuíram para a emergência (CHAVES, 1998).
de espaços públicos de crítica, típicos das No Rio Grande do Norte, a
sociedades modernas. Nestes espaços chegada da imprensa foi creditada ao
consolidaram-se debates por meio da padre Francisco de Brito Guerra,
imprensa e ganharam importância as responsável pela publicação de O
leituras privadas e individuais que, num Natalense (1832-1837), primeiro jornal
somatório de opiniões fundadas sobre o da província. Este jornal foi publicado,
julgamento crítico de cada leitor, inicialmente, no Maranhão, em seguida
instauraram a chamada opinião pública no Ceará e, por fim, em Pernambuco, em
(MOREL, 2005). vista da inexistência de tipografia em
Não foram poucos os padres Natal (QUINTAS, 2004). Já o padre Luiz
responsáveis por levar a imprensa – e Gonzaga de Camargo Fleuri destacou-se
tudo o mais que ela representava e trazia no cenário de Goiás como o redator chefe
consigo - às regiões mais distantes das do primeiro jornal da província o A
províncias brasileiras. Foi o que ocorreu, Matutina Meiapontense (1830-1834),
por exemplo, com o padre Antônio publicada no arraial de Meia Ponte, atual
Fernandes da Silveira. Proprietário da Pirenópolis (BORGES,1984).
Tipografia Silveira – a primeira da Alguns sacerdotes conseguiram,
Província do Sergipe - este sacerdote foi graças à palavra impressa, extrapolar o
considerado o fundador da imprensa campo de influência provincial,
sergipana, tendo publicado o assumindo em âmbito nacional
Recompilador Sergipano, em 1832, na importante espaço na arena dos
vila de Estância (QUINTAS, 2004). Em “gladiadores peridioqueiros” (FELDMAN,
seguida, publicou uma série de outros 2006). Foi o caso, por exemplo, de
jornais, tendo colaborado, intimamente, Miguel do Sacramento Lopes Gama,
para a implantação da imprensa, no responsável pela publicação de O
Piauí. Em 1832, por iniciativa do poder Carapuçeiro, periódico que circulou em
público, surgiu naquela província, o Pernambuco, entre 1832 e 1842, e tido
periódico O Piauiense, que se encontrava como um “sucesso de público durante o
sob a direção de Manoel de Sousa período regencial” (FELDMAN, 2006:1).
Martins. Este, após saber que o Padre Graças à sua “fábrica de carapuças”, na
Antônio Fernandes da Silveira era qual se utilizava largamente do humor e
tipógrafo e possuía uma máquina de da sátira, o jornal de Lopes Gama

90
exerceu grande influência nos espaços periódicos que tratavam dos assuntos os
públicos de discussão política de mais diversos. A maioria dos jornais era
Pernambuco, influência esta que, de caráter político, ou seja, destinava-se
segundo Evaldo Cabral de Melo, até então primordialmente à discussão e à defesa
só Frei Caneca gozara naquelas terras das propostas políticas de seus editores.
(MELO, 1996). Com efeito, O Carapuçeiro No entanto, filiavam-se às mais
foi alvo de comentários em inúmeros diferentes identidades políticas. Padre
jornais brasileiros, e Lopes Gama gozou Marcelino Pinto Ribeiro Duarte, por
de notoriedade no Rio de Janeiro, onde exemplo, defendia os interesses
6
foi saudado como “o nosso la Bruyère” , vinculados ao grupo dos Liberais 6
Ensaísta e
tendo sido lido e reconhecido até em Exaltados, através do periódico O moralista francês,
vivido entre 1645 e
Portugal. Exaltado (1831-1835) (BASILE, 2000). 1696.

Tal como o padre Carapuçeiro, Em outro campo político encontrava-se o


Januário da Cunha Barbosa foi um dos padre de tendência conservadora,
padres que mais contribuíram para a Francisco Ferreira Barreto, que expunha
criação do jornalismo político no Brasil. suas ideias de centralismo monárquico
Sua atuação no campo da imprensa é por por meio dos jornais O Cruzeiro(1829-
demais conhecida e dispensa maiores 1831) e Amigo do Povo (1829-1830)
apresentações. Juntamente com Joaquim (MELQUIADES, 1987). Representando a
Gonçalves Ledo, editou o Revérbero ideia do “justo meio”, tão bem quista
Constitucional Fluminense (15 de pelos Liberais moderados, esteve, por
setembro de 1821 a 8 de outubro de exemplo, o Recompilador Mineiro (1833-
1822), o primeiro jornal politicamente 1836), escrito pelos padres mineiros João
independente que se publicou na Corte e Dias de Quadros Aranha e José Bento
que teve papel decisivo no processo de Leite Ferreira de Melo (SOUZA, 2007).
oficialização da independência brasileira Além dos periódicos de natureza
(LUSTOSA, 2000). Após retornar do exílio notadamente política, os padres
a ele imposto por d. Pedro I, Cunha dedicaram-se, ainda que em menor grau,
Barbosa colaborou, ainda, com escritos a publicações de outro caráter, tais como
em jornais de naturezas diversas, tais o científico Jornal da Sociedade de
como os oficiais Diário do Governo e Agricultura, Comércio e Indústria da
Correio Oficial, a satírica A Mutuca Província da Bahia (1833-1836), redigido
Picante (1834) e o científico e literário por Francisco Agostinho Gomes e, como
Minerva Brasiliense (1843-1845), além não poderia deixar de constar, os
dos institucionais Auxiliador da Indústria religiosos, como o Noticiador Católico
Nacional e a Revista do IHGB. (1848-1863), publicado sob a batuta de
Assim como Padre Januário, a Romualdo Antônio de Seixas, desejoso de
maior parte dos padres políticos que se que “o evangelho fosse pregado sobre os
dedicou à imprensa publicou dois ou mais telhados” (CASTRO, 2001:51).

91
O envolvimento dos padres com a interagiam com o mundo secular.
imprensa periódica não se limitou à Ademais, é preciso lembrar que todas as
publicação da mesma. Alguns sacerdotes relações de comunicação são, por
também se mostraram implicados com a excelência, relações de poder simbólico,
divulgação e promoção deste tipo de onde se atualizam, constantemente, as
leitura, bem como com a facilitação do relações de força entre os diversos
acesso ao conteúdo dos jornais, visto que locutores (BORDIEU, 1996). Portanto,
no Brasil oitocentista ainda persistia a parece-nos clara a inter-relação
prática das leituras coletivas, em função estabelecida entre a atuação jornalística
do pouco letramento da sociedade. do clero e a sua expressividade eleitoral.
Cuidando para que a pouca instrução ou Confirmam esta hipótese as palavras de
falta de verbas para comprar jornais não Morel, para quem a redação de um jornal
inviabilizasse o surgimento de uma foi uma das maneiras de ascensão a um
verdadeira opinião pública, o padre e cargo eletivo, já que a atividade da
deputado Antônio José Ribeiro Bhering, imprensa aparecia como estreitamente
que também era redator, não se fez de ligada à vida parlamentar, “revelando
rogado e mandou publicar no jornal O cruzamento expressivo entre
Universal o seguinte aviso: “Aviso. Em parlamentares e agentes culturais”
um gabinete de leitura estabelecido na (MOREL, 2005:190).
Casa do R. Padre Antônio José Ribeiro Uma vez que a elite intelectual
Bhering, se acham francos os periódicos brasileira em grande parte se confundiu
de S. Paulo, Rio de Janeiro e Minas para com os professores e jornalistas do
quem os quiser ler gratuitamente” Império e tendo em vista que um bom
(SILVA, 2002:122). número de batinas atuou na educação e
O significativo envolvimento com na imprensa, ou, mesmo nas duas
atividade da imprensa colocou os padres atividades, simultaneamente, não seria
em lugar de evidência e visibilidade em equivocado afirmar que muitos padres
suas localidades. Primeiro, porque, como compuseram uma parte desta elite de
homens de imprensa, eles assumiram a ilustrados. Reforça esta constatação, a
função de levar a modernidade às regiões identificação de 36 padres políticos, 42%
mais distantes do Império, colocando-os do total, como possuidores de diferentes
em contato com as notícias e debates formas de publicação não periódica
ocorridos na Corte, nos principais centros (livros, brochuras etc) o que reflete a
urbanos do país e até do mundo. proximidade e o apego das batinas
Segundo, porque, através dos discursos políticas para com a cultural letrada.
impressos, os padres reforçavam sua Estas publicações, por sua vez, tratavam
participação política por meios outros que dos mais diferentes temas, como:
não somente os espaços oficiais de poesias, filosofia, história, relatos de
poder, ampliando o modo pelo qual viagem, peças teatrais, traduções,

92
discursos, direito eclesiástico, poeta espírito-santense” (CLAUDIO,
compêndios de teologia, de história 2007). No tocante aos textos de história,
natural, de gramática portuguesa, a Igreja forneceu importantes estudiosos
havendo, naturalmente, um predomínio como, por exemplo, o padre José Antônio
dos textos religiosos, quais sejam, Marinho que, em 1844, publicou a
orações, sermões e pastorais. “História do Movimento Político que no
Ao longo dos anos coloniais - ano de 1842 teve lugar na Província de
período no qual muitos padres políticos Minas Gerais” (MARINHO, 1997), obra
iniciaram sua produção bibliográfica - as fundamental para os que estudam os
obras religiosas figuraram com destaque movimentos sediciosos do Império.
nas bibliotecas particulares (ALGRANTI, Também destacada foram as publicações
2004). É fato que com o crescimento das de Francisco Muniz Tavares, autor de
ideias modernas e de uma cultura mais “História da Revolução de Pernambuco
secularizada, em meados do século XIX, em 1817” (TAVARES, 1917),
as leituras foram, de certa forma, originalmente publicada em 1840 e tida
laicizadas, diminuindo a importância e a como uma das principais fontes para o
frequência com que se recorria a textos estudo das raízes do pensamento liberal
religiosos. Estes, contudo, estiveram brasileiro” e do monsenhor Pizarro, autor
longe de desaparecer. As obras de “Memórias Históricas do Rio de
religiosas, de modo geral, destinavam-se Janeiro” (ARAÚJO, 1945), publicadas pela
a todos os católicos desejosos de Impressão Régia, em 1820. No campo da
“exercitar a alma no caminho da filosofia, Feijó aparece como o primeiro
perfeição” (ALGRANTI, 2004:209). brasileiro a aceitar e divulgar, através de
Escritos de maneira mais ou menos seus “Cadernos de Filosofia”, as
elaborada, elas visavam a um público inovações do pensamento kantiano
amplo e menos erudito, o que permite (REALE, 1967). Para a teoria política,
inferir que a influência intelectual dos foram muitas as contribuições dos
padres não se restringia a uma elite religiosos com suas traduções de textos
culta, até porque é sabido que as leituras europeus como o fez, por exemplo, Lopes
não se limitavam aos letrados, mas Gama com “Refutação completa da
atingia as camadas populares por meio pestilencial doutrina do interesse,
de leituras orais e coletivas. propalada por Hobbes, Hobac, Helvécio,
Além da produção religiosa, os Diderot, J. Bentham e outros filósofos
padres ora estudados destacaram-se sensualistas e materialistas, ou
intelectualmente em outros ramos do introdução aos princípios do Direito
saber. No campo das artes, Marcelino Político de Honório Torombert” (BLAKE,
Pinto Ribeiro Duarte, autor de diversas 1898). Do mesmo modo, os padres
peças teatrais e de inúmeras poesias, foi contribuíram para a divulgação de obras
considerado “o primeiro e mais notável estrangeiras, realizando várias traduções,

93
tal como as “Memórias sobre o Brazil A vida deste famigerado Baiano foi
consumida no ler e estudar; desde a
para servir de guia àqueles que nele se aurora até o inverno de seus dias não
conheceu, não ateou outra paixão,
desejam estabelecer, por o cavalleiro G.
que não fosse a de s’instruir, a
de Langsdorff”, traduzida por Antônio d’aprender e a de propagar por entre
seus compatriotas as luzes, que 7
Biblioteca
Marques Sampaio, em 1822 (BLAKE, hauria ele em todas as Províncias do Nacioanl, Obras Raras,
conhecimentos humanos7. Loc. – 39, 2, 28.
1883). Incomparável, porém, foi o papel
das batinas na elaboração de compêndios
O envolvimento dos padres com o
escolares de gramática, latim e,
mundo das letras, em meio ao ainda
sobretudo, de teologia moral, como, por
acanhado panorama intelectual brasileiro,
exemplo, o "Compêndio de Teologia
embora não tenha promovido o aumento
Moral para o Uso dos Seminários de
de suas rendas, permitiu-lhes acumular
Olinda, em Pernambuco” (BLAKE, 1900),
um capital simbólico que os favorecia nas
de 1837, do bispo Manoel do Monte
disputas eleitorais.
Rodrigues de Araújo.
Letras, imprensa e magistério, eis
Alguns sacerdotes conseguiram
a tríade que fez do clero um componente
associar tão intimamente sua imagem à
marcante da intelectualidade oitocentista
da ilustração que obtiveram uma fama
e que lhe garantiu prestígio e influência
capaz de transpor os limites provinciais,
política junto ao eleitorado brasileiro. Em
correndo ao longe. Foi o caso, por
meio a um mar de analfabetos, o
exemplo, do baiano Francisco Agostinho
conhecimento ostentado pelo clero e
Gomes. Rico comerciante, proprietário de
manifestado na sala de aula, na imprensa
terras e possuidor da maior biblioteca
e nas publicações em geral, foi um
particular do Brasil, ele era tido como “o
importantíssimo aliado na busca pela
espírito mais iluminado da cidade pelo
construção de suas carreiras políticas,
saber, cientista de renome, conhecedor
assim como de divulgação de suas
profundo do inglês e do francês, e que,
propostas para o Estado e a Igreja
possuidor de vasta biblioteca, era um
brasileira.
ledor infatigável e a par de todo
Além das atividades de natureza
movimento científico do mundo” (RUY,
intelectual, é fundamental considerar
1970:55). A verdadeira dimensão de sua
também o papel determinante da posse
fama de homem culto pode ser medida,
de terras na trajetória político-eleitoral de
por exemplo, pelo discurso pronunciado
16 sacerdotes fazendeiros que
pelo orador da Sociedade Filosófica, por
conformavam 18% das batinas políticas.
ocasião de seu falecimento:
Nestes casos, os padres tornaram-se
Se nascido fora este grande homem
na Europa excitaria um entusiasmo chefes políticos por também deterem os
como no principio do 16° século meios necessários às trocas de favores e
produziu Erasmo; um fanatismo como
o que a Alemanha estudiosa nutriu às barganhas eleitorais. O caso mais
para com Goethe; mas quantos bons,
e raros engenhos, quantas naturezas conhecido de uma batina que ganhou
sublimes por entre nos não tem
ascendência política, graças à estrutura
decepado o desfavor, ou indiferença..!
94
patriarcal criada em torno de si, e eram ocupadas e concentradas nas mãos
responsável pela manipulação das de famílias extensas. Assim, para os
engrenagens eleitorais, foi o do Senador padres políticos fazendeiros, política e
José Martiniano de Alencar. Este foi Filho negócios agrícolas constituíam duas faces
de uma das mais tradicionais famílias da mesma moeda, já que os interesses
cearenses, proprietária de grandes financeiros ajudaram a conformar suas
extensões de terras, e em torno da qual identidades políticas.
gravitaram, por muito tempo, as Quanto aos muitos padres que
principais lideranças políticas daquela ocuparam outros cargos no serviço
província (PAIVA, 1979). público que não o específico do
Importante demarcar que a sacerdócio (professores públicos,
atividade agrícola, desempenhada pelos diretores de instrução pública,
padres, realizava-se numa relação de bibliotecários, secretários de governos
complementaridade com suas atividades provinciais, diretores gerais dos índios,
políticas. A relação entre as duas era de inspetor de fazenda, escrivães etc), cabe
circularidade: a posse da terra ajudava uma breve observação. Mais do que a
na vitória eleitoral e esta, por sua vez, garantia de rendas maiores, necessárias
favorecia os interesses da agricultura na àqueles que pleiteavam cargos eletivos, a
medida em que estes eram posse de cargos públicos demonstra
representados no Parlamento pelos como os padres encontravam-se
padres. É imprescindível, portanto, envolvidos com a política de
considerar as redes sociais às quais os reciprocidades de favores, estabelecida
padres agricultores estiveram envolvidos, pelo Estado e, consequentemente,
para que se possa compreender tanto a adaptados à lógica patrimonialista das
sua capacidade de elegibilidade, quanto estruturas políticas, posto que os
os rumos políticos que tomaram. Alcir empregos eram conseguidos por meio do
Lenharo, por exemplo, ao analisar o prestígio e do apadrinhamento. Para
grupo de fazendeiros do sul de minas, obtê-los era preciso, além do mérito
liderado pelos padres Senadores José intelectual do qual os padres políticos
Custódio Dias e José Bento Leite Ferreira gozavam, integrar uma ampla rede de
de Melo, concluiu que os mesmos eram relacionamentos capaz de influir junto às
“políticos porque proprietários”, sendo autoridades regionais e nacionais. Não se
que “somente através da garantia ou pode esquecer também que, estando
expansão de suas propriedades é que dentro da máquina pública, os padres
poderiam dar continuidades à atividade conseguiam utilizá-la em seu favor nos
política” (LENHARO, 1979:100). Por trás processos eleitorais, reforçando sua
da projeção política desses dois padres, capacidade de elegibilidade.
Lenharo identificou toda uma estrutura Finalmente, é importante
de poder ligada ao modo como as terras considerar que a “palavra autorizada” do

95
sacerdote ganhava proeminência não só começaria a se realizar. Isto porque a
sobre os fiéis menos providos de força eleitoral do clero estava fadada a
letramento e carentes de liderança, como enfraquecer na segunda metade do
também sobre a própria classe política. século XIX. Uma vez que boa parte
Isso se dava principalmente quando esta daquele fenômeno lançava raízes na
palavra vinha revestida da autoridade sociedade do Antigo Regime, à medida
episcopal, não poupando nem mesmo um que o Estado brasileiro foi buscando se
dos mais cultos e liberais deputados, estruturar e racionalizar o poder civil,
como Evaristo da Veiga. Sabedor desta superando os resquícios do regime
influência e tomando-a por negativa para passado, desmontava-se também o
a política brasileira, o deputado Alves arcabouço que sustentava a elegibilidade
Machado defendeu no Parlamento o fim do clero. Ou seja, superada a fase inicial
da presença de funcionários públicos em de acumulação do poder do Estado, a
cargos do legislativo. Dirigindo-se a figura do padre, como um elemento de
Evaristo da Veiga, de quem discordava ligação entre O mundo que nós perdemos
naquele assunto, Alves Machado procurou e o novo mundo que se queria forjar,
demonstrar as razões pelas quais aquele fundado em bases mais modernas, já não
deputado deveria concordar com sua era mais imprescindível. Os próprios
proposta: padres parlamentares (mas, não todos)
O nobre orador tinha mais uma razão colaboraram de alguma forma para isto,
prática para isto: era membro do
conselho geral de sua província, o seu uma vez que, no poder legislativo,
bispo também o era, e sempre que
defenderam uma maior definição das
tinha de votar contra as opiniões ou
interesses do seu bispo sentia algum jurisdições temporais e espirituais no
vexame, não sabia que força o
impedia a votar, era como algum pejo Brasil. Aliás, a necessidade premente de
que o fazia, e inclinava-se a dar-lhe
satisfações, e se isto acontecia-lhe
desenredar o Estado brasileiro das
para com o seu bispo, o que não antigas estruturas da Igreja, tornando-o
acontecerá aos padres aos quais
sempre abundam nos conselhos mais laico e moderno, foi uma questão
gerais? (...) propôs-se no conselho
geral de são Paulo que tomasse conta muito debatida no Parlamento ao longo
aos bens dos frades, logo o bispo, das primeiras legislaturas do Império9.
como era de esperar, opôs-se a isto
(...) na ocasião da votação, quase Assim, quanto mais o Estado afirmava a
todos os padres puseram-se para o
lado do bispos (...) é mister dizer que sua autonomia política e jurídica, quanto
nas províncias um bispo, um mais ele elaborava estruturas
desembargador faz mais figura, tem
mais categoria que um membro da administrativas próprias, mais ele impelia
regência aqui no Rio de Janeiro, e
bem será que fossem afastados das o clero a se afastar dos espaços formais 8
BRASIL. Anais
assembleias provinciais. 8 de atuação política. da Câmara dos
Deputados. Sessão 9 de
Em meio a este processo, e julho de 1834.. p. 54.
O revelador discurso de Alves
mesmo em função dele, foi ocorrendo
Machado foi proferido em 1834. Talvez
uma transformação no perfil da elite
ele não imaginasse naquela ocasião que,
dirigente brasileira, ao longo da segunda
muito antes do esperado, seu desejo
96
metade do século XIX. O aumento das gravitaram. Por conseguinte, a tendência
pressões no sentido de ampliar a política conservadora saiu fortalecida
participação política, o crescimento do daquela crise, o que colaborou para o
“estoque” de elementos elegíveis e a segundo acontecimento anteriormente
crescente diversificação das tarefas citado: o regresso conservador. Tendo
políticas e administrativas fizeram com em vista que a maior parte do clero
que, gradualmente, os burocratas fossem alinhava-se às orientações liberais, como
perdendo espaço para os profissionais se verá mais adiante, estes foram
liberais na conformação da elite política perdendo postos de comando no interior
brasileira (CARVALHO, 1980). do Estado, o que inviabilizava a
Consequentemente, os padres, como manipulação das engrenagens eleitorais
funcionários do Estado, com quem já por parte daqueles sacerdotes. Todavia, o
mantinham uma relação de dubiedade, grande o marco simbólico da derrocada
foram profundamente afetados por este político-eleitoral do clero no Império foi
processo. Acrescente-se a isto o fato de frustrada Revolução liberal de 1842 feita
que, cada vez mais, a Igreja foi perdendo em reação ao regresso conservador.
o monopólio sobre a educação e a Embora esta tenha contado somente com
cultura, favorecendo a ampliação dos uma pequena parcela dos padres
círculos intelectuais brasileiros. Não por parlamentares, estes últimos
acaso, nas regiões onde foram criados os corresponderam aos mais participativos,
primeiros cursos jurídicos, a influência influentes e destacados religiosos do
política do clero já mostrava, há mais Império. Foi o suficiente para “manchar”
tempo, uma tendência à diminuição o nome de toda uma categoria. Não por
(CASTRO, 2004). acaso, após a contenção daquela revolta,
Outras explicações plausíveis surgiram novas propostas na Câmara no
para a crise da elegibilidade do clero sentido de se proibir a eleição de padres
brasileiro devem ser buscadas em alguns para os cargos de representatividade
importantes acontecimentos políticos que política.
marcaram os últimos anos do período No entanto, não seria necessária
regencial. O primeiro foi a crise a proibição da eleição de sacerdotes para
estabelecida entre Igreja e Estado, afastá-los da política oficial. No início do
encabeçada pelo padre Diogo Antônio Segundo Reinado, aquela geração de
Feijó, e que ficou conhecida por Questão padres que participara ativamente da
Moura. A possibilidade de verem política brasileira, via espaços oficias de
rompidas as relações entre o Brasil e a poder, nos anos que se seguiram à
Santa Sé gerou grande indisposição no independência, já se encontrava
Parlamento e alimentou a rejeição política envelhecida e não encontraria substitutos
à Feijó e ao grupo de padres liberais no interior da Igreja. Não porque os
moderados que em torno dele novos padres que se ordenavam fossem

97
proibidos pela legislação de se fazerem Para este processo foi
candidatos, mas porque eles mesmos não fundamental a atuação dos padres
se mostraram dispostos a isto. regulares e do modelo de ensino que
Este desinteresse do clero pela ofereceram nos seminários, onde
vida político-eleitoral e a sua dedicação realizaram uma verdadeira reforma
maior a o múnus sacerdotal foi um dos clerical, propugnando o afastamento dos
grandes reflexos, no Brasil, do fenômeno padres da política formal e sua dedicação
internacional de romanização da Igreja às missões religiosas pelo país. Com
Católica, liderado pelo papa Pio IX. Ao efeito, os novos sacerdotes, saídos dos
longo do século XIX, mas, seminários reformados sob a orientação
principalmente, a partir da sua segunda tridentina, centraram forças na resolução
metade, foi ocorrendo uma progressiva dos problemas atinentes à
inversão dos valores político-religiosos institucionalização da Igreja, muitos dos
predominantes entre os membros da quais existentes em função de séculos de
Igreja no Brasil. Estes últimos padroado. Isto os levou, ainda que
começaram a tomar consciência da temporariamente, ao afastamento da
identidade específica da Igreja em arena política formal (SERBIN, 2008),
relação ao Estado, percebendo a embora, indubitavelmente, tenham se
necessidade de reforçar a sua mantido envolvidos com os problemas
institucionalização, tornando-a cada vez políticos do Brasil através de canais
mais católica e menos nacional. extra-oficiais e mais discretos e, talvez,
Progressivamente, o clero buscou se por isto mesmo, tão ou mais eficazes,
colocar embaixo da imediata orientação como o púlpito e a catequese.
da Santa Sé, romanizando a Igreja e
dirimindo a influência do Estado sobre
ela.

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de Melo (1851-1861). São Paulo: Ática, 1987.

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