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CDD: 510.

A Natureza do Conhecimento Matemático sob a Perspectiva


de Wittgenstein: algumas implicações educacionais
CRISTIANE GOTTSCHALK

Departamento de Filosofia da Educação


Universidade de São Paulo
SÃO PAULO, SP
crisgott@usp.br

Abstract: Nosso propósito é o de apontar alguns equívocos que uma concepção referencial da
linguagem matemática acarreta em seu ensino escolar. As atuais abordagens construtivistas
classificadas de modo geral em perspectivas experimental, cognitivista e antropológica, procuram os
significados dos objetos matemáticos predominantemente ora no empírico, ora na mente do aluno,
ora na interação social, ou seja, em alguma realidade extra-lingüística. Nesse sentido, recorremos à
terapia filosófica de Ludwig Wittgenstein para esclarecer as confusões a que somos levados ao
acreditar que as proposições matemáticas possam descrever a realidade empírica, ou mesmo
entidades abstratas; que reflitam o funcionamento transcendente da mente ou que sejam produto de
uma intersubjetividade consensual. Segundo o filósofo, seu estatuto apriorístico deve-se ao fato de
serem normativas, condições de sentido para as proposições empíricas. Sob essa outra perspectiva,
cai por terra a orientação geral construtivista para que o aluno “descubra” os conhecimentos
matemáticos no mesmo sentido que nas ciências empíricas, ou seja, ao pressuporem uma realidade
matemática pré-existente a ser descoberta, ora no empírico (através de experiências comparti-
lhadas), ora no mental, ora em nossa natureza social (intersubjetiva).

Palavras-chave: Filosofia da matemática. Ensino da matemática. Linguagem matemática.


Wittgenstein.

A maior parte das atuais tendências educacionais na matemática tem como


denominador comum as teorias construtivistas. O que as distingue uma da outra,
por assim dizer, são as diferentes perspectivas dentro do próprio construtivismo,
classificadas de modo amplo por alguns educadores, em perspectivas experi-
mental, cognitivista e antropológica (COBB, 1996). Neste trabalho procuraremos
questionar o lugar que os significados matemáticos ocupam predominantemente
nessas três perspectivas, a saber, ora no empírico, ora na mente do indivíduo, ora

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na interação social, com o objetivo de apontar para alguns equívocos decorrentes


desta procura por significados fora da linguagem matemática. Daí recorrermos à
crítica que Wittgenstein faz da concepção referencial da linguagem, a qual pres-
supõe que haja sempre algo que corresponde ao significado das palavras, exterior à
própria linguagem em que se encontram inseridas.
Especificamente em relação à linguagem matemática, as reflexões de Witt-
genstein sobre a natureza de suas proposições esclarecem, a nosso ver, muitas das
confusões decorrentes da crença em uma realidade matemática extra-lingüística, a
qual conteria os seus significados últimos, tribunal supremo de suas verdades,
como também as decorrentes da crença em um convencionalismo radical, onde
os objetos matemáticos teriam uma natureza essencialmente social, ou seja, se-
riam passíveis de ser construídos a partir de interações sociais, através de um
processo de negociação. Embora as práticas pedagógicas correntes tenham in-
corporado formas mais atenuadas de realismo em relação ao realismo platônico,
pensamos que a crítica de Wittgenstein continua bastante pertinente, uma vez que
em todas essas diferentes concepções realistas, das mais radicais às mais brandas,
permanece a atitude recorrente de se procurar significados que se situam fora da
linguagem matemática. Mesmo nas abordagens construtivistas que enfatizam o
caráter histórico-cultural dos objetos matemáticos, as reflexões de Wittgenstein
sobre a constituição dos significados em nossa linguagem esclarecem também, a
nosso ver, os equívocos de se considerar esse processo como sendo de natureza
social, no sentido de ser visto como produto de consensos entre opiniões.
Vejamos então, em primeiro lugar, de forma bastante resumida, como se
revelam essas diferentes concepções de significado nas principais perspectivas
pedagógicas atuais, para em seguida apresentarmos certas idéias de Wittgenstein
que acreditamos possam dissolver algumas das confusões a que somos levados ao
supormos que a atividade matemática deva depender de algum tipo de realidade,
por mais “atenuada” que ela seja, a qual julgaria em última instância a verdade de
suas proposições.
Dentre as tendências construtivistas atuais, a que tem uma concepção rea-
lista da matemática em sua forma mais radical é a perspectiva experimental. Para

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estes construtivistas, deve haver um mundo de experiências a ser compartilhado,


que revelaria uma realidade matemática a ser observada e descoberta. As verdades
matemáticas seriam obtidas basicamente através de generalizações da experiência.
Em outras palavras, uma concepção empirista da matemática 1 .
Já a perspectiva cognitivista considera que a construção dos objetos mate-
máticos decorreria de operações mentais que se desenvolveriam progressiva-
mente em interação com o meio ambiente. Baseia-se primordialmente nas teorias
psicogenéticas de Jean Piaget e de seus seguidores, para explicar a construção de
conceitos e operações matemáticas, as quais se aproximariam paulatinamente da
matemática institucionalizada. De certa forma, transparece uma concepção rea-
lista da matemática, quase platônica, na medida que, para os cognitivistas, os ob-
jetos matemáticos vão sendo alcançados através da razão de forma única e uni-
versal. Embora estes objetos não se encontrem em um céu platônico, seriam os
“correlatos experimentais de operações conceituais”. (COBB, 1996, p. 56). Por
exemplo, o conceito de soma corresponderia à ação de juntar, o de subtração à
ação de separar, e assim por diante. Daí o slogan construtivista “o significado está
na ação”. Assim, como na perspectiva empirista, os objetos matemáticos pré-
existem em algum domínio independente da linguagem matemática.
Por último, a perspectiva antropológica desloca a posição mentalista dos
cognitivistas para o social, ou seja, as verdades dos teoremas emergem no curso da
interação social. Da mesma forma que a construção dos objetos matemáticos se
deu ao longo da história e nas diversas culturas, analogamente esses significados
seriam passíveis de ser reconstruídos: o professor e os alunos são vistos como
membros de uma sala de aula comunitária, com sua microcultura própria e sin-
gular, atribuindo significados aos objetos matemáticos no decorrer de uma nego-
ciação interpessoal, compartilhando-se, assim, significados. Haveria, por conse-
guinte, uma realidade matemática de caráter consensual e de natureza social.

1 Dentro da filosofia da matemática esta concepção se aproximaria do logicismo, que

considera as proposições matemáticas referindo-se a entidades abstratas, no sentido destas


últimas serem verdades bem confirmadas acerca dos aspectos mais universais da realidade
material (“realismo” estrito) (cf. GLOCK, 1998, p. 242).

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Como veremos mais adiante, embora essa concepção de realidade, da perspectiva


antropológica, não seja propriamente empírica e nem platônica, aparentemente
permanecendo no âmbito da linguagem, não obstante, os conceitos e as proposi-
ções matemáticas, para Wittgenstein, tampouco resultam de consensos empíricos
ou de um acordo entre opiniões – uma vez que, na crença de que todos chegam
aos mesmos resultados, nas mais diferentes comunidades, está embutida a idéia
de que, de alguma forma, os objetos matemáticos pré-existam, inerentes às nossas
formas sociais, ou seja, podemos também pensar que temos aqui uma forma
bastante atenuada de realismo matemático.
Todas essas perspectivas também se entrelaçam, uma vez que em alguns
textos construtivistas são apresentados pressupostos teóricos que enfatizam a
construção mental dos conceitos matemáticos e sua negociação ao longo das in-
terações sociais, enquanto que em seus pressupostos metodológicos propõe-se
basicamente uma experiência matemática original como fundante dos objetos
matemáticos e suas relações. Essa confusão entre pressupostos teóricos e a con-
secução de práticas aparentemente a eles ligadas, pode ser esclarecida ao se expli-
citar os pressupostos embutidos nessas práticas, os quais se encontram em clara
contradição com os primeiros, o que no entanto parece não incomodar os educa-
dores matemáticos em geral 2 :

Geralmente aceitamos, sem questionar, as verdades matemáticas e acreditamos es-


tar fazendo descobertas quando nos engajamos na atividade matemática. Embora
possamos distanciar-nos de nossa atividade matemática e especular que a matemá-
tica é uma construção da mente humana, permanece o fato de que a verdade ma-
temática e a realidade matemática independente da mente humana pré-existem
quando fazemos e falamos sobre matemática. A esse respeito, a experiência mate-
mática é distinta da reflexão filosófica sobre essa experiência. No primeiro caso, a
matemática é descoberta e no segundo, inventada. (COBB, 1996, p.153)

2 Essa confusão encontra-se também no documento oficial do governo para o ensino

básico de matemática, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de teor predominante-


mente construtivista (cf. GOTTSCHALK, 2002).

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Um de nossos objetivos neste artigo é o de questionar a necessidade de se


supor uma realidade matemática extra-lingüística para dar sentido às suas propo-
sições. A distinção a ser feita, a nosso ver, não é a de uma realidade matemática
independente, que seria condição para o “fazer matemático” e uma posterior re-
flexão sobre a natureza da atividade matemática; mas atentar para os diferentes
usos de suas proposições: ora empírico, ora normativo. Em outras palavras, uma
mesma proposição matemática, como “2 + 2 = 4”, pode ser empregada com uma
função descritiva ou normativa, dependendo do contexto em que se aplica.
Como justificaremos mais adiante, esta é a distinção fundamental a ser conside-
rada para esclarecer os inúmeros paradoxos a que somos levados quando nos
perguntamos sobre os significados dos objetos matemáticos.
Como vimos, para responder a essa pergunta, todas as vertentes construti-
vistas pressupõem, de um modo ou de outro, que ao longo da construção dos
objetos matemáticos estes pré-existam, seja no empírico, no mental ou na inter-
subjetividade social. Da mesma forma que muitos de nossos critérios de verdade
se apóiam em última instância na crença da existência de um mundo externo, as
verdades matemáticas também são julgadas nessas perspectivas pressupondo-se
uma realidade matemática que assume formas diversas, desde as de caráter mais
platônico até a mais atenuada delas, que é a adotada pela perspectiva antropoló-
gica. Nossa tese é a de que esse pressuposto comum leva a confusões nas práticas
pedagógicas, pois ao se considerar a linguagem matemática como um mero re-
vestimento de entidades matemáticas, cujos significados são essências que pres-
cindiriam totalmente da simbologia matemática, espera-se que o aluno descubra
esses significados naturalmente, da mesma forma que o cientista levanta hipóteses
e faz experimentações com o objetivo de revelar as propriedades dos objetos do
mundo empírico, ou da mesma forma que uma comunidade formula suas leis
após um acordo de caráter intersubjetivo. Enfim, há uma expectativa no sentido
de que de algum modo o aluno “construa o seu próprio conhecimento”, onde o
professor passa a desempenhar o papel de mero facilitador deste processo. Já o
professor que antecipa as regras da matemática, e que por isso estaria conduzindo o
aluno, é visto pelos construtivistas em geral como “exterminador” dos significa-

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dos dos objetos matemáticos. De fato, algumas vertentes construtivistas chegam


a contrapor a expressão “construção de significados matemáticos” ao “rigor” que
seria característico da concepção formalista da matemática, como se fossem as-
pectos da atividade matemática incompatíveis entre si:

... [os formalistas] sustentam o ideal de sistematização dedutiva da matemática e


uma certa atitude em relação à natureza do conhecimento matemático.

O ideal de sistematização dedutiva traduz-se na crença de que os conhecimentos


matemáticos, em sua totalidade, podem (e devem) ser organizados em um sistema
dedutivo contendo termos primitivos, definições, regras de inferência, axiomas e teo-
remas, de modo que os axiomas e teoremas estejam relacionados dedutivamente.

(...) Por sua vez, entendemos o ‘formalismo pedagógico’, num sentido bastante am-
plo, como aquele estilo de prática educativa em Matemática que extermina, cons-
ciente ou inconscientemente, o significado e o sentido do conhecimento que busca
transmitir, (...) queremos com isso enfatizar duas coisas diferentes: que, por um
lado, [o formalismo] não dá a devida importância ao sistema de relações ligadas
àquele conhecimento, que se constituiu objetivamente no decorrer do processo
histórico-social e que, por outro, marginaliza aqueles aspectos subjetivos – porque
ligados à situação dada e às vivências afetivas do sujeito – que aquele conhecimento
adquire no decorrer do processo de interação do indivíduo com o seu contexto
social atual. (MIGUEL, 1995, p. 8-9)

Daí, as noções de ordem, uniformidade de raciocínio, a lógica bivalente do tudo ou


nada e a ‘lógica’ do descompromisso que têm sido introjetadas na mente de pro-
fessores e estudantes. (...) Conseqüentemente, o ensino dessa ‘disciplina’ (e este
termo é sintomático) passou a justificar-se pela crença reacionária e militaresca –
mas nem por isso, ou justamente por isso, menos ‘eficaz’ – em seu poder
disciplinador da mente humana, sendo um tal objetivo atingível – após um
desligamento compulsório do produto do conhecimento do seu processo de
produção, e, conseqüentemente, da destruição de sua rede de significações –
através do treino, do exercício e da repetição obediente. (MIGUEL, 1995, p. 11)

Como vemos, é como se no “formalismo pedagógico”, como definido aci-


ma, se criasse um abismo intransponível entre as regras da matemática formali-
zada (axiomas, postulados de todo o sistema a partir deles deduzido) e seus
significados no mundo externo e interno ao indivíduo. Assim, com o intuito de
resgatar os sentidos dos objetos matemáticos, os construtivistas apóiam-se em
concepções realistas da matemática que, no entanto, não explicam a provisorie-

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dade de seus conceitos. Nesse sentido, para contornar essa dificuldade, dentre
outras, novas vertentes passam a surgir, como por exemplo, a proposta de uma
perspectiva “complementar”, a qual reuniria todas as forças de combate ao for-
malismo, o que seria possível se incluíssemos a noção de comunidade às teorias
construtivistas acima.

É esta noção de comunidade que está ausente tanto no platonismo quanto no


empirismo. Seguem-se duas implicações para a educação matemática. A primeira é
que, se encararmos o platonismo e a verdade matemática como aspectos experien-
ciais da atividade matemática consensualmente controlada, então, a minha intenção
enquanto educador matemático construtivista, é que os estudantes experienciem
também a descoberta de relações que eles acreditem estarem nessa realidade (...) Se
os estudantes não agem como platônicos quando fazem matemática, nada resta a eles a não ser
formalismos vazios. Não é a experiência platônica dos objetos matemáticos mas o
formalismo que é o inimigo de todos os que valorizam o significado em detrimento
do rigor. (COBB, 1996, p. 167; grifos nossos)

Nessa proposta aparentemente redentora, o formalismo permanece como


inimigo “número 1” de qualquer tipo de construtivismo por destituir os objetos
matemáticos de seus significados, propondo-se, então, que se restabeleça o pro-
cesso e sua rede de significação, de uma forma colada nas necessidades do
mundo empírico, mas ao mesmo tempo um processo que seja “consensualmente
controlado”. A questão para Cobb, portanto, não é negar o realismo dos pla-
tônicos, mas pelo contrário, incorporá-lo às práticas matemáticas, pressuposto
essencial para que seus objetos adquiram significado. Bastaria introduzir a noção
de comunidade para que se resolvesse as contradições inerentes a um platonismo
que não leva em consideração a evolução dos conceitos.
Procura-se, assim, resolver um dos paradoxos resultantes de uma concep-
ção realista da matemática, não a abandonando, mas apenas amenizando-a ao
substituir o aspecto estático do empirismo e do mentalismo pela dinamicidade
que o social confere aos objetos matemáticos. Para justificar sua tese de um
“platonismo revisitado”, necessário e possível ao ser relacionado com as pers-
pectivas antropológica, experimental e cognitiva, Cobb faz uma analogia da ma-
temática com a física, para mostrar como esse conhecimento é provisório no

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mesmo sentido das ciências empíricas. Na mesma linha de análise de Kuhn e


Lakatos, Cobb conclui que haveria períodos de “matemática normal” compreen-
didos entre as revoluções de rigor.

Em outros termos, na ausência de refutações aceitas, a comunidade reveste a teoria


que prova ser útil a seus propósitos com a aura de certeza. Na prática, a questão dos
fundamentos da matemática é tangencial em relação aos processos por meio dos quais
uma teoria se torna realidade matemática até que sofra futuros reparos. (COBB,
1996, p. 161; grifos nossos)

Supõe-se, assim, que os indivíduos cheguem aos mesmos critérios de uti-


lidade, ou seja, entrem em acordos de natureza empírica. Para sustentar essa idéia,
Cobb recorre, então, a Wittgenstein, que teria afirmado que “as atividades mate-
máticas tais como cálculos aritméticos se fundam sobre certos processos físicos e
psicológicos que, uma vez institucionalizados, se tornam seguros” (COBB, 1996,
p. 159-60). Esta suposta visão de Wittgenstein sobre a gênese dos processos da
matemática teria surgido de sua experiência com estudantes de uma escola ele-
mentar para os quais ele ensinou durante cinco anos na Áustria em plena reforma
escolar austríaca. Cobb conclui, então, que Wittgenstein é levado a determinadas
idéias influenciado por essas teorias pedagógicas, as quais tinham muitos pontos
em comum com o trabalho de Jean Piaget e com o construtivismo contem-
porâneo. Esta é outra confusão a ser esclarecida, pois Wittgenstein não estava em
absoluto interessado em fazer psicologia infantil. Suas preocupações eram de or-
dem filosófica, como a de estabelecer uma conexão entre o conceito de ensino e
o conceito de significado. “Estou eu fazendo psicologia da criança? – Estou cons-
truindo uma conexão entre o conceito de ensino e o conceito de significado.”
(WITTGENSTEIN, Observações sobre a Filosofia da Psicologia, §337)
Cobb interpretou esse aforisma de Wittgenstein no sentido de que o filó-
sofo estaria considerando o aprendizado como decorrente da participação dos
alunos na comunidade de sala de aula, onde os objetos matemáticos seriam
criados e desenvolvidos através de uma interação dialética de muitas mentes. Seria
esse o processo social que determinaria se um teorema é interessante ou verda-
deiro. Pensamos que essas inferências de Cobb supostamente a partir de algumas

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reflexões de Wittgenstein são totalmente indevidas, uma vez que o caráter social
da matemática é apenas um de seus aspectos, e não o que caracteriza a sua natu-
reza. Quando Wittgenstein faz a conexão entre os conceitos de ensino e signifi-
cado, não está se referindo ao processo de negociação dos significados mate-
máticos, mas apontando para o aspecto normativo de determinadas proposições
(inclusive as proposições matemáticas), vistas por ele como condições de sentido
para as demais proposições. Antecipando de forma bem simplificada, sem que
haja o ensino das primeiras, não é possível a apreensão dos significados em geral.
Em outras palavras, Wittgenstein aponta para um processo inverso ao que Cobb
relata. As proposições matemáticas institucionalizadas é que dão sentido à ativi-
dade matemática, e não que sejam geradas por ela, através de processos empíricos
(mentais ou consensuais). São certezas convencionais pertencentes a uma determi-
nada comunidade. “‘Estamos seguramente certos disso’ não significa apenas que
cada único indivíduo está certo disso, mas que pertencemos a uma comunidade a
qual está ligada conjuntamente pela ciência e pela educação.” (WITTGENSTEIN,
DC, §298)
Segundo Wittgenstein, nossas imagens do mundo não são descrições, mas
idéias que cada um tem sobre o mundo. No entanto, não se trata de um mundo
das idéias platônico, pois são idéias públicas, pertencentes a determinadas formas
de vida e práticas sociais. São nossas convicções, que nos permitem agir com
certeza. É nesse sentido que pertencemos à mesma comunidade, e não como
Cobb interpreta, como se através de nossos laços empíricos a comunidade fosse
se constituindo. O que nos liga são nossas certezas a priori. As relações internas a
que Wittgenstein se refere não dizem respeito a um acordo entre opiniões, ou
acordos empíricos de forma geral (como o do tipo “utilitário” a que Cobb se re-
fere), mas a concordâncias nas formas de vida. Trata-se, por conseguinte, de um
acordo prévio às opiniões, que não é sempre explicitado.
Vamos então precisar melhor em que sentido o filósofo austríaco faz essas
afirmações através de um exemplo. Suponhamos que, ao descrever um objeto
digamos, entre outras coisas, que é azul. Alguém poderia perguntar, o que é
“azul”? Ao responder “azul é uma cor”, estamos apenas dando um valor possível

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da “variável” cor. Ensina-se uma nova referência dessa variável. Neste sentido, a
proposição “azul é uma cor” é a priori. É uma “regra de representação” que
pertence às conexões internas do que está sendo representado. Agora passa a
fazer sentido para esse alguém quando descrevo determinado objeto como tendo
a cor azul. Uma vez estabelecida a conexão interna (o que é azul), estamos em
condições de estabelecer a conexão externa entre o objeto e a sua cor. Enfim, toda
descrição supõe formas representacionais, expressas através de proposições que
ele chama de gramaticais.

Eu gostaria de dizer: se houvesse apenas a conexão externa, nenhuma conexão po-


deria ser descrita, pois só descrevemos a conexão externa com o auxílio da interna.
Se esta nos faltasse, faltar-nos-ia o apoio de que precisamos para podermos des-
crever o que quer que seja – do mesmo modo que não podemos mover nada com
as mãos se não estivermos bem firmes sobre os pés. (WITTGENSTEIN, OF, III, 26)

Em outras palavras, toda proposição empírica, descritiva, pressupõe uma


“gramática” que dá sentido a ela. Wittgenstein não utiliza o termo “gramática” em
seu sentido usual, mas para designar as regras constitutivas da linguagem e tam-
bém a sua organização, ou seja, sua “gramática profunda”. Essas regras seriam
parte da significação de uma palavra, determinam o que tem sentido e o que não
tem sentido dizer. Recorremos a técnicas lingüísticas que se entrelaçam com
conteúdos extra-lingüísticos com o intuito de dar sentido à experiência. Por
exemplo, através de uma tabela de cores, associamos imagens de cores às palavras
que convencionamos corresponderem a essas cores. No entanto, nem as imagens
e nem a tabela de cores são a base dessa atividade lingüística. Tanto os conteúdos
extra-lingüísticos como a técnica utilizada fazem apenas parte dos jogos prepara-
tórios que precedem o estabelecimento de relações conceituais entre as cores.
Ainda estamos no terreno das palavras, preparando a área para a formação de
uma “gramática das cores”. Esta se constitui à medida que estabelecemos relações
conceituais a priori, também convencionais, que são nossas certezas sobre essa re-
gião da percepção: “o branco é mais claro que o preto”, “as cores azul, vermelha
e amarela são cores puras (primárias)”, “ao misturar o azul com o amarelo, obte-
mos a cor verde” e assim por diante. Depois de estabelecer essas relações con-

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ceituais, ou seja, uma forma de representação, estamos em condições de fazer


descrições: passa a ter sentido dizer que “essa mesa é marrom”, “essa parede é
branca” e assim por diante. As formas de representação estão profundamente in-
corporadas em nossos modos de agir e expressar. Embora tenhamos uma certa
liberdade para escolher nossas formas de representação, uma vez escolhida uma
gramática, essa liberdade não se transmite às descrições de dentro dessa gramá-
tica. Por exemplo, não tem sentido dizer que duas cores diferentes estão no
mesmo ponto de um espaço visual ao mesmo tempo, ou que “a parede branca é
mais escura do que a preta”, se considerarmos nossa forma usual de representa-
ção das cores. (Cf. MONK, 1995, p. 292)
Mas é só na aplicação das palavras que se mostra o uso que é feito do con-
ceito e, por conseguinte, seu sentido. Dizer “essa parede é branca” pode tanto ter
uma função descritiva quanto uma função gramatical – podemos descrever a parede
ou utilizá-la como um paradigma da cor branca. Em termos wittgensteinianos, uma
mesma proposição pode ter um uso gramatical ou empírico, dependendo da
situação em que é aplicada. Assim, “esse objeto é azul” pode ser tanto a resposta
à pergunta “o que é azul? ” como uma descrição deste objeto. Caso a expressão
seja empregada de forma descritiva, necessariamente ela pressupõe alguma forma
de representação a priori. No caso acima, a de que “azul é uma cor”. O caráter a
priori das regras de representação é fundamental para compreendermos esses dife-
rentes usos das proposições que empregamos ora como regras gramaticais, ora
como descrições, independentemente dos conteúdos de que partimos (seja uma pa-
rede ou qualquer outro objeto de cor branca).
Essa distinção é importante não só para dissolver problemas filosóficos,
mas também para evitar confusões já em curso nas atuais práticas pedagógicas.
Em todas elas, como já apontamos, procura-se os significados dos objetos mate-
máticos em alguma realidade independente da própria linguagem matemática, o
que nos remete a uma concepção essencialista da linguagem que vem desde as
primeiras tentativas metafísicas dos filósofos para apreender o significado de de-
terminados conceitos ao procurarem significados essenciais por trás da multipli-
cidade de seus usos em situações empíricas.

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Até hoje, os filósofos só falaram contra-sensos? A esta pergunta, poderíamos res-
ponder: não, eles apenas não repararam que usam uma mesma palavra com signifi-
cados muito diferentes. Nesse sentido, dizer que uma coisa é tão idêntica quanto a
outra não é incondicionalmente um contra-senso, pois quem diz isso com convic-
ção quer, nesse momento, dizer algo com a palavra “idêntico” (“grande”, talvez).
Mas o filósofo não sabe que, aqui, ele usou a palavra com um significado diferente
daquele com que ela é usada em 2 + 2 = 4. (WITTGENSTEIN, OF, I, 9)

Assim, uma mesma palavra (“idêntico”) pode ser utilizada em um sentido


descritivo (“tão grande quanto”) ou normativo (dois mais dois deve ser igual a
quatro). Em outras palavras, “idêntico” pode descrever algum fato, como o tama-
nho de duas pessoas, e, em outro contexto lingüístico como o da matemática, ter
outro uso, como regra a ser seguida. Para Wittgenstein, a confusão se instala
quando não distinguimos entre o uso gramatical e o uso empírico de nossos
enunciados, reduzindo nossas formas de representação a proposições empíricas,
o que revela uma concepção referencial da linguagem. Quando utilizamos a defi-
nição ostensiva da cor azul (“isto é azul”), parece que estamos descrevendo a cor azul,
como se o significado de “azul” dissesse respeito a uma suposta essência da cor
azul – como se “o azul” (em si) existisse! Reduzimos, assim, a função gramatical
desse enunciado a uma função empírica, levados pela ilusão de que sempre há al-
guma referência extra-lingüística por trás das palavras, ou seja, insiste-se recorren-
temente na idéia de que haja um significado essencial por trás das palavras.
No entanto, segundo Wittgenstein, as palavras são utilizadas numa infini-
dade de maneiras diferentes e aparentadas umas com as outras de diversos mo-
dos, como as semelhanças que encontramos entre os membros de uma mesma
família. Não há algo comum a todos os seus usos, que nos daria a sua “essência”.

Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão ‘seme-
lhanças de família’; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças
que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos
olhos, o andar, o temperamento etc., etc. – E digo: os ‘jogos’ formam uma família.
E do mesmo modo, as espécies de número, por exemplo, formam uma família.
Por que chamamos algo de ‘número’? Ora, talvez porque tenha um parentesco
– direto – com muitas coisas que até agora foram chamadas de número; e por isso,
pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco indireto com outras que chamamos
também assim. E estendemos nosso conceito de número do mesmo modo que
para tecer um fio torcemos fibra por fibra. (WITTGENSTEIN, IF, §67)

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Através desse aforismo, Wittgenstein nos chama a atenção para os dife-


rentes empregos das palavras. Estes usos são ensinados, não há como adivinhá-los
a partir da experiência, ou descobri-los. Nesse sentido, o ensino ostensivo das
palavras é uma parte importante da atividade educacional, pois constitui uma re-
gra para o uso de uma palavra – é uma regra sobre como proceder. Como o ho-
mem aprende o significado dos nomes das sensações? Por exemplo, a palavra
“dor”. Uma criança se machuca e chora. Podemos imaginar que um adulto se
aproxime e pergunte “está sentindo dor?”. Em outras palavras, diz à criança que
o que ela está sentindo é “dor” – introduz esse termo. Não se trata de uma des-
crição. “A definição ostensiva pode ser considerada como uma regra de tradução
da linguagem gestual a uma linguagem verbal.” (Wittgenstein. In: HINTIKKA,
1994, p. 245)
A definição ostensiva difere da explicação, pois a primeira é de natureza cons-
titutiva (inaugura, por assim dizer, o objeto) e a segunda, de natureza descritiva.

Denominar e descrever não se encontram num mesmo nível: a denominação é uma


preparação para a descrição. A denominação não é ainda nenhum lance no jogo
de linguagem – tão pouco quanto a colocação de uma peça de xadrez é um lance
no jogo de xadrez. Pode-se dizer: com a denominação de uma coisa não se fez nada
ainda. Ela também não tem nome, exceto no jogo. (WITTGENSTEIN, IF, §49)

Dizer “isto é azul” apontando para um objeto azul pressupõe que esteja-
mos familiarizados com a “gramática das cores”, ou seja, que saibamos o que é
cor e que também saibamos nos mover de alguma forma no espaço das cores. O
objeto apontado é uma explicação do significado do nome “azul”, e não seu sig-
nificado. Embora os gestos ostensivos não dêem conta de definir os objetos da
experiência imediata, não deixam de ser um caso paradigmático das ligações lin-
guagem – mundo – são como “antenas” da linguagem. Em outras palavras, o
gesto ostensivo é um instrumento lingüístico que nos permite estabelecer uma li-
gação (interna) entre uma palavra e o objeto para o qual apontamos. Mas
poderíamos imaginar outra forma de vida na qual esse gesto tivesse outro signifi-
cado. O que vai determinar esse significado, segundo Wittgenstein, é o jogo de lin-
guagem no qual esse gesto está inserido. A expressão “jogo de linguagem” enfatiza

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o papel que nossas formas de vida têm na utilização de nossas palavras. Todo
jogo de linguagem envolve uma gramática dos usos, as quais estão ancoradas em
uma práxis, em uma forma de vida. Nesse sentido, o elo semântico entre a lin-
guagem e a realidade não é dado apenas pelas regras que governam a linguagem,
mas pelos próprios jogos de linguagem, pois as regras só têm sentido contra o
pano de fundo de um determinado jogo de linguagem. Por conseguinte, os jogos
de linguagem têm primazia sobre as regras. Com o conceito de “jogo de lingua-
gem” Wittgenstein esclarece como atribuímos significado às nossas palavras. Se-
gundo ele, estas só adquirem significados quando operamos com elas, portanto,
dentro de um jogo de linguagem, que seria para Wittgenstein, a totalidade for-
mada pela linguagem e pelas atividades com as quais vem entrelaçada. A palavra
jogo vem ressaltar as diversas atividades com as quais a linguagem se vincula.
A expressão “jogo de linguagem” é essencial na filosofia de Wittgenstein,
pois ele também a emprega como um método para mostrar os diferentes usos
dos conceitos em nossas formas de vida. Como vimos, as palavras não são utili-
zadas apenas para descrever. Mas além das descrições que fazemos a partir de
nossas formas representacionais (uso gramatical) há muitos outros tipos de jogos,
como contar piadas, orar, fazer saudações, perguntar, dar ordens e etc. É dentro
desses jogos que os objetos adquirem significado, quando operamos com eles, e
não quando simplesmente os relacionamos às imagens que fazemos deles. Desse
novo ponto de vista, Wittgenstein faz uma crítica demolidora à concepção refe-
rencial da linguagem, pois não há mais necessidade de se postular entidades ex-
tralingüísticas como condições necessárias da significação. Temos como evitar as
dificuldades do modelo referencial da linguagem ao considerarmos “as diversas
práticas ligadas à linguagem como sendo o meio através do qual são estabelecidas
as ligações entre signos e objetos e, além disso, como sendo instrumentos lingüísti-
cos. É nesse sentido que tais práticas fazem parte da gramática dos usos.”
(MORENO, 1995, p. 25)
Eis aqui um ponto crucial: o caráter lingüístico dessas práticas exclui uma
fundamentação empírica para o significado que seja independente do jogo de lin-
guagem em questão. A ação de juntar dois grupos diferentes de objetos para de-

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A Natureza do Conhecimento Matemático sob a Perspectiva de Wittgenstein 319

signar o conceito de soma em matemática só adquire sentido no interior deste


jogo de linguagem, que pressupõe técnicas características como as de contagem e
algoritmos mais complexos, quando por exemplo queremos somar 456 e 679. A
mera ação de juntar duas mãos, por exemplo, no jogo de linguagem de certas reli-
giões apenas nos diz que estamos rezando, e não que “5 + 5 = 10”. Assim, a ação
de juntar adquire diversos significados em função dos distintos jogos de lingua-
gem nos quais ocorre. São esses jogos que nos permitem interpretar a ação, e não
que esta seja o fundamento de determinados símbolos. Da mesma forma, nossos
conceitos são empregados significativamente tendo como pano de fundo deter-
minados contextos lingüísticos. “Somar” dois mais dois e dizer que o resultado é
quatro faz sentido dentro do jogo de linguagem da aritmética, mas poderíamos
muito bem imaginar um outro jogo (inclusive dentro da própria matemática)
onde esse resultado fosse outro número!
Enfim, com o conceito de “jogo de linguagem” Wittgenstein lança luz so-
bre relações de nossa linguagem, ao utilizar jogos como objetos de comparação,
ou seja, através de suas semelhanças e diferenças, chama a atenção para os dife-
rentes usos de nossos conceitos em nossas formas de vida sem recorrer a entida-
des extra-lingüísticas 3 . São os próprios jogos de linguagem que constituem as
relações de significação básica (denominação) e são, portanto, os elos entre
linguagem e realidade. Assim, o suposto abismo entre regras e sua aplicação é
transposto por nossas práticas, dentro de um jogo de linguagem. Eis o “ovo de
Colombo” de Wittgenstein, que nos liberta dos paradoxos da concepção
referencial da linguagem. “Seguir uma regra” é essencialmente uma prática:

Por isso, ‘seguir a regra’ é uma prática. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra.
E por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’, porque, do contrário, acreditar
seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra. (WITTGENSTEIN, IF, §202)

3 Além dessa visão mais panorâmica da utilização de nossos conceitos, Wittgenstein

também recorre a uma visão de detalhe, a saber, as diferentes aplicações de uma palavra
no interior de um mesmo jogo de linguagem. Por exemplo, o emprego ora descritivo da
palavra azul, ora normativo, quando nos movemos dentro de nossa gramática das cores.

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320 Cristiane Gottschalk

Através desse aforismo, Wittgenstein ressalta o caráter público da regra,


não no sentido de ser produto de um consenso coletivo, passível de ser reprodu-
zido por qualquer grupo de indivíduos; mas no sentido de termos sido introduzi-
dos em formas de vida que organizam a priori nossas ações, ou seja, estamos
imersos em mitologias as mais diversas que dão sentido ao nosso mundo empí-
rico. Enfim, não é a partir da experiência compartilhada que nossas mitologias
são geradas, muito pelo contrário, são essas nossas certezas (mitológicas) que nos
permitem dar significados às nossas ações. A proposição “2 + 2 = 4” permite-nos
compreender que dois casais vão precisar de quatro bilhetes para assistir a uma
peça de teatro.
Isso não significa, entretanto, que sejamos determinados por nossas certezas
e tampouco por elas guiados. Agimos apenas em conformidade com elas. Tam-
pouco são a causa da compreensão. Nossa ânsia pela procura de fundamentos
últimos para os significados da nossa linguagem poderia tê-las colocado no lugar
das entidades de natureza empírica, transcendental ou social. Daí a necessidade de
uma reflexão contínua, para não haver recaídas. Considerar as regras como sendo
o fundamento último do significado de nossos conceitos, seria recair novamente
na armadilha da concepção referencial da linguagem, pois estaríamos elegendo
uma instância transcendental que tomaria o lugar do tribunal supremo da razão.
Mas, segundo o filósofo, o que nos permite compreender as ações e palavras dos
outros, podendo inclusive julgá-las, é um mesmo “chão” que compartilhamos. É
a partir desse background comum herdado que somos capazes de distinguir entre o
verdadeiro e o falso (cf. WITTGENSTEIN, DC, §94), e não através da comparação
com objetos empíricos, de intuições transcendentais, acordos intersubjetivos ou
determinados por um conjunto qualquer de regras.
Mas como novas certezas vão sendo adquiridas? Eis o ponto que nos inte-
ressa no campo da educação matemática. Como se dá, por exemplo, a formação
do conceito de triângulo na geometria? Os objetos da matemática não têm pro-
priedades a serem descritas como ocorre com os objetos de natureza empírica.
Para introduzir o conceito de triângulo recorremos a diversas formas triangulares
como meios de apresentação, as quais passam a servir como regras para a utiliza-

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A Natureza do Conhecimento Matemático sob a Perspectiva de Wittgenstein 321

ção da palavra triângulo. Uma vez formado o conceito, este prescinde da existência
de formas triangulares para que tenha significado e possa ser aplicado. Nesse
sentido, a definição da palavra triângulo – “um polígono fechado de três lados”
também pode ser vista como uma regra de utilização desta palavra. Dizer que
“triângulo é um polígono que tem três lados” não é uma descrição de triângulo
– essa proposição define o que é um triângulo. Estabelece-se uma conexão interna
entre conceitos. A palavra não se refere a algum ente ideal em um céu platônico,
da mesma forma que “azul” não corresponde a algo inefável. A definição de um
símbolo é apenas uma regra para o uso desse símbolo. Compreender a palavra
“triângulo” é saber seguir a regra de utilização dessa palavra, e não a apreensão do
que é triângulo (ou do que é “azul”). As definições têm uso gramatical e não des-
critivo.
Assim, aprender o significado de uma palavra pode consistir na aquisição de
uma regra, ou um conjunto de regras, que governa seu uso dentro de um ou mais
jogos de linguagem. Uma das conseqüências dessa idéia para a educação é que
não há sentido em se ensinar um significado essencial de uma palavra indepen-
dente de seus diversos usos. Uma palavra só adquire significado quando se opera
com ela, ou seja, seguindo uma regra4 em um determinado contexto lingüístico.
Por exemplo, ao ouvir a palavra “triângulo” podemos entendê-la como uma placa
de trânsito, pertencente a um conjunto de regras que nos obriga a dirigir um au-
tomóvel em conformidade com elas. Podemos também associar essa palavra a
um determinado timbre musical, característico dos instrumentos metálicos. Já
dentro do jogo de linguagem da geometria euclidiana esta palavra designa uma fi-
gura geométrica definida através de termos característicos desse jogo de lingua-
gem (termos primitivos do sistema axiomático da geometria euclidiana). Da
mesma forma, ao ouvir a palavra “azul”, podemos tanto recorrer a imagens
mentais como a uma tabela que associa imagens de cores a seus respectivos no-

4 O conceito de regra aqui deve ser entendido num sentido bem geral: embora tenha

função normativa, não se reduz a comando e ordens. As regras de nossa linguagem coti-
diana, por exemplo, nos dizem o que é falar corretamente ou com sentido. São como pa-
drões de correção, governando uma multiplicidade ilimitada de ocorrências.

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mes. Ao ouvir a palavra “idêntico”, podemos entendê-la no sentido de mesma


altura (se estivermos pensando em medidas) ou como uma das normas da mate-
mática. Associamos as palavras a técnicas diferentes, dependendo do contexto em
que nos encontramos. No entanto, não são técnicas consensuais, produzidas a
partir da interação espontânea entre um grupo de indivíduos, como a denomi-
nada “microcultura” de uma classe de aula. Estas técnicas mais elementares são
ensinadas, fundamentalmente através de treino, e não de explicação. Não se redu-
zem, por conseguinte, a proposições descritivas, são de outra natureza. Uma
criança ao aprender sua língua materna é imersa em uma forma de vida onde
essas técnicas são essencialmente incorporadas através de treino. Ela aprende o
uso de determinadas palavras sem que haja uma explicação a priori sobre os seus
significados: “Vem sentar aqui na cadeira!”, “Cuidado para não cair da cadeira!”, e
assim por diante. Em nossa cultura o conceito de cadeira vai sendo formado sem
que haja a necessidade de se definir o conceito de cadeira, ou de que este seja in-
corporado através de acordos consensuais. “Quando aprende a falar, a criança
emprega tais formas primitivas de linguagem. Ensinar a linguagem aqui não é ex-
plicar mas treinar.” (IF, §5)
Como vemos, Wittgenstein chama nossa atenção para a importância do
treino no aprendizado de uma linguagem. Há um terreno preparatório que não
pode ser ignorado. É neste sentido que Wittgenstein faz uma conexão entre
ensino e significado, ao contrário da interpretação de Cobb de que se trataria de
um tipo de conexão de teor psicológico e social, que produziria espontaneamente
significados ao longo de um processo de negociação intersubjetiva. Sem esse
treino não há o que explicar, e muito menos como produzir significados. A
questão filosófica que preocupava o filósofo era relativa às condições de sentido de
nossas expressões lingüísticas e como estas são utilizadas: as formas lingüísticas
não são “apenas o meio de expressão do pensamento, mas, principalmente, for-
mas que constituem e instauram os próprios objetos do pensamento: O que é um
objeto, afirma Wittgenstein, é dito pela Gramática.” (MORENO, 1995, p. 13)
Aprendemos a falar através de um treino, e o que passamos a considerar
como sendo nossas certezas inquestionáveis também o é ensinado, ou seja, apren-

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demos convenções. Juntamente com o significado da palavra cadeira aprendemos,


por exemplo, que a cadeira na qual estamos sentados existe, entre outras certezas,
embora essa certeza não nos tenha sido dada através de explicações. Ao aprender-
mos uma língua toda uma imagem de mundo vem de roldão, certezas e convic-
ções que incorporamos como nossas, sem nos darmos conta que são de natureza
convencional.
A matemática também é uma de nossas “Gramáticas”. Suas proposições
têm função normativa, são certezas que não são passíveis de ser revisadas pela
experiência. Embora estejam enraizadas em determinadas práticas e formas de
vida, em um background em que são constituídos suas definições, axiomas e pos-
tulados, essas proposições não descrevem entidades abstratas, ou a realidade em-
pírica e tampouco são produto de uma negociação interpessoal. Fazem parte de
nossas certezas, constituindo também uma imagem do mundo, da mesma forma
que as afirmações do senso comum (temos certeza de que o mundo existe há
milhares de anos, de que existem montanhas e rios, etc.). No entanto, não cons-
titui nossa primeira língua a ser aprendida. Não estamos inseridos em uma forma
de vida onde cotidianamente demonstramos teoremas ou operamos com objetos
matemáticos, da mesma forma que sentamos em cadeiras ou utilizamos copos
para beber água. Ora, como vimos, há vertentes dentro do construtivismo que
afirmam que os alunos imersos em uma atividade matemática consensualmente con-
trolada, experienciaram a descoberta de relações (cf. COBB, op. Cit., p. 167), como se
fosse possível, a partir de acordos de opiniões, chegar à redescoberta espontânea
de objetos matemáticos. Mas de que forma uma construção social coletiva pode-
ria levar à redescoberta de um objeto matemático?
Por exemplo, por que deve-se esperar que o aluno aceite o quinto axioma
de Euclides, conhecido como axioma das paralelas, como evidente? O que fun-
damenta essa evidência? Estaria baseada na experiência? Na razão? No consenso?
Em uma de suas formulações, esse axioma afirma que, dada uma reta no plano,
uma paralela por um ponto externo é uma reta que, mesmo prolongada indefini-
damente de ambos os lados, nunca intercepta a outra. Por que essa afirmação
seria evidente para o aluno? Esse aluno poderia imaginar várias retas superpostas,

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todas paralelas à primeira e passando pelo ponto dado; ou duas retas com orien-
tações opostas passando por esse ponto; ou ainda é muito provável que imagine
um ponto no espaço de três dimensões, sendo plenamente possível conceber
infinitas retas passando por esse ponto e paralelas à reta dada. Enfim:

Não são experimentos empíricos que esclarecem a evidência [do axioma das para-
lelas], pois, ainda que eles pudessem contradizer o axioma, continuaríamos a aceitá-
lo como evidente. Podemos apresentar uma imagem como prova da evidência do
axioma, e aceitá-la como prova significa atribuir uma determinada aplicação à ima-
gem ou à proposição que a exprime: aplica-se a situações teóricas em que as linhas
não se superpõem, não têm orientação e estão em um espaço plano; sem essa apli-
cação, a imagem não é uma prova e nem a proposição um axioma. (MORENO,
1995, p. 53)

Um axioma não é evidente porque descreve algum fato ou por ser reflexo
de alguma intuição, ou ainda por ser produto de um consenso entre pares de uma
microcultura; mas por ter uma função normativa. Acreditar que tenha uma fun-
ção descritiva é incorrer numa generalização indevida como, por exemplo, supor
que sempre temos uma única reta paralela passando por um ponto fora de uma
reta dada, independentemente do contexto em que essa proposição se enuncia. O
axioma das paralelas é evidente, necessário, na geometria euclidiana. Nesse contexto
atribuiu-se-lhe uma necessidade que não vigora em outra geometria como na de
Riemann ou na de Lobatchevsky 5 . Os axiomas e postulados da matemática po-
dem ser vistos como regras, e não como “intuições” ou “fatos evidentes”. E da
mesma forma todas as proposições que são deduzidas desses axiomas e postula-
dos. Axiomas, postulados e definições são vistos por Wittgenstein como regras
básicas (constitutivas) que não podem ser negadas; são consideradas proposições
gramaticais.

5 Nessas outras geometrias, o quinto axioma de Euclides é substituído respecti-

vamente por “é possível passar mais de uma paralela a uma reta dada por um ponto fora
dela” (Lobachevsky) e “por um ponto fora de uma reta dada não se pode traçar paralela
alguma a esta reta” (Riemann).

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‘Se a demonstração nos convence, também temos que estar convencidos, então,
dos axiomas.’ Não como o estamos de proposições empíricas; não é esse o seu pa-
pel. No jogo de linguagem, estão excluídos da verificação através da experiência.
Não são proposições da experiência, mas princípios de juízo. (WITTGENSTEIN,
OFM, VII, 73)

Posto que uma proposição matemática é uma estipulação, ou um resultado


de estipulações de acordo com um método definido, segue-se que todas as propo-
sições matemáticas são proposições gramaticais. No entanto, embora Wittgens-
tein considere normativas todas as proposições da matemática, seus usos se distin-
guem em função dos jogos de linguagem específicos aos quais pertencem. A ati-
vidade matemática pode ser vista como uma família de atividades destinada a uma
família de propósitos:

A aritmética é um sistema de regras para a transformação de proposições empíricas


que versam sobre quantidades e grandezas. As proposições da geometria não cons-
tituem descrições das propriedades do espaço, mas regras para a descrição das for-
mas dos objetos empíricos e de suas relações espaciais. Uma prova matemática não
é uma demonstração de verdades acerca da natureza dos números ou das formas
geométricas, mas um caso de formação conceitual: ela determina uma nova regra
para a transformação de proposições empíricas. (GLOCK, 1997, p. 33)

As equações da matemática, por exemplo, são vistas por Wittgenstein co-


mo regras para a transformação de proposições empíricas, isto é, regras de subs-
tituição. Com “2 + 2 = 4” estamos autorizados a passar de “Há dois pares de sa-
patos no chão” para “Há quatro sapatos no chão”. Se o número final de sapatos
não for quatro, esse fato não invalida a expressão matemática. Nem as proposi-
ções da lógica nem as da matemática são asserções sobre fatos. São proposições
que refletem as regras da linguagem; não estão sob a linguagem – não são a face
oculta de uma expressão descritiva. Apenas permitem ou proíbem certas inferên-
cias.
Desse ponto de vista, a matemática não é descritiva, não se refere a nenhum
tipo de realidade, apenas nos dá as condições necessárias para a compreensão do
sentido de certos enunciados em determinados contextos. Por exemplo, dizer que
“por dois pontos passa uma reta” é uma condição de sentido para qualquer afir-

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mação empírica sobre essa reta (desde que estejamos no universo euclidiano), é
uma regra gramatical:

Ao que a regra permite ou proíbe corresponde na gramática o termo ‘com sentido’


e ‘sem sentido’. Vejamos o exemplo da geometria euclidiana, tomada como o sis-
tema de regras sintáticas de que nos valemos para descrever as coisas espaciais.

Que ‘entre dois pontos pode-se traçar uma reta’ significa: a asserção que fala da reta
que passa por esses dois pontos tem sentido, seja verdadeira ou falsa. [A palavra
“posso” tem dois sentidos: ‘posso levantar 10 quilos’, ‘posso traçar uma reta entre
dois pontos’.] (Wittgenstein. In: WAISMANN, 1973, p. 111)

No primeiro enunciado (“posso levantar 10 quilos”), temos uma proposição


descritiva, que pode ser verificada empiricamente; no segundo, usamos o verbo
poder no sentido normativo. A sentença “posso traçar uma reta entre dois pontos” é
uma regra gramatical. A partir dela, posso fazer afirmações descritivas – “esta reta
tem 10 centímetros” ou “tracei uma reta vermelha pelos pontos A e B” etc. Essas
são afirmações empíricas passíveis de verificação, mas que pressupõem o postulado
da geometria euclidiana que lhes dá sentido: o de que por dois pontos é possível
traçar uma reta. Enfim, a regra em si não tem significado, é apenas condição para o
6
significado .
Vejamos então, como a natureza gramatical das proposições matemáticas
elucida alguns dos equívocos decorrentes das concepções construtivistas citadas
acima. Como já expusemos, uma vez que essas proposições não são descritivas,
mas normas de descrição, não há algo (a priori) que as fundamente fora da lingua-
gem, ou que a elas corresponda. Não há sentido, por conseguinte, em esperar do
aluno que ele aja platonicamente, descobrindo entes ou relações matemáticas através
de processos sejam eles empíricos, mentais ou de negociação dentro de uma co-

6 Podemos encontrar outra formulação dessa mesma idéia por Wittgenstein em sua

obra Observações Filosóficas: “O axioma, por exemplo, de que ‘uma linha reta pode ser
traçada entre dois pontos quaisquer’ tem aqui o claro sentido de que, embora nenhuma
linha reta esteja desenhada entre dois pontos arbitrários quaisquer, é possível traçar uma, e
isso significa apenas que a proposição ‘uma linha reta passa por estes pontos’ tem
sentido.” (WITTGENSTEIN, Philosophische Bemerkungen, XVI, 178)

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munidade. Mas tampouco deve-se esperar que o aluno invente a matemática. Os cri-
térios estabelecidos pela comunidade dos matemáticos é que vão guiar a atividade
do aluno, o qual transitará em um campo gramatical pré-estabelecido que até possi-
bilita descobertas, mas em um sentido diferente do das ciências empíricas.

Tratar a matemática como sendo a descoberta de objetos preexistentes obscurece a


diferença entre a matemática e as ciências empíricas. Mas isso não significa dizer
(como algumas vezes tem significado) que, quando o aluno está resolvendo o pro-
blema 22 + 46 =?, está inventando algo ou que, ao continuar a seqüência + 2 com
1002, 1004, não está descobrindo a continuação preexistente dessa série. Uma vez
que as regras e os procedimentos foram estabelecidos, obter 68 é parte do critério
para fazer matemática corretamente; não há invenção aqui. O aspecto inventivo
que Wittgenstein enfatiza aparece quando novos procedimentos são introduzidos,
tais como calcular com números negativos. Aqui Wittgenstein sustenta que o
matemático não está descobrindo a natureza de uma realidade preexistente, mas
inventando novos conceitos ou princípios, os quais após assimilação e acordo por
parte da comunidade matemática tornam-se novos critérios para se fazer
matemática. (GERRARD, 1987, p. 21)

Da mesma forma que uma mesma palavra adquire diferentes significados ao


fazer parte de distintos jogos de linguagem, o conceito de descobrir em matemática
tem um sentido diferente do descobrir empírico, o qual pressupõe que os objetos a
serem descobertos já existem a priori. Além do que, a investigação na matemática se
distingue dos procedimentos investigativos das ciências naturais. Por exemplo, não
recorremos a um experimento para descobrir números primos. Para saber se um
número é primo, recorremos a um processo finito de divisões desse número por
todos os primos menores do que ele. Caso seja divisível apenas por 1 e por ele
mesmo, dizemos que é primo. Em outras palavras, precisamos usar um método de
investigação para “descobrir” se um determinado número é primo ou não. A lei
geral acima que define o que é um número primo não “produz” números primos,
não prevê toda sua seqüência, não é uma fórmula que nos fornece todos os
números primos. Apenas permite concluir se um número é primo ou não. Nesse
sentido, não se trata de uma descoberta de algo que já existia de alguma maneira.
“Descobrir” se um número é primo ou não é aplicar um método que nos permite
concluir se esse número satisfaz as condições da definição de número primo.

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Mas não é só o conceito de número primo que envolve métodos ou téc-


nicas que permitem a aplicação desse conceito a objetos matemáticos (no caso,
aos números inteiros positivos). De modo geral, as proposições da matemática
têm uma natureza sintética, na medida em que envolvem técnicas e procedi-
mentos inerentes a esse determinado jogo de linguagem. Nem todas as suas
proposições são evidentes da mesma forma que “um triângulo é uma figura”, ou
seja, de que faz parte de um triângulo ser uma figura. Somar, por exemplo, 254 +
389, exige uma técnica, seja a do algoritmo da “conta em pé”, seja utilizando um
ábaco, seja contando. Essas técnicas foram desenvolvidas socialmente ao longo
dos tempos, e o conceito de adição está relacionado com elas. Proposições tais
como 254 + 389 = 643 são “cristalizadas” como normas e passam então, a inde-
pender da experiência – tornam-se proposições necessárias, a priori. E é esse caráter
necessário e apriorístico das proposições matemáticas que as distingue de outras
proposições de nossa linguagem. O que não quer dizer que não tenham raízes no
empírico, ou que não possam ter um uso descritivo. “(…) é essencial à matemá-
tica que signos sejam também empregados à paisana. É o uso fora da matemática
e portanto o significado dos signos que transforma o jogo de signos em matemá-
tica.” (Wittgenstein. In: GLOCK, 1997, p. 244)
Essa peculiaridade de suas proposições – semelhantes, por um lado, às re-
gras de um jogo, as quais são autônomas e independentes do empírico, e, por
outro, com aplicações no mundo empírico, possibilitando o trânsito de uma pro-
posição para a outra – caracteriza o conhecimento matemático como um jogo de
linguagem totalmente distinto dos jogos das ciências empíricas, das ciências cog-
nitivas e mesmo das ciências sociais.
Em particular, sob a perspectiva antropológica do construtivismo, não
perceber a distinção acima tem como conseqüência ainda outro equívoco: a
crença de que da mesma forma que novos objetos matemáticos são criados pela
comunidade matemática, o mesmo ocorreria em uma sala de aula. De fato, Cobb
relata uma atividade observada por ele, onde as crianças manipulavam materiais
disponíveis em grupos de 10 ou de 1 para resolver problemas aritméticos. Se-

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A Natureza do Conhecimento Matemático sob a Perspectiva de Wittgenstein 329

gundo ele, elas focalizaram a sua atenção para as suas ações sensório-motoras so-
bre os objetos, vendo-os como coisas a serem contadas.

O significado dos objetos como unidades aritméticas havia emergido no curso das
interações em sala de aula. (...) é o modo como são interpretadas as interações com
os outros e com o mundo físico que tornam matemáticos esses procedimentos e
técnicas. (COBB, 1996, p. 166; grifos nossos)

Como vemos acima, Cobb vê as interações sociais e com o mundo físico


como causas empíricas da constituição dos objetos matemáticos, pressupondo
uma racionalidade natural que levaria a um consenso necessário. Para ele, a con-
tagem de diferentes objetos agrupados teria levado ao conceito de unidades arit-
méticas. Contar, no entanto, já pressupõe a unidade, é uma das aplicações de
nosso conceito de número 7 . Não há, como vimos, uma essência de número que
seria alcançada por aproximações sucessivas, aplicando-se esse conceito inicial-
mente de forma menos rigorosa, para aos poucos ir lapidando-o de modo a
torná-lo fechado, com um significado preciso, como Cobb dá a entender:

A diferença principal entre uma comunidade de matemática e uma comunidade de


alunos de 2ª série do 1º grau são, certamente, seus padrões de rigor. Da mesma
forma que as verdades matemáticas, esses padrões são, eles próprios, produtos so-
ciais. Para a comunidade de alunos de 2ª série do 1º grau resolvendo tarefas aritmé-
ticas, o tribunal de apelação de última instância parece ser contar os objetos físicos.
(COBB, 1996, p. 164)

Sim, os “padrões de rigor” são evidentemente diferentes. Mas isso não


significa tampouco que esses diferentes padrões sejam passíveis de “emergir” a
partir de uma socialização de significados individuais. Tanto um como outro são
convenções que foram adotadas por diversas razões, que transcendem uma mera
negociação de significados. Mesmo a simples contagem de objetos é uma técnica

7 Segundo o matemático e lógico alemão Gottlob Frege, a contagem pressupõe uma

identidade e ao mesmo tempo uma diferença. Por exemplo, o número um se distingue da


unidade, caso contrário não teríamos como contar os objetos, se os vemos apenas como
unidades.

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que levou centenas de anos para ser gestada, dentro de formas de vida com neces-
sidades específicas, como nos mostra a história da matemática. Esse caldeirão de
necessidades empíricas, diferentes culturas e fatos da natureza que constituem
nossas formas de vida propiciaram a cristalização de técnicas as mais diversas,
dentre as quais, a da contagem. Não se trata, portanto, de um produto que
emerge simplesmente de interações sociais, vistas como fundamento último do
conhecimento verdadeiro. Pelo contrário, é a gramática do contar que organiza a
própria comunidade, que permite dar significados para a ação. Em algum mo-
mento da História de nossas culturas instituiu-se a contagem, que passa a ter um
caráter gramatical, transcendendo assim o seu eventual uso empírico. O pastor da
pré-história, que, acredita-se, fazia corresponder a cada ovelha de seu rebanho um
dos gravetos que teria juntado para ter certeza de que nenhuma ovelha estaria
faltando (conforme especulam os antropólogos para explicar a gênese do número
na cultura ocidental), a partir de determinado momento passa a contar o seu reba-
nho. Nesse sentido, o procedimento de contagem não “emerge’ de uma corres-
pondência (e tampouco o conceito de unidade “emerge” a partir de interações em
sala de aula). Esta invenção, por assim dizer, da contagem, uma vez instaurada,
passa a ser aplicada em diferentes contextos. É observando seus diversos empre-
gos que o aluno vai percebendo semelhanças de família nessas aplicações do con-
ceito de contar, e a partir de um determinado momento (não previsível) passa a
aplicá-lo corretamente. Em outras palavras, é a partir de um treino (da contagem)
que a criança passa a ser capaz de aplicar esse conceito em situações empíricas,
inclusive diferentes daquelas nas quais foi iniciado. Poderíamos imaginar que em
uma outra cultura este treino poderia ter se dado de forma diferente. Que uma
criança ao juntar determinados agrupamentos o fizesse de outro modo (cf.
WITTGENSTEIN, 1987, parte I, §38). Mesmo no campo da percepção é sabido
que em determinadas culturas não se distingue o azul do verde, e certos fenôme-
nos de cor são designados pelas palavras fresco ou seco 8 . Da mesma forma que so-
mos treinados a ver, também somos treinados a contar e a pensar de determina-

8 Cf. Pesquisa Fapesp, “As cores secas ou frescas”, n. 91, set. 2003, p. 30.

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das formas. Ter aprendido a contar (através de um treino) foi condição para que
uma criança possa ter calculado, por exemplo, a quantidade de colegas que tem
em sua classe.
Mas poderíamos ainda nos perguntar como, a partir de algumas definições
e axiomas, a matemática “coincide” com o comportamento natural das coisas.
Alegar que suas proposições são paradigmas para a transformação de proposições
empíricas não é suficiente para explicar por quê consideramos válida a expressão
“2 + 2 = 4” e não outra expressão qualquer. Pensamos que a resposta de Witt-
genstein a essa questão o afasta de um convencionalismo radical, ao ter introdu-
zido a noção de “formas de vida”. Em outras palavras, nossas escolhas não são
aleatórias, ou produtos de uma racionalidade intersubjetiva, mas baseadas em
nossas formas de vida. Por exemplo, as escolhas feitas na geometria euclidiana
têm raízes em formas de vida que utilizavam técnicas diversas de medição (como
as dos antigos egípcios, empregadas para medir suas terras em épocas de en-
chentes e vazantes do rio Nilo). Isso não quer dizer que essa geometria tenha
fundamentos empíricos, apenas que existem razões empíricas que levaram a uma
determinada formulação geométrica, dentre várias outras razões (de natureza não
empírica). Mas, como vimos, não há um único uso das proposições matemáticas,
apenas empregadas para descrições empíricas ou apenas vistas como normas.
Se olharmos para a matemática somente como um conjunto de regras a
serem seguidas, continuaremos com algumas questões “girando em falso”. Mas
se, por outro lado, a considerarmos um jogo de linguagem – ou seja, uma ativi-
dade que entrelaça símbolos lingüísticos e técnicas compartilhadas por uma co-
munidade como explicitamos acima – estaremos num terreno entre o transcen-
dental e o empírico. Não necessitamos postular uma realidade matemática, por
mais atenuada que ela seja, para assegurar os significados dos objetos matemáti-
cos. É em seu uso, ou seja, no momento de sua aplicação que a matemática
adquire significado. Por conseguinte, não há um descolamento entre uma reali-
dade matemática e sua linguagem formalizada, mas sim empregos diferentes da
linguagem matemática, ora empírico, ora normativo. Mesmo os jogos de lingua-
gem da matemática que não têm aplicação no mundo empírico, não obstante

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estão de alguma forma relacionados com a matemática aplicada ao manterem


entre si relações de semelhança de família. É esse aspecto da matemática que a di-
ferencia de um mero jogo de axiomas e postulados. Suas proposições se situam
entre o transcendental e o empírico, ou seja, não são entes transcendentes total-
mente desvinculados de nosso mundo empírico, mas tampouco são descritivas
desse mundo como as proposições empíricas.
Concluindo, não há necessidade de assegurar os significados dos objetos
matemáticos procurando-os fora da linguagem matemática, seja através da experi-
mentação do mundo físico (perspectiva experimental do construtivismo), seja
construindo os objetos matemáticos como correlatos de operações mentais pro-
gressivamente desenvolvidas (perspectiva cognitivista) ou como produtos de uma
interação social (perspectiva antropológica) e tampouco como resultados de um
processo consensualmente controlado na microcultura de uma sala de aula (pers-
pectiva “complementar”).
As implicações educacionais de todas essas perspectivas têm como deno-
minador comum a ojeriza de se ensinar através do treino, pois segundo todas elas
os objetos matemáticos devem ser construídos espontaneamente pelos alunos ao
longo das interações sociais ou com o mundo físico. No entanto, como vimos, a
espontaneidade do aprendizado, o fazer sem pensar, só é possível através de um
treino, pois no momento em que passamos a negociar significados já intervém o
ensino que recorre às explicações. Neste segundo momento, já não há mais um
aprendizado “espontâneo” ou natural, mas sim um aprendizado que depende da
vontade do aluno em aceitar ou não as razões e justificativas do professor. Acredi-
tar que o processo de aprendizagem se reduza a apenas ao segundo momento re-
vela uma atitude de certa forma ingênua de todas essas perspectivas construtivis-
tas, principalmente na área de matemática, uma vez que o treino nesse jogo de
linguagem é condição de significação.

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