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Abstract: Nosso propósito é o de apontar alguns equívocos que uma concepção referencial da
linguagem matemática acarreta em seu ensino escolar. As atuais abordagens construtivistas
classificadas de modo geral em perspectivas experimental, cognitivista e antropológica, procuram os
significados dos objetos matemáticos predominantemente ora no empírico, ora na mente do aluno,
ora na interação social, ou seja, em alguma realidade extra-lingüística. Nesse sentido, recorremos à
terapia filosófica de Ludwig Wittgenstein para esclarecer as confusões a que somos levados ao
acreditar que as proposições matemáticas possam descrever a realidade empírica, ou mesmo
entidades abstratas; que reflitam o funcionamento transcendente da mente ou que sejam produto de
uma intersubjetividade consensual. Segundo o filósofo, seu estatuto apriorístico deve-se ao fato de
serem normativas, condições de sentido para as proposições empíricas. Sob essa outra perspectiva,
cai por terra a orientação geral construtivista para que o aluno “descubra” os conhecimentos
matemáticos no mesmo sentido que nas ciências empíricas, ou seja, ao pressuporem uma realidade
matemática pré-existente a ser descoberta, ora no empírico (através de experiências comparti-
lhadas), ora no mental, ora em nossa natureza social (intersubjetiva).
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(...) Por sua vez, entendemos o ‘formalismo pedagógico’, num sentido bastante am-
plo, como aquele estilo de prática educativa em Matemática que extermina, cons-
ciente ou inconscientemente, o significado e o sentido do conhecimento que busca
transmitir, (...) queremos com isso enfatizar duas coisas diferentes: que, por um
lado, [o formalismo] não dá a devida importância ao sistema de relações ligadas
àquele conhecimento, que se constituiu objetivamente no decorrer do processo
histórico-social e que, por outro, marginaliza aqueles aspectos subjetivos – porque
ligados à situação dada e às vivências afetivas do sujeito – que aquele conhecimento
adquire no decorrer do processo de interação do indivíduo com o seu contexto
social atual. (MIGUEL, 1995, p. 8-9)
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dade de seus conceitos. Nesse sentido, para contornar essa dificuldade, dentre
outras, novas vertentes passam a surgir, como por exemplo, a proposta de uma
perspectiva “complementar”, a qual reuniria todas as forças de combate ao for-
malismo, o que seria possível se incluíssemos a noção de comunidade às teorias
construtivistas acima.
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reflexões de Wittgenstein são totalmente indevidas, uma vez que o caráter social
da matemática é apenas um de seus aspectos, e não o que caracteriza a sua natu-
reza. Quando Wittgenstein faz a conexão entre os conceitos de ensino e signifi-
cado, não está se referindo ao processo de negociação dos significados mate-
máticos, mas apontando para o aspecto normativo de determinadas proposições
(inclusive as proposições matemáticas), vistas por ele como condições de sentido
para as demais proposições. Antecipando de forma bem simplificada, sem que
haja o ensino das primeiras, não é possível a apreensão dos significados em geral.
Em outras palavras, Wittgenstein aponta para um processo inverso ao que Cobb
relata. As proposições matemáticas institucionalizadas é que dão sentido à ativi-
dade matemática, e não que sejam geradas por ela, através de processos empíricos
(mentais ou consensuais). São certezas convencionais pertencentes a uma determi-
nada comunidade. “‘Estamos seguramente certos disso’ não significa apenas que
cada único indivíduo está certo disso, mas que pertencemos a uma comunidade a
qual está ligada conjuntamente pela ciência e pela educação.” (WITTGENSTEIN,
DC, §298)
Segundo Wittgenstein, nossas imagens do mundo não são descrições, mas
idéias que cada um tem sobre o mundo. No entanto, não se trata de um mundo
das idéias platônico, pois são idéias públicas, pertencentes a determinadas formas
de vida e práticas sociais. São nossas convicções, que nos permitem agir com
certeza. É nesse sentido que pertencemos à mesma comunidade, e não como
Cobb interpreta, como se através de nossos laços empíricos a comunidade fosse
se constituindo. O que nos liga são nossas certezas a priori. As relações internas a
que Wittgenstein se refere não dizem respeito a um acordo entre opiniões, ou
acordos empíricos de forma geral (como o do tipo “utilitário” a que Cobb se re-
fere), mas a concordâncias nas formas de vida. Trata-se, por conseguinte, de um
acordo prévio às opiniões, que não é sempre explicitado.
Vamos então precisar melhor em que sentido o filósofo austríaco faz essas
afirmações através de um exemplo. Suponhamos que, ao descrever um objeto
digamos, entre outras coisas, que é azul. Alguém poderia perguntar, o que é
“azul”? Ao responder “azul é uma cor”, estamos apenas dando um valor possível
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da “variável” cor. Ensina-se uma nova referência dessa variável. Neste sentido, a
proposição “azul é uma cor” é a priori. É uma “regra de representação” que
pertence às conexões internas do que está sendo representado. Agora passa a
fazer sentido para esse alguém quando descrevo determinado objeto como tendo
a cor azul. Uma vez estabelecida a conexão interna (o que é azul), estamos em
condições de estabelecer a conexão externa entre o objeto e a sua cor. Enfim, toda
descrição supõe formas representacionais, expressas através de proposições que
ele chama de gramaticais.
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Até hoje, os filósofos só falaram contra-sensos? A esta pergunta, poderíamos res-
ponder: não, eles apenas não repararam que usam uma mesma palavra com signifi-
cados muito diferentes. Nesse sentido, dizer que uma coisa é tão idêntica quanto a
outra não é incondicionalmente um contra-senso, pois quem diz isso com convic-
ção quer, nesse momento, dizer algo com a palavra “idêntico” (“grande”, talvez).
Mas o filósofo não sabe que, aqui, ele usou a palavra com um significado diferente
daquele com que ela é usada em 2 + 2 = 4. (WITTGENSTEIN, OF, I, 9)
Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que com a expressão ‘seme-
lhanças de família’; pois assim se envolvem e se cruzam as diferentes semelhanças
que existem entre os membros de uma família: estatura, traços fisionômicos, cor dos
olhos, o andar, o temperamento etc., etc. – E digo: os ‘jogos’ formam uma família.
E do mesmo modo, as espécies de número, por exemplo, formam uma família.
Por que chamamos algo de ‘número’? Ora, talvez porque tenha um parentesco
– direto – com muitas coisas que até agora foram chamadas de número; e por isso,
pode-se dizer, essa coisa adquire um parentesco indireto com outras que chamamos
também assim. E estendemos nosso conceito de número do mesmo modo que
para tecer um fio torcemos fibra por fibra. (WITTGENSTEIN, IF, §67)
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Dizer “isto é azul” apontando para um objeto azul pressupõe que esteja-
mos familiarizados com a “gramática das cores”, ou seja, que saibamos o que é
cor e que também saibamos nos mover de alguma forma no espaço das cores. O
objeto apontado é uma explicação do significado do nome “azul”, e não seu sig-
nificado. Embora os gestos ostensivos não dêem conta de definir os objetos da
experiência imediata, não deixam de ser um caso paradigmático das ligações lin-
guagem – mundo – são como “antenas” da linguagem. Em outras palavras, o
gesto ostensivo é um instrumento lingüístico que nos permite estabelecer uma li-
gação (interna) entre uma palavra e o objeto para o qual apontamos. Mas
poderíamos imaginar outra forma de vida na qual esse gesto tivesse outro signifi-
cado. O que vai determinar esse significado, segundo Wittgenstein, é o jogo de lin-
guagem no qual esse gesto está inserido. A expressão “jogo de linguagem” enfatiza
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o papel que nossas formas de vida têm na utilização de nossas palavras. Todo
jogo de linguagem envolve uma gramática dos usos, as quais estão ancoradas em
uma práxis, em uma forma de vida. Nesse sentido, o elo semântico entre a lin-
guagem e a realidade não é dado apenas pelas regras que governam a linguagem,
mas pelos próprios jogos de linguagem, pois as regras só têm sentido contra o
pano de fundo de um determinado jogo de linguagem. Por conseguinte, os jogos
de linguagem têm primazia sobre as regras. Com o conceito de “jogo de lingua-
gem” Wittgenstein esclarece como atribuímos significado às nossas palavras. Se-
gundo ele, estas só adquirem significados quando operamos com elas, portanto,
dentro de um jogo de linguagem, que seria para Wittgenstein, a totalidade for-
mada pela linguagem e pelas atividades com as quais vem entrelaçada. A palavra
jogo vem ressaltar as diversas atividades com as quais a linguagem se vincula.
A expressão “jogo de linguagem” é essencial na filosofia de Wittgenstein,
pois ele também a emprega como um método para mostrar os diferentes usos
dos conceitos em nossas formas de vida. Como vimos, as palavras não são utili-
zadas apenas para descrever. Mas além das descrições que fazemos a partir de
nossas formas representacionais (uso gramatical) há muitos outros tipos de jogos,
como contar piadas, orar, fazer saudações, perguntar, dar ordens e etc. É dentro
desses jogos que os objetos adquirem significado, quando operamos com eles, e
não quando simplesmente os relacionamos às imagens que fazemos deles. Desse
novo ponto de vista, Wittgenstein faz uma crítica demolidora à concepção refe-
rencial da linguagem, pois não há mais necessidade de se postular entidades ex-
tralingüísticas como condições necessárias da significação. Temos como evitar as
dificuldades do modelo referencial da linguagem ao considerarmos “as diversas
práticas ligadas à linguagem como sendo o meio através do qual são estabelecidas
as ligações entre signos e objetos e, além disso, como sendo instrumentos lingüísti-
cos. É nesse sentido que tais práticas fazem parte da gramática dos usos.”
(MORENO, 1995, p. 25)
Eis aqui um ponto crucial: o caráter lingüístico dessas práticas exclui uma
fundamentação empírica para o significado que seja independente do jogo de lin-
guagem em questão. A ação de juntar dois grupos diferentes de objetos para de-
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Por isso, ‘seguir a regra’ é uma prática. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra.
E por isso não se pode seguir a regra ‘privatim’, porque, do contrário, acreditar
seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra. (WITTGENSTEIN, IF, §202)
também recorre a uma visão de detalhe, a saber, as diferentes aplicações de uma palavra
no interior de um mesmo jogo de linguagem. Por exemplo, o emprego ora descritivo da
palavra azul, ora normativo, quando nos movemos dentro de nossa gramática das cores.
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ção da palavra triângulo. Uma vez formado o conceito, este prescinde da existência
de formas triangulares para que tenha significado e possa ser aplicado. Nesse
sentido, a definição da palavra triângulo – “um polígono fechado de três lados”
também pode ser vista como uma regra de utilização desta palavra. Dizer que
“triângulo é um polígono que tem três lados” não é uma descrição de triângulo
– essa proposição define o que é um triângulo. Estabelece-se uma conexão interna
entre conceitos. A palavra não se refere a algum ente ideal em um céu platônico,
da mesma forma que “azul” não corresponde a algo inefável. A definição de um
símbolo é apenas uma regra para o uso desse símbolo. Compreender a palavra
“triângulo” é saber seguir a regra de utilização dessa palavra, e não a apreensão do
que é triângulo (ou do que é “azul”). As definições têm uso gramatical e não des-
critivo.
Assim, aprender o significado de uma palavra pode consistir na aquisição de
uma regra, ou um conjunto de regras, que governa seu uso dentro de um ou mais
jogos de linguagem. Uma das conseqüências dessa idéia para a educação é que
não há sentido em se ensinar um significado essencial de uma palavra indepen-
dente de seus diversos usos. Uma palavra só adquire significado quando se opera
com ela, ou seja, seguindo uma regra4 em um determinado contexto lingüístico.
Por exemplo, ao ouvir a palavra “triângulo” podemos entendê-la como uma placa
de trânsito, pertencente a um conjunto de regras que nos obriga a dirigir um au-
tomóvel em conformidade com elas. Podemos também associar essa palavra a
um determinado timbre musical, característico dos instrumentos metálicos. Já
dentro do jogo de linguagem da geometria euclidiana esta palavra designa uma fi-
gura geométrica definida através de termos característicos desse jogo de lingua-
gem (termos primitivos do sistema axiomático da geometria euclidiana). Da
mesma forma, ao ouvir a palavra “azul”, podemos tanto recorrer a imagens
mentais como a uma tabela que associa imagens de cores a seus respectivos no-
4 O conceito de regra aqui deve ser entendido num sentido bem geral: embora tenha
função normativa, não se reduz a comando e ordens. As regras de nossa linguagem coti-
diana, por exemplo, nos dizem o que é falar corretamente ou com sentido. São como pa-
drões de correção, governando uma multiplicidade ilimitada de ocorrências.
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todas paralelas à primeira e passando pelo ponto dado; ou duas retas com orien-
tações opostas passando por esse ponto; ou ainda é muito provável que imagine
um ponto no espaço de três dimensões, sendo plenamente possível conceber
infinitas retas passando por esse ponto e paralelas à reta dada. Enfim:
Não são experimentos empíricos que esclarecem a evidência [do axioma das para-
lelas], pois, ainda que eles pudessem contradizer o axioma, continuaríamos a aceitá-
lo como evidente. Podemos apresentar uma imagem como prova da evidência do
axioma, e aceitá-la como prova significa atribuir uma determinada aplicação à ima-
gem ou à proposição que a exprime: aplica-se a situações teóricas em que as linhas
não se superpõem, não têm orientação e estão em um espaço plano; sem essa apli-
cação, a imagem não é uma prova e nem a proposição um axioma. (MORENO,
1995, p. 53)
Um axioma não é evidente porque descreve algum fato ou por ser reflexo
de alguma intuição, ou ainda por ser produto de um consenso entre pares de uma
microcultura; mas por ter uma função normativa. Acreditar que tenha uma fun-
ção descritiva é incorrer numa generalização indevida como, por exemplo, supor
que sempre temos uma única reta paralela passando por um ponto fora de uma
reta dada, independentemente do contexto em que essa proposição se enuncia. O
axioma das paralelas é evidente, necessário, na geometria euclidiana. Nesse contexto
atribuiu-se-lhe uma necessidade que não vigora em outra geometria como na de
Riemann ou na de Lobatchevsky 5 . Os axiomas e postulados da matemática po-
dem ser vistos como regras, e não como “intuições” ou “fatos evidentes”. E da
mesma forma todas as proposições que são deduzidas desses axiomas e postula-
dos. Axiomas, postulados e definições são vistos por Wittgenstein como regras
básicas (constitutivas) que não podem ser negadas; são consideradas proposições
gramaticais.
vamente por “é possível passar mais de uma paralela a uma reta dada por um ponto fora
dela” (Lobachevsky) e “por um ponto fora de uma reta dada não se pode traçar paralela
alguma a esta reta” (Riemann).
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‘Se a demonstração nos convence, também temos que estar convencidos, então,
dos axiomas.’ Não como o estamos de proposições empíricas; não é esse o seu pa-
pel. No jogo de linguagem, estão excluídos da verificação através da experiência.
Não são proposições da experiência, mas princípios de juízo. (WITTGENSTEIN,
OFM, VII, 73)
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mação empírica sobre essa reta (desde que estejamos no universo euclidiano), é
uma regra gramatical:
Que ‘entre dois pontos pode-se traçar uma reta’ significa: a asserção que fala da reta
que passa por esses dois pontos tem sentido, seja verdadeira ou falsa. [A palavra
“posso” tem dois sentidos: ‘posso levantar 10 quilos’, ‘posso traçar uma reta entre
dois pontos’.] (Wittgenstein. In: WAISMANN, 1973, p. 111)
6 Podemos encontrar outra formulação dessa mesma idéia por Wittgenstein em sua
obra Observações Filosóficas: “O axioma, por exemplo, de que ‘uma linha reta pode ser
traçada entre dois pontos quaisquer’ tem aqui o claro sentido de que, embora nenhuma
linha reta esteja desenhada entre dois pontos arbitrários quaisquer, é possível traçar uma, e
isso significa apenas que a proposição ‘uma linha reta passa por estes pontos’ tem
sentido.” (WITTGENSTEIN, Philosophische Bemerkungen, XVI, 178)
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munidade. Mas tampouco deve-se esperar que o aluno invente a matemática. Os cri-
térios estabelecidos pela comunidade dos matemáticos é que vão guiar a atividade
do aluno, o qual transitará em um campo gramatical pré-estabelecido que até possi-
bilita descobertas, mas em um sentido diferente do das ciências empíricas.
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gundo ele, elas focalizaram a sua atenção para as suas ações sensório-motoras so-
bre os objetos, vendo-os como coisas a serem contadas.
O significado dos objetos como unidades aritméticas havia emergido no curso das
interações em sala de aula. (...) é o modo como são interpretadas as interações com
os outros e com o mundo físico que tornam matemáticos esses procedimentos e
técnicas. (COBB, 1996, p. 166; grifos nossos)
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que levou centenas de anos para ser gestada, dentro de formas de vida com neces-
sidades específicas, como nos mostra a história da matemática. Esse caldeirão de
necessidades empíricas, diferentes culturas e fatos da natureza que constituem
nossas formas de vida propiciaram a cristalização de técnicas as mais diversas,
dentre as quais, a da contagem. Não se trata, portanto, de um produto que
emerge simplesmente de interações sociais, vistas como fundamento último do
conhecimento verdadeiro. Pelo contrário, é a gramática do contar que organiza a
própria comunidade, que permite dar significados para a ação. Em algum mo-
mento da História de nossas culturas instituiu-se a contagem, que passa a ter um
caráter gramatical, transcendendo assim o seu eventual uso empírico. O pastor da
pré-história, que, acredita-se, fazia corresponder a cada ovelha de seu rebanho um
dos gravetos que teria juntado para ter certeza de que nenhuma ovelha estaria
faltando (conforme especulam os antropólogos para explicar a gênese do número
na cultura ocidental), a partir de determinado momento passa a contar o seu reba-
nho. Nesse sentido, o procedimento de contagem não “emerge’ de uma corres-
pondência (e tampouco o conceito de unidade “emerge” a partir de interações em
sala de aula). Esta invenção, por assim dizer, da contagem, uma vez instaurada,
passa a ser aplicada em diferentes contextos. É observando seus diversos empre-
gos que o aluno vai percebendo semelhanças de família nessas aplicações do con-
ceito de contar, e a partir de um determinado momento (não previsível) passa a
aplicá-lo corretamente. Em outras palavras, é a partir de um treino (da contagem)
que a criança passa a ser capaz de aplicar esse conceito em situações empíricas,
inclusive diferentes daquelas nas quais foi iniciado. Poderíamos imaginar que em
uma outra cultura este treino poderia ter se dado de forma diferente. Que uma
criança ao juntar determinados agrupamentos o fizesse de outro modo (cf.
WITTGENSTEIN, 1987, parte I, §38). Mesmo no campo da percepção é sabido
que em determinadas culturas não se distingue o azul do verde, e certos fenôme-
nos de cor são designados pelas palavras fresco ou seco 8 . Da mesma forma que so-
mos treinados a ver, também somos treinados a contar e a pensar de determina-
8 Cf. Pesquisa Fapesp, “As cores secas ou frescas”, n. 91, set. 2003, p. 30.
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das formas. Ter aprendido a contar (através de um treino) foi condição para que
uma criança possa ter calculado, por exemplo, a quantidade de colegas que tem
em sua classe.
Mas poderíamos ainda nos perguntar como, a partir de algumas definições
e axiomas, a matemática “coincide” com o comportamento natural das coisas.
Alegar que suas proposições são paradigmas para a transformação de proposições
empíricas não é suficiente para explicar por quê consideramos válida a expressão
“2 + 2 = 4” e não outra expressão qualquer. Pensamos que a resposta de Witt-
genstein a essa questão o afasta de um convencionalismo radical, ao ter introdu-
zido a noção de “formas de vida”. Em outras palavras, nossas escolhas não são
aleatórias, ou produtos de uma racionalidade intersubjetiva, mas baseadas em
nossas formas de vida. Por exemplo, as escolhas feitas na geometria euclidiana
têm raízes em formas de vida que utilizavam técnicas diversas de medição (como
as dos antigos egípcios, empregadas para medir suas terras em épocas de en-
chentes e vazantes do rio Nilo). Isso não quer dizer que essa geometria tenha
fundamentos empíricos, apenas que existem razões empíricas que levaram a uma
determinada formulação geométrica, dentre várias outras razões (de natureza não
empírica). Mas, como vimos, não há um único uso das proposições matemáticas,
apenas empregadas para descrições empíricas ou apenas vistas como normas.
Se olharmos para a matemática somente como um conjunto de regras a
serem seguidas, continuaremos com algumas questões “girando em falso”. Mas
se, por outro lado, a considerarmos um jogo de linguagem – ou seja, uma ativi-
dade que entrelaça símbolos lingüísticos e técnicas compartilhadas por uma co-
munidade como explicitamos acima – estaremos num terreno entre o transcen-
dental e o empírico. Não necessitamos postular uma realidade matemática, por
mais atenuada que ela seja, para assegurar os significados dos objetos matemáti-
cos. É em seu uso, ou seja, no momento de sua aplicação que a matemática
adquire significado. Por conseguinte, não há um descolamento entre uma reali-
dade matemática e sua linguagem formalizada, mas sim empregos diferentes da
linguagem matemática, ora empírico, ora normativo. Mesmo os jogos de lingua-
gem da matemática que não têm aplicação no mundo empírico, não obstante
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