Literaturas Africanas de Língua Portuguesa – V Prof.ª Dr. Rita Chaves
Fyllype Pereira Calado Silva
8569322
Resenha de Mulheres de cinzas: as areias do imperador: uma trilogia
moçambicana
Ambientado em 1895, o romance histórico de Mia Couto, Mulheres de
cinzas: as areias do imperador, primeiro livro de uma trilogia, narra a derrota do Estado de Gaza – segundo maior império africano dirigido por um africano – que tinha como imperador Ngungunyane (Gungunhane, como era chamado pelos portugueses). A história apresentada mostra um ambiente de ainda não existência completa de Moçambique como colônia de Portugual e de resistência por parte do imperador Ngugunyane que persiste até 1895, quando se dá sua derrota frente a Portugal. O romance é construído a partir de duas perspectivas principais e diferentes. A primeira que é apresentada ao leitor é a de Imane, uma menina negra e nascida na tribo dos Vatxopi – “uma pequena tribo no litoral de Mocambique” (p.17) –, que narra os acontecimentos a sua volta a partir de sua visão das coisas. Visão essa marcada pela divisão de sua subjetividade, quanto aos costumes de sua tribo e os costumes portugueses, com que teve contato durante sua formação (o que acarretou no fato de conseguir falar português) e o peso de seu nome, como ela mesma afirma no primeiro capítulo do livro: “Chamo-me Imani. Este nome que me deram não é um nome. Na minha língua materna ‘Imani’ quer dizer ‘quem é?’. Bate-se a uma porta e, do outro lado, alguém indaga:/ - Imani?” (p.15). E, para reforçar ainda mais o peso de seu nome na construção de seu ser, a protagonista ainda afirma: “Eu teria por nome um nome nenhum: Imani.” (p.16). A segunda perspectiva com que é apresentada a história do romance, e que se alterna em capítulos com a anteriormente apresentada, é a do sargento Germano de Melo. Tendo sido preso por tramar um golpe contra a coroa portuguesa, Germano é condenado ao degredo em Moçambique, onde serviria como sargento na guerra que se passa contra o Estado de Gaza. Sua visão se dá por meio de cartas que ele envia a seu superior que se encontra em Portugal, Conselheiro José d’Almeida, e são espécies de relatórios de sua vivência no território moçambicano marcado pela guerra civil-colonial. Entretanto, durante o desenvolvimento do romance, as cartas passam de um teor estritamente documental para um teor, confessional, quando Germano apresenta seus sentimentos com relação ao local em que vive e principalmente à Imani, com quem passa a ter contato enquanto sargento português. As duas personagens do romance têm seus destinos entrelaçados primeiro pela condição de guerra. Ambos se encontram do lado oposto ao Estado de Gaza. O segundo motivo que os aproxima volta-se à construção de seus seres, pois Imane traz em si a marca de um não nome, uma espécie de inexistência, e a dualidade, pois carrega os costumes de seu povo junto aos costumes portugueses – marca que se dá também em sua família, como se pode observar a partir das escolha feitas pelos seus irmãos, com um deles servindo a Ngungunyane e o outro, aos portugueses – como Germano, que é um soldado sem o ser, já que, na verdade, não passa de um degredado que não vê o modo com que Portugal é governado como aquele para o futuro. O romance, a partir de seu desenvolvimento por pontos de vista distintos, busca definir uma identidade aceitando sua indefinição – reflexo das personagens que narram o romance. Além disso, ele é uma busca pela revisão do momento histórico em que se passa. Sendo uma arena de disputa das memórias, a obra busca refletir sobre a imagem do imperador do Estado de Gaza, Ngungunyane, que é carregada de polêmica – considerado por uns como herói e, por outros, como um sujeito terrível – e sobre a formação de Moçambique, já que isso se dá a partir do momento em que Gugunhana é derrotado. O autor, então, não dá razão a nenhum dos lados apresentados com relação a tal polêmica e busca a reflexão quanto a tudo o que se passa. O cenário em que se passa a história é composto pela guerra e, consequentemente, por uma extrema violência, que se dá de maneira simbólica com a apresentação das armas, das marcas nos corpos das personagens, da história dos antepassados, por exemplo, e pelo retrato de sociedades marcadas pela brutalidade e pelo erro, referindo-se tanto a Portugal como ao Estado de Gaza. Apesar de tal cenário, há a tentativa das personagens narradoras de se relacionarem – o que talvez se explique pela proximidade da construção dos seus seres –, ato influenciado, em alguma medida, pelo pai de Imane, que buscava proteção para a sua família. A obra é marcada, para finalizar este texto, pela busca da representação daquilo que foi a última barreira para que Moçambique passasse a ser uma colônia portuguesa por inteira, mostrando, a partir de uma prosa poética (típica de Mia Couto) e de fatos fantásticos, as tradições e o misticismo de um povo junto da complexidade dos seres humanos em meio à guerra e a reconstrução do nascimento do que viria a ser Moçambique de hoje.
Bibliografia - COUTO, Mia. Mulheres de cinzas: as areias do imperador: uma trilogia moçambicana. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.