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ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Alfredo Bosi. 5ª ed.

São Paulo: Martins


Fontes, 2007.

MEMÓRIA (p.657-659)
(gr. uviíur]; lat. Memória; in. Memoiy fr. Mémoire-, ai. Gedachtnis-, it. Memória).
“Possibilidade de dispor dos conhecimentos passados. Por conhecimentos passados é
preciso entender os conhecimentos que, de qualquer modo, já estiveram disponíveis, e não já
simplesmente conhecimentos do passado. O conhecimento do passado também pode ter formação
nova: p. ex., dispomos agora de informações acerca do passado de nosso planeta ou de nosso
universo que não são recordações. Conhecimento passado também não é simplesmente marca,
vestígio, pois estas são coisas presentes, não passadas. A tristeza ou a imperfeição física causadas
por um acidente não são a M. desse acidente, apesar de serem vestígios dele, ao passo que a
recordação pode estar disponível e pronta, sem precisar da ajuda de nenhum vestígio, como no
caso da fórmula para o matemático e, em geral, das lembranças decorrentes da formação ou de
hábitos profissionais.
A M. parece ser constituída por duas condições ou momentos distintos: 1" conservação ou
persistência de conhecimentos passados que. por serem passados, não estão mais à vista: é a
retentiva; 2" possibilidade de evocar, quando necessário, o conhecimento passado e de torná-lo
atual ou presente: é propriamente a recordação. Esses dois momentos já foram distinguidos por
Platão, que os chamou respectivamente de "conservação de sensações" e "reminiscência" (Fii, 34
a-c). e por Aristóteles, que utiliza esses mesmos termos. Aristóteles também propõe claramente o
problema decorrente da conservação da representação como marca (impressão) de um
conhecimento passado: "Se em nós permanecer algo semelhante a uma marca ou a uma pintura,
como pode a percepção dessa marca ser M. de alguma outra coisa e não apenas de si? De fato.
quem lembra vê apenas a marca e só dela tem sensação; como pode então lembrar o que não está
presente?" (DeMeni.. 1, 450 b 17). A resposta de Aristóteles a essa questão é que a marca na alma
é como um quadro que pode ser considerado por si ou pelo objeto que representa. A. diz: "Assim
como um animal pintado num quadro é animal e imagem, sendo ao mesmo tempo ambas as
coisas, ainda que o ser dessas coisas não seja o mesmo, podendo ele ser considerado como animal
ou como imagem, também a imagem mnemônica que está em nós deve ser considerada como
objeto por si mesmo e, ao mesmo tempo, como representação de alguma outra coisa" (fbid, 450 b
21). Segundo Aristóteles, a explicação do processo da M., tanto como retentiva quanto como
recordação, é inteiramente física: a retentiva e a produção de impressão decorrem de um
movimento, assim como de um movimento decorre a lembrança/recordação. Contudo, a
recordação, ao contrário da retentiva, é uma espécie de dedução (silogismo), pois "quem recorda
deduz que já escutou ou percebeu aquilo de que se lembra; isso é uma espécie de busca" (Ibici.,
453 a 11). Portanto, a recordação é própria apenas dos homens. Com isso, Aristóteles evidenciava
outra característica fundamental da M. como recordação: seu caráter ativo de deliberação ou de
escolha. A análise platônico-aristotélica cia M. trouxe à baila os seguintes aspectos: a) distinção
entre retentiva e recordação; b) o reconhecimento do caráter ativo ou voluntário da recordação,
diante do caráter natural ou passivo da retentiva; c) base física da recordação como conservação
de movimento ou movimento conservado. Pode-se dizer que esses aspectos não mudaram ao
longo da história desse conceito. Todavia, as doutrinas posteriores podem ser subdivididas em
dois grupos, segundo o ponto de partida para a interpretação da M: M. como retentiva ou
conservação ou M. como recordação.
A) A psicologia antiga ressaltou aspecto de M. como conservação, persistência, de
conhecimentos adquiridos. O modo místico como Plotino trata o assunto, além de negar a base
física da M. e considerar o corpo mais como obstáculo do que como ajuda (Enn., IV, 3, 26),
afirma a proporção entre M. e força ou persistência de conservação: "Se a imagem persiste na
ausência do objeto, já há M., mesmo que persista por pouco; se persiste por pouco, a M. 6 curta;
se dura mais, a M. aumenta porque a força da imaginação é maior; e, se dificilmente falha, a M. é
indestrutível" (Ibicl, IV, 3, 29). De maneira análoga, a lista feita por S. Agostinho dos "milagres"
da M. baseia-se no conceito de M. como receptáculo dos conhecimentos ou, segundo sua
expressão, "ventre da alma" (Conf., X, 14). Esse é também o conceito dos filósofos medievais. S.
Tomás dá-lhe o nome de "tesouro e local de conservação das espécies" (.V. Th., I, q. 29, a. 7),
repetindo um lugar-comum da filosofia medieval. Isso equuivalia a insistir na M. como retentiva.
Mas as concepções modernas e contemporâneas também vêem a M. como conservação;
retomando a concepção agostiniana do tempo como distentio animi ou duração de consciência,
vêem na M. a conservação integral do espírito por parte de si próprio, ou seja, a persistência nele
de todas as suas ações e afeições, de todas as suas manifestações ou modos de ser. Essa
concepção já foi exposta por Leibniz, que concebia a M. como conservação integral sob forma
de virtualidade ou de "pequenas percepções" das ideias que não têm mais forma de pensamentos
ou de "apercepções"; donde observar, em oposição a Locke: "Se as ideias não fossem mais que
formas ou modos de pensamentos, cessariam com eles; contudo o Sr. mesmo reconheceu que elas
são os objetos internos dos pensamentos e que, como tais, podem subsistir. Surpreende-me que
possa, então, subestimar essas potências ou faculdades puras, deixando-as, ao que parece, sob os
cuidados dos filósofos da escola" (Nouv. ess., II, 10, 2). Em virtualidade ou faculdade pode e
deve conservar-se integralmente todo ato ou manifestação do espírito, já que o espírito é
justamente essa autoconservação. Tal é a concepção de M. por parte da filosofia espiritualista ou
consciencialista. A melhor exposição dessa concepção encontra-se em Bergson (Matéria e M.,
1896), que a contrapôs à concepção de M. baseada na recordação. Bergson disse: "A M. não
consiste na regressão do presente para o passado, mas, ao contrário, no progresso do passado ao
presente. É no passado que nós nos situamos de chofre. Partimos de um estado virtual, que pouco
a pouco, através de uma série de planos de consciência diferentes, vamos conduzindo até o termo
em que ele se materializa em apercepção atual, ou seja, até o ponto em que se transforma em
estado presente e agente, enfim, até o plano extremo de nossa consciência sobre o qual se desenha
nosso corpo. A recordação pura consiste nesse estado virtual" (Matère et mémoire, 7- ed., p. 245).
A M. pura (ou recordação pura) é a corrente de consciência em que tudo é conservado no estado
de virtualidade. A limitação da lembrança efetiva não pertence à M., mas à recordação atual, que
Bergson identifica com a percepção e que é uma escolha realizada na M. pura, para as exigências
da ação. Portanto, as lesões cerebrais não afetam a M. propriamente dita, mas apenas a
reminiscência das lembranças na percepção, ou seja, o mecanismo pelo qual a M. se insere no
corpo e transforma-se em ação. Essa teoria, que Bergson apoiava na análise dos distúrbios das
funções mnemônicas, caracteriza-se por dois pontos fundamentais: 1) a distinção entre M. pura e
recordação, entendendo-se por M. pura a conservação integral, independente de qualquer
circunstância, do espírito por parte do espírito; ora, é evidente que essa M. nada tem a ver com a
memória observável; 2) negação de qualquer base fisiológica para a M. pura e limitação da base
fisiológica ao fenômeno da percepção. Essa negação tampouco é confirmada por fatos; seu
precedente histórico é a teoria de Plotino. A partir de Descartes (Princ. phil, IV, 196), a base
fisiológica da M. não é negada. A mesma conservação integral do espírito por parte do espírito é a
"corrente da consciência", de que fala Husserl, pois ele também recorre ao conceito empregado
por Leibniz e Bergson, de virtualidade ou potencialidade como marca da M. Husserl diz: "As
coisas podem ser vivenciadas não só na apercepção, mas também na recordação e nas
representações afins à recordação. (...) À essência dessas vivências pertence a importante
modificação que, do modo de atualidade, transporta a consciência para o modo de inatualidade, e
vice-versa. Num caso, a vivência é consciência explícita de seu objeto; em outro, é consciência
implícita, apenas potencial" (Ideen, I, § 3*5). O pressuposto é sempre o da total conservação do
conteúdo da consciência: o fenômeno da recordação é ligado à passagem do conteúdo do estado
atual para o potencial, ou vice-versa.
B) Pertencem a um segundo grupo as teorias da M. cujo ponto de partida é o fenômeno da
recordação. Hobbes, p. ex.. definiu a M. como "a sensação de já ter sentido" (Decoip., 25, 1), o
que significa defini-la em relação ao ato de se reconhecer, naquilo que se percebe, o que já se
percebeu outra vez. A partir desse ponto de vista, Wolff definiu a M. como "faculdade de
reconhecer as ideias reproduzidas e as coisas por elas representadas" (Psychol. rationalis, § 278):
conceito que também se encontra em Baumgarten (Met., § 579). Desse ponto de vista, tende- se
algumas vezes a reconhecer o caráter ativo da M.. ou seja, a função da vontade ou da escolha
deliberada ao evocar as recordações. Locke dizia: "Nessa evocação das ideias depositadas na M.,
o espírito não é puramente passivo porque a representação destes quadros adormecidos ás vezes
depende da vontade" (Ensaio, II, 10, 7). Kant ressaltava igualmente esse caráter ativo: "A M.
difere da simples imaginação reprodutiva porque, podendo reproduzir voluntariamente à
representação precedente, a alma não está à mercê dela" (Antr., 1, § 34). A esse mesmo grupo de
doutrinas pertencem: a) as que interpretam a M. como inteligência; b) as que interpretam a M.
como mecanismo associativo.
a) Hegel interpretou a M. como inteligência ou pensamento (sempre em seu aspecto de
recordação), vendo nela "o modo extrínseco, o momento unilateral da existência do pensamento".
Kant nota que a língua alemã confere à M. "a elevada posição de parentesco imediato com o
pensamento" (Ene, § 464). Segundo Hegel. A M. é o pensamento exteriorizado, pensamento que
acredita encontrar algo de externo, a coisa que é lembrada ou recordada, mas que na realidade
encontra-se a si mesmo, porque a coisa lembrada ou recordada também é pensamento. Por isso,
Hegel diz que, "como M., espírito torna-se, em si mesmo, algo de externo, de tal modo que o que
é seu aparece como algo que é encontrado" (Ibíd., § 463). Aqui a M. é interpretada sobretudo
como recordação; é evidente o parentesco dessa doutrina com as espiritualistas ou
consciencialistas: a identificação da M. com o pensamento tem o mesmo sentido da unificação da
M. com a consciência ou com sua duração.
b) O conceito de M. como mecanismo associativo foi expresso pela primeira vez por
Spinoza do seguinte modo: "A M. nada mais é que certa concatenação de idéias que implicam a
natureza das coisas que estão fora do corpo humano; essa concatenação se produz na mente
segundo a ordem e a concatenação das afeições do corpo humanei". Spinoza faz a distinção entre
a concatenação cia M. e a das idéias, "que ocorre segundo a ordem do intelecto, igual em todos
os homens" (/:'/., II, 18, schol.). Não há dúvida, portanto, cie que Spinoza fazia alusão a um
mecanismo associativo semelhante ao que mais tarde foi teorizado por Hume: "E evidente que
existe um princípio cie conexão entre os diversos pensamentos ou idéias cio espírito e que, ao
surgirem na M. ou na imaginação, apresentam-se sucessivamente com certo grau de método e
regularidade" (Inq. Cone. 1'nderst., III). Como se sabe, Hume enunciava três leis de associação:
semelhança, contigüidade e causalidade; mas só as duas primeiras foram empregadas pela
psicologia associacionista para explicar os fenômenos psíquicos.
Grande parte da psicologia moderna baseou- se na hipótese associacionista ao estudar os
fenômenos da M., até que a psicanálise, por um lado, e a gestalt, por outro, mostrassem a
importância dos interesses e cias atitudes volitivas na recordação, bem como a importância cie
toda a personalidade no reconhecimento do já visto. O estudo experimental da M. confirmou as
palavras de Nietzsche: "Fiz isto — diz-me a memória. Não posso ter feito — sustenta meu
orgulho, que é inexorável. Finalmente, quem cede é a M." (Jenseit von Cíut und Rose, 1886. §
68). Assim, as análises psicológicas modernas continuam girando em torno do fato da recordação,
mais do que em torno da retentiva, que continua sendo preferida pelas teorias filosóficas da
memória.

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