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Francisco de Oliveira

as decisões cruciais:

DEMOCRACIA
O significado das decisões cruciais sobre o cia generalizada e indiscriminada, ao qual se
futuro do sistema político brasileiro não se contraporia uma ordem, mais violenta ainda,
restringe aos graus de legitimidade que as aparentemente dirigida contra os marginais e
eleições diretas para Presidente da República os assaltantes quotidianos. Esta sempre foi,
propiciam para a prática de uma política que classicamente, uma das condições para o fascis-
resgate o país de sua pior crise, nem aos sova- mo. Quando as estações de rádio disputam a
dos argumentos de que a crise é o pior mo- peso de ouro — 22 milhões de cruzeiros
mento para a tomada das referidas decisões, mensais contrapostos ao salário-mínimo de 57
do que decorreria a manutenção do sistema — mil cruzeiros — o contrato dos Gil Gomes
não chame-se a isto de eleições — das indiretas. arautos da violência privada, as bestas do Apo-
Através de múltiplos percalços, entre os calipse estão quase nas ruas. Falta apenas trans-
quais se inclui a dura repressão destrutora da formá-la em violência pública oficial. Entre
identidade social, a sociedade brasileira logrou nós, digamos sem rebuços, esta é a fonte de
construir um sistema de referências políticas força dos malufismos lobo em pele de cor-
simbólicas, no centro do qual a democracia é deiro.
a chave, que surpreende o observador pessi- Por isso, as decisões cruciais de hoje não
mista atento apenas às dificuldades da sobre- têm apenas valor tático, seja ele um novo esca-
vivência material das classes e grupos de pes- moteamento imposto pelo regime, seja o aca-
soas, assolados por uma inflação anual que já bamento da biografia política de alguns, ou
ultrapassou os 200%. Esse sistema de refe- mesmo uma visão imediatista da legitimidade:
rências é, ele mesmo, um signo de uma socie- elas têm uma importância estratégica, iniludí-
vel. De sua resolução sairá a resposta ao enig-
dade de massas trabalhada pela modernidade,
ma da modernidade da sociedade de massas
e dele não está ausente, senão que é uma de
no Brasil. O desafio de construir uma socie-
suas condições básicas, o intenso desenvolvi-
dade democrática onde a democracia se cons-
mento da comunicação de massas.
titua no campo de lutas das transformações
Esta sociedade de massas pobre que não econômica, social, política e cultural, ou uma
teve tempo de transitar por uma sociedade de sociedade de massas decepcionada pelo logro
classes — é uma sociedade de classes em que da usurpação de seu referencial simbólico,
a representação se dá pelos meios da socie- presa inerme das aventuras totalitárias, escár-
dade de massas — logrou elaborar uma refe- nio de sua própria modernidade, o algoz se
rência universal, a democracia, depois de atin- apresentando como salvador.
gida pelos regimes que se sucederam desde o Para além das querelas paroquiais, das velei-
golpe de Estado de 1964 no coração mesmo dades biográficas e do minueto conservador, as
de seus processos de identificação social. Ela eleições diretas já não são apenas a impaciência
retira da sociedade de massas talvez seu melhor de uma conjuntura: elas podem ser a chave da
produto; essa identificação que não percorre impaciência de um futuro democrático e radi-
apenas os sendeiros das classes e das situações calmente transformador. O desafio posto à
materiais que lhes são peculiares, lição que sociedade brasileira talvez não tenha paralelo
deveria ser aprendida pelos que representam histórico: a chance de transformar um proces-
ou querem representar o povo. so massificador num processo liberador. Nossa
Essa modernidade não deixa, entretanto, de oportunidade histórica, nacional e coletiva, está
ser ambígua, decorrência mesma de seu rápido jogada: além do Rubicão, se nos oferece o
trânsito e de sua conformação pela cultura de imenso campo da democracia como forma de
massa. Ela comporta também os riscos do luta e de transformação ou a cacofonia eletrô-
atendimento aos apelos de outros referenciais nica dos Goebels histéricos da impotência
universalizantes: o apelo ao pânico da violên- coletiva.

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