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ne rae 26 ensalos SOBRE A DEGRADAGAO 2 DOS VALORES O que temos a perder As conveniéncias da corrupgao SeX0 € mals Sexo, o tempo todo Quem matou a infancia? ee Uma Arte Perdida >) ecentemente, durante uma pequena visita a duas galerias de Nova =< York, como se recebesse um guia escolar, fui presenteado com \ uma perfeita demonstrac4o da revolucao que transformou a sen- sibilidade estética no século XX. Em exibicgdo, na Adelson Galleries da 67" Street, encontravam-se gravuras ¢ desenhos de Mary Cassatt, parte de um entdo restrito acervo de seu préprio estudio. Dois quarteires para frente, pendurados nas paredes da Salander-O’Reilly Galleries, na 69" Street, encontravam-se dezesseis “obras-primas tardias” de Joan Miré, que tinham vindo da Fundacié Pilar I Joan Mird em Maiorca. Produzidos apenas oitenta anos depois dos trabalhos de Cassatt, os quadros de Miré pareciam artefatos provenientes de um universo completamente distinto. Ao ver as duas exposi¢des no mesmo dia, néo pude deixar de imaginar se realmente seria inevitavel tamanha perturbacdo na sensibilidade. Se isso seria desejavel — essa era uma questao mais facil. Miro foi um dos maiores pintores do século XX, um homem de um talento absolutamente prodigioso, de modo que minha primeira conclusac foi de que, talvez, essa descida ao caos € a anarquia, que esses trabalhos da fase final representam, fosse apenas o preco da idade avangada. Todas aque- las pinturas datam de 1973, quando ele ja tinha oitenta anos, ou mesmc depois disso. No entanto, artistas como Michelangelo, Ticiano, Tintoretto € Chardin continuaram a pintar de forma brilhante até idades bem avangadas: e nao ha qualquer evidéncia de que Miré nao estivesse completamente em forma e consciente ao pintar suas “obras-primas tardias”. O empobreci- mento estético das telas e a degeneragao que manifestam nao se limitavam somente ao pintor, individualmente, mas retratam toda uma época artistica. Miré nasceu em 1893, trinta e um anos antes da morte de Mary Cas- satt, em 1924. Na época em que Miré comegou a pintar, a cegueira ja forgara Mary Cassatt a se aposentar, mas o fato de suas vidas estarem so- brepostas por tantos anos significa, no entanto, a marca da velocidade e da rapidez com que se destruiu uma tradi¢io imemorial. Enquanto as gravu- ras de Cassatt demonstram um intenso e construtivo amor pelo mundo, as “obras-primas tardias” de Miré demonstram uma atitude estranhamente adolescente e profundamente destrutiva em relagdo ao mundo. Todos conhecem Mary Cassatt como uma artista das mies e das crian- gas. O primeiro livro a respeito dela, publicado em 1913, ostentava o titu- lo nada surpreendente, Un Peintre des Enfants et des Méres. Mas seria altamente enganoso concluir, a partir de seu tema central, que ela fosse uma senti- mentalista fragil e sonsa. A diferenga entre cla e Miré nao é uma questao de coragem moral, pois esse tipo de coragem Mary Cassatt tinha de sobra. Ela desafiou os anseios de seus pais da classe média alta norte-ame- ricana ao se tornar, na época, pintora. Certamente, esperava-se que as garotas de sua classe pintassem e desenhassem, mas como mera etiqueta social, néo como paixdo de vida; e muito menos se esperava que elas fos- sem a Paris por conta propria, como foi o caso dela, sentando-se aos pés dos moralmente questionaveis mestres de pintura daquela cidade. Fla me faz lembrar uma britanica sua contempordnea, Mary Kingsley, que cuidou de seu querido pai até a morte dele e entao partiu a fim de percorrer os rios, corredeiras, mangues e pantanos da Africa Ocidental, para ser nego- ciante e finalmente escrever um relato charmoso, informativo e ainda um classico de suas atividades tropicais. Ninguém pode acusar uma mulher como essa de ser passivamente conformista. Tampouco foi Cassatt uma conformista em politica. Ela era uma firme , , Oe ee ey eM a apoladora do surragio feminino, € a exipi¢ao de seu trapaino em Nova tork em 1915, organizada por sua amiga e colecionadora Louisine Havemeyer foi explicitamente planejada para levantar fundos para a causa sufragista. 150 Nossa Cultura... ou o Que Restou Dela Mas a atitude de Cassatt em relagao ao passado nao era a de um vandalo (0 estudo que realizou da arte de seus predecessores foi meti- culoso e profundo), tampouco ela considerava a inovagdo uma virtude em si mesma. A ideia de que a originalidade, divorciada de qualquer outra qualidade ou propdsito, pudesse ser em si mesma louvavel, teria soado estranha a ela. Isso a teria chocado como — corretamente — uma ideia incivilizada. Suas serenas pinturas de mies e criangas, ou de mulheres sozinhas na privacidade de seus aposentos, so profundamente tocantes. Esses retratos possuem a estranha qualidade elusiva de uma can¢ao de Schubert ou de uma pintura de Vermeer, ao se capturar, com precisao, o fugaz e agridoce momento que compreende a vida, com todas as suas decepgées, labo- res e durezas, mas que, nao obstante, tanto vale a pena ser vivida. Esses momentos fundem, num s6 tempo, melancolia e alegria, precisamente porque sao passageiros, transcendentalmente belos, mas breves a ponto de serem imensuraveis. Quando olhamos para a leiteira despejando o leite no quadro de Vermeer no Rijksmuseum, vemos — como se pela primeira vez — o quao belo pode ser um singelo fio de leite, despejado de uma jatra, 0 quao supremamente elegante é a sua trajetéria, 0 quao sutil é 0 jogo de luz sobre ela; mas compreendemos, a0 mesmo tempo, que aque- le momento nao pode durar: na realidade, a porgao de sua beleza € sua propria efemeridade. Embora ndo por muito tempo, a perfeic¢do, de fato, compreende este nosso mundo. E esse tipo de percep¢ao nos reconcilia com nossa existéncia, repleta de feura, como nao poderia deixar de ser. Se existirem monumentos vermerianos em nossa vida - como sempre existirao, caso fiquemos atentos —, poderemos alcangar certa serenidade, ao menos intermitentemente. E isso é o suficiente. Mary Cassatt € o Vermeer da mae e da crianga. Ela retrata — ainda me- lhor em suas gravuras do que em seus dleos — 0 preciso momento no qual a ternura da mie pelo filho se torna mais aguda, dentro de uma elegante linguagem visual. Nao existe nada de sentimental ou de cristalizante a respeito disso: a coisa é perteitamente realista. Atinal de contas, maes de fato amam seus filhos com ternura; e com econdémicos e simples tragos (o resultado de muita pratica, estudo e cansaco fisico, suspeita-se), Cassatt Artes e Letras — Uma Arte Perdida 151i transmite os gestos fisicos que expressam o lago emocional. Por exemplo, ela observava as maos das maes, com uma aproximagao geralmente reser- vada a face, de modo que no retrato que faz das mios, escrupulosamente preciso, pode-se ver o correlato fisico do amor insondavel. Ela nao subs- creve a doutrina de que apenas 0 feio € verdadeiramente real € de que tudo mais na vida é ilusao. Cassatt inovou, no entanto seu tema central nao era de forma al- guma inédito, exceto, talvez, no grau de concentragao com que ela se debrugava sobre ele. Nao ha duvida de que ela reagiu firmemente contra muito do que havia de pavoroso na pintura vitoriana, sobretudo ao se retratar a infancia: a falsidade e a sentimentalidade, seu pequeno- -nellismo,' por assim dizer. Durante sua carreira, pintores como Sir Lawrence Alma-Tadema ou Léon Frédéric ainda estavam produzindo, em massa, os mais medo- nhos retratos de infancia. Esses artistas empenhavam-se para retratar mao as emogdes que sentiam, mas que pensavam que deveriam sentir. Certamente, essa é uma das fontes do sentimentalismo. E 0 tributo que a vaidade paga a compaixdo. E, portanto, Alma-Tadema e Frédéric nao poderiam pintar nada que fosse verdadeiro, fosse para o mundo fosse para eles mesmos. O reptidio de Cassatt face a esses pintores representava tanto um re- torno a tradigéo como um rompimento com ela. Enquanto contemplava um de seus quadros na Adelson Galleries, recordei-me de uma pintura que amei desde a primeira vez que a vi, faz mais de quarenta anos, e que revejo sempre que posso. Fla foi pintada mais de dois séculos antes dos trabalhos de Cassatt por Pieter de Hooch, que perdia apenas para Vermeer em sua habilidade para nos fazer ver a beleza no ordindrio, O quadro Uma Mulher a Descascar Magis para sua Filha esta exposto na Colecao Wallace em Londres. Uma mulher sentada num ambiente holandés fechado descasca uma ma¢a para sua solene filha, que esta de pé diante dela, totalmente absorta no que a mie esta fazendo. Nem a mae nem tampouco a filha condizem com os — ' Referéncia a Nell Trent, o pequeno Nell, personagem do romance A Loja de Anti- quidades, de Charles Dickens. (N.T.) 152 Nossa Cultura... ou 0 Que Restou Dela padrées classicos de beleza; de fato, as duas sao decididamente comuns. A beleza est4 no momento e no relacionamento entre mie e filha, nao nos tragos puramente fisicos de seus rostos. Nessa cena nao dramatica nao s6 vemos um momento de uma era que passou, mas também a expressao de uma veracidade humana muito mais profunda e permanente, que se estende além da aparéncia. Estilisticamente, Mary Cassatt foi muito influenciada pelos gravuristas japoneses, cujos trabalhos, amplamente exibidos em Paris durante a segun- da metade do século XIX, tanto impressionaram muitos dos pintores da €poca. Os tons de cor que ela usava, os tons de pele, os agudos contornos, as proprias dimens6es das gravuras, registram sua resposta criativa 4 arte japonesa. Algumas das figuras de Cassatt a retratar apenas uma mulher — por exemplo, The Coiffure ou Woman Bathing — quase poderiam ser atribuidas ao artista japonés do século XVIII Utamaro Kitagawa. Curiosamente, depois da época de Cassatt, arte ocidental e arte japo- nesa caminharam em dire¢des bastante opostas. Nunca mais os artistas ocidentais — ao menos aqueles que queriam ser seriamente considera- dos — expressaram o tipo de ternura direta e sem afetacao, em relacio ao mundo e a vida humana, assinalado, por exemplo, na gravura ponti- lhada Feeding the Ducks, em que vemos duas mulheres num barco a remo supervisionando solicitamente uma pequena crianga que se encontra envolvida em seu completo deleite de lancar nacos de pao aos patos. Depois de Mary Cassatt, um desencantamento com o munds, real ou assumido, parece ter se imposto sobre os artistas ocidentais, de modo que teriam considerado um tema como alimentar patos algo inerente- mente sentimentalista, trivial e desmerecedor de sua atengao. Por outro lado, os gravuristas japoneses — os artistas do inicio do século XX Hasui Kawase e Yoshida Hiroshi, por exemplo — continuaram de forma singela aretratar e celebrar a beleza do mundo. Apenas depois de 1945 os artis- tas japoneses sofreram o tipo de desencantamento que os levou a temer retratos diretos do belo. O contraste e instrutivo. O tato de os artistas japoneses se sentirem ca- pazes de continuar e desenvolver sua tradigao de gravura em estampa com blocos de madeira — eram os seguidores de seus grandes antepassados, Artes ¢ Letras — Una Arte Perdica 153 nao seus meros imitadores — sugere que a mudanga na sensibilidade que ocorreu entre os artistas ocidentais e, por fim, entre os prdprios artistas japoneses nao foi apenas uma questdo estética. Nao ocorreu porque os artistas se viram desprovidos de ideias e técnicas para retratar a beleza do mundo e a grandiosidade da ternura da vida. As razGes para a transforma- ¢4o estéo em outro lugar. Isso nao significa que os artistas que quebraram com suas tradi- ¢des imemoriais fizeram isso de uma vez, ou que, tendo feito isso, nao criaram nada de belo. Nada disso. O préprio Miré foi um artista cujo trabalho inicial, absolutamente distinto, apresentava grande beleza de forma e cor, ¢ cujo fecundo imaginério deleita ¢ diverte. Em seu Peinture de junho de 1933, por exemplo, hoje no Kuntsmuseum de Berna, as brilhantes cores do fundo cintilam e mudam como num por do sol tropical, enquanto, diante delas, se dé um envolvente drama de for- mas capturadas com elegancia e infinitamente sugestivas, uma delas insistentemente feminina, cuja perna com botas pretas ou de lingerie branca se estende como num passo de ganso. Miré nunca foi realmente figurativo (ao menos, depois de sua adolescéncia artistica) ou realmen- te abstrato. Seu Retrato de uma Jovem, de 1935, por exemplo, procura trans- mitir, com assombrosa economia, a futilidade e vaidade vertiginosa da juventude, mas que na barganha mostra a irrestrita afetacao do artista por esse universo, No entanto, homens talentosos e brilhantes como Miro principiaram uma trajetéria decadente, a qual terminou em anarquia artistica. O Du- champ do famoso urinol foi um consideravel desenhista; mas ndo demo- rou muito, o que de certa forma era esperado, até que chegassemos ao urinol sem o desenhista. O talento de Mird, seu senso de cor e forma, ain- da é visivel em sua “obra-prima tardia” em exposi¢ao na Salander-O'Reilly Galleries, mas seu método de arremessar tinta sobre a tela e deixar que ela respingue indica perda de fé no valor e propdsito do ¢ontrole artistico. Daqui por diante, qualquer coisa valeria. Ele queria que o acaso fizesse por ele o trabalno. tle queimava suas telas, aDrindo pequenos buracos na esperanca de que formas agradaveis pudessem emergir; mas o resultado cra apenas um previsivel empobrecimento estético e simbdlico. A logica 134 Nossa Cultura... ou o Que Restou Dek: de uma corrida armamentista passou a governar a arte, e legides de vira- -latas sem talento, que vieram depois de Miré, dedicaram-se a elaborar aquilo que nao tinha sido jamais feito em vez de elaborar o que queriam expressar, O Ultimo trabalho de Miré é um assalto a possibilidade mesma do significado da arte: se 0 acaso e a destruicio forem tio bons ou me- Thores que a direcdo e o controle, que senso pode haver no prdéprio senso? Esse anarquismo que comega a se desdobrar sobre a arte ocidental tem duas fontes. A primeira aponta para uma nova sensibilidade que se tornou dominante entre a elite artistica e intelectual depois da Primeira Guerra Mundial. Como seria possfvel retratar o mundo de forma lirica, depois daquele grande cataclismo? Prosseguir dessa forma teria sido frivolo e in- sensivel, ou assim parecia ser aos intelectuais, entre os quais a necessidade de sentir as coisas mais profunda e seriamente do que os outros é um Tisco ocupacional. Os japoneses, menos envolwidos do que os europeus na Primeira Guerra Mundial, teriam que esperar até a Segunda Guerra para conhecer 0 cataclismo que deslegitimaria seu lirismo tradicional. O critico social e cultural Theodor Adorno deu plena vazdo a essa mentalidade quando proclamou a morte final da arte, apds a Segunda Guerra Mundial. Depois de Auschwitz, ele disse, nao seria mais possivel produzir uma boa arte. O mundo tornara-se muito horrendo: “Nao ha nada indécuo que tenha sobrado”, ele declarou: Os pequenos prazeres, express6es de vida que pareciam isentas de responsabilidades do pensamento, nao apenas tém um elemento de uma tolice pervertida, uma recusa insensivel de enxergar, como ser- vern diretamente a seu exato oposto. Até a arvore que floresce mente no instante em que percebe o seu florescer sem a sombra do espan- to; até o ‘como é belo!’ inocente se converte em desculpa da afronta da vida, que é diferente, e ja nao h4 beleza nem consola¢ao alguma, exceto no olhar que, ao virar-se para o horror, o defronta [...] Existe um tipo de consolagao azeda nesse pensamento de que vive- mos nos piores dos tempos, de que Os horrores que entrentamos — ou ao menos ouvimos e€ lemos a respeito ~ sio de natureza sem precedentes na historia humana. Mas, seria fato que as duas Guerras Mundiais, as fomes Artes ¢ Letras — Uma Arie Perdida 15: implantadas, o Gulag e os campos de exterminio do século XX foram de uma natureza completamente distinta de todos os outros horrores da his- téria, tornando o esforgo artistico tradicional nio meramente redundan- te, mas uma trai¢ado positiva da humanidade? Por acaso nao deveriamos nos lembrar que Vermeer nasceu durante a primeira metade da Guerra dos Trinta Anos, cujo resultado foi a morte de um tergo da populagao da Alemanha, quando os cadaveres apodreciam aos montes 4s margens das estradas, os campos eram abandonados, vilas inteiras destruidas, cidades inteiras massacradas, e a pilhagem se tornara a tinica forma de acumula- 40? Nao deveriamos nos recordar que o tratado que pés um fim a essa terrivel guerra foi assinado a apenas algumas milhas de distancia de onde ele vivia?’ A Guerra dos Trinta Anos simbolizou a cegueira de Vermeer, sua pervertida tolice? E por acaso, a Grande Guerra realmente decretou que, a partir de entao, as maes amariam menos os seus filhos do que faziam as mes na Franga pré-guerra de Cassatt? Todavia, vamos considerar que houve algo de peculiarmente terrivel nos cataclismos do século XX. Foram assombrosos em si mesmos, certa- mente, mas uma fonte adicional de desespero se coloca na disjuncao entre o que era tecnicamente possivel — uma vida decente para a maior parcela da humanidade, pela primeira vez na histéria — e os usos aos quais essas possibilidades técnicas foram de fato alocadas. O homem enfim se liber- tara do fardo das religides e outras supersticdes a fim de alcangar os pla- naltos ensolarados do pensamento e da organizacao racional, mas apenas para descobrir o coragao de sua propria escuridao, a verdade alegorica da doutrina do pecado original. Entretanto, na logica da atrocidade especial associada aos aconteci- mentos do século XX, seria 0 caso de o florescimento de uma 4rvore nao poder mais ser visto por uma pessoa decente e sensivel sem uma sombra de horror a recair sobre ela? Alguns de meus pacientes dizem que nunca bateriam numa mulher, porque viram seys pais bater na mie, ao passo que outros dizem que batem nas mulheres porque viram seus > Trata-se da Paz de Vestfalia, uma série de tratados assinados em Miinster em 1648, (N.T) Nossa Cultura... oo Que Restou Dela pais fazerem 0 mesmo com suas mies. Além disso, poderia muito bem ser dito que, diante da catastrofe, a apreciagao lirica da beleza da vida se torna ainda mais importante. Sir Ernst Gombrich, o historiador da arte, conta a histéria de alguns amigos seus em sua Viena natal, os quais, de- pois do Anschluss,* esperavam ser imediatamente presos pela Gestapo. Eles gastaram aquilo que pensavam ser as tiltimas horas de liberdade juntos, e possivelmente suas Ultimas horas vivos, tocando quartetos de Beethoven. A ideia de que, depois de um fato como a Grande Guerra, uma cele- bracio artistica do mundo nio seja mais possivel nio faz o menor sentido, na verdade trata-se de uma mistura de romantismo deformado com senti- mentalismo invertido. O artista lanca mao de uma pose como a de Ador- no a fim de caracterizar que sente os eventos de forma mais profunda do que as outras pessoas, tao profundamente que a arvore que floresce nao é mais apenas uma drvore a florescer, mas a arvore do enforcado que flo- resce, ou a arvore prestes a ir para os ares e se transformar num esqueleto esturricado, depois de uma explosao nuclear. O que conta é¢ profundidade de sentimento. Mas isso nada mais ¢ do que pura encenacio. Tomando- ~se Adorno como modelo, teriamos frases do tipo: “Depois da guerra, € impossfvel ter prazer sexual” ou “E impossivel uma boa culindria” — a baboseira de tudo isso ficaria evidente de imediato. A arte é precisamente o meio pelo qual o homem da sentido a suas prdprias limitagdes e defei- tos, transcendendo-os. Sem arte — ou sem as artes — existe apenas fluxo. Na verdade, os escritos e pronunciamentos de Miro compreendem uma mina de bobagens sentimentais. Talvez seja injusto destacar demais 0 que um artista diz — afinal de contas, ele é um artista, e ndo um autor ou um jornalista —, e nao ha diividas sobre a devocgao de Miré ao chamado ar- tistico. Mas as coisas que disse tiveram, necessariamente, alguma conexdo com sua pratica artistica, e ele — como tantos intelectuais contemporaneos seus — era profundamente desonesto em suas visdes. 7 Tomo dois termos que ele usa como sintomaticos: “burgués” e “revolu- ciondrio”. Nao seria mérito nenhum adivinhar que valor ele atribuia cada um. Obviamente, burgues e sempre um termo de abuso; revolucionar1o ~~ 3 Anexacdo da Austria por Hitler em 1938. (N.T.) Artes ¢ Letras — Cina Arte Perdidar 1st quase sempre um termo de aprovacio. Por burgués ele sempre identifica uma qualidade obesa, complacente, belicosa e suina, uma espécie de viséo Der Stiirmer* da classe artistica, com o antissemitismo removido. Por revo- lucionario ele se referia a algo arrojado, inventivo e que tenderia a uma justica e liberdade fundamentais, promovendo a paz por meio da aboligao forcada de tudo que prevenisse a paz. A quem, no entanto, ele realmente vendeu suas pinturas? Novamente, nao sera muito dificil adivinhar. Acontece que ninguém apreciou tanto os “tapas na cara da burguesia”, como ele as chamava, quanto os préprios burgueses ricos. Em relagio as revolugdes de verdade, nio ha qualquer evidéncia de que Miré tenha, em algum momento, considerado de forma realmente profunda os seus reais efeitos sobre a vida dos artistas ou sobre a liberdade artistica que ele exigia de forma tao veemente. A segunda grande causa da dissolugao total da tradigao artistica esta intimamente ligada ao tipo de baboseira politica que Mird incorporou. Falo do culto romantico do artista original, divorciado de seus predeces- sores, “como o encorpado Cortez [...] com olhos de aguia. [...] Silencioso, sobre um pico em Darién”. Uma vez que se tornara progressivamente mais dificil dizer qualquer coisa nova dentro de uma tradigao realista, a tradi¢gdo tinha que ser abandonada. Ou pior do que abandonada. Aqui te- mos as primeiras palavras do diretor da Fundacio Pilar I Joan Miré escritas no catdlogo das “obras-primas tardias” de Mird: Mird, que desde 0 comeco compreenden a criagao como ato que destruia tudo que viera antes, levou essa atitude 4 conclusao derra- deira, quando, envelhecendo em corpo, mas joven em espirito, ata~ cou o seu proprio universo pictdrico. Ele voltou a criar pinturas naive e colagens, arremessando tinta sobre a tela, rasgando e queimando, possuido por uma convulsao de destruicao criativa. Essa atitude foi a consuma¢ao de seu antigo desejo de “assassinar a pintura”, de modo que, seguindo a mesma lei que rege a propria natureza, nova vida, novas e vibrantes formas podiam nascer a partir da destruigio. — +A referéncia € 0 tabloide alemao pré-nazista publicado por Julius Streicher. (N.T) 158 Nossa Cultura... ou o Que Restou Dela Alguém poderia imaginar ser possivel dizer a mesma coisa a respeito ze Mary Cassatt, apesar de todo o seu radicalismo? De fato, alguém pode- ria, a nao ser um bruto, realmente acreditar sinceramente nessas palavras, =m seu sentido literal? Quem, a nao ser um completo barbaro, nao é capaz “e perceber que um homem nao pode estar sé, caso ele deseje criar, que 2 tradicdo é a precondi¢ao da criagdo, nao a sua antitese? O problema, ao se anunciar esse tipo de lixo pomposo, € que milhares — nao, milhdes — de -olos sempre estarao prontos para acreditar nessas coisas. De fato, Miré disse que desejara “assassinar a pintura” (seja 14 o que isso signifique), desnuda-la de todos os seus elementos representacio- nais. Hm 1924 ele escreveu: “Fstou me afastando de todas as convencgées pictéricas (esse veneno!)”. Durante uma entrevista ao Ahora, em 1931, ele disse: “A Unica coisa que esté clara para mim é que me proponho a destruir, destruir tudo o que existe na pintura. Nutro um desprezo profundo pela pintura [...] a pintura me revolta”. Quase meio século depois, um entrevistador da revista parisiense L’Express afirmaria que seu “pliblico ti, e por vezes da a impressao de ter levado uma bofetada” Miré respondeu: “Quanto mais melhor! £ preciso bater duro. A violén- cia é emancipadora”. Isso ndo é melhor nem muito diferente do famoso ataque de nervos que teve o general fascista Millan-Astray em seu bate-boca com Miguel de Unamuno, em 1936, na Universidade de Salamanca: “jMuera Ja in- teligencia! | Viva la muerte . Uma sensibilidade que iniciou sua carreira tao horrorizada pela guerra moderna, contra a qual se revoltou, termi- nou por endossar a visio de mundo da gangue Baader-Meinhof,* com a caracteristica abolicao da piedade, misericérdia e a comum afei¢géo hu- mana. Isso nos faz lembrar Lénin, que se negava aos prazeres de ouvir Beethoven porque sua misica o reconciliava com o mundo, e ele ficava com vontade de afagar as cabegas das criancas, uma fraqueza inadmis- sivel para um homem que queria bater forte, que acreditava nas forgas emancipadoras da violéncia. “~~ § Grupo terrorista alemao de extrema esquerda da década de 1970, denominado como Fac¢ao do Exército Vermelho. (N.T) Artes ¢ Letras — Uma Arte Perdida 159 Miro também subscrevia a visio — um corolario absolutamente natu- ral do artista como criador solitario — de que a mudanga seria sinénimo de progresso. Provavelmente, ele ficara deslumbrado, como ocorreu com muitos artistas, pelo progresso tecnoldgico e cientifico de sua época. Mas, da mesma forma que a analogia entre as leis da natureza € as leis da criagéo artistica é falsa (uma analogia apresentada no catélogo de exibigio de suas “obras-primas tardias”, pelo diretor da funda¢do), o mesmo acontece com a analogia entre 0 progresso nas ciéncias e 0 progresso nas artes. Arte, em sua mais alta expressdo, explica-nos a existéncia, tanto as particularidades do proprio tempo do artista quanto os elementos universais, que valem para qualquer época ou ao menos para o campo da historia humana. Por- tanto, a arte transcende a transitoriedade, reconciliando-nos com a condi- G30 mais fundamental de nossa existéncia. Na histéria da arte, ao contrario da histéria da ciéncia, o que vem depois nao é, necessariamente, melhor do que o que veio antes. As “obras-primas tardias” de Mird perderam quase todo o contato com a existéncia humana, incapazes de operar até mesmo como elemen- to decorativo, um fracasso que se torna completamente evidente ao se compar4-las com os trabalhos de Cassatt. Na transi¢io do periodo final de- Cassatt para © periodo final de Miré vé-se uma guinada do universalmente humano para o tipicamente egoico. 2001 Nossa Cultura... oo Que Restou Dela

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