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RESUMO
A narrativa de Milton Hatoum gira em torno do difícil dilema do estabelecimento de
identidades através das relações das personagens com os espaços da narrativa. Propõe-se
aqui a análise de como se dá a difícil tentativa de estabelecimento das identidades
femininas em meio às heterotopias da narrativa desse certo Oriente a partir do olhar
deslocado da narradora, vista nesse artigo como alguém à margem (SCHMIDT), e detentora
da posição privilegiada de exilada em seu próprio país (SAID, 2005).
Palavras-chave: desterritorialização, heterotopias, exílio e identidade.
INTRODUÇÃO
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Graduada em Letras Português e Francês pela Universidade de Brasília e aluna do Programa do Pós-Graduação em
Literatura da mesma universidade.
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“(...) e pensei em como é desagradável ser trancada do lado de fora; e pensei em como talvez seja pior ser trancada do lado
de dentro; e, pensando na segurança e na prosperidade de um sexo e na pobreza e insegurança do outro, e no efeito da
tradição na mente de um escritor, pensei finalmente que era hora de recolher a carcaça amarfanhada do dia, com suas
impressões e sua raiva e seu riso, e atirá-la num canto.” (WOOLF, p. 33)
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Os espaços da narrativa assumem uma importante função no romance. Eles não são
simplesmente espaços habitados ou inabitados, públicos ou privados. Eles, mais do que as
personagens, tem o papel de inserir e significar os sujeitos da narrativa do grande Relato.
Analisar esses espaços como os que Foucault denomina "heterotopias", espaços exteriores
(reais) que tem o poder de nos atrair para fora de nós mesmos onde decorre "uma erosão
de nossa vida, nosso tempo, de nossa história, é ver como esses espaços proporcionam
uma séria reflexão entre o público e o privado colocando os indivíduos em situações muitas
vezes desconfortáveis consigo mesmos. As heterotopias da narrativa são os espaços nos
quais as personagens buscam se firmar nas relações com os outros. Repletos de
significados também para construção do enredo. O espaço onde se passa a história não é
nem a Manaus banal de nossas imagens nem tão pouco o Oriente orientalista do imaginário
Ocidental. O espaço foge dos estereótipos para expor de fato a dificuldade das personagens
em estabelecer e relacionar neles suas identidades.
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esse período, a personagem só pode ocupar o espaço nos horários onde não havia risco de
encontro com as duas figuras.
A personagem tenta criar um mundo próprio onde ela e sua filha não pudessem ser
atingidas pelos olhares recriminadores de todos. Ambas foram tão desterritorilizadas que a
casa não era mais o lugar delas, ficaram apenas com o quarto onde também não podiam
mostrar sinais de vida. Com o tempo Soraya, como qualquer criança, foi crescendo e
ocupando despreocupadamente os espaços da casa, ela foi reterritorializando aquele
espaço. A surdez dela foi em parte responsável por esse processo. Ela não podia ser
atingida pelas palavras rudes de ninguém. A mudez da menina surge como uma metáfora
do silenciamento e das restrições impostas à mãe. Soraya não pode falar, mas contesta
com a sua própria existência as punições impostas à mãe. Ela ocupa pouco a pouco o
espaço que fora tirado da mãe.
O jardim é o espaço de crescimento da menina Soraya. Ele aparece como o espaço
privilegiado da casa. Ocupado diariamente por todos os habitantes da casa, ele mescla
elementos da fauna e da flora amazonenses com aspectos estruturais dos jardins orientais.
Possuí a fonte no centro como representação da vida enquadrado por animais. Definido por
Foucault como a heterotopia por excelência o jardim é uma representação da vida. Ele
também foi o único lugar que pode ser plenamente ocupado por Soraya. Lá, no jardim, a
menina conseguia se identificar e desenvolver seus sentidos, definindo seu espaço na
família nem que fosse pela imobilidade, parada na frente da estátua de anjo. Foi o espaço
do jardim que possibilitou à menina o mínimo de convivência com o avô que fez com que
este deixasse de vê-la como uma criança maldita e acabou iniciando uma reterritorialização
para mãe e filha. Elas voltavam paulatinamente a ocupar os espaços da casa como aparece
nesse trecho do relato de Hakim à narradora:
Com o passar do tempo permitiu e até exigiu que mãe e filha sentassem à
mesa para almoçar, e sorria quando a menina imitava as cenas vistas lá
fora, ao retomar dos nossos passeios. Essa complacência do meu pai
encolerizava ainda mais meus irmãos, que eram obrigados a engolir a raiva
e a dissimular o riso com aquela expressão apalermada e doentia de quem
não consegue extravasar nem a cólera nem o cômico. (HATOUM, 2008, p.
102)
O jardim foi também o lugar que abrigou parte das relíquias de Émilie que não
couberam no armário do sobrado após a transferência do baú da Parisiense. Foi também o
lugar de convívio da narradora com a prima. Como um lugar vivo por si só que não pertencia
somente aos moradores da casa, comportava o convívio de todos, empregados, moradores
e visitantes, o jardim é talvez um dos lugares que a narradora mais se identificou. Ele
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aparece nas lembranças de praticamente todos os personagens e lugar semelhante ela
escolhe para dormir na casa da mãe assim que chega à Manaus.
Samara Délia, desde o nascimento da filha, vivia onde lhe era permitido. Seu espaço
foi restringido pouco a pouco se resumindo ao quarto durante a gravidez e o primeiro ano de
vida da filha. Sofrendo uma pequena expansão provocada pelas atitudes da filha e após a
morte dela, seu espaço voltou a ser restringido. Por vontade própria ela escolheu morar no
quartinho da Parisiense, o único lugar onde poderia se territorializar, longe do convívio da
família pois aquela que permitia a ocupação dos espaços no sobrado já não existia mais. O
lugar também não é um lugar qualquer, era o antigo refúgio de Émilie. O espaço ideal para
que ela transformasse sua atitude resignada numa atitude de controle da própria vida,
quando decide então se libertar dos quartos que a aprisionaram a vida toda e viver em
algum lugar longe do conhecimento da família. Um lugar que fosse realmente definido por
ela, onde ela fosse realmente territorializada.
Anastácia Socorro, a empregada da família, tem seu espaço restrito tal qual Samara
Délia. Ela fica restrita a cozinha e à área de serviço podendo ocupar o resto da casa apenas
para realizar o serviço doméstico, fora isso apenas em ocasiões especiais. A índia trabalha
de graça para família, como era costume nas famílias da região. Pode manter a convivência
com sua família apenas quando é do interesse da patroa que aproveita os sobrinhos da
empregada para cuidarem dos pequenos serviços da casa. Relegada à cozinha e ao
quartinho dos fundos tem uma vida dura e um tratamento quase escravo podendo somente
comer algumas iguarias que entopem a dispensa da casa quando o filho predileto de Émilie
a acoberta. O pouco de respeito concedido à empregada na permissão de comer à mesa
com o resto da família foi apenas fruto da gratidão de Émilie a seu tio por ter resgatado o
corpo do irmão de Émilie do rio. Mesmo assim, durou pouco, quando ela começou a ter
acesso à mesa e um tratamento melhor por parte dos patrões os filhos de Émilie (os
terríveis) não conseguiam comer. Mostravam ter nojo da presença da empregada e
conseguiam deixar a família toda desconfortável a ponto do próprio Salim admitir ter sido um
alívio Anastácia deixar de comer à mesa com os outros.
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instante. Ela, de início, sempre causa um desconforto. Muitos prefeririam encontrar seu
irmão a ela. Ela não é revelada ao longo da narrativa. Personalidade e aparência parecem
nebulosas, sua presença é requisitada apenas pela avó.
O deslocamento sentido pela narradora é vivenciado pela ocupação e a hesitação na
ocupação dos espaços do texto. Ela dorme no jardim (do lado de fora) da casa da mãe. Adia
diversas vezes o encontro com a avó, rodeia os espaços hesitante antes de penetrá-los. A
narradora seria uma desterritorializada em seu próprio espaço. Ela não definiu seu território
e ele sempre ficou muito longe do seu alcance. A trama da personagem, parece ser uma
busca pela sua própria história, mas na verdade ela busca o espaço.
É estranho para o leitor o fato da narradora não se hospedar na casa da avó. Essa
recusa talvez se dê pelo claro estabelecimento das relações entre sua mãe e Émilie que
foge aos desejos da narradora. Ambas ocupam parcialmente ou insuficientemente o espaço
na vida da narradora. Embora ela diga considerar Émilie como mãe insiste em tratá-la por
Émilie durante a maior parte da narrativa, mesmo quando fala a seu irmão, com quem
deveria compartilhar essa intimidade. Ao mesmo tempo ela se sente impedida de ocupar o
espaço com o qual se identificaria, a casa da avó, como pode-se perceber do trecho
extraído do relato que ela faz ao irmão:
Quase sem perceber tinha dado uma volta pelas ruas do centro, quando na
verdade podia ter encurtado o percurso, atalhando por uma rua que liga a
igreja ao sobrado. Caminhava apressada, não para chegar logo, mas para
fugir, como se a pressa fosse um anteparo para evitar a multidão apinhada
nas calçadas e na entrada da casa, como uma árvore deitada. (HATOUM,
2008, p.121)
Porque fugir da casa de uma pessoa que se ama? Porque ela não consegue
encontrar a avó? Porque fugiu tanto tempo de Manaus e da família? Esses espaços revelam
a intensidade da sua desterritorialização e ela tem consciência disso. Seria sempre uma
exilada. A casa da sua infância é lugar com o qual não pode se identificar porque sabe que
não pertence plenamente àquele lugar. A consciência de sua posição de neta ilegítima e
filha indesejada a impedem tanto de ocupar a casa da mãe quanto a da avó.
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territorializar. Ela possui uma necessidade de entender a sua condição tão grande que não
consegue se desligar daquela terra. O questionamento foi tão intenso por parte da narradora
que ela foi parar no hospício, pelo que ela conta. Apesar de não ficarem muito claros os
motivos da internação sabe-se que a vontade de compreender o porque da sua
desterritorialização foi um dos responsáveis por isso, como a própria narradora conta no
trecho abaixo:
Pensei na tua repulsa a esta terra, na tua decisão corajosa e sofrida de te
ausentar por tanto tempo, como se a distância ajudasse a esquecer tudo, a
exorcizar o horror: estes molambos escondidos no mundo, destinados a
sofrer entre santos e oráculos, testemunhas de uma agonia surda que não
ameaça nada, nem ninguém: a miséria que é só espera, o triunfo da
passividade e do desespero mudo. (...) Eu, ao contrário, nunca pude fugir
disso. De tanto me enfronhar na realidade, fui parar onde tu sabes: entre as
quatro muralhas do inferno. (HATOUM, 2008, p. 120)
Uma heterotopia da crise, o hospício onde foi internada à força pela própria mãe, tem
um importante papel para entender a narradora. Um lugar como esse, impossível de ser
territorializado por quem quer que seja foi o lugar onde ela mesma escolheu permanecer,
mais do que o recomendado, para se encontrar. Lá ela compreende que nenhum dos
territórios pelo quais transitara é capaz de territorializá-la.
CONCLUSÃO
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Mais do que histórias que se girem em torno de Émilie, o grande Relato é na verdade
a busca da narradora por esse espaço que poderia ser o seu território. As respostas às suas
perguntas e a relatividade desse relato só podem ser dadas pela capacidade da narradora
de transitar entre as posições. Ela fica na margem do centro e da periferia e é essa
habilidade que faz com que não se perceba que é ela quem conta a maior parte do texto e
que todos os personagens contam a ela a história, mesmo que seja uma história que
ouviram de outra pessoa.
Ao colocar como narradora uma personagem consciente da sua desterritorialização Milton
Hatoum deixa transparecer através de sua existência translúcida os outros
desterritorializados da narrativa e seus dilemas de identificação com o espaço. A narradora
do Relato é o intelectual no exílio na visão de Said:
Ela tem sua capacidade reforçada pela condição feminina. O fato de ser mulher já a
coloca com uma predisposição natural à desterritorialização, a sua história de vida a desloca
do centro e sua consciência da margem permite que ela faça emergir a riqueza dos outros
relatos. Sua contribuição é a razão pela qual esse certo Oriente se abre diante da narrativa
sem amarras, sem forma fixa e sem determinismos.
REFERÊNCIAS:
HATOUM, Milton. Relato de um certo Oriente. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
WOOLF, Virgínia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.
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