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TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

TÍTULO: INTERVENÇÕES DA MÁSCARA NA RELAÇÃO ENTRE ATOR E


ESPAÇO CÊNICO
Alex de Souza (bolsista FAPESC/CAPES); Prof. Dr. Valmor Beltrame (orientador);
Programa de Pós-Graduação em Teatro (Doutorado) - PPGT/UDESC.

As relações desenvolvidas pelo ator em relação ao espaço podem ser analisadas


por meio de diferentes pontos de vista. De início, é necessário compreender que ao atuar,
o conceito de “espaço” não se reduz a apenas “extensão limitada em uma, duas ou três
dimensões; distância, área ou volume determinados” (HOUAISS, 2009 – verbete: 1
espaço), mas ao contrário, amplia-se graças à ação do ator neste espaço. Para Patrice
Pavis, ao se tratar de teatro, “espaço” pode ser diferentemente compreendido como: “1.
Espaço Dramático; 2. Espaço Cênico; 3. Espaço Cenográfico (ou Espaço Teatral); 4.
Espaço Lúdico (ou Gestual); 5. Espaço Textual; 6. Espaço Interior” (PAVIS, 2007, p.
132-133 – verbete: espaço). Entretanto, aqui nos cabe discutir o trabalho do ator em
relação ao chamado “espaço cênico”, conforme a definição de Pavis:

É o espaço concretamente perceptível pelo público na ou nas cenas, ou ainda


os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis. É quase aquilo
que entendemos por “a cena” de teatro. O espaço cênico nos é dado aqui e
agora pelo espetáculo, graças aos atores cujas evoluções gestuais
circunscrevem este espaço cênico. (PAVIS, 2007, p. 133 – verbete: Espaço
Cênico 2)

Este espaço destaca-se de qualquer outro local concreto e real predominantemente


pelo uso do qual é feito. Assim, uma praça pode ser inicialmente um “espaço público”
e/ou um “espaço de lazer”, mas a partir do momento em que ocorre nesta mesma praça
um ato teatral, ela passa a ser um “espaço cênico” enquanto durar aquele ato. Considera-
se então a relação do ator com o espaço por ele ocupado como fundamental para a
caracterização de um espaço cênico. Mas, se há uma relação entre ator e espaço ocupado,
presume-se que há alguma distinção entre eles, que o ator não é parte deste espaço ou
passa a se destacar dele em algum momento. O encenador suíço Adolphe Appia (1862-
1928) compreende esta relação entre ator e espaço da seguinte forma:

No espaço “informe e vazio”, o ator representa em três dimensões; sua


plasticidade ocupa portanto um fragmento de espaço impondo-lhe sua forma.
Mas o ator não é uma estátua; sua plasticidade não elimina o fato de ele ser
vivo e sua vitalidade expressa-se pelo movimento; ele não ocupa o espaço
somente com seu volume mas também com seu movimento. O corpo, sozinho
no espaço ilimitado, mede este espaço com seus gestos e suas evoluções ou,
mais claramente, apropria-se portanto de uma porção do espaço, limitando-a e
condicionando-a. Sem ele, o espaço volta a ser infinito e não poderá ser
dominado. (APPIA apud RATTO, 2001, p. 39)

Para Appia, a força do ator em relação ao espaço está em sua vitalidade expressa
pelo movimento. É a ação e a presença do ator que transforma, delimita, identifica ao
público que se trata de um espaço da cena e não mais um espaço “em devir”, infinito.
Mas não é simplesmente o movimento que altera o espaço. Um ventilador pode mover-
se e ainda assim não alterar o espaço que ocupa. O ator vivo ou o objeto que simule vida
autônoma move-se para realizar vontades, necessidades, desejos. O movimento do corpo
ao respirar, um olhar fixo em determinado ponto, o deslocamento do ator entre dois
objetos de cena, apontar o dedo para alguém da plateia, são movimentos que
circunscrevem o espaço de atuação, determinam ao público o que e onde está acontecendo
a ação. Contudo, para apropriar-se dessa “porção de espaço” e poder condicioná-la à sua
vontade para a plateia, é fundamental que o ator seja capaz de perceber este espaço por
ele ocupado da forma mais plena possível. Percebendo o espaço e percebendo-se no
espaço é que o ator se torna capaz de relacionar-se com o mesmo.
Para o prosseguimento desta reflexão, entende-se por “percepção” como “a
capacidade de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como o
comportamento, no caso dos animais em geral, e o pensamento, no caso dos seres
humanos”. (VEZZÁ e MARTINS, 2008, p.04). Ou seja, a percepção seria a capacidade
de atribuir significados aos estímulos sensoriais captados pelo corpo, a interpretação das
informações recebidas. Segundo Vezzá e Martins (2008),

A percepção é um processo ativo do indivíduo, que explora as informações


para dar relevo a elas: quais são os aspectos fundamentais e quais os
desprezíveis para obter o conhecimento buscado. Quando o indivíduo olha à
sua volta, seus olhos passeiam sobre as coisas conhecidas que o cercam, e
identificam entre todos os estímulos luminosos que os atingem os traços
relevantes para que ele tenha a percepção do conjunto. Ela é possível graças ao
contexto em que cada um se encontra e à sua experiência passada – tem-se o
conceito de mesa, cadeira, chão, janela, e de várias configurações possíveis nas
quais estes elementos estão agrupados, aí incluída a configuração das
sensações do corpo em contato com estes objetos – tem-se uma memória
conceitual e também corporal. (p.04-05).

Sendo a percepção formada por esse sistema cognitivo que parte das sensações, é
interessante notar que há três principais grupos de aferências sensoriais no corpo que
chegam ao sistema nervoso central: sensações interoceptivas (ou introspectivas),
sensações exteroceptivas (ou extrospectivas) e a propriocepção. As sensações
interoceptivas são aquelas provenientes de dentro do corpo, que informam ao sistema
nervoso central sobre as condições internas do organismo e, dessa forma, percebemos
quando estamos com fome, sede ou cólica intestinal. As sensações exteroceptivas, por
sua vez, são provenientes de fora do corpo, captadas pelos nossos cinco sentidos (visão,
olfato, audição, paladar e tato). Já a propriocepção, é um sistema sensorial que une
informações internas e externas ao corpo, com a finalidade de identificar a si próprio entre
suas partes e sua condição referente ao espaço que ocupa. Sobre a propriocepção, Alain
Berthoz discorre:

A propriocepção muscular e articular e os captadores vestibulares cooperam


com a visão e com os captadores táteis da pele – em conjunto com os do corpo
e os dos pés, por exemplo, para medir nossos movimentos. Tudo isso forma o
que chamei em meu livro de Sentido do movimento. Não existem, portanto,
somente os cinco sentidos clássicos, serão oito ou nove. O que é absurdo e
inacreditável é que, apesar da acumulação extraordinária de conhecimentos
que nós temos atualmente sobre esses captadores, continuemos a falar em
cinco sentidos! (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)

Berthoz refere-se ao movimento como sendo também um sentido, uma forma de


chegar à percepção. Em seus estudos acerca do assunto, o autor aponta que o corpo é
capaz de identificar acelerações, assim como alterações de nível, eixo ou rotação somente
durante o movimento. Portanto, o movimento é o principal responsável pela
propriocepção. Contudo, para coordenar movimentos no espaço, estão envolvidos todos
os três grupos de aferências complementarmente. Segundo Berthoz,

Partindo das informações de todos os sentidos, o cérebro, para coordenar


nossos movimentos, deve construir uma percepção coerente e única da
orientação e do movimento de nosso corpo no espaço. A coerência perceptiva
é assegurada pelas convergências das informações de todos os nossos sentidos.
Por exemplo, a visão e o sistema vestibular devem trabalhar juntos para medir
o movimento. A visão permite medir a velocidade permanente, enquanto os
captadores vestibulares só podem medir o momento da aceleração quando
mudamos de velocidade. Dentro do elevador, a uma velocidade constante, não
temos impressão de estarmos subindo. Os dois captadores são
complementares. (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)

Quando há algum tipo de incoerência na percepção, sentimos imediatamente o


distúrbio e o corpo reage, com tonturas, enjoos e desequilíbrios, por exemplo. A relação
do corpo com o espaço altera-se pois não há clareza na percepção dos diferentes sentidos.
Mas conhecendo os modos operativos da percepção, o ator pode jogar com isso em seu
trabalho. E nesse jogo de percepções tornar possível ao ator “dominar” e “transformar”
um espaço físico, concreto, num espaço cênico. O lugar onde se encontra pode mudar sua
configuração de acordo com o modo como é utilizado, propondo uma nova percepção ao
público.
O ator vê uma cadeira. Inicialmente, o sentido da visão identifica por meio da luz
que chega à retina aquele objeto. Há um processo cognitivo que relaciona aquela imagem
específica às imagens semelhantes vistas antes (memória) e com toda a experiência já
vivida do ator com o objeto cadeira. Deu-se a percepção e o ator compreende que viu uma
cadeira. Contudo, o ator vai além e segue relacionando a imagem da cadeira com outras
imagens e experiências, que resulta numa aproximação com a imagem de um cavalo. O
ator, ao invés de relacionar-se com a cadeira do modo como costumeiramente se faz,
relaciona-se com ela como se fosse um cavalo e passa a ocupar o espaço de uma maneira
distinta. O público que reconhece a assimilação feita pelo ator passa a perceber que o
espaço da cena não é mais o palco, tablado ou praça de antes, o espaço então passa a ser
percebido como uma arena de rodeios.
Porém, como o ator pode lidar com um espaço tendo a sua própria percepção
alterada?
Ao utilizar uma máscara, o ator terá inevitavelmente alguns de seus sentidos
limitados ou com uma sensibilidade diferente do habitual. As alterações variam conforme
o tipo de máscara utilizada mas sempre causará, ao menos de início, uma sensação de
estranheza. Isso porque a maior concentração de captores de sentidos em nosso corpo está
situada na cabeça. Os relatos de experiências iniciais com máscaras se assemelham
bastante nesse sentido, como podemos observar com o exemplo do ator Moretti, famoso
por interpretar o Arlechinno em uma montagem de Giorgio Strehler:

O ator resistia à máscara, e recusava as suas restrições. Moretti explica então a


Strehler que tem dificuldade para respirar com a máscara, que fica sufocado,
literalmente, e que aquele corpo estranho o incomoda. Convencido, ao
contrário, da qualidade e da comodidade daquela máscara, Strehler mantém a
sua posição: sendo de couro maleável, deveria servir “como uma luva”. O
ensaio começa, mas o ator, furioso, reclama, xinga, odeia aquela máscara que
o impede de interpretar com fineza a sua personagem: “Ele estava tão furioso
quanto um jovem potro selvagem em quem se tivesse posto as rédeas pela
primeira vez”, recorda Sartori, pois sem dúvida fazia questão de mostrar
ostensivamente ao diretor a sua oposição. Não aguentando mais, explode:
“Não se pode trabalhar com esta coisa no nariz; ela me aperta, não vejo nada”.
E joga a máscara no chão. Sartori grita. Moretti pega uma tesoura e amplia os
olhos da máscara. O ensaio tem de ser interrompido. (FREIXE, 2010, p. 05-
06)
A reação de Moretti, inicialmente estarrecedora ao encenador e ao confeccionador
da máscara, é compreendida por Dario Fo, que comenta:

A princípio, o uso da máscara para um ator é uma experiência angustiante. Não


tanto pelo uso em si, mas muito mais pela restrição do campo visual e no plano
acústico-vocal. A voz fica gritando dentro da cabeça, atordoando, ressonando
nos ouvidos. Até acostumar-se ao seu uso, é impossível controlar a respiração.
Estranha-se a máscara, que se transforma em uma jaula de tortura. Pode-se
dizer que ela nos tira a possibilidade de concentração. (FO e RAME, 2004, p.
47)

Apesar de parecer ser algo tão terrível ao ator algumas vezes, a professora Ana
Maria Amaral esclarece a contrapartida da máscara:

Mas por que é a máscara considerada instrumento no treinamento do ator


quando, na verdade, o que ele (pelo menos num primeiro impacto) sente ao
usá-la é uma grande sensação de desconforto? De pronto, ao vesti-la, percebe
uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se
distorce ou perde força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras
dimensões, o simples mover o corpo exige uma atenção tal que, para mínimos
gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do
corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam. Por
isso ela é fundamental para sua formação, principalmente quando o ator
pretende se expressar através de personagens materiais, inanimados.
(AMARAL, 2002, p. 43)

A conscientização do corpo e do espaço proporcionados pelo uso da máscara são


pontos interessantes levantados por Amaral, que remetem à redescoberta da máscara no
século XX, especialmente com Jacques Copeau (1879-1949). Copeau recorre à máscara
em seu trabalho buscando desnaturalizar o corpo e conscientizar o ator de seus gestos,
para que sejam mais sintéticos (FREIXE, 2010). O trabalho de Copeau reverbera
consequentemente nos aprofundamentos com relação à pedagogia teatral desenvolvidas
por Jean Dasté (1904-1994), Léon Chancerel (1886-1965) e Jacques Lecoq (1921-1999).
Relacionando com as pesquisas sobre percepção, Vezzá e Martins (2008) afirmam
que automatizamos os movimentos a partir do momento em que dominamos a sua
execução, deixando de percebê-los. Isso acontece, por exemplo, ao caminhar. Depois de
aprender a caminhar, não se percebe mais o processo, até que haja alguma alteração nas
respostas sensoriais que provoquem uma nova percepção. Do mesmo modo, Amaral tem
razão em afirmar que a máscara leva à conscientização do corpo, pois causando tal
desconforto inicial e limitação a alguns sentidos, força o ator a ter novas percepções sobre
si e o espaço que ocupa. Isso também se deflagra na história de Moretti, que segundo
Freixe (2010), encontra mais tarde na mesma máscara que o tolhia, a melhor aliada em
seu trabalho:

Para Moretti, as limitações da máscara logo se tornaram trampolins para a


invenção. O seu jogo adquiriu outra dimensão, e ele recebeu da máscara o dom
de uma liberdade inimaginável. As primeiras máscaras de Arlequim
experimentadas por Moretti possuíam olhos redondos muito pequenos, como
nas máscaras antigas que chegaram até nós. Foi a dificuldade de ver como na
vida cotidiana que fez Moretti compreender que era preciso inventar uma
gestualidade particular, animal, que até então havia apenas esboçado de fora,
referindo-se às atitudes de Arlequim tais como as vemos nas gravuras, e que
sentia agora como absolutamente necessárias. Moretti tirou proveito dessa
visão alterada que tinha com a máscara: inventou a caminhada por saltos e
solavancos, pois tinha que “situar a margem de ação em função do campo
visual, olhar sem cessar para seus pés para precisar por onde está andando, e
não tropeçar num obstáculo eventual”. Assim, num espaço muito restrito, devia
executar o movimento num breve lapso de tempo, o que dava aos seus
deslocamentos um caráter ao mesmo tempo mecânico e profundamente
orgânico. A urgência que tinha de “ver” se tornava metafórica da outra
urgência que ele tinha: a de “viver”. (FREIXE, 2010, p. 06)

Ao admitir as limitações impostas pela máscara, Moretti reencontrou


verdadeiramente o significado do modo de agir do seu personagem. O modo como se
movia e se relacionava com o espaço deixou de ser uma escolha racional e arbitrária para
se tornar uma necessidade fisiológica. Nesse sentido, percebe-se que tal qual postulou
Appia, Moretti tornou-se um ser inegavelmente vivo em movimento ocupando e
dominando o espaço cênico.
Mas a intervenção da máscara na percepção do ator não ocorre apenas pela
afetação dos sentidos extrospectivos. Conforme a pesquisa de Fernando Linares,

A partir do momento em que o estudante/ator coloca a máscara, a sua mente


se dividirá entre a visão do espaço real, para se orientar em cena, a sustentação
da imagem de si mesmo vestido com a máscara e em imaginar o que a máscara
enxerga com seus olhos pintados. A partir destes elementos, ele poderá
explorar os códigos que promovem a sua expressividade. (LINARES, 2010, p.
163)

Vemos a partir desta citação que o ator mascarado trabalha simultaneamente em


distintos âmbitos de relação com o espaço. Ele lida com o espaço concreto que ocupa,
portanto há uma relação direta de todos os seus sentidos extrospectivos com a sua
percepção e o espaço ocupado. Mas ao utilizar uma máscara, o ator também constrói uma
corporeidade própria para a figura que representa, consequentemente, alterando a sua
propriocepção. Uma máscara que remeta a um idoso, por exemplo, acaba por exigir do
jovem ator uma postura que em nada se assemelha com a sua postura habitual. A sua
propriocepção lhe informará que a coluna arqueada, os joelhos rígidos e a respiração
pesada estão fora dos seus padrões e precisam ser corrigidos. Há uma alteração de
percepção que será trabalhada pelo ator de modo que essa se torne uma “segunda
natureza”, enquanto estiver portando aquela máscara.
Partindo das limitações impostas pelo objeto agregado ao seu corpo, o ator pode
fazer disso parte de seu material criativo e aprofundar seu trabalho. A máscara possibilita
ao ator, enquanto objeto de cena e/ou de treinamento, a rica possibilidade de perceber o
mundo de novas maneiras. Reencontrar-se no espaço, relacionar-se de maneiras até então
inimaginadas com o lugar, as pessoas e os objetos que compõem o mesmo, pode ser o
diferencial entre uma atuação regular e uma atuação memorável para o público.
REFERÊNCIAS

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo:
SENAC, 2002.

CORIN, Florence. Le sens du mouvement. [O sentido do movimento]. Entrevista com


Alain Berthoz, p. 80-93. In: Vu du corps. Nouvelles de Danse. Trad. Lucrécia Silk.
Bruxelles: Contredanse, n. 48/49, 2001.

FO, Dario; RAME, Franca. Manual mínimo do ator. 3. ed. São Paulo: Ed. SENAC,
2004.

FREIXE, Guy. “Cinquième Partie ― L´âge d´or du Masque ― De L´Renaissance du


masque de La COMMEDIA DELL´ARTE” [I – Renascimento da máscara da Commedia
dell´Arte], p. 163-178, in Les Utopies du masque sur lês scènes européennes du XXe siècle
[As Utopias da Máscara nos palcos europeus do século XX]. Montpellier: L´Entretemps,
2010. p. 19-22. Tradução inédita de José Ronaldo Faleiro.

HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão


monousuário 3.0. [S.l.]: Objetiva, 2009.

LINARES, Fernando J. J.. A máscara como segunda natureza do ator: o treinamento


do ator como uma “técnica em ação”. 2010. 180 p. Dissertação (Mestrado em Artes) –
Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.

RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. 2 ed. São
Paulo: Ed. SENAC, 2001.

VEZZÁ, Flora. M. G; MARTINS, Emerson. F. Sensação, Percepção, Propriocepção?


Revista Brasileira de Ciências da Saúde. São Caetano do Sul, v. 6, nº 15, jan/mar, 2008.
Disponível em:
<http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_ciencias_saude/article/view/531/376>
Autora:Ana Maria Rodrigues;Orientador:Luiz Humberto Arantes;Universidade Federal de
Uberlândia

A desregrada vida do pequeno Moleque Tião e os desafios de ser Grande Otelo

Resumo

O presente texto apresenta uma reflexão sobre o espetáculo “Moleque tão Grande Otelo” e as
questões étnico-raciais que envolvem a peça e permearam a vida do artista. O artigo fala de como
os acontecimentos da vida do ator Grande Otelo tiveram implicações em sua arte, os fatos que
marcaram sua carreira e que são mostrados no espetáculo, “misturam” arte, vida, fantasia e
realidade. Com o intuito de desvendar o ator, a autora também faz referência a sua própria
história enquanto atriz e a similaridade de suas raízes com as de Sebastião Bernardes de Souza
Prata que se tornou para o mundo o Grande Otelo.

Palavras chave:
Grande Otelo, espetáculo, vivência.

Nesse artigo, apresentarei algumas considerações baseadas no projeto de criação do


espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo”, montagem que o grupo Athos de Teatro, realizou em
2011, com dramaturgia e encenação de Luiz Humberto Arantes no qual, além de trabalhar como
atriz sendo a avó de Otelo, fiz também a produção do espetáculo. Ao estudar o processo de
criação e a história de vida de Grande Otelo, notei que havia muitos pontos de conexão de sua
trajetória com minha própria história de vida e meu processo de formação como atriz. No
processo de pesquisa de campo realizei um resgate de memórias pessoais, que perpassaram
momentos da minha infância e adolescência. Cenas que me abriram em direção ao novo, ao
outro, e a um novo olhar a respeito de questões concernentes ao universo afro-descendente.
Assim, pretendo realizar, com o artigo, uma intersecção entre o universo vivido por Grande Otelo
em sua experiência de vida a partir do material colhido no processo de montagem do espetáculo
Moleque Tão Grande Otelo e a minha trajetória pessoal passando por questões de vivências de
uma forma geral como a infância, as dificuldades do meu trabalho de atriz que são similares, em
alguns aspectos com a trajetória de vida do grande gênio dos palcos. Para reforçar o estudo deste
material, serão realizadas algumas considerações baseadas nos textos “Experiência e Paixão” de
Jorge Larrosa, ”Memória (in) Performance” da Professora Doutora Mara Lúcia Leal e “Tempo
Passado” de Beatriz Sarlo.

O moleque Otelo

O espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo” revelara os bastidores da vida de Grande Otelo,
mostrando seus duplos, homem de teatro com grande poder de comunicação e talento em
contraponto com uma vida desregrada como boêmio e ébrio. Sebastião Bernardes de Souza Prata
vivia seu Grande Otelo com o intuito de trazer a alegria que, muitas vezes, não possuía. Sua arte
como ator foi usada para encarar, com riso, as angústias e o preconceito que vivenciava. Ele não
era somente artista, fazia da sua arte o alento para a sua vida, o que lhe gerou infortúnios. O
próprio Otelo traz, em seus depoimentos risonhos, brincantes, como bom palhaço, o fato de que
vivia “escondendo no riso a sua dor”. Sua arte possui um caráter libertador que escamoteava suas
dores e angústias, e se próprio biógrafo relata a respeito: “absolve-se ou condena-se Grande Otelo
por sua vida errante e, ao mesmo tempo, encantadora. Compreendemos que a arte o liberta”
(SANTOS, 2011).
O processo criativo do espetáculo, desenvolvido pelo encenador Luiz Humberto Arantes, foi
marcado pela construção a partir das memórias, sejam elas biográficas pelo livro de Sergio
Cabral, ou autobiográficas, pelos depoimentos e entrevistas em vídeo e em texto do próprio
artista. Todas estas fontes apontaram em uma montagem carregada de memórias híbridas, de um
lado do próprio artista e, em outra perspectiva, aliado ao contexto histórico social da época.
Nesse caso, trabalhando a partir de conceitos stanilavskianos, como a “memória emotiva”,
“mergulhei” em meu próprio universo e, revisitei etapas de meu processo formador como mulher
negra e atriz, me nutrindo de um arcabouço emocional que me forneceu material suficiente para
me aproximar, com cautela e denodo, dos sofrimentos e alegrias da arte de se fazer artista como
Otelo se fez. Entremeada por emoções variadas, vivenciadas ao longo de minha trajetória de
formação revisitando meu passado e vivência ao lado de meus irmãos, acionei o material de que
necessitava para revigorar meu trabalho cênico. Corpo e memória atrelados em conexão com o
passado e a reconstrução da história de Otelo, lugares comuns que se convergem, experiência e
memória. Em meu corpo, memória e experiências me trouxeram entendimento e me conectaram
com Otelo. Esta relação de experiências vividas fisicamente, que podem nos levar a um lugar de
compreensão do mundo através do sensorial resguardado no corpo é relatada pelo encenador
Constántin Stanislavski:

(...) é somente através da percepção, da relação do corpo com o mundo


por meio dos sentidos que se aciona a memória, que no caso da
involuntária, seria para Stanislavski a “verdadeira” erupção do passado,
carregada de sensações e sentimentos. (Stanislavski apud Mara, p. 66,
2011)

No espetáculo, revelamos os lugares comuns onde Otelo passou e que compõe o


arcabouço da memória concernente ao imaginário dos cidadãos uberlandenses como o Colégio
Estadual Bueno Brandão, onde ele estudou, a esquina do Hotel Presidente onde engraxou sapatos,
ou quando vendia jornal na Estação Ferroviária Mogiana. Desta forma, o universo em que
Sebastião Bernardes de Souza Prata viveu perpassa por espaços sensíveis de cada homem, como
a terra natal e lugares de vivência com respectivos familiares, adquirindo memórias como um fio
que, entrançado, compõe a construção da imagem de um homem. A respeito da pesquisa deste
material de campo sobre Otelo, os seus lugares comuns ajudaram a formar o arcabouço
necessário à formação do material de trabalho e levaram ao universo de identidade e
compreensão do espaço étnico racial naquele tempo e naquela sociedade. Este tipo de pesquisa
que nos leva à compreensão de nosso questionamento a respeito de nossa etnia a partir de
material biográfico de Otelo, e autobiográfico, ao mesmo tempo, relacionado com minhas
vivências é revelado na pesquisa da Professora Mara Leal em sua tese de doutorado, que a partir
de seu processo fez a seguinte reflexão:
Durante a pesquisa de campo comecei a me questionar por que,ao se
trabalhar com material autobiográfico,é freqüente virem à tona memórias
relacionadas às construções de identidades, principalmente as construções
de gênero, raça e sexualidades. Ao reencenar esses temas, tem-se a
possibilidade de se colocar em questão mitos e estereótipos
compartilhados através de nossa memória coletiva. (Leal, Mara p.17)

As ruínas de um prédio semi-abandonado, localizado no centro da cidade de Uberlândia


(MG), foram o palco para que o espetáculo acontecesse. Lá, o nosso Grande Otelo, que, segundo
ele mesmo, não tinha “papas na língua” foi esmiuçado, estudado, analisado, e, assim, foram
expostos fatos de sua vida íntima que poucos conheciam e que nos foram revelados através de
uma minuciosa pesquisa. Nas cenas trabalhadas pelos atores e captadas pelo encenador, foi
mostrada a infância e a vida adulta deste homem que, durante anos, intrigou a sociedade. Todo
material encontrado foi diretamente trabalhado na montagem, os problemas com a bebida e as
reiteradas faltas ao trabalho, o adultério, o suicídio da esposa depressiva, Lúcia Maria, que, antes
de morrer, mata o próprio filho, momento trágico na vida deste ícone do teatro.
Ao mesmo tempo em que revelamos aspectos trágicos de sua vida, revelamos a alegria e a
genialidade desse grande artista, que, após o episódio tétrico,que engloba a morte da esposa e do
filho,Otelo representou a célebre cena do “Balcão” de Shakespeare. Nesta cena, Otelo, travestido
de “Julieta” contracena com o amigo e parceiro, o ator “Oscarito” representando o Romeu. Desta
forma, Grande Otelo se eterniza como cômico e leva o público as gargalhadas, enquanto sofria,
em sua vida pessoal, com muitos motivos para chorar. Assim como fez Emílio de Ípola com sua
experiência carcerária, a história de Grande Otelo, poderá ser melhor visualizada e ou entendida
ao de ser contada pelas entrelinhas...pelas reticências,do mesmo modo que Ípola fez ao escrever
sobre sua passagem pela prisão.Assim visto Por Beatriz Sarlo:

A teoria ilumina a experiência (...) Por isso a experiência pessoal não faz
parte,mas está onde lhe cabe,nas notas de pé de página,como” matéria
prima” da análise.(...) a experiência se mede pela teoria que pode explicá-
la,a experiência não é rememorada mas analisada.(Beatriz
Sarlo,p.79,2007)
Assim, o espetáculo mostrou as raízes de Sebastião Bernardes de Souza Prata, através da
mãe, da avó, e de como foi construído esse artista que viveu uma infância extremamente pobre e
com escassos recursos culturais. Da mesma forma, eu também vivi com uma família grande e
com poucos recursos financeiros. Ao representar a cena da avó de Otelo, eu revia as nossas
correrias de crianças no quintal, e a entrada nas casas sempre tão escuras, mesmo durante o dia,
momento em que olhávamos e observávamos a lenha ao lado do fogão, esperando para ser
queimada.
Quanto mais mergulho nas minhas memórias sobre as cenas do “Moleque Tão Grande
Otelo”, mais reflito na importância, e na contribuição do teatro para a sociedade, ao permitir que
atores e público vivenciem, sintam e compartilhem uma experiência, ao invés de obter
informação como vemos nos veículos de comunicação de massa que bombardeiam notícias
diversas, mas que não propiciam uma vivência e experimentação sensorial que realmente
promova uma transformação interior dos indivíduos. Informação não transforma, idéia defendida
por Jorge Larossa, que afirma a respeito:

[...] a informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar


para a experiência, é quase o contrário da experiência, quase uma
antiexperiência. Por isso, a ênfase contemporânea na informação, em
estar informados e toda retórica destinada a constituirmos como sujeitos
informantes e informados, não faz outra coisa que cancelar nossas
possibilidades de experiência [...] (LARROSA, 2004, p.154).

O espetáculo permitiu que os espectadores compartilhassem, junto com os atores essa


grande aventura, que é viver a experiência oferecida por uma história de um ícone, gênio que é
humano como todos nós, com suas dores e alegrias, mesmo sendo por alguns minutos. O público
pode não só visualizar, mas também caminhar por entre cômodos das ruínas do apartamento,
degustar uma cachaça, sentir o cheiro do café, da parafina do lampião, se sentar, levantar, agir,
pensar, refletir, sentir os tons e sabores da infância de Otelo em Uberabinha, bem como de sua
maturidade no Rio de Janeiro. Desse modo, puderam sentir de fato o acontecimento e não apenas
passar por ele. Larossa defende a experiência pelo viés da delicadeza que propiciaria
possibilidades tão comuns, humanas, mas vilipendiadas nos dias hodiernos em que vivemos:
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou
nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza [...]. ( LARROSA,2004,p.160 ).

Ao abordar de maneira intimista, fragmentos da vida de Grande Otelo, o espetáculo


procurou proporcionar uma experiência para o público, que conviveu com momentos da vida do
ator, ao seguirem os passos da atriz que o representou - Aryadne Amancio. Percorrendo os
cômodos onde aconteciam as cenas, o público adentrou na intimidade de Otelo, e compartilhou
de trechos significativos de sua história, como, por exemplo, a cena em que todos se encontram
em um pequeno banheiro, e assistem os últimos instantes de vida da esposa de Grande Otelo,
Lúcia Maria, que, após matar o filho, comete suicídio. Esse episódio da vida de Otelo foi
encenado pelo Grupo Athos através do relato da esposa de Otelo,que não se pronunciou em
vida,apenas deixou uma carta.Na peça,a personagem Lúcia Maria,conta suas angústias,culpa o
marido e o público e revive os acontecimentos junto com ela e assiste estarrecido ao suicídio da
personagem.Beatriz Sarlo,discorre acerca dos testemunhos e do fato de em alguns momentos
apresentarem uma forte carga de persuasão e subjetividade.Por isso a autora,vê com uma certa
desconfiança e critica fortemente essa ação testemunhal:

Os relatos testemunhais são “discurso”nesse sentido,porque tem


como condição um narrador implicado nos fatos, que não persegue uma
verdade externa no momento em que ela é anunciada.É inevitável a marca
do presente no ato de narrar o passado(...)(SARLO,p.49,2007)
O espetáculo, além de abordar a vida e obra de Grande Otelo, de desvelar questões étnico
raciais, proporcionou que atores e espectadores, vivenciassem a travessia pelas memórias de
Otelo.
Além disso, possibilitou que o público percebesse, na pele, o negro Otelo, representado por
quatro atores e atrizes, negros e negras, que se contagiaram com a paixão pelo “Moleque Tião”,
que saiu do Sertão da Farinha Podre, e se tornou um dos maiores expoentes de nossa cultura.

Referências bibliográficas

CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007.

LARROSA, Jorge. Ensaios Eróticos – Experiência e paixão. In: Linguagem e Educação Depois
de Babel. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 151- 165.

LEAL, Mara Lucia. Memória e(m) Performance: material autobiográfico na composição da


cena. Salvador: 2011

SANTOS, Regma. Sobre o grande moleque Tião que se tornou Otelo. Artigo disponibilizado
no site http://brevidades-regma.blogspot.com, acesso em 7/09/2011.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
Trabalho do Ator e Teatralidade
Espaço rítmico: Provocações da Escuta

Por: Andréia Paris (*) (Bolsa CAPES; UDESC)


(Orientação: Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Junior; UDESC)

O presente trabalho pretende abordar o conceito de espaço rítmico, idealizado por


Adolphe Appia (1862-1928) no início do século XX. Appia propõe o espaço rítmico para
expandir a presença do ator, quebrando a imobilidade do palco e ritmando o espaço cênico
a partir da utilização de plataformas, cubos, blocos. Procurando meios para ampliar a
proposta de Appia, encontrou-se no conceito de “escuta” e de “ritmanalista” do filósofo
Henry Lefebvre (1901-191) uma possibilidade de problematizar e dilatar este conceito.
Artistas como John Cage (1912-1992) e Anne Bogart (1951) vêm explorando o
conceito de escuta como uma postura, um estado em que todos os sentidos são valorizados
e usados tanto para apreciar uma peça como para compô-la. Lefebvre também vai nesse
sentido quando pensa o “ritmanalista” como um cientista que fica imerso numa profusão
de ritmos e se permite ser atravessado por todos eles para ouvir o mundo a partir de seus
ruídos, murmúrios e silêncios. A partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.

Espaço rítmico Ritmanalista Escuta Corporal


Título: Espaço rítmico: Provocações da Escuta

O conceito espaço rítmico foi investigado e idealizado por Adolphe Appia (1862-
1928) por volta de 1909. No seu livro A Obra de Arte Viva (L’Oeuvre d’Art Vivant –
1921), as últimas páginas são destinadas a algumas propostas de cenários, os quais são
apresentados pelas seguintes palavras: “Espaços rítmicos: os desenhos a seguir, datam de
1909 e são parte de uma série de projetos idealizados junto ao pensamento de Jaques-
Dalcroze. São destinados à criação de uma melhoria específica do corpo humano, sob as
ordens da música. – Sem outro destino, eles são um ponto de partida (1)” (APPIA, 1921,
p. 164).
Os desenhos que surgem após estas palavras não se aproximam do teatro realista
e mesmo simbolista que eram representados no mesmo período na Europa. A principal
inspiração do cenógrafo suíço para chegar a estas sugestões foi sua parceria com Jaques-
Dalcroze (1865-1950), como ele mesmo cita no trecho acima. Em 1906, Appia conhece
o trabalho de Dalcroze e declara o seu fascínio numa carta que escreve ao novo amigo. A
partir deste momento até 1909, acompanhou as conferências, se matriculou, em Genebra,
no “Normalcursus für das Studium der Methode der Rhythmischen Gymnastik von E.
Jaques-Dalcroze (Curso Normal destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica de
E. Jaques-Dalcroze) e assistiu as demonstrações de trabalho que Dalcroze fez pela Europa
(BABLET in APPIA, 1988, p. 3 e 30).
Neste período, Dalcroze começa chamar a atenção para a sua pesquisa devido às
demonstrações práticas que começa realizar por toda a Europa. Estudos que iniciaram por
volta de 1892 quando lecionou no Conservatório de Música de Genebra, as disciplinas de
“Harmonia Teórica” e “Solfejo Superior”, onde se defrontou com as dificuldades dos
alunos na compreensão do elemento rítmico e harmônico na música. A educação musical
do momento valorizava o músico virtuose com habilidades técnicas, desconsiderando
suas qualidades sensíveis e, por isso, os alunos eram estimulados a se fixar na anotação
musical e não na sonoridade dos acordes e melodias. Para combater estes preceitos e
contribuir para uma melhor formação, Dalcroze idealizou um trabalho para desenvolver
a sensibilidade dos alunos, de modo que fossem preparados para pensar e fazer arte, de
perceber toda a profundidade da música, entendendo que ela também sensibiliza e
influencia diretamente as emoções (JAQUES-DALCROZE, s/d. p. VI).
Intencionado em educar músicos que dissessem “eu sinto” ao invés de “eu sei”
(JAQUES-DALCROZE, s/d. p. IV), Dalcroze constrói uma pedagogia que alia escuta e
ritmo e a chamou de Ginástica Rítmica (Rhythmische Gymnastik) ou, simplesmente, de
Rítmica (Rythmique). Para Santos (2001. p. 20) a Ginástica Rítmica foi um marco
operativo para concretizar uma educação musical porque: explorava a sensibilidade, a
percepção; igualava o ritmo a todos os demais elementos musicais e o dissociava da
métrica, sendo valorizado como fator importante para a vida, para a sensibilidade, para a
expressão de toda arte; e introduziu o movimento para dilatar o senso rítmico do aluno e
a sua sensibilidade corporal. Assim, os estudantes deveriam se movimentar para
evidenciar os seus sentimentos e os conteúdos aprendidos nas aulas, de modo que o
movimento fosse a expressão de uma experiência de aprendizagem. Segundo Santos
(2001. p. 19-20), para Dalcroze o movimento possibilitaria o desenvolvimento de
questões duais como corpo e mente, pensamento e emoção, consciente e subconsciente,
interioridade e exterioridade, dionisíaco e apolíneo e, ainda, proporcionar uma
experiência estética da sensação do pulso e do tempo.
Dalcroze alegava que toda a sua pedagogia era para a formação de músicos
sensíveis. Nem ao menos almejava formar bons instrumentistas, queria apenas que seus
alunos fossem capazes de “perceber a música como algo divino, além de harmonia,
melodia...” (MADUREIRA, 2008. p. 123). Para isso, a Rítmica foi idealizada para ajudar
o rythmicien a desenvolver sua inteligência, vontade, compreensão da relação entre
música e movimento, ritmo e gesto, expressividade corporal e musical, valorização da
auto expressão, conscientização do espaço e das infinitas possibilidades de expressão
sobre os mais diferentes planos. Habilidades que deveriam ser ampliadas em todo artista
das mais diversas áreas. Deste modo, para ele, “os estudos de Rítmica constituíam-se
como o ABC da técnica corporal necessária a todo artista completo. Pois eles se destinam
à inteligência e à vontade” (JAQUES-DALCROZE apud MADUREIRA, 2008. p. 118).
Dalcroze defendia que a Rítmica servia de preparação, de iniciação do artista, mas não
como substituta das demais metodologias de formação das artes como a dança, canto,
teatro, ou mesmo dos estudos pianísticos (MADUREIRA, 2008. p. 30). Por volta de
1905, Dalcroze começa excursionar pela Europa com alguns alunos para mostrar a sua
pesquisa e torna-se alvo de atenção de muitos artistas, inclusive de Appia, como já foi
colocado acima.
Os espaços rítmicos foram cridos a partir da parceria que surgiu entre Appia e
Dalcroze e ao ler A Obra de Arte Viva é impossível não fazer correlações entre os
pensamentos dos dois artistas. Como coloca Madureira, Appia fez o Curso Normal
destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica e devido a esta experiência,
possivelmente, pôde vivenciar pessoal e esteticamente a Rítmica, que o teria conduzido a
concluir que “ser artista é, em primeiro lugar, não ter vergonha do próprio corpo, mas
amá-lo em todos os corpos, incluindo o seu” (MADUREIRA, 2008: 92). A Obra de Arte
Viva é um tratado de como valorizar, explorar e amparar o corpo no teatro. Postura esta
que contraria o pensamento artístico teatral do período, já que há uma valorização, por
parte dos artistas do teatro, da dramaturgia como principal mote de criação e como
identidade do teatro. Os dramaturgos escreviam tratados sobre o teatro, de como montar
e atuar em seus textos, como pensar o teatro enquanto arte dramática. Havia ainda, devido
à influência de Richard Wagner (1813-1883) (2), a crença de que a arte dramática deveria
ser a reunião harmoniosa de todas as artes, a síntese de todas elas de forma que se tornasse
a “obra de arte do futuro” (APPIA, s.d, p. 19-22). Contrário a estes princípios fomenta a
crise do teatro com o palco italiano e valoriza o ator como artista fundamental e, apoia o
surgimento da função do encenador que começa despontar no cenário (MOTA, 2012, p.
44). “A arte dramática dirige-se, como as artes representativas, aos nossos olhos, aos
nossos ouvidos, ao nosso entendimento – em suma, à nossa presença integral. Porque
reduzir à nada – e antecipadamente – qualquer esforço de síntese? Saberão os nossos
artistas informar-nos?” (APPIA, s.d, p. 29). Appia tem a resposta: o movimento do ator é
capaz de unir e tornar cada arte harmoniosa, fazer a junção entre elas:
O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e conciliatório que regulará
a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir,
simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática; e, como é único
e indispensável, ordenará hierarquicamente essas formas de arte,
subordinando-as umas às outras, tendendo para uma harmonia que,
isoladamente, teriam procurado em vão (APPIA, s.d, p. 31).

O movimento corporal do ator surge como o elo fundamental para a prática teatral,
assim como é para a pedagogia de Dalcroze. Para Appia, todo e qualquer elemento do
teatro deve ser idealizado para promover o movimento corporal do ator, sem este esforço,
o teatro está morto. Uma obra viva requer que todos os recursos estejam em função do
movimento, que é a vida no teatro. Para Appia “o movimento não é, em si, um elemento;
o movimento, a mobilidade, é um estado, uma maneira de ser. Trata-se, pois, de examinar
que elementos das nossas artes seriam capazes de abandonar a imobilidade que lhes é
própria, que está no seu carácter” (APPIA, s.d, p. 31). Deste modo, o movimento do ator
significa, resignifica todas estas artes juntas, unindo, por meio do movimento e da
plasticidade do corpo, as artes do tempo (música e texto) e do espaço (Luz, arquitetura,
cenário).

O corpo, vivo e móvel, do actor é o representante do movimento no espaço. O


seu papel é, portanto, capital. Sem texto (com ou sem música) a arte dramática
deixa de existir; o actor é o portador do texto; sem movimento, as outras artes
não podem tomar parte na acção. Numa das mãos, o actor apodera-se do texto;
na outra, detém, como um feixe, as artes do espaço; depois reúne
irresistivelmente as duas mãos e cria, pelo movimento, a obra de arte integral.
O corpo vivo é, assim, o criador desta arte e detém o segredo das relações
hierárquicas que unem os diversos factores, pois é ele que está à cabeça. É do
corpo, plástico e vivo, que devemos partir para voltar a cada uma das nossas
artes e determinar o seu lugar na arte dramática (APPIA, s.d, p. 33).

Na sua proposta de valorizar o corpo para animar o espaço e torna-lo vivo, sugere
tirar toda e qualquer móvel feito para aconchegar o corpo. Sugere formas planas e rígidas
para tornar o corpo nú mais presente e valorizado esteticamente. “Sobre uma escada sem
tapetes, serão, simplesmente, pés nus e cheio de expressão” (APPIA, s.d, p. 86). O espaço
deve causar resistência ao corpo porque é desta resistência que surge a sua presença, que
torna o trabalho do ator mais efetivo sem ser figurativo. O movimento, para Appia, não é
representação de ideia, portanto, o cenário não deve ser figurativo. Assim, sua proposta é
que, as formas do espaço, não se harmonizem com as formas do corpo, porque, uma vez
em sintonia, o corpo estará presente, mas sem efeito corporal. Por isso, critica os cenários
e o modo de pensar o espaço cênico do período. Estes deveriam ser idealizados para
valorizar, ampliar, reforçar a expressividade do corpo do ator. Deste modo, para Appia,
por mais que o corpo do ator fosse plástico, se aproximando da forma escultural, não pode
ser feita uma identificação entre corpo e escultura porque, o primeiro é móvel. Por ser
tridimensional, o corpo recusa a pintura, ou seja, os telões com as suas formas e luzes
pintadas pois, não valorizam a sua mobilidade. Pelo contrário, devido à forma fixa, há um
estranhamento que diminui a potencialidade do corpo (APPIA, s.d, p. 40), jogando fora
toda todo o esforço do ator.

Para receber do corpo vivo a sua parte da vida, o espaço deve opor-se a esse
corpo; adquirindo as nossas formas, aumenta ainda a sua própria inércia. Por
outro lado, é a oposição do corpo que anima as formas do espaço. O espaço
vivo é a vitória das formas corporais sobre as formas inanimadas. A
reciprocidade é perfeita. Este esforço torna-se-nos sensível de duas maneiras:
quer pela oposição das linhas quando olhamos um corpo em contato com as
formas rígidas do espaço; quer quando o nosso próprio corpo experimenta a
resistência que essas formas lhe opõem. A primeira é apenas um resultado; a
outra, uma experiência pessoal e, por isso, decisiva. – Tomemos um exemplo
e suponhamos um pilar vertical, quadrado, de ângulos rectos inteiramente
definidos. Este pilar repousa, sem base, sobre lajes horizontais. Dá impressão
de estabilidade e resistência. Aproxima-se um corpo. Do contraste entre o seu
movimento e a imobilidade tranquila do pilar nasce já uma sensação de vida
expressiva, que o corpo sem pilar e o pilar sem corpo que avança não teriam
atingido. Além disso, as linhas sinuosas e arredondadas do corpo diferem
essencialmente das superfícies planas e dos ângulos do pilar e esse contraste é,
por si só, expressivo. Mas o corpo toca no pilar; a oposição acentua-se ainda
mais. Finalmente, o corpo apoia-se no pilar, cuja imobilidade lhe oferece um
ponto de apoio sólido: o pilar resiste, age! A oposição criou a vida da forma
inanimada: o espaço tornou-se vivo! – suponhamos, agora, que o pilar não é
rígido senão na aparência e que a sua matéria, ao mínimo contacto estranho,
pode adquirir a forma do corpo que a toca. O corpo vivo incrusta-se, portanto,
na matéria mole do pilar e sepulta a sua vida; e, no mesmo instante, matará o
pilar (APPIA, s.d, p. 87-88).

O cenário, portanto, tem a função de invocar e permitir que os atores sejam


colocados em primeiro plano e não deve ficar no âmbito da representação do texto
dramático. É o ator que deve ser interrogado na criação de um espetáculo e não o
dramaturgo. Por isso que para Appia é o tema quem guia a representação e, tudo que
favoreça o corpo do ator que deve ser escolhido para representa-lo: “Consideremos
apenas os elementos situados aquém desse corpo, aqueles que ditam a sua vida e o seu
movimento; depois, ocupar-nos-emos desse corpo, intermediário maravilhoso, dominado
pelo dramaturgo e dominando, por seu turno, o espaço, confiando-lhe a própria vida”
(APPIA, s.d, p. 148).
Diante de todas estas propostas de mudanças, há uma revisão geral do fazer teatral:
1. Não pensar no espetáculo apenas como uma representação do texto dramático. O texto
é visto como um provocador da montagem, cujas escolhas artísticas serão guiadas pelo
impulso de valorizar e expandir o trabalho do ator que conta a história. 2. A música, a luz,
o cenário, o figurino, o espaço de atuação, devem ser criados não para ilustrar a proposta
do dramaturgo, mas para potencializar a expressividade do artista. Por isso propõe não
atulhar o espaço de representação com móveis coloridos, telões pintados, nem vestir os
atores com figurinos figurativos, ou então compor músicas que sejam apenas pano de
fundo da encenação. Ao invés disso, sugere cenários mais simples visualmente, mas que
sejam potentes na provocação corporal dos atores, usando escadas, rampas, praticáveis
de modo que estes tenham uma forma que valorize a corporalidade do ator, que o convide
a se movimentar. Propõe formas que explore a tridimensionalidade do espaço,
recortando-o em planos diferentes, abolindo os telões ilustrativos, propondo meios que o
corpo possa exibir também a sua tridimensionalidade; que a música suscite e sugira
durações, ritmicidade, que contribua na não figuração do movimento, despertando no ator
a vida interior, a essência de sua movimentação; que a luz seja mais um aliado do ator,
que consiga jogar com os seus movimentos já que também se movimenta e revela uma
atmosfera. Não pode ser algo que fixa o movimento do ator, passiva, que cristaliza a
expressão, ao invés disso, deve revela-la, atende-la, destaca-la. Diante de tudo isso, é
possível entender as suas propostas de espaço rítmico como um provocador do ritmo do
movimento do ator. Suas formas retas e irregulares (escadas, praticáveis, rampas),
impedem o ator de andar linearmente, num único ritmo, já que, sugere mais atenção por
parte do ator, e convida seu corpo a ter diferentes posturas, afinal, para subir uma rampa
ou descer escadas, exigem posturas, necessidades corporais e rítmicas diferenciadas entre
si. Com isso, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa de modo outro que interfere
na sua expressividade. O espaço do modo como Appia pensa, também é mais lúdico,
possibilitando experimentações, provocações cênicas.
Para realizar o ideal de arte viva, que coloca o corpo e o movimento do ator como
o centro, o elo fundamental para e pela arte teatral, Appia acredita que é necessária
rigorosidade técnica, ou seja, conhecer as potencialidades estéticas do corpo e trabalhar
coletivamente. A arte viva não se representa, mas se vive intensamente por meio da
duração, do ritmo, do movimento, ocupando vivamente espaço e tempo (APPIA, s.d, p.
167-178). Para isso, é preciso trabalhar o corpo com o esporte, criar uma pedagogia
corporal e “uma vez que a Experiência da beleza foi o resultado de uma consciência nova
que adquirimos com o nosso corpo, na própria noção desse corpo adquire um alcance que
nós não suspeitamos ou que tínhamos esquecido” (APPIA, s.d, p. 194). Ou seja, Appia
sugere que o ator e todos os demais artistas do meio teatral trabalhem e se dediquem a
explorar o seu corpo, porque está nele todas as respostas para a criação. Mas que tipo de
trabalho corporal Appia espera que seja feito? Um que seja próximo do trabalho que
Dalcroze organizou? Neste sentido que este artigo espera contribuir.

A ESCUTA CORPORAL

Escutar, etimologicamente vem do latim a(u)scultare, que significa “tornar-se ou


estar atento para ouvir” (CUNHA, 1982: 318). Para Pierre Schaeffer escutar “é aplicar o
ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém ou alguma coisa que me é
descrita ou assimilada por um som” (SCHAEFFER, 1993: 90). Portanto, a descrição da
própria palavra considera o ser integrado, completo no ato de escutar, cujos
desdobramentos poderia ser: se atentar, perceber, concentrar, receber. Ações que que não
são encontradas no ato de ouvir. Originada do latim audire, ouvir significa “perceber,
entender sons através do aparelho auditivo, escutar” (CUNHA, 1982: 568). Para
Schaeffer (1993: 90) “é perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à
atitude mais ativa, o que ouço é aquilo que me é dado na percepção”. Portanto, como
coloca Barthes (1990: 217), ouvir torna-se um ato estritamente fisiológico, já que, por ser
uma cavidade direta e constantemente aberta, o ouvido capta todo som que chega a ele.
Mesmo diferentes, escutar não exclui o ouvir, e estas duas funções estão interligadas e
são dependentes uma da outra.
A escuta tem sido explorada e discutida em artes como a música, por exemplo,
desde o início do século XX. Neste período, passava por diversas mudanças nos
procedimentos composicionais que começaram introduzir sons, ruídos e até novos
instrumentos inventados pelos artistas, exigindo do público uma nova escuta e percepção
para a sua apreciação (SANTOS, 2004: 29). A discussão passou pelo movimento futurista
italiano (4) com o músico Balilla Pratella (1880-1955), se estendendo com os músicos
Edgard Varèse (1883-1965) e posteriormente se consolidou com propostas como a
“Escuta Reduzida” do compositor Pierre Schaeffer (1910-1995), o “Ouvido Pensante” de
Murray Schafer (1933) e a “Poiética da Escuta” de John Cage (1912-1992).
Resumidamente, a “escuta reduzida” é uma escuta do “objeto sonoro”, do som em sua
inteireza, em sua potência e qualidade sonora, sem idealizar a sua fonte, sem atribuir-lhe
significados. O objetivo é atentar-se, simplesmente, às suas qualidades sonoras, tal como
se encontrar em seu estado bruto e apreciá-lo como artístico (SCHAEFFER, 1993: 238).
Schafer propõe o “Ouvido pensante” para discutir o que chamou de “Ecologia Acústica”,
que estuda os efeitos sonoros do ambiente. A Poiética da Escuta é uma terminologia que
Shono (1987-1988: 451) propõe diante das propostas artísticas de Cage. Para o
compositor americano, não é mais o compositor que compõe a obra, mas o próprio
ouvinte, quando ele se propõe escutar o presente, o silêncio, o acaso e não apenas os sons
escritos de uma peça. Assim, os ouvintes são livres para se dedicar exclusivamente aos
sons que lhe interessem, sem a intenção de reter ou guardá-los, gravá-los. O ouvinte-
compositor se dedica a “ouvir-através”, em consonância com “ver-através” do pintor e
escultor francês Duchamp (1887-1968) (SANTOS, 2004: 80).
O trabalho de John Cage influenciou diretamente o de Anne Bogart (1951),
diretora da SITI Company dos Estados Unidos, que também pensa o que chama de
“Escuta Extraordinária”. Sendo um dos preceitos importantes de seu pensamento como
diretora, propõe a “escuta extraordinária” como uma postura, um estado que o ator deve
desenvolver, em que todos os sentidos são valorizados no mesmo grau de importância e
usados na cena ou na preparação de qualquer trabalho. É escutar com todo o corpo, todos
os sentidos, relacionando-se ativamente com o inconstante mundo ao redor, “direcionar
para fora a sensibilidade ágil e rapidamente, estar disponível e aberto ao outro, sensível a
tudo que acontece”(3) (BOGART; LANDAU, 2005: 33). É, neste estado, nesta postura
de “escuta extraordinária” na qual não há hierarquia entre os sentidos corporais,
promovendo, deste modo, uma sensibilização do corpo todo, mantendo-o atento, alerta e
principalmente receptivo que, Anne Bogart introduz o ator aos viewpoints e à
composição. Para ela, este é o primeiro passo para o ator iniciar seu trabalho, porque ela
resume a função do ator em responder, escutar, perceber, compor com o grupo, com o
espaço, com o tempo.
Outro pesquisador da escuta foi Henry Lefebvre (1901-1991). O filósofo francês
também pensava a escuta como um instrumento de percepção para captar os ritmos do
cotidiano, das cidades, dos comportamentos humanos, da vida em sociedade. Ele idealiza
o ritmanalista, um cientista social, cidadão do mundo, econômico, rítmico que deve
ouvir, principalmente, o mundo, os ruídos, múrmuros, o silêncio para pensar as mudanças
e os acontecimentos sociais. O ritmanalista fica imerso na profusão de ritmos cotidianos
e se permite ser atravessado por todos eles, para que os seus ritmos internos sejam
acordados. Nada deve ser esquecido, nem mesmo o aroma. A percepção do ritmanalista
deve estar dilatada, amplificada, de forma que todo o seu ser esteja envolvido, sensível
aos elementos rítmicos do mundo, de modo que consiga captar, principalmente, os
detalhes ocultos. No primeiro momento da análise, a escuta deve ocorrer de forma
passiva, sem fazer prévias concepções, apenas se concentrando no ato de ouvir.
Posteriormente, escuta seu próprio corpo como quem ouve um metrônomo, de forma a
aprender os ritmos que vêm dele e, consequentemente, apreciar os ritmos externos. É
necessário ter disciplina para perceber e distinguir ritmos, sem rompê-los ou deslocar o
tempo. Lefebvre legitima o corpo como uma bússola, como um meio para pensar a ciência
do ritmo. Com isso, Lefebvre propõe uma concepção de ciência que inclui no proceso de
conhecimento não apenas o racional e o lógico, mas também o sensível. Para isso,
Lefebvre defende que o ritmanalista pode e deve utilizar todas as práticas corporais e
ideologias que exploram o controle da respiração, do coração, dos músculos e dos
membros inferiores e superiores, do corpo como um todo (LEFEBVRE, 2005, p. 19) para
fazer suas análises. O ritmanalista, portanto, seria alguém que se torna um crítico, um
agente, um ser consciente dentro de seu meio que explora as habilidades de um
psicanalista, médico, historiador, climatólogo, poeta e sociólogo para ouvir o mundo com
seus ruídos, múrmuros e silêncios (LEFEBVRE, 2005, p. 19).

O ritmanalista não seria obrigado a pular de dentro para fora dos corpos
observados. Ele poderia ouvi-los como um todo e unificá-los usando seus
próprios ritmos como referência: integrando o fora com o dentro e vice-versa.
Para o ritmanalista nada é imóvel. Ele ouve o vento, a chuva, a tempestade, a
parede, um baú [trunk], entende sua lentidão, seu ritmo interminável. Seu
objeto não é inerte. O tempo não é colocado de lado pelo sujeito. Ele só é lento
em relação ao nosso tempo, ao nosso corpo, a medida dos ritmos. Um objeto
aparentemente imóvel, a floresta, move de múltiplos modos: os movimentos
combinados da terra, da Terra, do sol. Ou os movimentos das moléculas e
átomos que os compõem (o objeto, a floresta). O objeto resiste a milhares de
agressões, mas se quebra em umidade ou em condições de vitalidade, uma
profusão de vida minúscula. Para o ouvido atento, esta vida minúscula é como
uma concha marinha (5) (LEFEBVRE, 2005, p. 20).

John Cage, Anne Bogart e Lefebvre pensam a escuta como um recurso que
contribui na percepção a partir da exploração e ampliação da atenção, percepção,
concentração e recepção; como interação do corpo no processo, seja ele artístico ou
científico, que compreende a fisiologia interior e exterior, de modo que estas estejam em
constante abertura e flexibilidade com o meio à volta, de forma a entender o ritmo, o
espaço, a relação entre objetos e pessoas; como meio para despertar e pôr em interação o
tato, o caminhar, a respiração, o fluxo sanguíneo, o olfato para perceber e explorar
sonoridades, acentos, ruídos, silêncios de forma a estabelecer um dialogo com o espaço,
com as cores, odores, com elementos externos e internos de forma não hierárquica.
Proposta que vai em direção às intenções e ao pensamento de Appia: foco sobre o corpo
como o elo fundamental da arte e a busca por um treinamento que objetiva sensibilizar o
artista aos elementos espaciais, textuais e rítmicos.
Neste sentido, a escuta pode ser uma prática interessante para pensar o espaço
rítmico. Appia o idealizou como um elemento fundamental que contribuísse no
desenvolvimento da expressividade do ator, para que ela fosse o elo entre todos os demais
elementos teatrais. A partir da exploração da sua percepção, o ator entende que qualquer
espaço tem seus ritmos, porque ele os ouve, os sente, os cheira, os tateia, se movimenta,
os degusta. Com os sentidos dilatados, há a ampliação da atenção, da percepção, da
concentração e da recepção do ator que reage a qualquer elemento que capta: não deixa
escapar a densidade do ar, cujas qualidades, dinâmicas e características mobilizam o ator,
inspirando-o a reagir; sensibiliza-se com as cores das paredes e do chão, com a entrada
da luz das janelas, com seus desenhos e formatos que criam imagens, possibilidades de
criação; não ignora os sons que chegam a este espaço, sejam eles provocados ou não,
confortáveis ou ruidosos porque, as sensações que provocam são potencialidades para
composições rítmicas do movimento; não dispensa a temperatura, os cheiros, os gostos
que geram mobilizações internas e externas, suscitando no corpo diferentes reações.
A escuta cria uma disposição corporal a todos estes elementos, despertando o ator
a dialogar, a responde-los com movimentos. O universo externo, a sala de ensaio, o palco,
mesmo estando vazios, o ator os vê cheios de provocações que lhe causam sensações, que
lhe convidam a brincar, compor dramaturgias, músicas que dialoguem entre si. Se o ator
estiver sensibilizado corporalmente para ocupar o espaço e o tempo no qual está inserido,
eles serão rítmicos, tendo formas retas, irregulares, escadas, praticáveis, rampas ou não
porque, qualquer elemento, mesmo o menos perceptível poderá ser estímulo mobilizador
da criação. A partir da escuta corporal, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa,
interage com ele, o desconstrói, o constrói, o transforma poeticamente. Por estas
considerações, acredita-se que a partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.

Notas:
(*) Bolsista Capes, doutoranda em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC) na linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Subjetividade. Bacharel
em interpretação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestre em Teatro pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC). As suas pesquisas estão na área da formação do ator: Interpretação,
Improvisação, Preparação Corporal e Ritmo da cena.

(1) Les dessins suivants, qui datent de 1909, font parti d’une série de projets appartenant à Jaques-
Dalcroze, et destinés à la création d’un style propre à la mise en valeur du corps humain sous les
ordres de la musique. – Sans autre destination, ils sont un point de départ.
(2) Appia tem um livro dedicado a esta temática La Mise em Scène du Drama Wagneriano (1895).
Há a tradução de alguns textos deste livro feito pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro na revista
Urdimento, N. 12, disponível em: http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/
(3) Point out that this sensibility of alertness, quickness, availability and openness to one another, and
the sense that anything might happen […].Tradução da autora.
(4) Movimento artístico que surgiu em 1909, rejeitando o moralismo e o passado, cujas obras
baseavam-se na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos do final do século XIX.
(5) The rhythmanalyst will not be obliged to jump from the inside to the outside of observed bodies;
he should come to listen to them as a whole and unify them by taking his own rhythms as a
reference: by integrating the outside with the inside and vice versa. For him, nothing is immobile.
He hears the Wind, the rain, storms: but if he considers a stone, a wall, a trunk, he understands
their slowness, their interminable rhythm. This object is not inert; time is not set aside for the
subject. It is only slow is relation to our time, to our body, the measure of rhythm. An apparently
immobile object, the forest, moves in multiple ways: the combined movements of the soil, the
Earth, the sun. Or the movements of the molecules and atoms the compose it (the object, the
forest). The object resists a thousand aggressions but breaks up in humidity or conditions of
vitality, the profusion of miniscule life. To the attentive ear, it makes a noise like a seashell
(LEFEBVRE, 2005, p. 20). Tradução da autora

BIBLIOGRAFIA

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https://archive.org/stream/loeuvredartvivan00appiuoft#page/n7/mode/2up

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D’homme, 1988. Direção Científica da edição de Denis Bablet. O livro fala de seu período
de 1906 a 1921. Disponível em:
http://books.google.fr/books?id=yly2GoeEPxYC&pg=PA519&lpg=PA519&dq=l%27oeuvre+compl%C3
%A9te+de+Appia&source=bl&ots=Kx12fN2uhP&sig=PBBnolUO6MM4qIbLK4B-c_pB3Bk&hl=pt-
BR&sa=X&ei=KFmwU-
nfNsLlsASq0IDICA#v=onepage&q=l%27oeuvre%20compl%C3%A9te%20de%20Appia&f=false

BARTHES, Roland. O Óbvio e o Obtuso: ensaios críticos. Rio de Janeiro: Nova


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CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua


Portuguesa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira: 1982. 2 ed.

DALCROZE, E. J. Rythm, Music & Education. London: The Dalcroze Societz, 1980.

MADUREIRA, José Rafael. Émile Jaques-Dalcroze: Sobre a Experiência Poética da


Rítmica - uma exposição em 9 quadros inacabados. 2008. 209 p. Tese (Doutorado em
Educação Área de Concentração: Educação, Conhecimento, Linguagem e Arte).
Faculdade de Educação. UNICAMP. Campinas - SP.

MOTA, Marcus. Urdimento. “Fontes para os Estudos Teatrais I: contribuições de A.


Appia e E. Piscator”. Florianópolis, 2012. N° 18. Março-Setembro. pp. 43-57.

SANTOS, Regina Márcia Simão. “Jacques-Dalcroze, Avaliador da Instituição Escolar:


Em que se Pode Reconhecer Dalcroze um Século Depois? (in) Debates. Programa de Pós-
Graduação em Música. Centro de Letras e Artes – UNIRIO. Fevereiro, 2001. Número 04.
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SANTOS, Fátima Carneiro (2004). Por uma Escuta Nômade: a música dos sons da rua.
São Paulo: EDUC/Fapesp, 2 ed.
SCHAEFFER, Pierre. Tratados dos Objetos Musicais: Ensaio Interdisciplinar. Tradução
de Ivo Martinazzo. Brasília: Edunb – Editora da Universidade de Brasília, 1993.

SCHAFER, Murray. O Ouvido Pensante. São Paulo: UNESP, 1991.

SHONO, Sussumo; 1897-1988. “Une Poïètique d’Écoute”. Revue d’Esthetique (nouvelle


serie). N. 13/15, pp; 449-455.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
ATRIBULAÇÕES DE VIRGINIA, O REFLEXO DO TRABALHO EM UM
PESQUISADOR INICIANTE.

Célio Alberto de Ávila Freitas (PIVIC-CNPq); Colaborador: Cênica Luz (Universidade


Federal de Uberlândia-UFU); Orientador: Mario Ferreira Piragibe (Universidade
Federal de Uberlândia – UFU)

A História e fantasia de Virginia

… un día alguien que no conoces se fija en ti. Ese día te


cambia la vida. Virginia se la cambió a Valentín. Cuando
empiezas algo crees que va a ser para siempre y a veces no es
así. Un día la magia como viene se va… te desenamoras...
(CIA HNOS. OLIGOR).

No ano de 2012 aconteceu na cidade de Uberlândia a quarta edição do Festival


Latino-Americano de Teatro Ruínas Circulares, entre os dias 30 de abril e 05 de maio.
Dentre as atrações do festival, o espetáculo “As atribulações de Virgínia”, apresentado
pela Cia Hnos. Oligor.
Na época em questão eu ainda era um aluno do curso de graduação em
Engenharia Civil pela Universidade Federal de Uberlândia, a um passo de sair para
fazer o curso de Teatro como sempre desejei. Caminho o qual não havia seguido por
motivos familiares, entre eles a perda de meu pai, que trabalhava nesta área da
engenharia, de maneira autônoma.
O primeiro e segundo dias de espetáculo estavam lotados, de modo que eu não
pude assistir, pois, era estruturado para comportar apenas 50 espectadores por sessão.
No entanto, a cada dia que passava mais pessoas que acompanhavam o festival e atores
ou não, relataram que a peça era uma ótima oportunidade de conhecer uma linguagem a
qual não temos muitos trabalhos como referência.
Ouvir isso me deixou ainda mais ansioso pela oportunidade de assistir à peça
sendo que, somente no último dia, consegui garantir meu lugar na seção, e de fato,
deparei-me com algo que mudou meu pensamento artístico e despertou a sensibilidade
de como o simples pode ser belo, como o modo utilizado para apresentar algo, pode
fazer uma diferença imensa.
A história da peça é incrivelmente simples, e talvez por isso seja tamanha a sua
beleza. Nela apenas dois são os personagens: Virginia e Valentim. Em uma historia de
amor em que tanto o começo quanto o final são como na vida real, naturais, e por mais
que possam causar sofrimento ou qualquer outra sensação, não se pode evitá-lo. Um dia
chega à vida da sensível Virginia, que com seu sonho de ser bailarina vivia
normalmente, Valentim. Alguém que ela não conhecia, ou imaginava chega e muda sua
vida, e por mais que o começo possa ser belo e parecer até mesmo eterno, às vezes não é
isto o que acontece de fato. Cheia de reviravoltas e fantasias assim foi a historia que
com seus recursos de drama sensível, cria um ambiente que propicia a plateia
sentimentos diversos. Em meio a bonecos, máquinas, brinquedos e muita criatividade,
em que a palavras “Alegria” dita pelo ator Jomi Oligor inúmeras vezes e que faz com
que sejamos convidados a compreender que sofrimentos e partidas fazem parte da vida
e que saber lidar com tudo isso pode levar o sofrimento a ser algo não tão cruel como
parece ser a primeiro momento.
Ao sair do espetáculo naquela noite, se passou em mim algo mais forte do que
em qualquer outra peça de teatro que eu já havia assistido. Eu não conseguia parar de
pensar nos elefantes, sereia, todas as luzes, voz, cordões, trilhos de trem, guitarra,
bolhas de sabão, efeitos sonoros naturais dos objetos e transições que havia visto. Um
estudante de engenharia, que viu uma “engenhoca mágica teatral” como eu, ainda sem
um conhecimento técnico em teatro de objetos, apelidei o aparato teatral pelo qual o
espetáculo nos convida a embarcar nesta historia.

Da Bailarina sonhadora ao engenheiro que vira ator

A segunda-feira seguinte à apreciação do espetáculo me mostrou que o curso


de Engenharia Civil no qual eu estava era de fato incompatível com meus desejos e
sentimentos. Passei o final de semana após haver assistido a peça com aquelas imagens
na cabeça. Se Virginia queria ser bailarina, e pela fantasia do teatro foi possível
construir toda aquela engenhoca mágica teatral, o que será que um estudante de
Engenharia Civil, um construtor de engenhocas, poderia ser capaz de fazer para
aproximar seu sonho verdadeiro de ser ator daquele curso acadêmico que ele fazia sem
vontade?
Era essa a questão que não parava de transitar na minha cabeça, achava que
poderia fazer algo tão belo quanto à peça, e que se eu encontrasse alguém que estivesse
disposto a auxiliar-me em uma pesquisa ou construção em que fosse possível aliar o
meu desejo e sonho pelo teatro, como o conhecimento adquiro ao cursar engenharia
civil, poderia usar o que essa faculdade iria me proporcionar. Construir para o teatro,
planejar para o teatro, engenharia para o teatro. Talvez uma história de um jovem
engenheiro que sonhava ser ator, mas que acabou não sendo porque a vida leva a gente
às vezes a caminhos que não são os que desejamos, e nem sempre as coisas são para
sempre, como não foram para Virginia e Valentim...
Sempre que falava sobre teatro com professores ou meus amigos, eu percebia
que ninguém estava disposto há ficar muito tempo em um projeto assim. Mesmo os
professores não se empolgavam muito com a ideia de orientar um projeto que
propusesse tal interação entre cursos. Afinal é bem evidente, o modo como um curso da
área de exatas, ainda mais sendo um curso que por sua carga horária extensa e número
elevado de disciplinas, acaba levando seus discentes, a uma situação em que o tempo é
precioso e normalmente sempre deve ser bem dosado para que seja possível dedicar-se
de maneira adequada. Após alguns dias, conversando com pessoas do curso de teatro
acompanhando como ouvinte, algumas aulas do curso em questão. Cheguei à definitiva
decisão de que eu iria seguir meu desejo.
Uma vez, que tive oportunidade de fazer a prova de habilidade especifica em
teatro, somente foi necessário aguardar o fim da greve nacional em vigor. Não havia
mais o engenheiro com duvidas, mas sim um novo graduando em teatro que, movido
por seus sonhos e empolgações, já tinha um interesse mais particular estudar linguagem
do teatro de formas animadas. E descobriu que a peça que tanto o encantou, trabalha em
grande parte com a linguagem do teatro de objetos. Um estudo preliminar dessa
linguagem do Teatro de Animação, já forneceu as primeiras ferramentas, possibilitando
o desenvolvimento de meus estudos e nova formação.

Elementos e características do teatro de objetos vistos na peça

O teatro de objetos é particularmente provocador quando


apresenta um repertório pessoal, autobiográfico, intimo e
autoral do ator, que se expõe através dos objetos. O grande
potencial do Teatro de Objetos não está nas suas
particularidades técnicas, mas, sim, naquilo que é capaz de
despertar de mais profundo e revelador daquele artista, por
meio de seus objetos. (VARGAS, 2010, pg 37)

O estudo de teatro de objetos, em meu começo de pesquisa, tem sido atraente


principalmente devido a pensamentos como este de Sandra Vargas, e que também ouve
a possibilidade de identificação, tanto no espaço da peça quanto no trabalho do ator
durante o espetáculo que abordo neste artigo. A proximidade entre ator e público que
essa linguagem teatral propõe, exatamente por este seu caráter autobiográfico, leva o
ator a um nível de exposição elevado.
Pelo que vi em Atribulações de Virginia, Jomi Oligor estava totalmente aberto
para a percepção de reações do público, e em meio a esta percepção, ele usava de
artifícios próprios para poder interagir com a plateia, conversando com algumas pessoas
que demonstrassem reação a sua fala. Isto é, no ritmo da história de amor de Virginia e
Valentim, seu tom de voz muitas vezes com falas galanteadoras para mulheres que
estavam no espaço, bem como aproximação corporal que fazia do publico, provocavam
reações como timidez, entre outros modos de estranhamento ou aceitação do jogo
proposto. Lembro-me ainda, que Jomi Oligor, fazia referência até mesmo a alguns
locais da cidade de Uberlândia nesta aproximação com o publico, como fez na ocasião,
a um bar/boate que fica próximo ao local da apresentação e perguntar a uma garota se
ela queria ir com ele. Situação está que prendiam a atenção do público, servindo de
contrapartida a momentos tensos, em que algo ruim aconteceria, atuando de fato como
quebras no ambiente da peça.

Um objeto construído pelo homem é sempre relativo a ele. É


construído pelo homem para servir ao homem. Portanto, só
pode ser definido em relação a ele. Matéria pura, matéria e
forma, ideia realizada, pensamento solidificado, „palavra
materializada‟. (AMARAL, 1993, pg 205)

O espaço da peça, apreciada, é projetado de modo a refletir o ambiente em que


foram construídos os objetos cênicos. Durante o processo os atores passaram dois anos
trancados em um porão, devido a problemas que aconteciam em sua família. Neste
tempo, eles não pensavam de fato em que aqueles brinquedos e bugigangas que
construíam, poderiam resultar em uma peça teatral. Sendo que este desfecho aconteceu
por impulso de amigos que apreciavam o que estava sendo construído durante visitas
que faziam aos Jomi Oligor e seu irmão Pepe Oligor. O fato é que eles realmente
reconstroem este espaço para que ali apresentem o espetáculo, sendo esta ainda, uma
forma de criar esse ambiente intimista que o teatro de objetos pede ao seu público.
Ainda para que posa ser mais fácil ter dimensão do clima intimista do porão em
que foram construídos os objetos, eles utilizam a iluminação cênica como técnica para
facilitar este processo. São bastante exploradas no cenário da peça, lâmpadas
incandescentes envoltas para dar o aspecto de lua e pouca iluminação na maior parte do
tempo, recurso este que tem como principio levar a atmosfera do espetáculo a
reproduzir este espaço em que havia pouca iluminação.
Pensando ainda sobre iluminação no espetáculo, até mesmo a iluminação pode
ser abordada como um objeto participante da cena, as transições de luz são todas
operadas pelo próprio ator em cena, conectando novos fios, mudando interruptores e
ativando novas fontes luminosas, que dialogam com o momento da que se passa no
texto. Sendo também usadas fontes luminosas não elétricas durante momentos do
Espetáculo, para dar uma ambientação comemorativa a determinado momentos, o ator
utiliza velas, ou ainda pavios para efeitos desejados.

... Dentro deste conceito, portanto, tentar fazer um boneco,


forçando a ilusão de um movimento humano a partir da junção
de diferentes objetos, não constituiria um Teatro de Objetos,
mas um Teatro de Bonecos feito de objetos. (VARGAS, 2010,
pg33.)

Refletindo sobre a fala de Sandra Vargas, é possível que imaginemos que a


peça apresenta somente um boneco feito de objetos, que seria o grande boneco
Valentim, que apresenta uma estrutura de cintura acima, e sua movimentação está
totalmente ligada a ao maquinário da peça, possibilitando movimentos de braços, por
exemplo, em momentos. O fato é que todos os objetos em questão neste espaço tiveram
de ser muito bem pensados para que funcionem do modo como são, uma ação de Jomi
Oligor para soltar uma pequena esfera, por exemplo, faz com que essa esfera se desloque
e ative algum outro mecanismo, acendendo luzes do boneco Valentim.
Outros objetos que chamam atenção na peça também são os vários brinquedos
colocados em cena, o elefante, o trem que percorre os trilhos que passam atrás da plateia
levando Virginia em certo momento, a própria Virginia que pode ser colocada no nariz
de Valentim, e também o Coração Oligor como chama Jomi Oligor em uma entrevista
para a Festival Cena Contemporânea em 2011 que se tornou o símbolo do espetáculo.
E também a presença de objetos mais com os quais é usado o artifício de
figuras de linguagem, característico desta linguagem teatral. Em determinado momento
cênico, uma estrela cadente aparece em cena, à medida que o ator falar para que o
publico faça um pedido, Tal estrela que é um pavio que quando aceso passa como a luz
de uma estrela de fato.
Novos significados podem ser dados aos objetos, sem
transformar a sua natureza, por meio das associações que se
podem dar pela forma, pelo movimento, pela cor, pela textura,
pela função do objeto, etc. (VARGAS, 2010, pg 34).

Para ilustrar um pouco melhor essa transformação de natureza do objeto,


podemos falar sobre duas das principais figuras de linguagem que são usadas na
construção de cenas e momentos de teatro de objetos, sendo estas, as metáforas quando
essa transformação é e atribuída ao objeto com um significado diferente do habitual
levando em conta alguma semelhança entre o sentido proposto e o primário do mesmo.
E também a metonímia, quando uma palavra é usada para algo com que se tenha relação
de posse ou proximidade.
Ainda pensando em termos técnicos do teatro de objetos e apoiado na ideia
levantada pela citação acima, é possível destacar sobre o espaço cênico do espetáculo, o
modo como em sua concepção, a Cia Hnos. Oligor usa também da ideia de “família” de
objetos. Isto é, quando se analisa características dos objetos do espaço, como o boneco
Valentim, a sereia, e demais materiais é possível perceber claramente que os objetos
entre si possuem certa unidade em relação uns aos outros, tanto em cores como também
quando se diz respeito aos materiais dos quais eles são feitos. Sendo que esta escolha a
de objetos se mostra também bastante enriquecedor para o próprio jogo metafórico do
espetáculo, uma vez que facilita a criação do ambiente intimista e fantástico criado.

Os brinquedos que criam novas histórias.


Estar em contato com o curso de graduação em teatro proporcionou
descobertas e alimentou a imaginação para do que eu esperava. Assim que comecei a
fazer as aulas, procurei saber mais sobre o espetáculo que me moveu a estar ali no
curso, então descobri por meio do professor Mario Ferreira Piragibe, hoje meu
orientador de iniciação cientifica, o que era teatro de objetos. Em contrapartida,
descobri que essa área da linguagem de formas animadas é pouco trabalhada no curso
de teatro, ofertada apenas como disciplina optativa.
Como meu interesse era particular, comecei uma trajetória própria visando
descobertas. O jovem ator que se encantou pela bailarina Virginia, agora está em busca
de entender melhor sobre a forma como a história dela foi contada e como ainda falta
conhecimento para confecção de bugigangas ou demais outros objetos semelhantes aos
que Jomi Oligor cria. Neste inicio de estudo decidi apelar para os meus objetos mais
preciosos: os brinquedos de minha infância. Minhas historias iniciais e momentos
contados usando a linguagem do teatro de objetos têm sido principalmente
proporcionados por experiências relacionadas à própria faculdade e relacionamentos
amorosos, logo neste total caráter autobiográfico da linguagem como já mencionei,
sempre buscando o clima intimista e envolvente que As atribulações de Virginia me
mostraram.
O primeiro pensamento que se passou em minha cabeça foi a inquietação a
respeito de como às vezes o egoísmo e ganância podem fazer com que percamos
oportunidades, justamente por isso, senti vontade de escrever A Estrela, uma história de
amor de um garoto que todos os dias caminhava até o topo de uma colina para observar
as estrelas, sonhando que uma delas pudesse um dia se tornar sua, no entanto sua
ganância faz com que ele ignore uma bela estrela dourada e ela parca seu brilho. Assim
nasceu esta cena, apresentada a primeiro momento para o grupo zerovígula1 de teatro do
qual faço parte do elenco e que hoje faço algumas apresentações em eventos do curso e
para amigos. Para esta cena selecionei dois brinquedos (o garoto e a garota), uma estrela
feita em origami, um tubo telescópico (que usava no curso de Engenharia Civil) e uma
rosa no seu desenvolvimento.
Essa experiência com teatro de objetos desdobrou-se e ainda mais, do trabalho
final da disciplina Consciência Corporal do curso de teatro, onde contei em uma cena
usando brinquedos, meu processo pessoal de estudos no semestre, falando, o que
aprendi, observando em meus colegas de classe no decorrer do processo disciplinar.
Usando como conexão com a peça citada no decorrer do artigo, a ideia de proximidade
com o publico e o tom de voz espontânea como recursos para sensibilizar os
acompanhantes.
No segundo semestre do curso de teatro, houveram dois trabalhos ligados a
objetos e cena. Surge como processo final da disciplina Expressão Corporal I no ano de
2013, a cena Beija-flor, que enceno uma poesia com objetos contando sobre o final de
um relacionamento amoroso que havia vivido durante 11 meses. Trabalho que foi além
da universidade e se tornou uma trilogia de poesias sobre este relacionamento, onde
sigo os versos destas poesias para de forma metafórica contar essas histórias com
objetos, usando recursos semelhantes alguns que já foram discutidos no artigo. Sendo
que atualmente este trabalho ainda está em fase de compartilhamento, somente com o
meu grupo.
O segundo trabalho deste semestre, ligado à disciplina Projeto integrado de
praticas educativas II, foi atividade performática Despertar, em que utilizando folhas de
papel, com poesias impressas, trabalho a relação de objetos como cenário interativo com
ator. A proposta da atividade é mostrar na relação entre essas poesias escritas e o
caminho que me levou ao teatro, passando por momentos do conflito familiar e citando
a referência do espetáculo também em cena, de modo que este cenário de papel também
era manipulado durante a cena.
Já em 2014, uma última atividade performática 93.9, relacionada à disciplina
Expressão Corporal II, trabalho novamente ao cenário interativo com o ator. Desta vez,
as folhas de papel dão lugar a copos de vidro com água e o trabalho passa a ser sobre a
relação do corpo cênico pesado precisando trabalhar em um cenário onde o material e
frágil. Mais uma vez, convido o público para a relação de proximidade. Nesse caso, a
intenção é a provocação ao estranhamento e incômodo por meio de áudio contendo
frases que me afetam e causam sensação de peso ao corpo.
As duas últimas partem do desejo próprio de pensar como delimitar um espaço
cênico em que encontre semelhanças com ambientes de instalação, como também
sugeria o ambiente cheio do espetáculo As atribulações de Virginia com seus fios e
trilhos de trem e com a mesma necessidade de interação do ator com ambiente para que
aconteça o efeito esperado, tal qual era necessário que Jomi Oligor fizesse para que as
transições de cena acontecessem.
Movido atualmente por leituras e atividades do grupo de pesquisa em teatro de
formas animadas na universidade, começo juntamente com as atividades da disciplina
de dramaturgia, do quarto período da graduação, a pensar em de fato como escrever um
texto um espetáculo próprio da linguagem de teatro de objetos. Busca que deve partir
novamente deste universo dos sentimentos amorosos que tenho explorado muito em
minhas cenas, buscando uma dramaturgia que crie um universo de intimidade entre
público e ator, e que possa sensibilizar a ambos, como o universo de Virginia fez
comigo.

Conclusão

O trabalho do ator apresentado por Jomi Oligor, bem como os elementos de


teatro de objetos e a organização espacial do espetáculo que aprecei, revelam-se cada
dia mais uma influência direta para o desenvolvimento de um trabalho próprio na
linguagem. Sendo necessária para a criação de novas cenas e ideias, a busca por
vivência e experimentação usando memórias e objetos que se distanciem em
características e possibilitem novas dinâmicas de manipulação. Considerando que estes
mesmos podem ser parte da cenografia, e não apenas enquanto personagens pelos quais
a história e contada por meio de novos significados atribuídos a eles.
Portanto, o espaço intimista que a Cia Hnos. Oligor apresenta em As
atribulações de Virginia desperta o desejo de embarcar em questões cada vez mais
autobiográficas nesta pesquisa, para que assim, comparando com ao porão onde os
irmãos Oligor criaram seus objetos, possa buscar em meu próprio porão de
pensamentos histórias e desejos possam ser contados ao público de modo criativo e
inventivo. Levando o antes estudante de engenharia a pensar com engenhosidade para
encontrar meios de levar suas histórias ao público.

Referências Bibliográficas

VARGAS, SANDRA. O Teatro de Objetos: história, ideias e reflexões. MÓIN-MÓIN


Revista de estudos sobre teatro de formas animadas, Santa Catarina, n. 7, ano 6, p.27-
43.2010.
AMARAL,MARIA A. Teatro de Formas Animadas. São Paulo: Edusp-Editora da
Universidade de São Paulo,1991.Pg 320.

CIA HNOS. OLIGOR. Apresentação do site. Disponível em <


http://www.oligor.org/oligoweb3/index3.html>. Acesso em 22 de abr. 2014.

CENA CONTEMPORÂNEA 2012. Tribulações dos Oligor: Entrevista Exclusiva.


Disponível em < http://www.cenacontemporanea.com.br/2012/?p=980>. Acesso em 20
de jun. 2014.
TRABALHO DO ATOR E ESPAÇO

SALA DE ENSAIO: A COLABORAÇÃO DENTRO DO PROCESSO “CARTAS


PARA LÚCIA”.

Barbara Leite Matias (Bolsista PIBID-CAPES-CNPq); João Víctor Meneses


Duarte (Bolsista PIBID-CAPES-CNPq); Maria Teresa Melo (Bolsista PIBID-
CAPES-CNPq); Orientador: José Cleber Barbosa de Lima; Centro de Artes
Reitora Violeta Arrais de Alencar Gervaiseau; Universidade Regional Do Cariri,
URCA.

A sala de ensaio é um espaço pertinente à criação cênica. Como campo de


Criação, cabe aos participantes se envolverem e buscar dialogar as questões da sala de
ensaio com as inquietações cotidianas. A construção do processo “Cartas Para Lúcia”
surge dentro da disciplina Processo de Encenação I do curso de Licenciatura Plena em
Teatro da Universidade Regional do Cariri – URCA-CE. Na disciplina o estudante tem
como proposta a experimentação de dirigir uma cena de pelo menos 15 minutos, além
de aprofundar em discussões sobre a história da encenação e possibilidades de textos
para serem trabalhados em sala de ensaio, tendo em vista o ensaio enquanto construção
de possível trabalho cênico.

No decorrer do processo o estudante se despede da sala de aula e nesse


momento, convidam os atores,

Os encontros da disciplina de encenação serão em espaço propicio ao ensaio. É


hora do estudante se colocar quanto encenador, sabendo que é um processo de
construção e descoberta enquanto uma espécie de condutor da cena na qual ele irá
organizar os ensaios a partir das provocações dos possíveis atores. Vendo esse encontro
enquanto processo pedagógico, pois juntos desenvolvíamos as possibilidades para a
cena sem ignorar as individualidades que também eram resquícios para a construção
cênica durante esse período.

O intuito inicial era mostrar uma cena de quinze a dezessete minutos na qual o
universitário experimenta desenvolver poéticas na cena teatral, e assim compreendia
enquanto resultado da disciplina a apresentação da cena. No entanto, é da nossa essência
compreender o encontro na sala, como um espaço dialógico, de autonomia na criação
artística. Assim, o processo criativo tem-se uma forte ligação com as teorias
pedagógicas discutidas por Paulo Freire (1996). O qual foi educador e filósofo
brasileiro, referência mundial no estudo da pedagogia. A sua prática didática
fundamentava-se por acreditar que o educando assimilaria o objeto de estudo fazendo
uso de uma prática dialética com a realidade, em contraposição à denominada educação
bancária. O educando criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e
não seguindo um já previamente construído. Acredito que cabe a ambos, ator, diretor,
educador ou educando entender, independente de ser ensaio, cada encontro é único, e o
processo depende de todos, é como se cada participante fosse um ingrediente, então essa
foi à imagem propulsora e pulsante que carregamos durante esse processo.

Usamos como suporte teórico para esse trabalho a referencia colaborativa do


Grupo de Teatro da Vertigem, Segundo Luís Alberto de Abreu:

O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação


coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque
na década de 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação
ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo. Todos
traziam propostas cênicas, escreviam, improvisavam figurinos, discutiam
ideias de luz e cenário, enfim, todos pensavam coletivamente a construção do
espetáculo dentro de um regime de liberdade irrestrita e mútua interferência.
(ABREU, 2004, p.2)

Concepção Cênica: a partir de “Lucíola” de José de Alencar.

O experimento “Cartas Para Lúcia” é livremente inspirado na obra de José de


Alencar: “Lucíola”. Partindo desse pressuposto resolvemos conhecer a história de José
de Alencar que, enquanto grande romancista brasileiro, tornou-se nome extremamente
conhecido no meio literário.

No livro o autor trata a questão da mulher do século XIX, bem como sua posição
nessa época, trazendo à tona a personagem Lucíola, que apesar de viver em um período
complexo para a sociedade, não se mostra submissa ao homem, quebrando assim, tabus.
Trata-se de uma prostituta, de personalidade forte que se apaixona por um homem, esse
é respeitado diante da sociedade, vivendo assim uma ardente e impossível história de
amor, que ela deseja a vida inteira.

A concepção cênica manifesta-se em paralelo com a dramaturgia e a literatura


brasileira. O trabalho de direção e atuação é fruto desse processo que busca
procedimentos que dialoguem com o conteúdo presente na literatura de Alencar. Como
prova, o autor nos convence, através da obra, a adentrar em um mundo de paixões, de
pessoas que inacreditavelmente se apaixonam e que vivem numa sociedade burguesa,
hipócrita e preconceituosa. Alencar escreveu “Lucíola”, esta que nos inspirou a
construir a nossa “Lucíola” no corpo da atriz Maria Teresa Melo, estudante do Curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri.

Diante desse contexto, trouxemos para o processo de encenação uma dialética


entre a dança e a inspiração nos princípios de “extracotidiano” de Eugenio Barba, como
equilíbrio, oposição, dilatação, pré-expressividade e ritmo como ponto de partida para o
treinamento corporal do ator, percebendo assim, a energia e a presença dos atuantes na
cena.

A construção do figurino e maquiagem traz como inspiração a individualidade


desse personagem, percebido pelo interprete. No caso da iluminação, a inspiração é
oriunda das sensações que a cena provoca nos participantes, dando assim forma a luz.
A partir dessas questões, o trabalho tem como proposta o palco Italiano e a expectativa
de lugares alternativos, bem como trabalhar a literatura em cena.

Lucíola tem um nome bonito e uma essência extremamente feminina. Diante


dessa questão, o presente trabalho traz como inspiração a mulher que busca vencer o
preconceito para dedicar-se a um relacionamento amoroso. Percebendo a condição da
mulher prostituta, Alencar em seus escritos, dá ênfase a essa personagem de atitude, que
se coloca como superior a sua época, não se deixando levar pela condição que era
imposta a mulher do século XIX.

Lucíola vive assim a situação da mulher que se apaixona por um homem que
vive num mundo oposto ao seu. Prostituição, mulher, mãe e filha. A amante que a vida
inteira sofre o preconceito da sociedade, a mãe que pensa mais no bem-estar da filha do
que no seu próprio conforto. Esse jogo da mulher de atitude, de diversas
responsabilidades, nos inspira enquanto mulher, fazendo assim, parte do nosso universo,
no qual pensamos a sociedade enquanto um lugar que deve ser justo e livre de qualquer
intolerância ou condição imposta à limitação da mulher na sociedade.

Essa personagem nos fascina porque ela busca seus desejos, rompe barreiras,
quebra paradigmas sociais, fica com o personagem Paulo, vivendo um amor
incondicional. Será que a mulher não tem direito de amar e de ser amada, independente
do que ela seja? Esse experimento teatral reflete sobre as fases do relacionamento entre
homem e mulher, entre a sociedade e seus conceitos de aceitação ou negação do amor
não convencional, bem como ressaltar a poesia que embala a vida de um casal em
“Cartas Para Lúcia”.

Temos como objetivo desenvolver um diálogo do público entre Teatro e


Literatura brasileira, oferecer a plateia um teatro envolvente, ardente e inspirador,
proporcionar que o espectador se envolva com a encenação e critique esse tipo de
situação em sua sociedade a partir da mulher contemporânea e permitir ao público
assistir uma adaptação de um texto literário em um texto dramático. Pensamos em uma
faixa etária como pertinência ao que é discutido no espetáculo, por exemplo; a
prostituição, o aborto e as relações conjugais aceitas ou não pela sociedade, um público
de jovens a partir dos 15 anos de idade.

Corpo, Alma: A disponibilidade para a criação.

Adentrar a sala de ensaio requer disponibilidade e permite ao artista


compreender que aquele lugar lhe pertence. Acreditamos na sala de ensaio, enquanto
um espaço de transformação, essa perde a função de ser apenas espaço físico e ganha a
função de recepcionar o visitante, de acolher suas questões intimas, suas sensações que
constroem a atmosfera desse espaço, que se torna nosso durante o período do ensaio,
logo mais irá pertencer a outro grupo com outra energia, mais com a mesma finalidade
construir arte.

Durante os ensaios, percebemos a importância da organização para o processo,


então resolvemos criar pontos de referência, para não chamarmos regras, já que
dispensamos ordens, assim como o ideal do teatro colaborativo. Um desses pontos foi
tudo o que acontecia em sala de ensaio lhe pertencia, o ensaio só finalizava após
esclarecermos todas as dúvidas e questões levantadas diante do processo realizado até
ali, é interessante salientar que esse ponto foi uma conquista, para não confundir as
nossas relações pessoais com as profissionais.

Algumas questões suscitadas no decorrer do processo foram: Como ser fiel a


uma adaptação de “Lucíola”, um texto literário em 15 minutos? Até que ponto
acreditava na nossa disponibilidade para criar, por mais que estivéssemos com a
adaptação? Quais pontos através do livro eram importantes para serem usados na cena?
Quem era Lúcia para cada participante? Há realmente uma dedicação de corpo e alma
do ator? Essas foram algumas provocações, questionadas nos ensaio pelos atores Jamal
Corleone, Paulo, amante de Lucíola, que foi interpretada por Maria Teresa, ambos são
alunos do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri- URCA.

Enquanto participantes desse processo, tínhamos também o foco, em todos


serem encenadores dessa construção, sonoplastas, iluminadores, produtores e
figurinistas, por mais que cada ator fosse o responsável por alguma função, os outros
deveriam também contribuir e opinar de certa maneira. Somos jovens para compreender
e aceitar a ideia do outro, mas através do respeito conhecia-se a sugestão de cada
companheiro. Diante dessa questão este processo foi considerado por nos participantes,
enquanto poética, colaborativo, pois todos eram criadores da cena. Segundo Antônio
Araújo:

Outro elemento importante é a disponibilidade dos criadores em relação às


propostas e sugestões trazidas. Devemos lutar contra prejulgamento de
qualquer espécie e, ao contrário, experimentar, defender e abraçar a ideia do
outro como se ela fosse nossa. Sabemos que se trata de tarefa árdua, mas,
ainda assim, factível. Especialmente se compreendermos que a prática
colaborativa se nutre dessa pluralidade constante de visões e que
experimentar cenicamente uma idéia alheia não significa concordar com ela,
sim, conhece-la por dentro antes de descarta-la se for o caso, é claro.
(ARAÚJO, 2011, p.163)

Um problema que tivemos foi com o tempo da montagem, enquanto trabalho de


disciplina, tínhamos data para “mostrar” ao espectador o fruto dos nossos encontros.
Esse momento nos faz lembrar a importância da organização, por isso tivemos que nos
dedicar ainda mais, doamos os nossos finais de semana para construção de figurino e
cenário. O palco era cheio de cartas, fazendo referência, as cartas que a personagem,
Lucíola, recebia. As cartas foram doações dos próprios estudantes do Centro de Artes,
as quais variavam entre escritos longos até pequenos lembretes.

As cartas destinadas a Paulo eram colocadas em envelopes brancos, já as cartas


destinadas à Lucíola, colocadas em envelopes vermelhos. Em uma das cenas da peça, os
atores saiam do espaço da cena e entregavam as cartas à plateia, buscando dialogar com
o público, mostrando o companheirismo que carregam as mensagens, a simbologia da
troca de informações através das palavras.

Nessa metáfora, corpo e alma buscamos atingir uma ligação interna, da nossa
vida com o processo, e de qualquer maneira , quando estamos na sala de ensaio lidamos
com o imaterial, de difícil mensuração, embora tenha consequências diretas na cena, por
este motivo é importante à compreensão e aceitação do tempo de cada participante
dentro do percurso criativo. Os diálogos que tínhamos eram carregados de emoção,
onde estavam presente as nossas sensibilidades, os nossos discursos pessoais
transformado em cena de forma crítica.

Ainda assim, vale salientar que dialogávamos a metodologia desse processo,


enquanto possibilidade de também ser utilizada em nossos estágios, dentro das escolas,
onde os estudantes, na maioria das vezes, não são ouvidos pela equipe escolar e é então
nessas aulas que eles têm a oportunidade de expressar sua opinião, ainda que tenha um
texto pronto, quando vamos para a cena é preciso liberdade e disponibilidade, para
todos dialogarem a respeito da construção cênica. Diante dessa questão cito Duarte
Junior:

Podemos associar a criação e a aprendizagem como processos


complementares de crescimento humano (Duarte Júnior, 2005), quando
notamos como nossas escolas estão cheia de jovens descrentes e propensos a
delinquências. É fácil, também, que uma das mais urgentes providencias,
segundo Vaz (2001), não é tomada pela escola:”(...) ( Duarte apud Rodrigues,
2008, p.168)

A trajetória do processo “Cartas para Lucia”, como qualquer processo


colaborativo foi-se do abstrato ao concreto, do subjetivo ao objetivo. Nestas colocações
enxergamos como pulsações presentes na criação cênica. É importante perceber o
caminho dessa construção criativa, assim buscando compreender o concreto enquanto
cena, para o processo não diluir-se na discursão racional, imaginativa da sala de ensaio.
Pensando esse psicologismo que dialogasse com o corpo para o desenvolvimento da
cena trouxemos jogos inspirado no livro “Para o Ator”, de autoria do Russo Michael
Chekhov (1981-1965), o qual foi aluno de Constantin Stanislavski no Teatro de Arte de
Moscou:

O corpo imaginário situa-se, por assim dizer, entre corpo real e psicologia do
ator, influenciando a ambos com igual força. Passo a passo começa a
movimentar-se, a falar e a sentir de acordo com ele, quer dizer sua
personagem vive agora dentro de você (ou se prefere, você habita dentro
dela). (CHEKHOV, 2003, p.101)

Acreditamos que para isto, cabe aos integrantes buscar construir um trabalho
cênico, mergulhar na sala de ensaio carregado de inspirações para transforma-las em
arte, por outro lado, nunca se sabe como iremos sair dessa sala, após o ensaio, assim,
também na sala de aula, um espaço no qual vivemos o novo, o tempo do presente que
pertence a cada momento, por mais que haja plano de aula o acontecimento sempre será
uma surpresa para todos. Pertence a esse acontecimento a esperança de que esse
momento será transformador e é a sala que é prova dessas sensações e luta, seja por
parte do condutor na montagem de uma peça ou no desenvolvimento de uma aula, onde
o professor tem a disponibilidade de conduzir e organizar o trabalho. Em Pedagogia da
Autonomia, Paulo Freire nos coloca a importância da esperança nesse processo de
transformação:

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais,


econômica, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos
geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento da
nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não
se eternizam. (FREIRE, 1996, p.23)

A encenação Cartas para Lucia, a cada ensaio se revelava mais viva e pulsante
em nosso corpo. Acreditamos na importância desse experimento como evolução da
individualidade para o coletivo, assim buscando abranger também a plateia enquanto
espectadores ativos, e também criadores da cena, não ignorando sua importância.
Dispensamos a hierarquia das ordens de poder e demos ênfase as nossas
particularidades, enquanto artistas, criadores, trouxemos a nossa experiência para
auxiliar na inspiração do texto, o qual trazia propostas relevantes à construção cênica ao
olho de cada participante. Enxergamos a troca de experiências, enquanto ponte
dialógica nos processos. Essa percepção, Paulo Freire nos possibilita enxergar, enquanto
caminho propulsor dessa transformação:

Deste modo, o educador problematizado refaz, constantemente, seu ato


consciente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem
recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo
com o orientador, investigador crítico, também. (FREIRE, 2011, p.97)

A nossa compreensão é que a colaboração é essência do encontro, seja enquanto


educador na escola, ou ator na construção de um experimento, essa leitura faz parte do
vinculo entre o artista e o educador, pois os integrantes desse trabalho além de atores
são professores dentro do Programa Institucional Brasileiro de Iniciação à Docência na
Universidade Regional do Cariri, Ceará.

Considerações Finais
Percebi que esse processo foi importante para nosso desenvolvimento tanto
acadêmico quanto artístico. Pelo simples motivo de ter ficado impresso no corpo do ator
todo o trabalho exercido em sala de ensaio, e pelo momento vivido que foi
compartilhado entre todos, tanto presentes ao longo do processo, quanto presentes
durante a apresentação do resultado positivo e negativo do experimento.

Referências:

RODRIGUES, Karrine Luzia. O professor de arte que temos o professor de


arte que queremos. Akrópolis Umuarama, v. 16, n. 3, p. 165-170, julh/set.
2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários á Prática


Educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2011.

CHEKHOV, Michael. Para o Ator: Tradução Álvaro Cabral. 3ª Edição, São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

ARAÚJO, Antônio. O Processo colaborativo: da física à metafísica. In: A


gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo:
Perspectiva, 2011.

______A ressignificação do espaço: igreja, teatro e cidade. In: A gênese da


Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo:
Perspectiva, 2011.

ABREU, Luiz Alberto. Artigo publicado nos Cadernos da ELT - número 2,


junho/2004, revista de relatos, reflexões e teoria teatral, da Escola Livre de
Teatro de Santo André.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
LINHA DE FUGA EM MEYERHOLD E LECOQ
Caio Felipe da Silva Santos Monczak (Bolsa: Iniciação Científica [1]; Orientação: Sueli Cristina
dos Santos Araujo; Universidade Estadual do Paraná - Campus de Curitiba II - FAP - Faculdade
de Artes do Paraná)

RESUMO

Este artigo pretende trabalhar a noção de Linha de Fuga, proposta pelo filósofo Gilles
Deleuze, em relação aos teatros de Jacques Lecoq e Vsiévolod Meyerhold. Observar quais eram
seus territórios de estratificação (molar) e seus territórios de resistência. Meyerhold e Lecoq,
assim como outros, mostraram resistências aos processos Stanislavskianos, de modo diferente,
dado os contextos em que cada um viveu e desenvolveu seu trabalho, ao mesmo tempo em que
caminhavam em direção à estratificação, à institucionalização, do próprio modo de fazer. A linha
de fuga é sempre em relação a uma estratificação, a uma iluminação do estado, que ilumina por
que quer capturar, mas no que ele ilumina aparecem novas possibilidades de fuga.

PALAVRAS CHAVE: Linha de Fuga; Disciplina; Composição.

ABSTRACT

This article intends to work with the notion Line of Flight proposed by the philosopher Gilles
Deleuze in relation to the theater of Jacques Lecoq and Vsiévolod Meyerhold. Observe what
their territories stratification (molar) and its territories resistance. Meyerhold and Lecoq, as well
as others, have shown resistance to Stanislavski processes, differently, given the contexts in
which each lived and developed his work, while they walked toward stratification, the
institutionalization of the way to make itself. The line of flight is always in relation to a situation,
a lighting of a state, which illuminates why wants to capture, but what it illuminates is new
possibilities of escape to appear.

KEYWORDS: Line of Flight; Discipline; Composition.


Maria Brigida de Miranda, ao estudar o atravessamento da disciplina no treinamento do
ator, diz:

Os escritos de Michel Foucault (1995) sobre “tecnologia disciplinar” são a base para a seguinte
discussão teórica sobre métodos do treinamento do ator. Nos escritos de Foucault, o poder
disciplinar é uma força produtiva, e essas “tecnologias” produzem um tipo especifico de corpo.
Foucault explica que ele está interessado em “mapear” as “técnicas essenciais” que viajam de uma
instituição para outra, ao invés de investigar um história particular de cada instituição disciplinar
(1995:139). Ele examina as técnicas, processos e mecanismos que moldam o corpo. No entanto,
ele analisa e desenha exemplos de especificas instituições sociais, principalmente a prisão, o
exército e instituições de ensino, com o objetivo de descrever como praticas disciplinares operam
e como especificas “tecnologias disciplinares” são disseminadas para outras esferas da sociedade.
(MIRANDA, M. B. 2010, p. 61) [2]

As tecnologias disciplinares a que se refere Miranda são métodos que permitem o


controle minucioso das operações do corpo, qualidade que se encontra no teatro de Vsievolód
Meyerhold e Jacques Lecoq, de forma diferente, como veremos mais adiante. Mas Michel
Foucault explora um campo mais amplo de características desses métodos, dessas tecnologias
disciplinares:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as “disciplinas”. [...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia
o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, M. 1977, p. 133/134)

Observa-se então que a disciplina diz mais de um método de coerção/exploração dos corpos, do
que de treinamento do ator. A palavra método vem do grego, metáhodos: metá (reflexão,
raciocínio, verdade) + hódos (caminho, direção). Méthodes refere-se a um certo caminho que
permite chegar a um fim. No caso da disciplina em Foucault, ela é caminho e fim ao mesmo
tempo, diferente da disciplina no treinamento do ator, que é um caminho (possível, dentre
outros) para a composição.
Como a própria Miranda coloca:

De acordo com Foucaul, “docilidade” é a noção “que reúne o corpo analisável com o corpo
manipulável” (1995:136); isso é o proposito do ator. A particular docilidade de um ator é que ele
ou ela também é esperado para ter a capacidade de analisar a si próprio e moldar ele ou ela mesma
fisicamente de acordo com o objetivo teatral. (MIRANDA, M. B. 2010, p. 65) [3]

De certo modo a lógica da disciplina também migrou para o teatro de Meyerhold e


Lecoq, no entanto ela é uma linha segmentária molar, dura, estratificada. Gilles Deleuze e Claire
Parnet em “Diálogos”, falam que somos feitos de linhas, indivíduos ou grupos
(independentemente), e elas são de diversas naturezas. Há três tipos de linhas: a primeira trata-se
de uma linha segmentária dura, molar, e diz respeito à estratificações ou institucionalizações, por
exemplo: à família ou à profissão; a segunda é segmentária flexível, diferente das linhas molares
de segmento são “fluxos moleculares de limiares. [...] Não que sejam mais íntimas ou pessoais,
pois atravessam as sociedades, tanto os grupos como os indivíduos.” (DELEUZE, G. PARNET,
C. 2004, p. 151); E o terceiro tipo de linha é de maior declive, a linha de fuga, que funciona
“como se algo nos levasse, através dos nossos segmentos, mas também através dos nossos
limiares, para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente.” (DELEUZE, G.
PARNET, C. 2004, p. 152) E para exemplificar a linha de fuga, localizá-la, eles citam Heinrich
von Kleist em seu texto “Du thêatre de marionettes”:

A linha que deve descrever o centro de gravidade é muito simples e, pelo que ele pensava, deve
ser recta na maior parte dos casos... mas de um outro ponto de vista, esta linha tem qualquer coisa
de excessivamente misterioso, porque, segundo ele, é apenas o tracejado da alma do bailarino...
(KLEIST, H. apud DELEUZE, G. PARNET, C. 2004, p. 152.)

Vsievolód Meyerhold, para criar o seu teatro, desenvolveu a biomecânica se apropriando


do taylorismo e da reflexologia. O Taylorismo é um termo para se referir à “economia de
movimentos” estabelecida por Frederick Wislow Taylor, que procurava encontrar as partituras de
movimentos mais eficientes para cada tipo de trabalho, com intuito de que os corpos humanos no
trabalho produzissem mais e cansassem menos. Desenvolveu-se então um sistema de ciclos de
trabalho, que levava em conta o equilíbrio, os ritmos de trabalho, a fadiga, o agrupamento de
músculos e o tempo de repouso. Ou seja, é uma tecnologia disciplinar que teve sua lógica
migrada para a indústria e depois para o teatro. Ao mesmo tempo o psicólogo William James
desenvolveu um estudo sobre a verdadeira natureza da emoção. Para explicar sua teoria ele da o
exemplo de alguém que esta em uma floresta e vê um urso, em seguida sai correndo e depois se
assusta. Foi o ato de correr, através de reações reflexivas, que causou o estado emocional do
medo, e não o urso. Ou seja, certas atividades musculares trazem à tona, certos estados
emocionais. Essas teorias foram fundamentais para Meyerhold estabelecer as leis da
Biomecânica, pois

Dividindo cada gesto dos estudos em movimentos exatos, Meyerhold foi capaz de aplicar ao ator
os princípios tayloristas de economia de movimentos e a teoria da emoção de James, fazendo com
que ele automaticamente experimentasse uma gama de emoções, devido a uma constante mudança
de organização de sua musculatura. Isso também habilitava o ator a estabelecer de forma precisa a
relação entre sua aparência física e suas impressões nervosas mais íntimas. (GORDON, M. 1973,
p. 10)

A Biomecânica composta pelo atravessamento do Taylorismo, da Reflexologia, e da


disciplina era uma linha segmentaria molar. E podemos observar, ainda, outra linha dessa
natureza no teatro de Meyerhold: o próprio comportamento da plateia, que se modificou com o
surgimento do cinema, fazendo seu olhar se acostumar a um ritmo mais rápido.

A integração do cinema ao ato teatral se faz pelo modo pelo qual suas técnicas e imagens
alimentaram e ainda alimentam a arte da encenação. Esta é trabalhada pelas noções de montagem,
de enquadramento e, mais recentemente, pela noção de movimento de aparelhos. O close se tornou
uma das noções-chave de encenação de teatro, que levou em conta também, no tratamento do
dispositivo, da luz, dos objetos e da atuação, as exigências do olho do olhador, segundo a
expressão de Marcel Duchamp, acarretadas pela riqueza composicional das imagens fílmicas.
(PICON-VALLIN, B. 2013, p. 120; 121)

Meyerhold, então, usou as linhas molares (taylorização, reflexologia, a nova exigência do


olhar do espectador, biomecânica, disciplina) como matéria para compor toda uma cartografia e
assim uma linha de fuga. Linha de fuga essa que funcionou como uma resistência ao naturalismo
russo que estratificava os modos de criação artística da época, e também como mote para
extrapolar, fazer todo o sistema teatral saltar, e, assim como o cinema modificou a percepção do
público, modificar tudo o que se pensava sobre teatro. O que Meyerhold já previa em 1907:

“No novo teatro, a necessidade de introduzir nos planos uma construção rigorosamente submetida
ao movimento rítmico das linhas e da harmonia das cores vem substituir a sobrecarga absurda das
cenas do teatro naturalista”, observa Meyerhold em 1907. O teatro se torna, assim, a arte da
composição, e escreverão a respeito de o inspetor geral, encenado pelo mestre russo, que nada,
“nem o ângulo de um cotovelo, é [ali] deixado ao acaso.” (PICON-VALLIN, B. 2013, p. 112;
113)

É errôneo pensar que o teatro de Meyerhold se reduz à biomecânica. É possível observar


em registros audiovisuais, tanto de momentos de treinamento de seus atores, quanto de
apresentação de seus espetáculos, mais especificamente, aqui, parte da montagem de “O Inspetor
Geral”, de Nikolai Gogol, uma diferença na qualidade de movimentação do ator no momento do
treino e no momento da apresentação. Qualidade essa que se assemelha ao que dizia Kleist ao se
referir ao teatro de marionetes, onde havia linhas molares: as próprias que seguravam o boneco;
linhas moleculares: cada movimento único e individual, porém também institucionalizado, do
braço de cada títere; mas também: uma linha simples e ao mesmo tempo misteriosa que deixava
passar essa diferença que era o tracejado da alma do bailarino. Essa é a linha de fuga.

A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata.
Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas eles acham que fugir é sair do mundo, mística
ou arte, ou então que é algo covarde, por que se escapa aos compromissos e às responsabilidades.
Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer
fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma
cartografia. (DELEUZE, G. PARNET, G. Apud ZOURABICHVILI, F. 2004, p. 29)

Tanto a migração da tecnologia disciplinar, quanto o movimento de linha de fuga, são


analisáveis também no teatro de Jacques Lecoq, que chegou ao teatro por meio do esporte. Antes
de ser ator mímico e professor de arte dramática adquiriu experiência corporal como ginasta,
esportista e professor de educação física. O esporte já estava estratificado pela disciplina como se
pode observar na colocação de Georges Vigarello e Richard Holt em “História do Corpo 2: da
Revolução a Grande Guerra” ao comentarem sobre a institucionalização dos jogos brutais:

Isso, evidentemente, não poderia significar o desaparecimento dos jogos brutais. Sua prática se
torna apenas mais controlada, mais regrada. As rixas se deslocam, transitando dos espaços ao ar
livre para os espaços escondidos, deixando os ambientes rurais e indo para as salas dos fundos dos
cafés, para os recintos adaptados, os locais fechados. Os golpes são disciplinados, as
aprendizagens são codificadas, as praticas de combate, ensinadas; mestres se impõem com suas
salas, suas concorrências, suas lições. (VIGARELLO, G. HOLT, Richard. 2008, p. 396)

E Lecoq vai ver o treinamento do ator com as lentes de um educador físico, no começo de
sua pesquisa. Ao continuar o desenvolvimento desta, com suas viagens e cursos, logo começa a
compor uma resistência ao teatro de caráter psicológico, ou de memória, ou escravo do texto, ou
da cópia exata da natureza. Em sua escola ensinava princípios de várias formas e técnicas de
teatro: a tragédia, o bufão, o clown, a comédia dell’art, Chegando a criar, por exemplo, a
“ginástica do arlequim”. Não para produzir virtuosismo, e é aqui que ele extrapola a questão da
disciplina que migrou, de certo modo, para o seu teatro através do esporte, mas para entender o
que do mundo habita cada um desses teatros e como deixar isso afetar o público através do
corpo. A partir do traçar de todas essas linhas molares, as diversas técnicas, a disciplina, o
conhecimento do corpo, fez emergir um ator aberto aos afetos e aos encontros. Buscou em todo
comportamento de matéria possível, a água, o fogo, o ar, a terra, o plástico e o ferro, um
comportamento da matéria corpo, e criou um ator tradutor que se deixa afetar, que busca os
motores da ação. O afeto é o que te movimenta. A própria máscara neutra, a neutralidade, surge,
se não, para dar a possibilidade de ser tingido, atingido por acontecimentos do mundo, depois de
uma escuta e espera atenta.

É preciso, então, começar eliminando as formas parasitárias, que não lhes pertencem, retirar tudo
aquilo que possa impedi-los de encontrar a vida em sua forma mais próxima daquilo que ela é.
Temos que retirar um pouco daquilo que sabem, não para simplesmente eliminar o que sabem, mas
para criar uma página em branco, disponível para receber os acontecimentos externos. (LECOQ, J.
2010, p. 57)
E ainda mais, Lecoq, preocupado como pedagogo em como direcionar suas críticas,
descobriu um dispositivo de composição que se baseia no que ali está, apenas, invés de verdades
pré-concebidas, isso se dava através de constatações:

A constatação é o olhar que se foca na coisa viva, tentando ser o mais objetivo possível. A crítica
feita a um trabalho não é uma crítica do bem ou do mal, é uma crítica do justo, do longo demais,
do curto demais, do interessante, do desinteressante. Isso pode parecer pretensioso, mas só nos
interessa o que nos é justo: uma dimensão artística, uma emoção, um ângulo, uma relação de
cores. Tudo isso existe em obras que, independentes da dimensão histórica, duram. Isso todos
podem senti-lo, e o publico sabe perfeitamente quando é justo. Se ele não sabe por quê, nós
devemos sabe-lo, pois somos, além de tudo... especialistas. (LECOQ, J. 2010, p. 48)

Meyerhold e Lecoq conseguiram produzir, cada um, uma diferença, um dado, do qual
não se pode ignorar, do qual reorganizou todo o teatro, extrapolaram-no, fizeram-no saltar de
plano, arrastaram o que já estava estratificado assim como se arrebenta um tubo. E outros
também o fizeram. Fizeram isso sem ressentir ao que tinham, aos problemas que tinham, aos
materiais disponíveis. Agora resta perguntar: Quais linhas eles deixaram, quais foram
estratificadas? Como usá-las, ou como estão sendo usadas, no teatro de hoje para se produzir
novas linhas de fuga? Seja nos grupos ou nos indivíduos: o teatro no mundo, na Europa, no
Brasil, em Curitiba, o seu teatro. E não lamentar opressões, pois o estado não oprime, o estado
ilumina, ilumina por que quer capturar, mas no que ele ilumina, aparecem novas possibilidades
de fuga.

NOTAS:
1 - Apoio: Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

2 - O livro: Playful Training - Towards Capoira in the physical training of actors, de Maria Brigida de Miranda, foi
escrito originalmente em inglês e essa tradução não é oficial. Segue a mesma citação no original: Michel Foucault’s
(1995) writings about “disciplinary technology” are the basis for the following theoretical discussion about actor
training methods. In Foucault’s writings disciplinary power is a productive force, and its “technologies” produce a
specific kind of body. Foucault explains that he is interested in “map[ping]” the “essential techniques” that travel
from one institution to another, rather than investigating the particular history of each disciplinary institution
(1995:139). He examines the techniques, processes and mechanisms that forge bodies. Nonetheless he analyses and
draws examples from specific social institutions, mainly prison, the army and educational institutions, in order to
describe how disciplinary practices operate and how specific “disciplinary technologies” are disseminated to other
spheres of society.

3 - No original: According to Foucault, “docility” is the notion “which joins the analysable body to the manipulable
body” (1995:136); this is the actor’s purpose. The particular docility of an actor is that he or she is also expected to
have the capacity to analyse his or herself and mould him or herself physically according to the theatrical task.

REREFÊNCIAS:

DELEUZE, G. PARNET, C. Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004.

FOUCAULT, Michel; Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
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SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

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Publisher: LAP LAMBERT Academic Publishing AG & Co. KG. Saarbrücken, Germany.
Copyright © 2010 by the author and LAP LAMBERT Academic Publishing AG & Co. KG and
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PICON-VALLIN, B. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena


contemporânea. org. Fatima Saadi; tradução Cláudia Fares, Denise Voudois e Fatima Saadi. 2 ed.
- Rio de Janeiro: 7letras: Teatro do Pequeno Gesto, 2013.

VIGARELLO, Georges; HOLT, Richard. "O Corpo Trabalhado: Ginastas e esportistas no


século XIX". In HISTÓRIA do corpo2: da revolução a grande guerra. Tradução de João Batista
Kreuch, Jaime Clasen; Direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine, Georges Vigarello;
Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:


Centro interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004.

Vídeo - Biomecanica de Meyerhold Film Original – Acesso em: 04/07/2014 13h28min -


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1VKhnoMLomY

Vídeo - Meyerhold El Inspector general (Buena copia) – Acesso em – 04/07/2014 13h32min -


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qSuhgGYVT_0
1

TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO


MARCHA SOBRE O CORPO: A PRIMEIRA RELAÇÃO ESPACIAL DOS
ATORES-DANÇARINOS DA COMPAGNIE DOS À DEUX.
Carolina Gosch Figner de Luna (Bolsa Capes); Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida
de Miranda; Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT; Centro de Artes –
CEART; Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
O processo de construção de uma pesquisa pode ser comparado a um jogo de
quebra-cabeça. Cada peça possui o seu encaixe preciso que organiza a sua estrutura e,
aos poucos, começa a definir a sua imagem final. O presente artigo apresenta-se como o
momento inicial do jogo, quando as peças ainda embaralhadas suscitam em mim o
desejo de tornar os seus fragmentos uma composição imagética. Assim, imersa em meu
quebra-cabeça sobre A construção do gesto no processo de treinamento dos atores-
dançarinos da Compagnie Dos à Deux1, procuro organizar as primeiras peças a fim de
demonstrar como a técnica de treinamento de Catherine Dubois, denominada por ela
como Marcha sobre o corpo foi utilizada pelos diretores e atores-dançarinos da Dos à
Deux, André Curti e Artur Ribeiro, no ano de 1997. Esta maneira de envolver o corpo,
os sentidos humanos através do órgão mais profundo do corpo2– a pele – não só
preparou e organizou os artistas para a sua primeira peça como direcionou e determinou
a maneira como todos os demais espetáculos seriam criados posteriormente.
A relação espacial que surgiu entre Curti e Ribeiro a partir da execução da
técnica definiu não só o nome do primeiro espetáculo como o nome da companhia e a
maneira como a mesma executa o seu treinamento diário. O primeiro grande ato do ser
humano na posição ortostática e as fases da psicomotricidade e cognição que culminam
na marcha, juntamente com o primeiro grande sentido humano – o tato – tiveram e têm
importância singular na escritura teatral da Dos à Deux.
O exercício constante de caminhar sobre o corpo do outro potencializou o
acionamento das musculaturas profundas gravitacionais, a tonicidade dos microgestos e
a percepção dos espaços interno e externo dos atores-dançarinos da Compagnie,
tornando-os mais capazes para recepcionar e gerar diferentes qualidades gestuais e de
movimento. O presente artigo apresenta as peças inicias do quebra-cabeça da referida
pesquisa: os encontros, o treinamento e a criação a dois.

Sobre os encontros

O primeiro encontro foi no ano de 2010. Em um sábado ensolarado e de muito


calor no Rio de Janeiro, vi o sorriso de uma senhora vindo em minha direção. Ela me
fitava os olhos como se me conhecesse desde pequena de tal maneira irresistível que
não hesitei ao afeto e ao toque da sua mão em meu rosto no momento em que ela me
dava um precioso conselho: “Minha querida, leia um livro chamado Tocar: o
significado humano da pele3. Ele é maravilhoso.”.
Até aquele momento, Angel Vianna era para mim uma dessas figuras que se
olha de longe e se admira. Mestra das artes da dança e do teatro, respeitada por artistas
de todas as áreas, fundadora da Faculdade e da Escola Angel Vianna [Rio de Janeiro],
bailarina, professora e pesquisadora. Angel era até então para mim, diva intocável. Até
aquele momento, quando a sua mão tocou com ternura o meu rosto em um gesto
simples.
2

Montagu (1988), autor do livro que Angel recomendou a devida leitura, chama
esta minha experiência com a mestra de sentido háptico. O tato é, na verdade, um
grande conjunto de diferentes sentidos táteis e

O termo háptico é usado para descrever o sentido do tato em sua extensão


mental, desencadeada diante da experiência total de se viver e agir no espaço.
Nossa percepção do mundo visual, por exemplo, de fato mescla o que já
sentimos em associações passadas com o que já vimos ou com a cena à nossa
frente. (...) O sentido háptico tem um papel altamente significativo no cenário
da humanidade. Quando falamos em nos “manter em contato”, sabemos do
que falamos, sabemos que não se trata de uma simples metáfora e, sim, de
uma consumação altamente desejável. (1988, p.33-34).

Montagu (1998) afirma através do relato de experiências científicas realizadas


em animais mamíferos de diversas espécies a importância do estímulo do toque desde o
nascimento do filhote. O ato de a mãe lamber o corpo do filhote ao nascer, em especial,
a região do corpo conhecida como assoalho pélvico e, mais especificamente, o períneo4,
garante a sobrevivência do filhote. O que parecia ser um ato de higiene para os
cientistas, após observações e estudos de casos, confirmou-se como um ato primordial
para o desenvolvimento produtivo da vida. Assim, o filhote desenvolve de maneira
eficiente os seus sistemas respiratório, urogenital e gastrointestinal.
Nos humanos, Montagu (1988) sugere que o trabalho de parto possivelmente
ofereça ao bebê o estímulo das lambidas das fêmeas de outras espécies em seus filhotes.
Além disso, Montagu (1988) aponta sobre a conscientização de que a pele envolve e
protege não apenas o corpo externamente, como internamente. A pele cria relações
diretas com o ambiente, com o espaço externo do corpo e com o espaço interno - outros
órgãos, vísceras, músculos e ossos - pois ela possui características específicas em
diferentes partes do corpo modificando texturas, inervações, cores e odores.
No entanto, o dado que me afetou sobremaneira no livro Tocar (MONTAGU,
1988) e me fez refletir sobre o gesto delicado de Angel em meu rosto - que transformou
a relação e a imagem estanque que eu possuía da mestra – refere-se ao momento em que
o autor afirma que o mundo ocidental passou a utilizar demasiadamente as palavras e a
comunicação verbal em detrimento das linguagens dos sentidos.
Para o pesquisador (1988, p. 18), atualmente, a “tendência é as palavras
ocuparem o lugar da experiência. As palavras passam a ser declarações ao invés de
demonstrações de envolvimento.”. Já as linguagens dos sentidos, especialmente a do
tato - possibilitam uma melhor e maior compreensão e valorização do outro e de outras
formas de se relacionar: “Tocar é a principal dessas linguagens. As comunicações
[transmitidas] através do toque constituem o mais poderoso meio de criar
relacionamentos humanos, como fundamento da experiência.”. (1988, p.19).
É da relação entre a experiência e as palavras, o envolvimento, a compreensão e
a valorização do outro que surgiu o segundo encontro deste artigo. Artur Ribeiro, um
dos fundadores, diretores e atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux, me disse em
entrevista5 que, frequentemente, o seu corpo traz lembranças de acontecimentos vividos
no passado. Ele me contou que estava pensando muito em Angel Vianna durante aquela
semana. No dia que me concedeu a entrevista, o seu corpo - em um dado momento - fez
uma posição corporal que ele não recordava qual era, mas que trouxe a lembrança do
seu primeiro dia de aula como aluno da mestra: Angel havia pedido para os seus alunos
que, ao chegarem em suas casas, olhassem e prestassem atenção na cor da janela do
3

prédio localizado à frente da casa de cada um. Esta memória, presente no corpo de Artur
Ribeiro, o afetou profundamente: “Naquele dia, eu me dei conta de que ela não estava
falando sobre a cor da janela do prédio, mas sim sobre a importância de eu perceber a
pessoa que está ao meu lado. Eu só posso interpretar a vida se eu tiver um olhar sobre o
meu próximo. Como eu posso criar diferentes personagens e falar do mundo se eu não
tenho um olhar voltado para o outro? Se eu não paro e observo o outro? Este, para mim,
é um dos fundamentos da dança contemporânea e do teatro que eu aprendi.” (LUNA,
2014).
A experiência de Artur Ribeiro com o ensinamento de Angel Vianna sobre parar
para olhar, parar para perceber o outro e o mundo vai ao encontro do artigo de Jorge
Larossa Bondía (2002) denominado Notas sobre a experiência e o saber da experiência.
Nele, o autor descreve o quanto o excesso de informação, de opinião, de trabalho, a
pressa e a falta de tempo, características dos tempos atuais fragilizam a experiência.
Esta, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca.” (2002, p.2). Para Bondía (2002, p. 5),

A experiência, a possibilidade de algo nos aconteça ou nos toque, requer um


gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

A pele, o sentido háptico e a experiência possibilitam para Montagu (1988,


p.19) o aprendizado

da amorosa gentileza. Aprender a aprender, aprender a amar e a ser gentil


estão intimamente interconectados e tão profundamente entrelaçados, em
especial com o sentido do toque, que seria muito benéfico à nossa
reumanização se dedicássemos mais atenção à necessidade de experiências
táteis sentidas por todos nós.

As experiências táteis acontecem antes do desenvolvimento de qualquer outro


sentido humano6. Elas iniciam a relação do feto com o movimento e com o espaço.
Após o nascimento, o bebê passa a desenvolver a sua propriocepção organizando assim,
a sua maneira de se locomover e estabelecer dinâmicas gestuais e de movimento.
Hubert Godard, ex-bailarino e pesquisador renomado das áreas da educação
somática7, da dança e da medicina, que investigam o movimento e o gesto humanos,
afirma que

a primeira fase de qualquer percepção e de qualquer gesto consiste na tomada


de referências no espaço. É o modo como vou me orientar que ditará a
qualidade do gesto que seguirá. Essa orientação precisa de um mínimo de
vetores. Um vetor que vai ser o substrato, o chão, e o outro que vai ser o
espaço, a projeção no espaço. (2010, p.5)
4

Esta organização da percepção do que acontece no ambiente, informado pelo


sistema nervoso central, se relaciona diretamente com os estados de pensamento
construídos ao longo da história pessoal de vida de cada pessoa. Inibir
microajustamentos ou os pré-movimentos dos hábitos posturais antes mesmo de iniciá-
los é uma maneira de construir novas possibilidades gestuais corporais. Mas como inibi-
los e como reorganizar os padrões corporais já existentes?
Godard (2010) defende que é a relação do contato do meu corpo com o chão e
com o outro no espaço que possibilita esta experiência. Para ele, a dança contato-
improvisação e as técnicas de educação somática são fundamentais para o
aprimoramento e a construção das relações espaciais corporais do indivíduo.
A dança contato-improvisação urge constantemente durante a sua execução a
flutuação da realidade dos movimentos e gestos conhecidos. O meu corpo em contato
com o corpo do outro percebe que o ambiente se modifica a cada instante. As
experiências táteis, o sentido háptico e a inibição dos pré-movimentos - que geram
padrões gestuais e de movimentos conhecidos - são reconfiguradas de diferentes
maneiras pela relação de interdependência entre o meu corpo e o corpo do outro durante
a dança. A criação nasce em conjunto e ao mesmo tempo.
Já as técnicas e métodos da educação somática como Feldenkrais, Alexander e
Pilates, são citados por Godard (2010) como bons exemplos de conhecimentos
empíricos que permitiram ao mundo científico descobertas fundamentais para a
reconstrução de novos gestos e movimentos, reabilitação e organização da
funcionalidade do corpo de maneira sistêmica, além da utilização consciente de
musculaturas profundas gravitacionais que potencializam novas plasticidades gestuais.
A conscientização das fases da psicomotricidade e cognição que culminam na
marcha corporal, o aprendizado da lentidão, da paciência em reter, observar, repetir
movimentos com precisão e aprofundar com sensibilidade, delicadeza e cuidado o amor
sobre o próprio corpo, transformando a autoimagem8 do indivíduo estão presentes na
técnica somática de Feldenkrais. Estas características aliadas à realidade flutuante da
dança contato-improvisação, os ensinamentos da mestra Angel Vianna e o teatro,
enquanto espaço físico e arte cênica geraram o terceiro encontro deste artigo.
Os movimentos corporais do bebê e da criança ao conquistar a sua capacidade
única de se locomover no espaço auxiliaram Moshe Feldenkrais (1977) – Doutor em
Física, professor de matemática, engenheiro, construtor, cartógrafo, judoca, pesquisador
das áreas de psicologia, neuropsicologia e neurofisiologia – a desenvolver o seu
método. Nele, a consciência pelo movimento se dá sem julgamentos, a partir da
execução de lições de movimentos em diferentes posições que visam integrar e
proporcionar novas organizações espaciais para o corpo através de constante
aprendizado.
Catherine Dubois, amiga pessoal de Artur Ribeiro, possui formação no método
Feldenkrais e sua pesquisa sobre o movimento humano se dá também através da
linguagem da dança e do teatro. Atriz e diretora na França, Dubois ministra oficinas de
teatro gestual e clown. A sua técnica denominada Marcha sobre o corpo - cuja principal
característica é o contato dos corpos através do ato de um indivíduo caminhar sobre o
corpo do outro de diferentes maneiras, transformando e potencializando estados
corporais diversos não conhecidos – imprimiu significativas experiências táteis em
Artur Ribeiro que estão presentes em seu corpo até hoje.
Quando na cidade de Paris [França], Ribeiro viu Curti pela primeira vez dentro
do teatro, durante o festival de dança Sous les Tropiques de Capricorne, em 1995,
Ribeiro o viu de costas. Ao se apresentarem e reconhecerem que ambos eram
5

brasileiros9 mantiveram contato. Dois anos depois, desenvolveram um espetáculo de


teatro gestual, inspirado na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, denominado
Dos à Deux em que a Marcha sobre o corpo foi utilizada como parte do treinamento
diário.

Sobre o treinamento
De acordo com Josette Féral, em Você disse “training”? (2000), o termo
training - de origem inglesa - tem sido cada vez mais utilizado na França desde a década
de 80, do século XX. A palavra treinamento, originalmente ligada às práticas esportivas
e militares, começou a perder força oral no campo teatral para a palavra training. Esta
parece ampliar a noção de treinamento da palavra francesa pelo fato de conseguir unir
todos os processos existentes referentes ao trabalho e à formação do ator. Parte desta
influência se deve ao teórico do teatro Eugenio Barba, que procurou difundir o conceito
training de maneira intercultural, em que o mesmo pudesse ser utilizado em diferentes
locais do mundo com equivalente caráter e definição. Além dele, a teórica (2000)
aponta outros pensadores e reformadores do teatro que contribuíram para tal
apropriação léxica na França, tanto na forma oral como, encontrada mais recentemente,
na forma textual. Entretanto, embora a palavra training possua certa interferência no
campo teatral francês, Féral (2000) afirma que as práticas de treinamento de origem
anglo-americana parecem não ter a mesma preponderância.
Féral (2000) relata que no início do século XX, as práticas de treinamento atoral
que emergem na Europa e América do Norte buscam reformar a figura do ator. Os
movimentos estudantis de culto ao corpo na Alemanha, as vanguardas russas, os teatros-
laboratório, os teatros-escola são alguns exemplos dos diversos experimentos existentes
na época criados pelos seus teóricos, artistas, pedagogos e reformadores que desejavam
uma nova teatralidade e um novo ator. Féral (2000) cita Jacques Copeau, Charles
Dullin, Louis Jouvet, Étienne Decroux, Jacques Lecoq, Gordon Craig, Adolphe Appia,
Èmile Jaques-Dalcroze, Max Reinhardt, Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski,
Yevgeny Vakhtangov e Alexander Tairov como alguns dos responsáveis pelas
reformulações da educação atoral.
As novas pedagogias e treinamentos sistemáticos, que trabalhavam os corpos
por meio do método e repetição, possuíam características peculiares que as
diferenciavam umas das outras. Contudo, convergiam em relação ao conhecimento do
ator, que deveria ser galgado paulatinamente, num processo contínuo, que o
acompanhasse durante toda a sua vida contemplando ao mesmo tempo, a sua
fisicalidade e interioridade. Féral (2000) corrobora o pensamento dos reformadores ao
afirmar que esta duração potencial do treinamento estimula no ator, uma constante
capacidade de criação, visto que este novo olhar sobre o processo de treinamento não
objetiva um resultado, um fim, mas uma nova corporeidade atoral e um novo
entendimento sobre o teatro:

O ator deve usar o tempo necessário. Presente desde o início da


aprendizagem, o verdadeiro treinamento continua para toda a vida. É preciso
concebê-lo como uma “formação contínua” para que permita realmente que o
ator, como o músico ou o dançarino, mantenha o seu instrumento10 (físico e
psíquico) em condições, quer dizer (sic) em estado de criação.
Consequentemente, o treinamento não está necessariamente vinculado ao
espetáculo. (...) A maior parte dos exercícios, gestos, movimentos
descobertos no decorrer do treinamento não serão importadas (sic) tais quais
para a cena. Mais do que o resultado, é o próprio processo que importa.
(FÉRAL, 2000, p. 10).
6

Escutar, tocar, degustar, cheirar e olhar: sentir, perceber, criar e construir. Eis
aqui o que comprovei ser o primeiro processo de um dos eixos do treinamento dos
atores-dançarinos da companhia franco-brasileira de teatro gestual Compagnie Dos à
Deux11.
A fórmula, que de início, parece ser uma tarefa simples, possui, na verdade
grandes desafios: criar novas sensações, propriocepções, autoimagens, dinâmicas
espaço-temporais, experiências e tonicidades gestuais específicas que ultrapassem a
subjetividade dos seus corpos. Independente da técnica corporal, do estilo e da
linguagem que utilizem, se tal técnica vem da dança ou do teatro, o fato é que, para
construir uma partitura gestual e compor assim os seus personagens é imprescindível
que haja primeiro, entre os atores-dançarinos receptividade, abertura, porosidade e
poesia, para enfim dedicarem-se às técnicas corporais escolhidas para o treinamento.
Desenvolver a escuta, aprender a receber o toque e transformar a qualidade do
toque, compreender como acontece a respiração para que o seu corpo ganhe
profundidade e globalidade, exercitar a visão periférica, estimulando assim, a
possibilidade de enxergar de modo amplo, são alguns dos princípios que sustentam a
metodologia do trabalho diário deles e dos seus atores-dançarinos. É preciso estar atento
ao outro e a tudo que possa transformar os estados corporais de seus personagens. Para
Artur Ribeiro e André Curti, qualquer microgesto é capaz de influenciar e modificar a
qualidade de uma cena e até mesmo, do espetáculo inteiro.
A teatralidade dos atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux nasce da
dedicação que os seus diretores investem em relação às ações sensoriais durante o seu
treinamento. O mais importante não é a reprodução de uma técnica, mas a maneira
como os corpos serão estimulados para a mesma. Para que os seus atores-dançarinos
conquistem um maior vocabulário gestual teatral é fundamental que ampliem o modo
como executam os exercícios. O treinamento só começa a acontecer a partir do
momento em que os atores-dançarinos abrem os seus corpos para sensações
desconhecidas, ampliando assim, a sua percepção corporal.
As diversas e significativas experiências sensoriais que potencializam a
percepção, assim como a utilização de técnicas corporais que treinem ginasticamente os
seus atores-dançarinos, como a Mímica Corporal Dramática, de Étienne Decroux, as
danças balinesas e o contato-improvisação, dentre outras, faz com que eles conquistem
um controle gestual em cada cena de seus espetáculos. Este controle não nasce apenas
da repetição de movimentos exigidos nas técnicas corporais utilizadas em seu
treinamento. O controle gestual tem antes, a ver com a respiração. De acordo com Jean-
Jacques Roubine (2011):

O controle do gesto depende do domínio da representação. Uma má


respiração descontrola rapidamente o trabalho do corpo. Por falta de uma
completa liberdade, ele fica bloqueado e não responde mais plenamente à
intenção do intérprete. Ora, esta liberdade só lhe é dada pelo equilíbrio
orgânico e pela resistência ao cansaço – e para tanto a respiração é o fator
essencial. Esta liberdade, por outro lado, multiplica as potencialidades
gestuais do ator. (2011, p.37).

Sentir [como os sentidos afetam a subjetividade do corpo], perceber [como a


propriocepção transforma as informações sensoriais], criar [como o corpo inova os
7

gestos] e construir [como a subjetividade corporal agencia novas partituras de


movimento] definem as relações espaciais.

Sobre o criar a dois

Todo o processo de criação artística dos diretores da Compagnie acontece como


uma brincadeira de crianças em que uma alimenta o jogo da outra e a brincadeira não
tem mais fim. “Somos até hoje, duas crianças brincando de fazer teatro, vestidas em
peles de adultos.” Esta foi a principal mensagem que André Curti e Artur Ribeiro
passaram para mim nos encontros formais e informais que tive e tenho tido com eles. E
esta também foi a sinopse do primeiro espetáculo deles cujo nome referencia a
companhia: Dos à Deux. Curti e Ribeiro não sabem o que é e muito menos como é criar
artisticamente um espetáculo sem a presença, a generosidade, a conexão e o contato do
outro.
O universo infantil que traz a sutileza e a ingenuidade necessárias para a
escritura teatral da Compagnie Dos à Deux me deixa cada vez mais imersa com o meu
quebra-cabeça. Outras peças como o afeto, a porosidade, a abertura, a entrega e o amor
possivelmente permitirão novos encantamentos e poesia. Artur Ribeiro e André Curti
são poetas do gesto. Segundo Burnier (2009, p.17),

Os termos “poesia”, “poética” e “poeta” vêm do grego poíêsis, poiêtikê,


poiêtikês, que se relacionam com o verbo de mesma raiz: poiéô, que significa
fazer, criar. Enquanto, na perspectiva das ciências, a prioridade é o objeto e a
inteligência será verdadeira na medida em que se adaptar a ele, nas artes, ela
precede o objeto, conhece-o criando. O conhecimento implícito no fazer
artístico é, portanto, um conhecimento criador, fazedor, produtor. Entre o ator
e espectador, aquele que faz a arte é obviamente o ator, o que nos leva à
conhecida conclusão de ser o teatro a arte do ator.

Cumprida a primeira etapa de criação, em que os personagens são construídos,


as sequências gestuais são improvisadas e, posteriormente, coreografadas, chega o
momento de trabalhar a precisão, o controle sobre os mínimos movimentos, os
encadeamentos e o desenho espacial de cada cena. André Curti e Artur Ribeiro afirmam
categoricamente que é então, a repetição que possibilita um profundo estado de criação.

“Repetir, repetir – até ficar diferente


Repetir é um dom de estilo.”
(Manoel de Barros).
8

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1988
ROUBINE, Jean Jacques. A arte do ator. Trad. MICHALSKI, Yann; TROTTA,
Rosyane. Rio de Janeiro: Zahar, 2011
9

1
Tema da pesquisa de Mestrado em Teatro financiada pela CAPES, que realizo no Programa de Pós-
Graduação PPGT; do Centro de Artes – CEART; da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
sob a orientação da Professora Doutora Maria Brígida de Miranda. A Dos à Deux é uma companhia de
teatro gestual franco-brasileira reconhecida e premiada mundialmente, fundada pelos artistas André Curti,
Artur Ribeiro e a colaboração da produtora Nathalie Redant em 1998, na cidade de Paris, França. (Nota
minha).
2
“O mais profundo é a pele.” (VALÉRY apud GOUVÊA, 2007).
3
MONTAGU, Ashley. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
4
“O períneo situa-se inferiormente ao assoalho pélvico entre os membros inferiores. Sua margem é
formada pela saída pélvica (abertura inferior da pelve). Uma linha imaginária entre as tuberosidades
isquiáticas divide o períneo em duas regiões triangulares: anteriormente o triângulo urogenital contém as
raízes da genitália externa e, nas mulheres, as aberturas da uretra e da vagina. Nos homens, a parte distal
da uretra está envolvida por tecidos eréteis e abre-se na extremidade do pênis. Posteriormente o triângulo
anal contém a abertura anal.”. (DRAKE, MITCHELL & VOGL, 2013, p.372).
5
Realizada em Belo Horizonte, no dia 05 de abril de 2014. (Nota minha).
6
“Quando o embrião ainda tem menos do que 2, 5cm de comprimento da cabeça e tronco (Os membros
do embrião encontram-se flexionados e encostados ao peito e abdômen, não sendo assim considerados
nesta medição), quando ainda tem menos de seis semanas de vida, um leve acariciar do lábio superior, ou
das abas do nariz, fazem o pescoço se curvar e o tronco se afastar da fonte de estimulação. Nesse estágio
de seu desenvolvimento, o embrião ainda não tem olhos ou orelhas. Contudo, sua pele já está altamente
desenvolvida, embora de modo algum num nível comparável ao de seu ulterior desenvolvimento. (...)
Tanto a pele quanto o sistema nervoso originam-se da mais externa das três camadas de células
embriônicas, a ectoderme. A ectoderme constitui uma superfície geral que envolve todo o corpo
embriônico. A ectoderme também se diferencia em cabelo, dentes e nos órgãos dos sentidos do olfato,
paladar, audição, visão e tato, ou seja, em tudo que acontece fora do organismo. O sistema nervoso
central, cuja função principal é manter o organismo informado do que está se passando fora dele,
desenvolve-se como a porção da superfície geral do corpo embriônico que se vira para dentro. O restante
do revestimento de superfície, após a diferenciação do cérebro, da medula espinhal e de todas as demais
partes do sistema nervoso central, torna-se pele e seus derivados: pelos, unhas e dentes. Portanto, o
sistema nervoso, é uma parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele, pode ser considerada como a
porção externa do sistema nervoso.”. (MONTAGU, 1988, p.22-23).
7
“Na Educação Somática (sic) a ênfase está no próprio indivíduo, na percepção das sensações internas
produzidas no organismo. [...] Por meio do desenvolvimento do sentido cinestésico- a propriocepção –
essas práticas [Eutonia, Alexander Technique, Feldenkrais, Pilates, Barthenieff Fundamentals, entre
outras] colaboram com o refinamento motor, como também possibilitam a melhora da expressividade do
movimento.” (COELHO, 2011, p. 65-66).
8
“Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem (sic). Esta, que por sua vez, governa todos os nossos
atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade, educação e auto-educação
(sic). A parte herdada é a mais imutável. A herança biológica do indivíduo, a capacidade e a forma do
seu sistema nervoso, sua estrutura óssea, tecidos, glândulas, pele, sentidos – tudo isso é determinado pela
sua hereditariedade física, muito antes que ele tenha qualquer identidade estabelecida. Sua auto-imagem
(sic) desenvolve-se de suas ações e reações no curso normal da experiência.” (FELDENKRAIS, 1977, p.
19).
9
André Curti é brasileiro e Artur Ribeiro é angolano, naturalizado brasileiro. (Nota minha).
10
Embora concorde com a autora sobre o tempo do treinamento e da constante aprendizagem, discordo da
ideia, utilizada pela teórica, do corpo como instrumento e justifico-me através de duas citações, a seguir:
“A esta docilidade da linguagem equivale uma violência real exercida sobre o corpo: quanto mais sobre
ele se fala, menos ele existe por si próprio.” (GIL, 1997, p. 13).
“Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um
espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo?” (UNISINOS. Instituto Humanitas Unisinos.
Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-
foucault#.Uc-c_xLbGa >. Acesso em: 17 jul. 2013).
11
Dado construído após pesquisa de campo realizada nos meses de novembro e dezembro de 2013, na
sede brasileira da companhia. Para chegar a esse resultado, participei ativamente de workshop com os
diretores Artur Ribeiro e André Curti, adquiri alguns materiais audiovisuais com Artur Ribeiro, além de
entrevista-lo no final deste primeiro processo da pesquisa. (Nota minha).
TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

PARTITURAS CORPÓREAS: VERBOS DE AÇÃO NO ESPAÇO CÊNICO

Clara Monteiro Brito (Orientadora: Renata Lemes; Instituto de Cultura e Arte;


Universidade Federal do Ceará).

Resumo: Executar uma ação. Logo, pensar em como executá-la. Então, imprimir
significado a ela. Ter como premissa um verbo de ação – empurrar, puxar, acenar, etc. –
e a partir daí deslocar o corpo de modo que uma ação cotidiana transite para um lugar não
habitual, dotado de outro fluxo de energia. Este artigo traz reflexões em torno de um
estudo prático-teórico sobre o trabalho do ator com partituras de ações como
procedimento para a sua criação artística e sobre os desdobramentos desse trabalho na
apropriação do espaço cênico. Inserida no contexto de montagem do espetáculo Calígula,
da obra de Albert Camus, esta escrita traz questionamentos a respeito do processo de
criação de um grupo de atores da cidade de Fortaleza através da composição de partituras
corporais engendradas por verbos de ação que sofrem interferência das qualidades e
significados presentes no espaço cênico.

Palavras-chave: Ator. Partituras de ação. Espaço cênico.

Em março de 2014, teve início um processo de investigação prática sobre o trabalho do


ator com partituras de ação, impulsionado pelo desejo de um grupo de atores residentes
na cidade de Fortaleza, no estado do Ceará, intitulados Comedores de Abacaxi S/A¹, em
refletir sobre as questões que perpassam a obra de Albert Camus, Calígula, em
consonância com o mapeamento do corpo do ator enquanto objeto de estudo. Propunha-
se, então, deslocar a funcionalidade característica das ações cotidianas a partir de um
redirecionamento do fluxo de energia no corpo do ator.

Com frequência chamamos esta força do ator de “presença”. Mas não se trata
de algo que está, que se encontra aí, a nossa frente. É contínua mutação,
crescimento que acontece diante de nossos olhos. É corpo-em-vida. O fluxo de
energia que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi redirecionado. As
tensões que secretamente governam nosso modo normal de estar fisicamente
presentes, vem à tona no ator, tornam-se visíveis, inesperadamente. (BARBA.
1995. P. 54).

Diante desse processo de montagem teatral que nos impulsionou a perceber outras
instâncias do trabalho do ator, neste caso, enquanto pesquisa de partituras corporais,
abriram-se caminhos para a redescoberta dos corpos presentes na sala de ensaio, fazendo
uso da ponte corpo e pensamento como um só lugar de mutação e movimento.

Nesse processo de criação, ainda em andamento, de caráter inédito para o grupo de atores,
com direção de Renata Lemes, diretora da Companhia do Miolo de São Paulo, atualmente
professora do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, temos
trabalhado com verbos de ação – empurrar, lançar, acenar, etc. – como premissas para a
composição de ações que atravessam a obra de Camus e se constroem como partituras
relacionadas à pessoalidade de cada ator.
O trabalho com partituras de ação

O primeiro verbo trabalhado em sala de ensaio foi empurrar. A partir dele surgiram três
ações que constituíram a primeira partitura pensada individualmente por cada ator. Os
movimentos criados se relacionavam de maneiras distintas com o verbo, na mesma
proporção que formavam uma liga entre si, de modo a gerar uma unidade entre as ações,
compondo uma partitura de ação.

Embora partindo do mesmo princípio, no caso o verbo empurrar, cada partitura possuía
qualidades muito singulares, que ao longo do processo, se revelaram como uma condição
inerente ao trabalho com partituras de ação. Em cada jogo de ações pensadas pelos atores,
também se faziam presentes as qualidades dos próprios artesãos e não somente do verbo
em questão, ou seja, as características presentes nos corpos de cada ator, as diferentes
experiências vivas na memória corporal também trabalhavam na composição das
partituras.

Neste sentido, a partir de um mesmo verbo surgiram imagens carregadas de força com
movimentos mais amplos, como também imagens caracterizadas por uma leveza e
precisão nas ações. As partituras nos mostravam como um mesmo impulso criativo podia
nos gerar significados opostos.

Em um segundo momento, passamos a extrair os verbos de ação do próprio texto


dramático, voltando o nosso estudo para o trabalho com outras imagens e significados
mais próximos da obra do autor. Desse modo, pensando nos diferentes sentidos que uma
mesma cena carrega, e nas possibilidades de reflexão em torno desse processo de criação,
começamos a nos questionar sobre diferentes impressões por parte de cada ator a respeito
do texto dramático.

Quais verbos de ação impulsionam cada cena e congregam as principais ideias da obra?

A partir daí, outras maneiras de construção das partituras foram surgindo em sala de
ensaio, agora com um direcionamento maior sobre a elaboração das ações diante do
contexto das cenas, as composições ganharam qualidades inerentes ao jogo de ideias da
obra, como também uma nova distribuição no espaço cênico.

A presença de uma composição coletiva ampliou as perspectivas do trabalho com


partituras de ação, à medida que partituras mais híbridas em seus significados surgem de
uma criação colaborativa entre os atores. O coro ganha voz na cena. Começamos a
trabalhar partituras corporais que sintetizassem as ideias da cena. O espaço cênico ganhou
outras proporções. A relação coro-corifeu se fez presente diante da relação corpo-cena
dos atores.

Desse modo, pensando para além da criação individual e alcançando outras perspectivas
desse trabalho, começamos a pensar em outros espaços de investigação para além da sala
de ensaio com paredes brancas.
Partituras corpóreas fora da sala de ensaio

HÉLICON: Aproximem-se! Aproximem-se! Mais uma vez, os deuses


desceram à terra. Caio, César e deus, que chamamos de Calígula, emprestaram
a eles sua forma humana. Aproximem-se, reles mortais, o milagre sagrado se
opera diante dos nossos olhos. Por um favor especial ao reino bendito de
Calígula, os segredos divinos são oferecidos a todos os olhos. (CAMUS.1994.
P.41).

A frase dita pelo personagem Hélicon da obra de Camus, foi trabalhada em sala de ensaio
por um dos atores como um fator de transformação da partitura de ação elaborada a partir
dos verbos esfregar e lançar. Quatro ações juntas formaram a primeira partitura.

Nesta etapa do nosso processo de pesquisa, deslocamos o trabalho com partituras de ação
para fora da sala de ensaio, teríamos a totalidade do prédio do Instituto de Cultura e Arte
da Universidade Federal do Ceará como fator propulsor de transformações nas partituras
anteriormente criadas na sala de ensaio.

Um dos aspectos inerentes ao espaço vazio é a inevitável ausência de cenário.


Isto o torna melhor que os outros, pois não estou julgando nada, apenas
constatando o óbvio: num espaço vazio não poder haver cenário. Se houver, o
espaço não estará vazio, haverá objetos coupando a mente do espectador.
Como a área vazia na conta uma história, a imaginação, a atenção e os
processos mentais dos espectadores ficam livres e desimpedidos. (BROOK.
2008. P.63).

Nossa proposta foi fazer exatamente o oposto, procurar um espaço não-vazio, repleto de
suas características e signos. Um espaço em que suas condições intervissem nas ações já
criadas e modificassem a partitura nos seus mais diversos aspectos.

A partitura inicial com o texto de Hélicon possuía ações de esfregar os pés no chão, lançar
algo com a mão direita, com movimentações em níveis alto e médio. Saímos da sala de
ensaio para perceber o espaço do prédio, onde o ator poderia investigar as diferentes
possibilidades de intervenção na partitura inicial.

O espaço foi escolhido, um canteiro com plantas de altura aproximada de um metro. O


ator se posicionou no local e começou a trabalhar com a repetição de sua partitura a fim
de perceber os desdobramentos que o novo espaço provocava na sua movimentação.

Ao longo da investigação prática, percebíamos que a terra molhada presente no canteiro


de plantas alterava o esfregar dos pés – seu ritmo, seu peso – o objeto lançado da mão
direita agora era terra, o tempo da partitura se estendeu à medida que o texto falado
também se modificou na repetição. A voz do ator se transformava com suas ações,
variando entre grave e agudo, na proporção em que se estabelecia uma relação com o
público, o olhar dentro da partitura ganhou outro significado e força.

E assim aconteceu com as demais partituras de ação, uma rampa que transformava a
qualidade do caminhar, um chão áspero que modificava a intensidade do movimento, etc.

O olhar do público é o primeiro elemento que nos ajuda.Quando sentimos esse


escrutínio como uma expectativa autêntica, exigindo a todo modo que nada
seja gratuito, que não haja desleixo e sim precisão, compreendemos finalmente
que o público não tem uma função passiva. (BROOK. 2008. P.56).

Pensando em outras perspectivas da apreciação cênica, dentro dessa investigação, propus


também me relacionar com o público a partir de um dos verbos de ação contido na cena,
aproximar. Sendo assim, a ação estava sujeita às diferentes posições de cada espectador,
estando a aproximação vinculada à disposição do público no espaço. Através da partitura,
me aproximava de cada espectador e executava o texto falado.

O espaço vazio

Do mesmo modo, o trabalho no espaço vazio voltou nossa atenção para outros aspectos
da criação artística. Na proporção que os estímulos pareciam estar menos presentes, o
grupo se tornava mais sensível aos mínimos impulsos provenientes do espaço e do
coletivo. Esses estímulos nos chegavam de variadas formas: sons, movimento, cheiro,
etc.

Em nosso trabalho costumamos usar um tapete como zona de ensaio, com um


objetivo muito claro: fora do tapete, o ator está na vida cotidiana, pode fazer o
que quiser: desperdiçar a energia, fazer movimentos que não expressam nada
particular, coçar a cabeça, tirar um cochilo...mas assim que pisa no tapete está
obrigado a ter uma intenção definida, estar imensamente vivo, pela simples
razão de que há um público observando. (BROOK.2008. P. 66).

Essa outra maneira de se relacionar com o espaço, marcada por linhas bem definidas,
áreas limitadas e um espaço desnudado para encenação, retoma aspectos semelhantes a
um jogo muito presente em nosso processo de criação, o jogo Coro-Corifeu². Demarcando
a área de jogo – um quadrado grande – como um espaço vazio na sala, o primeiro corifeu
(jogador) entra e ocupa este espaço a sua maneira, ressaltando a importância da
consciência corporal do ator para a criação artística. Em seguida, entra o segundo corifeu
(jogador), nesse momento se estabelece as duas instâncias do jogo, o primeiro jogador
torna-se coro, enquanto o segundo assume a posição de corifeu, devendo continuar se
relacionando com o espaço, mas também com o coro presente, o qual irá reagir – a seu
modo – a qualquer estímulo oferecido pelo corifeu. Um jogo de ações se estabelece no
espaço vazio. Assim, à medida que um novo corifeu entra no espaço, a unidade do coro
aumenta seu tamanho.

Como aproveitar os mínimos impulsos gerados no jogo/cena/espaço e reagir a esses


estímulos?

Existe uma relação de suspensão dentro do jogo de teatro, uma marca pela espera do
acontecimento, um olhar vivo, um corpo-em-vida³ do ator que potencializa as ações do
jogo e da cena. Retomando as relações do jogo coro-corifeu, me questiono também sobre
a qualidade dos estímulos gerados para o coro: Como fortalecer a relação coro-corifeu
pensando não somente na receptividade do outro, mas também naquilo que eu jogo para
o outro.

Em paralelo, podemos refletir em torno da relação dos atores em cena, como também da
relação ator-espectador. Um canal de troca se estabelece entre essas instâncias, as duas
vias tornam-se abertas para que haja um atravessamento das partes. A suspensão é
rompida pelo acontecimento que vem do outro e que nos impulsiona ao novo, a outro
lugar, que nos permite trocar com o outro ator em cena ou com o espectador ali presente.

Neste contexto do jogo coro-corifeu, jogamos com verbos de ação no espaço cênico, os
verbos ficavam dispostos ao redor do tabuleiro como ferramentas para o jogo e
impulsionavam as ações criadas dentro do espaço. Verbos do texto de Camus que
ganhavam forma no corpo do corifeu e, de maneira análoga, reverberavam nas imagens
do coro. Criavam-se partituras corporais pelos estímulos do jogo, marcadas pela presença
do coro, pela força do coletivo e por outras qualidades de composição.

Dentro dessa ideia de unidade do coletivo, investigamos possibilidades de criação a partir


de um jogo de teatro chamado jogo do nada, definimos o ponto de partida como uma roda
entre os atores, os quais estavam sujeitos a qualquer estímulo gerado a partir da roda –
um mínimo movimento, ruído, etc. – o coletivo reagia junto e dessas reações eram gerados
mais estímulos e consequentemente mais reações, estabelecendo uma cadeia de ações
dentro do jogo.

Redescobrir o corpo em cena através do nada, estar suspenso a qualquer impulso que
tenha origem em qualquer ponto do espaço, redescobrir a descoberta.

Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. Nossas experiências vão se
tornando cada vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente,
como fazem as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um
catálogo que já nos é familiar. (RICHARDS. 2008. P. 4).

O desconhecido comumente se torna petrificado ao longo do tempo, passamos a chamá-


lo de conhecido. Aquilo que já rotulamos no decorrer da vida parece não ter mais sobras,
nem novas possibilidades, encontra-se estagnado juntamente com nossa compreensão das
coisas. A sensação da criança, de encontrar o novo, de descobrir o entremeio daquilo que
já nos foi ensinado, de olhar para o espaço sobre diferentes perspectivas vai se esvaindo.

Ocupar o espaço cênico com o desejo de redescobri-lo, perceber detalhes, falhas, formas
a serem exploradas, retomar o sentindo da criança quando rola pelo chão e procura o
novo, busca e se ocupa do inédito. Perceber como apropriar-se dessas sensações dentro
do processo de criação do ator, como redescobrir o próprio trabalho, fazer uso disso, por
exemplo, no trabalho com partituras de ação, na relação partituras corporais e espaço
cênico.

i
Notas:

¹ Grupo composto por atores cearenses em formação vinculados ao curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Ceará. A realização da pesquisa prática tem apoio do Instituto de Cultura e Arte
da UFC.
² O jogo coro-corifeu possui diversas abordagens dentro das diferentes linguagens artística. Nesta
pesquisa, ele foi usado como um dispositivo de trabalho da relação corpo-cena na perspectiva teatral.

³ Expressão oriunda do livro A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral de Eugenio Barba.
Faz parte do segmento o corpo dilatado de sua obra.

Bibliografia

ÁQIS: Núcleo de pesquisas sobre processos de criação artística. Estados: Relatos de uma
experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis. UDESC, 2011.

CAMUS, Albert. Calígula. Lisboa. Livros do Brasil, 1994.

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de


antropologia teatral. São Paulo. E Realizações, 2008.

BROOK, Peter. A porta aberta. BCD. São Paulo, 2008.

RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo.
Perspectiva, 2008.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
A TRANSFORMAÇÃO DO ATOR EM PERFORMER
Cristina Sanches Ribeiro; Orientador: Edélcio Mostaço; Universidade do Estado de
Santa Catarina

O corpo redescoberto

No início do século XX, as grandes mentes do teatro procuravam criar um novo


sentido: na busca de “reteatralizar o teatro”, tarefa que faria com que o teatro
encontrasse a si mesmo, e esse caminho se mostrou através de sua marginalização e da
exclusão do texto falado e da palavra, que antes havia tomado um lugar supremo na arte
teatral. O que restaria se a palavra fosse suprimida do teatro? O corpo do ator, com seus
gestos, movimentos.
De acordo com Marinis (2000), o francês François Delsarte foi um dos pioneiros
do estudo do corpo, iniciando com a ginástica, esportes modernos e outras
manifestações do corpo humano do ponto de vista físico e estético.
No final do século XIX um conjunto de fatores e experiências colocou o corpo no
centro das atenções, e a expressão alemã Körperkultur [Cultura do Corpo] era utilizada
para esse fenômeno. No campo artístico, a dança se renovou com a “dança livre”,
seguida da “dança moderna”, levando o corpo humano para outras instâncias antes não
imaginadas, a ressignificação da beleza do movimento livre, livre de se submeter às
tradições ditas ultrapassadas.
Já no teatro do início do século XX, a redescoberta do corpo foi além de somente
destronar a palavra.
“Mais exatamente, tratava-se da intenção de subtrair
o ator da tirania do texto, do papel escrito, para pô-lo
nas condições de expressar-se e talvez de criar
autonomamente, além do texto, até sem o texto; em
todo o caso, entre os espaços do texto (Marinis,
2000)”.

Para se transformar em alguém criativo e não somente um repetidor de textos, o


ator precisou tomar as rédeas de sua formação e um começo para isso foi o domínio do
seu aparelho corporal e vocal. Usar o próprio corpo com precisão faria os atores
recriarem de certa forma todo o conceito de teatro e do ator. A concepção do gesto era
herdada do século anterior, como algo comunicativo e de certa forma inexplorado.
Quanto mais desacreditada estava a palavra, maior importância o gesto teria como meio
de comunicação.
O teatro que Adolphe Appia parecia buscar se definia nesse encontro com a
descoberta do corpo humano, direcionado a expressão da cultura estética do momento,
um corpo que encontrasse a si mesmo esteticamente. Craig por outro lado, acreditava
que o corpo humano era algo que não se podia utilizar como obra artística, por ser
pouco confiável.
Parece então que essa tentativa de redescobrir o teatro e o corpo do ator não seguia
uma única lógica e com isso “criou para os homens de teatro do início do século muito
mais problemas do que os resolveu: primeiro entre todos, o problema da escola, ou seja,
o de um repensar global da formação teatral (Marinis, 2000)”. Toda a formação do ator
precisou ser reformulada.
Marinis (2000) coloca que essa redescoberta se referiu a, principalmente, dois
elementos: a presença física do ator na base da criação cênica com sua formação e a
elevação do corpo humano como meio de expressão artística crucial.
Foi necessário então lidar com a questão da educação corporal, além das
atividades corriqueiras como ballet e esgrima. Um grande número de escolas foi criado
na Europa, com foco nas técnicas de “adestramento físico”. Stanislavski criou o seu
estúdio em 1912 com técnicas de movimento, ginástica, esgrima, dança e mimo.
A expressão “mania de exercícios” usada para designar as técnicas utilizadas nos
estudos stanislavskianos, ao contrário do que parece, ao invés de ser uma tentativa de
ditar um tipo de adestramento corporal, não era feito para criar um ator exibicionista,
um cabotino do músculo e sim criar consciência no ator das suas possibilidades
expressivas pelo corpo. No “método das ações físicas” elaborado por Stanislavski nos
últimos momentos de sua pesquisa, as palavras não eram proibidas, apenas no começo
do trabalho. Antes de utilizá-las, o ator deveria criar uma sequência de ações físicas do
personagem e só depois chegar ao texto.
Marinis (2000) propõe uma conclusão nessa trajetória da descoberta do corpo
pelos atores:
Neste ponto, uma primeira conclusão se impõe: por
mais importante ― e até decisiva ― que seja a tarefa
reservada num projeto do gênero à expressão do
corpo, é evidente, porém, que aí figura sempre como
um instrumento, como um meio, em suma, ordenado
para um fim superior: de fato, ao término desse
percurso de regeneração, de regra, se prevê e se
deseja que o ator remeta ao serviço do poeta
dramático e ao do encenador as novas capacidades
ideativas e expressivas assim conquistadas. (Marinis,
2000).

Com essas ideias de criação de novas expressividades, aparece então no final da


década de 20 a criação do mimo corporal, o novo mimo, baseado na subtração
temporária do texto, na improvisação muda, representando no século XX como a
“utopia de um teatro puro”, criado por Decroux na Escola do Vieux-Colombier, dirigida
por Copeau. O mimo corporal tornou-se não mais um meio mas uma arte autônoma,
podendo então ser posta ao lado de outras visões teatrais do mesmo século, como o ator-
supermarionete de Craig, com o “mestre das ações físicas” de Stanislavski, ao controle
do corpo do ator biomecânico de Meierhold e ao Performer de Grotowski, “cuja
partitura cênica combina indissoluvelmente processo orgânico e processo artificial, ou
seja, espontaneidade e precisão” (Marinis, 2000), entre outros.
Teatro do Gesto e Teatro da Palavra

Um equívoco comum de alguns propositores das renovações na cena do século


XX teria sido a crítica extrema em relação ao texto, colocando-se contra qualquer tipo
de emprego da palavra na encenação e um certo ódio a qualquer aplicação de texto ou
sonoridade verbal e vocal. Por mais que a negação de uma corrente acabe criando
possibilidades para novas, nota-se que esse sentimento era infundado, pois de acordo
com Marinis (2000), os pioneiros dos denominados teatros do corpo e movimento como
Delsarse, Laban, Meierhold, Artaud, Decroux, Grotowski, entre outros, mostravam
grande interesse pela palavra, seja ela escrita, proferida, recitada ou dita.
Este equívoco parece ter levado a contrapor um Teatro do gesto e Teatro da
palavra como se fossem coisas opostas e exclusivas, principalmente nas décadas de 60-
70. Os porta-vozes do chamado Teatro do Gesto, como o Living Theatre, Teatro
Laboratorium de Grotowski, Odin Theatre, Bread and Puppet Theatre faziam o uso da
linguagem verbal em seus espetáculos, mesmo que de forma inovadora. O engano
permanecia no rótulo, que de certa poderiam ter condicionado o trabalho de outros
grupos jovens.
A redescoberta do corpo foi uma influência muito grande nessas décadas, e
executou um papel importante na criação do movimento do chamado Novo Teatro,
colocando a expressão corporal como criação estética para muitos artistas e grupos
jovens em suas obras. Uma das heranças do Novo Teatro foi a sua ligação com a
performance.

Performance

Féral (2009) explana sobre dois tipos de performance. Sobre a performance


concebida como forma artística, a performance art, e a performance de Richard
Schechner, contemplada como como ferramenta teórica de conceituação do fenômeno
teatral, conceito popularizado principalmente nos Estados Unidos, e que constituiu a
base principal sobre a qual se estruturaram os “Estudos da Performance”.
Para Schechner (2006) as noções de performance são mais amplas e, por meio de
um pensamento pós-estruturalista e pós-moderno, propõe uma visão relativa da
realidade. Performance para ele seria “o ser, o fazer, o mostrar-se fazendo e o explicar
as ações demonstradas”, abrindo uma brecha para todas as aproximações no campo dos
estudos performáticos.
Na performance art, a arte deixa de ser uma mercadoria e suscita questionamentos
acerca da sua recepção, a função do espectador e sua relação social. Mostaço (2009)
coloca que performance art toma o corpo do artista como “locus” preferencial. A
conduta do artista estaria em uma situação não cotidiana que almeja romper, transgredir,
instaurar o corte ou a fissura ou algo que seria corriqueiro ou repetitivo.
A performance art normalmente recorre a rituais estabelecidos, algumas práticas
chamadas primitivas, em uma zona que o instintual encontra o cultural, “razão pelo qual
toma a vida em seus aspectos especificamente performáticos como ponto de incisão e
território de exploração (Mostaço, 2009)”. O performer busca então com suas ações e
estratégias alcançar relações de zombaria, de transgressão ou ultrapassagem, tomando
como ponto de referência para suas operações e reflexões, transformando a
performance art de certa forma um lado crítico da performance.
Para Schechner (2006), a vida pode ser uma performance, pois está sempre se
recriando e retomando procedimentos, através do comportamento restaurado, que pode
ser visto como uma repetição ou retomada de processos.

Treinamento do ator e do performer

Para Quilici (2012), a existência de um panorama tão diversificado de


possibilidades e linguagens cênicas é um caso de problematização do treinamento do
ator no teatro contemporâneo.
Com as novas investigações disponíveis para o ator, “de maneira geral, parece que
as técnicas que visam à aquisição de habilidades ligadas a uma estética específica
tornam-se muito limitadas diante das questões colocadas pela cena atual (Quilici,
2012)”.
O trabalho cênico para Stanislavski se ancorava no “trabalho do ator sobre si
mesmo”, fomentado no desenvolvimento de um “estado criativo” para a elaboração
teatral. O dualismo entre corpo e mente, existente na herança da cultura ocidental, foi
trabalhado por Stanislavski recorrendo às técnicas orientais como o Yoga.
O conceito de “trabalho do ator sobre si mesmo” criou um campo de pesquisa
advindo de várias práticas culturais diversas, colocando a questão do treinamento do
ator em um patamar para questionamentos mais profundos, indagando sobre problemas
mais abrangentes como às transformações possíveis do artista enquanto sujeito, sendo
então essa a base para o processo criativo. É nesse ponto que o trabalho do ator
aproxima-se do trabalho da arte da performance. Quilici (2012) faz a ligação entre a
área do teatro e da performance através do trabalho de Grotowski:

A conexão entre essas áreas aparece explicitamente,


por exemplo, na última fase da pesquisa de Jerzy
Grotowski. Como se sabe, o “performer arcaico”
grotowskiano se desvincula das matrizes ficcionais da
dramaturgia convencional para fundar sua pesquisa
num processo de transformação pessoal que se
articula na criação de “ações” (Quilici, 2012).

O diálogo intercultural então aparece como mecanismo essencial na criação de


estratégias de treinamento, baseando-se na recriação de diversos procedimentos
artísticos, culturais, rituais na constituição de uma performance.
Quilici (2012) ressalta a transição do interesse de técnicas essencialmente teatrais
orientais como o Nô, Kathakali, Teatro Balinês, etc para a pesquisa mais específica de
práticas rituais, religiosas, meditativas e marciais como procedimentos que visam
promover alteração nos modos de percepção e consciência.
Esses processos formam o eixo das “ações performáticas” de Grotowski, com o
entendimento que a ação artística seria capaz de conversão da intensidade e qualidade
dos estados do artista, criando também um vínculo comunicativo com o público. Quilici
(2012) cita performers que podem ser colocados nessa categoria, como Marina
Abramovic, Joseph Beuys, John Cage, Meredith Monk entre outros.
A performance então se torna um acontecimento ao invés de um espetáculo com
ator e público afastados:

Na medida em que a arte performática e parte do


teatro contemporâneo toma um distanciamento mais
radical da própria noção de espetáculo,
compreendendo-se mais como um “acontecimento”
modificador da qualidade de consciência, a discussão
dos procedimentos criativos e treinamentos tende a
abrir-se para campos de conhecimento distintos da
área artística strictu sensu (Quilici, 2012)”.

Quilici (2012) situa o produto-espetáculo como algo que “automize” o ator, não
dando a brecha necessária para essa nova arte que desloca a reflexão para os processos
de transformar os modos de arte e vida. O treinamento do performer passa pela
necessidade de dominar outras áreas do conhecimento.
Já Marinis (2000) vê o trabalho de Grotowski como uma passagem do ator ao
performer através da cultura teatral do corpo ao ultrapassar as fronteiras tradicionais do
teatro, partindo da ação física do ator. É na ação física que o ator desvenda algo que vá
além do trabalho direcionado para o espetáculo e espectador, associando esse processo
“orgânico” do ator de teatro ao performer, como um ser atuante, que cria a ação e a vive.
O ritual é uma parte muito importante no trabalho de Grotowski, situado como o
ato em si, a ação consumada, o desempenho e a forma como que cada experiência se
eleva a partir da corporeidade e processo conjunto.

Por “ritual” entende cada experiência forte,


“elevada”, na qual a corporeidade, o processo
orgânico integral de quem age é envolvido de modo
profundo e total e se expressa ritmicamente,
articulando o fluxo da vida em formas visuais e
vocais (Marinis, 2000)”.

A pesquisa de Grotowski desde a década de 80 procura um caminho para uma arte


que seria mais como um veículo do que uma apresentação, através do trabalho do ator
sobre si mesmo, sobre as ações físicas, levando o performer a readquirir a plenitude e
intensidade do processo orgânico no ritual/performance. Diferente do caminho do ator
de teatro tradicional, que buscaria a criação para uma simples representação.

O ator e o performer

Para Féral (2009), o ator torna-se performer quando em suas ações, o seu corpo,
seu jogo e suas competências técnicas são colocadas à frente da representação. O
público então navega entrando e saindo da narrativa de acordo com as imagens que
aparecem em seu olhar. “O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem,
deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa (Féral, 2009)”.
Para Schechner (2006), as ações performativas não podem ser classificadas de
verdadeiras, falsas, certas ou erradas, elas simplesmente acontecem, sobrevêm. Uma
classificação importante da performance é o caráter de evento, colocando o processo em
cena, aumentando o aspecto lúdico de quem faz e de quem participa. O performer se
coloca em risco na frente de quem o assiste.
Féral (2009) então explica que duas ideias estão no centro do ato performativo: de
um lado, as ações que são realizadas pelo performer e no outro, o caráter descritivo dos
fatos. A performance cria seu lugar no real e desconstrói essa noção de realidade ao
mesmo tempo. O espectador é obrigado a se adequar ao jogo de signos instáveis que se
apresentam a ele:

“[...]inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando


por aí escapar da representação mimética. O
performer instala a ambiguidade de significações, o
deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido.
Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os
signos, os sentidos e a linguagem.(Féral, 2009)”.

Nessa desconstrução, o performer institui a pluralidade do sentido da cena através


de fragmentação, paradoxo, sobreposição de significados, colagens-montagens,
intertextualidade, desconstrução, citação e deslocamento. A escrita cênica é caótica, ela
se desconstrói, baseada não em uma finalização mas no processo, ela se identifica no
risco.
O performer trabalha na inter-relação entre o seu corpo, os objetos e o espectador,
não mais procurando construir signos como o ator antes fazia, mas na tentativa de
instalar a dubiedade de todas as significações e sentidos. A força da ilusão é encontrada
no jogo da falsa aparência, em um jogo de representação que nega a si mesmo,
mostrando o procedimento através da tecnologia. Ao mostrar o procedimento do jogo, o
performer mantém a ilusão e ao mesmo tempo sua enganação.
Para Féral (2009), o performer mantém engajamento total em sua ação, colocando
em cena o seu desgaste, sua vivacidade é a presença do corpo humano sem artifícios. O
espectador encontra-se totalmente absorvido pela ação do momento, pelos riscos do
jogo e uma certa frieza por ter a escolha de permanecer com o olhar exterior.
Para Schechner (2010), o performer precisa de trabalho duro se quiser levar seu
trabalho a um nível em que consiga deixar a sua máscara de lado e se revelar como ele
realmente é, na ação que ele está vivendo. Ele acrescenta que essa ação não parte do
famoso “se” de Stanislavski, onde coloca-se a ilusão da representação, mas na realidade
da ação, daquilo que “é”.
A performance torna-se então um tipo de nudez espiritual, um trabalho entre a
região do “personagem” e a composição que o performer faz de si mesmo. As bases da
peça tornam-se as reações do performer, evocando novos elementos e transformar a
encenação.
Schechner (2010) instaura quatro etapas no processo do performer:

“1. Entrar em contato consigo mesmo. 2. Entrar em


contato consigo mesmo diante de outros. 3.
Relacionar-se com os outros sem uma história e sem
uma estrutura formal elaborada. 4. Relacionar-se com
os outros dentro de uma história ou estrutura formal
elaborada (Schechner, 2010)”.

Estas etapas acontecem simultaneamente, uma fomentando a outra. O treinamento


do performer baseia-se ao retorno constante às etapas, criando variações e misturando
com outros exercícios. Os exercícios desse treinamento vêm de padrões que o
performer aprende de fora e os impulsos íntimos que evocam do seu ser interior. O
trabalho do treinamento do performer então é auto-gerativo, pois parte de cada um que
cria as variações e os contextos na disciplina dos exercícios, através do seu corpo e voz.
“Os movimentos e os sons que esse processo gera se transformam em novos padrões
disciplinados, que formam, por sua vez, a base de novos impulsos e associações
(Schechner, 2010)”.
A história do performer estaria então, evidentemente inserida na história do ator.
Estaria a história do ator na do performer no teatro contemporâneo? Fica a questão. A
performance só existe com o corpo do ator e a história a ser vivida na cena. Esse ator-
performer estimula o público a reagir com o próprio corpo ao que acontece com ele em
cena. O verdadeiro performer para Schechner (2010) pede para que a audiência o
observe enquanto derrama suas próprias vísceras e enquanto se cura, em um ciclo de
conflito, agonia, morte e restauração. O teatro se encontra na performance, ao mesmo
tempo que se encontra o ritual, o mistério, a medicina e a religião. A história a ser
contada sempre terá profundas consequências a nível social, ao mesmo tempo que há
uma partilha de uma experiência visceral que toca profundamente o público e o
performer. A cada performance, o performer nasce diante do público, cresce, derrama-
se, morre e renasce. É a magia do ritmo vivo, é o teatro vivo e puro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABIRACHED, Robert. “ L`acteur et son jeu” [O ator e seu Jogo]. p. 154-166, in


COUTY, Daniel & REY, Alain (org.). Le Théâtre [O Teatro]. Tradução de José Ronaldo
FALEIRO. Paris: Bordas, 1980.

FERAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo.


Universidade do Quebéc. Tradução: Lígia Borges. 2009.
______________ A arte do ator. Em Encenação e jogo do ator: entrevistas. Tradução
José Ronaldo Faleiro. Montreal (Québec)/Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001.
_______________Performance e performatividade: o que são os estudos
performáticos? In: Sobre Performatividade. Edélcio Mostaço, Isabel Orofino, Stephan
Baumgartel, Vera Collaço (organizadores) – Florianópolis: Letras Contemporâneas,
2009.
MARINIS, Marco De. 5. La riscoperta del corpo [A Redescoberta do Corpo], p.
129-158, in In cerca dell´attore. Un bilancio del Novecento teatrale [Em busca do Ator.
Um balanço do século XX no Teatro]. Roma: Bulzoni, 2000. Tradução inédita de José
Ronaldo Faleiro.

MOSTAÇO, Edélcio. Fazendo cena: a performatividade. Sobre Performatividade.


Edélcio Mostaço, Isabel Orofino, Stephan Baumgartel, Vera Collaço (organizadores) –
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.
QUILICI, Cassiano S. O Treinamento do Ator/Performer: Repensando "O Trabalho
Sobre Si" a Partir de Diálogos Interculturais. In: Urdimento n° 19, Universidade do
Esado de Santa Catarina, Sc. Novembro de 2012
SCHECHNER, Richard. “O que é performance?” in: Performance studies: an
introduccion, second edition. New York & London: Routledge, p. 28-51. tradução de r.
l. almeida. 2006.
____________________ Performer. In: Sala preta 9. USP, São Paulo, SP, 2010.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

CALÇANDO UM SAPATO APERTADO: OS CAMINHOS E O PERCURSO DE


UMA EXPERIÊNCIA IMPROVISACIONAL

Cristóvão de Oliveira; Professor Assistente; Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR –


Universidade Estadual do Paraná

Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito
um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo
simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato,
qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar.
Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto,
do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar.
Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa
velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em
terrenos mais suaves ou menos acidentados.
Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer
chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos
com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se
livres.
Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma
aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é
apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no
contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para
o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais
diversos processos criativos.
Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os
procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A
constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina
Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como
um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade
curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da
necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência
improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas
cômicas.
Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela
aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a
instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura
desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto
de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith
Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros.
Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram
tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de
instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores
mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de

                                                                                                               
1
Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a
graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A
cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.
corpo, estabelecendo um léxico – oral e também corporal, sintático mas também sinestésico –
a partir do qual as atividades do grupo se apoiaram.
É para a experiência onde se funda este léxico que nos interessa olhar neste texto.

UM LÉXICO

Faz parte de toda experiência artística a definição de um vocabulário a partir do qual


um entendimento direto se dê por via das noções vinculadas a este vocabulário. Quando a
experiência acontece em grupo, mais importante ainda é possuir tais ferramentas a fim de
potencializar a criação.
No Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade, há em voga um extenso
vocabulário – teórico e prático, por assim dizer – que determina os encaminhamentos da
experiência. Neste léxico, tomam parte desde noções próprias da improvisação até conceitos
inerentes às elaborações poético-estéticas próprias do campo filosófico.
Desta feita, a apropriação que se faz de determinados conceitos faz valer os
entendimentos e as noções que engendram critérios capazes de delimitar as leituras que
emergem da experiência improvisacional.
Para citar um exemplo, é importante enfatizar que todo o desenvolvimento do
trabalho do grupo parte do corpo do ator em dinâmicas as mais variadas. Um dos
procedimentos mais comuns é iniciar a prática com um exercício intitulado “Mapa”. Neste,
os atores se distribuem no espaço e, estabelecendo um vínculo perceptivo entre si, tem como
“regra” mover-se passo a passo pelo espaço sem perder a conexão inicialmente estabelecida.
Podemos notar que este simples exercício é semelhante a vários outros muito básicos
que costumamos [re]conhecer com facilidade. Contudo, aqui este procedimento expande as
fronteiras do simples “passo a passo no espaço” para desencadear, no ator, as mais complexas
estratégias criativas. Primeiro, por determinar um caráter de “contaminação” em que um
simples movimento ou gesto de um ator pode atravessar o espaço criativo de outro[s],
influenciando seu modo de [re]agir em sua própria busca criativa. Segundo, porque esta
estratégia de contaminação dispara com a subjetividade, gerando imagens que se reconhecem
como um universo narrativo que determina o que se tornará [ou não] a cena improvisada.
O conceito de “mapa” não é novo. Encontramos uma transversalidade em Deleuze
quando consideramos o rizoma naquilo que corresponde à cadeia, aos pontos singulares, à
multiplicidade, à cartografia.
A ideia própria de mapa está vinculada ao princípio de que é uma experiência
ancorada no real, de modo que ultrapassa a possibilidade de reprodução no sentido da réplica,
mas que se estabelece pela disseminação, pela percepção dos deslocamentos, pela disposição
intersubjetiva dos corpos já que “o mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele
mesmo, ele o constrói” (DELEUZE, 2011, p. 30).
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um individuo, um
grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como uma
obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação.”
(DELEUZE, 2011, p. 30).

Portanto, percebemos no discurso do Grupo Tosco, uma conjunção de ideias práticas


(a distribuição no espaço, o mapa como ferramenta de um exercício corporal) e fundamentos
teóricos (a dimensão processual do exercício, o mapa como conceito para entender a prática e
fundamentar as elaborações poéticas do grupo).
Colada a esta conjunção de ideias, a “Arquitetura” vem como um conceito vinculado
ao “Viewpoints” (técnica preconizada por Anne Bogart), muito utilizada pelo grupo para se
referir ao uso do espaço cênico, à distribuição dos corpos neste espaço e sua disposição
cênica. Deste modo, falar sobre a arquitetura da cena, considerando os entendimentos a ela
vinculados, torna-se inerente à prática do grupo.
Percebemos, então, ao falar sobre a constituição de um léxico, que no caso do Grupo
Tosco seu vocabulário estabelece parâmetros e padrões que constituem uma dinâmica capaz
de alinhar diversos dos objetivos que o projeto de pesquisa pressupõe, especialmente no que
diz respeito a investigar a Espetacularidade a partir de procedimentos improvisacionais.
Ademais, é importante ressaltar que o léxico do grupo está vinculado a conceitos teóricos que
sustentam as leituras que o grupo faz do próprio trabalho, da cena improvisada e, então, do
espetáculo que experimenta construir a partir da improvisação.
A esta altura talvez seja importante falar sobre como se procedem as dinâmicas
improvisacionais que culminam na Espetacularidade. Como dito anteriormente, o trabalho do
Grupo Tosco inicia sempre com algum exercício físico que estabeleça alguma relação com o
espaço. Além do exercício “Mapa”, o grupo dispõe de uma série de outros dispositivos de
jogo que se pautam no corpo como pressuposto das dinâmicas que se estabelecem.

A DINÂMICA DOS CORPOS NO ESPAÇO

Criar um movimento e repeti-lo. Fluir para outro movimento e mais outro até gerar
uma sequência que se repete. A partir daí, se relacionar com a sequência de movimentos de
outra pessoa até se converter em uma quase-dança que, além de vincular os indivíduos no
jogo também instaura núcleos e determina sua relação com o espaço.
Esta descrição refere-se a um exercício muito importante que costuma ser chamado de
“Chacrinha”. A própria denominação joga com a ideia de brincadeira, em que o que conta é a
possibilidade de se valer de um movimento livre para a elaboração de uma estrutura que vai
se complexizando à medida em que avança.
Assim, uma quase-dança torna-se potente o suficiente para instaurar um ambiente
criativo de múltiplas possibilidades. O pensamento torna-se não mais um reflexo da
linguagem verbal – a despeito do léxico do grupo – mas das imagens que o corpo gera. A
leitura que se estabelece a partir de exercícios com a “Chacrinha” funda um modo de pensar
arraigado sobretudo no corpo e, deste modo, as elucubrações que daí surgem estão fundadas
neste pensamento que é, antes de mais nada, corpóreo.
Trata-se de uma “atividade reflexiva” (SOMBRA, 2006) onde o pensar-em-ação
estabelece contornos muito mais borrados e, portanto, difíceis de definir, para a experiência.
Neste sentido, tais dinâmicas corporais remontam ao pensamento de Merleau-Ponty que
preconizava a importância de se partir da experiência para, então, se chegar ao sentido das
coisas.
José Carvalho Sombra (2006) faz uma bela abordagem desta conjunção ao destacar a
percepção como meio através do qual o corpo desencadeia ocorrências subjetivas, partindo
das singularidades: “o corpo próprio, tal como eu existo e o reconheço como meu corpo, o
corpo que eu vivo, que eu sou e que eu tenho, o qual se conduz como sujeito de meus desejos,
intenções e movimentos” (SOMBRA, 2006, p. 25).
Portanto, se consideramos que o corpo é condutor de leituras que estão para além da
linguagem verbal, o que “lemos” deste corpo é o que ele conduz como mediador, como meio
através do qual as percepções se comunicam, já que “o corpo é sempre o estado de um
processo em andamento de percepções, cognições, ações” (SETENTA, 2008, p. 38).
Ao concatenarmos o entendimento de percepção ao que o corpo comunica,
estabelecemos uma possibilidade de leitura mais vinculada às imagens que lemos e, então, o
sentido das coisas torna-se poroso. Acima de tudo, ao restituir às percepções o caráter
hegemônico das práticas do Grupo Tosco, assumimos que a experiência improvisacional se
concretiza enquanto uma atividade reflexiva, ou seja, no momento mesmo em que se faz, se
pensa e, portanto, se diz.
Nas práticas deste grupo, entende-se desde logo que não é possível falar do que
poderia ser feito senão daquilo que se experienciou, ou melhor, não somos capazes de
elaborar um sentido para uma experiência se não a percepcionamos. Em outras palavras
ainda, não é possível projetarmos o que gostaríamos de ter visto sem ter vivido aquela
experiência. Então, é muito comum falarmos de algo que “pensávamos” ter “lido” no
trabalhos dos atores que jogam acreditando que a cena improvisada teria sido melhor caso
fosse da maneira como a estávamos lendo.
Contudo, há uma estratégia presente nestas dinâmicas do Grupo Tosco que aponta
para a percepção como um princípio maior no(s) olhar(es) que estabelecem estas leituras
todas: a proposição das imagens como dispositivo de jogo a partir do qual a cena é
improvisada. Neste sentido, a profusão de imagens desencadeia um universo narrativo
estabelece pequenas células poéticas que, por sua vez, engendram um discurso cuja cena se
desenvolverá em seu entorno.
Como a geração de mapas está relacionada às percepções do ator em jogo/cena, as
dinâmicas corporais adotadas pelo grupo se mostram mais potentes que a palavra, seja em sua
formulação reflexiva – através das leituras que os integrantes fazem de suas experiências
improvisacionais – seja em seu território de ação – através dos diálogos improvisados em si.
Ocorre que as imagens geradas a cada dinâmica corporal ou em cada cena
improvisada são absolutamente porosas e colocam diante dos atores uma série de fissuras a
serem preenchidas, por isso a importância de ancorar a experiência improvisacional nas
percepções:
As imagens são extremamente maleáveis e transitórias, indicando o princípio
subjacente a todas as percepções: os mecanismos de percepção estão envolvidos em
negociações, acordos de correlações estatísticas com o ambiente, para que se
compreenda porque cada imagem é uma imagem, ou seja, que existe um sentido
transitório em cada imagem. (BITTENCOURT, 2012, p. 29).

As dinâmicas corporais, face ao repertório construído e experimentado pelo grupo,


são sem dúvida mais potentes que a palavra. Em termos de discurso, geram possibilidades
mais abrangentes, mais porosas, mais abertas pois permeiam um espaço criativo conformado
por um sentido que não é lógico, mas perceptivo.
As metáforas corporais, por outra via, podem promover um outro lugar para a
narrativa - quando a palavra se manifesta - já que aciona a percepção de si e do outro de um
modo menos "interpretativo".
O andamento da experiência é pontuado pelas metáforas corporais; neste sentido,
cada ator estabelece um território de ação que é permeado pelo espaço do outro, configurando
uma topologia que não está claramente demarcada já que tais espaços são permeados pela
contaminação. É claro, então, que o corpo propositor como elemento criativo que gera
espaços de contaminação, permite que os territórios de ação se tornem espaços abertos, onde
um preenche a fissura do outro.
A narrativa, portanto, se conforma em um tipo de discurso que não é do sentido, mas
da percepção. Talvez esta seja a dificuldade em preservar a percepção já que o lugar da
palavra é, culturalmente, o da lógica.
Então, se o corpo é a imagem em ação, em movimento, podemos afirmar que as
imagens que o corpo gera são uma “conjunção sígnica de sentidos, percepções e ações”
(BITTENCOURT, 2012, p. 34) onde os sentidos são determinados em sua elaboração poética
– ou seja, a leitura discursivo-reflexiva – as percepções são determinadas pela relação de jogo
que se estabelece na cena através das estratégias e dos procedimentos de criação e as ações
são determinadas pelos espaços a serem preenchidos em seu fazer-dizer do corpo (Setenta,
2008).
Adriana Bittencourt (2012) afirma que as imagens que se manifestam são ideias do
corpo. Neste sentido, tal afirmação conflui para os estudos de António Damásio (2011)
quando ele diz que “as imagens representam as propriedades físicas das entidades e suas
relações espaciais e temporais, bem como suas ações. Algumas imagens, que provavelmente
resultam de um mapeamento que o cérebro faz dele próprio no ato de mapear, são muito
abstratas” (DAMÁSIO, 2011, p. 96).
Se o corpo gera imagens, o cérebro gera mapas. Contudo, este mapeamento que o
cérebro faz trata-se em primeira instância fisiológica já que o cérebro é um órgão dotado de
tais capacidades. Mas se considerarmos a percepção deste mapeamento, o corpo inteiro age.
Os mapas cerebrais não são estáticos como os da cartografia clássica. São instáveis,
mudam a todo momento para refletir as mudanças que estão ocorrendo nos neurônios
que lhes fornecem informações, os quais, por sua vez, refletem mudanças no interior
de nosso corpo e no mundo à nossa volta. As mudanças nos mapas cerebrais também
refletem o fato de que nós mesmos estamos constantemente em movimento. Vamos
para perto de objetos, nos afastamos deles, podemos tocá-los, não podemos mais,
podemos provar um vinho, depois o gosto desaparece, ouvimos uma música, logo ela
termina; nosso corpo muda conforme as diferentes emoções, e diferentes sentimentos
sobrevêm. Todo o ambiente oferecido ao cérebro é perpetuamente modificado, de
modo espontâneo ou sob o controle de nossas atividades. (DAMÁSIO, 2011. pp. 91-
92).

Portanto, se o corpo é o espaço físico das ideias e perceber já é agir, as imagens são
geradas através de nossos mapeamentos cerebrais. Trata-se de um fenômeno convergente
entre objetividade e subjetividade, de definição das atividades reflexivas e das elaborações
poéticas que fazemos a partir do vocabulário que define nosso léxico (teórico e prático).

DO AQUECIMENTO CRIATIVO À ESPETACULARIDADE

Como sabemos, um dos principais objetivos do Grupo Tosco é investigar a


Espetacularidade a partir de experiências improvisacionais. Para tanto, vale-se de um
amálgama de procedimentos e estratégias que lhe dá suporte para a criação. Igualmente, há a
conjunção de elementos constituintes do espetáculo, especialmente a estreita relação com
sonoplastia e iluminação – elementos primordiais da cena improvisada e fundamentais para a
definição do que convencionamos entender como “espetáculo”. Sobretudo, o que mais se
enseja nesta busca do grupo é a relação com o público e suas possibilidades de leitura desta
experiência.
É aí que o sapato aperta!
Antes de se chegar ao espetáculo, é importante falar sobre o trabalho do grupo sob a
perspectiva do aquecimento, que já é criativo desde o momento em que os atores se colocam
em atividade. Então, disto a que chamamos no grupo de “Aquecimento Criativo”2, surgem
                                                                                                               
2
O “Aquecimento Criativo” é uma formulação que o autor utiliza para investigar a não separação entre
preparação e criação, considerando as singularidades do ator. Assim, parte-se do aquecimento funcional
(alongamentos, espreguiçamentos, etc) como disparador para ocorrências já criativas, potencializando o
movimento, gerando imagens e criando possibilidades cênicas. Este procedimento é desenvolvido na disciplina
“Projeto de Investigação da Cena II – Dramaturgia do Corpo.
potencialidades que se convertem em intensidades para uma possível cena; destas
possibilidades criativas que se manifestam desde o trabalho coletivo, emergem as células
poéticas que se encaminham para o desenvolvimento da cena em um contexto narrativo ou
universo dramatúrgico, revelando a Espetacularidade a partir da improvisação não-verbal.
Trata-se de um panorama de intensa potência, uma vez que o corpo-imagem gera um
discurso para a cena e, portanto, os atores devem alimentar suas percepções para que, quando
vem a palavra, o texto preencha e não redunde a cena. Nesta circunstância podemos observar
que, quando vem a palavra, o corpo tende a ir para outro lugar como se pudesse se anular em
função da palavra. O corpo, sempre presentificado pela experiência em curso, mantém-se
potente, mas como se estivesse em stand-by por conta do texto verbalizado.
Um outro fator valioso nas experiências improvisacionais do Grupo Tosco é que, no
escopo de suas atividades, são utilizados termos como “Contaminação” e “Atualização” para
o desenvolvimento da cena.
De forma superficial, podemos dizer que a “Contaminação” é entendida não como a
reprodução de movimentos que se experimentam de um ator para outro mas sim a réplica, ou
seja, jogar o mesmo jogo, pulsar da mesma maneira, fluindo para uma relação de afecção.
Quando o trabalho está na contaminação, existem atravessamentos e imagens muito potentes
se manifestam e podem ser plenamente investigadas pelos atores.
Já a “Atualização” é um termo utilizado pelo grupo como princípio fundamental da
improvisação propriamente dita mas, sobretudo, na construção da cena improvisada.
Atualizar significa receber todas as proposições, não desperdiçando nenhum impulso ou
nenhuma informação nova que se manifeste no momento mesmo em que a experiência
acontece.
Então, ao considerar que as dinâmicas corporais se constituem como o elo principal
que mantém vinculadas preparação e criação, surge uma questão ainda a ser respondida: qual
o real tempo do acionamento dos códigos criativos? Quando tem sonoplastia, por exemplo, o
ator tende a se deixar fluir na experimentação até que o desejo de falar ou a cena se
manifestem como uma pulsão maior que o puro exercício do corpo. Ao tirar a música desse
processo perceptivo, parece que a subjetividade vai encontrando novas estratégias de
“manifestação”.
Aí vemos o quanto o léxico do grupo vai “apertando o pé” na medida em que seu
próprio vocabulário engendra estratégias e procedimentos de criação nem sempre claros, pois
os dispositivos – recursos que são usados na experiência improvisacional – não se organizam
estaticamente senão pela organicidade com a qual os atores os manipulam.
Desestabilizar os dispositivos que estão se engessando, porém, começa a ser um dos
desafios do Grupo Tosco, já que estes requisitam permanecer vivos e pulsantes para que
sejam utilizados de forma orgânica e não impositiva. Dentre tantos aspectos inerentes às
experimentações aqui apresentadas, o ponto de maior fragilidade é, justamente, a culminância
na Espetacularidade.
Se de um lado vemos a dimensão processual do espetáculo absolutamente aberta –
desde o aquecimento criativo, passando pelas dinâmicas corporais, o emprego da linguagem
verbal e a definição do universo narrativo – de outro lado nem sempre a experiência se
converte em uma cena improvisada com contornos espetaculares.
Ciosos de tal fragilidade, os integrantes do grupo investem no aprofundamento do que
chamam “Dispositivos de Transição” a fim de estabelecer novos parâmetros para a
concretização da Espetacularidade a partir da improvisação.
Investigar a transição das ações na conjuntura do grupo é importante já que tais
dispositivos já estão arraigados. Isso significa que há uma percepção ampliada com relação a
eles: quando acionados, há um trânsito entre o que estava acontecendo e uma ação nova.
Portanto, os saltos não são claros, as rupturas não são definidas ou definitivas.
É neste ponto que o sapato apertado pode causar um calo.
É neste ponto que a(s) noção(ões) de “Escuta” do grupo – enquanto percepção
ampliada – ganha importante status na conformação da cena. Ecoando a pergunta de Tatiana
Mota Lima (2012), perguntamos se os códigos estabelecidos pelo Grupo Tosco não estariam
muito objetivados, impedindo que outros fluxos circulem na experiência improvisacional.
Isto quer dizer que, talvez, o que ocorre é que há o acesso a uma “escuta objetivante, ou seja,
que mantem/constrói um espaço exterior que deverá ser rapidamente lido pelos atores, e ao
qual eles devem estar atentos e com o qual devem estar sintonizados para que possam
produzir uma resposta corporal condizente” (LIMA, 2012, p. 4).
Aqui surge uma questão difícil de ser esgotada, posto que não é possível chegar a uma
composição cênica, ou à Espetacularidade, sem certa objetivação. Contudo, uma das
dificuldades observadas no escopo das pesquisas desenvolvidas por este grupo é que as
singularidades agem por vezes fora das intensidades, isto é, certas ocorrências subjetivas dos
atores – que se apresentam como necessidades – são deixadas de lado em detrimento da
relação coletiva estabelecida pelas noções de escuta em voga. A isto, Lima (2012) chama de
“volúpia pela produção de acontecimentos” no sentido de que, em geral, se estabelece uma
excitação ou prontidão que impele o ator a já criar uma cena – dialogada ou não – ou a estar
sempre conectado, sempre “ligado” ao que acontece em seu entorno quando outras pulsações
[individuais] estão sendo desprezadas em função da composição da cena e/ou do trabalho
coletivo.
A própria noção de “Contaminação” – no que diz respeito a afetar-se pelo outro e
“jogar o seu jogo” – mostra-se objetivante: de repente não está sendo uma contaminação de
fato, mas uma necessidade de contaminar que se antecipa ao contaminar-se. O senso de
contaminação mostra-se prosaico pois já está se encaminhando para o lugar-comum. Em
termos de dinâmicas corporais, por exemplo, poderíamos novamente citar o exercício
“Mapa” para argumentar que em muitos casos os atores apenas se deslocam no espaço
conectados um aos outros mas não necessariamente estão afetados; absorvem os movimentos
que são propostos mas não estão precisamente atravessados pelas pulsões que circulam,
partem para certos universos narrativos sem que antes o discurso dramatúrgico se apresente
com clareza e/ou potência necessária(s) para se tornar espetacular.
A própria prática engendrou um hábito que, talvez inesperadamente ou contra a
vontade, opera certo tipo de autoridade ou hierarquia que, por vezes, domina a experiência
improvisacional, tirando-a das ocorrências subjetivas para a objetividade pura e simples da
cena.
Podemos dizer que uma das estratégias de desestabilização deste tipo de controle seja
a importância em se trabalhar a sensibilidade para perceber quando há um desejo particular
do ator por investigar suas singularidades para que o movimento não esteja pelo movimento,
mas que se torne afetação, antes da contaminação. Contaminar não é afetar, necessariamente.
Percebe-se que, às vezes, o ator está manifestando o desejo de investigar determinada
corporeidade em detrimento da contaminação, mas como contaminar tem se exercitado como
uma necessidade, o investigar as necessidades não está gerando intensidades.
E como a Espetacularidade é um dos objetivos fundantes da pesquisa a partir das
experiências improvisacionais, às vezes é realmente necessário saltar algumas etapas para
que a busca individual não fique ensimesmada.
Mas é certo que, em dado momento, há que se abandonar determinados
pressupostos... Para que a cena se crie e seja potencializada enquanto Espetacularidade, não é
preciso estar junto o tempo todo com o corpo do outro, trabalhar sempre em conjunto, estar
sempre “em cena”, etc. O exercício da criação de um espetáculo a partir da improvisação cria
este falso entendimento de que todos os atores devem estar na cena sempre.
Naturalmente, surgem diversas cenas paralelas que, tal qual a maioria dos jogos de
improvisação, acabam por poluir ou dificultar a elaboração espetacular. Apesar disso, há um
constante olhar para tais ocorrências de modo a possibilitar que os atores criem estratégias
não-convencionais de desencadeamento da cena, aproveitando e potencializando as
dinâmicas corporais, os discursos (verbais ou não) e as relações que vão se construindo na
conformação da cena enquanto espetáculo.
Certamente, por fim, tais estratégias valem-se de uma subjetividade muito grande dos
atores e, em termos de acabamento, deixam a desejar certa fluência na leitura do espectador
por se tornar, geralmente, muito abstratas, posto que as experiências improvisacionais vividas
pelo Grupo Tosco são singulares e irrepetíveis.
Costumamos acreditar que não é possível calçar um sapato apertado depois de ter
feito uma longa caminhada com ele. Surgem calos, os pés doem, os dedos se dobram... Faz
parte, também, desta figura de linguagem a ideia de que só calçando um sapato apertado é
que temos consciência dos pés, para cuidar onde se pisa.
No caso do Tosco – Grupo de Improvisação e Espetacularidade, não trata-se de uma
metáfora pejorativa. É mais como uma “nota mental” que nos dá suporte para seguir com a
busca, apesar das dificuldades ou das complexidades [que são muitas].
Não é um sapato apertado no mau sentido.
É um sapato apertado pois já não cabem nele tantos pressupostos.
É um sapato apertado pois já não cabe ali tanta experiência.
É um sapato apertado pois queremos muito calçá-lo – e tanto o queremos, que nos
esprememos nele para seguir caminhando.
Mas calçamos este sapato. E propositalmente apertado para que possamos lembrar, a
cada passo, que ele está ali.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Adriana. Imagens como acontecimento: dispositivos do corpo,


dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA, 2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1.
Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. 2ª Edição. São
Paulo: Ed. 34, 2011.
LIMA, Tatiana Mota. A noção de escuta: afetos, exemplos e reflexões. In: Revista do
LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, n. 2, nov. 2012.
Disponível em:
http://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/viewFile/149/148.
Acessado em: 07/07/2014.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador:
EDUFBA, 2008.
SOMBRA, José de Carvalho. A subjetividade corpórea: a naturalização da subjetividade na
filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
Tema: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

TRÊS OLHARES PARA O ESPAÇO NA CENA

Daves Otani (Bolsa CAPES Doutorado e Escola Superior de Artes Célia


Helena; orientadora: Prof.ª Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida;
Instituto de Artes; UNICAMP).

O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se


dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.328).

O que importa para a orientação do espetáculo não é meu corpo tal


como de fato ele é, enquanto coisa no espaço objetivo, mas meu corpo
enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo “lugar”
fenomenal é definido por sua tarefa e sua situação (MERLEAU-
PONTY, 1999, p.333).
Maurice Merleau-Ponty, em “A Fenomenologia da Percepção”.

O espaço na cena, os espaços da cena. A cena se dá em um espaço


externo (1): em um prédio adaptado, em um teatro propriamente dito, em uma
sala; são diversas possibilidades. Esse espaço ganha um novo sentido na
medida em que olhamos para ele como um espaço da cena, ele é “um meio
pelo qual se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.328) criar um jogo de
imaginação; ou seja, se estabelece uma nova dimensão do espaço quando
atores e plateia convencionam vivenciar o universo do teatro nesse ambiente.
Importante no presente olhar sobre a cena é também o espaço imaginário da
fábula (2). O espaço imaginário é uma circunstancia que deriva da fábula, o
lugar em que está o ator nessa circunstância fictícia. Proponho, ainda, o
espaço interior do ator (3), onde se processa a ação interior, como caracterizou
Stanislavski, que define a ação como interior e exterior1. O espaço interior, além
de subjetivo, psicológico, é também um espaço fisiológico, ele é marcado pela
biologia do ator, é sangue, veias, fluidos, é o lugar da experiência das
sensações vivas; dos sentimentos, das imagens. Foi a partir da percepção e da
observação do meu processo de atuação na “Boa Companhia2” que classifiquei
o espaço nestas três formas: externo, imaginário e interior. Esta classificação é
resultado direto de uma vivência que provocou a necessidade de adaptar-se a
cada diferente local (inúmeros e diversos) que os espetáculos se
apresentavam. Portanto, se faz necessário manter-se fiel às bases da atuação

1
Naturalmente o elo entre o corpo e a alma é indissolúvel. A vida de um gera a vida da outra, e vice-
versa. Em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação
interior, alguns sentimentos. Assim é que são criados os dois planos da vida de um papel, o plano
interior e o plano exterior. Estão entrelaçados. Um propósito comum os aproxima ainda mais e reforça o
elo inquebrantável que há entre os dois. STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução
de Paulo de Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P. 270.
2
“Boa Companhia” (www.boacompanhia.art.br) é o grupo teatral no qual atuo desde 1992 (desde a
Graduação em Artes Cênicas na UNICAMP), como ator e gestor. Dirigido artisticamente por Verônica
Fabrini e sediado em Barão Geraldo o grupo é também formado atualmente pelos atores Alexandre
Caetano, Eduardo Osorio e Moacir Ferraz. Realizei com o grupo mais de 20 peças como ator, entre elas,
“Primus”, „Portela, patrão; Mário, motorista” (também diretor em parceria com Eduardo Osorio e co-
direção de Verônica Fabrini), “O Artista da Fome”, entre muitas outras.
e, ao mesmo tempo, estar aberto a especificidade de cada novo espaço
externo, tal necessidade concreta é que edifica a reflexão sobre os espaços.
Merleau-Ponty diz, na afirmação acima, que o “espaço não é o ambiente (real
ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pela qual a posição das
coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 328). Ao espaço físico,
referente às condições do lugar enquanto arquitetura; que torna possível a
posição das coisas palpáveis chamo de espaço externo (1). As reflexões sobre
esse aspecto se orientam primordialmente pela ocupação coletiva,
coreográfica, e relaciona-se à memória seletiva espacial. O espaço imaginário
(2) está de forma intrínseca ligado ao espaço interior (3), por depender da
relação interior do ator com a circunstância do acontecimento cênico, mas
concerne também a um aspecto coletivo; é o espaço onde os atores estariam
se fossem3 esses personagens. O espaço imaginário não é um espaço
permanente de referência para o ator no momento da atuação, ele diz respeito
à circunstância e gera elementos que podem alimentar a imaginação em lapsos
instantâneos, ou como recurso de concentração e prontidão, por exemplo,
como retomada da memória das circunstâncias. Como ator percebo que, em
momentos pontuais, retomo a atenção ao espaço imaginário, tal retomada me
permite reconstruir minha atenção na cena. Tal classificação, a meu ver, deriva
do conceito stanislavskiano do círculo de atenção:

A ideia desse elemento veio da comparação com certas características


da nossa visão. O olho humano abrange um campo de visão de quase
180 graus. É fácil constatar isso na prática. Estendam os braços para
frente e depois lentamente, pouco a pouco, afastem as mãos uma da
outra. [...] Nessa posição, se quiserem ver em detalhes as suas mãos,
isto é, se prestarem muita atenção às mãos, constatarão que deixarão
de enxergar o que está a sua frente. E, pelo contrário, se prestarem
muita atenção ao que se achar na sua frente, a visão das extremidades
quase desaparecerão (KUSNET, 1992, p. 49).

Na busca por uma reflexão que parta da definição de Kusnet para criar
questões próprias, vejo que voltar a atenção ao espaço imaginário é uma
possibilidade de concentrar-se na circunstância, no sentido de aguçar a
sensação coerente com a cena. Assim, em momentos em que houver
elementos que tendam a dispersar a atuação (lapsos de desconcentração de
um ator, pequenos imprevistos na cena ou na plateia), a retomada da sensação
do espaço imaginário pode reconectar o ator na cena. É um fator que pode
estimular a recuperação do ritmo cênico do ator, inclusive, para ajudar na
reconstrução da atenção coletiva. Seria um “círculo de atenção interior” a partir
de um dado já estruturado; por isso, improvisar como se estivéssemos no
espaço imaginário da fábula são maneiras de proporcionar materiais para o
ator, eventualmente, recorrer diretamente a tais sensações para reestabelecer
3
Mal havia pronunciado o “se” mágico e senti como se alguma coisa me tivesse atingido pelas costas.
Comecei a correr, mal sabia o que estava fazendo, e de repente me achei dentro do meu quarto de hotel
imaginário. STANISLAVSKI, Constantin. A criação do papel, op. cit., p. 265. Stanislavski, em suas
principais obras, constantes de nossa bibliografia, define o mágico se fosse como um recurso para agir na
situação imaginária da personagem: o que eu, ator, faria, se fosse essa personagem, nessa situação. Nesse
caso nos referimos a uma intenção coletiva de criar um espaço imaginário, pois em “Primus”, todos os
atores são o mesmo personagem, na maioria das vezes, na mesma situação; embora cada ator tenha sua
própria imagem e seu próprio espaço interior, o estímulo para a improvisação é de um mesmo espaço
imaginário.
seu espaço interior. O espaço interior é a terceira maneira de olhar para o
espaço da cena que proponho.
Esse terceiro espaço, o espaço da imagem interior do indivíduo, é a
experiência subjetiva do intérprete; uma subjetividade que se liga aos objetivos
da personagem e da encenação; é um espaço psicofísico onde se processam
as memórias pessoais e coletivas, as lembranças, a poesis de cada um, lugar
da carne e do espírito do ator, é a morada da imagem interior. O espaço interior
é o lugar da potência íntima, é onde se dá a manifestação única do indivíduo,
espaço da imaginação do ator, onde ele processa sua pessoalidade. O ator
deve encontrar esse lugar em si mesmo, a cada montagem, com sua temática
e matrizes específicas. No processo de improvisação, as portas desses
espaços se abrem e o ator penetra em seus próprios ambientes secretos,
encontra atalhos, constrói caminhos, esculpe as chaves que voltarão a
conduzi-lo aos seus domínios.
Importante é, sobretudo, compreender cada um desses “espaços” como
um “lugar fenomenal cuja virtualidade de um corpo o define pela sua tarefa e
situação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 333). Esses espaços existem como
propósito de viver o teatro, a intenção de imaginar um universo poético, de
jogar este jogo. No espaço externo os atores se colocam para viver uma
experiência imaginária, que supõe um espaço imaginário. Através de seus
espaços interiores os atores dão à experiência contornos íntimos, afetivos, no
entanto, de indivíduos que compõem um coletivo.
A tarefa e a situação dos que estão envolvidos no fenômeno conectados
à tarefa e à situação do ser imaginário motivam as conformações espaciais. O
que Merleau-Ponty chama de tarefa e situação, como definidores do espaço,
em afirmação citada4. No caso do ator em cena, relaciona-se com o que
Stanislavski nomeia de objetivo e circunstância5. Assim, o ator definiria o lugar
fenomenal do ser ficcional baseado na circunstância (situação) e no objetivo
(tarefa). Essa conexão (tarefa/ situação e objetivo/ circunstancia), na
improvisação, permite que se inaugure uma maneira de abordar o espaço e
suas características e que se inaugure o lugar fenomenal da cena – uma fusão
do espaço real, do espaço imaginário e do espaço interior. A abordagem ativa
do texto de referência de uma montagem (análise ativa) estabelece uma
ocupação do espaço externo a priori. Esse “desenho espacial” gerado
proporciona uma forma concreta de lidar com o conflito e determina, em certa
medida, uma atitude dos atores em relação às personagens, visto que opera
nas relações tarefa/situação e objetivo/circunstância.
Eugenio Kusnet apontou a associação dos conceitos de Stanislavski às
pesquisas científicas ligadas ao estudo do ser humano e de seus processos
perceptivos, como pode-se ver, de forma semelhante, na obra de Merleau-
Ponty:

4
Idem, ibidem, p. 328.
5
Nessa comparação, a tarefa seria a ação que o personagem realiza para conquistar seu objetivo,
mediante a situação / circunstância em que ele se encontra; essa fusão entre tarefa e situação é elevada a
um grau de complexidade que envolve o objetivo dos atores e o objetivo da encenação. Uso esse paralelo,
entretanto, a tarefa, no âmbito da conceituação de Stanislavski, não é, necessariamente, a ação. A tarefa é
o que a personagem faz, sem, necessariamente, traduzir a complexidade de sua ação maior. Por exemplo,
o personagem lava louça, essa é sua tarefa, contudo, sua ação é mostrar para alguém que também ajuda
nas tarefas domésticas, sua ação é mostrar-se colaborativo, e não apenas lavar louça. Para melhor
entendimento desses conceitos ver STANISLAVSKI, Contantin. A criação do papel, 2003, Op. cit.
A psicologia moderna praticamente confirmou o Método de
Stanislavski, corrigindo apenas a sua terminologia: o que
Stanislavski chamava „Circunstâncias Propostas‟, na linguagem
dos psicólogos, é chamado de „Situação‟; o termo „objetivo da
personagem‟, na psicologia é „necessidade‟, o mágico „SE
FOSSE‟ é „Atitude Ativa‟ na psicologia e, finalmente a fé cênica
de Stanislavski é equivalente a „Instalação” (KUSNET, 1992, p.
58).

Tais conceitos, tanto vindos do sistema de Stanislavski quanto da


fenomenologia fundamentam esta reflexão, porém, é importante buscar um
jeito próprio de articular tais conceitos em acordo com cada contexto de
trabalho. Portanto, embora as terminologias se diferenciem, é possível localizar
os princípios e perceber que as pesquisas de Stanislavski dialogavam com o
universo dos estudos do comportamento humano vigentes no seu tempo.
Compreende-se, desse modo, que a importância de sua obra está ligada a um
movimento histórico. Stanislavski trouxe o princípio da autonomia do ator na
criação cênica, a análise ativa, pressupõe, antes de tudo, o papel central do
ator no ato criativo.
Ressalto que a abordagem ativa do texto estabelece uma ocupação do
espaço externo a priori. Gera-se, desde o princípio, um desenho pelo espaço.
Esse “desenho espacial” proporciona uma forma de lidar com o conflito e
determina um caráter na ação dos atores. Por meio da exploração do espaço,
os atores passam a compreender os conflitos ativamente, e desde os primeiros
trânsitos moldam-se as relações cênicas também a luz da composição
espacial. O espaço é um elemento que ajuda a compor, inclusive, os
pormenores das personagens e suas relações. Por isso, a prontidão no
processo inicial é fundamental, uma atitude que dialoga com o aspecto
inaugural das improvisações primeiras. A atitude é conquistada também
ativamente.
O procedimento improvisacional seria, em si, uma possibilidade de
abordagem prática do conceito stanislavskiano de instalação. Ao colocar-me na
situação do personagem, eu ator, como se eu fosse este personagem, sinto
que posso me alocar nas tensões e potências necessárias à criação cênica.
Acreditar que a improvisação pré-estruturada e o período inicial preparatório da
montagem, se contundentemente experimentado, em sua objetividade retórica
e em sua subjetividade poética, é capaz de gerar o estado potente de
instalação que, a meu ver, é uma manifestação da fé cênica. A instalação se
faz, portanto, numa atitude ativa que é deflagrada na decisão do uso do
recurso “se fosse”. Portanto, no uso do conceito de fé cênica, como o propôs
Stanislavski e como expõe Kusnet, assim como no uso do conceito de
instalação, ou ação instaladora é fundamental que o ator acredite na imersão
do elenco nas matrizes criativas como um ato criador, tenha convicção e fé de
que esse período resulta em uma base de retomada e de mergulho no universo
da cena e que o instala nessa atmosfera da nova peça. É necessário ainda que
essa fé se torne ativa, que instalado o elenco nesse universo imaginário, ele
retome e reconstrua, frequentemente, suas atitudes e ações, voltado a essa
prática que germinou os materiais.
A ocupação do espaço, despertada em tal processo improvisacional, é
uma forma de discurso que tende a perdurar, na medida em que estabelece
algumas características à atuação. As distâncias e as linhas de ocupação do
espaço se caracterizam como traduções dos conflitos, encontrá-las, por meio
da ação improvisacional efetiva, proporciona que esse encontro já traga, por si
mesmo, raízes dos conflitos e das questões da ação imaginária. É salutar que
o ator-criador, amparado pela direção/ encenação, acredite nos primeiros
“passos” do personagem. Os criadores deixam que a memória da primeira
“dança pelo espaço” os conduza suavemente até a futura cena.
Essa geração de formas de ocupar espaços via a improvisação é um
recurso que ativa a memória em dois níveis, a novidade radical do instante,
vivenciada no processo criativo, fornece o impulso para a rotina da repetição, o
hábito como assimilação rotineira de uma novidade (BACHELARD, 2007, p 67),
indicando possibilidades de geração de materiais não programados
inicialmente.
Os trânsitos espaciais gerados durante o período de montagem
possibilitam aos atores uma superfície sólida, o “chão” a que já me referi, para
retomar a novidade do instante criativo e reapresentar o frescor da cena, como
em sua origem.
Essa novidade radical começa a ser semeada no envolvimento total dos
criadores no contato inicial com o universo do conto, semelhante ao que
Stanislavski diz sobre a primeira leitura:

As primeiras impressões têm um frescor virginal. São os


melhores estímulos possíveis para o entusiasmo e o fervor artístico,
duas condições de enorme importância no processo criador.
Essas impressões são inesperadas e diretas. Muitas vezes
deixam no trabalho do ator uma marca permanente. São livres de
premeditação e de preconceito. Não sendo filtradas por nenhuma
crítica, passam desimpedidamente para as profundezas da alma do
ator, para os mananciais da sua natureza, e muitas vezes deixam
vestígios inextirpáveis, que permanecerão como base do papel, o
embrião de uma imagem a ser formada.
As primeiras impressões são...sementes.(...) É tanta a força, a
profundidade e o poder de permanência dessas impressões, que o ator
deve ter especial cuidado ao travar conhecimento pela primeira vez
com a peça.
Para registrar essas impressões, é preciso que os atores
estejam com uma disposição de espírito receptiva, com um estado
interior adequado (STANISLAVSKI, 2003, p. 21-22).

O procedimento da aproximação à temática via a ocupação do espaço


externo pode trazer uma profundidade na relação do ator com a encenação,
profundidade nascida da ideia de cuidado, concentração e plenitude nos
contatos iniciais; é um modo de proceder que, acredito, pode ser utilizado em
processos criativos diversos. Sobretudo por meio de uma atitude seletiva
consciente por parte da direção e dos atores, nos momentos subsequentes à
prática improvisacional.
Esse procedimento requer um estado de atenção, um estado produzido
em uma ação instaladora – a disposição e disponibilidade criadora do ator no
processo criativo –, tal atitude é gerada a partir do momento em que o ator se
coloca na situação imaginária dentro deste processo. Segundo Kusnet,
comentando o livro A imaginação como fator de comportamento, do psicólogo
R. G. Natadze:
Ele define esse termo como segue: “instalação é o estado de prontidão
do sujeito para a execução de uma ação adequada, isto é, a
mobilização coordenada de toda a sua energia psicofísica, que
possibilita a satisfação de uma determinada necessidade dentro de
uma determinada situação” (NATADZE apud KUSNET, 1992, p. 54).

O espaço interior tem papel fundamental na novidade que resulta dessa


ação. Nele, a experiência é vivenciada e retomada. Diferentemente do espaço
externo e suas variáveis, o espaço interno guarda certa rigidez, as sensações
se repetem em áreas específicas do corpo. Certo é que a imagem que percorre
esse espaço é reconfigurada, posto que revivida. A essência do indivíduo se
abre à variação dessa imagem que o preenche. Um modo pessoal de
curiosidade, um jeito original de afetar-se, uma maneira particular de
experimentar as sensações da vida. Ainda que suscetível a transformações, a
essência individual se afeta mais lentamente, talvez no longo transitar das
idades e das condições gerais de cada vida. No entanto, o homem sente,
segundo creio, nas mesmas vísceras, outro amor e outro ódio. Cada dor e cada
alegria tem seu lugar em cada corpo. Vejo, na atuação, a carne como endereço
do habitual, uma mecânica de sangue e fluidos que percorre os mesmos
atalhos, dessa forma, a experiência instantânea, numa ação estética, revive-se
e atualiza suas expressões subjetivas em iguais locações de um mesmo corpo.
A subjetividade da imagem tem a mobilidade para reverberar diversamente no
seu espaço original, como que continuando um movimento interrompido, do
mesmo ponto, em um ritmo que reocupa o espaço da sensação sentimento: “A
energia não passa de uma grande memória” (ROUPNAEL apud BACHELARD,
2007, p.66). “Com efeito, ela só é utilizável pela memória, ela é a memória de
um ritmo” (BACHELARD, 2007, p. 66). O ator, corpo e espaço da imagem,
lugar de transição, percorrendo o espaço externo, adequando a sua corpografia
(o desenho em si mesmo) e coreografia (o desenho coletivo no espaço),
encontra a dimensão conhecida da imagem em si.
As variáveis do espaço externo são compreendidas via a ocupação. A
ocupação é o que se repete, adaptando o espaço externo ao movimento
estabelecido da cena. Diferentes distâncias e diferentes dimensões que são
reorganizadas. O espaço interior, lugar do sentimento, dialoga dinamicamente
com essas variações, torna o “espaço” um “lugar”. Na constância do espaço
interno – ainda que afetado pelos elementos da atualidade –, esse diálogo
dinâmico gradua as forças da imagem que o ocupa, por isso a experiência da
intuição instantânea funciona como o agente inspirador que, via a memória,
“reaplica” a imagem mediante novas tensões.
Estes três olhares sobre o espaço buscam melhor compreender os
procedimentos do ator frente à cena. Pretendem apontar formas de
problematizar a questão do espaço e, sobretudo, trabalhar com a ideia de que
o conceito de espaço nasce de uma fusão do ator com seu entorno e com sua
imaginação, não se restringindo a uma questão de compartimentos, mas, ao
contrário, ampliando para uma imagem de totalidade no fenômeno da cena.
Esta reflexão, embora organizada inicialmente como parte de meu
doutoramento na UNICAMP, no Programa de Pós-graduação em Artes, é
alimentada pela minha prática como professor na Escola Superior de Artes
Célia Helena, onde atualmente investigo a improvisação e suas repercussões
na formação do ator, tanto na graduação como na Pós-graduação.
BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A intuição do Instante. Tradução Antonio de Pádua


Danesi. Campinas: Verus Editora, 2007.

KUSNET, Eugenio. Ator e Método. Rio de Janeiro: Hucitec, 1992.

MERLOT-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. 2ª ed. Trad. Carlos


Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Trad. Paulo de


Pontes Lima, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004.

_______________________ A criação de um papel. Tradução de Paulo de


Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

_______________________ A Preparação do ator. Trad. Pontes de Paula


Lima – 19ª Ed. – Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______________________ A criação do papel. 9ª ed. Trad. de Pontes de


Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______________________ El trabajo del actor sobre sí mismo: el trabajo sobre


si mismo en el proceso creador de las vivencias. Trad. Salomón Merener.
Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1980 (Obras completas, 1).
CIRCO-TEATRO
O TRABALHO DO ATOR DEBAIXO DA LONA: ASPECTOS DA
ESPACIALIDADE CIRCENSE E DA INTERPRETAÇÃO NO CIRCO-TEATRO
JANNUZZELLI, Fernanda (Bolsa de Mestrado FAPESP). Mario Santana; Instituto de
Artes; Universidade Estadual de Campinas.

O fenômeno teatral é passível de ser executado nos mais diversos espaços.


Das tradicionais salas à italiana aos espaços alternativos, como galpões, ruas e praças, o
fenômeno ocorrerá desde que haja a presença de, no mínimo, um ator e um espectador.

Pode o teatro existir sem figurinos e cenário? Sim, pode. Pode existir sem a
música acompanhando a trama? Sim. Pode. Pode existir sem efeitos de luz?
Sim, pode. E sem o texto? Sim; a história do teatro confirma isto. Na
evolução da arte teatral o texto foi um dos últimos elementos a ser
adicionado. (...) Mas pode o teatro existir sem o ator? Eu não conheço nem
um exemplo disto. Alguém poderia mencionar o teatro de bonecos. Mesmo
neste exemplo, porém, o ator encontra-se atrás da cena, embora seja de um
outro tipo. Pode o ator existir sem audiência? Pelo menos um espectador é
preciso para fazer disto uma performance (GROTOWSKI, 1987: 32).

Cada tipo de espaço cênico gera um determinado número de áreas de


atuação e necessita de técnicas específicas de encenação e interpretação. O espaço
escolhido, em consonância com o jogo cênico nele instaurado, definem o tipo de relação
que será criada entre atores e plateia. Segundo Rubens Brito,

É no ato da concretização do espaço cênico que todos os sistemas


significantes do espetáculo – texto, cenários, figurinos, maquiagem, música,
dança, interpretação, etc – precipitam-se no espetáculo, o qual molda o
próprio espaço ao mesmo tempo em que por ele é moldado (BRITO, 2004:
98).

Este estudo visa investigar as características encontradas nas encenações de


peças teatrais no espaço cênico específico dos circos de lona de médio e grande porte,
da região Sudeste e, especificamente, do estado de São Paulo. Indo de encontro ao
explicitado por Brito, analisarei como os elementos relacionados ao trabalho do ator do
circo de lona são moldados, ao mesmo tempo em que moldam este determinado espaço
cênico.
O circo de números de variedades que povoa o imaginário das gerações
mais recentes constitui, na verdade, uma das diversas formas e configurações que o
espetáculo circense pode assumir. Até meados dos anos 1960, a maior parte dos circos
brasileiros eram circo-teatros e os espetáculos eram divididos em duas partes:
primeiramente, no picadeiro, eram executados os números de variedades – malabares,
acrobacia, mágica e entrada de palhaços, por exemplo – e em seguida representava-se,
sob um palco, a peça teatral do dia. Além disso, era muito comum a presença de
convidados especiais, como cantores de sucesso da época e até mesmo a execução de
sorteios, bingos e lutas livres.
O circo-teatro, que ainda conta com representantes na atualidade, originou-
se da transformação e aprofundamento da linguagem teatral que faz parte do circo
chamado de “moderno” desde sua origem e pode ser compreendido como a
representação de peças teatrais de diversos gêneros como parte integrante do espetáculo
circense.
A lona exerce influência determinante sob o espaço cênico e sob o modo
como se dá a configuração estética desta vertente da teatralidade circense. Desse modo,
apesar do espaço cênico utilizado ser, comumente, o tradicional palco italiano, o fato
deste estar armado debaixo de uma lona faz com que especificidades surjam,
modificando a relação dos intérpretes com o espaço da cena e com os espectadores.
Para Carlos Alberto Soffredini – fundador do Grupo Mambembe, grande
pesquisador, ator, autor, dramaturgo e diretor brasileiro, que estudou profundamente as
manifestações cênicas populares através de intensa pesquisa nos circo-teatros da
periferia de São Paulo – a estética e linguagem do circo-teatro estão tão ligadas ao fato
destas serem executadas neste ambiente específico, que ele chega a afirmar que

Aqueles dramas, aquelas comédias, aquelas chanchadas, aquelas variedades


só tem sentido lá, debaixo da lona, nos palcos altos e de madeira carcomida,
vistos dos puleiros ou das cadeiras duras sobre a serragem... Como de resto
toda a arte popular, esse Teatro só tem sentido naquele clima, que é
absolutamente intransportável i.

Soffredini está falando na passagem anterior sobre o chamado circo-família


ou circo tradicional, foco deste estudo.
A utilização dos termos “circo tradicional”, “circo novo” e “circo
contemporâneo” gera grandes discussões na atualidade (BOLOGNESI, 2006),
acarretada por uma disputa política e de saberes. Neste estudo utilizarei o termo “circo
tradicional” partindo do significado que este tem para os próprios circenses:

(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo
ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de
todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA, 2009: 82).

O que Soffredini chama de “clima absolutamente intransportável” é criado


pela conjunção de uma série de paradigmas, como o próprio processo de formação /
socialização/ aprendizagemii que rege a vida do artista circense, organiza o seu modo de
trabalho e, consequentemente, determina a configuração estética do espetáculo (SILVA,
2007).
No caso dos circos tradicionais, os circenses mantêm como característica
herdada dos artistas saltimbancos das feiras europeias, incorporados ao “circo
moderno”, “a transmissão oral do conjunto de saberes e práticas de geração a geração;
saberes que davam conta da vida cotidiana, capacitação e formação dos membros do
grupo” (SILVA, 2009: 25). Esta formação ampla e integrada é responsável por produzir
um determinado tipo de espetáculo que se revela “como o resultado visível de um
longo, rigoroso e complexo processo de formação artística” (ABREU in SILVA, 2007:
14).
Porém, este “clima absolutamente intransportável” também é criado pela
própria presença física da lona, que não à toa, povoa o imaginário coletivo quando
pensamos em “circo”, juntamente com o cheiro da serragem e da pipoca, o gosto da
maçã do amor, e assim por diante.
Além disso, a lona exerce influência direta sobre o processo de
comunicação expressiva e poética do espetáculo de circo-teatro, a preparação vocal e
corporal dos atores e também os procedimentos de composição das personagens.
Diferentemente do teatro de rua, que propõe uma ruptura lúdica em meio ao
cotidiano da cidade e feito para que qualquer pessoa que estiver passando ao acaso se
interesse e pare um pouco para ver, o circo-teatro de lona se assemelha, neste ponto,
mais às salas teatrais convencionais, pois o espectador vai até esta edificação – no caso,
não tão edificada – ciente de que ocorrerá um fenômeno teatral.
Assim como as salas convencionais, no circo-teatro comumente também há
a clara divisão entre palco e plateia. Porém, o ambiente da lona é inegavelmente mais
dispersivo, seja pela falta de isolamento acústico e, consequentemente, pela
interferência de ruídos externos, pela venda de quitutes, pela disposição muitas vezes
plana das fileiras da plateia, que obriga os espectadores a se esquivarem um dos outros à
procura de uma boa visão do palco ou pela própria acústica não privilegiada, que
dificulta o entendimento do texto dito pelos atores.
Entretanto, essa mesma dispersão contribui para que o espectador se sinta
mais à vontade, permitindo com que ele interfira, muitas vezes, diretamente no
espetáculo. Nas visitas recentes ao Circo de Teatro Tubinho – um circo de médio porte
– pelo interior do estado de São Paulo, muitas vezes pude presenciar espectadores que
repetiam em voz alta os bordões lançados pelo palhaço Tubinho e também outros que
dialogavam com as personagens em meio à representação, com direito à vaia aos vilões,
aplausos ao palhaço e assobios às atrizes bonitas.
O circo abre margem para qualquer tipo de interferência, de forma que as
intervenções mais agressivas ou exageradas são reprimidas pelos próprios espectadores
que desejam continuar acompanhando a encenação. O ator circense é apto a incorporar
estes estímulos, fazendo deles um comentário ou uma boa piada; além desta agilidade
de raciocínio e prontidão física, o ator executa essa e todas as suas demais ações sem
perder o controle sob a plateia, que tem suas reações cuidadosamente estudadas e
direcionadas.
E mais: como o ambiente é dispersivo, o espectador, interessado em
acompanhar a história que está sendo contada, precisa fazer um esforço extra de
concentração para tentar captar a maior quantidade de informações possíveis. Desse
modo, ao prestar mais atenção para vencer as condições adversas, o espectador é
envolto mais intensamente pelo fenômeno teatral, de modo que ele não assiste
passivamente à história que lhe é contada; ou seja, ele se coloca numa posição de
recepção ativa que acaba contribuindo, também, para que ele se sinta participando da
história e livre para expressar suas reações.
A lona de médio e grande porte pressupõe também uma grande área de
atuação e uma grande área destinada à plateia. Desse modo, para uma representação
captar e prender a atenção de mais de quinhentas pessoas e chegar até a famosa
“velhinha surda da última fileira” é condição sine qua non que esta esteja alicerçada em
uma linguagem “exagerada”, que comporte ações físicas ampliadas.
No circo-teatro, portanto, o acento recai sobre a encenação e interpretação
dos atores. Esta linguagem “exagerada” pode ser definida ainda como uma forma de
representação com alto teor de teatralidade, “o tão cantado Teatro da magia teatral (...) é
de mentira, mas é como se fosse de verdade. É de papelão mas é pedra. É irreal mas a
gente acredita. A gente acredita” iii.
A máxima que rege o espetáculo circense consiste, sem dúvida, em agradar
o espectador. Este termo, que é comumente usado pelos próprios circenses e representa
fundamentalmente a síntese do ideal do espetáculo circense, não deve ser visto como
algo pejorativo, e sim como nomeador de um conjunto de elementos estruturais desse
ofício.
O artista de circo nunca perde o público de vista, de modo que tudo é feito
para que ele deseje retornar na noite seguinte. Nas palavras de Soffredini:

(...) o espetáculo de circo-teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito
para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas
especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem
para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: ele é feito para
agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso
na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte
(SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36).

Para prender a atenção da plateia, o circo sempre utilizou de diversos


recursos, principalmente visuais e sonoros, que visam despertar a sensibilidade e,
consequentemente, a empatia da plateia. Fernando Neves, ator, diretor, importante
pesquisador do circo-teatro e descendente da família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão
Arethuzza, costuma dizer que “o circo aproveita tudo, retrabalha e devolve com cores
fortes... o que os olhos veem o coração sente!”.
Desta maneira, as companhias de circo-teatro desenvolveram um olhar
apurado para os recursos visuais, criando encenações recheadas de luxo e requinte.
Antônio Santoro Junior, também da família do Pavilhão Arethuzza, descreve que

Como cenógrafos e artistas plásticos, o pessoal do circo montava


adequadamente: bosques, jardins, interiores de palácios, residências inclusive
com escadarias, beira de rios, ruas de várias partes do mundo, como Paris,
Roma com pedras e chafarizes, Londres com a ponte do Tâmisa onde os
atores podiam até caminhar, convés de navios, inclusive com simulações de
ondas, prisões, torres, masmorras, etc. (SANTORO JUNIOR, 1997: 43).

Em meio à lona de médio e grande porte não há detalhe intimista que


resista, o que torna adequada esta encenação grandiosa. Além disso, não podemos nos
esquecer de que o circo-teatro emerge da tradição circense como o desdobramento da
teatralidade presente no espetáculo de circo desde a sua “origem moderna” com Philip
Astley que, ao incorporar artistas mambembes ao espetáculo de habilidades e destrezas
com cavalos, fez surgir um novo modo de organização do trabalho e configuração do
espetáculo (BOLOGNESI, 2009; SILVA, 2007). Destarte, faz parte da tradição circense
a constituição de estéticas e linguagens não-realistas, de alto cunho teatral e que
explicitam a natureza fantasiosa e fantástica do fenômeno teatral:
Levar o dia-a-dia para o palco, só se for para rir dele, exagerando o seu
absurdo, complicando as peripécias necessárias para vivê-lo, valorizando a
esperteza indispensável para encará-lo. Iluminando-lhe, portanto, o lado
fantástico. (...) Nós achamos que Teatro é a hora de encher os olhos. (...) É a
hora de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum, que esse a
gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles espelhos que fazem a gente rir
se vendo de uma forma inesperada iv.

Condizentes com a estética não-realista, os atores constroem suas


personagens baseados na tipologia inerente ao circo-teatro, característica que sofre a
influência inegável dos antepassados saltimbancos incorporados ao “circo moderno” –
dentre eles representantes da commedia dell’arte –, como também das companhias
portuguesas contemporâneas ao período de consolidação do circo-teatro e que
representavam nos edifícios teatrais, principalmente das capitais.
Além disso, os circo-teatros permanecem semanas e até meses numa mesma
cidade. Para que se mantenham financeiramente, é necessário que a cada dia se
represente uma nova peça. Cada circo conta, portanto, com um imenso repertório de
peças – conhecido entre os circenses como “baú da família” –, que geralmente são
ensaiadas de dia e apresentadas à noite.
Assim sendo, o circo-teatro se fundamentou como um modo de fazer teatral
alicerçado sob uma série de paradigmas que possibilitam a encenação de diferentes
peças em um curto espaço de tempo. Um desses paradigmas reside justamente no fato
da interpretação ser tipificada, o que permite a especialização do ator num determinado
papel, possibilitando que este transite e crie, dentro desta estrutura fixa, nuances e
especificidades para cada personagem de cada uma das dezenas de peças representadas
todas as noites. Este sistema de interpretação fornece uma partitura para cada ator, que
ao mesmo tempo em que limita, amplia as suas possibilidades de criação, pois permite o
trabalho na zona em que o intérprete melhor se expressa.
Os circenses passaram de geração em geração a valorização de qualidades
como criatividade e prontidão para adaptações e improvisações segundo a situação do
momento, além de técnicas que contribuem para o domínio físico e artístico dos meios
de expressão do corpo e a noção da necessidade do desenvolvimento de um repertório
de cenas prontas – os lazzi. A liberdade artística proveniente da possibilidade de se
improvisar, tendo como parâmetro as características do seu tipo específico, unida ao
exercício contínuo da representação de uma peça diferente todos os dias resultou como
uma fórmula eficaz na configuração deste sistema de representação.
Os tipos são distribuídos baseados no que Fernando Neves define como
temperamento e Soffredini como personalidade e geralmente possuem um padrão
biótipo. Soffredini afirma ainda que após se romper a primeira camada do tipo, pode-se
perceber algo a mais no ator que o representa, no sentido de que o tipo é mais do que
um biótipo ou personalidade, mas sim um verdadeiro estado-de-espírito deste atorv.
Desse modo, a personagem entra em cena e se revela imediatamente para o
público, por meio da sua composição física, maquiagem, figurinos e cores escolhidas.
Para ocorrer essa revelação absoluta no ambiente dispersivo da lona, o ator precisa estar
alicerçado sob um trabalho de interpretação limpo, direto e contundente, que possui a
clara intenção de atingir um determinado efeito na plateia. Neste sentido, Soffredini
demonstra como a utilização diferenciada do espaço cênico por cada tipo contribui para
a revelação exata deste, bem como para a criação de atmosferas em cena:

Os antigos atores conheciam e aprimoravam uma série de EFEITOS. Eles


sabiam a forma de dizer melhor uma piada, o valor exato de uma pausa, a
maneira de se colocar em cena dependendo do clima a ser criado ou do
caráter a ser revelado. Não é por acaso que o Circo-Teatro ainda conserva
uma fuga central no cenário. Não se trata dessas atuais convenções pobres,
tais como: “a fuga da esquerda leva ao quarto, a do centro à cozinha, a da
direita leva à rua...” Não. Trata-se de uma consciência exata do valor (efeito)
da entrada ou saída de um ator de cena. Cada personagem que entra em cena,
se o ator souber entrar, só pode levar a peteca pra cima. Cada personagem
que sai, se o ator souber sair, deixará a peteca em cima. Se um personagem
tem caráter positivo, se ele “chega”, entrará pela fuga do meio: como num
passe de mágica a figura aparecerá no meio da cena. Da mesma forma, se um
personagem tem caráter dissimulado, se sua ação é sorrateira, ele entra ou sai
pelas laterais. Parece um processo ingênuo, mas o EFEITO é matemático.
Sabe-se que os “vilões dos velhos dramas não só entravam em cena pelas
laterais como cobrindo parte do rosto (do nariz pra baixo) com uma capa
negra” vi.

O espetáculo de circo-teatro sob a lona exige que o ator maximize as


potencialidades de criação do universo sonoro e visual de sua personagem, de forma que
sua voz e seu corpo cumpram tanto as exigências técnicas quanto as expressivas do
processo comunicacional do espetáculo. É necessária, portanto, a presença cênica de um
corpo/voz ampliado, dilatado, de grandes gestos, sempre precisos e limpos.
Alguns circos, como o Circo de Teatro Tubinho, possuem em sua boca de
cena microfones que captam razoavelmente bem os diálogos e falas das personagens.
Apesar deste recurso, para a compreensão do texto por parte de todos os espectadores
presentes na lona, é necessário que o ator amplie a sua projeção vocal, valorizando a
articulação das palavras e elevando a altura da emissão do texto, o que acaba por impor
ao ator outro tempo de enunciação da fala, fato que vai de encontro e realça a linguagem
não-realista instaurada no circo-teatro.
Por trás de toda esta forma estruturada está sempre a intenção vital e
primordial de manter a relação com o público. Os atores de circo-teatro – assim como os
pertencentes a outras formas populares de teatro, como a commedia dell’ arte – sabem
que o contato com o público e a consequente cumplicidade dessa relação são as bases
do jogo teatral.
Segundo Rubens Brito, foi o grupo Mambembe em sua pesquisa pelos
circos-teatros da periferia paulistana, sob a direção de Soffredini, quem descobriu que
havia “um ‘suporte’, um tipo de ‘estrutura’ que formatava, a partir da interpretação, o
próprio espetáculo de circo-teatro. Tratava-se daquilo que o grupo viria a denominar de
triangulação” (BRITO, 2006: 80). Rubens Brito afirma que este mecanismo da
triangulação se dimensiona e se consagra na commedia dell’arte e que o grupo
Mambembe apenas se apercebeu deste mecanismo e lhe deu um nome.
A função da triangulação é colocar o público como centro da representação
e a par de tudo o que acontece com as personagens, podendo encará-las, portanto, com
superioridade. O ator de circo executa a técnica da triangulação com extrema
naturalidade e exatidão e este recurso permite que a divisão espacial entre palco e
plateia se mantenha ao mesmo tempo em que é criado um jogo cênico jogado por atores
e espectadores juntos.
Por fim, menciono a questão de como a margem de instabilidade da lona
pode afetar diretamente um espetáculo. Em uma das viagens ao Circo de Teatro
Tubinho, em uma conversa Pereira França Neto, o palhaço Tubinho, me confidenciou:
“Você devia fazer um estudo de como um espetáculo é modificado quando tem perigo
de tempestade...”. A chuva é temida pelos circenses, pois corre-se o risco de uma
tempestade derrubar a lona – fato que já aconteceu, inclusive, com o próprio Circo de
Teatro Tubinho.
Coincidentemente pude acompanhar nesta mesma viagem a apreensão e
nervosismo de todo o elenco do circo num dia de possível chuva forte. Com o passar do
dia, à medida que ia se aproximando o horário da sessão e, ao mesmo tempo,
aumentando a probabilidade de chuva, o medo de todos os circenses também crescia.
Em todos os lugares do circo e nos trailers o assunto era um só: será que vai ter
tempestade? Destarte, é fato que a circunstância dada do risco de queda da lona
influencia diretamente um espetáculo que ocorre sob essas condições.
Porém, apesar de possuir essa margem de risco, é inegável que, graças à
lona e sua itinerância, o circo-teatro atravessou o país levando a manifestação teatral a
cidades não atingidas pelas companhias convencionais. A despeito disso, por décadas o
circo-teatro foi excluído da história do teatro brasileiro, ignorando-se seu papel
fundamental na consolidação da arte cênica em nosso país.
O circo chegou, já no século passado, a municípios brasileiros em que o
teatro convencional não chegou até hoje. Os circenses abriam caminhos para a
divulgação da arte cênica e também abriam caminhos, literalmente, pelo interior do
país, atravessando e cortando matas com facão, dormindo ao relento nas carrocerias dos
caminhões e se colocando em risco ao atravessar áreas dominadas por tribos indígenas
que penduravam corpos de seringueiros mortos nas árvores como estratégia de
intimidação (PIMENTA, 2005).
Como força motriz para vencer todas as adversidades, os circenses partiam
da premissa básica de que, pra ganhar o pão de cada dia, o artista tem que ir onde está o
povo e que este merece todo o seu respeito, amor e dedicação. Assim sendo,

Milhares de cidades e vilarejos eram visitados pelas companhias de circo-


teatro e, para muitos deles, esse era o único contato com o fantasioso
universo da representação. Mais do que o mérito de ir até o povo, o circo-
teatro tinha o poder de atraí-lo. O conforto e a proteção da mágica lona eram
a versão popular das grandes casas de espetáculos. Até hoje encontramos,
mesmo nas grandes cidades, pessoas simples cuja única experiência teatral se
deu em um circo-teatro. Pessoas que acreditam que o circo é um lugar a que
têm realmente direito de acesso, onde não importa a roupa que vistam ou o
que calcem, tudo se iguala na poeira de serragem (PIMENTA, 2005: 119 e
120).

Encerro aqui, reafirmando a importância do circo-teatro enquanto forma de


expressão artística brasileira, que ao longo dos séculos tem se mostrado de extrema
qualidade artística e eficácia comunicativa.

BIBLIOGRAFIA

BOLOGNESI, Mário. Circo e teatro: aproximações e conflitos. Revista Sala Preta.


São Paulo: Departamento de Artes Cênicas. Escola de Comunicações e Artes.
Universidade de São Paulo, n. 6, 2006.
_____________. Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e
nacionalismo. Revista O Percevejo on line. Rio de Janeiro: Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, v. 1,
2009.
BRITO, Rubens de Souza. O Grupo de Teatro Mambembe e o Circo-Teatro. Revista
Sala Preta. São Paulo: Departamento de Artes Cênicas. Escola de Comunicações e
Artes. Universidade de São Paulo, n.6, 2006.
_____________ Teatro de rua: princípios, elementos e procedimentos – a
contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP). Tese de Livre Docência.
Instituto de Artes. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2004.
GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 3ª edição, 1987.
PIMENTA, Daniele. Antenor Pimenta: Circo e Poesia. . São Paulo: Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2005.
SANTORO JÚNIOR, Antônio. Memórias de um Circo Brasileiro – Circo – Circo
Teatro – Pavilhão Arethuzza. Monografia premiada pelo prêmio Estímulo 96,
Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. São Paulo, 1997.
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no
Brasil. São Paulo: Altana, 2007.
_____________ Respeitável Público... o Circo em cena. Rio de Janeiro: Funarte,
2009.
SOFFREDINI, Carlos Alberto. De um trabalhador sobre seu trabalho. In:
http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini

NOTAS

i
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
ii
Ermínia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de
ligá-las com a conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do
individuo, do artista e do ser social ocorre concomitantemente, dentro de um processo
de aprendizagem integrado.
iii
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
iv
Ibidem.
v
Ibidem.
vi
Ibidem. Grifos do autor.
TEMA: O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO.

TÍTULO: MASCARAMENTO ESPACIAL: UM PROCESSO CRIATIVO


ENVOLVENDO A ESPACIALIDADE CORPORAL DO ATOR.

Autor: Ipojucan Pereira da Silva (Bolsa CAPES – Doutorado; Orientador: Prof. Dr.
Felisberto Sabino da Costa; Universidade de São Paulo; Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas).

A pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo


envolvendo a espacialidade corporal do ator”1 representa a evolução de uma longa jornada
artística de investigação, exploração e ampliação do princípio do mascaramento como
ferramenta de criação para o intérprete. Ela tem as suas raízes na fundação, em 1997, do
Grupo Teatral Isla Madrasta – em atividade até os dias atuais, e do qual sou ator, diretor e
pesquisador –, e iniciou-se como uma proposição artística abrangendo duas vertentes: o
cruzamento de linguagens que fazem uso de uma maior plasticidade física e vocal do
intérprete, tais como Clown, Commedia dell’Arte, Mímica e Teatro de Animação, e o uso
de “objetos inanimados” (máscaras, figurinos, bonecos etc) para mediar a composição de
personas e dinamizar a presença cênica do ator diante do espectador.
Naquela época, o grupo tinha dois eixos de pesquisa: o ator em sua própria
fisicalidade e o ator com o “objeto inanimado” (outra fisicalidade). Era uma busca de um
estado de relaxamento e concentração no qual o intérprete se colocava como observador,
cedendo aos impulsos, e permitindo que o “objeto inanimado” atuasse como o seu mestre e
encontrasse livre expressão por meio do seu corpo. Investigávamos uma espécie de estado
“energético inicial”, que poderia ser chamado de ponto zero, ou neutro, ou ponto de
concentração, que geraria uma presença dilatada responsável pelas ações e pelos
movimentos. Foi nesse processo que surgiu o germe inicial de um pensamento que viria a
extrapolar o trabalho desenvolvido até então com um tipo de máscara mais tradicional – de
cunho antropomórfico e restrita ao rosto – para a ideia do “mascaramento”, relativo às
trocas e fluxos com o ambiente, a partir dos elementos de cena tais como cenários,
iluminação e sonoplastia.
Quando optei por retomar os meus estudos acadêmicos, na pós-graduação em 2005,
estava decidido a dar continuidade a essa exploração da linguagem da forma e do
movimento por meio de máscaras e objetos, objetivando instrumentalizar melhor os atores
no uso de seu potencial técnico. O ponto de partida para pesquisa seria verificar se
interpretar é modificar o estado de energia através do movimento ao se considerar que o
ator é o manipulador das energias latentes da cena (dos bonecos, das máscaras, dos objetos,
do espaço, das formas).
Contudo, antes mesmo de inscrever um projeto no programa de pós-graduação, esta
abordagem, que eu poderia chamar de “pré-histórica”2, evoluiu do interesse pelos processos
de atuação causados pela modificação do estado de energia do ator por meio da máscara e
do movimento, para os processos de atuação do performer, por meio de construção de
personas3 responsáveis pela mediação e dinamização de sua presença cênica. Deste amplo
universo foi feito um recorte para o trabalho da performer brasileira Denise Stoklos, o que
levou à elaboração do projeto definitivo e tema da minha dissertação de mestrado: “O
Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um sistema pessoal de atuação”,
concluída em 2008.
No ano de 2011, com o meu ingresso no doutorado, apresentou-se a possibilidade de
agregar as investigações acerca da atuação performática, desenvolvida no mestrado, aos
questionamentos iniciais sobre o mascaramento, presentes já no começo da minha trajetória
artística. A tese, intitulada “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a
espacialidade corporal do ator”, propõe um trabalho de pesquisa que aborda a ambientação
da cena não como cenografia, mas como um dispositivo para os processos de criação do
ator. A idéia é que as projeções do espaço cênico sobre o corpo do atuante instaurem uma
outra idéia acerca do “mascaramento”, como uma ferramenta de trabalho que amplia o seu
repertório estético e metodológico.
Mas como o intérprete pode se valer desse pensamento sobre o espaço e sobre a
atuação num processo criativo? E como esse ator desenvolve rotinas de trabalho para
alcançar essa competência? O conceito que Francisco Javier (1998) tem sobre a
espacialidade da cena como a primeira realidade sensível a partir da qual se constroem
todos os signos do espetáculo, nos auxilia nessa reflexão da ambientação cênica como um
princípio norteador do processo de criação a partir do espaço, tornando-o a matéria prima
na qual o artista esculpe as suas idéias e emoções, e imbricando dessa maneira a relação
corpo/movimento/ambiente no ato criativo.

Mascaramento Espacial I: processos de abstração da ação física e da


espacialidade.

Matteo Bonfitto (2002), no livro “O Ator Compositor”, estabelece nas suas


proposições que o corpo é o material primário por excelência a ser trabalhado pelo atuante
para que se possam desenvolver as ações físicas – elemento básico de todo o fenômeno
teatral –, e que essas são empregadas na composição de partituras que auxiliam o intérprete
no desenvolvimento e organização do seu discurso cênico. Devido à necessidade do
emprego de elementos concretos que possam ser manipulados e reproduzíveis na confecção
dessas partituras, a ação física deve ser também um material tão palpável e operacional
quanto o corpo. Consequentemente isso requer, segundo Bonfitto, que já na construção
dessas ações sejam empregadas matrizes efetivas – capazes de sensibilizar o corpo do ator –
, assim como procedimentos tanto para a criação quanto para a organização dessas ações
físicas em partituras executáveis pelo intérprete.
Sendo assim, ao ser proposta a utilização do espaço como uma dessas matrizes,
automaticamente passamos a lidar com a problemática de operacionalizar conceitos
espaciais abstratos em oposição à materialidade corporal do ator. Para promover o trânsito
entre tais materiais de naturezas tão diversas e propiciar o surgimento de um princípio
criativo a partir do diálogo entre o orgânico e o não-orgânico, passaremos a pensar não em
opostos, mas sim no hibridismo expresso na ideia de levar o ator a “ver” o espaço como
consequência da sua própria espacialidade corporal. Com esse horizonte em mente – de que
“ao realizar as suas ações, o [...] [intérprete] gera uma energia espacial que vai moldando o
espaço cênico4” (IRAZÁBAL, 2004, p. 5, tradução nossa) –, tanto o impacto do movimento
sobre o espaço quanto o seu revés, isto é, a forma como o ambiente provoca deslocamentos
e reorganizações na dinâmica daquele que se move no seu interior, passa a ter como
epicentro a corporeidade e suas interações com os objetos de cena, com os diferentes planos
que o corpo ocupa, com as dinâmicas rítmicas, com as imagens físicas em constante fluxo e
transformação.
Ao se pensar na referencialidade dessa abordagem, é possível perceber o seu
comprometimento com uma extensa linhagem de homens de teatro que fizeram da relação
entre a plasticidade do corpo e do espaço um eixo de investigação para evolução do ofício
do ator. Como exemplo disso, observemos as palavras de Edward Gordon Craig, no
alvorecer do século passado:

Há uma coisa de que o homem não aprendeu ainda a tornar-se senhor; uma coisa
de que não se suspeita mesmo, que está pronta para ser absorvida com amor,
invisível e no entanto sempre presente, magnífica de sedução e pronta a escapar-
se; uma coisa que espera a vinda de homens aptos, pronta a elevar-se com eles
acima do mundo terrestre: e não é senão o Movimento (CRAIG, 1911, p. 78).

Ao se pautar pelo movimento para pensar a arte do teatro, Craig passou a refletir
sobre as maneiras de responder à demanda de tornar o espaço um dos eixos conformadores
da arte da encenação, gerando uma proposta estética que colocava em xeque os excessos
historicistas e o decorativismo ilusionista da cenografia de cunho Realista/Naturalista,
realizando uma transição do estatismo para o dinamismo cênico. Suas considerações sobre
o movimento o levaram a criar uma espacialidade em constante mutação por meio do jogo
conjugado entre a iluminação e os volumes móveis. Contemporaneamente a Craig, Adolphe
Appia também dirá que o movimento é algo essencial para o teatro, levando-o a pensar a
cena em função do deslocamento do corpo do ator, e substituir a bidimensionalidade
cenográfica do telão pintado por um cenário que dialogasse com a tridimensionalidade do
corpo humano e com a sua rítmica. Observando as palavras do pesquisador estadunidense
E. T. Kirby para esse processo, podemos perceber como esses questionamentos estavam
atrelados às discussões da época, no campo das artes plásticas, acerca da abstração como
reação à arte figurativa:

De Gordon Craig (e do Neo-Romantismo) passando pelos Futuristas, Dada, o


trabalho dos Formalistas Russos, os Expressionistas, os Surrealistas, a
Bauhaus, e assim por diante, [...] [p]ercebemos muito claramente [...] uma
intenção subjacente: a criação de um teatro abstrato. Seu símbolo, e o que
explicitamente representa a sua função e estética, é a máscara - ou o ator
mascarado a quem Craig denominou como a Super-Marionete5 (KIRBY,
1972, p. 06, grifo do autor, tradução nossa).

A máscara é metamorfose, transcendência, simulação. Um objeto que ao se


amalgamar ao corpo cumpre a função de uma ponte entre a divindade e as forças
sobrenaturais, como nos rituais, ou entre as ideias e personificações, como na arte. Ocorre
por seu intermédio um processo de identificação com o que se deseja imitar, que desloca a
pessoa que porta a máscara para um contexto diferente do costumeiro, modificando tanto a
sua corporeidade quanto o ambiente a sua volta. Dessa maneira, não é por acaso que
Gordon Craig propõe o princípio da Super-Marionete como mascaramento para trabalhar a
fisicalidade do intérprete, estimulando uma plasticidade corporal mais afinada com as
imagens cênicas e, portanto, harmonizada com o espaço (cênico).
Quanto menos mimetizado com o mundo natural, maior a potencialidade desse tipo
de mascaramento em representar conceitos espaciais. A abstração pode tanto evocar
características essenciais da natureza quanto falar de uma não-realidade. Para o trabalho do
ator, as máscaras teatrais de formatos abstratos têm a capacidade de ajudá-lo na
materialização corporal de algo tão impalpável como o espaço. Sendo assim, dentre os
reformadores do teatro do início do século XX, citados acima por E. T. Kirby, vamos
observar neste momento algumas propostas e procedimentos do diretor da oficina de teatro
da Bauhaus – escola alemã de artes, design e arquitetura –, Oskar Schlemmer, que
direcionou as suas investigações para que as formas do espaço se projetassem sobre o corpo
do intérprete por meio de elementos que tinham a função de máscaras abstratas.
Schlemer observa que a arquitetura do palco, na qual o ator está imerso, constitui-se
num volume encerrado pelas paredes, colunas, piso, vigas e teto cuja resultante é um
equilíbrio de forças que mantém toda a estrutura em suspenso, uma dinâmica
momentaneamente paralisada, fixa e imutável. Ele aponta para o fato de que comumente
esse espaço é submetido ao “homem e transformado novamente em natureza ou na imitação
da natureza [...] no ilusionismo do teatro realista6” (SCHLEMMER, 1961, p. 22-23,
tradução nossa). Contudo, a base do seu pensamento é propor um funcionamento oposto a
esse: ao explorar a arquitetura do movimento a partir das leis do espaço cúbico por meio da
planimetria, da “geometria do chão, do acompanhamento das retas, das diagonais, do
círculo e da curva, desenvolve-se quase que espontaneamente uma estereometria do espaço
através da figura móvel que dança” (WINGLER, 1981 apud GRANERO, 1995, p. 145).
Numa composição coreográfica, a planimetria e a estereometria7 estão relacionadas
para dar suporte ao fluxo de movimento do dançarino, sendo que a primeira é a
representação no plano do chão dos deslocamentos e localizações, e a segunda a
transposição dessa geometria para a espacialidade dos corpos. Um dos procedimentos
empregados por Schlemmer era a marcação sobre o assoalho do palco das trajetórias e
posições dos bailarinos – estas conectadas às projeções estereométricas da sala –, que
propiciava tanto a visualização de todas as áreas no solo a serem exploradas nos
deslocamentos, quanto a percepção das linhas invisíveis que subdividiam o espaço e que
orientavam a gestualidade corporal.
Partindo da oposição entre a verticalidade da figura humana e o plano horizontal do
chão, essa ortogonalidade se desdobrava tridimensionalmente pelo espaço quando o corpo,
nas suas torções em torno de seu próprio eixo, se movimentava criando linhas diagonais,
ampliando os efeitos dinâmicos e expressivos. Essa conexão entre a forma humana e as
extensões da arquitetura tornava o espaço e o corpo os elementos principais das matrizes
que organizam as partituras e coreografias das obras de Schlemmer.
Além das projeções sobre as superfícies – do solo e do corpo –, a estereometria
também podia ser materializada em indumentárias e adereços cênicos, ocasionando a
transformação do corpo humano, a sua metamorfose. A figura mecânica e artificial da
marionete, ou do boneco articulado, passou a ser para Oskar Schlemmer o centro de um
processo que transformava o corpo do intérprete e o reorganizava tecnicamente segundo as
suas leis funcionais. Escondido sob máscaras e figurinos que alteravam significativamente
o desenho corporal, o intérprete só podia agir e se expressar por meio de um simulacro,
uma figura artificial sem voz ou individualidade.
Na sua busca pela essencialidade do ser humano, o caminho foi abstrair as formas
naturais para revelar os elementos plásticos e assim poder criar formas artísticas. A
gestualidade passava a evidenciar uma qualidade de abstratação que podia assumir a
coordenação motora de uma marionete, ou os aspectos arquitetônicos do espaço cúbico
circundante, como também uma expressão corporal tecnicamente mais limpa e precisa, ou
mesmo uma variabilidade de movimentos que praticamente impossibilitava a fixação de
uma forma específica. Esta foi a maneira encontrada de inserir no palco um organismo vivo
– tal como uma imagem pictórica, uma escultura animada, um andróide mecanizado ou
uma marionete articulada – com o propósito de fazê-lo participar das ações cênicas
baseadas em medidas e cálculos geométricos.
A partir dessas propostas envolvendo o uso da planimetria e da estereometria como
forma de mascaramento, foram desenvolvidos alguns procedimentos práticos no âmbito da
pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a
espacialidade corporal do ator”. A aplicação dessas rotinas de trabalho aconteceu na oficina
“A Espacialidade Como Matriz Geradora de Partituras Cênicas”, como parte da
programação da Mostra de Artes Cênicas do Centro de Pesquisa em Experimentação
Cênica do Ator (CEPECA)8 do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, em maio de
2014. Durante dois dias seguidos, e com uma média de vinte pessoas por encontro, foram
experimentados princípios de construção, organização e execução de pequenas partituras
cênicas, tendo como eixo referencial para a construção de ações físicas algumas propostas
de diferentes tipos de espacialidades. Por conta da síntese necessária exigida pelos limites
óbvios do formato deste artigo, vamos nos ater apenas a dois procedimentos a título de
exemplo.
Inicialmente, definiu-se uma área de jogo para os participantes da oficina, com a
preocupação de que esse fosse desvinculado de modelos prévios de construção cenográfica,
e com vocação suficiente para ser percebido e operacionalizado como um local abstrato e
flexível para receber qualquer narrativa cênica. Para a configuração desse espaço, foi
traçado um retângulo com fita crepe no centro da sala de ensaio, deixando o seu contorno,
ao redor das suas arestas, livre para a circulação dos jogadores (essa área funcionava como
uma espécie de coxia). Na parte interna do retângulo foram traçadas duas linhas diagonais a
partir dos cantos de modo a se cruzarem no centro, bem como, paralelas aos lados, três
linhas horizontais equidistantes e outras três verticais também equidistantes. Obtivemos
dessa maneira uma planimetria esquemática, pois não havia nenhum compromisso com a
projeção das medidas ortogonais da sala de ensaio sobre o desenho traçado no chão.
Como aquecimento prévio, os alunos foram orientados a se deslocarem sobre essa
“grade”, procurando observar as relações de equilíbrio, tensão, proporção e composição
entre as posições ocupadas pelos seus corpos. O foco principal era a percepção aos
estímulos que as condições desse formato de enquadramento incitava às dinâmicas
corporais. Após essa sensibilização, foram disponibilizadas fotografias de esculturas, sendo
pedido como procedimento a cada um dos participantes que criasse uma seqüência de ações
simples, com começo, meio e fim, a partir da escolha de uma delas.
Todas as imagens escultóricas representavam posturas físicas, que deveriam ser
encaradas como o ponto médio de uma provável trajetória do corpo pelo espaço, durante o
desenvolvimento de uma ação qualquer. Com a falta de referencialidade a um contexto
específico, o grau de abstração se tornou elevado, por conta do leque de possibilidades em
se definir uma combinação que resultasse numa possível narrativa. Essa micro-partitura de
ações passou a funcionar como um tipo de mascaramento, um foco que obrigava o
intérprete a manter a sua concentração na sustentação e na manipulação de algo com o qual
a sua totalidade psicofísica poderia ficar completamente envolvida.
No procedimento seguinte, a turma foi dividida em dois grupos que se revezaram
nas funções de atuadores e espectadores, isto é, enquanto um grupo executava uma tarefa o
outro o observava. Ao ouvir uma instrução de comando específica, o grupo a ser
primeiramente observado deveria entrar no espaço retangular de jogo ao mesmo tempo,
procurar um local para realizar a sua micro-partitura de ações e dar início à execução das
mesmas. Ao final de toda a movimentação em cena, o grupo se retirava conjuntamente para
a área externa ao retângulo, que representava as coxias. Para cada um dos participantes, as
restrições impostas a sua livre expressividade eram compensadas pelas possibilidades de
investigação e entendimento das leis matemáticas que construíam a arquitetura na qual se
encontrava imerso. A necessidade de submeter a corporeidade aos eixos vertical, horizontal
e diagonal propiciou o alcance de uma expressão abstrata.
Nesse segundo exercício também foi conduzida uma reflexão com o auxílio dos
colegas colocados como platéia, direcionada tanto para as escolhas compositivas de cada
membro do grupo em relação à totalidade do conjunto, quanto para as conexões que
surgiram entre as seqüências de ações de cada um. Concluiu-se, por exemplo, que os
sentidos do espectador não só se determinam por meio dos diferentes recursos da
encenação, como também a partir da consideração da unidade do espaço teatral, a partir do
tipo de relação que a arquitetura promove entre a sala e a cena. Mesmo sendo um desenho
planimétrico de solo esquemático, o estímulo serviu a um pensamento tridimensional de
que o corpo cênico constrói algo a ser visto pelo público.
Esses procedimentos instauraram uma outra dinâmica de exploração do espaço
teatral, desdobrando-o como uma proposta em que podem ser lidas uma poética e uma
estética fomentadora de um processo criativo. Os seus resultados apontam para a
importância do tipo de espacialização sofrida pelos signos cênicos, pois o ambiente cênico
não tem só a função de ser continente de linguagens heterogêneas, mas também cria uma
identidade quando imprime a sua ação unificadora, resultando num corpus artístico
homogêneo e coerente a ser comunicado à platéia. É o princípio da ideia de uma
dramaturgia que se faz na articulação das linhas, nas texturas das superfícies, nas variações
de dinâmicas, ou seja, na “relação de todos os sistemas significantes usados na
representação e cujo arranjo e interação formam a encenação” (PAVIS, 2001, p. 409).

Mascaramento Espacial II: máscaras dinâmicas e espacialidade corporal.

O que discutimos até o momento pelos exemplos e procedimentos apresentados


foram propostas em que a síntese por meio do exercício da abstração tem como
consequência a redução do espaço cênico a um caráter essencialista, que tanto se torna um
trampolim para uma expressividade baseada na plasticidade do corpo e da voz, como
também proporciona um enquadramento máximo da atenção sobre o ator, já que o
esvaziamento da cena serve de pano de fundo para os gestos, dá relevância à linguagem e
estabelece um foco definido sobre os signos que se deseja veicular. Esse tipo de
espacialidade serve de molduragem aos elementos, mas não na qualidade de janela
perspéctica do drama burguês (cujo significado é dar enfoque a uma mímesis puramente
ficcional), e sim como procedimento estético que “traz à tona elementos simples e sem
significado [...] [, que] intensifica e concentra a propensão perceptiva de tal maneira que
também o que é cotidiano se torna interessante” (LEHMANN, 2007, p. 268).
Essa abordagem que propõe abstrair a realidade que nos cerca como matriz para
alcançar uma essencialidade expressiva está presente também na metodologia de um outro
exemplo que trataremos agora: o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM)9 de Jacques
Lecoq. Ali os estudantes articulam duas questões fundamentais para as nossas discussões:
“o trabalho com o movimento, [...] e [...] o trabalho de criação que envolve a construção - e
posterior 'animação' - de estruturas que procuram capturar, expressar e dar vida às
qualidades dos movimentos explorados10” (MURRAY, 2003, p. 89, tradução nossa). Os
estudos das leis do movimento humano e dos espaços do corpo, com a conseqüente
construção de estruturas e formas portáteis (máscaras corporais) que dialogam com as
dinâmicas exploradas fisicamente, têm como objetivo principal proporcionar ao aluno a
compreensão e a percepção de “que não se representa diante de um cenário, mas dentro de
um espaço construído para a ação do ator na situação” (LECOQ, 2010, p. 229).
A característica fundamental das estruturas portáteis é a representação plástica da
observação e análise sensível do movimento nas suas mais variadas manifestações – no
ambiente, na corporeidade, na matéria inorgânica, nas variações cromáticas etc. A captação
apenas dos traços dinâmicos daquilo que se pretende transpor para uma materialidade
plástica é um passo de fundamental importância no trabalho do LEM para se alcançar uma
leitura adequada das características essenciais do ambiente.
A escala projetada para essas formas abstratas pode ser facial, corporal ou espacial,
sendo que, independentemente do seu tamanho, a sua função principal é atuar como uma
“partitura física”, pois são concebidas para mobilizar o movimento no corpo da mesma
forma que “todo o espaço habitável traz ‘propostas dramáticas’ e influencia o
comportamento dos que ali vivem ou dos personagens que ali atuam” (LECOQ, 2010, p.
227). Confeccionadas para serem usadas sobre o rosto, essas formas abstratas recebem o
nome de máscaras dinâmicas e, alcançando as proporções do corpo, passam a ser chamadas
de estruturas portáteis. Esses objetos podem ser manipulados, habitados ou usados em
associação ao físico, como próteses, extensões, figurinos ou máscaras. Se exploradas pelo
aluno (ou intérprete) de modo a se penetrar em seu interior ou amalgamando-se a elas, essas
estruturas ou máscaras reconfiguram a sua cinesfera pessoal, proporcionando ao corpo o
estudo direto das qualidades espaciais.
O papel desses objetos plásticos é intermediar a pesquisa sobre o espaço, pois essas
estruturas, quando postas em movimento pelo manipulador, afetam a atividade física do
mesmo com os seus ritmos. Esse caminho promove as condições necessárias para a
organicidade do corpo não só dialogar, mas também agenciar a sua multiplicidade
expressiva segundo os princípios físicos e concretos que regem a matéria inorgânica, tais
como linhas, planos, ritmos, peso, forças, densidade etc.
O ponto de convergência que tentaremos explorar nesse momento entre as propostas
do LEM e as nossas investigações está no tipo de tratamento abstrativo dado ao espaço por
aquele, que tem como resultado uma estilização formal de caráter geométrico, chamada de
estrutura (ou arquitetura) portátil. A partir desse campo de exploração, foram realizados
alguns experimentos sobre a linguagem das formas no espaço na disciplina “Teatro de
Animação I”, em 2011, na qual fui professor conferencista a convite do orientador da
pesquisa, ministrando as aulas para o primeiro ano da graduação em Artes Cênicas da
ECA-USP. Esse exercício de docência proporcionou um campo de experimentação muito
rico na condução de um processo de aprendizagem fundamentado na linguagem da
máscara, que procurei direcionar para que fosse perpassado pela exploração constante do
diálogo entre a forma e o movimento, ao experimentar o uso de máscaras dinâmicas
inspiradas nos processos desenvolvidos pelo LEM.
O percurso escolhido foi iniciar uma investigação primeiramente com a máscara
neutra, com o intuito de se estabelecer um estado de abertura e prontidão para os estímulos,
bem como uma primeira abordagem das relações que a máscara estabelece entre a sua
geometria e o espaço ao redor, seja ele arquitetônico ou humano. A máscara neutra é uma
máscara de fisionomia simples e simétrica, sem conflitos, que propõe ao ator ampliar todos
os seus sentidos, encontrando a essência das ações e das situações. Por meio dela, “ao [se]
subtrair o sistema de expressão do rosto desvela-se o corpo, que se torna a ferramenta da
tessitura gestual no espaço” (COSTA, 2005, p. 29).
O resultado disso é uma dilatação da presença do ator quando se instala um estado
físico de prontidão, “o ponto zero, momento de energização e de escuta que antecede a
ação, pausa antes de agir” (AMARAL, 2002, p. 43-44). Tal condição vem a ser um
instrumento importante para potencializar a presença, ao se criar uma disponibilidade que
pode ser associada a um esvaziamento de qualquer pré-disposição para a ação, tornando
assim a motivação bastante reativa aos impulsos. O seu emprego propicia ao ator
consciência corporal, presença cênica, disponibilidade física, economia da gestualidade,
escuta (percepção) e justeza do tempo das ações.
A máscara neutra não é um personagem, é um estado que se apóia na calma e na
percepção, fontes de vida para todas as outras máscaras. Dessa maneira, ela representou
para os alunos da disciplina “Teatro de Animação I” uma primeira etapa no percurso para
se chegar às máscaras dinâmicas. Contudo, antes de se chegar ao fim dessa caminhada,
ainda foi proposto um estágio intermediário pautado pelo uso e exploração da máscara
expressiva. Esse tipo de máscara personifica rostos de personagens que podem abranger
uma gama extensa de expressões, que vai da plasmação perfeita e realista da face humana
até a representação de tipos exagerados e grotescos, nos quais não importa a perfeição dos
traços, mas sim o impacto emocional.
No caso específico da disciplina, a máscara expressiva serviu para o improviso de
personagens a partir da máscara. À medida que os alunos interagiam com elas, procuravam
conhecer e reproduzir – por meio de gestos, posturas corporais, entonações na fala e modos
de se comportar e agir – as regras, os ritmos, as intenções presentes nos traços da máscara.
Essa metodologia de criação a partir da observação e experimentação corporal das
características físicas e concretas do objeto vem a ser fundamental para a abordagem
criativa de qualquer mascaramento, inclusive aquele propiciado pela máscara dinâmica, que
foi apresentada posteriormente aos alunos como parte final do curso.
Como procedimento inicial para o trabalho inspirado nas estruturas portáteis do
LEM, foram utilizados imagens e vídeos como modelo para a confecção e construção de
máscaras de formatos geométricos, sem menção a qualquer tipo de corpo orgânico, seja ele
animal ou humano. O sentido aqui não era o da cópia ou da simples imitação das máscaras
dinâmicas do LEM, mas sim uma relação de aprendizagem modelar, na qual se desvenda e
se conhece o objeto de estudo enquanto se procura reinventá-lo. As estruturas e formas
abstratas foram realizadas com materiais comuns e de fácil manuseio (no geral, artigos de
papelaria), para que se obtivessem elementos leves e fáceis de serem manipulados.
A segunda proposição foi o improviso em grupo com essas estruturas abstratas
confeccionadas pelos alunos. A orientação dada para esse trabalho foi em direção à
percepção individual das possibilidades de projeção do corpo no espaço a partir das linhas
de força da máscara. Assim que cada membro do grupo estabeleceu uma dinâmica para si,
o grupo procurou experimentar conjuntamente um jogo de relações com ações
improvisadas, sem a preocupação com qualquer menção a uma narrativa previamente
estabelecida. Após essa fase de criação, os grupos apresentaram as suas formalizações
cênicas uns para os outros.
Os resultados apontaram para uma compreensão refinada das relações de tempo e
espaço, no qual o corpo, imerso numa dinâmica, desenhava imagens precisas e fazia a
geometria espacial das máscaras entrar em ação a serviço da emoção do ator. Ao se
privilegiar o espaço como material de criação, obteve-se como resposta um tipo de ação
caracterizada pela ausência de significado (que faz menção a um contexto ficcional),
resultando numa carga de referencialidade que dizia respeito à própria concretude do
material, isto é, às características físicas que definem o tipo de espacialidade utilizada como
matriz geradora. As ações assim constituídas tinham um alto grau de abstração e de modo
algum intentaram expressar os conteúdos da psicologia de um sujeito em particular, ou
mesmo resultar em metáforas e ilusionismos que encaminhavam a construção de
significados a partir do mundo interiro do ator. Como não havia uma interioridade
apriorística que modelasse as formas do corpo, foi o espaço físico exterior ao atuante que se
tornou signo a ser articulado.
Tanto o percurso dos procedimentos como os resultados cênicos experimentados até
aqui apontam caminhos para a utilização de processos envolvendo o mascaramento espacial
como base de criação para o intérprete, para que o mesmo lide com o seu aparato físico
(aqui compreendido como a somatória mente/corpo/voz) como uma modalidade do espaço.
A preocupação em erigir espacialidade e corpo como eixos de investigação e pilares de uma
linguagem psicofísica é apontar um caminho para a compreensão das especificidades dos
processos criativos do atuante no âmbito interno e externo das encenações, aumentando
dessa forma a sua capacidade criativa/compositiva/autoral. Dessa maneira, pretende-se
contribuir, sobretudo, para as demandas de novas competências técnicas que os artistas
atualmente enfrentam em sua formação.

Referências:

AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos: máscaras, bonecos e objetos. São Paulo: Ed.
SENAC, 2002.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
COHEN, Renato. Performance como Linguagem: criação de um tempo-espaço de
experimentação. São Paulo: Edusp / Perspectiva, 1989.
COSTA, Felisberto Sabino. A Máscara e a Formação do Ator. Revista Móin-Móin,
Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, vol. 1, 2005, p. 25-51.
CRAIG, E. Gordon. Da Arte ao Teatro. Lisboa: Arcádia, 1911.
GRANERO, Maria Victoria V. Machado. A Aventura do Teatro da Bauhaus. Tese de
Doutorado, São Paulo, ECA-USP, 1995.
IRAZÁBAL, Federico. Francisco Javier: la renovación de la escena argentina está
alojada em las pequeñas salas. Cuadernos de Picadero, año 2, no 4, diciembre
2004, Instituto Nacional del Teatro, Buenos Aires, p. 4-11.
JAVIER, Francisco. El Espacio Escénico como Sistema Significante. Buenos Aires: Ed.
Leviatán, 1998.
KIRBY, E. T. The Mask: abstract theatre, primitive and modern. The Drama Review
(TDR), New York, MIT Press, v. 16, no 3, Sep. 1972, p. 5-21.
LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Ed.
Senac São Paulo / Ed. SESC SP, 2010.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MURRAY, Simon. Jacques Lecoq. London / New York: Routledge, 2003.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
SCHLEMMER, Oskar. Man and Art Figure, in: GROPIUS, Walter (ed.). The Theater of
the Bauhaus. London: Eyre Methuen Ltd., 1961, p. 17-46.
SILVA, Ipojucan Pereira. O Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um
sistema pessoal de atuação. Dissertação de Mestrado, São Paulo, ECA-USP, 2008.
WINGLER, Hans. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Cambridge,
Massachusetts and London: MIT Press, 1981.

Notas:
1
Esta pesquisa tem o apoio da agência de fomento CAPES/CNPq.

2
Apesar de não ter sido levada adiante como pesquisa de mestrado, essas questões ganharam certo aprofundamento no
artigo: SILVA, Ipojucan Pereira . Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira. Revista Móin-
Móin (UDESC), ano 6, v. 07, 2010, p. 14-26.
3
Para Renato Cohen, em Performace como linguagem: criação de um tempo – espaço de experimentação (São Paulo:
Edusp / Perspectiva, 1989, p. 103), a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico, e a personagem diz respeito a
algo mais referencial. Segundo ele, o trabalho com a persona se dá geralmente pela forma, de fora para dentro, a partir da
postura, da energia.
4
[...] al realizar sus acciones, el actor genera una energia espacial que va dando forma al espacio escénico, [...]

5
[...] from Gordon Craig (and Neo-Romanticism) through the futurists, Dada, the work of the Russian formalists, the
Expressionists, the Surrealists, the Bauhaus, and so on, [...]We perceive ever more clearly in this work an underlying
intention: the creation of an abstract theatre. Its symbol, and that which clearly represents its function and aesthetics, is the
mask – or the masked actor whom Craig called the Übermarionette.
6
“[...] man and transformed back into nature or the imitation of nature [...] in the theater of illusionistic realism”.

7
A estereometria, ou geometria do espaço, é um ramo da matemática que estuda o volume dos sólidos geométricos e que
nos auxilia na medição do mundo tridimensional que nos rodeia. A planimetria é a representação em um plano de algum
espaço tridimensional; os pontos medidos são projetados sobre uma superfície horizontal.
8
Coordenado pelos professores Dr. Armando Sérgio da Silva e Dr. Eduardo Coutinho, o objetivo principal do CEPECA é
reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação, professores, alunos de pós-graduação e interessados na área.
Visando a resultados perceptíveis em trabalhos práticos e espetáculos, caminham juntos os aspectos acadêmicos e
criativos, ou seja, professor e alunos se obrigam e se comprometem com os resultados estéticos, a partir de suas escolhas
metodológicas.
9
A partir de cursos ministrados aos alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes de Paris (Ecole Nationale Supérieure
des Beaux-Arts), Jacques Lecoq criou, em 1976, o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM), um departamento de
artes plásticas e cenografia experimental da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. O departamento é consagrado
ao estudo dinâmico do espaço e dos ritmos através da representação plástica, com aulas de movimento, de construção e de
desenho, envolvendo os domínios da arquitetura, do design e da cenografia. Junto ao arquiteto Krikor Belekhian, Lecoq
esteve à frente da direção do LEM até o ano de 2011, quando foi substituído por sua filha, arquiteta e cenógrafa Pascale
Lecoq. Apesar da sua autonomia, a proposta pedagógica do LEM não está desvinculada da Escola Internacional de Teatro
Jacques Lecoq, o que resulta em atividades que dialogam e interagem com a pedagogia da escola.
10
“[...] movement work [...] and [...] creative work that entails the building - and subsequent 'animation' - of structures
which seek to capture, express and bring to life the qualities of the movements explored hitherto.”
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

DISCUSSÕES SOBRE O CONCEITO DE UNIPERSONAL


Jennifer Jacomini de Jesus (Mestranda em Teatro e bolsista do Programa de Bolsa de
Monitoria de Pós-Graduação - PROMOP); Dra. Fátima Costa de Lima (Orientadora);
Programa de Pós Graduação em Teatro - PPGT/Centro de Artes - CEART/Universidade do
Estado de Santa Catarina - UDESC).

RESUMO: O presente artigo empreende uma análise do conceito de unipersonal. O


unipersonal tem origem no idioma espanhol e foi um formato vastamente utilizado na
Argentina a partir da década de 80. Refere-se a uma forma cênica realizada por um único
ator/atriz que assume outras funções teatrais (dramaturgia/direção) e cujo texto cênico mescla
representação de personagens a instâncias narrativas. Propõe um fazer teatral que resgate na
solidão, e por meio dela, o restabelecimento da comunicação com o espectador. Para tanto,
são consideradas as circunstâncias espaciais e temporais do surgimento do termo e
investigados aspectos desta modalidade cênica em relação a formas criativas com as quais
têm características comuns (monólogo, one man/one woman show, recital, solo, stand up
comedy), bem como àquelas às quais se opõe, a fim de identificar as peculiaridades e
especificidades do unipersonal. Também são discutidas questões relacionadas à interpretação
e ressignificação na tradução cultural do conceito.

PALAVRAS-CHAVE: unipersonal, ator-autor, espetáculo solo.

O conceito de unipersonal surge no contexto teatral argentino das últimas três décadas
e embora seja amplamente utilizado naquele país, aparece ainda timidamente no Brasil. A
dificuldade em se definir o que é um unipersonal para nós, brasileiros, advém de dois
problemas fundamentais, sobre os quais discorro a seguir.
O primeiro está ligado à ressignificação da palavra que é gerada pela tradução do
conceito. Seu correspondente em língua portuguesa - unipessoal - conduz a interpretações e
relações dissociadas do universo teatral.
O segundo problema se deve ao fato de a definição do unipersonal confundir-se com
outras modalidades criativas, com as quais compartilha algumas características. A aparente
ideia de semelhança entre essas formas espetaculares leva a uma generalização que conduz a
equívocos.
Na tentativa de elucidar essas questões, me proponho a investigar o conceito de
unipersonal, considerando, para tanto, as ressignificações que ele adquire a partir de sua
tradução cultural. Realizarei uma análise desde uma perspectiva da etimologia e genealogia
do termo. Também abordo neste artigo o unipersonal a partir de uma perspectiva filosófica,
recorrendo aos conceitos de aporia, de Derrida e antinomia, de Kant.
A palavra unipersonal tem origem no latim: o prefixo uni vem de unos e significa um
e o sufixo personal, vem de personális e significa pessoa. Assim, semanticamente, reunindo
esses dois verbetes, chegaríamos à conclusão de que unipersonal designa algo que é relativo,
correspondente ou pertencente a uma única pessoa. Essa definição é apropriada para nomear
a criação cênica cuja concepção, criação e execução é correspondente a um só indivíduo.
Porém, se aprofundamos a questão, teríamos também a associação aos significados de
uni relacionados a união/universalidade, o que nos leva a uma compreensão inteiramente
oposta, ligada à totalidade, à integração, ao globalizante e ao coletivo. Esse entendimento até
teria alguma relação com o unipersonal se o pensarmos de forma poética, como a
aproximação, o encontro entre os universos do ator e do espectador.
Em nosso idioma, em geral emprega-se a tradução literal de unipersonal, unipessoal,
para referir-se a instâncias, operações e organizações jurídicas formadas por uma só pessoa,
tais como sociedade unipessoal, empresa unipessoal, contrato unipessoal.
Utiliza-se ainda o unipessoal como classificação de verbos que possuem sujeito em
uma única pessoa do discurso – a saber: 3ª pessoa do singular (ele/ela) e do plural (eles/elas).
São os casos, para citar exemplos, dos verbos doer, aprazer, e também daqueles que
exprimem ações ou estados relativos às vozes de animais: latir, miar, ladrar, relinchar, rosnar,
mugir, etc.
Percebemos, portanto, que essas noções de unipessoal escapam completamente ao
contexto cênico. Como vimos, em teatro, a referência ao conceito de unipersonal surge na
Argentina, com mais ênfase dos anos 80 em diante. Essa modalidade aparece, portanto, no
período pós-ditadura, e pode ser percebida como uma necessidade de afirmação da identidade
perdida durante os anos de repressão e como uma busca por uma autoralidade que responda
aos desejos pessoais. A forma cênica unipersonal teve, ao menos em seus primórdios, uma
tradição política.
Nos deparamos, nesse estudo, com a incapacidade discursiva da exatidão e precisão,
uma vez que a linguagem, e em nosso caso uma mesma palavra, produz uma multiplicidade
de significados e faz referência a uma diversidade de fenômenos.
Devido a utilização corrente da palavra em português, com outras acepções diversas
daquela que me interessa, opto pela não tradução literal do termo, e adoto a concepção que
Peter Burke chama de tradução cultural e que vai evidenciar os limites da tradutibilidade.
Para esse pesquisador, a operação de tradução deve ser entendida em um contexto amplo
como sendo o processo interpretativo de entendimento de objetos estrangeiros, um esforço
significativo de encontro entre duas culturas (BURKE, 2009).
Diante do impasse terminológico e a fim de promover uma confluência entre as
culturas brasileira e argentina, procuro abordar outras formas de definição do unipersonal,
que possam esclarecê-lo, senão completamente, ao menos parcialmente. Busco me aproximar
de uma elucidação sobre a que estou me referindo quando utilizo o conceito de unipersonal.
Em virtude das dificuldades apresentadas para definição e utilização do termo
unipersonal no Brasil, proponho uma abordagem filosófica do conceito.
O filósofo francês Jacques Derrida sugere a desconstrução dos conceitos a fim de
demonstrar que o sentido está no domínio do indeterminado. Ele define este tipo de análise
como aporia. Uma investigação aporética pressupõe a definição de um tema central a partir
da refutação de todas as tentativas de definição. Este é um dos procedimentos que tento
realizar com o unipersonal: defini-lo a partir da via negativa, ou seja, busco explicar o que é
um unipersonal a partir daquilo que ele definitivamente não é.
Um solilóquio, por exemplo, não é um unipersonal. O solilóquio é um tipo de
monólogo. O monólogo, embora também seja interpretado por uma só pessoa, não é
sinônimo de unipersonal. Segundo Pavis (2005), o monólogo se caracteriza por ser a
expressão de um só personagem, que em cena não está acompanhado por ninguém e que
elabora um discurso para si mesmo, para um interlocutor imaginário ou para o público. Pode
ser a expressão de seus sentimentos e/ou pensamentos em voz alta, e, nesse caso, o
chamamos de solilóquio. Pode, ainda, ser o anúncio, para o público, de um acontecimento
que está por vir ou comentário sobre outro personagem ou situação que acontece na peça.
Nesse caso, que chamamos de aparte, fica evidente a busca do estabelecimento de
cumplicidade com a plateia.
Nerina Dip (2002), em sua dissertação de mestrado, expõe outras formas cênicas que
podem confundir-se com o unipersonal. Abaixo listo algumas delas:
One-man/one-woman show: forma espetacular que teve origem no music hall, e na
qual um personagem apresenta esquetes, canções, danças e imitações;
Recital: apresentação de um músico ou bailarino que interpreta textos teatrais ou
poemas;
Solo: modalidade cênica que se refere a criações realizadas por um só interprete,
utilizado em outras áreas além do teatro, como na dança, no circo e na música.
Stand up comedy: espetáculo no qual um comediante, geralmente sozinho, se dirige
diretamente ao público, rompendo a quarta parede, com narrativas que tem objetivo
de serem engraçadas.
Mas a pergunta persiste: o que diferencia esses formatos do unipersonal? Talvez o
mais apropriado seria afirmar que a única coisa em que se assemelham a ele é o fato de serem
representados por um único ator/atriz.
Ao contrário do monólogo, do recital, do solo e do one man/woman show, o
unipersonal é composto por uma dupla enunciação: que contempla monólogos, numa relação
lírica ou épica, mas que também apresenta diálogos entre personagens interpretados pelo
mesmo ator e que comunicam-se entre si. No unipersonal, portanto, o ator não apenas unifica
as funções narrativa e representativa, como também interpreta diversos personagens.
Quanto ao stand up, que também emprega as duas estratégias discursivas (monólogo e
diálogo), a diferença em relação ao unipersonal se dá pela temática e pelos objetivos. O stand
up comedy obrigatoriamente pertence ao gênero cômico, trata de temas humorísticos e tem o
intuito de entreter o público. Assim, podemos dizer que um stand up pode ser um
unipersonal, mas um unipersonal não necessariamente será um stand up.
Uma outra característica importante do unipersonal, que nos auxilia a diferenciá-lo
dos outros formatos teatrais, é apontada Nerina Dip. De acordo com a pesquisadora, o
unipersonal procura expor, de forma exarcebada, a condição de solidão do ser humano na
contemporaneidade, tanto na sua forma como no signo, assumindo, portanto, uma dimensão
crítica em relação a esse estar só na sociedade (DIP, 2005).
Todos esses aspectos que mencionei até agora são importantes para a compreensão do
unipersonal, mas talvez o que realmente o fundamente seja a dimensão política que ele
pressupõe.
No unipersonal o intérprete não apenas está só em cena. Existe um poder simbólico
no encontro do público com a visão pessoal do artista que assume todos os riscos do processo
criativo e interpretativo. O unipersonal responde a uma necessidade de expressão artística
suscitada por contextos políticos, sociais, econômicos e pessoais. Dessa maneira o ator,
diante de uma situação insatisfatória, rompe o abismo do silêncio e expressa sua
subjetividade – na voz, no corpo e na cena. Isso talvez explique o aparecimento de traços
autobiográficos em muitas das criações unipersonais.
Conforme Beatriz Trastoy, ao longo da história, os unipersonais foram empregados
como ferramenta de trabalho por setores marginalizados, em confronto com os discursos
dominantes. Este é o caso dos grupos sociais minoritários, como o dos travestis, das
feministas e dos anarquistas (TRASTOY, 2002). A pesquisadora aponta que ainda que não
tenham sido realizados estudos aprofundados a respeito do caráter político do unipersonal, é
impossível considerá-lo alheio às estruturas institucionais e sociais atuais. Ela afirma que
embora as estratégias e formas de encenação tenham se modificado ao longo dos anos, o
aspecto político não deixou de estar presente nos espetáculos teatrais (TRASTOY, 2009).
Essa parece ser uma perspectiva interessante para a compreensão da função política no teatro,
em específico no caso dos unipersonais.
A respeito do caráter político do ato teatral, Javier Daulte sugere a existência de uma
nova “responsabilidade do teatro”. Para ele, após o fim do governo militar, do terrorismo de
estado e da censura, há nas artes uma mudança de eixo político do discurso para o ato
libertário criativo. Conforme esse autor, com o reestabelecimento da democracia, o teatro
recupera sua especificidade, sua própria linguagem, que está relacionada ao estado de jogo
(DAULTE, 2014). Em consonância com o pensamento desse dramaturgo e diretor argentino,
podemos compreender a dimensão política do unipersonal como sendo o próprio jogo que ele
instaura a partir de sua forma.
Com relação às características dessa modalidade cênica e fazendo referência à teoria
semiótica de Tadeusz Kowzan, María Victoria Fornoni afirma que no unipersonal, os signos
teatrais que pertencem ao ator (palavra, entonação, expressão facial, gestual, movimentação
cênica, maquiagem, penteado e figurino) ocupam o primeiro plano na encenação, enquanto
que os signos externos a ele (acessórios, cenário, iluminação, música e som) adquirem uma
função direta com o ator e objetivam direcionar o olhar do espectador para aquele. Outro
traço desta modalidade cênica que a figurinista argentina destaca é a teatralidade que,
segundo ela, é acentuada pela nova relação que se estabelece entre ator e espectador. No
unipersonal a convenção de palco e plateia é interrompida. Essa mudança é atribuída por ela
não somente à nova configuração de cena, que ocorre com a apresentação de unipersonais em
espaços não convencionais - frequentemente locais pequenos e ambientes mais intimistas -
como também ao próprio jogo entre ilusão e verossimilhança, existente neste tipo de
espetáculo (FORNONI, 2014).
Este jogo entre real e ficcional está diretamente relacionado às instâncias de
enunciação, uma vez que no unipersonal se alternam e se imbricam as vozes do narrador, do
personagem e do próprio ator, mesclando relatos e representações ficcionais a acontecimentos
reais e por vezes autobiográficos. Podemos apontar a presença de matrizes biográficas nos
espetáculos unipersonais, como sendo outro traço marcante que os diferencia das demais
formas cênicas realizadas por um único intérprete.
Se por um lado, como vimos, há algumas premissas básicas para que um espetáculo
seja considerado unipersonal, por outro, esta modalidade cênica pode abarcar uma enorme
gama de gêneros e estilos teatrais, que vão desde o teatro de pesquisa ao teatro comercial.
Atualmente, o termo unipersonal é aplicado genericamente para fazer referência a
diversos tipos de espetáculos. Tornou-se comum o seu emprego, nas programações e críticas
jornalísticas, com menção a encenações individuais, cujas funções de dramaturgia e direção
de cena nem sempre coincidem e, muitas vezes, não são desempenhadas pelo mesmo artista
que realiza o espetáculo. Com isso, o unipersonal perdeu a dimensão política e o caráter
autoral que originalmente possuía e que em certa medida justificava o emprego desta nova
nomenclatura em contraponto ao já conhecido monólogo.
Beatriz Trastoy (2002) aponta dois principais motivos para a proliferação massiva
deste tipo de espetáculo na programação teatral argentina: o primeiro deles, relacionado a
fatores econômicos, diz respeito aos reduzidos custos e sua consequente facilidade de
produção e realização. O segundo, ligado a questões estéticas, é atribuído ao alto grau de
exposição e expressão individual que o unipersonal propicia.
Gostaria de propor ainda uma reflexão a partir de uma análise antinômica kantiana. A
antinomia propõe uma abordagem dos fenômenos a partir das contradições. Baseados nessa
perspectiva filosófica, poderíamos tentar entender o surgimento do unipersonal em oposição
ao chamado teatro de grupo e às demais composições cênicas coletivas: companhias, elencos
e associações.
As criações coletivas têm sua expressão máxima nos anos 60/70, época imediatamente
anterior à ascensão do unipersonal, e surgem em contextos ditatoriais como uma resposta à
repressão e ao pensamento autoritário vigente. De acordo com Luís Alberto de Abreu, são
percebidas como uma possibilidade de organização compartilhada com ampla participação e
mútua interferência de todos os integrantes do grupo na elaboração de um espetáculo
(ABREU, 2003).
Assim como a conjuntura social externa interferiu diretamente na forma de expressão
artística durante os governos ditatórias latino-americanos, podemos supor que a sociedade
contemporânea também exerce influência nas realizações criativas atuais.
Pode parecer paradoxal pensar uma obra teatral, prática artística coletiva por
excelência, sendo produzida por um único indivíduo. Contudo, se verificamos as
circunstâncias do surgimento do unipersonal, em nossa sociedade pós-moderna e em um
contexto de valorização da padronização e da uniformidade, essa expressão subjetiva pode
ser percebida como uma forma de resistência e ruptura com um modelo hegemônico, uma
possibilidade de unir pessoas.
BIBLIOGRAFIA

ABREU, Luís Alberto. Processo colaborativo: relato e reflexões sobre uma experiência de criação.
Cadernos da Escola Livre de Teatro de Santo André. Santo André, ano I, n. 0, março de 2003. p.
33-41.

BURKE, Peter; HSIA, Ronnie Po-chia (orgs.). A tradução cultural nos primórdios da Europa
Moderna. São Paulo: Editora da UNESP, 2009.

DAULTE, Javier. Juego y Compromiso: responsabilidad y libertad. Revista Conjunto. Cuba, v. 140,
n.1, maio de 2006. Disponível em:
<http://www.casa.cult.cu/publicaciones/revistaconjunto/140/dualte.htm>. Acesso em: 20 jun 2014.

DIP, Nerina Raquel. Espetáculo solo, fragmentação da noção de grupo e a contemporaneidade.


(Dissertação). Universidade do Estado de Santa Catarina, Mestrado em Teatro, 2005.

FORNONI, María Victoria. El teatro unipersonal. La Voragine Revista Independiente de Teatro.


[s/l], v. 19, n.1, mar, 2009. Disponível em:
<http://www.revistalavoragine.com.ar/revista19/fornoni.html>. Acesso em: 20 jun 2014.

PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução: Jacó Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo:
Perspectiva, 2005.

TRASTOY, Beatriz. Cuerpo y autorreferencialidad: reformulaciones políticas en el teatro argentino


actual. In: CORNAGO, Óscar (Org.). Utopías de la proximidad en el contexto de la globalización: la
creación escénica en Iberoamérica. Cuenca, Ediciones de la Universidad de Castilla-La Mancha, 2009,
p. 101-116.

_____. Teatro autobiográfico: los unipersonales de los 80 y 90 en la escena argentina. Buenos Aires:
Nueva Generación, 2002.
TEMA: ESPAÇOS DE PEDAGOGIA E FORMAÇÃO

O ESPAÇO VAZIO NA FORMAÇÃO DO ATOR/DANÇARINO NO BUTOH

Kysy Amarante Fischer (Bolsa CAPES – mestrado); Orientadora: Prof ª Dra. Maria Brígida
de Miranda; Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)i.

Resumo:

Neste trabalho busco uma reflexão sobre o papel do mestre no Butoh, arte do corpo que não
possui uma definição fechada e única. Para esta análise, utilizo noção de “mestre ignorante”
apresentada por Jacques Rancière e a discussão sobre dialogismo dos comentadores de
Mikhail Bakhtin. O objetivo desta pesquisa foi promover uma discussão acerca do ensino no
Butoh como impossibilidade que gera novos caminhos para pensar treinamento.

Palavras-chave: Butoh, ensino, mestre ignorante.

Abstract:

In this work I pursue a reflection on de master’s role in Butoh, art of the body that doesn’t
have a closed and unique definition. For this analysis, I use the notion of the ignorant
schoolmaster that is presented by Jacques Rancière and the discussion about dialogism from
Mikhail Bakhtin´s commentators. The aim of this investigation was to promote a discussion
concerning the teaching in Butoh as an impossibility that brings new paths to conceive the
training.

Keywords: Butoh, teaching, ignorant schoolmaster.

A não existência de um treinamento específico no Butoh pode ser vista como um


espaço vazio que abre possibilidades de invenções de procedimentos tanto para os mestres
como para os discípulos. Para ter uma vaga ideia de onde essas invenções podem chegar, cito
como exemplo, o trabalho de Min Tanaka na Body Weather Farm, onde o treinamento está
associado ao trabalho no campo, na plantação de arroz. Já nos registros das aulas de Kazuo
Ohno (BAIOCCHI, 1995), ao invés de exercícios típicos para dançarinos, imagens poéticas
servem de gatilhos para a dança. Como acontece nesta fala de Onho: “para os mortos, olhar a
flor e comê-la é a mesma coisa. Os fantasmas comem com os olhos. Você e a flor são a
mesma coisa. Comendo a flor está comendo a si mesmo. Nós precisamos dos dois” (OHNO
apud BAIOCCHI, 1995, p. 50). Imagens como esta são ignições para que o dançarino acesse
suas memórias, seu corpo ancestral, um corpo que vai das trevas em direção à luz ou que
retorna ao útero materno, etc. Tais imagens não apontam claramente para a forma que a dança
deve ter. No Butoh não há fórmula, não há um procedimento fixo que possa apontar para um
fim, pois não há um objetivo a ser alcançado. Nesta arte existe espaço para um conhecimento
que não está dado em livros ou métodos e me interessa pensar em como este conhecimento
pode ser suscitado. Assim, me questiono sobre quais especificidades pedagógicas são exigidas
no ensino de uma prática que não reside no campo do conhecido, do codificado, do já
calcificado por um saber. O conhecimento sobre o Butoh se produz nele mesmo. Como coloca
Hijikata Tatsumi, “[...] não há filosofia antes do butoh. Só é possível que a filosofia possa sair
do butoh.” (HIJIKATA apud BAIOCCHI, 1995, p. 18).
Proponho aqui, pensar a questão do “ensino” do Butoh pelo viés do mestre ignorante
(RANCIÈRE, 2002). Para tanto, me utilizo dos textos O mestre ignorante e O espectador
emancipado, ambos de Jacques Rancière. No primeiro, o foco está concentrado na
possibilidade de um outro formato de pedagogia e no segundo, o autor pensa a condição do
espectador a partir da ideia de mestre ignorante e pela problematização da ligação entre causa
e efeito. O mestre ignorante reflete sobre a teoria de Joseph Jacotot, professor francês do
século XIX que afirmou, como explica Rancière, “que uma pessoa ignorante poderia ensinar a
outra pessoa ignorante o que ela mesma não conhecia” (RANCIÈRE, 2010, p. 108). A
distância de contextos entre Jacotot e o ato de pensar a condição do espectador hoje, é
assumida por Rancière que afirma que a própria distância pode ser interessante se forem
explicitados os pressupostos que ainda colocam a condição do espectador num ponto entre
arte e política. Partindo também da distância, utilizo a ideia do mestre ignorante para pensar a
postura do mestre no Butoh. Quando faço essa associação, entre o mestre ignorante e o mestre
de Butoh, o faço pelo fato de que ambos não sabem o que ensinam. Porém, ainda assim
podem fazê-lo de forma eficaz. Por não saber o que é o Butoh ou qual a sua forma, o mestre
deve criar maneiras de suscitar a busca nos seus discípulos. Hijikata e Ohno falam muito
sobre o Butoh como um conceito quase flutuante mas nunca dizem o que ele “será” nos
corpos dos outros dançarinos. Seus discursos se retém um passo antes disso. Suas linguagens
são reticentes e enigmáticas, e dizem “o que é”, mas o trabalho de descobrir “o que será” está
aberto para o outro, quase como no Zenii, que

nada tem a ensinar, no que se refere à análise intelectual, nem impõe qualquer
conjunto de doutrinas a seus seguidores. Nesse sentido o Zen é caótico. Seus adeptos
podem formular conjuntos de doutrina, formulando-as, porém, por sua conta e para
benefício próprio e não do Zen (SCOFANO, 2007, p.109).

A partir disso, reflito sobre as posições de professor e aluno, mestre e discípulo.


Quando utilizo o termo professor isso traz consigo toda a ideia de instituição de ensino e de
algo a ser ensinado e aprendido. Quando olho para os mestres de Butoh, vejo que a partir do
que é dito por eles, os discípulos são incitados a se manter numa busca constante. Tal busca
não cessa nem no caso do mestre, que continua seu percurso, nem no caso dos discípulos, que
trabalham com invenções de caminhos, de treinamentos que os levem aos seus próprios
Butohs. A postura do mestre é a daquele que não trabalha para o outro, não lhe dá respostas,
mas faz com que o outro trabalhe, que persiga suas próprias respostas.
Segundo Rancière, o questionamento da pedagogia pode servir de reflexão para as
Artes Cênicas. A posição que o mestre da educação embrutecida – termo utilizado por Jacotot
e que define o negativo da educação emancipadora – assume, impede sempre que o aluno se
emancipe. Por mais que o mestre da educação embrutecida tenha consciência de que o aluno à
sua frente possui um repertório de conhecimento pessoal anterior àquele encontro, ele precisa
ignorar esse fato para impor uma distância que determina quando, onde e como o aluno deve
aprender, além de estabelecer o que ele deve conhecer antes disso ou daquilo. Um outro tipo
de distância porém, pode ser pensada: “a distância que a pessoa ‘ignorante’ precisa atravessar
[...] é a distância entre o que ela já conhece e o que ela ainda não conhece, mas pode aprender
pelo mesmo processo” (RANCIÈRE, 2010, p. 114). O aprendizado mais essencial, que é o da
língua materna, já foi efetuado pelo aluno e é através dele que este pode passear por um
universo de signos que fazem a intermediação do seu contato com o outro e com o mundo. O
aprendizado de outros conteúdos que não a língua materna, pode se dar por também por
adivinhação, e Rancière questiona se não seria esse método da adivinhação, que devolveria o
poder e a verdadeira inteligência ao homem. Pois ao tentar reconhecer e responder a algo que
lhe é endereçado, o homem pode fazê-lo sob o signo da igualdade e não na condição de aluno
ou de sábio.
Para Rancière, compreender não é nada mais que traduzir. Neste processo de tradução,
não se faz necessária a presença de uma inteligência “outra”, do explicador, que revele algo
que se esconde por detrás do texto, da página. Para o autor, não existe esta instância
escondida do conhecimento que demande um terceiro explicador, não há “nenhuma língua do
mestre, nenhuma língua da língua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das
palavras e frases de um texto” (Rancière, 2002, p. 22). Um outro ponto de reflexão se abre
aqui. Os workshops e textos sobre Butoh passam por várias traduções. Kazuo Ohno dava suas
aulas em japonês com alguns termos em inglês, Tadashi Endo fala em inglês e alguém o
traduz para o portuguêsiii. Sobre o ato da tradução, Edélcio Mostaço comenta:

Transladar para outra língua os termos, expressões, construções frásicas e vocábulos


muitas vezes forjados pelo autor resulta desconcertante, pois implica fazer falar um
texto dialógico, no interior do qual nos deslocamos, nos interrogamos, à deriva do
que somos frente àquelas formulações, muitas vezes sem equivalentes em nossa
língua. Negociação talvez exprima esse paradoxo, que também pode ser designado
como permuta ou diplomacia (MOSTAÇO, 2010, p. 11-12).

Para Beth Brait um dos eixos do pensamento de Mikhail Bakhtin é justamente a


natureza dialógica da linguagem. Assim, não ignoro os processos dialógicos e de tradução
constante efetuados numa relação de mestre e discípulo. É importante explicitar que termos
como dialogismo, polifonia, interdiscurso e heterogeneidade não correspondem
necessariamente às palavras cunhadas por Bakhtin, mas às definições posteriores a ele e
condensadas por seus comentadores. Sendo assim, me valho de dois desses comentadores –
Brait (2007) e Faraco (2007) – para ler com maior precisão o dialogismo na perspectiva do
presente trabalho. Brait tenta rastrear a questão do sentido e da significação na obra do autor
russo, além de esboçar o seu “projeto em torno do sentido” (BRAIT, 2007, p. 64).
O ser humano pensa e produz sentidos partindo de suas referências. Assumir ou não
que tais referências são retalhos de pensamentos, são traduções, são estrangeiras, é uma
escolha. Esta questão parece bastante óbvia quando colocada nestes termos, mas vejo a
importância de explicitar e reiterar essa obviedade. Um brasileiro, falante de português,
jamais terá um “contato original” com um texto proveniente de outro idioma. Por mais que
nós possamos aprender com maestria inglês, alemão, espanhol, russo, japonês, nós não
crescemos inseridos na cultura que produziu estas línguas. A grande questão é que este
processo de tradução não ocorre apenas entre idiomas, ele ocorre constantemente entre
discursos, sendo os enunciadores conterrâneos ou pessoas vindas de lugares muito diferentes.
Tendo o fato dado de que a mensagem emitida não é a mesma recebida, pode-se expandir esta
visão e considerar que o saber surge deste jogo entre ruídos, entre desentendimentos, ou seja,
é por dialogismo que o conhecimento emerge.
Quanto se trata de dialogismo, deve-se ressaltar que existem duas concepções deste
conceito em Bakhtin. O dialogismo entre discursos (intertextualidade para Tzvetan Todorov)
e entre sujeitos. E a ideia de sujeito em Bakhtin é a de um sujeito histórico e ideológico. É da
interação entre esses sujeitos que o sentido emerge. Ou seja, os estudos da comunicação
verbal – pautados na Teoria da informação que considera um emissor e um receptor e
um “fazer-saber” – não dão conta da teoria da comunicação em Bakhtin. O autor considera
a “heterologia” ou a “pluridiscursividade”. Portanto, o sistema de mão única emissor-receptor
passa a ser visto como um sistema interacional. Deste modo, por meio de Bakhtin posso
pensar um sentido para o Butoh sendo construído conjuntamente e não sendo emitido por uma
voz única. Pois, como afirma Daiana Luz Pessoa de Barros sobre o dialogismo, "os falantes
no diálogo se constroem e constroem juntos o texto e seus sentidos" (BARROS, 2007,
p.29). A ideia de distancia entre interlocutores é subvertida pela ideia de intersubjetividade e
historicidade. Sobre isso, Brait explica que

o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos


processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez,
instauram-se e são instaurados por esses discursos. E aí, dialógico e dialético
aproximam-se, ainda que não possam ser confundidos, uma vez que Bakhtin vai
falar do eu que se realiza no nós, insistindo não na síntese, mas no caráter polifônico
dessa relação exibida pela linguagem. (BRAIT, 2007, p. 69).

No embate de pensamentos que surge em uma relação de mestre e discípulo e que


constrói o que vem a ser o Butoh, o que me interessa é justamente esse caráter polifônico e
não uma síntese, um aniquilamento das distâncias. Para Rancière, a tentativa de acabar com as
distâncias se baseia justamente na pressuposição de oposições distantes: olhar/saber;
aparência/realidade; etc. Estas oposições são alegorias da desigualdade, o que o autor nomeia
como a “partilha do sensível”. A emancipação, por outro lado, trabalha com a ideia da
igualdade. O espectador – ou o aprendiz – é visto como ativo, pois interpretar o mundo já é
dar a ele uma nova configuração. Ele faz o seu poema a partir do poema que é a ele
apresentado. O dramaturgo, o diretor e os atores, porém, muitas vezes esperam que o poema
do espectador seja exatamente o que eles planejaram, como se este controle pudesse existir. O
princípio da emancipação desmonta esse processo de causa e efeito. Para Rancière:

esta identidade entre causa e efeito é o princípio do embrutecimento. Em


contrapartida, o princípio da emancipação é a dissociação entre causa e efeito. O
paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o
mestre não sabe já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o
que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente
procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do
mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre (RANCIÈRE, 2010, p. 116).

O que o aluno aprende não é necessariamente o que o outro sabe, ele pode inclusive
aprender o que o mestre não sabe. Vejo que no Butoh se caminha por essa via quando se trata
do “ensino”. Assim como Jacotot afirmava que “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a
ensinar-lhes” (JACOTOT apud RANCIÈRE, 2002, p. 27), em Campinas, Tadashi Endo nos
disse que não havia aprendido Butoh com Kazuo Ohno e que tampouco nos ensinaria Butoh,
visto que não se trata de dança, mas sim de uma escolha de vida. Ou seja, ser um dançarino e
ser um butoísta são coisas diferentes. É preciso viver o Butoh. É preciso caminhar sozinho.
Sendo assim, é impossível definir quando começa e quando termina o aprendizado em Butoh.
É preciso abrir a percepção para a vida e encontrar nela o Butoh, a poesia ou a própria vida.
No livro Kazuo Ohno: el último emperador de la danza, Gustavo Collini Sartor diz que:

Uma lição de Kazuo Ohno não é uma lição normal. Quando começa? Talvez quando
tomamos o trem de Tóquio até Yokohama? Quando nos sentamos no seu estúdio, ao
redor da mesa, tomando uma xícara de chá e o escutando antes de trabalhar?
(SARTOR, 1995, p.123).
No caso do mestre ignorante e no caso do Butoh, o mestre ocupa o lugar de verificar
se o aluno está engajado em sua busca. Deste modo, o percurso lógico de uma proposta de
treinamento pode não ser claro. Por vezes uma proposta de experiência traz consigo uma
tentativa de criar espaços de vida. Isso me remete à quando, no meio do workshop O visível e
o invisível no trabalho do ator-dançarno, Tadashi e Simioniiv nos convidaram para passar um
dia na casa do segundo e nos propuseram uma série de ações. Nos dividimos em equipes.
Alguns fariam diferentes molhos, outros fariam a salada e outros ainda a sobremesa, os
mestres fariam macarrão. Pela manhã, nos encontramos para comprar ingredientes, esperar
algum colega que se atrasa ou se perde. Quando chegamos na casa, estivemos conversando e
esperando que algo acontecesse. Quando fomos cozinhar a instrução que recebemos foi que
não poderíamos falar uns com os outros. Imediatamente nossas teimosias começaram a
aparecer na feitura do molho. Nossos entendimentos pelo olhar também. As ações simples
envolvidas no cozinhar, exigiam de nós a mobilização de nossas sensibilidades. Enquanto
isso, os dois proponentes passavam por nós, observavam e davam algumas risadinhas.
Uma outra ação proposta foi a de que cada um tomasse a iniciativa de cantar uma
canção de sua infância enquanto os demais se manteriam em silêncio. Toda a casa se
envolveu numa nuvem de ternura e saudade, parecendo que o silêncio cantado era mais
silencioso. Quando uma linda mesa estava arrumada fomos convidados a procurar o envelope
de hashi que nos pertencia pois o nosso nome estava escrito lá, em japonês. Quando cada um
estava com o seu envelope, Tadashi foi passando e reorganizando a distribuição dos hashis, se
divertindo como os nossos enganos. Comer aquela comida estava envolvido por tudo o que
sentimos enquanto cozinhávamos. Conversamos muito, contamos nossas histórias do Brasil,
Colômbia, Equador, Dinamarca, Espanha.
Nessas duas propostas de ações fomos levados a nos encontrar conosco mesmos de
diferentes maneiras, e diferentes “nós mesmos”. Estas propostas não contêm em si, nenhuma
relação direta com a dança. É um treinamento do sensível, da relação e do invisível. A partir
dessa experiência em Campinas, penso que o mestre deixa, com suas ações, espaços vazios
que os discípulos devem preencher. Por exemplo, vivendo o que me é proposto, posso me
questionar sobre o que o mestre quer de mim, o que está pensando sobre mim ou sobre como
eu danço. Este trabalho de preencher esta falta é também falho em muitos sentidos, o que
produz uma busca constante. A busca de quem faz Butoh, e os resultados que isso produz,
gera o que pode vir a ser Butoh. Este trabalho é feito conversando sobre o que faz sentido
para a minha dança, é feito quando alguém escreve um artigo sobre Butoh, um poema, ou
quando se tem a coragem de dizer: o que eu faço é Butoh.
O movimento gerado pela dúvida é fértil. Mas para que ocorra criação a partir destas
dúvidas e incertezas é necessário que o sujeito se coloque em uma posição de não saber e de
perseguição deste saber. Por exemplo, uma fala relativamente clara pode ser endereçada a
alguém, e ainda assim, este que recebe essa mensagem produzir questionamentos a partir
disso. Percebo esta postura quando Kazuo Ohno conta que Yukio Mishima sempre dizia “sua
dança é boa”, e Ohno relata que pensava:

Dizer que alguma coisa é boa pode ser interpretado de várias maneiras. O que, na
verdade, ele queria significar com isso? [...] eu pensava comigo mesmo: “Minha
dança é boa, mas o que é bom?” Poderia valer menos que o ruim, então significaria
“o que você faz é ruim”. Isso me deixou pensando durante anos (OHNO, 1995,
p.130).
Portanto, não é apenas o mestre que coloca espaços vazios na sua mensagem, por
vezes é o próprio ouvinte que demanda a busca de mais sentidos naquilo que lhe é oferecido.
E, como afirma Rancière, o querer saber é a condição fundamental para o processo do
conhecer.
REFERÊNCIAS

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BARROS, D. L. P. de. Contribuições de Bakhtin às teorias do textos e do discurso. In:


FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Org.). Diálogos com Bakhtin. 4. ed.
Curitiba: Editora UFPR, 2007. p. 21-38.

BRAIT, B. A natureza dialógica da linguagem: formas e graus de representação dessa


dimensão constitutiva. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Org.). Diálogos
com Bakhtin. 4. ed. Curitiba: Editora UFPR, 2007. p. 61-80.

FARACO, C. A. Dialogismo como chave de uma antropologia filosófica. In: FARACO, C.


A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Org.). Diálogos com Bakhtin. 4. ed. Curitiba: Editora
UFPR, 2007. p. 97-108.

MOSTAÇO, E. Da arte de quebrar pedras ou a cena da emancipação. Urdimento,


Florianópolis, n. 15, out 2010, p. 11-19.

OHNO, K. Entrevista a Sartor. In: SARTOR, G. C. Kazuo Ohno: El último emperador de la


danza. Buenos Aires: Editorial Vinciguerra, 1995.

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad.


Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

_______. O espectador emancipado. Urdimento, Florianópolis, n. 15, out 2010, p. 107-123.

SARTOR, G. C. Kazuo Ohno: El último emperador de la danza. Buenos Aires: Editorial


Vinciguerra, 1995.

NOTAS:
                                                                                                               
i
Agência financiadora da pesquisa: CAPES.
ii
O Zen-Budismo surgiu como uma adaptação japonesa do Tch’an (corrente budista chinesa) que chegou ao
Japão no século XII, a pedagogia do Zen manteve a meditação assentada (zazen) e os enigmas verbais (koans).
Segundo Scofano (2007), o Zen não se funda na lógica ou na análise, “ele apenas sugere o caminho. A menos
que consideremos este sugerir como ensinamento, nada há no Zen propositalmente estabelecido como doutrina
primordial ou filosofia fundamental” (SCOFANO, 2007, 109 -110).  
iii  Esses embates entre línguas maternas geram matizes de entendimento que se perdem, se recriam e que podem
apontar para algo interessante a ser estudado. Pois no Brasil, o acesso restrito a traduções e aos próprios mestres,
pode gerar uma maneira bastante autônoma de criar pensamento e dança em Butoh.  
iv  Carlos Simioni é ator do Lume – núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP – que em quase
30 anos de existência, estabelece alguns diálogos com o Butoh, principalmente através dos contatos com Anzu
Furukawa, Natsu Nakajima e Tadashi Endo.  
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

DRAMÁTICO, CÊNICO E IMAGINATIVO –


OS DIFERENTES ESPAÇOS EM O MENSAGEIRO DO REI
Lucas de Carvalho Larcher Pinto; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vilma Campos dos Santos
Leite; Programa de Pós-Graduação em Artes; Universidade Federal de Uberlândia.

INTRODUÇÃO

Um quarto escuro, um menino doente em uma cama e uma janela por onde
se pode ver o mundo... No quintal, brincam esquilos. Na rua, passam o vendedor de
coalhada, o guarda do pequeno lugarejo, o chefe da guarda, uma menina vendedora de
flores, algumas crianças e também um falso faquir. Nos pensamentos do pequeno
enfermo, montanhas, rios, oceanos, ilhas, aldeias distantes, e histórias fantásticas
ganham forma através da imaginação de quem não pode sair de casa. Estas são algumas
das imagens que nos vêm à mente ao falarmos de O Mensageiro do Rei.
Escrita pelo primeiro não-europeu a conquistar, em 1913, o prêmio Nobel de
Literatura, o poeta e filósofo Rabindranath Tagore, a peça O Mensageiro do Rei (1912)
conta, na perspectiva oriental, a história de Amal. Um menino que, após perder seus
pais, é adotado por seus tios, vivendo sob rígidas ordens médicas, confinado em seu
quarto. Doente, observa os dias passarem através de uma janela frontal a uma casa de
Correios. O lugar no qual, segundo o garoto, chegará uma mensagem enviada a ele pelo
próprio rei, libertando-o para correr mundo afora.
A peça que trata, de maneira lúdica e lírica, a temática da morte e da
liberdade, vem sendo levada à cena por egressos e concluites do curso de graduação em
Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Ficando em cartaz durante os meses de
Maio e Junho de 2014, na cidade de Uberlândia-MG, o espetáculo infantojuvenil ganha
forma através da encenação assinada por Mário Piragibe, lançando mão da linguagem e
dos recursos do Teatro de Formas Animadas (bonecos, objetos, sombras e máscaras)
para abordar as questões filosóficas que se fazem presentes na trama mensionada.
Neste sentido, o texto de Tagore torna-se apenas um pretexto para a
montagem em questão. A encenação, construída com base na representação metafórica
do desejo de Amal: curar-se e correr todo o mundo, insere na área de atuação um par de
sapatos inertes, os quais o menino poderá calçar, um dia, quando livre de sua
enfermidade. Uma alusão à liberdade que a morte pode simbolizar. Liberdade que
permitiria a Amal romper com espaço da casa que o aprisiona, e conhecer os lugares dos
quais apenas ouvira falar, desenhados em seu pensamento.
Com o objetivo de compartilhar algumas reflexões sobre o espetáculo citado
acima, foco da pesquisa de mestrado “A linguagem cênica no Teatro Infantojuvenil: O
Mensageiro do Rei como objeto de análise” (PPGA – UFU), neste breve artigo,
falaremos sobre a presença dos diferentes espaços na montagem em questão. Ou seja,
tal como nos apresenta Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro (2008, p. 132): o
espaço dramático – “espaço dramatúrgico e ficcional, no qual o texto indica ocorrer a
ação dramática” - , e o espaço cênico – “espaço concreto que se configura como área de
atuação dos atores”. E, ainda, aquele evocado pelas falas dos personagens, e que não
pode ser caracterizado como dramático ou cênico, que aqui chamaremos de espaço
imaginativo.

O ESPAÇO DRAMÁTICO
Ao nos depararmos com o texto O Mensageiro do Rei, podemos perceber a
existência de diferentes espaços nos quais a ação dramática se desenrola. Na
dramaturgia em questão, constituída por três atos, em um primeiro momento, temos a
ambientação dos acontecimentos no interior da casa dos tios de Amal. Já em um
segundo momento, - ou segundo ato - , o espaço externo à casa, provavelmente uma rua
vista pelo menino através da janela de seu quarto, serve como pano de fundo para a
história. E, no terceiro ato, novamente, a trama volta a acontecer no interior da casa,
agora, especificamente, no quarto de Amal.
Logo na primeira cena do texto de Tagore, ao sermos apresentados ao
conflito da peça: a doença de Amal, através da figura do Doutor que vem examinar o
menino, proibindo-o de sair ao ar livre, podemos levantar algumas informações sobre o
espaço. Estas, em colaboração com os indícios extraídos das falas da segunda e da
terceira cena, ajudam-nos a entender o contexto no qual a criança está inserida. Amal
vive em um pequeno vilarejo indiano, na casa de seus tios, enclausurado em seu quarto,
sob prescrições médicas. O ano dos acontecimentos não é apresentado, sendo que por
este motivo, podemos considerar a história atemporal.
Além disso, de acordo com as palavras do Doutor, sabemos que a estação do
ano é o outono (um verdadeiro veneno para a doença do menino). E, como podemos
inferir por meio das falas do velho Takurda, - na segunda cena - , a morada de Amal não
é um ambiente simplório, nem luxuoso. Madhav Dutta, o tio, é um pequeno
comerciante, proprietário de uma casa com um quintal repleto de esquilos. Quintal este
onde sua esposa mói lentilhas, e para o qual, nem ao menos, Amal pode se deslocar.
O segundo ato do texto nos apresenta a rua para onde a janela do quarto de
Amal é direcionada. Neste ambiente público, pessoas vem e vão preocupadas com seu
cotidiano. E são justamente estas pessoas, – tais como o vendedor de coalhada, o guarda
do vilarejo, o chefe da guarda, a menina florista, e alguns meninos que brincam na
calçada - , que Amal cumprimenta, estabelecendo uma relação de amizade.
Um dos personagens citados acima adquire importância impar, neste ato, ao
nos referirmos ao espaço, redimensionando a concepção de Amal quanto à rua. Trata-se
do guarda, o responsável por desfazer a curiosidade do garoto quanto o que seria a
enorme casa com uma bandeira no alto, fronteira a sua janela. Ele dirá a Amal ser a
nova casa de Correios, um empreendimento do rei. E, também, que um dia chegará ali
uma carta do próprio rei destinada ao garoto. Uma carta que será entregue pelos
mensageiros do rei: homens que correm de um lado para o outro, com insígnias
douradas em seus peitos.
Ainda com relação ao segundo ato, a rua e seus transeuntes assumem um
caráter afetivo para o menino, através da amizade travada com as crianças que brincam
em sua calçada, e com a florista Shudha. No primeiro caso, Amal se reconhece como
toda criança de sua idade, que não vê o tempo passar ao brincar, quando acompanhado
de outras crianças, livre da solidão imposta por sua doença. Já no segundo caso, o
garoto começa a nutrir um sentimento amoroso, próprio do primeiro amor da infância,
pela pequena vendedora de flores, a única personagem feminina que aparece em cena
durante toda a peça.
O terceiro ato do texto do qual estamos falando, retoma o espaço fechado da
casa de Madhav. Contudo, agora, ao invés de uma possível sala de visitas, em que
ocorrem as três primeiras cenas, que juntas constituem o primeiro ato da peça, o
ambiente no qual a ação dramática se desenvolve é o interior do quarto do menino.
Amal está em sua cama, proibido pelo Doutor de permanecer na janela, sob o pretexto
de que ficar ali piora ainda mais a sua doença.
Neste contexto, em que a doença de Amal configura-se como exacerbada,
algumas visitas se fazem presentes nos últimos momentos de vida do garoto,
imprimindo ao espaço ternura e tensão. São elas: a de Takurda, fantasiado de faquir, a
do Doutor para seus exames periódicos, e a do chefe da guarda, que tendo conhecido o
menino no segundo ato, acha uma afronta a ideia do mesmo de esperar uma carta do rei,
e resolve, por maldade, levar uma falsa carta a Amal, afim de zombar de Madhav, com
quem teve desavenças no passado.
No entanto, uma pancada é dada na porta de entrada da casa dos Dutta, e
pedidos de “abram a porta” são escutados, calando todos os visitantes. A porta da casa é
derrubada, e com a penetração de um feixe de luz advindo da rua do pequeno lugarejo,
veem-se duas figuras sobrenaturais. O arauto e o médico do rei visitam Amal, pedindo
para que todas as portas e janelas da casa sejam abertas. A casa sofre, assim, um
processo de metamorfose. De gaiola que aprisiona Amal, agora, passa a ser leito do
corpo que jaz, ao mesmo tempo em que o menino liberto de sua dimensão material, o
corpo, ganha asas e corre o mundo.

O ESPAÇO CÊNICO

Na montagem de O Mensageiro do Rei sobre a qual nos referimos, ao


propor um universo distinto do da fábula, a encenação do espetáculo se utiliza do
espaço cênico como “área de jogo”, aberta a leituras polissêmicas dos espectadores, e
que é capaz de se adaptar às diversas necessidades e ambientações propostas pela
história a ser contada. Deste modo, tal como sugerido por Brecht, no passado, o
espetáculo conserva a estrutura à italiana, desfigurada por dentro, revelando, assim,
seus recursos técnicos, e explorando a exibição de sua teatralidade.
No espaço cênico de O Mensageiro do Rei – criado por Emilliano Freitas -
vemos a presença de almofadas das laterias do palco nas quais os atores estão sentados
quando não dão vida aos personagens do texto de Tagore. Também estão presentes na
área de atuação os dispositivos cênicos que compõem a cenografia do espetáculo.
Sendo eles: dois baús, de onde saem grande parte dos objetos e bonecos utilizados em
cena ( criados por Angie Mendonça, e que não remetem diretamente ao universo indiano
do texto), assim como a estrutura de uma casa, na qual é projetada a imagem/sombra de
Amal durante o primeiro e o segundo ato, e que é usada em sua significação de morada,
propriamente dita, no terceiro ato.
Explorando as diversas possibilidades proporcionadas pelos dispositivos
mencionados, a cenografia do espetáculo não possui o objetivo de ser figurativa ou
descritiva, reproduzindo os diferentes espaços dramáticos em que os acontecimentos do
texto se desenrolam, mas, sim, sugerir possíveis ambientações para a trama. Deste
modo, a cenografia serve de suporte para que os atores possam contar a história em
questão, algo tido como um grande desafio em espetáculos infantojuvenis, como nos
lembra Osvaldo Gabrieli em seu artigo O Espaço Cenográfico: Cenografia ou
Decoração?. Para o encenador, cenógrafo e figurinista:

...no contexto do teatro infantil está o que eu chamo de “área de jogo” do ator
ou espaço cenográfico lúdico. A cenografia nesse caso existe para colocar o
jogo teatral num contexto simbólico que organiza o olhar do espectador. Um
cenário que expressa uma “concepção visual”, uma intenção plástica ao
articular imagens, cores e formas, para organizar o olhar do espectador,
provocar sensações e sensibilizar o olhar da criança, um cenário que serve
também de apoio espacial e temporal para o ator se manifestar. Esse ambiente
deveria permitir articulações lúdicas, transformações, jogos e possibilidades
de movimentação para os atores e para os desenhos de direção. (GABRIELI,
2003, p. 77)

Em conjunto com a iluminação - de Camila Tiago - , os dispositivos


cenográficos ganham diferentes significações a cada uma das cenas, durante o
espetáculo. Com variações de cor, foco, e intensidade, a luz de O Mensageiro do Rei
colabora para que a área de atuação se transforme no interior escuro da casa dos Dutta,
no primeiro ato da peça; em espaço público recoberto pelo sol, caracterizado pelas cores
quentes e amareladas, no segundo ato; e no quarto de Amal, iluminado pela penetrante
luz azulada das estrelas, no terceiro ato, ou ato final.
Ainda sobre o espaço cênico, podemos dizer que os outros elementos
constituintes da encenação, como os figurinos – assinados por Letícia Pinheiro - , a
maquiagem – criada por Marina Vilela - , e a trilha sonora – organizada por Mario
Piragibe e Lúcio Pereira - , colaboram para que o universo indiano proposto no texto de
Tagore possa ser sugerido, ou até mesmo, materializado na área de atuação. Mesmo que
de uma forma simbólica, não figurativa.
Sendo assim, na produção aqui observada, misturam-se dois universos
distintos: o proposto pela direção do espetáculo, ou seja, o cênico, e o já presente no
texto teatral, o dramático. Observando as apresentações do espetáculo, vemos a
transformação do espaço cênico em espaço dramático, sem que o primeiro seja uma
representação mimética do segundo. Ambos se interpenetram e co-existem em O
Mensageiro do Rei.

O ESPAÇO IMAGINATIVO

Para falarmos sobre a existência do(s) espaço(s) evocado(s) pelas falas dos
personagens, e que não pode(m) ser caracterizado(s) como dramático ou cênico: o(s)
espaço(s) imaginativo(s), utilizaremos como exemplo uma das cenas do terceiro ato de
O Mensageiro do Rei. Esta é caracterizada pelo diálogo entre o pequeno Amal
(interpretado por Renata Sanchez) e o velho Takurda (personagem de Lucas Larcher).
Entre outros assuntos, os dois conversam sobre as viagens a lugares fantásticos
realizadas pelo falso faquir, e de como o garoto imagina os mensageiros do rei que
trarão a carta que ele tanto aguarda.
Na descrição realizada por Amal, o menino diz a seu senhoril amigo que vê
diante de seus olhos um mensageiro do rei atravessando colinas com uma lanterna na
mão e uma sacola de cartas às costas. Mesmo sabendo ser fruto de sua imaginação essa
imagem, Amal descreve todo o caminho trilhado pelo funcionário real para finalmente
chegar à casa de seus tios, e entregar-lhe a mensagem escrita pelo rei. Um campo de
milho, uma cachoeira, um canavial, barulhos de grilos, e aves balançando as caldas
formam a imagem sinestésica descrita pelo garoto.
Já o velho Takurda, fantasiado de faquir, conta a Amal histórias de suas
viagens, que segundo ele, não dependem de gastos, nem econômicos, nem temporais.
Suas incursões por lugares distantes são realizadas por meio de seu pensamento,
frisando a importância da dimensão não-material do ser humano. Takurda diz que
acabara de chegar das Ilha dos Papagaios, um lugar fantástico, onde só vivem os
pássaros, sem qualquer ser humano por perto. Nesta ilha, ninguém fala e ninguém anda,
todos apenas cantam e voam.
Ainda com relação a Ilha, o falso faquir diz a Amal que esta porção
delimitado de espaço físico-imaginativo é coberta por colinas, nas quais a grama parece
brilhar feito ouro. E, também, é cercada por uma água clara, feito diamante derretido,
que escorre até alcançar o oceano... Sendo que ninguém, nem mesmo um doutor (alusão
ao Doutor que cuida de Amal) poderá fazê-la parar por um segundo que seja.
Podemos aproximar Takurda, desta maneira, da figura de um contador de
histórias, ou de um narrador que verbaliza suas experiências (ficcionais, ou não),
compartilhando-as com Amal. Walter Benjamin em seu famoso artigo O narrador,
oferece-nos subsídios para o entendimento desta figura. Para o autor, podemos dividir
ou classificar os narradores segundo dois grupos que se interpenetram: os nômades, ou
seja, os narradores que vem de longe, partindo da premissa de que “quem viaja tem
muito que contar”; e os sedentários, que correspondem ao homem que ganhou sua vida
honestamente sem sair de seu país, e que conhece suas histórias e tradições. Nas
palavras do autor:

A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses


dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso
imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos
com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país
e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1996, p. 198)

Deste modo, sendo o narrador alguém que tem algo da tradição ou de terras
distantes a ser contado, sua relação com os ouvintes é dominada pelo interesse destes
em apreender aquilo que é narrado, tal como acontece quando Amal escuta Takurda,
formulando em seu pensamento imagens dos lugares que não conhece, já que não pode
sair de casa. Por isso, podemos dizer que a cada narrativa de Takurda, Amal imagina
uma nova história, repleta de novas imagens, acrescendo à narrativa sua própria
experiência visual, ou ainda, seu espaço imaginativo.

POR FIM, O LÚDICO

Com o intuito de finalizarmos este breve texto, em que algumas reflexões


sobre os diferentes espaços presentes no espetáculo O Mensageiro do Rei foram
apresentadas, citaremos uma das questões expostas no artigo O lúdico e a construção
do sentido, de Maria Lúcia Pupo. Parafraseando a autora, há muito tempo a cena teatral
deixou de ser constituída pela simples transposição de um texto para o espaço cênico.
Ela não equivale apenas a “um texto e mais alguma coisa”, mas sim a uma complexa
trama em que diferentes sistemas de signos, que não têm sentido absoluto em si
mesmos, formam um significado maior.
Em O Mensageiro do Rei, tal como podemos perceber, após a leitura deste
artigo que aqui se encerra, diferentes são os elementos utilizados para a caracterização
e a construção dos espaços dramático, cênico e imaginativo. No entanto, reconhecemos
em ambos a presença do lúdico em suas composições. Referindo-se à dimensão humana
que evoca os sentimentos de liberdade e espontaneidade de ação, a ludicidade
configura-se como uma recorrência no teatro voltado para crianças e jovens. É através
do lúdico que podemos (re)formular a concretude dos espaços que nos cercam, sejam
eles advindo da criação literária, artística ou imaginativa. Metaforicamente, a ludicidade
é uma janela aberta para mundo.
BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

GABRIELI, Osvaldo. O Espaço Cenográfico: Cenografia ou Decoração?. In:


KUHNER, Maria Helena. O Teatro dito Infantil. Florianópolis: Fundação Cultural de
Blumenau, 2003. p.77 – 80.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo; Perspectiva, 2001.

PUPO, Maria Lúcia. O lúdico e a construção do sentido. Sala Preta. Departamento de


Artes Cênicas, ECA-USP, junho de 2001, p. 181 – 187.

TAGORE, Rabindranath. O Mensageiro do Rei. [S.I.]: [s.n.], 1912. Tradução de Mário


Piragibe.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

ESTADO DE JOGO:
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO CORPO NA BUSCA DO ATRITO

Lucas Heymanns (CNPQ – PIBIC; Iniciação Científica); Orientador: André Carreira; CEART;
UDESC.

O século XX foi palco de intensos questionamentos no campo da investigação teatral que


não podem ser dissociados do contexto histórico de onde emergiram. As pesquisas em atuação, que
tem como marco a investigação e o sistema propostos por Stanislavski, já no início dos anos 1900,
são parte de uma grande mudança nos paradigmas teatrais com base em novas concepções tanto da
arte em si e de sua finalidade como das novas contribuições das teorias do corpo, da filosofia e das
ciências cognitivas. De distintas formas, grandes encenadores, atores e pesquisadores tentaram
libertar o teatro de sua submissão à literatura, ou mais amplamente, da representação de um texto
literário, e dotá-lo de objetivos e técnicas próprias: uma arte autônoma que encara o texto dramático
como um dos tantos elementos do acontecimento teatral e não mais como eixo organizativo
dominante.
Em seu artigo O teatro e a ação física: uma tradição do século XX, De Marinis (2005)
descreve esse processo de questionamento do teatro tradicional da época como movido por uma
busca do que há de essencial no teatro. Ele usa o termo volta às origens para caracterizar esse
movimento em duas direções ilustrado pela oposição original/originário: uma busca pelo original no
teatro no sentido do novo e da originalidade, assim como uma volta ao originário, ao que é primário
e “como tal, pode servir para re-fundar ou simplesmente re-orientar desde as bases o trabalho teatral
sem ter que, por isso, renegar totalmente o passado”. (p. 44) Segundo De Marinis, a resposta quase
unânime dos grandes mestres do teatro do século XX à pergunta “o que é primário, essencial, no
teatro?” se refere ao ator enquanto presença e ação física e à relação ator-espectador, e resume:

Creio que tal unidade de fundo pode ser ressaltada imediatamente em toda sua
evidência se reformularmos e definirmos o tema desta investigação do século XX
em uma pergunta: como (o quê) fazer para que a ação na cena seja real (quer dizer,
obviamente não realística senão eficaz, crível, sincera, segundo os distintos léxicos
que encontraremos). (DE MARINIS, 2005:47)

Assim sendo, as principais experimentações pedagógicas do século XX trataram de


investigar o corpo do ator, sua presença concreta e suas ações não mais como (ou apenas como)
ilustração de uma personagem ou de uma ficção senão como acontecimento real no tempo e espaço
da performance, buscando uma ação eficaz, real, em oposição à mera re-presentação de uma ficção.
O corpo assume um lugar fundamental nesse teatro e passa a ser visto cada vez mais na sua
materialidade: em oposição à abstração do discurso, a ação eficaz é a ação que une corpo e alma,
corpo e mente, ação e pensamento. Essa vertente da investigação da arte do ator passa a debruçar-se
cada vez mais sobre os fenômenos da auto-percepção, da memória e da consciência em um trabalho
sobre o próprio corpo-mente e suas imagens, sensações, associações: o trabalho sobre si mesmo,
nos termos de Stanislavski.
Neste artigo, me apoiarei no trabalho de Stanislavski, Artaud e Grotowski para discutir o
papel do corpo na crise da representação no teatro, relacionando parte de suas teorias com o
trabalho desenvolvido pelo ÁQIS – Núcleo de Processos em Criação Artística, assim como propor
um breve diálogo entre essas práticas e teorias sobre o entendimento do corpo-mente.

Perspectivas históricas

Nos escritos de Stanislavski é evidente a busca por uma atuação orgânica, onde ação,
pensamento e sentimento estivessem juntos. O ator e diretor russo usava-se constantemente da
metáfora interno – externo: a ação externa, a forma, deveria ser preenchida, animada pelo processo
interior, a vivência. Em um primeiro momento de suas investigações, Stanislavski apostou em
procedimentos interiores como forma de preencher e justificar as ações da personagem, através de
técnicas que ficaram muito conhecidas tais como o pensamento em ação, o se mágico, a memória
emotiva. À grosso modo, tais procedimentos consistiam em buscar uma justificação interna para as
ações que deveriam ser realizadas, partindo de lembranças, pensamentos, intenções, sub-texto. É
mais para o fim de sua vida que Stanislavski desloca o foco desses procedimentos mais
explicitamente mentais para o corpo através das ações físicas. Porém, antes de nos aprofundarmos
na questão da ação física, é importante deixar claro que essa mudança de foco representa uma
mudança de ponto de partida que visa no entanto a mesma união entre dimensão interior e exterior
da ação, como atesta essa sua declaração:

(…) A relação entre corpo e alma é indivisível. Da vida do corpo nasce a vida da
alma e vice-versa. Em toda ação física que não seja puramente mecânica e sim
animada desde o interior, se encontra a ação interna; quer dizer, a vivência. Dessa
maneira se criam duas plataformas da vida do papel: interna e externa. As duas se
infiltram mutuamente. Seu fim comum as atrai e fixa sua inseparável relação.
(STANISLAVSKI, 1990:259)

Este entendimento da indissociabilidade do corpo e da alma, do externo e interno, é chave


para a leitura do Sistema de Stanislavski e reflete uma prática artística em intenso diálogo com o
conhecimento científico produzido então.Tal entendimento é consonante com o ambiente teórico de
sua época, como mostra Sandra Nunes em seu livro As Metáforas do Corpo em Cena (2009).
Citando as pesquisas de Joseph Roach, Nunes aponta pelo menos três questões centrais surgidas no
século XIX e que teriam influenciado o entendimento de Stanislavski em relação às suas pesquisas
em atuação. São elas a teoria evolucionista de Darwin, o monismo e a teoria do inconsciente.
Através da teoria evolucionista e dos estudos de etologia, o movimento expressivo passa a ser visto
como “algo inerente, a exemplo de outras espécies animais. De algo conduzido pelos espíritos
animais cartesianos, a emoção passa a ser entendida como uma manifestação vinculada, de fato, à
natureza animal”. (NUNES, 2009:197) Isso implica em um entendimento da emoção e do
movimento expressivo em suas bases biológicas, corporais (na acepção de um corpo-mente
indissociável). A proposta da seleção natural darwiniana também põe em cheque uma definição
ontológica e imutável do homem ao colocar o ambiente como fator indissociável do
desenvolvimento humano: “A teoria darwiniana tornou evidente a ideia de uma ação contínua e co-
evolutiva entre organismos e meio”. (NUNES, 2009:197)
Junto a isso ganham força as correntes monistas, que descartam o dualismo de substância
que coloca o pensamento e a consciência como separados do corpo e da matéria, o que viria a se
desenvolver em um entendimento do corpomente como um continuum indissociável. Por sua vez,
as teorias do inconsciente levantavam questionamentos sobre o controle que de fato temos sobre
nossos processos mentais e nossas emoções, aumentando a desconfiança em relação a infalibilidade
de nossos processos racionais e relativos à memória: “O homem não deixou somente de ser o
centro do universo e da criação, como Copérnico e Darwin comprovaram. Freud fez ver ao homem
que ele não é o centro de si mesmo”. (NUNES, 2009: 199)
Simultaneamente, várias linhas dentro da psicologia e da neurociência, como a reflexologia
e estudos de comportamento, investigavam as estreitas relações entre estímulos externos, emoções
e reflexos físicos. William James, psicólogo do século XIX, foi um dos pioneiros a pesquisar como
estes fatores físicos influenciam na criação dos estados emocionais, usando-se do dictum “Eu vi o
urso, eu corri, eu fiquei assustado” (estímulo externo – resposta física – correspondência
emocional). (cf. GORDON, 2012) Tais teorias tem profunda relação com o deslocamento das
investigações em atuação da representação de sentimentos e emoções para a ação eficaz, entendida
como o total engajamento psicofísico do ator na execução presente da ação, e sustentaria muitas das
investigações em atuação até os dias de hoje.
Assim, Stanislavski propõe o método das ações físicas não só em consonância com o
ambiente teórico de sua época como também em parentesco com investigações em atuação de
outros grandes pesquisadores do teatro, tais como Meyerhold e Eisenstein na Rússia, e um pouco
mais tarde, Decroux e Artaud na França. Falando de forma simples, o método das ações físicas
propõe que o ator realize uma ação e a partir dela perceba as modificações corporais-mentais-
emocionais derivadas da própria ação: ao invés de buscar recordar e sentir a tristeza para aí
expressá-la, construir no corpo uma condição através do tensionamento de músculos, ritmo
respiratório, etc, e deixar-se afetar por essa condição concreta. A ação funcionaria como estrutura
de acionamento da natureza criadora: na sua famosa metáfora, Stanislavski compara a ação física
ao trilho de um trem – o que dá segurança para que o ator seja o passageiro viajante:

Ao viajante não lhe interessa os trilhos e sim o que há do lado de fora ou no interior
do vagão. Viajando em trem vemos sempre novas regiões, recebemos sempre novas
impressões. As vivenciamos, nos conduzem ao êxtase ou nos inspiram tristeza;
comovem e mudam a cada momento o estado de ânimo do viajante e também o
transformam. (STANISLAVSKI, 1990:278)

No trecho que segue, Stanislavski afirma que as tarefas físicas, realizadas com o corpo, são
as mais adequadas para compor os trilhos, já que “o material psíquico não possui propriedades de
constância, se fixa dificultosamente”. (STANISLAVSKI, 1990:278). A metáfora dos trilhos
reverberaria em muitas discussões do trabalho do ator representando a dialética entre precisão e
espontaneidade. Grotowski, alguns anos depois, desenvolveria a partir dos estudos de Stanislavski
um trabalho com ações físicas através de partituras precisas que podem ser vistas como a
radicalização do método das ações físicas, envolvendo um intenso trabalho sobre si mesmo no
sentido de desautomatizar hábitos corporais e livrar-se de bloqueios que impedissem o fluxo de
impulsos e associações desencadeadas pelas ações. As influências das filosofias e práticas orientais
foram também determinantes nesse entendimento de corpo-mente indissociáveis e no
desenvolvimento de técnicas de trabalho sobre si mesmo, a exemplo do yoga e de práticas
meditativas que muito influenciariam a pesquisa teatral do século XX.
Tais influências seriam tema para um longo ensaio. São muitos os exemplos e implicações
da noção de ação eficaz que se desenvolveram desde então, e não cabe aqui citá-los
exaustivamente. O que é de maior importância para nossa abordagem é o crescente deslocamento
da arte do ator como representação de uma personagem e de uma fábula para uma noção de ator-
performer fortemente estruturada na materialidade do corpo e no contato direto entre o ator e
espectador em um mesmo tempo-espaço. Se em Stanislavski as ações físicas ainda eram
direcionadas para a construção de uma personagem coerente com o texto dramático, a tendência das
pesquisas experimentais subsequentes foi explodir cada vez mais a noção fechada de personagem.

Atuação por estados

A pesquisa desenvolvida pelo ÁQIS – Núcleo de Processos em Criação Artística, apesar de


não partir diretamente das referências utilizadas até aqui, possui fortes ecos dessa tradição do
século XX, para usar os termos de De Marinis ao tratar sobre a ação eficaz no teatro
contemporâneo. Coordenado por André Carreira, o ÁQIS é um grupo de pesquisa vinculado ao
Centro de Artes da UDESC – Universidade Federal de Santa Catarina, e investiga uma atuação a
partir de estados. O objetivo da pesquisa tem sido investigar um procedimento de atuação que tenha
como ponto de partida a criação e percepção de uma condição corporal no ator, a qual chamamos
de estados. A ideia é pensar a atuação não a partir de um texto dramático, mas sim de
produzir/perceber estes estados e através deles relacionar-se não só com o texto mas com os demais
elementos do acontecimento teatral: espaço, figurino, relação entre atores, relação com o público.
Assim, desloca-se o foco da representação de uma ficção para o trabalho do ator como forma de
criar rupturas e sobreposições ao texto, dotando-o de outras possibilidades de significação.
Para isso, realizamos encontros práticos semanais onde por meio de exercícios e jogos
investigamos as possibilidades de criação e manutenção desses estados. Além disso, realizamos
encontros teóricos periódicos para discutir nossas práticas em diálogo com outras pesquisas em
atuação e com teorias de outras áreas, tais como a neurociência, psicologia e artes visuais.
Em um primeiro momento da pesquisa investigamos os estados como a criação de uma
determinada condição no corpo, que era então mapeada no sentido de identificar sensações, pontos
de tensão e qualidades de movimento surgidos dessas modificações corporais que compunham o
estado. A partir dessa percepção, buscávamos modular essa condição, suavizá-la e intensificá-la
seguidamente buscando se familiarizar com esse estado. O próximo passo era sobrepor ao estado o
texto dramático e a relação com o ambiente, buscando manter a intensidade produzida antes da
inserção do texto. Esta é uma forma de pensar os estados de maneira matricial, ou seja, utilizando
uma matriz corporal como base constantemente retomada para a “manutenção” da intensidade.
Com o tempo e através das reflexões dos atores-pesquisadores, o interesse da pesquisa
passou a ser menos a criação e retomada de estados específicos e já trabalhados, e sim a criação de
uma condição de jogo entre as matrizes propostas e as informações do meio. Esse novo foco reflete
um interesse de investigar um procedimento de atuação permeável ao acaso e à afetação constante
dos estados pelo ambiente. Usamos o termo ambiente no sentido dado por Richard Schechner em
sua proposta de Teatro Ambiental (1994), onde o ambiente é composto por todos os elementos da
performance, incluindo o público e o espaço que ele ocupa, os performers, os sons, o próprio espaço
da performance seja ele interno ou externo, etc. Assim, passamos a explorar os estados como um
território liminar entre o que é conscientemente proposto (ação) e as informações recebidas, tanto
do próprio corpo quanto do ambiente (percepção).
O acionamento destes estados no entanto não é direcionado pelo conteúdo do texto
dramático. Nas experimentações do grupo, a investigação dos estados é independente da
dramaturgia – esta entra como sobreposição da condição corporal instalada. Desta forma, procura-se
criar um atrito entre o estado do ator e o texto, propondo a criação de significados não determinados
pelo material dramatúrgico. Mais que isso, esse procedimento funciona como obstáculo para
dificultar a representação ilustrativa do texto por parte dos atores ao propor um ponto de partida
para a condição corporal independente do texto.
No espetáculo-laboratório Os Pequenos Burgueses (2011 - ), os atores aprendem o texto de
memória e jogam com os estados com poucas ou nenhuma marcação de cena. Os trilhos do trem
nesse processo podem ser vistos como o próprio texto, que estrutura a sequencia dos
acontecimentos sem porém definir as ações e relações que surgem das sobreposições entre estados e
texto. Essa tem sido uma forma encontrada pelo ÁQIS de experimentar uma atuação que fuja da
tendência a ilustrar de forma simplificadora uma ficção reduzindo-a a representação de um material
pré-concebido. Na pesquisa do grupo, a prática com os estados é uma forma de investigar uma
atuação que se crie justamente no diálogo e no conflito entre estes elementos ordenadores,
combinados de ante-mão em um tempo passado, e os elementos do acaso, que emergem no presente
do acontecimento teatral. Se não existe uma atualização à luz do presente desse material pré-
estabelecido, a atuação serviria apenas para ilustrar algo referente a outro tempo-espaço.
A discussão a respeito da representação ilustrativa é antiga e concerne não só ao teatro mas à
arte em geral. Segue um trecho de uma conversa entre David Sylvester e Francis Bacon sobre a
diferença entre uma forma ilustrativa e um forma não ilustrativa:

DS É uma questão de conciliar os opostos, suponho – de fazer que uma coisa


seja ao mesmo tempo coisas contraditórias.
FB Não é isso que se deseja? Que uma coisa seja tão factual quanto possível e
ao mesmo tempo tão sugestiva ou reveladora às áreas da sensação, em vez de
parecer simples ilustração do objeto que se pretendeu fazer? Não é em torno disso
que gira toda a arte?
DS Você poderia dizer qual a diferença entre uma forma ilustrativa e uma forma
não-ilustrativa?
FB Bem, acho que a diferença é que a forma ilustrativa imediatamente lhe diz,
através da inteligência, aquilo que ela expressa, enquanto no caso da não-ilustrativa,
ela primeiro atua nas emoções e depois faz revelações sobre o fato. Agora, por que
isso é assim, eu não sei. Talvez tenha a ver com a ambiguidade dos próprios fatos,
com a ambiguidade das aparências, e, portanto, esta maneira de registrar a forma se
aproximaria mais do fato por ela ser também ambígua no seu procedimento.
(SYLVESTER, 2007:56)

A partir disso, podemos entender a prática com os estados como um procedimento de


criação de atrito entre aquilo que é dito através da inteligência e aquilo de concreto instaurado no
corpo do ator, o que resultaria em uma forma contraditória, não-redundante. Ao contrário da forma
ilustrativa, a forma contraditória constitui-se na tensão entre diferentes vetores e não se apresenta
como síntese, convocando o espectador a sair de uma percepção passiva para criar um sentido
próprio para a forma. No caso da forma ilustrativa, reconhecemos automaticamente o símbolo,
compreendemos através da inteligência aquilo que ele denota, mas borra-se a percepção do objeto
em si, da percepção presente do objeto. Chklovsky fala de um objeto empacotado: “Nós sabemos
que ele existe a partir do lugar que ele ocupa, mas vemos apenas sua superfície.” Vê-se apenas a
ilustração.
Assim, algo nos é contado, referenciado, porém a percepção do objeto é enfraquecida e não
completa-se em vivência presente, dificultando nossa capacidade de transformar nossa relação com
aquilo que vemos e de criar algo novo a partir dali – um questionamento, uma atitude, uma reflexão.
No sentido contrário a essa automatização da percepção é que deve caminhar a arte, segundo
Chklovsky:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que
pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do
objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o
procedimento da singularização1 dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio
de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado" não importa para a arte.
(CHKLOVSKY, 1978)

Considerações Finais

Essa breve exposição pretende evidenciar como estão fundas as raízes que apoiam as
práticas contemporâneas de investigação da arte do ator e dos estudos da performance. O
entendimento do corpomente unificado em detrimento do dualismo de substância entre corpo e
mente pode ser uma das chaves para compreender a crise da representação do teatro contemporâneo
e a busca por um teatro fundado no encontro de corpos e presenças. O teatro que é reivindicado a
partir desse entendimento não é apenas uma recusa à literatura, mas um processo paulatino de
destronamento de um outro teatro pautado por uma comunicação exclusivamente linguística e
logocêntrica, que relegava a segundo plano elementos essenciais e originários do teatro enquanto
expressão humana e forma artística pelo menos desde os primeiros registros do que chamamos de
civilização. Essa mudança acontece de forma lenta e o cenário atual abriga as mais diversas matizes
desse continuum entre representação/ilustração e apresentação/performance – de fato, esses
binômios tendem a ser cada vez menos polos antagônicos de uma mesma linha e imbricam-se nas
novas teorias que surgem.
A recusa da ilustração, referenciada em Chklovski como o ato de percepção prolongada, de
1 No original em russo, ostranenie (остранение). Existe muito debate quanto a tradução do termo, e em diversas
línguas utiliza-se alternativas como estranhamento ou desfamiliarização.
experimentar o devir do objeto, pode nos dizer muito sobre a construção de formas de arte, e no
caso deste artigo, procedimentos de atuação, menos dominadores e fechados em si mesmo. Este
procedimento de singularização dos objetos é conceito que daria forma ao Verfrendungeffect
brechtiniano e tem grande potência em definir a arte em sua função de desnaturalização do
cotidiano, questionamento do hábito.
A ação eficaz, entendida como ação do total engajamento psicofísico do performer, é ainda
hoje uma sedutora ideia da eficácia do teatro e de sua possível função na sociedade atual, marcada
por uma virtualização cada vez mais intensa da experiência cotidiana. A ação física e a unidade
psicofísica engendrada por ela é um dos principais elementos que tem mantido vivo e inquieto uma
importante parte da investigação teatral contemporânea. Os paralelismos entre o trabalho sobre si
proposto por estes grandes pesquisadores do teatro moderno e as pesquisas científicas sobre o
entendimento do corpomente e da relação entre ação-percepção comprovam o potencial do teatro
como forma de arte e conhecimento fundado na práxis e na experiência do próprio corpo. Que é,
afinal, tudo que há.
Referências Bibliográficas

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STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
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ZARRILLI, P. B. (Org.). Acting (Re)Considered. Oxon: Routledge, 2002.


A VOZ E O SAGRADO
A VOZ E O SAGRADO: RADIOGRAFIAS DE POÉTICAS VOCAIS EM DOIS
CONTEXTOS.

Maria Cláudia S. Lopes; Prof.Dr. Fernando Aleixo (orientador); Programa de Pós-


Graduação em Artes (subárea: Teatro); Universidade Federal de Uberlândia.

Introdução e Discussão
A pesquisa em questão se pretende à investigação da interface a voz e o sagrado,
para refletir sobre o tema voz/canto, espiritualidade e presença. Entende-se aqui a
espiritualidade como espaço de investigação e trabalho sobre si, conectado ao
alargamento da percepção de si e do mundo, de que fala Grotowski. Na realização do
projeto será feita pesquisa de campo em dois contextos distintos. Um deles é o trabalho
realizado por Cecília Valentim, cuja pedagogia da voz é pensada para cura e
desenvolvimento da expressividade do “ser cantante”. O segundo contexto é o trabalho
feito por Maria Thaís, da companhia Balagan em São Paulo, no recente espetáculo
Recusa, cujo processo criativo abarcou a pesquisa com cantos da tradição indígena.
Propõe-se então, a partir deste texto, à apresentação do projeto de mestrado intitulado
“A voz e o sagrado: radiografias de poéticas do canto em dois contextos” em suas
primeiras reflexões.
O canto e a voz poética sempre estiveram presentes em meu percurso - pois
somos seres cantantes. Ainda que o canto e a voz pareçam corrompidos pela
“profissionalização” e “comercialização” do ser, que delegam a possibilidade de cantar
apenas aos cantores, sabemos que há espaços onde o canto é mantido como prática de
todos e como expressão do ser ligado ao cotidiano e à cultura, um espaço cultivado e
fundamental. Neste sentido acredito que porque a palavra tenha se tornado, em um
contexto amplo, mero “utensílio de barganha” (NOVARINA, 2009), e, porque
parecemos nos distanciar da “voz poderosa”, talvez seja realmente importante propor
uma aproximação de trabalhos que envolvam o canto como experiência, seja na cena ou
fora dela.
Em minha trajetória pessoal reconheço um espaço considerável em que
experimentei a voz e o canto cotidianamente. Na infância em escolas de música e coral,
no teatro através de processos nos quais tomei parte como atriz, e depois no Grupo de
Pesquisa Sobre Práticas e Poéticas Vocais, no qual investigamos desde 2010 o limiar
entre fala e canto e praticamos canções entre os atores do grupo. Neste espaço, temos a
canção como possível disparadora da criação dramatúrgica e da exploração da
potencialidade poética da voz no trabalho do ator.
Em nossa herança indígena, o ser é entendido como corpo-som. Tupã significa
Grande Som, na língua abanhaenga, que originou o tupy. Tu é som e barulho e pan é a
expansão. O humano é considerado Tu-py: flauta- em- pé, ou som- em- pé - “(...) os
antigos afinavam o espírito a partir dos tons essenciais do ser, tons que participam de
todos os seres (o que a civilização reconhece como vogais).” ( JECUPÉ, 1998) . Nós,
que somos este “corpo-som”, colocamos e praticamos ações às vezes a serviço do
desserviço de nós mesmos; e se de um lado nossos ancestrais indígenas cantavam,
nomeavam ou entoavam sons com o intuito de fortalecer-se e conectar-se com o entorno
de uma forma a viver a experiência de integração, hoje são poucos os espaços em que
são mantidos/cultivados processos em que a identidade experimenta uma dissolução
parcial ou imersão no sentimento de comunidade e no exercício de totalidade, conexão
com o “sagrado” .
Recentemente duas experiências se articularam a essa trajetória anterior e
mobilizaram meu interesse pela interface entre voz e espiritualidade, tais experiências
são oriundas de contextos diferentes, e têm como ponto de interseção os canto de
tradições e a ligação com o sagrado ( ainda que de formas diferentes). Interessa-me
justamente os pontos de distinção entre tais contextos e as suas semelhanças:

Cecília Valentim:
Cecília Valentim é cantante, psicoterapeuta e educadora vocal. Especializou-se
em Música Antiga na Inglaterra e Espanha e em Healing Voice (Cura da Voz) e
Overtone Chanting (Canto dos Harmônicos) na Inglaterra. Aproximei-me de seu
trabalho fazendo uma oficina de quatro dias (2012/Jan) e um workshop no Seminário de
Voz II, realizado em Florianópolis (2012/Nov). Neste ano, no processo de escrita do
projeto, participei de outro curso com duração de um mês e também de um círculo de
práticas de cantos de tradições religiosas e mantras conduzido por ela. Esta aproximação
e experiência têm sido muito reveladoras, em parte porque reconheço alguns princípios
em comum trabalhados por nós no Grupo de Práticas e Poéticas Vocais – a imagem de
oposição entre topo da cabeça/céu e base/chão; a voz como corpo, que se propaga ao
contrário da ideia de projeção do som, etc. - e em parte porque me leva a pensar no
recorte canção/voz e espiritualidade movida por uma curiosidade e desejo de
aproximação. No trabalho de Cecília Valentim ela aborda dimensões humanas que se
engajam na prática do cantar, e nas quais ocorre uma alteração
física/psíquica/emocional que aproxima o ser da experiência corpórea-espiritual
Os campos do artístico e do espiritual estão em permanente deslizamento de
modo que é impossível compreender a pesquisa de Grotowski atendo-se apenas a um
desses campos. É justamente na arte que Grotowski vai encontrar a possibilidade de ser
um ‘investigador espiritual’, pois o terreno da arte permaneceria como um espaço de
pesquisa não submetido a correntes religiosas ou de fé. A noção de ‘trabalho sobre si’,
que Grotowski pegou emprestado de Stanislavski, é uma das que ajuda a manter esse
deslizamento arte/ sagrado em ação sem obrigar o pesquisador a optar por um dos
terrenos. Essa noção revela também o grau de ‘investigação’ e de não dogmatismo com
que Grotowski abordou o terreno do ‘espiritual’.( LIMA, 2010)

Maria Thaís:
Maria Thaís é professora da ECA/USP e encenadora da Cia Balagan de Teatro
na cidade de São Paulo. A companhia que dirige tem particular interesse nos cantos de
tradições e investigam este campo em seus trabalhos. A experiência que tive com o seu
trabalho e que me mobilizou, enquanto espectadora, foi a fruição de dois espetáculos da
Companhia Balagan, dirigidos pela encenadora, em que me impressionei com a
sonoridade/musicalidade da cena e em especial o trabalho com cantos da tradição grega
e indígena. Interessou-me investigar o processo de pesquisa do trabalho Recusa, pois a
qualidade da cena apresentada transcendia, para mim, o simples virtuosismo, parecendo
revelar-se como resultado de um mergulho nas potências do canto em conexão com o
campo da espiritualidade.

Metodologia
A investigação pretendida trata-se, nas terminologias, de uma pesquisa empírica,
porque se baseia na experiência e na observação. Foucault (LIMA, 2013) afirmava
que em nossa civilização desde o “momento cartesiano” nos separamos do acesso ao
conhecimento que subentedia uma transformação do ser, o conhecimento desvinculou-
se da ideia de lugar de emergência. Opto então, neste projeto, por uma abordagem
metodológica que me coloca no encontro com o outro e com o que me acontece a partir
dele.
Aquele que descobre o corpo, descobre os corpos no plural (...) Aquele que
descobre seu corpo, para descobri-lo deve descobrir o corpo de um outro. Não como um
estudioso, mas como quem ama. E então ele descobre o corpo de todas as coisas”
(GROTOWSKI,1978 apud LIMA, 2013)
Para a aproximação dos sujeitos escolhidos paras estudo, embasar-me-ei
conceitualmente, como ponto de diálogo, no “olhar fenomenológico” (MERLEAU-
PONTY,1999), buscando despir o olhar de pré-conceitos e julgamentos para encontrar o
outro na sua alteridade. Quanto à metodologia de escrita, dialogo com o conceito de
“descrição densa” (GEERTZ, 1989) que trata o observado não como objeto, incluindo
os sujeitos e suas vozes, e incluindo-se também como sujeito na observação.
Ainda sobre a escrita e o diário de bordo da pesquisa, Sally Ann Ness (1992), em
sua experiência etnográfica sobre as danças balinesas, sugere que seus leitores olhem
para a escrita como processo, ainda em movimento, o que ela chamou de “performative
mode”. A autora diz que está rascunhando uma nova forma de texto, um texto que
fracassa a tentativa comum de brilhar como um produto acabado e polido. Um texto que
diz NÃO ao “documento”; abrindo espaço para novas percepções do trabalho escrito de
etnografia, fazendo conexão entre os seres humanos envolvidos e que retrataria o evento
etnográfico como ocorrências em acontecimento.
Como procedimentos/ações da metodologia pretendo realizar observações
diretas, entrevistas e frequente escrita em diários de bordo conectados à literatura da
pesquisa.

Possíveis perguntas

Fernando Antônio Mercarelli (2013), ao pesquisar Grotowski, pontua que ao


partir de elementos de diversas tradições o corpo do ator se descondiciona, e que, as
“... diferentes tradições em sua diversidade antropológica possibilitam um certo
deslocamento que remete a outras possibilidades do homem em relação.”
(GROTOWSKI, 2006 apud MECARELLI, 2013). Ainda que deslocado de uma
intencionalidade institucionalizada ou fé específica, seria então a poética do canto
relacionado às tradições culturais e religiosas diversas, um elemento potente para o
alargamento da percepção e do trabalho sobre si nas práticas relacionadas à arte do
ator? Quais seriam as divergências e imbricamentos entre os dois contextos escolhidos
para estudo? Essas são as perguntas que no momento norteiam o trabalho em recém-
iniciada jornada.

Referências Bibliografias
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cargo de Professor Titular da PUC/SP, realizado em 23/06/93, publicada no Cadernos
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VALENTIM, Cecília. Círculo de Prática de Mantras. (Apostila de oficina). 2012.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GESTOS COMO RUÍDOS, ESPACIALIDADE COMO MEIO DE
COMUNICAÇÃO

Marli Fernandes Magalhães1

Resumo:
Este artigo tem por objetivo relatar interesses e descobertas dentro de um
processo de investigação sobre o trabalho do ator. Momentos vividos em uma monitoria
da disciplina Técnicas Vocais I, ministrada pelo Professor Dr° Fernando Aleixo, no
Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Trabalho realizado junto à
aluna Lorenna Karla do Curso de Teatro da UFU, no qual o objetivo fora observar a
disponibilidade natural com a qual a aluna utiliza dos ressonadores e o espaço em prol
da comunicação e do trabalho do ator, trabalho este que fez compreender uma
necessidade real de aprofundamento no universo do surdo. O texto apontará indagações
que estão presentes nesta trajetória de investigação, questões que surgiram ao pensar a
composição vocal, a construção do personagem e a espacialidade no contexto de
pessoas surdas. A apropriação de informações em benefício da pesquisa. O estudo de
pensamento de autores voltado ao fazer teatral, que mesmo sem mencionar a questão da
surdez, certamente é uma forte ferramenta para atingir o objetivo da investigação.
Conhecimentos que serão peça chave para possibilitar a execução de um projeto serão
compartilhados neste texto. Se não para responder, para questionar.

Palavras chave: Ressonadores. Surdez. Intérprete. Teatro. Corpo. LIBRAS2.

Introdução:

Graduada em Teatro no Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Mestranda em Artes Cênicas (Teatro), UFU.

LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais.

1
Trata-se realização de um projeto de pesquisa, em andamento, que compreende a
voz como extensão do corpo. Relatos de informações contidas em textos de autores que
exploram o fazer teatral em seus estudos. Embora não tenha encontrado ainda, leitura
diretamente direcionada ao trabalho teatral com surdos, no que diz respeito à sonoridade
possível a essas pessoas, ao trabalho vocal, a poetização da fala e o espaço como meio
de comunicação, o objetivo é, por meio deste texto, traçar um paralelo com alguns
autores que embora não falem dos surdos, oferecem material que permite pensar a
questão teatral, corpo, sonoridade, vocalidade, inseridos no universo desses indivíduos
que usam o corpo, a expressão facial e corporal e o espaço como meio de comunicação.
Movimento de mãos e do corpo que contam história, expressões que substituem a voz
falada. Os relatos tratarão de uma apropriação de informações para construir um
caminho traçado em busca de perguntas e respostas, no qual o fazer teatral, além das
ferramentas comuns ao teatro, terá a experiência junto à aluna Lorenna Karla enquanto
da utilização dos ressonadores para auxiliar a emissão sonora possível à aluna, também
como facilitador da comunicação, e ainda contaremos com a LIBRAS (Língua
Brasileira de Sinais) a favor da cena.

Apresentação

As questões tratadas aqui surgiram no decorrer da execução do projeto de


mestrado em Artes, subárea: Teatro, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O
projeto aborda questões que surgiram da investigação para conclusão do mesmo, no
entanto a metodologia esquematizada não satisfez as necessidades da pesquisa. Seria
preciso ações complementares para possibilitar o andamento do trabalho. Como
aprender a linguagem de sinais, por exemplo. Seria impossível qualquer ação sem falar
a língua dos investigados, também não é só conhecer os sinais, é necessário entender o
contexto com o qual o surdo utiliza desses sinais para comunicar-se.

Então estratégias foram criadas, como monitora da disciplina: Técnica Vocal


(Semestre/1), do curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Drº Fernando
Aleixo, no qual foi possível esclarecer várias questões junto a aluna Lorenna Karla,
graduanda do 3º período do curso de Teatro da UFU, primeira ingressante surda no

2
curso, com relação à utilização dos ressonadores como potencializador de sons, assim a
possibilidade de investigação no que diz respeito à utilização desses ressonadores, do
espaço e ainda o aprendizado da LIBRAS com o contato direto com a aluna surda.

Outro fator relevante no processo é a escassez de material teórico para


fundamentar a pesquisa. Poucos autores falam das questões teatrais direcionados às
pessoas surdas, alguns falam pensando o deficiente. Faz-se necessário lembrar que os
surdos não se consideram deficientes e também não gostam de ser tratados como tal.
Segundo Lorenna Karla surdez não é deficiência. Devemos referir a eles como “surdos”.

Para melhor compreender essas questões foi preciso ampliar os estudos com
relação à pessoa surda, e assim voltar à atenção para toda e qualquer informação que
pudesse auxiliar de alguma forma. Além das disciplinas obrigatórias seria necessário
participar de palestras ministradas por profissionais do Teatro, encontros com pessoas
surdas e ainda pesquisar sobre a história dos surdos, um pouco de sua trajetória e de
como a LIBRAS chegou à suas vidas, para assim melhor entender o contexto explorado
pelos eles, questões espaciais e corporais, ou seja, locais usados no corpo e no espaço
para expressão, para comunicação.

A palestra ministrada na UFU, em 04 setembro de 2013, pelo Professor Dr.


Adilson Florentino, professor da UNIRIO, possibilitou uma reflexão a cerca do
conhecimento teatral. Florentino falou do Ser; acontecimentos teatrais e o Pode Ser; as
teorias teatrais, das investigações participativas, de intervenção na zona de experiência
teatral. Ele acredita que a zona do conhecimento exige um processo de luta, de busca, na
qual as condições de possibilidades de autonomia devem ser ponto de partida para
elaboração de uma prática investigativa, autônoma e emancipada. Florentino acredita
que um projeto exige um processo de investigação, exige investigadores, temos que ir
em busca de provas, de conhecimento. Se existe uma resposta não há pesquisa. Então,
seguindo essa linha de pensamento encontro tranquilidade para ousar durante o
processo, é preciso ouvir quem faz e quem assiste, ou seja, quem gosta de fazer teatro.
A busca, os encontros, a vivência com os surdos, com certeza darão condições e
possibilidades para a realização do fazer teatral dentro do universo dessas pessoas.

“O teatro e a experimentação de existência coletiva e subjetiva, o


banco de ensaio onde avaliam as possibilidades reais de intervenção

3
da liberdade no mundo e o lugar onde a humanidade vive o seu
próprio drama sob a máscara de personagens lendários ou inventados,
que no espetáculo das tensões, se enfrentam no nível mais complexo e
profundo da experiência coletiva”. (Florentino, 2013)3

Na tentativa de infiltrar no universo coletivo dos surdos, e conversando com


Lorenna, tornou-se perceptível uma grande barreira. As pessoas surdas não gostam de
trabalhar sonoridade, lembram os fonoaudiólogos que trabalham oralidade com eles.
Desconhecendo a rejeição que os surdos têm por trabalhos que eles acreditam estarem
obrigando-os a falar, a ideia seria trabalhar os vibradores/ressonadores para
potencialização da emissão sonora e não para obrigá-los a falar.

“No dicionário, ressonância é definida como prioridade ou qualidade


do que é ressonante; fenômeno físico pelo qual o ar de uma cavidade é
suscetível de vibrar com freqüência determinada, por influência de um
corpo sonoro, produzindo reforço de vibrações. Já, num enfoque da
fonoaudiologia, ressonância é considerada como sendo o “uso
adequado de algumas cavidades ósseas supra e infraglóides, que com
a vibração do ar vão permitir uma maior projeção vocal”. (ALEIXO,
2003)

A proposta é trabalhar o potencial já existente, como ações físicas,


movimentação corpórea, visão periférica que os surdos usam naturalmente para se
comunicarem. Ou seja, falar com o corpo. A princípio surgiu a dificuldade por causa
dessa rejeição, primeiramente seria fazer Lorenna e outros surdos envolvidos no
trabalho, entender que é possível conscientizá-los dos sons que eles conseguem emitir e
que podem ser usados em prol da cena, sem necessidade de descartar o uso da LIBRAS
em cena.

“Na vibração e ressonância da voz envolvemos o corpo inteiro com


todo o seu conteúdo sensível. Embora não existam comprovações
científicas sobre o fenômeno da ressonância subglótica (cavidades
torácica e traqueal abaixo da glote), o ator deve, no uso da
imaginação, desenvolver a capacidade de produzir vozes a partir de
diferentes regiões do corpo. O que lhe permite fazer vibrar em

FLORENTINO, Adilson: palavras registradas durante palestra realizada na Universidade


Federal de Uberlândia, em 04 de setembro de 2013.

4
diferentes padrões as pregas vocais e, consequentemente, alcançar um
repertório amplo de registros vocais”. (ALEIXO. 2007, p. 51)

Através de relatos de Lorenna e também textos retirados de livros e internet


oferecidos pelo Professor Paulo Henrique de Jesus, professor de LIBRAS I (UFU), fica
fácil acreditar que na verdade não lhes faltam motivos para que se revoltem com sua
própria história. Segundo o Professor Paul Henrique no início dos tempos os surdos
eram taxados, perseguidos, torturados e até mortos unicamente por serem surdos. Houve
uma época, em certas regiões que os bebês surdos eram sacrificados quando nasciam,
em outros tempos e regiões eles eram castrados para que não gerassem filhos surdos, em
outro tempo não lhe era permitido o matrimônio para que não constituíssem família não
deixando descendentes, que ao entender das pessoas da época poderiam nascer surdos.
Na idade Média os surdos eram sujeitos estranhos e objetos de curiosidades da
sociedade. Os surdos eram proibidos de receberem a comunhão nas igrejas. Também
existiam leis que proibiam os surdos de receberem heranças, de votar e, enfim, de
usufruírem de todos os direitos como cidadãos. De quando da instauração da linguagem
de sinais, antes, quando a comunicação entre surdos e ouvintes era bem precária, nem
mesmo as famílias sabiam comunicar-se com seus parentes surdos, as pessoas surdas
sofriam agressões, intimidações e até tortura por não ser permitido o uso das mãos para
comunicação, ou seja, a linguagem de sinais. Os surdos se encontravam as escondidas
para usarem as mãos, e quando surpreendidos sofriam punições como, por exemplo,
apanhavam com palmatória nas mãos até ficarem roxas. Eram obrigados a falar, mesmo
que não pudessem, era exigido que tentasse ao máximo usar a língua para falar. Por isso
só davam colheres para crianças ouvintes tomarem a sopa oferecida nas escolas, aos
surdos a ordem era que usassem a língua para tomarem a sopa, no intuito que
exercitassem e assim conseguissem falar. Eles eram sujeitos a cirurgias, na qual era
implantado um ímã atrás da orelha, por baixo do coro cabeludo (implante coclear).
Neste ímã era preso, externamente, um aparelho que possibilitaria a audição. Caso não
obtivessem resultado, tiravam o aparelho externo, mas não poderia retirar o interno
obrigando as pessoas a conviverem com aquilo pelo resto da vida. Essas cirurgias eram
feitas em crianças pequenas, com o passar do tempo, conseguiram que os surdos fossem
operados quando já tivessem condições de optar pela cirurgia, ou seja, após os 12 anos
de idade. Ainda assim o autoritarismo dos pais falava mais auto. A grande maioria dos

5
pais não aceitavam ter filhos surdos, faziam o possível e o impossível para que eles
ouvissem ou ao menos, falassem.

Até hoje ouvimos histórias de pais que fazem visitas constantes aos
fonoaudiólogos na expectativa de conseguir que o filho ouça e fale. Durante os
encontros com jovens surdos4 surgem relatos, que quando adolescentes, muitos deles se
revoltam, evitam os fonoaudiólogos, arrancam seus aparelhos auditivos e recusam
qualquer atitude ou pessoa que acreditam estar querendo que eles falem. Essas
informações são encontradas também na internet e são sempre passadas pelos
professores dos cursos oferecidos na UFU e também na ASUL (Associação dos Surdos
de Uberlândia – MG), eles fazem questão que saibamos desses momentos na trajetória
dos surdos.

Por tudo isso surge o problema da utilização dos vibradores/ressonadores, tanto


citados e utilizados pelos fonoaudiólogos. Lorenna, também outros surdos ao
perceberem das intenções do projeto de pesquisa questionam logo se é uma maneira de
tentar fazê-los falar. Sendo assim além do trabalho teatral natural voltado a essas
pessoas, também como mais uma estratégia, fazê-los entender o que se quer com o
trabalho, passar credibilidade, confiança durante a realização de qualquer exercício
principalmente os exercícios que utilizam dos ressonadores e ainda improvisações que
dispensam o uso da LIBRAS. No entanto os encontros com os surdos foi um momento
de extrema importância por possibilitar a conscientização da utilização do espaço como
meio de comunicação. É notória a utilização do espaço no ambiente teatral, mas tal
convivência com os surdos enriquece a visão possível a esse espaço, agora ele é visto
com outros olhos, a comunicação realizada ali depende do espaço físico e corporal para
acontecer. Sinais são modificados dependendo do espaço utilizado. A espacialidade
funciona como magia, a exploração da percepção visual e corporal se une em benefício
da comunicação. Nesse momento a pessoa ouvinte percebe possibilidades outras para
usar o corpo e o espaço a favor da cena.

Quando tratamos de um assunto fica difícil ter propriedade do que se diz se não
existe ainda um número considerável de autores que discutiram sobre o assunto, para
auxiliar na fundamentação teórica. Sem embasamento a preocupação esta na veracidade

4
Jovens surdos que participam de estudos bíblicos organizados pela Igreja Shalom; Comunidade Cristã
em Uberlândia – MG.

6
das informações passadas. O “achismo” pode comprometer o texto. Essa preocupação
era um empecilho até que houve a descoberta do livro: Teatro, Teoria e Prática: mais
além das fronteiras de Josette Féral. “O livro aborda a questão dos vínculos entre teoria
e prática e das censuras inevitáveis dos quais toda profissão parece carregar a marca,
tanto na América como na Europa”. Um livro que com certeza auxiliará muito, para
fazer pensar a pesquisa, descobrir que pode-se escrever sobre relatos de pesquisas sem
medo de informações que não se tenham plena propriedade, afinal trata-se de uma
investigação, uma pesquisa em andamento. “Este livro convida ao leitor a uma simbiose
entre prática e teoria num esforço constante por limitar um pouco mais, o frágil terreno
do desenvolvimento teatral”. (Féral, p. 11). Leitura importantíssima para dar suporte a
uma pesquisa, já que há dificuldades para encontrar embasamento no campo teórico.
Teoria e prática são ferramentas indispensáveis ao desenvolvimento de um projeto. “Um
corpo no espaço: percepção e projeção”. (Féral p.13). O objeto foco da pesquisa seria a
utilização dos vibradores/ressonadores, no entanto o convívio com pessoas surdas abriu
um leque de possibilidades em se pensar o fazer teatral. O corpo dessas pessoas que
possui a expressão corporal e facial como meio de comunicação. Sinais que são
definidos a partir da expressão corporal e facial, como também a colocação espacial.
Saibam que vários sinais sofrem alterações quanto se posicionam diferentemente no
espaço, ou ainda a expressão facial que muda totalmente o significado de um sinal,
como por exemplo: sentimento, depende da expressão facial pra identificar se trata-se
de um sentimento bom ou ruim.

No1º parágrafo da página 16 Féral fala da arrogância do pesquisador, no qual é


possível traçar um paralelo com a experiência de pesquisa, quando deparamos com
fatos, que às vezes são ligados indiretamente ao foco da pesquisa, no entanto são
acontecimentos que obrigam-nos a desviar o olhar, por entender que são etapas de
investigação que não dá pra pular. Metodologias que se transformam em estratégias.
Metodologias criadas a partir das exigências da pesquisa. Seguir de acordo com que a
própria pesquisa pede. Logo em seguida o 2º parágrafo, fala dos acontecimentos que
deixamos de lado, talvez por delimitar o tema, talvez por abrir leques que nos levariam
às questões outras, exigindo outras pesquisas, que o tempo desta não permitiria.

Esse momento de leitura é muito importante pra fazer pensar o que entendemos
por metodologia. A aproximação com o objeto de pesquisa leva-nos a uma metodologia
na qual cada decisão de um procedimento é relacionada à necessidade do andamento da

7
pesquisa. O que seria necessário fazer para atingir este ou aquele ponto que acreditamos
ser crucial. Então o que foi colocado no projeto com relação à Metodologia, entregue na
intenção de pesquisa, às vezes cai por terra. Estratégias foram criadas, mudanças foram
feitas. Algumas ações não foram possíveis, outras foram transformadas, outras
intensificadas, como por exemplo; aprender a Língua Brasileira de sinais exige mais
tempo que o previsto para aprender a língua. Féral fala ainda da teoria empírica da
produção, então pensar a respeito da escassez de material teórico para estudos. Segundo
Féral;

E necessário, então, que a pessoa que aventure no domínio teórico


tenha a humildade de reconhecer que jamais terá feito completamente
o contorno e que, infalivelmente lhe escaparão campos inteiros do
saber. Tal e a lei dos limites humanos. (Féral, pg 36).

A teoria é uma prática. Se este é o caso. Que diferença podemos estabelecer,


então, entre a teoria e a prática artística? Porque há que reconhecer, tudo que se vem
dizendo da teoria se aplica da mesma maneira a prática. (Féral, p. 40). A teoria é
retirada da prática. Sem a prática não tem como se discutir, se teorizar. Falar sobre o
que se conhece. Perceber acertos e falhas e escrever sobre, registrar para que haja
possibilidade de diálogo a confrontação. “É necessário por isso, confundir a reflexão
teórica dessas práticas teatrais e as teorias associadas à obra terminada? Seguramente
não. Teoria e prática são dois domínios interdependentes”(Féral, p. 41)

Pensando em teoria e prática Féral fala do tradutor, diz que sempre escapa algo
numa tradução. Esta fala faz lembrar o intérprete/tradutor dos surdos, geralmente não
conhecem os termos teatrais, pois não convivem com o universo teatral, então busca,
dentro do contexto da linguagem de sinais, uma aproximação ao dito, isso dentro da
interpretação dessa pessoa que não estudou teatro e sim LIBRAS. A tradução nunca é
fiel. E às vezes peca, nega ou modifica o que está sendo revelado.

“Um não pode fazer sem o outro, já que traduzir consiste em instituir
essa passagem em uma mesma inspiração, para criar, negando ao
mesmo tempo a possibilidade de uma transferência perfeita, de uma
adequação exata entre a fonte e o destino. Entre ambos se cria uma
abertura, uma brecha dentro da qual surge toda a inventividade do
tradutor”. (Féral, pg 46)

8
Como a linguagem de sinais abre mão da conjugação verbal e de detalhes, o
intérprete se vê a vontade para passar ao surdo algo próximo, e então a poesia se perde,
detalhes importantíssimos são deixados de lado. Digo isto, porque ao acompanhar a
aluna Lorenna Karla na disciplina de Teatro Brasileiro II5, pude observar ocasiões que a
intérprete não passou exatamente o que foi intencionado a dizer, ou por descuido, ou
ainda porque a informação se tratava de assuntos relacionados a abuso sexual,
falávamos da Ditadura Brasileira, momentos de torturas aplicados a mulheres e homens,
artistas da época, o qual a intérprete se envergonhou em passar, pois falava de
penetração anal e ou, vaginal, o professor explicava do porque da posição que a moça
era pendurada para tortura, a qual seria para a exploração com sexo oral, pois a cabeça
ficava pendurada e os órgãos genitais, o ânus ficavam expostos para facilitar a
penetração, tanto do pênis do torturador, quanto de materiais pontiagudos, vários outros
momentos foram observados, omissões que comprometeram o aprendizado da aluna
surda. Questões a serem exploradas em outras pesquisas. Logicamente deverá haver
uma delimitação, pois é tudo muito extenso, materiais deverão ser guardados para uma
próxima pesquisa.

Não só em Teatro Brasileiro II, mas mesmo durante a monitoria de Técnica


Vocal I, a questão do intérprete chamou a atenção, por várias vezes foi percebido o
conflito entre dados relatados e dados traduzidos/interpretados. O texto estudado no
momento era “Romeu e Julieta” de Shakespeare, uma cena na qual Julieta encontra
Romeu morto e se mata para estar junto dele. Em Shakespeare a poesia é muito forte,
embora exista a questão do contexto para o surdo, devemos entender que a utilização do
contexto não pode comprometer a poesia da cena. Neste caso podemos exigir do
intérprete a questão poética, ou seja, procurar uma maneira que traduza a poetização da
fala. No entanto, no momento da monitoria foi pedido a intérprete que usasse de
detalhes da fala, informações precisas que seriam indispensáveis ao momento cênico. O
pedido foi negado com a explicação de que seria dessa forma para que o surdo
entendesse, que ele não está habituado a conjugações verbais, junções, adjuntos e
detalhes. A questão seria de até onde o intérprete teria conhecimento para passar
informações. Outra coisa é sinônimos, recurso do intérprete, entender sobre o que está

Teatro Brasileiro II: Disciplina do Curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Luiz Humberto
Arantes.

9
falando, ele precisa estar qualificado ou nunca funcionará conforme as exigências do
teatro.

No momento da monitoria o conhecimento da LIBRAS se tornava suficiente


para entender o que não estava sendo passado, por várias questões foi substituído o
intérprete, agora o atual consegue participar de termos teatrais, de lógicas cênicas para
passar a aluna detalhes de falas importante para o fazer teatral sem contrariar o contexto
ao qual o surdo está habituado. Então a descoberta que uma troca deve acontecer, o
intérprete e o surdo devem invadir o meio teatral, se permitir aos contextos do surdo e o
teatral.

O mergulho no universo da pessoa surda, além do foco da pesquisa que é o


trabalho com os ressonadores, carrega consigo varias necessidades de aprendizado. Um
deles seria entender essa linguagem tão peculiar, que se comunica por contexto.
Sabendo que o surdo não conjuga verbos, ele usa o corpo, expressões faciais e
corporais, o espaço para se fazer entender, para falar de presente e passado. Tudo isso
faz pensar no que diz Féral a respeito de se aventurar em um domínio teórico, o
entendimento entre as pessoas surdas se dá diferente dos ouvintes, e não foi em nenhum
texto que pudemos ter essa constatação e sim com a convivência com os surdos. Os
ouvintes exploram detalhes que os surdos dispensam para se comunicarem e o meio
teatral exige escuta dos surdos para que possa acontecer, mesmo sabendo que eles
escutam com os olhas.

Com um simples sinal junto a um movimento o surdo diz uma frase inteira. E
como no teatro, não basta saber técnicas, ter domínio sobre termos, posso afirmar que
teatro e LIBRAS, são duas linguagens próximas, o mais próximo que se possam
imaginar. Ambas exigem o total envolvimento do individuo que resolve dedicar à
exploração desses universos, no qual o corpo é o coordenador das ações. O
envolvimento da pessoa que queira aprender LIBRAS, surda ou ouvinte é o mesmo da
pessoa que quer fazer teatro. Em ambos os casos o corpo, o desejo de se comunicar e de
se libertar de couraças adquiridas pela imposição da sociedade ou mesmo ligadas à
identidade da pessoa, precisam ser trabalhadas para atingir um estado de naturalidade de
ações. No palco ou no universo do surdo, o corpo precisa estar disponível para falar.
Nem todo surdo tem essa naturalidade, pois alguns falam LIBRAS do berço, outros, por
questões familiares, aprendem a língua depois de crescidos e levam algum tempo para

10
se soltarem em prol da comunicação. Isso acontece porque muitos pais de surdo, não
aceitando a condição do filho, e com esperança que o filho fale, insistem com
fonoaudiólogos, outros por falta de informação não dedicam ao aprendizado dos filhos
para auxiliá-los. Existem filhos de surdos, embora ouvintes, que falam LIBRAS
perfeitamente, e ainda pais de surdos que sendo ouvintes, dedicam ao aprendizado da
língua para comunicar com os filhos e com os amigos surdos dos filhos. E ainda filhos
de surdos que se envergonham dos pais e se recusam a aprender LIBRAS. Ou ainda
surdos que não tiveram acesso ao estudo da linguagem e criaram sinais próprios para se
comunicar e conseguem viver dessa forma, isso acontece entre pessoas com mais idade,
certamente de quando o acesso ao estudo da língua de sinais era mais restrito. Mas em
todos os casos a “presença cênica” é notória. No palco da vida o surdo explora a
expressão corporal, a visão periférica e o espaço para comunicarem-se.

Todas estas questões antes não pensadas, por não terem sido vivenciadas, aparecem
durante o trabalho como metas a serem atingidas. Como diz Cecília Almeida Salles em
Gesto Inacabado: processo de criação artística. “O tempo do trabalho é o grande
sintetizador do processo criador. A concretização da tendência se dá exatamente ao
longo desse processo permanente de maturação”. (SALLES, 2009).

Um detalhe relevante ao pensar o trabalho realizado junto a Lorenna Karla é a


questão religiosa, pois ela e sua família, também o grupo de surdo ao qual ela convive e
que de alguma forma tem sido elemento da pesquisa, são religiosos. Em se tratando
desse grupo específico, deve-se pensar estrategicamente, também na questão da
religiosidade dos indivíduos envolvidos, pois eles possuem questões que são estranhas
ao meio teatral, pois o teatro não vê questões religiosas como problema para
convivência em grupo. O fato do toque, contato físico que os atores usam em jogos
teatrais, em trabalhos corporais ou até mesmo na cena, como abraços apertados, beijos
ou qualquer intimidade que seria questão do personagem e não do ator, não são
permitidos à esses surdos por questões religiosas. Ainda o fato de figurinos ousados que
mostram parte do corpo, também da convivência no camarim ou em sala de aula, no que
se refere a trocas de roupa, muitas vezes realizadas diante dos colegas. Ao grande
número de pessoas homossexuais presentes no meio teatral, tudo isso se torna problema
para o grupo, que questiona certas atitudes ditas por eles; “mundanas”. As pessoas
integrantes da religião do grupo constatado acreditam não ser do “agrado” de Deus que
se dispam uns diante dos outros, acreditam que homossexualidade é “pecado”, por isso

11
o descontentamento com o fazer teatral realizado na academia. Outro fato contra os
interesses do grupo citado são dramaturgias sangrentas, violências, sexo, nada disso
seria aceitável pelo grupo. Acreditam ainda que na academia os atores utilizem drogas e
bebidas alcoólicas, também proibidas pela igreja. Então a estratégia seria, para este
momento, um acordo entre suas questões pessoais e o trabalho a ser desenvolvido.

Em uma palestra realizadas na UFU, em setembro de 2013, ministrada por Luiz


Fuganti, ele falava do conhecimento empírico, o que aprendemos “com a vida”,
assimilações que somamos no decorrer da nossa vivência, experiências utilizadas para
enriquecer a pesquisa. Fundamental pra esse momento de tantas incertezas e
descobertas. A inserção social usada sem premeditação. Naturalmente a convivência
com pessoas especiais surgida dentro de uma pesquisa, são dados que devo ressaltar.
Pensar esse momento de pesquisa como uma possibilidade de adquirir conhecimento,
novas experimentação, ações que exigem novas ações.

Também Gaston Bachelard fala do conhecimento em seu livro “A Formação do


Espírito Científico, então o conhecimento empírico e o científico de encontro, em prol
da arte.

“Tornar geométrica a representação, isto é, delinear os fenômenos e


ordenar em série os acontecimentos decisivos de uma experiência, eis
a tarefa primordial em que se firma o espírito cientifico. De fato é
desse modo que se chega à quantidade representada, a meio caminho
entre o concreto e o abstrato, numa zona intermédia em que o espírito
busca conciliar matemática e experiência, leis e fatos”.
(BACHELARD, 1996, p. 7).

Pensar nesta constatação para situar informações advindas dos encontros com os
surdos. Aprendizado conseguido através da observação, importante quanto qualquer
leitura o aprendizado realizado observando seu objeto de pesquisa, acredito, é
extremamente considerável as informações obtidas através da pesquisa prática, viver o
que se estuda, relacionar com o sujeito da pesquisa é um grande aprendizado.

“Mas, desde já, é preciso perceber que o conhecimento empírico,


praticamente o único que estudamos neste livro, envolve o homem
sensível por todas as expressões de sua sensibilidade. Quando o
conhecimento empírico se racionaliza, nunca se pode garantir que
valores sensíveis primitivos não interfiram nos argumentos. De modo

12
visível, pode-se reconhecer que a ideia cientifica muito usual fica
carregada de um concreto psicológico pesada demais, que ela reúne
inúmeras analogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetor
de abstração, sua afiada ponta abstrata”. (BACHELARD, 1996, p. 20)

Bachelard diz que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos


empíricos já constituídos: “não se trata, portanto de adquirir uma cultura experimental,
mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados
pela vida cotidiana”. (BACHELARD, p. 23). Entendo que se fala aqui de resistência ao
que não se conhece, ao novo, ao diferente, causando uma autodefesa às vezes
desnecessária, como vejo os surdos de quando se fala em usar os ressonadores para
potencializar a produção sonora sem que se pensem na fala, unicamente sons, reagem de
maneira defensiva, como que se houvesse necessidade de se defenderem. Não
consideram o aprendizado que possuem por vivências anteriores, vezes que por um
motivo ou outro precisaram, para se fazerem ouvir, precisaram usar os ressonares,
quando choram, riem ou gritam, isso porque não têm consciência deste acontecimentos,
eles não percebem quando gritam, é necessário que conscientize mo os dessa
possibilidade, sem querer que falem, mas sim que utilizem do que possuem, que
aprendam a explorar com consciência.

Durante a trajetória da pesquisa senti ao observar os surdos, que minhas


constatações mudavam meu modo de pensar e de tentar entender o posicionamento
deles perante o mundo, religião e acontecimentos históricos relacionados a eles.
Imagino como seria meu pensamento sobre meu objeto de pesquisa se parasse com a
observação, então permaneceria somente dados que já tenho sem se saber o que é
verdadeiro ou não, o que poderia ser mudado ou acrescentado. Sem o conhecimento
empírico tão rico a pesquisa. Jean Duvignaud fala dos papéis sociais que o indivíduo
pode ocupar, de momentos dramáticos que vidas privadas são tomadas por várias
tramas, cerimônias que encarnam a prática social, a vida ocupando o teatro, e o teatro
transformando a vida. Acredito que esta pesquisa acrescentou um indivíduo na trama da
vida, buscando informações, que embora saiba que o foco da pesquisa não é ajudar o
surdo na inserção social, devo afirmar que, com certeza, sem imaginar o quanto, esta
pesquisa contribuirá sim para um crescimento pessoal da pesquisadora, e que abrirá
portas para novas pesquisas que possam de alguma maneira contribuir para que os
surdos possam sim fazer teatro, se colocarem em situações antes não ousadas, nas lutas
pela conquista de espaço. Por conseguinte, as buscas continuam, a sabedoria do outro

13
sempre será bem vinda para que a investigação aconteça e some ao conhecimento
conquistado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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trabalhos técnico-científicos: projetos de pesquisa, trabalhos acadêmicos,
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14
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auditivo. Revista CEFAC vol.9 o.3 São Paulo Julho/Setembro. 2007. (online)
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SALLES, Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística.. São Paulo, 2009.

15
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

TRABALHO DO ATOR/ATRIZ EM MOTION CAPTURE: UM OLHAR SOBRE A


INTERPRETAÇÃO

Patricia Leandra Barrufi Pinheiro (Capes – FAPESC, Doutorado); André Luiz Antunes Netto
Carreira (orientador); PPGT - UDESC

Pensar no trabalho de ator na contemporaneidade, abre margem para diversas reflexões


acerca da noção de atuação. Além disso, os limites e as definições nas artes têm se tornado cada vez
mais tênues. Na atualidade existem diferentes termos para designar essas novas artes: performance,
arte e tecnologia, videodança, web art, internet art, midia arte, cibernética, ciberator, ator virtual,
dançarino virtual, entre outros. Podemos então afirmar que a profissão de ator pôde ser direcionada
para diferentes mídias como teatro, televisão, cinema, internet, jogos digitais, entre outros. Neste
contexto, o presente artigo apresenta um estudo sobre a presença cênica e a utilização de novas
tecnologias que podem ser aliadas ao trabalho de ator, gerando uma nova concepção de atuação.
Com ênfase no trabalho direcionado ao cinema e aos jogos digitais (games) por meio de
captura de movimento (Motion Capture), este estudo busca o entendimento do tipo de processo
criativo necessário para esse meio e a compreensão desta forma de atuação. Também são apontadas
possíveis distinções de qualidade de presença deste ator. Além disso, este trabalho discute a seguinte
questão: A atuação com o uso tecnológico de captura de movimentos pode ser considerado um
trabalho de interpretação?
Partindo do princípio de que interpretação é a utilização de diversas técnicas ou intuição
para dar vida à um personagem, tem-se que um ator, ao incorporar um personagem, mesmo que via
recursos tecnológicos tais como captura de movimento, ainda pode-se definir como um trabalho de
atuação. Este estudo faz uma reflexão acerca das especificidades de interpretação existentes no
antigo cinema mudo e como é possível encontrar similaridades com a atuação através deste recurso
tecnológico utilizado na atualidade.
Têm-se relatos que, desde o início da história do teatro, o ser humano fez uso de tecnologias,
como o deus ex machina na Antiga Grécia, que era um dispositivo mecânico em forma de
guindaste. Consistia em um elemento cênico que “vinha em auxílio do poeta quando este precisava
resolver um conflito humano, aparentemente insolúvel, por intermédio do pronunciamento divino”
(Berthold, 2004, p. 117), ou como aparatos de iluminação utilizados no teatro de sombras. Assim
também, o trabalho do artista contemporâneo se encontra mediado por recursos tecnológicos, que
podem ser utilizados em novos experimentos.
Com o advento do cinema e da televisão, as técnicas de atuação/interpretação dos atores
sofreram modificações necessárias para essas mídias. A atuação, agora mediada por um recurso
tecnológico como a câmera, possui suas especificidades para afetar o espectador. No início da
história do cinema, a interpretação baseava-se em exageros de gestos e expressões faciais, buscando
com o passar dos anos um trabalho mais “verossímil”, mais próximo do chamado “real”, para uma
maior identificação do público. A televisão também caminhou nessa direção. Para tal definição,
cita-se aqui Walter Benjamin que explicita que:
Ao contrário de um ator de teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um
público qualquer a cena a ser reproduzida, e sim diante de um grêmio de especialistas –
produtor, diretor, operador, engenheiro do som ou da iluminação – que a todo o momento tem
o direito de intervir (...). O intérprete do filme não representa diante de um público, mas de
um aparelho.” (Benjamin, 1994, p.178).
Ao contrário do teatro, onde geralmente pode-se visualizar os atores interpretando em cima
do palco, com todos os artifícios teatrais à mostra como cenário, iluminação, entre outros, no
cinema e na televisão essa atuação é editada pelo recurso da câmera e só são mostrados os ângulos
necessários para nos ludibriar com a impressão de que tudo pode ser real. A interpretação para essas
mídias também entra nesse contexto.
Nos tempos idos do cinema, quando ainda nem existiam recursos de sonorização (com
exceção do piano tocado em uma sessão de cinema para “ambientar” o filme), um gesto “falava
mais que mil palavras”. Os atores precisavam ser “grandes” em cena, assim como no teatro. O
único modo de passar suas intenções e emoções era através de seu corpo. Se não agissem desse
modo, não passariam sua “mensagem” imagética. Em filmes como Um Cão Andaluz, O Gabinete
do Dr. Caligari, Nosferatu, Metrópolis, Aurora entre outros, é possível perceber esse tipo de
atuação. Também não existia ainda a preocupação atual do cinema com o naturalismo.
Especificamente, nas criações alemãs expressionistas, pode-se perceber a firme construção de
personagens grotescos e uma distorção imagética devido ao exagero da dramaticidade, da
teatralidade, da atuação e dos cenários fantásticos que parecem serem retirados do nosso imaginário
inconsciente. Essa estética, inspirada nas belas-artes, teatro e literatura valorizava a atmosfera, o
clima e o psicológico, sendo estes mais importantes que o realismo. A atuação explorava a
deformação ou exagero das figuras, buscando a expressão exagerada dos sentimentos do
personagem, com traços estilísticos bastante definidos visualmente. A precisão gestual era algo
importante, tendo em vista que, não podendo utilizar-se do recurso da fala, dever-se-ia ter uma
forma efetiva de comunicação através do corpo.
Já o cinema atual possui quase sempre uma busca mimética do real, tendo o intuito de
transportar o espectador para dentro da história, remetendo muitas daquelas cenas ao seu cotidiano,
com algumas exceções de opção estética. A forma como conhecemos a atuação para o cinema de
nossa época, teve início também na ilustre era do cinema mudo.
Com base em pesquisas históricas, pode-se citar o nome de Lilian Gish 1, atriz do consagrado
diretor D. W. Griffith2, como a precursora da fórmula diferenciada de atuação para o cinema. Em
plenos anos 20, do século passado, Lilian, até então atriz de teatro, foi trabalhar com o conhecido
diretor. Este a ensinou que a atuação para o cinema era diferente do que ela havia aprendido nos
palcos. O diretor enfatizou que a atriz poderia ser uma excelente intérprete no teatro, mas que as
falas, tão importantes para aquele espaço, não o eram no cinema. Griffith explicou a Lilian que esta
necessitava testar sua expressão corporal de forma ampla sem ser teatral. A atriz então se viu
obrigada a desenvolver uma nova técnica para sua representação, criando assim outra forma de
atuação também para o cinema (Bonfim, 2009). Mesmo assim, Lilian Gish era uma exceção em sua
época em termos de atuação.
Outra atriz, que também deve ser mencionada neste exemplo de exceção à regra, é Maria
Falconetti (também conhecida como Renée Jeanne Falconetti), protagonista de “O Martírio de
Joana D’Arc” com direção de Carl Theodor Dreyer em 1928. A veracidade na atuação de Falconetti
é impactante até os dias atuais. O rosto da atriz esboça fraqueza física e psicológica, impossíveis de
serem ignoradas como reais.
Seu olhar assustado e ao mesmo tempo pleno de fé e esperança traduz um estado de epifania
jamais obtido em outra performance capturada por uma câmera. Dreyer focaliza cada um de
seus poros, fios de cabelo e lágrimas com descomunal respeito — ademais, exibe os algozes
de Joana em ângulos de baixo pra cima, insinuando, assim, a humilhação da garota perante a
força e o poder dos impiedosos eclesiásticos. (Willemin, 2009) .
Apesar desses exemplos tão marcantes, os famosos elementos antinaturalistas ainda eram
usados e abusados no cinema mudo. Atores como Lon Chaney, se apropriavam da forma grotesca
para mostrar em cena sua versatilidade e habilidades de interpretação. Filho de pais surdos-mudos,
Chaney se expressava desde cedo através da mímica, criando fama na indústria cinematográfica
como um artista e maquiador polivalente. Sua atuação em O Fantasma da Ópera de 1925 lhe rendeu
o título de “O homem das mil faces”. Chaney criava máscaras e maquiagens que feriam seu rosto,
dilatando narinas e esbugalhando seus olhos para auxiliar no seu ideal para uma boa atuação
cinematográfica. Suas provações agonizantes em nome do cinema inspiraram artistas performáticos
do Torture Garden3 de Londres (Baddeley, 2005, p. 48).
Ou seja, por mais que para os espectadores seja possível vislumbrar um trabalho
considerado realista ou naturalista no cinema, este se dá através de procedimentos técnicos que
tornam inviável a existência do real. Ou como já diria Bergson: “É cinematográfico, porque é
ilusório e mecanicista” (Bergson apud Machado, 1997, p. 22).
Com o propósito de melhor compreender a transição na atuação entre o teatro, cinema, e
agora para a Captura de Movimento, vê-se aqui a necessidade inicial de expor o que se compreende
por Captura de Movimento e sua historicidade. Na antiguidade clássica, Aristóteles, desenvolveu o
estudo denominado De Motu Animalium (Do Movimento dos Animais), em que expôs os princípios
gerais a respeito dos movimentos dos animais (Aristóteles, 2010). Ele se interessou pelos corpos
dos seres vivos como sistemas mecânicos, mas também investigou questões como a diferença
fisiológica entre as espécies e como estas realizam suas ações de forma peculiar. Aristóteles 4 dava
início, assim, aos estudos da biomecânica. Da época do filósofo grego até os dias atuais, o interesse
pela biomecânica aumentou de forma considerável. Compreender a mecânica dos seres vivos
tornou-se uma ciência importante, não apenas para que entendêssemos o movimento dos seres, mas
também para auxiliar na correção de problemas físicos e ajudar a melhorar o desempenho de atletas.
A Cinemetria5 possui um maior destaque na área. Essa metodologia da biomecânica pode mostrar
não apenas as variações de movimento dos seres, mas também ilustrar sua locomoção no espaço.
Essa prática deu origem ao Fotograma e ao Cinema, conforme Flam:
(...) diversos estudiosos contribuíram para o surgimento da técnica de captura de movimento.
Em 1878, Eadweard Muybridge realizou uma das primeiras capturas de movimento ao
registrar fotografias de um cavalo galopando usando um conjunto de câmeras acionadas pelas
patas do animal. Dessa maneira, ele conseguiu provar que, em determinado momento do
galope, as quatro patas do animal estariam no ar. Muybridge contribuiu também para os
primeiros passos do cinema ao inventar o zoopraxiscópio, um dispositivo capaz de exibir um
série de imagens em sequência, dando impressão de movimento (Flam, 2009, p. 14).
Em um período posterior, outros equipamentos similares foram criados a partir da ideia da
Cinemetria, buscando um maior refinamento.
Max Fleischer e Howard Edgerton foram outros dois colaboradores para a captura de
movimento. Fleischer iniciou em 1915 a primeira animação usando um rotoscópio,
equipamento responsável por projetar e paralisar cada quadro de um filme. Ele filmou seu
irmão movimentando-se com uma roupa de palhaço e produziu desenhos sobre os quadros
individualmente, combinando-os em um animação concluída em 1916. Edgerton, por sua
vez, criou um instrumento conhecido como estroboscópio em 1931. O estroboscópio é capaz
de capturar fotografias nítidas de objetos em movimentos cíclicos de alta velocidade,
“congelando-os”, piscando luzes na mesma frequência em que o movimento ocorre (p. 14).
A partir desses aparatos tecnológicos, muitos outros recursos foram criados, dando origem a
chamada Captura de Movimento (Motion Capture):
Captura de movimento é a gravação de movimento do corpo humano (ou outro movimento)
para análise imediata ou postergada e reprodução. A informação capturada pode ser geral,
como uma simples posição do corpo em um espaço, ou complexa, como deformações da face
e massas musculares (Sturman apud Flam, 2009 p.1).
A Captura de Movimento é utilizada como recurso para testes militares, entretenimento 6,
esportes, trabalho com atletas e até mesmo em aplicações médicas. No últimos anos, a introdução
da Captura de Movimentos (ou Captura de Performance) no cinema teve seu ápice em função da
evolução e do acesso às novas tecnologias. Filmes como a trilogia Lord of the Rings (2001; 2002;
2003), The Polar Express (2004), King Kong (2005), Beowulf (2007), Avatar (2009), A Christmas
Carol (2009), Rise of the Planet of the Apes (2011), The Adventures of Tintin (2011), entre outros.
Neste contexto, pode-se citar o ator Andy Serkis 7, que encontrou seu diferencial enquanto
artista neste tipo de trabalho em filmes como “Senhor dos Anéis” (Lord of the Rings), “O Planeta
dos Macacos” (Rise of the Planet of the Apes) e no jogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2013).
Em entrevista à Steve Weintraub8, Serkis explica como é utilizada a captura de movimento, ou
performance, na atualidade. Weintraub questiona como a tecnologia modificou a forma de criação
de um personagem para o cinema e o que mudou nos últimos dez anos na área:
A tecnologia de captura de performance saiu da tecnologia de captura de movimento, mas há
uma diferença significante. O que fizemos em "O Senhor dos Anéis" foi: eu fui filmando no
set com Elijah Wood e Sean Astin, fazendo as nossas cenas juntos, mas depois eu precisava ir
para um lugar diferente para filmar a captura em movimento, que era o movimento físico de
Gollum. E a forma que as reações faciais foram capturadas, em "O Senhor dos Anéis", em
que os animadores literalmente... o rosto do Gollum foi feito para se encaixar na minha
estrutura muscular. Então, os animadores depois combinavam o frame olhando pela minha
performance que estava filmada. Eles literalmente desenhavam por cima para combinar a
performance de Gollum. Mas, com este filme (O Hobbit), 12 anos depois, nós temos câmeras
de captura de performance, e captura de performance significa toda a performance, em um set
de verdade. Então, eu não tenho que repetir mais nada. Tudo acontece. Eu tenho uma câmera
na cabeça. Minhas expressões faciais são capturadas. Meus movimentos físicos são
capturados. E, lógico, o áudio é gravado. Então, é tudo sobre a atuação entre Martin Freeman,
neste caso, e eu. Eu não tinha que repetir a cena com Peter Jackson me dirigindo
(posteriormente). Então, não tem muita complicação e é como dirigir dois atores
normalmente. (Weintraub, 2013).
Na explicação de Serkis acima, o ator não possui um diferencial no momento de ser dirigido.
Mas ao analisarmos vídeos de making-of, pode-se perceber que a interpretação é regida pela
precisão dos gestos e pela presença do ator. A questão mais pertinente neste caso então é perceber
qual é a distinção na qualidade de presença deste ator que tem o seu trabalho mediado pelo captura
de movimentos. Sabemos que a noção de presença é ampla, mas em termos gerais, pode-se
denominar presença como sendo o “estar presente fisicamente”. Já no teatro a presença pode ser a
qualidade do estar ali, estar “vivo”, estar atuante, ter algo que se sobressaia e se destaque. De toda
forma, a definição de presença se liga a um contexto de fisicalidade. Já para Patrice Pavis (2010), na
atualidade, essa definição precisa ser mais ampla para abarcar as artes da atualidade, principalmente
as atreladas as novas tecnologias. Para Pavis, com a criação de espaços virtuais, o corpo do ator não
precisa ser visível para possuir presença.
O ator pode, assim, muito bem estar ausente do espaço cênico, e estar absolutamente presente
num lugar totalmente distinto. A presença não está mais ligada ao corpo visível. Se estou ao
telefone, estou presente-livre, mas evidentemente ausente no espaço visível (inversamente
ousaríamos dizer, se estou perdido nos meus pensamentos, meu corpo está lá, porém eu não
estou lá, meu espírito está alhures, ausente para alguém que queira falar comigo) (Pavis,
2010, p. 176).
A produção da ideia de presença pode assim redefinir o termo e trazer reflexões também
sobre a noção de ausência. Nem sempre presença pode ser rotulada como uma relação espacial entre
o mundo que vivemos e as coisas ao nosso redor. Gumbrecht (2010) cita que as coisas só estão
autorizadas a serem algo para nós, na medida em que autorizamos sua existência. E isso só se dá
quando se atribui a essas coisas um certo sentido.
No Brasil, coletivos teatrais como o Grupo Galpão e Giramundo, também estão
experimentando o trabalho em Motion Capture em suas criações com intuito de expandir suas
possibilidades e se conectar com as novas mídias. O Grupo Galpão criado em 1982 na cidade de
Belo Horizonte (MG-Brasil), famoso por seus espetáculos de rua, mas também por suas inserções
tanto no cinema, quanto na televisão, adentrou em uma proposta cinematográfica diferente do que
estavam acostumados. O grupo usou o recurso de MoCap (Motion Capture) em um curta-metragem
de animação, sobre uma história de Franz Kafka, intitulado Primeira Perda da Minha Vida. Um dos
integrantes do grupo, Beto Franco, diz que “A animação passa a utilizar o ator, tornando a produção
mais convincente. Além de dar mais possibilidades para o diretor: ele não instrui uma máquina, mas
uma pessoa” (Pacelli, 2011 p.1).
Também o grupo Giramundo, criado em 1970 em Belo Horizonte, interessou-se pela
tecnologia de captura de movimentos, levando a técnica para os palcos. O grupo, conhecido pelo
teatro de marionetes, decidiu ousar incluindo em seu novo trabalho “Aventuras de Alice no País das
Maravilhas”, um boneco digital manipulado em tempo real graças à tecnologia Motion Capture,
comum no cinema, mas rara no teatro. Segundo Marcos Malafaia, diretor do Giramundo, a técnica
de captura de movimento possui inúmeras aplicações.
Um dos tentáculos da captura de movimento é o suporte de construção de um novo
panorama/cenário humano que vai se fortalecendo passo a passo: o mundo das simulações
digitais. (...) A utilização da tecnologia é como na história da Alice, nós vamos entrando nessa
toca e não sei se a gente vai sair. É o universo sintético (Ibidem, p.1) .
Por trabalharem há muitos anos com marionetes, maquinários e afins, o Giramundo viu no
recurso da Captura de Movimento um elemento inovador e enriquecedor para o novo trabalho do
grupo.
É importante perceber que também grupos teatrais estão manifestando interesse em trabalhar
com os recursos de Captura de Movimentos. Apesar de ainda serem experimentos, esta tecnologia
tende a ser, futuramente, um grande auxiliar para práticas teatrais e cinematográficas em nosso país.
Com base nestes conceitos, este estudo continua assim uma busca para a compreensão deste tipo
específico de interpretação, refletindo sobre possíveis distinções na qualidade de presença do
ator/atriz mediado pela tecnologia.

NOTAS

1
Lillian Diana de Guiche (1893 - 1993) foi uma atriz norte-americana
2
David Wark Griffith, geralmente conhecido por D.W. Griffith (1875 - 1948) era um diretor de cinema estadunidense.
3
Clube londrino com temática fetichista.
4
Aristóteles pode ser considerado, inclusive, o pai da Cinesiologia (ciência que analisa os movimentos).
5
Metodologia biomecânica que se destina à obtenção de variáveis cinemáticas para a descrição de posições ou
movimentos de um ou mais corpos no espaço.
6
O Kinect, por exemplo, é um dispositivo de captura de movimentos do console de videogames XBox360 da
Microsoft© com um custo acessível e diversas funcionalidades.
7
Ator e Cineasta britânico nascido em 1964. Especializado em atuação atráves de Captura de Movimentos e
Performance. Ficou famoso ao atuar como o personagem Gollum na trilogia “Senhor dos Anéis” com direção de Peter
Jackson.
8
Correspondente internacional do site brasileiro Omelete – http://omelete.uol.com.br/.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. De Motu Animalium. In: Obra Biológica. Tradução do grego: Rosana Bartolomé.
Madri: Luarna Ediciones, 2010.
BADDELEY, Gavin. Goth Chic: um guia para a cultura dark. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2o ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BONFIM, Mariana. Lillian Gish: Musa do cinema mudo. Site Monalisa de Pijamas, Seção Mona
Cine. http://monalisadepijamas.virgula.uol.com.br/monacine/mona-cine-lillian-gish-musa-do-
cinema-mudo acesso em 04 set 2009.
FLAM, David Lunardi. OpenMoCap: uma aplicação de código livre para a captura óptica de
movimento. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de
Ciência da Computação. Belo Horizonte, 2009.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2010.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
PACELLI, Shirley. Projeto de captura de movimento integra produções do Giramundo e do
Galpão. Em.com.br. Belo Horizonte (MG). Publicação em 01/12/2011. Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2011/12/01/interna_tecnologia,265109/projeto- de-
captura-de-movimento-integra-producoes-do-giramundo-e-do-galpao.shtml acesso em 8/maio/2013.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
WEINTRAUB, Steve. O Hobbit – Uma jornada inesperada. Omelete entrevista Andy Serkis.
Canal Omeleteve. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rSRHAcaNjwM acesso em
01/nov/2013.
WILLEMIN, Pierre. O Martírio de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928). Site
Cinema Filia. http://cinema-filia.blogspot.com/2007/11/o-martrio-de-joana-darc-la-passion-de.html
acesso em 19 set. 2009.
O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O POLÍTICO NA RELAÇÃO ARTISTA-ESPAÇO
Raquel Purper (bolsa Capes); Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço; Programa de Pós-
Graduação em Teatro; Universidade Estadual de Santa Catarina.
Para quem pesquisa arte nos dias de hoje, existe ou deveria existir uma
preocupação em desenvolver um pensamento crítico sobre o papel sociopolítico da arte
e uma reflexão acerca da prática artística que compreende a relação artista-espaço como
condição fundamental da constituição de um espaço político. Uma prática artística que
se constitui como espaço político é aquela que carrega quais características? Sua
existência é determinada pelo que? Pelo modo como as relações entre os artistas são
desenvolvidas no espaço e/ou pela maneira como a relação do artista com o próprio
espaço é desenvolvida? Essas são algumas indagações que norteiam a reflexão sobre
como as relações estabelecidas entre os artistas no ou com o espaço são determinantes
para que se construa um espaço político.
A referência de espaço aqui apresentada é o espaço social, o qual é produzido
pelas interferências subjetivas e que está em permanente mutação. Milton Santos1
(1999) alerta que o viver com o outro – presença inevitável no espaço – supõe sempre
um saber acerca daqueles com os quais se interage e observa que é, principalmente pela
linguagem, que se realiza essa conexão de conhecimentos não-pensada, mas sempre
presente, e que isto inclui as rotinas de comportamento que assimilamos na interação
cotidiana e pela qual somos informados a respeito de algumas regras de sociabilidade. O
autor aponta que os olhares e gestos que trocamos, localizados em determinado registro
lingüístico, indicam certas formas de comportamento e, simultaneamente, de
motivações. Esse espaço construído pela interação, pela rotina de comportamentos,
pelas regras sociais, pelos olhares e pelos gestos irá conectar-se, a seguir, a uma
definição de política que fará com que possamos refletir sobre as relações que
constituem o caráter político do espaço.
Hannah Arendt2 (2004) entende que a política é baseada na pluralidade dos
homens e que trata da convivência entre os diferentes, ou seja, que os homens se
organizam politicamente para certas coisas em comum a partir do caos absoluto das
diferenças. A política, segundo Arendt, surge no “entre os homens” e se estabelece
como relação. Para Jacques Rancière3 (2009), a política é assunto de sujeitos, ou
melhor, de modos de subjetivação que, compreendidos por Foucault4 (2009), são as
escolhas estética e política por meio da qual se acolhe um determinado tipo de
existência. Ou seja, o modo como cada artista se relaciona com seus parceiros de
trabalho e com o espaço são determinados pelas suas escolhas políticas e estéticas. Se
levarmos em conta que a política é baseada na pluralidade dos homens, o modo como
cada indivíduo responde, se adapta ou se opõe a essa organização plural constrói um
espaço político.

1
Geógrafo brasileiro
2
Filósofa política alemã de origem judaica
3
Filósofo francês e professor emérito da Universidade de Paris.
4
Filósofo francês
Alan Badiou5 (2000) entende que o ato político é algo que cria tempo e espaço.
Cria espaço porque diz: “Vou transformar esse lugar em um lugar político”. Badiou
constata que o problema é saber se, atualmente, nós queremos e sabemos criar tempo e
espaços políticos. Para refletir sobre a questão de Badiou relacionada à arte, convoco
Rancière (2009), o qual acredita que “as práticas artísticas são maneiras de fazer que
intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as
maneiras de ser e formas de visibilidade” (p.17) O pensamento de Rancière sugere que a
prática artística transforma o espaço em político, pois ela reconfigura as maneiras de
fazer, de ser e de ser visível de todo o contexto social, não só da própria arte. Então,
para contemplar Badiou, querer e saber criar espaço político na arte depende da vontade
do artista em modificar a distribuição geral das maneiras de fazer. Badiou (2000) reflete
sobre a capacidade política das pessoas e de como se organiza essa capacidade, com
uma lógica distinta da lógica do poder. Rancière (2010) fala da política como não sendo
uma busca pelo poder, e sim, um regime de distribuição do poder:

Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder


ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de
“ocupações comuns”, é o conflito para determinar os objetos que
fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou
não delas. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos
que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que
ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos
sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das
incompetências que define uma comunidade política. (RANCIÈRE,
2010, p.46)

O espaço-tempo político em uma prática artística se desenvolve a partir de


posições tomadas pelos artistas envolvidos em um “grupo criador”, termo o qual Badiou
utiliza para definir uma organização política. A escolha de como cada indivíduo irá se
disponibilizar ou não para essa relação de convivência entre os diferentes de que fala
Arendt define o espaço político. O fato de escolher, por exemplo, entre ser sempre um
locutor ou um interlocutor e o tempo de permanência nesse papel em um processo de
prática artística, estabelece o tipo de relação que um indivíduo irá travar com um
determinado “grupo criador”. Essa observação pode ser encontrada também nas
reflexões de Rancière (2010), o qual acredita que a arte é política quando ela “enquadra
um sensorium específico de espaço-tempo e na medida em que esse sensorium define
maneiras de estar juntos ou separados, de estar dentro ou fora, em frente de ou no meio
de, etc”. (p.46) Esses posicionamentos – junto/separado; dentro ou fora; em frente de ou
no meio de - definem a relação do artista com o espaço como política, pois envolve uma
tomada de posição que age diretamente na distribuição do poder.
Rancière (2009) argumenta que, para que se pense a paisagem artística
contemporânea, é preciso reconfigurar o que se entende por estético e político hoje, e
que a arte não é política por transmitir mensagens políticas ou representar estruturas
sociais e políticas, da mesma forma que a política não seria um exercício de poder, mas,
antes de tudo, a configuração de um espaço como político. O autor pensa novas formas
de interseção entre o artístico e o político no mundo atual:

5
Filósofo, dramaturgo e romancista francês.
A articulação entre estética e política se define através da
“partilha do sensível”, que é este sistema de evidências sensíveis que
dá a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as decupagens
que definem nele os lugares e as partes respectivas (...) Essa repartição
das partes e dos lugares se funda sobre a partilha de espaços, de
tempos, de formas de atividades que determinam a maneira pela qual
um comum se presta à participação e pela qual uns e outros tomam
parte nessa partilha (...) Atos estéticos são, portanto, configurações de
experiências que fazem existir novos modos de sentir e induzem a
novas formas de subjetividade política (RANCIÈRE, 2009, p.7-12)

Dentro dessa perspectiva, todo o dispositivo espetacular implica


necessariamente certa forma de partilha no espaço, de configuração das
intersubjetividades e, portanto, da experiência do que pode significar um coletivo.
Bakhtin6 (1995) apresenta a ideia de intersubjetividade ao definir compreensão como
uma forma de diálogo, o que implica o reconhecimento da interação entre locutor e
interlocutor no processo de construção de sentido. Assim, o espaço político na prática
artística é construído quando há consciência de que os papéis de locutor e interlocutor
constituem a relação espaço-temporal dos artistas entre si. A escolha por ocupar uma
posição e o tempo de permanência nela articula o político na intersubjetividade e no
próprio espaço. Em outros escritos, Bakhtin (1992) revela que a compreensão de uma
fala viva é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa: o ouvinte concorda ou
discorda, completa, adapta, apronta-se para agir desde as primeiras palavras emitidas
pelo locutor.
Essa atitude responsiva ativa pode ser relacionada ao conceito de afeto
desenvolvido pelo filósofo Bento Espinosa7 (1997), o qual é entendido como afecção
corporal que aumenta ou estimula a potência de agir ou a potência de pensar, pois, em
uma relação de fala e escuta como sugere Bakhtin, a reação do ouvinte deriva de um
afeto sofrido, que acontece como conseqüência de um aumento ou de uma diminuição
da sua potência de agir ou de pensar. Se a política é a distribuição do poder (Rancière),
podemos observar que uma atitude de diminuir a potência de agir seria fazer mau uso
desse poder, pois inibiria uma possível motivação daquele que sofreu a diminuição para
que pudesse se pronunciar. Se alguém diminui a potência de agir de outro, esse outro
possivelmente irá se isentar de tomar sua parcela de poder. Isso, de fato, é um fator
variável, pois os espaços tanto podem ser motivadores quanto inibidores, visto que são
constituídos por modos de subjetivação que se transformam o tempo todo.

O espaço na prática artística se constitui na relação entre os artistas, nos quais


locutores e interlocutores aumentam ou diminuem a potência de agir uns dos outros. É
importante perceber que, para a construção de um espaço político, no qual de fato
aconteça um regime de distribuição de poder, ao qual Rancière se refere, as posições de
locutores e interlocutores devam alternar-se incessantemente podendo, assim, viabilizar
maneiras para que todos possam contribuir para o aumento da potência de agir e de
pensar do grupo. Assim, o espaço político na prática artística deveria ser motivador e
congregar as diferentes possibilidades de intervir na intensidade da ação do outro, pois
cada modo de subjetivação envolvido no grupo definirá a qualidade das
intersubjetividades contidas nele.

6
Filósofo e pensador russo
7
Filósofo holandês
Espaço político: consenso e/ou dissenso?
O espaço político constitui-se pela criação de espaço e tempo. Após as
reflexões sobre o conceito de política em Arendt, Rancière e Badiou conclui-se que,
através da convivência entre os diferentes em um grupo criador, locutores e
interlocutores vão revezando-se nos papéis, afim de que o poder possa ser distribuído.
No entanto, ainda é preciso pensar em como as questões são abordadas dentro desse
grupo, em como as opiniões e decisões são conduzidas. Será que, em um espaço que se
pretende político, a noção predominante é a de consenso ou a de dissenso? Ou será que
é possível uma interlocução entre as duas?

Para iniciar a reflexão sobre as noções propostas, tem-se a apresentação clara e


simples da definição de consenso: uma palavra que significa “acordo”, “anuência”,
“consentimento”, “conformidade de opiniões, ideias, sentimentos ou impressões”.
Ligado à ordem, o consenso remete à noção de contrato, o qual implica o acordo de
várias vontades na realização de uma ação comum, respeitando as regras e obrigações
recíprocas. Hoje, a noção de consenso significa, sobretudo, a construção de uma
vontade comum a partir de interesses individuais, sendo utilizada com freqüência na
análise das regras e dos debates que constituem a vida política e a cidadania. Habermas8
(2001), em sua Teoria da Ação Comunicativa, preconiza um modelo de comunidade
intersubjetiva de comunicação, orientada para a formação de consensos, ou seja, para
um acordo entre interesses concorrentes.

Essas definições de consenso nos incitam a imaginar um espaço no qual cada


participante abandona sua opinião particular em prol de uma única opinião, o que, no
ponto de vista da reflexão aqui apresentada, não constitui um espaço político. O espaço
que se constitui como político incita as opiniões desiguais e não objetiva apaziguar a
discussão através de um consenso. Ele respeita as diferenças e sua luta é para que essas
contradições sejam contempladas. A prática artística que busca a construção de um
espaço com essas características agrega artistas de diversos posicionamentos estéticos e
não procura apagar essas múltiplas possibilidades de criação, ao contrário, faz desse
dissenso o modo de operação desse espaço que se define como político.

O termo dissenso provém do verbo latino dissero (examinar, discutir uma


matéria) que se transforma no substantivo dissensus. Segundo Alberto Buela9 (2011),
dissenso significa “outro sentido”, “divergência”, “contrário parecer”, “desacordo”. O
autor revela que existe muito pouca literatura acerca do dissenso e a pouca que existe,
vem desde o pensamento institucionalmente aceito, com o qual o dissenso está
caracterizado negativamente: "O dissenso é negativo porque sempre está referido a um
consenso prévio" e vinculado às minorias: "uma das características de toda minoria é
uma atitude de dissenso". Buela não compartilha dessa classificação e a define como
interessada e parcial, pois dissentir não é somente negar um acordo e sim, acima de
tudo, pretender dar “outro sentido” ao que, atualmente, possuem as coisas e as ações dos
homens. Assim, afirma Buela, dissentir é uma atitude livre, pessoal ou coletiva, de
afirmar outra coisa à proposta; enriquece as práticas humanas e consolida uma

8
Filósofo e sociólogo alemão. Conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e
a esfera pública.
9
Filósofo argentino que trabalha sobre temas específicos: metapolítica, teoria do dissenso e
teoria da virtude
sociedade plural, ao mesmo tempo em que invalida qualquer tentativa homogeneizadora
ou totalitária.

Buela (2011) explica que a função ético-política do dissenso é expressar a


opinião dos menos, dos diferentes, ante o discurso homogeneizador da ética discursiva
ou comunicativa que somente legitima o valor moral do consenso. O autor defende que
não existe nenhuma razão, salvo a conveniência pessoal, para que o homem em
sociedade renuncie às suas ideias para que se assemelhem às do resto dos cidadãos.
Dentro de um espaço de prática artística que se projeta como político devem ser
motivadas relações que priorizem o desmoronamento do homogêneo e que possam
promover a validação, e não a renúncia da diferença e do dissenso. Concordando com a
relação entre arte, dissenso e política, Rancière (2010) argumenta que a arte não produz
conhecimentos ou representações para a política, e sim,

produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de


regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação
política, mas no seio de sua própria política, isto é, antes de mais nada,
no seio desse duplo movimento que, por um lado, a conduz para sua
própria supressão e, de outro, aprisiona a política da arte na sua
solidão. Ela os produz ocupando essas formas de recorte do espaço
sensível comum e de redistribuição das relações entre o ativo e o
passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os
espaços-tempo do teatro. Ela produz, assim, formas de reconfiguração
da experiência que são o terreno sobre o qual podem se elaborar
formas de subjetivação políticas que, por sua vez, reconfiguram a
experiência comum e suscitam novos dissensos artísticos.
(RANCIÈRE, 2010, p.10)

Rancière (2010) nota, por outro lado, a existência do consenso, que é o modo
de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da
política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de valores ou de interesse
entre grupos, mas a possibilidade de opor um mundo comum a outro. É possível
observar, na reflexão de Rancière, as noções de consenso e dissenso sendo entrelaçadas,
atuando de forma interdependente: são consensos que interagem na forma de dissenso,
verificando também a possibilidade de haver dissenso dentro dos mundos comuns dos
próprios consensos. Peter Pál Pelbart10 (2008) alerta que é preciso pensar a questão do
comum quando se considera um grupo, um conjunto humano. O autor explica que as
formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum e asseguravam
alguma consistência ao laço social, entraram definitivamente em colapso:
Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a
encenação política, os consensos econômicos consagrados, a
militarização da existência para defender uma forma de vida dita
comum. No entanto, sabemos que essa forma de vida não é realmente
comum, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras,
esses pânicos, esses circos políticos ou mesmo essa linguagem que
fala que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um
seqüestro. (PELBART, 2008, p.2,3)

10
Filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil.
Pelbart (2008) questiona se as relações podem compor-se para formar uma
nova relação mais abrangente ou se os poderes podem se organizar de modo a constituir
uma potência mais intensa e ainda: como um ser pode tomar outro no seu mundo, mas
conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios? O autor suscita algumas
questões que devem ser discutidas por aqueles que pesquisam ou simplesmente se
interessam em aprofundar estudos sobre o espaço como político e as relações contidas
nele. É importante salientar que, embora haja inúmeras proposições possíveis a serem
feitas acerca da relação do artista com o espaço e do próprio espaço como políticos, a
reflexão aqui apresentada acredita que a qualidade das intersubjetividades, o aumento da
potência de agir e o modo de operação relacionado ao dissenso determinam a existência
do político.

Referências:
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BADIOU, Alain. Qué es la política? Conferência de Alain Badiou 24 e 25 de abril de
2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/54532605/Badiou-Alain-Que-es-la-
politica>. Acesso em: 25 jun.2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 7ª edição. São Paulo: Hucitec, 1995.
BUELA, Alberto. Teoria do dissenso. 2011. Disponível em: <http://legio-
victrix.blogspot.com.br/2011/10/teoria-do-dissenso.html>. Acesso em: 05. jul. 2014.
ESPINOSA, Bento de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Os pensadores.
Traduzido por Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo: Nova Cultural,
1997.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios.
Traduzido por Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Catedra, 2001.

MANSANO, Sônia R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na


contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp. 2009. Disponível em:
<http://www2.assis.unesp.br/revpsico/index.php/revista/article/viewFile/139/172>
Acesso em: 02 jul.2014.
PELBART, Peter Pál. Elementos de uma cartografia da grupalidade. In SAADI,
Fátima; GARCIA, Silvana (org). São Paulo: Itaú Cultural, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Traduzido por Mônica
Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009.
. Política da arte. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas,
número 15, outubro 2010. Disponível em:
<http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/2010/Urdimento_15.pdf>. Acesso em: 20
jun.2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. 3ª edição.
São Paulo: Hucitec, 1999.
Trabalho do Ator e o Espaço
PERCEPÇÃO E ESCUTA NA IMPROVISAÇÃO E
ESPETACULARIDADE

Ricardo Miguel Branco de Azevedo; Orientação: Ana Cristina Fabricio; Universidade Estadual do
Paraná – Campus de Curitiba II – FAP – Faculdade de Artes do Paraná

RESUMO

O texto aqui desenvolvido surgiu de vários questionamentos que emergiram de


experiências vivenciadas no grupo TOSCO: Improvisação e Espetacularidade, da
UNESPAR – FAP. Considerando um trabalho em grupo, que se propõe chegar à cena
através de jogos e exercícios improvisacionais, como se daria a percepção? Partindo
desta pergunta, que engloba uma série de outros questionamentos, pretende-se refletir
sobre o corpo do ator que percebe o todo em torno de si e tem que dar conta das
demandas do grupo, do individuo, da cena. Ou seja, supri-las de acordo com a
relevância do material que o ator identifica em jogo no momento da ação. O objetivo
maior é encontrar, nesta reflexão aspectos que ajudem a entender a percepção, tanto
em conceituação quanto aplicação, inserida no processo de criação e espetacularização
do grupo TOSCO.

Palavras-chave: Percepção; Escuta; Processo.

INTRODUÇÃO

Entendendo a necessidade do improvisador ter uma percepção bem


desenvolvida, compreender como se dá a percepção dentro de um processo de criação
que visa a espetacularidade através de dinâmicas improvisacionais é o desafio aqui
proposto. Porém, antes de procurar encontrar uma possível resposta, é necessário
situar o contexto de onde a pergunta emergiu. Faço parte do Tosco, Grupo de Estudos
em Improvisação e Espetacularidade, um projeto de extensão da UNESPAR/FAP -
Faculdade de Artes do Paraná. O projeto investiga as possibilidades espetaculares das
dinâmicas improvisacionais.

As atividades criativas que são desenvolvidas no grupo são condicionadas por


diversos disparadores1 cênicos que afetam os atores enquanto constroem a cena, como
a iluminação ou a sonoplastia que são criadas em tempo real, portanto também
improvisadas, ou regras de ação de jogos indicadas pela direção para delimitar a
temática do dia. Dada a quantidade de disparadores utilizados e a simultaneidade com
que se apresentam aos atores na construção da cena, foram surgindo questionamentos
dentro do grupo, sobre como poderiam ser respondidos ou quais dos disparadores

1
Disparadores são dispositivos que usamos para atualizar a ação que se desenvolve.
deveríamos selecionar para nos relacionar e deixar afetar. Foi neste contexto que os
temas percepção e escuta passaram a fazer parte das discussões do grupo, que
compreendia a necessidade de reconhecer como estes princípios operam dentro do
nosso processo criativo que se desenvolve já numa perspectiva espetacular.

A escuta, dentro do processo do TOSCO, refere-se a um estado especial de


atenção onde o ator/improvisador deve estar ciente de todas as dinâmicas propostas
para o espetáculo e dos disparadores que podem aparecer durante a construção da
cena, ou seja, é um estado anterior à ação, mas que deve permanecer enquanto durar o
processo. A escuta não deve atribuir valor ao observado apenas recolher as imagens.

Já a noção de percepção, entendida como um processo para a construção de


sentido, demanda escolhas, o que, a princípio, a torna um processo consciente. Nosso
cérebro trabalha sempre fazendo escolhas sobre a prioridade que damos a tudo o que
nos ocorre, às imagens que constroem o ambiente. Nos processos do TOSCO, as cenas
são criadas pela percepção das dinâmicas que vão sendo individualmente propostas
pelos atores/improvisadores, na força destas proposições em sua capacidade de
agregar as escolhas, determina uma possibilidade narrativa para cena.

O que nos move e o que às vezes nos imobiliza

Nossas práticas espetaculares colocam em movimento em primeiro lugar, nossa


disponibilidade física, pois mesmo nossos aquecimentos acabam tendo um caráter
criativo e buscam o desenvolvimento de algum tipo de comunidade.

O grupo se utiliza de diversas dinâmicas, práticas e conceitos que possam


colaborar para o processo improvisacional. Essas dinâmicas são atualizadas sempre
que sua relevância como disparador criativo para o grupo deixa de ser uma
experiência, e torna-se um dispositivo automático. A improvisação só pode ser
desenvolvida num contexto em que o disparador seja mais que um estímulo, pois “Ao
sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita,
tudo o choca, mas nada lhe acontece.” (Bondía, 2002). Considerando o caráter
espetacular de nossas pretensões, só a mobilização oportunizada pela experiência pode
criar a conexão com o público. E esse é um dos aspectos que às vezes nos imobiliza.

Alguns dos exercícios que utilizamos conseguem se manter vivos por bastante
tempo, principalmente os que tem uma estrutura espacial mais bem delimitada, como
por exemplo o QUAD, que é baseada na peça televisiva homônima de Samuel Beckett
(1981)2, este exercício foi trazido para nos ajudar no sentido de desenvolver uma
melhor noção do coletivo no espaço, passou a fazer parte de nossos aquecimentos e de
disparador inicial de alguns espetáculos. Neste exercício, depois de vencida a fase de
apropriação de sua topologia, passamos a ter uma estrutura muito rica em
possibilidades de criação e conexão, vários jogos rítmicos passaram a acontecer na
relação entre a sonoplastia e as percepções individuais, pois

2
Vídeo disponível em: http://palcoprincipal.sapo.pt/bandasMain/beckett/video/LPJBIvv13Bc
[...] se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o
mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência
é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. (Bondía, 2002).

Porém algumas vezes nos imobilizamos diante da cristalização da forma,


ficamos todos mobilizados pelo desejo de fazer mais, de ser mais criativos e acabamos
“sujeitos do estímulo” e não da experiência.

Há quase um ano o TOSCO vem estudando também alguns princípios de View


Points, como a contaminação3, que em particular auxilia a criar um estado de
percepção conscienteem que os percepcionam o colega de cena e o jogo que este já
está propondo, mas também improvisadores não apenas percepcionam e jogam com os
disparadores. Esse “estado coletivo”, almejado pelo grupo para a construção cênica, é
muitas vezes razão de imobilidade, pois às vezes se constitui de modo muito frágil, e
as individualidades acabam por se impor àquilo que se queria coletivo.

Em 2013, trabalhando ainda com um dispositivo novo, os Avatares, que


deveria ajudar na estruturação dos “proto-personagens”. Para este fim criamos cartas
inspiradas nos baralhos de tarô, que também nos auxiliaram a conformar, junto com
elementos básicos dos arquétipos junguianos, uma tríade inspiradora: característica
geral, força e fraqueza. Estes dispositivos foram desenvolvidos e discutidos por vários
encontros, para que a caracterização não fosse totalmente aleatória. Os avatares vieram
para nos ajudar na construção dos conflitos para as fábulas, principalmente quando a
palavra ganha relevo. O trato com a palavra, talvez seja nossa maior causa de
imobilidade.

Como o processo do TOSCO busca não se cristalizar, esta instabilidade acaba


gerando diversas crises no grupo, já que cada um trás uma percepção particular do
andamento da construção cênica, e ainda nos surpreendemos quando estas percepções
diferem de modo mais expressivo. Dentro das discussões do grupo, vários pontos são
levantados e as vezes questões que já haviam sido consideradas superadas retornam,
pois o corpo do grupo está em constante mudança mas isso felizmente, não representa
necessariamente um retrocesso. Percebe-se que é na verdade uma reafirmação do que
estamos de fato produzindo artisticamente.

Entretanto, não pretendo levantar aqui todas as questões do grupo. Desejo


apenas considerando os últimos seis meses de trabalho, refletir sobre um dos pontos
que recebeu vários questionamentos e mobilizou o meu interesse, a percepção. Este
estado de atenção em que o improvisador se põe em cena, ciente das dinâmicas que
tem à disposição para a criação e está disponível para reagir os disparadores que
podem surgir a qualquer tempo, atualizando suas percepções, além de saber que está
(ou pelo menos deve estar) em contato com outros improvisadores e que precisam,
juntos, criar uma linguagem no momento presente.

3
Para Bogart, “resposta Cinestésica”.
Esse estado de atenção ativa, que definimos dentro do grupo como percepção,
não tem sido alcançado plenamente. Uma das razões apontadas em nossas discussões é
a de não compreensão do que realmente constitui esse estado, no qual ficamos
especialmente alertas e paradoxalmente tranquilos. Talvez seja, ainda, algo acima da
nossa capacidade atual. Porém prefiro considerar que o exercício continuado nos
permita avançar e vencer estas dificuldades.

Pra onde estamos indo

Entretanto, em vez de nos atrapalhar, a imobilidade que gerou crise, nos serve
como propulsora para que as discussões ganhem consistência e crie-se o estado de
escuta almejado. Lidamos interminavelmente com nossas fragilidades perante todo o
processo, sendo criticados e apontados quando essas fragilidades atrapalham o
andamento ou quando nos fazem esquecer da percepção, automatizando a atenção,
para uma reação rápida e sem base numa real afecção.

Com o artigo de Tatiana Motta Lima (2012) no qual questiona a escuta, por
meio de exemplos que ela presenciou, começamos a nos dar conta da cristalização de
alguns conceitos, nos vimos espelhados em seus alunos. Mas assim como ela,
entendemos que as sutilezas que envolvem a percepção não encontram soluções claras,
apenas geram novas reflexões sobre o modo de operar e de pensar a escuta, mas não
nos trás uma resposta definitiva.

Seguindo essa linha, quero refletir possíveis estratégias para suprir a


necessidade de encontrar, dentro da construção cênica através do estado de escuta, um
coletivo. Um coletivo que leve em consideração a definição de Bogart (2005) sobre
escuta, que é: “... ao invés de agir somente por impulsos e desejos próprios, o ator é
estimulado a compreender sua individualidade em relação com o ambiente.” (Bogart
apud Meyer, 2005) O coletivo será diferente a cada cena construída, entretanto sempre
estará pautado nesse estado de escuta ‘ambiental’ como ponto de partida da
composição.

Após diversas leituras e reflexões para tentar entender como opera a percepção
para o improvisador e como se pode alcançar uma construçaão coletiva através dela. A
imagem do Cubo de Necker, (NECKER, Louis Albert 1832) 4 é uma metáfora visual
que pode melhor traduzir o que tentamos materializar através da percepção no grupo.

O desenho do cubo, só é visto pelo cérebro quando se olham os 8 círculos. Na


metáfora do cubo, cada círculo representa um improvisador, ou seja, para que o
espectador enxergue o cubo, neste caso a cena. É necessário que os atores estejam,
interligados através das linhas dentro dos círculos, criando a partir desta conexão,

4
Trata-se de uma ilusão ótica representada por oito círculos pretos posicionados no que seriam os vértices de
um cubo. Cada círculo possui um vértice, em branco, no centro composto por três linhas. A ilusão se dá pelo
cérebro ao ler a imagem como um cubo branco em um fundo branco, com apenas as informações dos círculos.
Imagem disponível em http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/gestalt/imagens/9d-necker55.gif
proporcionada pela percepção a possibilidade do cubo como uma narrativa para quem
assiste a cena.

Esta é só uma possibilidade para explicar a noção de percepção que o TOSCO


questiona e tenta alcançar. Portanto, dentro da metáfora do cubo, as linhas são
formadas por nossa disponibilidade para o jogo, nossa sensibilidade e atenção para o
ambiente que se conforma com a fisicalidade do espaço, os outros improvisadores e
nossos disparadores.

É nas relações possíveis a partir daí que as cenas se constroem, que posição o
círculo, que seria o improvisador, ocupa; quais linhas está mostrando; como ele vê os
demais círculos e as demais linhas; e como todos juntos constroem a possibilidade de
visualizar uma imagem maior, ou seja, a cena, para o espectador.

Uma das frases que mais motivou a pesquisa e me ajudou a manter o foco foi
de LIMA(2012) “O mais importante aqui é podermos pensar sobre o que nomeamos e
praticamos como o ‘estar aqui e agora’”.As definições de percepção e escuta propostas
aqui são suficientes, neste momento, para responder aos questionamentos e crises que
tive ao pensar sobre a conceituação dessas duas palavras. Porém, como afirma Bondía
(2002) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.”, portanto
é necessário levar essas conceituações para a sala de encontros do grupo e experenciá-
las, com todos juntos, e descobrir se fazem sentido no coletivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIMA, Tatiana Motta. A Noção de Escuta: Afetos, Exemplos e Reflexões. Revista do


LUME. Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, 2012.

BONDÍA, Jorge Larrosa. A experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de


Educação, 2002.

FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos, 2010.

NUNES, Sandra Meyer. Escuta extraordinária: uma proposição do método


Viewpoints.
TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
TÍTULO: INTERVENÇÕES DA MÁSCARA NA RELAÇÃO ENTRE ATOR E
ESPAÇO CÊNICO
Alex de Souza (bolsista FAPESC/CAPES); Prof. Dr. Valmor Beltrame (orientador);
Programa de Pós-Graduação em Teatro (Doutorado) - PPGT/UDESC.

As relações desenvolvidas pelo ator em relação ao espaço podem ser analisadas


por meio de diferentes pontos de vista. De início, é necessário compreender que ao atuar,
o conceito de “espaço” não se reduz a apenas “extensão limitada em uma, duas ou três
dimensões; distância, área ou volume determinados” (HOUAISS, 2009 – verbete: 1
espaço), mas ao contrário, amplia-se graças à ação do ator neste espaço. Para Patrice
Pavis, ao se tratar de teatro, “espaço” pode ser diferentemente compreendido como: “1.
Espaço Dramático; 2. Espaço Cênico; 3. Espaço Cenográfico (ou Espaço Teatral); 4.
Espaço Lúdico (ou Gestual); 5. Espaço Textual; 6. Espaço Interior” (PAVIS, 2007, p.
132-133 – verbete: espaço). Entretanto, aqui nos cabe discutir o trabalho do ator em
relação ao chamado “espaço cênico”, conforme a definição de Pavis:

É o espaço concretamente perceptível pelo público na ou nas cenas, ou ainda


os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis. É quase aquilo
que entendemos por “a cena” de teatro. O espaço cênico nos é dado aqui e
agora pelo espetáculo, graças aos atores cujas evoluções gestuais
circunscrevem este espaço cênico. (PAVIS, 2007, p. 133 – verbete: Espaço
Cênico 2)

Este espaço destaca-se de qualquer outro local concreto e real predominantemente


pelo uso do qual é feito. Assim, uma praça pode ser inicialmente um “espaço público”
e/ou um “espaço de lazer”, mas a partir do momento em que ocorre nesta mesma praça
um ato teatral, ela passa a ser um “espaço cênico” enquanto durar aquele ato. Considera-
se então a relação do ator com o espaço por ele ocupado como fundamental para a
caracterização de um espaço cênico. Mas, se há uma relação entre ator e espaço ocupado,
presume-se que há alguma distinção entre eles, que o ator não é parte deste espaço ou
passa a se destacar dele em algum momento. O encenador suíço Adolphe Appia (1862-
1928) compreende esta relação entre ator e espaço da seguinte forma:

No espaço “informe e vazio”, o ator representa em três dimensões; sua


plasticidade ocupa portanto um fragmento de espaço impondo-lhe sua forma.
Mas o ator não é uma estátua; sua plasticidade não elimina o fato de ele ser
vivo e sua vitalidade expressa-se pelo movimento; ele não ocupa o espaço
somente com seu volume mas também com seu movimento. O corpo, sozinho
no espaço ilimitado, mede este espaço com seus gestos e suas evoluções ou,
mais claramente, apropria-se portanto de uma porção do espaço, limitando-a e
condicionando-a. Sem ele, o espaço volta a ser infinito e não poderá ser
dominado. (APPIA apud RATTO, 2001, p. 39)

Para Appia, a força do ator em relação ao espaço está em sua vitalidade expressa
pelo movimento. É a ação e a presença do ator que transforma, delimita, identifica ao
público que se trata de um espaço da cena e não mais um espaço “em devir”, infinito.
Mas não é simplesmente o movimento que altera o espaço. Um ventilador pode mover-
se e ainda assim não alterar o espaço que ocupa. O ator vivo ou o objeto que simule vida
autônoma move-se para realizar vontades, necessidades, desejos. O movimento do corpo
ao respirar, um olhar fixo em determinado ponto, o deslocamento do ator entre dois
objetos de cena, apontar o dedo para alguém da plateia, são movimentos que
circunscrevem o espaço de atuação, determinam ao público o que e onde está acontecendo
a ação. Contudo, para apropriar-se dessa “porção de espaço” e poder condicioná-la à sua
vontade para a plateia, é fundamental que o ator seja capaz de perceber este espaço por
ele ocupado da forma mais plena possível. Percebendo o espaço e percebendo-se no
espaço é que o ator se torna capaz de relacionar-se com o mesmo.
Para o prosseguimento desta reflexão, entende-se por “percepção” como “a
capacidade de vincular os sentidos a outros aspectos da existência, como o
comportamento, no caso dos animais em geral, e o pensamento, no caso dos seres
humanos”. (VEZZÁ e MARTINS, 2008, p.04). Ou seja, a percepção seria a capacidade
de atribuir significados aos estímulos sensoriais captados pelo corpo, a interpretação das
informações recebidas. Segundo Vezzá e Martins (2008),

A percepção é um processo ativo do indivíduo, que explora as informações


para dar relevo a elas: quais são os aspectos fundamentais e quais os
desprezíveis para obter o conhecimento buscado. Quando o indivíduo olha à
sua volta, seus olhos passeiam sobre as coisas conhecidas que o cercam, e
identificam entre todos os estímulos luminosos que os atingem os traços
relevantes para que ele tenha a percepção do conjunto. Ela é possível graças ao
contexto em que cada um se encontra e à sua experiência passada – tem-se o
conceito de mesa, cadeira, chão, janela, e de várias configurações possíveis nas
quais estes elementos estão agrupados, aí incluída a configuração das
sensações do corpo em contato com estes objetos – tem-se uma memória
conceitual e também corporal. (p.04-05).

Sendo a percepção formada por esse sistema cognitivo que parte das sensações, é
interessante notar que há três principais grupos de aferências sensoriais no corpo que
chegam ao sistema nervoso central: sensações interoceptivas (ou introspectivas),
sensações exteroceptivas (ou extrospectivas) e a propriocepção. As sensações
interoceptivas são aquelas provenientes de dentro do corpo, que informam ao sistema
nervoso central sobre as condições internas do organismo e, dessa forma, percebemos
quando estamos com fome, sede ou cólica intestinal. As sensações exteroceptivas, por
sua vez, são provenientes de fora do corpo, captadas pelos nossos cinco sentidos (visão,
olfato, audição, paladar e tato). Já a propriocepção, é um sistema sensorial que une
informações internas e externas ao corpo, com a finalidade de identificar a si próprio entre
suas partes e sua condição referente ao espaço que ocupa. Sobre a propriocepção, Alain
Berthoz discorre:

A propriocepção muscular e articular e os captadores vestibulares cooperam


com a visão e com os captadores táteis da pele – em conjunto com os do corpo
e os dos pés, por exemplo, para medir nossos movimentos. Tudo isso forma o
que chamei em meu livro de Sentido do movimento. Não existem, portanto,
somente os cinco sentidos clássicos, serão oito ou nove. O que é absurdo e
inacreditável é que, apesar da acumulação extraordinária de conhecimentos
que nós temos atualmente sobre esses captadores, continuemos a falar em
cinco sentidos! (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)

Berthoz refere-se ao movimento como sendo também um sentido, uma forma de


chegar à percepção. Em seus estudos acerca do assunto, o autor aponta que o corpo é
capaz de identificar acelerações, assim como alterações de nível, eixo ou rotação somente
durante o movimento. Portanto, o movimento é o principal responsável pela
propriocepção. Contudo, para coordenar movimentos no espaço, estão envolvidos todos
os três grupos de aferências complementarmente. Segundo Berthoz,

Partindo das informações de todos os sentidos, o cérebro, para coordenar


nossos movimentos, deve construir uma percepção coerente e única da
orientação e do movimento de nosso corpo no espaço. A coerência perceptiva
é assegurada pelas convergências das informações de todos os nossos sentidos.
Por exemplo, a visão e o sistema vestibular devem trabalhar juntos para medir
o movimento. A visão permite medir a velocidade permanente, enquanto os
captadores vestibulares só podem medir o momento da aceleração quando
mudamos de velocidade. Dentro do elevador, a uma velocidade constante, não
temos impressão de estarmos subindo. Os dois captadores são
complementares. (BERTHOZ apud CORIN, 2001, p.02)

Quando há algum tipo de incoerência na percepção, sentimos imediatamente o


distúrbio e o corpo reage, com tonturas, enjoos e desequilíbrios, por exemplo. A relação
do corpo com o espaço altera-se pois não há clareza na percepção dos diferentes sentidos.
Mas conhecendo os modos operativos da percepção, o ator pode jogar com isso em seu
trabalho. E nesse jogo de percepções tornar possível ao ator “dominar” e “transformar”
um espaço físico, concreto, num espaço cênico. O lugar onde se encontra pode mudar sua
configuração de acordo com o modo como é utilizado, propondo uma nova percepção ao
público.
O ator vê uma cadeira. Inicialmente, o sentido da visão identifica por meio da luz
que chega à retina aquele objeto. Há um processo cognitivo que relaciona aquela imagem
específica às imagens semelhantes vistas antes (memória) e com toda a experiência já
vivida do ator com o objeto cadeira. Deu-se a percepção e o ator compreende que viu uma
cadeira. Contudo, o ator vai além e segue relacionando a imagem da cadeira com outras
imagens e experiências, que resulta numa aproximação com a imagem de um cavalo. O
ator, ao invés de relacionar-se com a cadeira do modo como costumeiramente se faz,
relaciona-se com ela como se fosse um cavalo e passa a ocupar o espaço de uma maneira
distinta. O público que reconhece a assimilação feita pelo ator passa a perceber que o
espaço da cena não é mais o palco, tablado ou praça de antes, o espaço então passa a ser
percebido como uma arena de rodeios.
Porém, como o ator pode lidar com um espaço tendo a sua própria percepção
alterada?
Ao utilizar uma máscara, o ator terá inevitavelmente alguns de seus sentidos
limitados ou com uma sensibilidade diferente do habitual. As alterações variam conforme
o tipo de máscara utilizada mas sempre causará, ao menos de início, uma sensação de
estranheza. Isso porque a maior concentração de captores de sentidos em nosso corpo está
situada na cabeça. Os relatos de experiências iniciais com máscaras se assemelham
bastante nesse sentido, como podemos observar com o exemplo do ator Moretti, famoso
por interpretar o Arlechinno em uma montagem de Giorgio Strehler:

O ator resistia à máscara, e recusava as suas restrições. Moretti explica então a


Strehler que tem dificuldade para respirar com a máscara, que fica sufocado,
literalmente, e que aquele corpo estranho o incomoda. Convencido, ao
contrário, da qualidade e da comodidade daquela máscara, Strehler mantém a
sua posição: sendo de couro maleável, deveria servir “como uma luva”. O
ensaio começa, mas o ator, furioso, reclama, xinga, odeia aquela máscara que
o impede de interpretar com fineza a sua personagem: “Ele estava tão furioso
quanto um jovem potro selvagem em quem se tivesse posto as rédeas pela
primeira vez”, recorda Sartori, pois sem dúvida fazia questão de mostrar
ostensivamente ao diretor a sua oposição. Não aguentando mais, explode:
“Não se pode trabalhar com esta coisa no nariz; ela me aperta, não vejo nada”.
E joga a máscara no chão. Sartori grita. Moretti pega uma tesoura e amplia os
olhos da máscara. O ensaio tem de ser interrompido. (FREIXE, 2010, p. 05-
06)
A reação de Moretti, inicialmente estarrecedora ao encenador e ao confeccionador
da máscara, é compreendida por Dario Fo, que comenta:

A princípio, o uso da máscara para um ator é uma experiência angustiante. Não


tanto pelo uso em si, mas muito mais pela restrição do campo visual e no plano
acústico-vocal. A voz fica gritando dentro da cabeça, atordoando, ressonando
nos ouvidos. Até acostumar-se ao seu uso, é impossível controlar a respiração.
Estranha-se a máscara, que se transforma em uma jaula de tortura. Pode-se
dizer que ela nos tira a possibilidade de concentração. (FO e RAME, 2004, p.
47)

Apesar de parecer ser algo tão terrível ao ator algumas vezes, a professora Ana
Maria Amaral esclarece a contrapartida da máscara:

Mas por que é a máscara considerada instrumento no treinamento do ator


quando, na verdade, o que ele (pelo menos num primeiro impacto) sente ao
usá-la é uma grande sensação de desconforto? De pronto, ao vesti-la, percebe
uma limitação no seu campo visual, a respiração é dificultada e a voz ou se
distorce ou perde força. Em compensação, o espaço à sua volta toma outras
dimensões, o simples mover o corpo exige uma atenção tal que, para mínimos
gestos, exige-se muita concentração. A máscara leva à conscientização do
corpo, tornando o ator muito sensível aos estímulos físicos que o cercam. Por
isso ela é fundamental para sua formação, principalmente quando o ator
pretende se expressar através de personagens materiais, inanimados.
(AMARAL, 2002, p. 43)

A conscientização do corpo e do espaço proporcionados pelo uso da máscara são


pontos interessantes levantados por Amaral, que remetem à redescoberta da máscara no
século XX, especialmente com Jacques Copeau (1879-1949). Copeau recorre à máscara
em seu trabalho buscando desnaturalizar o corpo e conscientizar o ator de seus gestos,
para que sejam mais sintéticos (FREIXE, 2010). O trabalho de Copeau reverbera
consequentemente nos aprofundamentos com relação à pedagogia teatral desenvolvidas
por Jean Dasté (1904-1994), Léon Chancerel (1886-1965) e Jacques Lecoq (1921-1999).
Relacionando com as pesquisas sobre percepção, Vezzá e Martins (2008) afirmam
que automatizamos os movimentos a partir do momento em que dominamos a sua
execução, deixando de percebê-los. Isso acontece, por exemplo, ao caminhar. Depois de
aprender a caminhar, não se percebe mais o processo, até que haja alguma alteração nas
respostas sensoriais que provoquem uma nova percepção. Do mesmo modo, Amaral tem
razão em afirmar que a máscara leva à conscientização do corpo, pois causando tal
desconforto inicial e limitação a alguns sentidos, força o ator a ter novas percepções sobre
si e o espaço que ocupa. Isso também se deflagra na história de Moretti, que segundo
Freixe (2010), encontra mais tarde na mesma máscara que o tolhia, a melhor aliada em
seu trabalho:

Para Moretti, as limitações da máscara logo se tornaram trampolins para a


invenção. O seu jogo adquiriu outra dimensão, e ele recebeu da máscara o dom
de uma liberdade inimaginável. As primeiras máscaras de Arlequim
experimentadas por Moretti possuíam olhos redondos muito pequenos, como
nas máscaras antigas que chegaram até nós. Foi a dificuldade de ver como na
vida cotidiana que fez Moretti compreender que era preciso inventar uma
gestualidade particular, animal, que até então havia apenas esboçado de fora,
referindo-se às atitudes de Arlequim tais como as vemos nas gravuras, e que
sentia agora como absolutamente necessárias. Moretti tirou proveito dessa
visão alterada que tinha com a máscara: inventou a caminhada por saltos e
solavancos, pois tinha que “situar a margem de ação em função do campo
visual, olhar sem cessar para seus pés para precisar por onde está andando, e
não tropeçar num obstáculo eventual”. Assim, num espaço muito restrito, devia
executar o movimento num breve lapso de tempo, o que dava aos seus
deslocamentos um caráter ao mesmo tempo mecânico e profundamente
orgânico. A urgência que tinha de “ver” se tornava metafórica da outra
urgência que ele tinha: a de “viver”. (FREIXE, 2010, p. 06)

Ao admitir as limitações impostas pela máscara, Moretti reencontrou


verdadeiramente o significado do modo de agir do seu personagem. O modo como se
movia e se relacionava com o espaço deixou de ser uma escolha racional e arbitrária para
se tornar uma necessidade fisiológica. Nesse sentido, percebe-se que tal qual postulou
Appia, Moretti tornou-se um ser inegavelmente vivo em movimento ocupando e
dominando o espaço cênico.
Mas a intervenção da máscara na percepção do ator não ocorre apenas pela
afetação dos sentidos extrospectivos. Conforme a pesquisa de Fernando Linares,

A partir do momento em que o estudante/ator coloca a máscara, a sua mente


se dividirá entre a visão do espaço real, para se orientar em cena, a sustentação
da imagem de si mesmo vestido com a máscara e em imaginar o que a máscara
enxerga com seus olhos pintados. A partir destes elementos, ele poderá
explorar os códigos que promovem a sua expressividade. (LINARES, 2010, p.
163)

Vemos a partir desta citação que o ator mascarado trabalha simultaneamente em


distintos âmbitos de relação com o espaço. Ele lida com o espaço concreto que ocupa,
portanto há uma relação direta de todos os seus sentidos extrospectivos com a sua
percepção e o espaço ocupado. Mas ao utilizar uma máscara, o ator também constrói uma
corporeidade própria para a figura que representa, consequentemente, alterando a sua
propriocepção. Uma máscara que remeta a um idoso, por exemplo, acaba por exigir do
jovem ator uma postura que em nada se assemelha com a sua postura habitual. A sua
propriocepção lhe informará que a coluna arqueada, os joelhos rígidos e a respiração
pesada estão fora dos seus padrões e precisam ser corrigidos. Há uma alteração de
percepção que será trabalhada pelo ator de modo que essa se torne uma “segunda
natureza”, enquanto estiver portando aquela máscara.
Partindo das limitações impostas pelo objeto agregado ao seu corpo, o ator pode
fazer disso parte de seu material criativo e aprofundar seu trabalho. A máscara possibilita
ao ator, enquanto objeto de cena e/ou de treinamento, a rica possibilidade de perceber o
mundo de novas maneiras. Reencontrar-se no espaço, relacionar-se de maneiras até então
inimaginadas com o lugar, as pessoas e os objetos que compõem o mesmo, pode ser o
diferencial entre uma atuação regular e uma atuação memorável para o público.
REFERÊNCIAS

AMARAL, Ana Maria. O ator e seus duplos: máscaras, bonecos, objetos. São Paulo:
SENAC, 2002.

CORIN, Florence. Le sens du mouvement. [O sentido do movimento]. Entrevista com


Alain Berthoz, p. 80-93. In: Vu du corps. Nouvelles de Danse. Trad. Lucrécia Silk.
Bruxelles: Contredanse, n. 48/49, 2001.

FO, Dario; RAME, Franca. Manual mínimo do ator. 3. ed. São Paulo: Ed. SENAC,
2004.

FREIXE, Guy. “Cinquième Partie ― L´âge d´or du Masque ― De L´Renaissance du


masque de La COMMEDIA DELL´ARTE” [I – Renascimento da máscara da Commedia
dell´Arte], p. 163-178, in Les Utopies du masque sur lês scènes européennes du XXe siècle
[As Utopias da Máscara nos palcos europeus do século XX]. Montpellier: L´Entretemps,
2010. p. 19-22. Tradução inédita de José Ronaldo Faleiro.

HOUAISS. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão


monousuário 3.0. [S.l.]: Objetiva, 2009.

LINARES, Fernando J. J.. A máscara como segunda natureza do ator: o treinamento


do ator como uma “técnica em ação”. 2010. 180 p. Dissertação (Mestrado em Artes) –
Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2010.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. 3ª ed.
São Paulo: Perspectiva, 2007.

RATTO, Gianni. Antitratado de cenografia: variações sobre o mesmo tema. 2 ed. São
Paulo: Ed. SENAC, 2001.

VEZZÁ, Flora. M. G; MARTINS, Emerson. F. Sensação, Percepção, Propriocepção?


Revista Brasileira de Ciências da Saúde. São Caetano do Sul, v. 6, nº 15, jan/mar, 2008.
Disponível em:
<http://seer.uscs.edu.br/index.php/revista_ciencias_saude/article/view/531/376>
Autora:Ana Maria Rodrigues;Orientador:Luiz Humberto Arantes;Universidade Federal de
Uberlândia

A desregrada vida do pequeno Moleque Tião e os desafios de ser Grande Otelo

Resumo

O presente texto apresenta uma reflexão sobre o espetáculo “Moleque tão Grande Otelo” e as
questões étnico-raciais que envolvem a peça e permearam a vida do artista. O artigo fala de como
os acontecimentos da vida do ator Grande Otelo tiveram implicações em sua arte, os fatos que
marcaram sua carreira e que são mostrados no espetáculo, “misturam” arte, vida, fantasia e
realidade. Com o intuito de desvendar o ator, a autora também faz referência a sua própria
história enquanto atriz e a similaridade de suas raízes com as de Sebastião Bernardes de Souza
Prata que se tornou para o mundo o Grande Otelo.

Palavras chave:
Grande Otelo, espetáculo, vivência.

Nesse artigo, apresentarei algumas considerações baseadas no projeto de criação do


espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo”, montagem que o grupo Athos de Teatro, realizou em
2011, com dramaturgia e encenação de Luiz Humberto Arantes no qual, além de trabalhar como
atriz sendo a avó de Otelo, fiz também a produção do espetáculo. Ao estudar o processo de
criação e a história de vida de Grande Otelo, notei que havia muitos pontos de conexão de sua
trajetória com minha própria história de vida e meu processo de formação como atriz. No
processo de pesquisa de campo realizei um resgate de memórias pessoais, que perpassaram
momentos da minha infância e adolescência. Cenas que me abriram em direção ao novo, ao
outro, e a um novo olhar a respeito de questões concernentes ao universo afro-descendente.
Assim, pretendo realizar, com o artigo, uma intersecção entre o universo vivido por Grande Otelo
em sua experiência de vida a partir do material colhido no processo de montagem do espetáculo
Moleque Tão Grande Otelo e a minha trajetória pessoal passando por questões de vivências de
uma forma geral como a infância, as dificuldades do meu trabalho de atriz que são similares, em
alguns aspectos com a trajetória de vida do grande gênio dos palcos. Para reforçar o estudo deste
material, serão realizadas algumas considerações baseadas nos textos “Experiência e Paixão” de
Jorge Larrosa, ”Memória (in) Performance” da Professora Doutora Mara Lúcia Leal e “Tempo
Passado” de Beatriz Sarlo.

O moleque Otelo

O espetáculo “Moleque Tão Grande Otelo” revelara os bastidores da vida de Grande Otelo,
mostrando seus duplos, homem de teatro com grande poder de comunicação e talento em
contraponto com uma vida desregrada como boêmio e ébrio. Sebastião Bernardes de Souza Prata
vivia seu Grande Otelo com o intuito de trazer a alegria que, muitas vezes, não possuía. Sua arte
como ator foi usada para encarar, com riso, as angústias e o preconceito que vivenciava. Ele não
era somente artista, fazia da sua arte o alento para a sua vida, o que lhe gerou infortúnios. O
próprio Otelo traz, em seus depoimentos risonhos, brincantes, como bom palhaço, o fato de que
vivia “escondendo no riso a sua dor”. Sua arte possui um caráter libertador que escamoteava suas
dores e angústias, e se próprio biógrafo relata a respeito: “absolve-se ou condena-se Grande Otelo
por sua vida errante e, ao mesmo tempo, encantadora. Compreendemos que a arte o liberta”
(SANTOS, 2011).
O processo criativo do espetáculo, desenvolvido pelo encenador Luiz Humberto Arantes, foi
marcado pela construção a partir das memórias, sejam elas biográficas pelo livro de Sergio
Cabral, ou autobiográficas, pelos depoimentos e entrevistas em vídeo e em texto do próprio
artista. Todas estas fontes apontaram em uma montagem carregada de memórias híbridas, de um
lado do próprio artista e, em outra perspectiva, aliado ao contexto histórico social da época.
Nesse caso, trabalhando a partir de conceitos stanilavskianos, como a “memória emotiva”,
“mergulhei” em meu próprio universo e, revisitei etapas de meu processo formador como mulher
negra e atriz, me nutrindo de um arcabouço emocional que me forneceu material suficiente para
me aproximar, com cautela e denodo, dos sofrimentos e alegrias da arte de se fazer artista como
Otelo se fez. Entremeada por emoções variadas, vivenciadas ao longo de minha trajetória de
formação revisitando meu passado e vivência ao lado de meus irmãos, acionei o material de que
necessitava para revigorar meu trabalho cênico. Corpo e memória atrelados em conexão com o
passado e a reconstrução da história de Otelo, lugares comuns que se convergem, experiência e
memória. Em meu corpo, memória e experiências me trouxeram entendimento e me conectaram
com Otelo. Esta relação de experiências vividas fisicamente, que podem nos levar a um lugar de
compreensão do mundo através do sensorial resguardado no corpo é relatada pelo encenador
Constántin Stanislavski:

(...) é somente através da percepção, da relação do corpo com o mundo


por meio dos sentidos que se aciona a memória, que no caso da
involuntária, seria para Stanislavski a “verdadeira” erupção do passado,
carregada de sensações e sentimentos. (Stanislavski apud Mara, p. 66,
2011)

No espetáculo, revelamos os lugares comuns onde Otelo passou e que compõe o


arcabouço da memória concernente ao imaginário dos cidadãos uberlandenses como o Colégio
Estadual Bueno Brandão, onde ele estudou, a esquina do Hotel Presidente onde engraxou sapatos,
ou quando vendia jornal na Estação Ferroviária Mogiana. Desta forma, o universo em que
Sebastião Bernardes de Souza Prata viveu perpassa por espaços sensíveis de cada homem, como
a terra natal e lugares de vivência com respectivos familiares, adquirindo memórias como um fio
que, entrançado, compõe a construção da imagem de um homem. A respeito da pesquisa deste
material de campo sobre Otelo, os seus lugares comuns ajudaram a formar o arcabouço
necessário à formação do material de trabalho e levaram ao universo de identidade e
compreensão do espaço étnico racial naquele tempo e naquela sociedade. Este tipo de pesquisa
que nos leva à compreensão de nosso questionamento a respeito de nossa etnia a partir de
material biográfico de Otelo, e autobiográfico, ao mesmo tempo, relacionado com minhas
vivências é revelado na pesquisa da Professora Mara Leal em sua tese de doutorado, que a partir
de seu processo fez a seguinte reflexão:
Durante a pesquisa de campo comecei a me questionar por que,ao se
trabalhar com material autobiográfico,é freqüente virem à tona memórias
relacionadas às construções de identidades, principalmente as construções
de gênero, raça e sexualidades. Ao reencenar esses temas, tem-se a
possibilidade de se colocar em questão mitos e estereótipos
compartilhados através de nossa memória coletiva. (Leal, Mara p.17)

As ruínas de um prédio semi-abandonado, localizado no centro da cidade de Uberlândia


(MG), foram o palco para que o espetáculo acontecesse. Lá, o nosso Grande Otelo, que, segundo
ele mesmo, não tinha “papas na língua” foi esmiuçado, estudado, analisado, e, assim, foram
expostos fatos de sua vida íntima que poucos conheciam e que nos foram revelados através de
uma minuciosa pesquisa. Nas cenas trabalhadas pelos atores e captadas pelo encenador, foi
mostrada a infância e a vida adulta deste homem que, durante anos, intrigou a sociedade. Todo
material encontrado foi diretamente trabalhado na montagem, os problemas com a bebida e as
reiteradas faltas ao trabalho, o adultério, o suicídio da esposa depressiva, Lúcia Maria, que, antes
de morrer, mata o próprio filho, momento trágico na vida deste ícone do teatro.
Ao mesmo tempo em que revelamos aspectos trágicos de sua vida, revelamos a alegria e a
genialidade desse grande artista, que, após o episódio tétrico,que engloba a morte da esposa e do
filho,Otelo representou a célebre cena do “Balcão” de Shakespeare. Nesta cena, Otelo, travestido
de “Julieta” contracena com o amigo e parceiro, o ator “Oscarito” representando o Romeu. Desta
forma, Grande Otelo se eterniza como cômico e leva o público as gargalhadas, enquanto sofria,
em sua vida pessoal, com muitos motivos para chorar. Assim como fez Emílio de Ípola com sua
experiência carcerária, a história de Grande Otelo, poderá ser melhor visualizada e ou entendida
ao de ser contada pelas entrelinhas...pelas reticências,do mesmo modo que Ípola fez ao escrever
sobre sua passagem pela prisão.Assim visto Por Beatriz Sarlo:

A teoria ilumina a experiência (...) Por isso a experiência pessoal não faz
parte,mas está onde lhe cabe,nas notas de pé de página,como” matéria
prima” da análise.(...) a experiência se mede pela teoria que pode explicá-
la,a experiência não é rememorada mas analisada.(Beatriz
Sarlo,p.79,2007)
Assim, o espetáculo mostrou as raízes de Sebastião Bernardes de Souza Prata, através da
mãe, da avó, e de como foi construído esse artista que viveu uma infância extremamente pobre e
com escassos recursos culturais. Da mesma forma, eu também vivi com uma família grande e
com poucos recursos financeiros. Ao representar a cena da avó de Otelo, eu revia as nossas
correrias de crianças no quintal, e a entrada nas casas sempre tão escuras, mesmo durante o dia,
momento em que olhávamos e observávamos a lenha ao lado do fogão, esperando para ser
queimada.
Quanto mais mergulho nas minhas memórias sobre as cenas do “Moleque Tão Grande
Otelo”, mais reflito na importância, e na contribuição do teatro para a sociedade, ao permitir que
atores e público vivenciem, sintam e compartilhem uma experiência, ao invés de obter
informação como vemos nos veículos de comunicação de massa que bombardeiam notícias
diversas, mas que não propiciam uma vivência e experimentação sensorial que realmente
promova uma transformação interior dos indivíduos. Informação não transforma, idéia defendida
por Jorge Larossa, que afirma a respeito:

[...] a informação não é experiência. E mais, a informação não deixa lugar


para a experiência, é quase o contrário da experiência, quase uma
antiexperiência. Por isso, a ênfase contemporânea na informação, em
estar informados e toda retórica destinada a constituirmos como sujeitos
informantes e informados, não faz outra coisa que cancelar nossas
possibilidades de experiência [...] (LARROSA, 2004, p.154).

O espetáculo permitiu que os espectadores compartilhassem, junto com os atores essa


grande aventura, que é viver a experiência oferecida por uma história de um ícone, gênio que é
humano como todos nós, com suas dores e alegrias, mesmo sendo por alguns minutos. O público
pode não só visualizar, mas também caminhar por entre cômodos das ruínas do apartamento,
degustar uma cachaça, sentir o cheiro do café, da parafina do lampião, se sentar, levantar, agir,
pensar, refletir, sentir os tons e sabores da infância de Otelo em Uberabinha, bem como de sua
maturidade no Rio de Janeiro. Desse modo, puderam sentir de fato o acontecimento e não apenas
passar por ele. Larossa defende a experiência pelo viés da delicadeza que propiciaria
possibilidades tão comuns, humanas, mas vilipendiadas nos dias hodiernos em que vivemos:
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe ou nos aconteça ou
nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase
impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, para olhar,
parar para escutar, pensar mais devagar; parar para sentir, sentir mais
devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo,
suspender a vontade, suspender, suspender o automatismo da ação,
cultivar a atenção e a delicadeza [...]. ( LARROSA,2004,p.160 ).

Ao abordar de maneira intimista, fragmentos da vida de Grande Otelo, o espetáculo


procurou proporcionar uma experiência para o público, que conviveu com momentos da vida do
ator, ao seguirem os passos da atriz que o representou - Aryadne Amancio. Percorrendo os
cômodos onde aconteciam as cenas, o público adentrou na intimidade de Otelo, e compartilhou
de trechos significativos de sua história, como, por exemplo, a cena em que todos se encontram
em um pequeno banheiro, e assistem os últimos instantes de vida da esposa de Grande Otelo,
Lúcia Maria, que, após matar o filho, comete suicídio. Esse episódio da vida de Otelo foi
encenado pelo Grupo Athos através do relato da esposa de Otelo,que não se pronunciou em
vida,apenas deixou uma carta.Na peça,a personagem Lúcia Maria,conta suas angústias,culpa o
marido e o público e revive os acontecimentos junto com ela e assiste estarrecido ao suicídio da
personagem.Beatriz Sarlo,discorre acerca dos testemunhos e do fato de em alguns momentos
apresentarem uma forte carga de persuasão e subjetividade.Por isso a autora,vê com uma certa
desconfiança e critica fortemente essa ação testemunhal:

Os relatos testemunhais são “discurso”nesse sentido,porque tem


como condição um narrador implicado nos fatos, que não persegue uma
verdade externa no momento em que ela é anunciada.É inevitável a marca
do presente no ato de narrar o passado(...)(SARLO,p.49,2007)
O espetáculo, além de abordar a vida e obra de Grande Otelo, de desvelar questões étnico
raciais, proporcionou que atores e espectadores, vivenciassem a travessia pelas memórias de
Otelo.
Além disso, possibilitou que o público percebesse, na pele, o negro Otelo, representado por
quatro atores e atrizes, negros e negras, que se contagiaram com a paixão pelo “Moleque Tião”,
que saiu do Sertão da Farinha Podre, e se tornou um dos maiores expoentes de nossa cultura.

Referências bibliográficas

CABRAL, Sérgio. Grande Otelo: uma biografia. São Paulo: Editora 34, 2007.

LARROSA, Jorge. Ensaios Eróticos – Experiência e paixão. In: Linguagem e Educação Depois
de Babel. Belo Horizonte: Autentica, 2004. p. 151- 165.

LEAL, Mara Lucia. Memória e(m) Performance: material autobiográfico na composição da


cena. Salvador: 2011

SANTOS, Regma. Sobre o grande moleque Tião que se tornou Otelo. Artigo disponibilizado
no site http://brevidades-regma.blogspot.com, acesso em 7/09/2011.

SARLO, Beatriz. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2007.
Trabalho do Ator e Teatralidade
Espaço rítmico: Provocações da Escuta

Por: Andréia Paris (*) (Bolsa CAPES; UDESC)


(Orientação: Prof. Dr. Milton de Andrade Leal Junior; UDESC)

O presente trabalho pretende abordar o conceito de espaço rítmico, idealizado por


Adolphe Appia (1862-1928) no início do século XX. Appia propõe o espaço rítmico para
expandir a presença do ator, quebrando a imobilidade do palco e ritmando o espaço cênico
a partir da utilização de plataformas, cubos, blocos. Procurando meios para ampliar a
proposta de Appia, encontrou-se no conceito de “escuta” e de “ritmanalista” do filósofo
Henry Lefebvre (1901-191) uma possibilidade de problematizar e dilatar este conceito.
Artistas como John Cage (1912-1992) e Anne Bogart (1951) vêm explorando o
conceito de escuta como uma postura, um estado em que todos os sentidos são valorizados
e usados tanto para apreciar uma peça como para compô-la. Lefebvre também vai nesse
sentido quando pensa o “ritmanalista” como um cientista que fica imerso numa profusão
de ritmos e se permite ser atravessado por todos eles para ouvir o mundo a partir de seus
ruídos, murmúrios e silêncios. A partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.

Espaço rítmico Ritmanalista Escuta Corporal


Título: Espaço rítmico: Provocações da Escuta

O conceito espaço rítmico foi investigado e idealizado por Adolphe Appia (1862-
1928) por volta de 1909. No seu livro A Obra de Arte Viva (L’Oeuvre d’Art Vivant –
1921), as últimas páginas são destinadas a algumas propostas de cenários, os quais são
apresentados pelas seguintes palavras: “Espaços rítmicos: os desenhos a seguir, datam de
1909 e são parte de uma série de projetos idealizados junto ao pensamento de Jaques-
Dalcroze. São destinados à criação de uma melhoria específica do corpo humano, sob as
ordens da música. – Sem outro destino, eles são um ponto de partida (1)” (APPIA, 1921,
p. 164).
Os desenhos que surgem após estas palavras não se aproximam do teatro realista
e mesmo simbolista que eram representados no mesmo período na Europa. A principal
inspiração do cenógrafo suíço para chegar a estas sugestões foi sua parceria com Jaques-
Dalcroze (1865-1950), como ele mesmo cita no trecho acima. Em 1906, Appia conhece
o trabalho de Dalcroze e declara o seu fascínio numa carta que escreve ao novo amigo. A
partir deste momento até 1909, acompanhou as conferências, se matriculou, em Genebra,
no “Normalcursus für das Studium der Methode der Rhythmischen Gymnastik von E.
Jaques-Dalcroze (Curso Normal destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica de
E. Jaques-Dalcroze) e assistiu as demonstrações de trabalho que Dalcroze fez pela Europa
(BABLET in APPIA, 1988, p. 3 e 30).
Neste período, Dalcroze começa chamar a atenção para a sua pesquisa devido às
demonstrações práticas que começa realizar por toda a Europa. Estudos que iniciaram por
volta de 1892 quando lecionou no Conservatório de Música de Genebra, as disciplinas de
“Harmonia Teórica” e “Solfejo Superior”, onde se defrontou com as dificuldades dos
alunos na compreensão do elemento rítmico e harmônico na música. A educação musical
do momento valorizava o músico virtuose com habilidades técnicas, desconsiderando
suas qualidades sensíveis e, por isso, os alunos eram estimulados a se fixar na anotação
musical e não na sonoridade dos acordes e melodias. Para combater estes preceitos e
contribuir para uma melhor formação, Dalcroze idealizou um trabalho para desenvolver
a sensibilidade dos alunos, de modo que fossem preparados para pensar e fazer arte, de
perceber toda a profundidade da música, entendendo que ela também sensibiliza e
influencia diretamente as emoções (JAQUES-DALCROZE, s/d. p. VI).
Intencionado em educar músicos que dissessem “eu sinto” ao invés de “eu sei”
(JAQUES-DALCROZE, s/d. p. IV), Dalcroze constrói uma pedagogia que alia escuta e
ritmo e a chamou de Ginástica Rítmica (Rhythmische Gymnastik) ou, simplesmente, de
Rítmica (Rythmique). Para Santos (2001. p. 20) a Ginástica Rítmica foi um marco
operativo para concretizar uma educação musical porque: explorava a sensibilidade, a
percepção; igualava o ritmo a todos os demais elementos musicais e o dissociava da
métrica, sendo valorizado como fator importante para a vida, para a sensibilidade, para a
expressão de toda arte; e introduziu o movimento para dilatar o senso rítmico do aluno e
a sua sensibilidade corporal. Assim, os estudantes deveriam se movimentar para
evidenciar os seus sentimentos e os conteúdos aprendidos nas aulas, de modo que o
movimento fosse a expressão de uma experiência de aprendizagem. Segundo Santos
(2001. p. 19-20), para Dalcroze o movimento possibilitaria o desenvolvimento de
questões duais como corpo e mente, pensamento e emoção, consciente e subconsciente,
interioridade e exterioridade, dionisíaco e apolíneo e, ainda, proporcionar uma
experiência estética da sensação do pulso e do tempo.
Dalcroze alegava que toda a sua pedagogia era para a formação de músicos
sensíveis. Nem ao menos almejava formar bons instrumentistas, queria apenas que seus
alunos fossem capazes de “perceber a música como algo divino, além de harmonia,
melodia...” (MADUREIRA, 2008. p. 123). Para isso, a Rítmica foi idealizada para ajudar
o rythmicien a desenvolver sua inteligência, vontade, compreensão da relação entre
música e movimento, ritmo e gesto, expressividade corporal e musical, valorização da
auto expressão, conscientização do espaço e das infinitas possibilidades de expressão
sobre os mais diferentes planos. Habilidades que deveriam ser ampliadas em todo artista
das mais diversas áreas. Deste modo, para ele, “os estudos de Rítmica constituíam-se
como o ABC da técnica corporal necessária a todo artista completo. Pois eles se destinam
à inteligência e à vontade” (JAQUES-DALCROZE apud MADUREIRA, 2008. p. 118).
Dalcroze defendia que a Rítmica servia de preparação, de iniciação do artista, mas não
como substituta das demais metodologias de formação das artes como a dança, canto,
teatro, ou mesmo dos estudos pianísticos (MADUREIRA, 2008. p. 30). Por volta de
1905, Dalcroze começa excursionar pela Europa com alguns alunos para mostrar a sua
pesquisa e torna-se alvo de atenção de muitos artistas, inclusive de Appia, como já foi
colocado acima.
Os espaços rítmicos foram cridos a partir da parceria que surgiu entre Appia e
Dalcroze e ao ler A Obra de Arte Viva é impossível não fazer correlações entre os
pensamentos dos dois artistas. Como coloca Madureira, Appia fez o Curso Normal
destinado ao Estudo do Método de Ginástica Rítmica e devido a esta experiência,
possivelmente, pôde vivenciar pessoal e esteticamente a Rítmica, que o teria conduzido a
concluir que “ser artista é, em primeiro lugar, não ter vergonha do próprio corpo, mas
amá-lo em todos os corpos, incluindo o seu” (MADUREIRA, 2008: 92). A Obra de Arte
Viva é um tratado de como valorizar, explorar e amparar o corpo no teatro. Postura esta
que contraria o pensamento artístico teatral do período, já que há uma valorização, por
parte dos artistas do teatro, da dramaturgia como principal mote de criação e como
identidade do teatro. Os dramaturgos escreviam tratados sobre o teatro, de como montar
e atuar em seus textos, como pensar o teatro enquanto arte dramática. Havia ainda, devido
à influência de Richard Wagner (1813-1883) (2), a crença de que a arte dramática deveria
ser a reunião harmoniosa de todas as artes, a síntese de todas elas de forma que se tornasse
a “obra de arte do futuro” (APPIA, s.d, p. 19-22). Contrário a estes princípios fomenta a
crise do teatro com o palco italiano e valoriza o ator como artista fundamental e, apoia o
surgimento da função do encenador que começa despontar no cenário (MOTA, 2012, p.
44). “A arte dramática dirige-se, como as artes representativas, aos nossos olhos, aos
nossos ouvidos, ao nosso entendimento – em suma, à nossa presença integral. Porque
reduzir à nada – e antecipadamente – qualquer esforço de síntese? Saberão os nossos
artistas informar-nos?” (APPIA, s.d, p. 29). Appia tem a resposta: o movimento do ator é
capaz de unir e tornar cada arte harmoniosa, fazer a junção entre elas:
O movimento, a mobilidade, eis o princípio diretor e conciliatório que regulará
a união das nossas diversas formas de arte, para fazê-las convergir,
simultaneamente, sobre um ponto dado, sobre a arte dramática; e, como é único
e indispensável, ordenará hierarquicamente essas formas de arte,
subordinando-as umas às outras, tendendo para uma harmonia que,
isoladamente, teriam procurado em vão (APPIA, s.d, p. 31).

O movimento corporal do ator surge como o elo fundamental para a prática teatral,
assim como é para a pedagogia de Dalcroze. Para Appia, todo e qualquer elemento do
teatro deve ser idealizado para promover o movimento corporal do ator, sem este esforço,
o teatro está morto. Uma obra viva requer que todos os recursos estejam em função do
movimento, que é a vida no teatro. Para Appia “o movimento não é, em si, um elemento;
o movimento, a mobilidade, é um estado, uma maneira de ser. Trata-se, pois, de examinar
que elementos das nossas artes seriam capazes de abandonar a imobilidade que lhes é
própria, que está no seu carácter” (APPIA, s.d, p. 31). Deste modo, o movimento do ator
significa, resignifica todas estas artes juntas, unindo, por meio do movimento e da
plasticidade do corpo, as artes do tempo (música e texto) e do espaço (Luz, arquitetura,
cenário).

O corpo, vivo e móvel, do actor é o representante do movimento no espaço. O


seu papel é, portanto, capital. Sem texto (com ou sem música) a arte dramática
deixa de existir; o actor é o portador do texto; sem movimento, as outras artes
não podem tomar parte na acção. Numa das mãos, o actor apodera-se do texto;
na outra, detém, como um feixe, as artes do espaço; depois reúne
irresistivelmente as duas mãos e cria, pelo movimento, a obra de arte integral.
O corpo vivo é, assim, o criador desta arte e detém o segredo das relações
hierárquicas que unem os diversos factores, pois é ele que está à cabeça. É do
corpo, plástico e vivo, que devemos partir para voltar a cada uma das nossas
artes e determinar o seu lugar na arte dramática (APPIA, s.d, p. 33).

Na sua proposta de valorizar o corpo para animar o espaço e torna-lo vivo, sugere
tirar toda e qualquer móvel feito para aconchegar o corpo. Sugere formas planas e rígidas
para tornar o corpo nú mais presente e valorizado esteticamente. “Sobre uma escada sem
tapetes, serão, simplesmente, pés nus e cheio de expressão” (APPIA, s.d, p. 86). O espaço
deve causar resistência ao corpo porque é desta resistência que surge a sua presença, que
torna o trabalho do ator mais efetivo sem ser figurativo. O movimento, para Appia, não é
representação de ideia, portanto, o cenário não deve ser figurativo. Assim, sua proposta é
que, as formas do espaço, não se harmonizem com as formas do corpo, porque, uma vez
em sintonia, o corpo estará presente, mas sem efeito corporal. Por isso, critica os cenários
e o modo de pensar o espaço cênico do período. Estes deveriam ser idealizados para
valorizar, ampliar, reforçar a expressividade do corpo do ator. Deste modo, para Appia,
por mais que o corpo do ator fosse plástico, se aproximando da forma escultural, não pode
ser feita uma identificação entre corpo e escultura porque, o primeiro é móvel. Por ser
tridimensional, o corpo recusa a pintura, ou seja, os telões com as suas formas e luzes
pintadas pois, não valorizam a sua mobilidade. Pelo contrário, devido à forma fixa, há um
estranhamento que diminui a potencialidade do corpo (APPIA, s.d, p. 40), jogando fora
toda todo o esforço do ator.

Para receber do corpo vivo a sua parte da vida, o espaço deve opor-se a esse
corpo; adquirindo as nossas formas, aumenta ainda a sua própria inércia. Por
outro lado, é a oposição do corpo que anima as formas do espaço. O espaço
vivo é a vitória das formas corporais sobre as formas inanimadas. A
reciprocidade é perfeita. Este esforço torna-se-nos sensível de duas maneiras:
quer pela oposição das linhas quando olhamos um corpo em contato com as
formas rígidas do espaço; quer quando o nosso próprio corpo experimenta a
resistência que essas formas lhe opõem. A primeira é apenas um resultado; a
outra, uma experiência pessoal e, por isso, decisiva. – Tomemos um exemplo
e suponhamos um pilar vertical, quadrado, de ângulos rectos inteiramente
definidos. Este pilar repousa, sem base, sobre lajes horizontais. Dá impressão
de estabilidade e resistência. Aproxima-se um corpo. Do contraste entre o seu
movimento e a imobilidade tranquila do pilar nasce já uma sensação de vida
expressiva, que o corpo sem pilar e o pilar sem corpo que avança não teriam
atingido. Além disso, as linhas sinuosas e arredondadas do corpo diferem
essencialmente das superfícies planas e dos ângulos do pilar e esse contraste é,
por si só, expressivo. Mas o corpo toca no pilar; a oposição acentua-se ainda
mais. Finalmente, o corpo apoia-se no pilar, cuja imobilidade lhe oferece um
ponto de apoio sólido: o pilar resiste, age! A oposição criou a vida da forma
inanimada: o espaço tornou-se vivo! – suponhamos, agora, que o pilar não é
rígido senão na aparência e que a sua matéria, ao mínimo contacto estranho,
pode adquirir a forma do corpo que a toca. O corpo vivo incrusta-se, portanto,
na matéria mole do pilar e sepulta a sua vida; e, no mesmo instante, matará o
pilar (APPIA, s.d, p. 87-88).

O cenário, portanto, tem a função de invocar e permitir que os atores sejam


colocados em primeiro plano e não deve ficar no âmbito da representação do texto
dramático. É o ator que deve ser interrogado na criação de um espetáculo e não o
dramaturgo. Por isso que para Appia é o tema quem guia a representação e, tudo que
favoreça o corpo do ator que deve ser escolhido para representa-lo: “Consideremos
apenas os elementos situados aquém desse corpo, aqueles que ditam a sua vida e o seu
movimento; depois, ocupar-nos-emos desse corpo, intermediário maravilhoso, dominado
pelo dramaturgo e dominando, por seu turno, o espaço, confiando-lhe a própria vida”
(APPIA, s.d, p. 148).
Diante de todas estas propostas de mudanças, há uma revisão geral do fazer teatral:
1. Não pensar no espetáculo apenas como uma representação do texto dramático. O texto
é visto como um provocador da montagem, cujas escolhas artísticas serão guiadas pelo
impulso de valorizar e expandir o trabalho do ator que conta a história. 2. A música, a luz,
o cenário, o figurino, o espaço de atuação, devem ser criados não para ilustrar a proposta
do dramaturgo, mas para potencializar a expressividade do artista. Por isso propõe não
atulhar o espaço de representação com móveis coloridos, telões pintados, nem vestir os
atores com figurinos figurativos, ou então compor músicas que sejam apenas pano de
fundo da encenação. Ao invés disso, sugere cenários mais simples visualmente, mas que
sejam potentes na provocação corporal dos atores, usando escadas, rampas, praticáveis
de modo que estes tenham uma forma que valorize a corporalidade do ator, que o convide
a se movimentar. Propõe formas que explore a tridimensionalidade do espaço,
recortando-o em planos diferentes, abolindo os telões ilustrativos, propondo meios que o
corpo possa exibir também a sua tridimensionalidade; que a música suscite e sugira
durações, ritmicidade, que contribua na não figuração do movimento, despertando no ator
a vida interior, a essência de sua movimentação; que a luz seja mais um aliado do ator,
que consiga jogar com os seus movimentos já que também se movimenta e revela uma
atmosfera. Não pode ser algo que fixa o movimento do ator, passiva, que cristaliza a
expressão, ao invés disso, deve revela-la, atende-la, destaca-la. Diante de tudo isso, é
possível entender as suas propostas de espaço rítmico como um provocador do ritmo do
movimento do ator. Suas formas retas e irregulares (escadas, praticáveis, rampas),
impedem o ator de andar linearmente, num único ritmo, já que, sugere mais atenção por
parte do ator, e convida seu corpo a ter diferentes posturas, afinal, para subir uma rampa
ou descer escadas, exigem posturas, necessidades corporais e rítmicas diferenciadas entre
si. Com isso, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa de modo outro que interfere
na sua expressividade. O espaço do modo como Appia pensa, também é mais lúdico,
possibilitando experimentações, provocações cênicas.
Para realizar o ideal de arte viva, que coloca o corpo e o movimento do ator como
o centro, o elo fundamental para e pela arte teatral, Appia acredita que é necessária
rigorosidade técnica, ou seja, conhecer as potencialidades estéticas do corpo e trabalhar
coletivamente. A arte viva não se representa, mas se vive intensamente por meio da
duração, do ritmo, do movimento, ocupando vivamente espaço e tempo (APPIA, s.d, p.
167-178). Para isso, é preciso trabalhar o corpo com o esporte, criar uma pedagogia
corporal e “uma vez que a Experiência da beleza foi o resultado de uma consciência nova
que adquirimos com o nosso corpo, na própria noção desse corpo adquire um alcance que
nós não suspeitamos ou que tínhamos esquecido” (APPIA, s.d, p. 194). Ou seja, Appia
sugere que o ator e todos os demais artistas do meio teatral trabalhem e se dediquem a
explorar o seu corpo, porque está nele todas as respostas para a criação. Mas que tipo de
trabalho corporal Appia espera que seja feito? Um que seja próximo do trabalho que
Dalcroze organizou? Neste sentido que este artigo espera contribuir.

A ESCUTA CORPORAL

Escutar, etimologicamente vem do latim a(u)scultare, que significa “tornar-se ou


estar atento para ouvir” (CUNHA, 1982: 318). Para Pierre Schaeffer escutar “é aplicar o
ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a alguém ou alguma coisa que me é
descrita ou assimilada por um som” (SCHAEFFER, 1993: 90). Portanto, a descrição da
própria palavra considera o ser integrado, completo no ato de escutar, cujos
desdobramentos poderia ser: se atentar, perceber, concentrar, receber. Ações que que não
são encontradas no ato de ouvir. Originada do latim audire, ouvir significa “perceber,
entender sons através do aparelho auditivo, escutar” (CUNHA, 1982: 568). Para
Schaeffer (1993: 90) “é perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à
atitude mais ativa, o que ouço é aquilo que me é dado na percepção”. Portanto, como
coloca Barthes (1990: 217), ouvir torna-se um ato estritamente fisiológico, já que, por ser
uma cavidade direta e constantemente aberta, o ouvido capta todo som que chega a ele.
Mesmo diferentes, escutar não exclui o ouvir, e estas duas funções estão interligadas e
são dependentes uma da outra.
A escuta tem sido explorada e discutida em artes como a música, por exemplo,
desde o início do século XX. Neste período, passava por diversas mudanças nos
procedimentos composicionais que começaram introduzir sons, ruídos e até novos
instrumentos inventados pelos artistas, exigindo do público uma nova escuta e percepção
para a sua apreciação (SANTOS, 2004: 29). A discussão passou pelo movimento futurista
italiano (4) com o músico Balilla Pratella (1880-1955), se estendendo com os músicos
Edgard Varèse (1883-1965) e posteriormente se consolidou com propostas como a
“Escuta Reduzida” do compositor Pierre Schaeffer (1910-1995), o “Ouvido Pensante” de
Murray Schafer (1933) e a “Poiética da Escuta” de John Cage (1912-1992).
Resumidamente, a “escuta reduzida” é uma escuta do “objeto sonoro”, do som em sua
inteireza, em sua potência e qualidade sonora, sem idealizar a sua fonte, sem atribuir-lhe
significados. O objetivo é atentar-se, simplesmente, às suas qualidades sonoras, tal como
se encontrar em seu estado bruto e apreciá-lo como artístico (SCHAEFFER, 1993: 238).
Schafer propõe o “Ouvido pensante” para discutir o que chamou de “Ecologia Acústica”,
que estuda os efeitos sonoros do ambiente. A Poiética da Escuta é uma terminologia que
Shono (1987-1988: 451) propõe diante das propostas artísticas de Cage. Para o
compositor americano, não é mais o compositor que compõe a obra, mas o próprio
ouvinte, quando ele se propõe escutar o presente, o silêncio, o acaso e não apenas os sons
escritos de uma peça. Assim, os ouvintes são livres para se dedicar exclusivamente aos
sons que lhe interessem, sem a intenção de reter ou guardá-los, gravá-los. O ouvinte-
compositor se dedica a “ouvir-através”, em consonância com “ver-através” do pintor e
escultor francês Duchamp (1887-1968) (SANTOS, 2004: 80).
O trabalho de John Cage influenciou diretamente o de Anne Bogart (1951),
diretora da SITI Company dos Estados Unidos, que também pensa o que chama de
“Escuta Extraordinária”. Sendo um dos preceitos importantes de seu pensamento como
diretora, propõe a “escuta extraordinária” como uma postura, um estado que o ator deve
desenvolver, em que todos os sentidos são valorizados no mesmo grau de importância e
usados na cena ou na preparação de qualquer trabalho. É escutar com todo o corpo, todos
os sentidos, relacionando-se ativamente com o inconstante mundo ao redor, “direcionar
para fora a sensibilidade ágil e rapidamente, estar disponível e aberto ao outro, sensível a
tudo que acontece”(3) (BOGART; LANDAU, 2005: 33). É, neste estado, nesta postura
de “escuta extraordinária” na qual não há hierarquia entre os sentidos corporais,
promovendo, deste modo, uma sensibilização do corpo todo, mantendo-o atento, alerta e
principalmente receptivo que, Anne Bogart introduz o ator aos viewpoints e à
composição. Para ela, este é o primeiro passo para o ator iniciar seu trabalho, porque ela
resume a função do ator em responder, escutar, perceber, compor com o grupo, com o
espaço, com o tempo.
Outro pesquisador da escuta foi Henry Lefebvre (1901-1991). O filósofo francês
também pensava a escuta como um instrumento de percepção para captar os ritmos do
cotidiano, das cidades, dos comportamentos humanos, da vida em sociedade. Ele idealiza
o ritmanalista, um cientista social, cidadão do mundo, econômico, rítmico que deve
ouvir, principalmente, o mundo, os ruídos, múrmuros, o silêncio para pensar as mudanças
e os acontecimentos sociais. O ritmanalista fica imerso na profusão de ritmos cotidianos
e se permite ser atravessado por todos eles, para que os seus ritmos internos sejam
acordados. Nada deve ser esquecido, nem mesmo o aroma. A percepção do ritmanalista
deve estar dilatada, amplificada, de forma que todo o seu ser esteja envolvido, sensível
aos elementos rítmicos do mundo, de modo que consiga captar, principalmente, os
detalhes ocultos. No primeiro momento da análise, a escuta deve ocorrer de forma
passiva, sem fazer prévias concepções, apenas se concentrando no ato de ouvir.
Posteriormente, escuta seu próprio corpo como quem ouve um metrônomo, de forma a
aprender os ritmos que vêm dele e, consequentemente, apreciar os ritmos externos. É
necessário ter disciplina para perceber e distinguir ritmos, sem rompê-los ou deslocar o
tempo. Lefebvre legitima o corpo como uma bússola, como um meio para pensar a ciência
do ritmo. Com isso, Lefebvre propõe uma concepção de ciência que inclui no proceso de
conhecimento não apenas o racional e o lógico, mas também o sensível. Para isso,
Lefebvre defende que o ritmanalista pode e deve utilizar todas as práticas corporais e
ideologias que exploram o controle da respiração, do coração, dos músculos e dos
membros inferiores e superiores, do corpo como um todo (LEFEBVRE, 2005, p. 19) para
fazer suas análises. O ritmanalista, portanto, seria alguém que se torna um crítico, um
agente, um ser consciente dentro de seu meio que explora as habilidades de um
psicanalista, médico, historiador, climatólogo, poeta e sociólogo para ouvir o mundo com
seus ruídos, múrmuros e silêncios (LEFEBVRE, 2005, p. 19).

O ritmanalista não seria obrigado a pular de dentro para fora dos corpos
observados. Ele poderia ouvi-los como um todo e unificá-los usando seus
próprios ritmos como referência: integrando o fora com o dentro e vice-versa.
Para o ritmanalista nada é imóvel. Ele ouve o vento, a chuva, a tempestade, a
parede, um baú [trunk], entende sua lentidão, seu ritmo interminável. Seu
objeto não é inerte. O tempo não é colocado de lado pelo sujeito. Ele só é lento
em relação ao nosso tempo, ao nosso corpo, a medida dos ritmos. Um objeto
aparentemente imóvel, a floresta, move de múltiplos modos: os movimentos
combinados da terra, da Terra, do sol. Ou os movimentos das moléculas e
átomos que os compõem (o objeto, a floresta). O objeto resiste a milhares de
agressões, mas se quebra em umidade ou em condições de vitalidade, uma
profusão de vida minúscula. Para o ouvido atento, esta vida minúscula é como
uma concha marinha (5) (LEFEBVRE, 2005, p. 20).

John Cage, Anne Bogart e Lefebvre pensam a escuta como um recurso que
contribui na percepção a partir da exploração e ampliação da atenção, percepção,
concentração e recepção; como interação do corpo no processo, seja ele artístico ou
científico, que compreende a fisiologia interior e exterior, de modo que estas estejam em
constante abertura e flexibilidade com o meio à volta, de forma a entender o ritmo, o
espaço, a relação entre objetos e pessoas; como meio para despertar e pôr em interação o
tato, o caminhar, a respiração, o fluxo sanguíneo, o olfato para perceber e explorar
sonoridades, acentos, ruídos, silêncios de forma a estabelecer um dialogo com o espaço,
com as cores, odores, com elementos externos e internos de forma não hierárquica.
Proposta que vai em direção às intenções e ao pensamento de Appia: foco sobre o corpo
como o elo fundamental da arte e a busca por um treinamento que objetiva sensibilizar o
artista aos elementos espaciais, textuais e rítmicos.
Neste sentido, a escuta pode ser uma prática interessante para pensar o espaço
rítmico. Appia o idealizou como um elemento fundamental que contribuísse no
desenvolvimento da expressividade do ator, para que ela fosse o elo entre todos os demais
elementos teatrais. A partir da exploração da sua percepção, o ator entende que qualquer
espaço tem seus ritmos, porque ele os ouve, os sente, os cheira, os tateia, se movimenta,
os degusta. Com os sentidos dilatados, há a ampliação da atenção, da percepção, da
concentração e da recepção do ator que reage a qualquer elemento que capta: não deixa
escapar a densidade do ar, cujas qualidades, dinâmicas e características mobilizam o ator,
inspirando-o a reagir; sensibiliza-se com as cores das paredes e do chão, com a entrada
da luz das janelas, com seus desenhos e formatos que criam imagens, possibilidades de
criação; não ignora os sons que chegam a este espaço, sejam eles provocados ou não,
confortáveis ou ruidosos porque, as sensações que provocam são potencialidades para
composições rítmicas do movimento; não dispensa a temperatura, os cheiros, os gostos
que geram mobilizações internas e externas, suscitando no corpo diferentes reações.
A escuta cria uma disposição corporal a todos estes elementos, despertando o ator
a dialogar, a responde-los com movimentos. O universo externo, a sala de ensaio, o palco,
mesmo estando vazios, o ator os vê cheios de provocações que lhe causam sensações, que
lhe convidam a brincar, compor dramaturgias, músicas que dialoguem entre si. Se o ator
estiver sensibilizado corporalmente para ocupar o espaço e o tempo no qual está inserido,
eles serão rítmicos, tendo formas retas, irregulares, escadas, praticáveis, rampas ou não
porque, qualquer elemento, mesmo o menos perceptível poderá ser estímulo mobilizador
da criação. A partir da escuta corporal, o ator não apenas está no espaço, mas o ocupa,
interage com ele, o desconstrói, o constrói, o transforma poeticamente. Por estas
considerações, acredita-se que a partir de um estado de escuta, de percepção dilatada, de
uma sensibilidade aguçada, o ator pode perceber o espaço, mesmo vazio, como um lugar
que habita os mais diferentes ritmos, assim como pode explorar com mais propriedade
provocações cenográficas como as de Appia.

Notas:
(*) Bolsista Capes, doutoranda em Teatro pelo Programa de Pós-Graduação em Teatro pela Universidade
do Estado de Santa Catarina (UDESC) na linha de pesquisa Linguagem, Corpo e Subjetividade. Bacharel
em interpretação pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e Mestre em Teatro pela Universidade do
Estado de Santa Catarina (UDESC). As suas pesquisas estão na área da formação do ator: Interpretação,
Improvisação, Preparação Corporal e Ritmo da cena.

(1) Les dessins suivants, qui datent de 1909, font parti d’une série de projets appartenant à Jaques-
Dalcroze, et destinés à la création d’un style propre à la mise en valeur du corps humain sous les
ordres de la musique. – Sans autre destination, ils sont un point de départ.
(2) Appia tem um livro dedicado a esta temática La Mise em Scène du Drama Wagneriano (1895).
Há a tradução de alguns textos deste livro feito pelo Prof. Dr. José Ronaldo Faleiro na revista
Urdimento, N. 12, disponível em: http://www.ceart.udesc.br/ppgt/urdimento/
(3) Point out that this sensibility of alertness, quickness, availability and openness to one another, and
the sense that anything might happen […].Tradução da autora.
(4) Movimento artístico que surgiu em 1909, rejeitando o moralismo e o passado, cujas obras
baseavam-se na velocidade e nos desenvolvimentos tecnológicos do final do século XIX.
(5) The rhythmanalyst will not be obliged to jump from the inside to the outside of observed bodies;
he should come to listen to them as a whole and unify them by taking his own rhythms as a
reference: by integrating the outside with the inside and vice versa. For him, nothing is immobile.
He hears the Wind, the rain, storms: but if he considers a stone, a wall, a trunk, he understands
their slowness, their interminable rhythm. This object is not inert; time is not set aside for the
subject. It is only slow is relation to our time, to our body, the measure of rhythm. An apparently
immobile object, the forest, moves in multiple ways: the combined movements of the soil, the
Earth, the sun. Or the movements of the molecules and atoms the compose it (the object, the
forest). The object resists a thousand aggressions but breaks up in humidity or conditions of
vitality, the profusion of miniscule life. To the attentive ear, it makes a noise like a seashell
(LEFEBVRE, 2005, p. 20). Tradução da autora

BIBLIOGRAFIA

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D’homme, 1988. Direção Científica da edição de Denis Bablet. O livro fala de seu período
de 1906 a 1921. Disponível em:
http://books.google.fr/books?id=yly2GoeEPxYC&pg=PA519&lpg=PA519&dq=l%27oeuvre+compl%C3
%A9te+de+Appia&source=bl&ots=Kx12fN2uhP&sig=PBBnolUO6MM4qIbLK4B-c_pB3Bk&hl=pt-
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Rítmica - uma exposição em 9 quadros inacabados. 2008. 209 p. Tese (Doutorado em
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SHONO, Sussumo; 1897-1988. “Une Poïètique d’Écoute”. Revue d’Esthetique (nouvelle


serie). N. 13/15, pp; 449-455.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
ATRIBULAÇÕES DE VIRGINIA, O REFLEXO DO TRABALHO EM UM
PESQUISADOR INICIANTE.

Célio Alberto de Ávila Freitas (PIVIC-CNPq); Colaborador: Cênica Luz (Universidade


Federal de Uberlândia-UFU); Orientador: Mario Ferreira Piragibe (Universidade
Federal de Uberlândia – UFU)

A História e fantasia de Virginia

… un día alguien que no conoces se fija en ti. Ese día te


cambia la vida. Virginia se la cambió a Valentín. Cuando
empiezas algo crees que va a ser para siempre y a veces no es
así. Un día la magia como viene se va… te desenamoras...
(CIA HNOS. OLIGOR).

No ano de 2012 aconteceu na cidade de Uberlândia a quarta edição do Festival


Latino-Americano de Teatro Ruínas Circulares, entre os dias 30 de abril e 05 de maio.
Dentre as atrações do festival, o espetáculo “As atribulações de Virgínia”, apresentado
pela Cia Hnos. Oligor.
Na época em questão eu ainda era um aluno do curso de graduação em
Engenharia Civil pela Universidade Federal de Uberlândia, a um passo de sair para
fazer o curso de Teatro como sempre desejei. Caminho o qual não havia seguido por
motivos familiares, entre eles a perda de meu pai, que trabalhava nesta área da
engenharia, de maneira autônoma.
O primeiro e segundo dias de espetáculo estavam lotados, de modo que eu não
pude assistir, pois, era estruturado para comportar apenas 50 espectadores por sessão.
No entanto, a cada dia que passava mais pessoas que acompanhavam o festival e atores
ou não, relataram que a peça era uma ótima oportunidade de conhecer uma linguagem a
qual não temos muitos trabalhos como referência.
Ouvir isso me deixou ainda mais ansioso pela oportunidade de assistir à peça
sendo que, somente no último dia, consegui garantir meu lugar na seção, e de fato,
deparei-me com algo que mudou meu pensamento artístico e despertou a sensibilidade
de como o simples pode ser belo, como o modo utilizado para apresentar algo, pode
fazer uma diferença imensa.
A história da peça é incrivelmente simples, e talvez por isso seja tamanha a sua
beleza. Nela apenas dois são os personagens: Virginia e Valentim. Em uma historia de
amor em que tanto o começo quanto o final são como na vida real, naturais, e por mais
que possam causar sofrimento ou qualquer outra sensação, não se pode evitá-lo. Um dia
chega à vida da sensível Virginia, que com seu sonho de ser bailarina vivia
normalmente, Valentim. Alguém que ela não conhecia, ou imaginava chega e muda sua
vida, e por mais que o começo possa ser belo e parecer até mesmo eterno, às vezes não é
isto o que acontece de fato. Cheia de reviravoltas e fantasias assim foi a historia que
com seus recursos de drama sensível, cria um ambiente que propicia a plateia
sentimentos diversos. Em meio a bonecos, máquinas, brinquedos e muita criatividade,
em que a palavras “Alegria” dita pelo ator Jomi Oligor inúmeras vezes e que faz com
que sejamos convidados a compreender que sofrimentos e partidas fazem parte da vida
e que saber lidar com tudo isso pode levar o sofrimento a ser algo não tão cruel como
parece ser a primeiro momento.
Ao sair do espetáculo naquela noite, se passou em mim algo mais forte do que
em qualquer outra peça de teatro que eu já havia assistido. Eu não conseguia parar de
pensar nos elefantes, sereia, todas as luzes, voz, cordões, trilhos de trem, guitarra,
bolhas de sabão, efeitos sonoros naturais dos objetos e transições que havia visto. Um
estudante de engenharia, que viu uma “engenhoca mágica teatral” como eu, ainda sem
um conhecimento técnico em teatro de objetos, apelidei o aparato teatral pelo qual o
espetáculo nos convida a embarcar nesta historia.

Da Bailarina sonhadora ao engenheiro que vira ator

A segunda-feira seguinte à apreciação do espetáculo me mostrou que o curso


de Engenharia Civil no qual eu estava era de fato incompatível com meus desejos e
sentimentos. Passei o final de semana após haver assistido a peça com aquelas imagens
na cabeça. Se Virginia queria ser bailarina, e pela fantasia do teatro foi possível
construir toda aquela engenhoca mágica teatral, o que será que um estudante de
Engenharia Civil, um construtor de engenhocas, poderia ser capaz de fazer para
aproximar seu sonho verdadeiro de ser ator daquele curso acadêmico que ele fazia sem
vontade?
Era essa a questão que não parava de transitar na minha cabeça, achava que
poderia fazer algo tão belo quanto à peça, e que se eu encontrasse alguém que estivesse
disposto a auxiliar-me em uma pesquisa ou construção em que fosse possível aliar o
meu desejo e sonho pelo teatro, como o conhecimento adquiro ao cursar engenharia
civil, poderia usar o que essa faculdade iria me proporcionar. Construir para o teatro,
planejar para o teatro, engenharia para o teatro. Talvez uma história de um jovem
engenheiro que sonhava ser ator, mas que acabou não sendo porque a vida leva a gente
às vezes a caminhos que não são os que desejamos, e nem sempre as coisas são para
sempre, como não foram para Virginia e Valentim...
Sempre que falava sobre teatro com professores ou meus amigos, eu percebia
que ninguém estava disposto há ficar muito tempo em um projeto assim. Mesmo os
professores não se empolgavam muito com a ideia de orientar um projeto que
propusesse tal interação entre cursos. Afinal é bem evidente, o modo como um curso da
área de exatas, ainda mais sendo um curso que por sua carga horária extensa e número
elevado de disciplinas, acaba levando seus discentes, a uma situação em que o tempo é
precioso e normalmente sempre deve ser bem dosado para que seja possível dedicar-se
de maneira adequada. Após alguns dias, conversando com pessoas do curso de teatro
acompanhando como ouvinte, algumas aulas do curso em questão. Cheguei à definitiva
decisão de que eu iria seguir meu desejo.
Uma vez, que tive oportunidade de fazer a prova de habilidade especifica em
teatro, somente foi necessário aguardar o fim da greve nacional em vigor. Não havia
mais o engenheiro com duvidas, mas sim um novo graduando em teatro que, movido
por seus sonhos e empolgações, já tinha um interesse mais particular estudar linguagem
do teatro de formas animadas. E descobriu que a peça que tanto o encantou, trabalha em
grande parte com a linguagem do teatro de objetos. Um estudo preliminar dessa
linguagem do Teatro de Animação, já forneceu as primeiras ferramentas, possibilitando
o desenvolvimento de meus estudos e nova formação.

Elementos e características do teatro de objetos vistos na peça

O teatro de objetos é particularmente provocador quando


apresenta um repertório pessoal, autobiográfico, intimo e
autoral do ator, que se expõe através dos objetos. O grande
potencial do Teatro de Objetos não está nas suas
particularidades técnicas, mas, sim, naquilo que é capaz de
despertar de mais profundo e revelador daquele artista, por
meio de seus objetos. (VARGAS, 2010, pg 37)

O estudo de teatro de objetos, em meu começo de pesquisa, tem sido atraente


principalmente devido a pensamentos como este de Sandra Vargas, e que também ouve
a possibilidade de identificação, tanto no espaço da peça quanto no trabalho do ator
durante o espetáculo que abordo neste artigo. A proximidade entre ator e público que
essa linguagem teatral propõe, exatamente por este seu caráter autobiográfico, leva o
ator a um nível de exposição elevado.
Pelo que vi em Atribulações de Virginia, Jomi Oligor estava totalmente aberto
para a percepção de reações do público, e em meio a esta percepção, ele usava de
artifícios próprios para poder interagir com a plateia, conversando com algumas pessoas
que demonstrassem reação a sua fala. Isto é, no ritmo da história de amor de Virginia e
Valentim, seu tom de voz muitas vezes com falas galanteadoras para mulheres que
estavam no espaço, bem como aproximação corporal que fazia do publico, provocavam
reações como timidez, entre outros modos de estranhamento ou aceitação do jogo
proposto. Lembro-me ainda, que Jomi Oligor, fazia referência até mesmo a alguns
locais da cidade de Uberlândia nesta aproximação com o publico, como fez na ocasião,
a um bar/boate que fica próximo ao local da apresentação e perguntar a uma garota se
ela queria ir com ele. Situação está que prendiam a atenção do público, servindo de
contrapartida a momentos tensos, em que algo ruim aconteceria, atuando de fato como
quebras no ambiente da peça.

Um objeto construído pelo homem é sempre relativo a ele. É


construído pelo homem para servir ao homem. Portanto, só
pode ser definido em relação a ele. Matéria pura, matéria e
forma, ideia realizada, pensamento solidificado, „palavra
materializada‟. (AMARAL, 1993, pg 205)

O espaço da peça, apreciada, é projetado de modo a refletir o ambiente em que


foram construídos os objetos cênicos. Durante o processo os atores passaram dois anos
trancados em um porão, devido a problemas que aconteciam em sua família. Neste
tempo, eles não pensavam de fato em que aqueles brinquedos e bugigangas que
construíam, poderiam resultar em uma peça teatral. Sendo que este desfecho aconteceu
por impulso de amigos que apreciavam o que estava sendo construído durante visitas
que faziam aos Jomi Oligor e seu irmão Pepe Oligor. O fato é que eles realmente
reconstroem este espaço para que ali apresentem o espetáculo, sendo esta ainda, uma
forma de criar esse ambiente intimista que o teatro de objetos pede ao seu público.
Ainda para que posa ser mais fácil ter dimensão do clima intimista do porão em
que foram construídos os objetos, eles utilizam a iluminação cênica como técnica para
facilitar este processo. São bastante exploradas no cenário da peça, lâmpadas
incandescentes envoltas para dar o aspecto de lua e pouca iluminação na maior parte do
tempo, recurso este que tem como principio levar a atmosfera do espetáculo a
reproduzir este espaço em que havia pouca iluminação.
Pensando ainda sobre iluminação no espetáculo, até mesmo a iluminação pode
ser abordada como um objeto participante da cena, as transições de luz são todas
operadas pelo próprio ator em cena, conectando novos fios, mudando interruptores e
ativando novas fontes luminosas, que dialogam com o momento da que se passa no
texto. Sendo também usadas fontes luminosas não elétricas durante momentos do
Espetáculo, para dar uma ambientação comemorativa a determinado momentos, o ator
utiliza velas, ou ainda pavios para efeitos desejados.

... Dentro deste conceito, portanto, tentar fazer um boneco,


forçando a ilusão de um movimento humano a partir da junção
de diferentes objetos, não constituiria um Teatro de Objetos,
mas um Teatro de Bonecos feito de objetos. (VARGAS, 2010,
pg33.)

Refletindo sobre a fala de Sandra Vargas, é possível que imaginemos que a


peça apresenta somente um boneco feito de objetos, que seria o grande boneco
Valentim, que apresenta uma estrutura de cintura acima, e sua movimentação está
totalmente ligada a ao maquinário da peça, possibilitando movimentos de braços, por
exemplo, em momentos. O fato é que todos os objetos em questão neste espaço tiveram
de ser muito bem pensados para que funcionem do modo como são, uma ação de Jomi
Oligor para soltar uma pequena esfera, por exemplo, faz com que essa esfera se desloque
e ative algum outro mecanismo, acendendo luzes do boneco Valentim.
Outros objetos que chamam atenção na peça também são os vários brinquedos
colocados em cena, o elefante, o trem que percorre os trilhos que passam atrás da plateia
levando Virginia em certo momento, a própria Virginia que pode ser colocada no nariz
de Valentim, e também o Coração Oligor como chama Jomi Oligor em uma entrevista
para a Festival Cena Contemporânea em 2011 que se tornou o símbolo do espetáculo.
E também a presença de objetos mais com os quais é usado o artifício de
figuras de linguagem, característico desta linguagem teatral. Em determinado momento
cênico, uma estrela cadente aparece em cena, à medida que o ator falar para que o
publico faça um pedido, Tal estrela que é um pavio que quando aceso passa como a luz
de uma estrela de fato.
Novos significados podem ser dados aos objetos, sem
transformar a sua natureza, por meio das associações que se
podem dar pela forma, pelo movimento, pela cor, pela textura,
pela função do objeto, etc. (VARGAS, 2010, pg 34).

Para ilustrar um pouco melhor essa transformação de natureza do objeto,


podemos falar sobre duas das principais figuras de linguagem que são usadas na
construção de cenas e momentos de teatro de objetos, sendo estas, as metáforas quando
essa transformação é e atribuída ao objeto com um significado diferente do habitual
levando em conta alguma semelhança entre o sentido proposto e o primário do mesmo.
E também a metonímia, quando uma palavra é usada para algo com que se tenha relação
de posse ou proximidade.
Ainda pensando em termos técnicos do teatro de objetos e apoiado na ideia
levantada pela citação acima, é possível destacar sobre o espaço cênico do espetáculo, o
modo como em sua concepção, a Cia Hnos. Oligor usa também da ideia de “família” de
objetos. Isto é, quando se analisa características dos objetos do espaço, como o boneco
Valentim, a sereia, e demais materiais é possível perceber claramente que os objetos
entre si possuem certa unidade em relação uns aos outros, tanto em cores como também
quando se diz respeito aos materiais dos quais eles são feitos. Sendo que esta escolha a
de objetos se mostra também bastante enriquecedor para o próprio jogo metafórico do
espetáculo, uma vez que facilita a criação do ambiente intimista e fantástico criado.

Os brinquedos que criam novas histórias.


Estar em contato com o curso de graduação em teatro proporcionou
descobertas e alimentou a imaginação para do que eu esperava. Assim que comecei a
fazer as aulas, procurei saber mais sobre o espetáculo que me moveu a estar ali no
curso, então descobri por meio do professor Mario Ferreira Piragibe, hoje meu
orientador de iniciação cientifica, o que era teatro de objetos. Em contrapartida,
descobri que essa área da linguagem de formas animadas é pouco trabalhada no curso
de teatro, ofertada apenas como disciplina optativa.
Como meu interesse era particular, comecei uma trajetória própria visando
descobertas. O jovem ator que se encantou pela bailarina Virginia, agora está em busca
de entender melhor sobre a forma como a história dela foi contada e como ainda falta
conhecimento para confecção de bugigangas ou demais outros objetos semelhantes aos
que Jomi Oligor cria. Neste inicio de estudo decidi apelar para os meus objetos mais
preciosos: os brinquedos de minha infância. Minhas historias iniciais e momentos
contados usando a linguagem do teatro de objetos têm sido principalmente
proporcionados por experiências relacionadas à própria faculdade e relacionamentos
amorosos, logo neste total caráter autobiográfico da linguagem como já mencionei,
sempre buscando o clima intimista e envolvente que As atribulações de Virginia me
mostraram.
O primeiro pensamento que se passou em minha cabeça foi a inquietação a
respeito de como às vezes o egoísmo e ganância podem fazer com que percamos
oportunidades, justamente por isso, senti vontade de escrever A Estrela, uma história de
amor de um garoto que todos os dias caminhava até o topo de uma colina para observar
as estrelas, sonhando que uma delas pudesse um dia se tornar sua, no entanto sua
ganância faz com que ele ignore uma bela estrela dourada e ela parca seu brilho. Assim
nasceu esta cena, apresentada a primeiro momento para o grupo zerovígula1 de teatro do
qual faço parte do elenco e que hoje faço algumas apresentações em eventos do curso e
para amigos. Para esta cena selecionei dois brinquedos (o garoto e a garota), uma estrela
feita em origami, um tubo telescópico (que usava no curso de Engenharia Civil) e uma
rosa no seu desenvolvimento.
Essa experiência com teatro de objetos desdobrou-se e ainda mais, do trabalho
final da disciplina Consciência Corporal do curso de teatro, onde contei em uma cena
usando brinquedos, meu processo pessoal de estudos no semestre, falando, o que
aprendi, observando em meus colegas de classe no decorrer do processo disciplinar.
Usando como conexão com a peça citada no decorrer do artigo, a ideia de proximidade
com o publico e o tom de voz espontânea como recursos para sensibilizar os
acompanhantes.
No segundo semestre do curso de teatro, houveram dois trabalhos ligados a
objetos e cena. Surge como processo final da disciplina Expressão Corporal I no ano de
2013, a cena Beija-flor, que enceno uma poesia com objetos contando sobre o final de
um relacionamento amoroso que havia vivido durante 11 meses. Trabalho que foi além
da universidade e se tornou uma trilogia de poesias sobre este relacionamento, onde
sigo os versos destas poesias para de forma metafórica contar essas histórias com
objetos, usando recursos semelhantes alguns que já foram discutidos no artigo. Sendo
que atualmente este trabalho ainda está em fase de compartilhamento, somente com o
meu grupo.
O segundo trabalho deste semestre, ligado à disciplina Projeto integrado de
praticas educativas II, foi atividade performática Despertar, em que utilizando folhas de
papel, com poesias impressas, trabalho a relação de objetos como cenário interativo com
ator. A proposta da atividade é mostrar na relação entre essas poesias escritas e o
caminho que me levou ao teatro, passando por momentos do conflito familiar e citando
a referência do espetáculo também em cena, de modo que este cenário de papel também
era manipulado durante a cena.
Já em 2014, uma última atividade performática 93.9, relacionada à disciplina
Expressão Corporal II, trabalho novamente ao cenário interativo com o ator. Desta vez,
as folhas de papel dão lugar a copos de vidro com água e o trabalho passa a ser sobre a
relação do corpo cênico pesado precisando trabalhar em um cenário onde o material e
frágil. Mais uma vez, convido o público para a relação de proximidade. Nesse caso, a
intenção é a provocação ao estranhamento e incômodo por meio de áudio contendo
frases que me afetam e causam sensação de peso ao corpo.
As duas últimas partem do desejo próprio de pensar como delimitar um espaço
cênico em que encontre semelhanças com ambientes de instalação, como também
sugeria o ambiente cheio do espetáculo As atribulações de Virginia com seus fios e
trilhos de trem e com a mesma necessidade de interação do ator com ambiente para que
aconteça o efeito esperado, tal qual era necessário que Jomi Oligor fizesse para que as
transições de cena acontecessem.
Movido atualmente por leituras e atividades do grupo de pesquisa em teatro de
formas animadas na universidade, começo juntamente com as atividades da disciplina
de dramaturgia, do quarto período da graduação, a pensar em de fato como escrever um
texto um espetáculo próprio da linguagem de teatro de objetos. Busca que deve partir
novamente deste universo dos sentimentos amorosos que tenho explorado muito em
minhas cenas, buscando uma dramaturgia que crie um universo de intimidade entre
público e ator, e que possa sensibilizar a ambos, como o universo de Virginia fez
comigo.

Conclusão

O trabalho do ator apresentado por Jomi Oligor, bem como os elementos de


teatro de objetos e a organização espacial do espetáculo que aprecei, revelam-se cada
dia mais uma influência direta para o desenvolvimento de um trabalho próprio na
linguagem. Sendo necessária para a criação de novas cenas e ideias, a busca por
vivência e experimentação usando memórias e objetos que se distanciem em
características e possibilitem novas dinâmicas de manipulação. Considerando que estes
mesmos podem ser parte da cenografia, e não apenas enquanto personagens pelos quais
a história e contada por meio de novos significados atribuídos a eles.
Portanto, o espaço intimista que a Cia Hnos. Oligor apresenta em As
atribulações de Virginia desperta o desejo de embarcar em questões cada vez mais
autobiográficas nesta pesquisa, para que assim, comparando com ao porão onde os
irmãos Oligor criaram seus objetos, possa buscar em meu próprio porão de
pensamentos histórias e desejos possam ser contados ao público de modo criativo e
inventivo. Levando o antes estudante de engenharia a pensar com engenhosidade para
encontrar meios de levar suas histórias ao público.

Referências Bibliográficas

VARGAS, SANDRA. O Teatro de Objetos: história, ideias e reflexões. MÓIN-MÓIN


Revista de estudos sobre teatro de formas animadas, Santa Catarina, n. 7, ano 6, p.27-
43.2010.
AMARAL,MARIA A. Teatro de Formas Animadas. São Paulo: Edusp-Editora da
Universidade de São Paulo,1991.Pg 320.

CIA HNOS. OLIGOR. Apresentação do site. Disponível em <


http://www.oligor.org/oligoweb3/index3.html>. Acesso em 22 de abr. 2014.

CENA CONTEMPORÂNEA 2012. Tribulações dos Oligor: Entrevista Exclusiva.


Disponível em < http://www.cenacontemporanea.com.br/2012/?p=980>. Acesso em 20
de jun. 2014.
TRABALHO DO ATOR E ESPAÇO

SALA DE ENSAIO: A COLABORAÇÃO DENTRO DO PROCESSO “CARTAS


PARA LÚCIA”.

Barbara Leite Matias (Bolsista PIBID-CAPES-CNPq); João Víctor Meneses


Duarte (Bolsista PIBID-CAPES-CNPq); Maria Teresa Melo (Bolsista PIBID-
CAPES-CNPq); Orientador: José Cleber Barbosa de Lima; Centro de Artes
Reitora Violeta Arrais de Alencar Gervaiseau; Universidade Regional Do Cariri,
URCA.

A sala de ensaio é um espaço pertinente à criação cênica. Como campo de


Criação, cabe aos participantes se envolverem e buscar dialogar as questões da sala de
ensaio com as inquietações cotidianas. A construção do processo “Cartas Para Lúcia”
surge dentro da disciplina Processo de Encenação I do curso de Licenciatura Plena em
Teatro da Universidade Regional do Cariri – URCA-CE. Na disciplina o estudante tem
como proposta a experimentação de dirigir uma cena de pelo menos 15 minutos, além
de aprofundar em discussões sobre a história da encenação e possibilidades de textos
para serem trabalhados em sala de ensaio, tendo em vista o ensaio enquanto construção
de possível trabalho cênico.

No decorrer do processo o estudante se despede da sala de aula e nesse


momento, convidam os atores,

Os encontros da disciplina de encenação serão em espaço propicio ao ensaio. É


hora do estudante se colocar quanto encenador, sabendo que é um processo de
construção e descoberta enquanto uma espécie de condutor da cena na qual ele irá
organizar os ensaios a partir das provocações dos possíveis atores. Vendo esse encontro
enquanto processo pedagógico, pois juntos desenvolvíamos as possibilidades para a
cena sem ignorar as individualidades que também eram resquícios para a construção
cênica durante esse período.

O intuito inicial era mostrar uma cena de quinze a dezessete minutos na qual o
universitário experimenta desenvolver poéticas na cena teatral, e assim compreendia
enquanto resultado da disciplina a apresentação da cena. No entanto, é da nossa essência
compreender o encontro na sala, como um espaço dialógico, de autonomia na criação
artística. Assim, o processo criativo tem-se uma forte ligação com as teorias
pedagógicas discutidas por Paulo Freire (1996). O qual foi educador e filósofo
brasileiro, referência mundial no estudo da pedagogia. A sua prática didática
fundamentava-se por acreditar que o educando assimilaria o objeto de estudo fazendo
uso de uma prática dialética com a realidade, em contraposição à denominada educação
bancária. O educando criaria sua própria educação, fazendo ele próprio o caminho, e
não seguindo um já previamente construído. Acredito que cabe a ambos, ator, diretor,
educador ou educando entender, independente de ser ensaio, cada encontro é único, e o
processo depende de todos, é como se cada participante fosse um ingrediente, então essa
foi à imagem propulsora e pulsante que carregamos durante esse processo.

Usamos como suporte teórico para esse trabalho a referencia colaborativa do


Grupo de Teatro da Vertigem, Segundo Luís Alberto de Abreu:

O processo colaborativo provém em linhagem direta da chamada criação


coletiva, proposta de construção do espetáculo teatral que ganhou destaque
na década de 70, do século 20, e que se caracterizava por uma participação
ampla de todos os integrantes do grupo na criação do espetáculo. Todos
traziam propostas cênicas, escreviam, improvisavam figurinos, discutiam
ideias de luz e cenário, enfim, todos pensavam coletivamente a construção do
espetáculo dentro de um regime de liberdade irrestrita e mútua interferência.
(ABREU, 2004, p.2)

Concepção Cênica: a partir de “Lucíola” de José de Alencar.

O experimento “Cartas Para Lúcia” é livremente inspirado na obra de José de


Alencar: “Lucíola”. Partindo desse pressuposto resolvemos conhecer a história de José
de Alencar que, enquanto grande romancista brasileiro, tornou-se nome extremamente
conhecido no meio literário.

No livro o autor trata a questão da mulher do século XIX, bem como sua posição
nessa época, trazendo à tona a personagem Lucíola, que apesar de viver em um período
complexo para a sociedade, não se mostra submissa ao homem, quebrando assim, tabus.
Trata-se de uma prostituta, de personalidade forte que se apaixona por um homem, esse
é respeitado diante da sociedade, vivendo assim uma ardente e impossível história de
amor, que ela deseja a vida inteira.

A concepção cênica manifesta-se em paralelo com a dramaturgia e a literatura


brasileira. O trabalho de direção e atuação é fruto desse processo que busca
procedimentos que dialoguem com o conteúdo presente na literatura de Alencar. Como
prova, o autor nos convence, através da obra, a adentrar em um mundo de paixões, de
pessoas que inacreditavelmente se apaixonam e que vivem numa sociedade burguesa,
hipócrita e preconceituosa. Alencar escreveu “Lucíola”, esta que nos inspirou a
construir a nossa “Lucíola” no corpo da atriz Maria Teresa Melo, estudante do Curso de
Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri.

Diante desse contexto, trouxemos para o processo de encenação uma dialética


entre a dança e a inspiração nos princípios de “extracotidiano” de Eugenio Barba, como
equilíbrio, oposição, dilatação, pré-expressividade e ritmo como ponto de partida para o
treinamento corporal do ator, percebendo assim, a energia e a presença dos atuantes na
cena.

A construção do figurino e maquiagem traz como inspiração a individualidade


desse personagem, percebido pelo interprete. No caso da iluminação, a inspiração é
oriunda das sensações que a cena provoca nos participantes, dando assim forma a luz.
A partir dessas questões, o trabalho tem como proposta o palco Italiano e a expectativa
de lugares alternativos, bem como trabalhar a literatura em cena.

Lucíola tem um nome bonito e uma essência extremamente feminina. Diante


dessa questão, o presente trabalho traz como inspiração a mulher que busca vencer o
preconceito para dedicar-se a um relacionamento amoroso. Percebendo a condição da
mulher prostituta, Alencar em seus escritos, dá ênfase a essa personagem de atitude, que
se coloca como superior a sua época, não se deixando levar pela condição que era
imposta a mulher do século XIX.

Lucíola vive assim a situação da mulher que se apaixona por um homem que
vive num mundo oposto ao seu. Prostituição, mulher, mãe e filha. A amante que a vida
inteira sofre o preconceito da sociedade, a mãe que pensa mais no bem-estar da filha do
que no seu próprio conforto. Esse jogo da mulher de atitude, de diversas
responsabilidades, nos inspira enquanto mulher, fazendo assim, parte do nosso universo,
no qual pensamos a sociedade enquanto um lugar que deve ser justo e livre de qualquer
intolerância ou condição imposta à limitação da mulher na sociedade.

Essa personagem nos fascina porque ela busca seus desejos, rompe barreiras,
quebra paradigmas sociais, fica com o personagem Paulo, vivendo um amor
incondicional. Será que a mulher não tem direito de amar e de ser amada, independente
do que ela seja? Esse experimento teatral reflete sobre as fases do relacionamento entre
homem e mulher, entre a sociedade e seus conceitos de aceitação ou negação do amor
não convencional, bem como ressaltar a poesia que embala a vida de um casal em
“Cartas Para Lúcia”.

Temos como objetivo desenvolver um diálogo do público entre Teatro e


Literatura brasileira, oferecer a plateia um teatro envolvente, ardente e inspirador,
proporcionar que o espectador se envolva com a encenação e critique esse tipo de
situação em sua sociedade a partir da mulher contemporânea e permitir ao público
assistir uma adaptação de um texto literário em um texto dramático. Pensamos em uma
faixa etária como pertinência ao que é discutido no espetáculo, por exemplo; a
prostituição, o aborto e as relações conjugais aceitas ou não pela sociedade, um público
de jovens a partir dos 15 anos de idade.

Corpo, Alma: A disponibilidade para a criação.

Adentrar a sala de ensaio requer disponibilidade e permite ao artista


compreender que aquele lugar lhe pertence. Acreditamos na sala de ensaio, enquanto
um espaço de transformação, essa perde a função de ser apenas espaço físico e ganha a
função de recepcionar o visitante, de acolher suas questões intimas, suas sensações que
constroem a atmosfera desse espaço, que se torna nosso durante o período do ensaio,
logo mais irá pertencer a outro grupo com outra energia, mais com a mesma finalidade
construir arte.

Durante os ensaios, percebemos a importância da organização para o processo,


então resolvemos criar pontos de referência, para não chamarmos regras, já que
dispensamos ordens, assim como o ideal do teatro colaborativo. Um desses pontos foi
tudo o que acontecia em sala de ensaio lhe pertencia, o ensaio só finalizava após
esclarecermos todas as dúvidas e questões levantadas diante do processo realizado até
ali, é interessante salientar que esse ponto foi uma conquista, para não confundir as
nossas relações pessoais com as profissionais.

Algumas questões suscitadas no decorrer do processo foram: Como ser fiel a


uma adaptação de “Lucíola”, um texto literário em 15 minutos? Até que ponto
acreditava na nossa disponibilidade para criar, por mais que estivéssemos com a
adaptação? Quais pontos através do livro eram importantes para serem usados na cena?
Quem era Lúcia para cada participante? Há realmente uma dedicação de corpo e alma
do ator? Essas foram algumas provocações, questionadas nos ensaio pelos atores Jamal
Corleone, Paulo, amante de Lucíola, que foi interpretada por Maria Teresa, ambos são
alunos do Curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri- URCA.

Enquanto participantes desse processo, tínhamos também o foco, em todos


serem encenadores dessa construção, sonoplastas, iluminadores, produtores e
figurinistas, por mais que cada ator fosse o responsável por alguma função, os outros
deveriam também contribuir e opinar de certa maneira. Somos jovens para compreender
e aceitar a ideia do outro, mas através do respeito conhecia-se a sugestão de cada
companheiro. Diante dessa questão este processo foi considerado por nos participantes,
enquanto poética, colaborativo, pois todos eram criadores da cena. Segundo Antônio
Araújo:

Outro elemento importante é a disponibilidade dos criadores em relação às


propostas e sugestões trazidas. Devemos lutar contra prejulgamento de
qualquer espécie e, ao contrário, experimentar, defender e abraçar a ideia do
outro como se ela fosse nossa. Sabemos que se trata de tarefa árdua, mas,
ainda assim, factível. Especialmente se compreendermos que a prática
colaborativa se nutre dessa pluralidade constante de visões e que
experimentar cenicamente uma idéia alheia não significa concordar com ela,
sim, conhece-la por dentro antes de descarta-la se for o caso, é claro.
(ARAÚJO, 2011, p.163)

Um problema que tivemos foi com o tempo da montagem, enquanto trabalho de


disciplina, tínhamos data para “mostrar” ao espectador o fruto dos nossos encontros.
Esse momento nos faz lembrar a importância da organização, por isso tivemos que nos
dedicar ainda mais, doamos os nossos finais de semana para construção de figurino e
cenário. O palco era cheio de cartas, fazendo referência, as cartas que a personagem,
Lucíola, recebia. As cartas foram doações dos próprios estudantes do Centro de Artes,
as quais variavam entre escritos longos até pequenos lembretes.

As cartas destinadas a Paulo eram colocadas em envelopes brancos, já as cartas


destinadas à Lucíola, colocadas em envelopes vermelhos. Em uma das cenas da peça, os
atores saiam do espaço da cena e entregavam as cartas à plateia, buscando dialogar com
o público, mostrando o companheirismo que carregam as mensagens, a simbologia da
troca de informações através das palavras.

Nessa metáfora, corpo e alma buscamos atingir uma ligação interna, da nossa
vida com o processo, e de qualquer maneira , quando estamos na sala de ensaio lidamos
com o imaterial, de difícil mensuração, embora tenha consequências diretas na cena, por
este motivo é importante à compreensão e aceitação do tempo de cada participante
dentro do percurso criativo. Os diálogos que tínhamos eram carregados de emoção,
onde estavam presente as nossas sensibilidades, os nossos discursos pessoais
transformado em cena de forma crítica.

Ainda assim, vale salientar que dialogávamos a metodologia desse processo,


enquanto possibilidade de também ser utilizada em nossos estágios, dentro das escolas,
onde os estudantes, na maioria das vezes, não são ouvidos pela equipe escolar e é então
nessas aulas que eles têm a oportunidade de expressar sua opinião, ainda que tenha um
texto pronto, quando vamos para a cena é preciso liberdade e disponibilidade, para
todos dialogarem a respeito da construção cênica. Diante dessa questão cito Duarte
Junior:

Podemos associar a criação e a aprendizagem como processos


complementares de crescimento humano (Duarte Júnior, 2005), quando
notamos como nossas escolas estão cheia de jovens descrentes e propensos a
delinquências. É fácil, também, que uma das mais urgentes providencias,
segundo Vaz (2001), não é tomada pela escola:”(...) ( Duarte apud Rodrigues,
2008, p.168)

A trajetória do processo “Cartas para Lucia”, como qualquer processo


colaborativo foi-se do abstrato ao concreto, do subjetivo ao objetivo. Nestas colocações
enxergamos como pulsações presentes na criação cênica. É importante perceber o
caminho dessa construção criativa, assim buscando compreender o concreto enquanto
cena, para o processo não diluir-se na discursão racional, imaginativa da sala de ensaio.
Pensando esse psicologismo que dialogasse com o corpo para o desenvolvimento da
cena trouxemos jogos inspirado no livro “Para o Ator”, de autoria do Russo Michael
Chekhov (1981-1965), o qual foi aluno de Constantin Stanislavski no Teatro de Arte de
Moscou:

O corpo imaginário situa-se, por assim dizer, entre corpo real e psicologia do
ator, influenciando a ambos com igual força. Passo a passo começa a
movimentar-se, a falar e a sentir de acordo com ele, quer dizer sua
personagem vive agora dentro de você (ou se prefere, você habita dentro
dela). (CHEKHOV, 2003, p.101)

Acreditamos que para isto, cabe aos integrantes buscar construir um trabalho
cênico, mergulhar na sala de ensaio carregado de inspirações para transforma-las em
arte, por outro lado, nunca se sabe como iremos sair dessa sala, após o ensaio, assim,
também na sala de aula, um espaço no qual vivemos o novo, o tempo do presente que
pertence a cada momento, por mais que haja plano de aula o acontecimento sempre será
uma surpresa para todos. Pertence a esse acontecimento a esperança de que esse
momento será transformador e é a sala que é prova dessas sensações e luta, seja por
parte do condutor na montagem de uma peça ou no desenvolvimento de uma aula, onde
o professor tem a disponibilidade de conduzir e organizar o trabalho. Em Pedagogia da
Autonomia, Paulo Freire nos coloca a importância da esperança nesse processo de
transformação:

Gosto de ser gente porque, mesmo sabendo que as condições materiais,


econômica, sociais e políticas, culturais e ideológicas em que nos achamos
geram quase sempre barreiras de difícil superação para o cumprimento da
nossa tarefa histórica de mudar o mundo, sei também que os obstáculos não
se eternizam. (FREIRE, 1996, p.23)

A encenação Cartas para Lucia, a cada ensaio se revelava mais viva e pulsante
em nosso corpo. Acreditamos na importância desse experimento como evolução da
individualidade para o coletivo, assim buscando abranger também a plateia enquanto
espectadores ativos, e também criadores da cena, não ignorando sua importância.
Dispensamos a hierarquia das ordens de poder e demos ênfase as nossas
particularidades, enquanto artistas, criadores, trouxemos a nossa experiência para
auxiliar na inspiração do texto, o qual trazia propostas relevantes à construção cênica ao
olho de cada participante. Enxergamos a troca de experiências, enquanto ponte
dialógica nos processos. Essa percepção, Paulo Freire nos possibilita enxergar, enquanto
caminho propulsor dessa transformação:

Deste modo, o educador problematizado refaz, constantemente, seu ato


consciente, na cognoscitividade dos educandos. Estes, em lugar de serem
recipientes dóceis de depósitos, são agora investigadores críticos, em diálogo
com o orientador, investigador crítico, também. (FREIRE, 2011, p.97)

A nossa compreensão é que a colaboração é essência do encontro, seja enquanto


educador na escola, ou ator na construção de um experimento, essa leitura faz parte do
vinculo entre o artista e o educador, pois os integrantes desse trabalho além de atores
são professores dentro do Programa Institucional Brasileiro de Iniciação à Docência na
Universidade Regional do Cariri, Ceará.

Considerações Finais
Percebi que esse processo foi importante para nosso desenvolvimento tanto
acadêmico quanto artístico. Pelo simples motivo de ter ficado impresso no corpo do ator
todo o trabalho exercido em sala de ensaio, e pelo momento vivido que foi
compartilhado entre todos, tanto presentes ao longo do processo, quanto presentes
durante a apresentação do resultado positivo e negativo do experimento.

Referências:

RODRIGUES, Karrine Luzia. O professor de arte que temos o professor de


arte que queremos. Akrópolis Umuarama, v. 16, n. 3, p. 165-170, julh/set.
2008.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários á Prática


Educativa. 25ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50ª Edição. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2011.

CHEKHOV, Michael. Para o Ator: Tradução Álvaro Cabral. 3ª Edição, São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

ARAÚJO, Antônio. O Processo colaborativo: da física à metafísica. In: A


gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo:
Perspectiva, 2011.

______A ressignificação do espaço: igreja, teatro e cidade. In: A gênese da


Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido. São Paulo:
Perspectiva, 2011.

ABREU, Luiz Alberto. Artigo publicado nos Cadernos da ELT - número 2,


junho/2004, revista de relatos, reflexões e teoria teatral, da Escola Livre de
Teatro de Santo André.
TEATRALIDADE E PRODUÇÕES DE ESPACIALIDADES
LINHA DE FUGA EM MEYERHOLD E LECOQ
Caio Felipe da Silva Santos Monczak (Bolsa: Iniciação Científica [1]; Orientação: Sueli Cristina
dos Santos Araujo; Universidade Estadual do Paraná - Campus de Curitiba II - FAP - Faculdade
de Artes do Paraná)

RESUMO

Este artigo pretende trabalhar a noção de Linha de Fuga, proposta pelo filósofo Gilles
Deleuze, em relação aos teatros de Jacques Lecoq e Vsiévolod Meyerhold. Observar quais eram
seus territórios de estratificação (molar) e seus territórios de resistência. Meyerhold e Lecoq,
assim como outros, mostraram resistências aos processos Stanislavskianos, de modo diferente,
dado os contextos em que cada um viveu e desenvolveu seu trabalho, ao mesmo tempo em que
caminhavam em direção à estratificação, à institucionalização, do próprio modo de fazer. A linha
de fuga é sempre em relação a uma estratificação, a uma iluminação do estado, que ilumina por
que quer capturar, mas no que ele ilumina aparecem novas possibilidades de fuga.

PALAVRAS CHAVE: Linha de Fuga; Disciplina; Composição.

ABSTRACT

This article intends to work with the notion Line of Flight proposed by the philosopher Gilles
Deleuze in relation to the theater of Jacques Lecoq and Vsiévolod Meyerhold. Observe what
their territories stratification (molar) and its territories resistance. Meyerhold and Lecoq, as well
as others, have shown resistance to Stanislavski processes, differently, given the contexts in
which each lived and developed his work, while they walked toward stratification, the
institutionalization of the way to make itself. The line of flight is always in relation to a situation,
a lighting of a state, which illuminates why wants to capture, but what it illuminates is new
possibilities of escape to appear.

KEYWORDS: Line of Flight; Discipline; Composition.


Maria Brigida de Miranda, ao estudar o atravessamento da disciplina no treinamento do
ator, diz:

Os escritos de Michel Foucault (1995) sobre “tecnologia disciplinar” são a base para a seguinte
discussão teórica sobre métodos do treinamento do ator. Nos escritos de Foucault, o poder
disciplinar é uma força produtiva, e essas “tecnologias” produzem um tipo especifico de corpo.
Foucault explica que ele está interessado em “mapear” as “técnicas essenciais” que viajam de uma
instituição para outra, ao invés de investigar um história particular de cada instituição disciplinar
(1995:139). Ele examina as técnicas, processos e mecanismos que moldam o corpo. No entanto,
ele analisa e desenha exemplos de especificas instituições sociais, principalmente a prisão, o
exército e instituições de ensino, com o objetivo de descrever como praticas disciplinares operam
e como especificas “tecnologias disciplinares” são disseminadas para outras esferas da sociedade.
(MIRANDA, M. B. 2010, p. 61) [2]

As tecnologias disciplinares a que se refere Miranda são métodos que permitem o


controle minucioso das operações do corpo, qualidade que se encontra no teatro de Vsievolód
Meyerhold e Jacques Lecoq, de forma diferente, como veremos mais adiante. Mas Michel
Foucault explora um campo mais amplo de características desses métodos, dessas tecnologias
disciplinares:

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que
podemos chamar as “disciplinas”. [...] A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados,
corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminuem essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia
o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura
aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma
relação de sujeição estrita. (FOUCAULT, M. 1977, p. 133/134)

Observa-se então que a disciplina diz mais de um método de coerção/exploração dos corpos, do
que de treinamento do ator. A palavra método vem do grego, metáhodos: metá (reflexão,
raciocínio, verdade) + hódos (caminho, direção). Méthodes refere-se a um certo caminho que
permite chegar a um fim. No caso da disciplina em Foucault, ela é caminho e fim ao mesmo
tempo, diferente da disciplina no treinamento do ator, que é um caminho (possível, dentre
outros) para a composição.
Como a própria Miranda coloca:

De acordo com Foucaul, “docilidade” é a noção “que reúne o corpo analisável com o corpo
manipulável” (1995:136); isso é o proposito do ator. A particular docilidade de um ator é que ele
ou ela também é esperado para ter a capacidade de analisar a si próprio e moldar ele ou ela mesma
fisicamente de acordo com o objetivo teatral. (MIRANDA, M. B. 2010, p. 65) [3]

De certo modo a lógica da disciplina também migrou para o teatro de Meyerhold e


Lecoq, no entanto ela é uma linha segmentária molar, dura, estratificada. Gilles Deleuze e Claire
Parnet em “Diálogos”, falam que somos feitos de linhas, indivíduos ou grupos
(independentemente), e elas são de diversas naturezas. Há três tipos de linhas: a primeira trata-se
de uma linha segmentária dura, molar, e diz respeito à estratificações ou institucionalizações, por
exemplo: à família ou à profissão; a segunda é segmentária flexível, diferente das linhas molares
de segmento são “fluxos moleculares de limiares. [...] Não que sejam mais íntimas ou pessoais,
pois atravessam as sociedades, tanto os grupos como os indivíduos.” (DELEUZE, G. PARNET,
C. 2004, p. 151); E o terceiro tipo de linha é de maior declive, a linha de fuga, que funciona
“como se algo nos levasse, através dos nossos segmentos, mas também através dos nossos
limiares, para um destino desconhecido, não previsível, não preexistente.” (DELEUZE, G.
PARNET, C. 2004, p. 152) E para exemplificar a linha de fuga, localizá-la, eles citam Heinrich
von Kleist em seu texto “Du thêatre de marionettes”:

A linha que deve descrever o centro de gravidade é muito simples e, pelo que ele pensava, deve
ser recta na maior parte dos casos... mas de um outro ponto de vista, esta linha tem qualquer coisa
de excessivamente misterioso, porque, segundo ele, é apenas o tracejado da alma do bailarino...
(KLEIST, H. apud DELEUZE, G. PARNET, C. 2004, p. 152.)

Vsievolód Meyerhold, para criar o seu teatro, desenvolveu a biomecânica se apropriando


do taylorismo e da reflexologia. O Taylorismo é um termo para se referir à “economia de
movimentos” estabelecida por Frederick Wislow Taylor, que procurava encontrar as partituras de
movimentos mais eficientes para cada tipo de trabalho, com intuito de que os corpos humanos no
trabalho produzissem mais e cansassem menos. Desenvolveu-se então um sistema de ciclos de
trabalho, que levava em conta o equilíbrio, os ritmos de trabalho, a fadiga, o agrupamento de
músculos e o tempo de repouso. Ou seja, é uma tecnologia disciplinar que teve sua lógica
migrada para a indústria e depois para o teatro. Ao mesmo tempo o psicólogo William James
desenvolveu um estudo sobre a verdadeira natureza da emoção. Para explicar sua teoria ele da o
exemplo de alguém que esta em uma floresta e vê um urso, em seguida sai correndo e depois se
assusta. Foi o ato de correr, através de reações reflexivas, que causou o estado emocional do
medo, e não o urso. Ou seja, certas atividades musculares trazem à tona, certos estados
emocionais. Essas teorias foram fundamentais para Meyerhold estabelecer as leis da
Biomecânica, pois

Dividindo cada gesto dos estudos em movimentos exatos, Meyerhold foi capaz de aplicar ao ator
os princípios tayloristas de economia de movimentos e a teoria da emoção de James, fazendo com
que ele automaticamente experimentasse uma gama de emoções, devido a uma constante mudança
de organização de sua musculatura. Isso também habilitava o ator a estabelecer de forma precisa a
relação entre sua aparência física e suas impressões nervosas mais íntimas. (GORDON, M. 1973,
p. 10)

A Biomecânica composta pelo atravessamento do Taylorismo, da Reflexologia, e da


disciplina era uma linha segmentaria molar. E podemos observar, ainda, outra linha dessa
natureza no teatro de Meyerhold: o próprio comportamento da plateia, que se modificou com o
surgimento do cinema, fazendo seu olhar se acostumar a um ritmo mais rápido.

A integração do cinema ao ato teatral se faz pelo modo pelo qual suas técnicas e imagens
alimentaram e ainda alimentam a arte da encenação. Esta é trabalhada pelas noções de montagem,
de enquadramento e, mais recentemente, pela noção de movimento de aparelhos. O close se tornou
uma das noções-chave de encenação de teatro, que levou em conta também, no tratamento do
dispositivo, da luz, dos objetos e da atuação, as exigências do olho do olhador, segundo a
expressão de Marcel Duchamp, acarretadas pela riqueza composicional das imagens fílmicas.
(PICON-VALLIN, B. 2013, p. 120; 121)

Meyerhold, então, usou as linhas molares (taylorização, reflexologia, a nova exigência do


olhar do espectador, biomecânica, disciplina) como matéria para compor toda uma cartografia e
assim uma linha de fuga. Linha de fuga essa que funcionou como uma resistência ao naturalismo
russo que estratificava os modos de criação artística da época, e também como mote para
extrapolar, fazer todo o sistema teatral saltar, e, assim como o cinema modificou a percepção do
público, modificar tudo o que se pensava sobre teatro. O que Meyerhold já previa em 1907:

“No novo teatro, a necessidade de introduzir nos planos uma construção rigorosamente submetida
ao movimento rítmico das linhas e da harmonia das cores vem substituir a sobrecarga absurda das
cenas do teatro naturalista”, observa Meyerhold em 1907. O teatro se torna, assim, a arte da
composição, e escreverão a respeito de o inspetor geral, encenado pelo mestre russo, que nada,
“nem o ângulo de um cotovelo, é [ali] deixado ao acaso.” (PICON-VALLIN, B. 2013, p. 112;
113)

É errôneo pensar que o teatro de Meyerhold se reduz à biomecânica. É possível observar


em registros audiovisuais, tanto de momentos de treinamento de seus atores, quanto de
apresentação de seus espetáculos, mais especificamente, aqui, parte da montagem de “O Inspetor
Geral”, de Nikolai Gogol, uma diferença na qualidade de movimentação do ator no momento do
treino e no momento da apresentação. Qualidade essa que se assemelha ao que dizia Kleist ao se
referir ao teatro de marionetes, onde havia linhas molares: as próprias que seguravam o boneco;
linhas moleculares: cada movimento único e individual, porém também institucionalizado, do
braço de cada títere; mas também: uma linha simples e ao mesmo tempo misteriosa que deixava
passar essa diferença que era o tracejado da alma do bailarino. Essa é a linha de fuga.

A linha de fuga é uma desterritorialização. Os franceses não sabem bem do que se trata.
Evidentemente, eles fogem como todo mundo, mas eles acham que fugir é sair do mundo, mística
ou arte, ou então que é algo covarde, por que se escapa aos compromissos e às responsabilidades.
Fugir não é absolutamente renunciar às ações, nada mais ativo que uma fuga. É o contrário do
imaginário. É igualmente fazer fugir, não obrigatoriamente os outros, mas fazer fugir algo, fazer
fugir um sistema como se arrebenta um tubo... Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma
cartografia. (DELEUZE, G. PARNET, G. Apud ZOURABICHVILI, F. 2004, p. 29)

Tanto a migração da tecnologia disciplinar, quanto o movimento de linha de fuga, são


analisáveis também no teatro de Jacques Lecoq, que chegou ao teatro por meio do esporte. Antes
de ser ator mímico e professor de arte dramática adquiriu experiência corporal como ginasta,
esportista e professor de educação física. O esporte já estava estratificado pela disciplina como se
pode observar na colocação de Georges Vigarello e Richard Holt em “História do Corpo 2: da
Revolução a Grande Guerra” ao comentarem sobre a institucionalização dos jogos brutais:

Isso, evidentemente, não poderia significar o desaparecimento dos jogos brutais. Sua prática se
torna apenas mais controlada, mais regrada. As rixas se deslocam, transitando dos espaços ao ar
livre para os espaços escondidos, deixando os ambientes rurais e indo para as salas dos fundos dos
cafés, para os recintos adaptados, os locais fechados. Os golpes são disciplinados, as
aprendizagens são codificadas, as praticas de combate, ensinadas; mestres se impõem com suas
salas, suas concorrências, suas lições. (VIGARELLO, G. HOLT, Richard. 2008, p. 396)

E Lecoq vai ver o treinamento do ator com as lentes de um educador físico, no começo de
sua pesquisa. Ao continuar o desenvolvimento desta, com suas viagens e cursos, logo começa a
compor uma resistência ao teatro de caráter psicológico, ou de memória, ou escravo do texto, ou
da cópia exata da natureza. Em sua escola ensinava princípios de várias formas e técnicas de
teatro: a tragédia, o bufão, o clown, a comédia dell’art, Chegando a criar, por exemplo, a
“ginástica do arlequim”. Não para produzir virtuosismo, e é aqui que ele extrapola a questão da
disciplina que migrou, de certo modo, para o seu teatro através do esporte, mas para entender o
que do mundo habita cada um desses teatros e como deixar isso afetar o público através do
corpo. A partir do traçar de todas essas linhas molares, as diversas técnicas, a disciplina, o
conhecimento do corpo, fez emergir um ator aberto aos afetos e aos encontros. Buscou em todo
comportamento de matéria possível, a água, o fogo, o ar, a terra, o plástico e o ferro, um
comportamento da matéria corpo, e criou um ator tradutor que se deixa afetar, que busca os
motores da ação. O afeto é o que te movimenta. A própria máscara neutra, a neutralidade, surge,
se não, para dar a possibilidade de ser tingido, atingido por acontecimentos do mundo, depois de
uma escuta e espera atenta.

É preciso, então, começar eliminando as formas parasitárias, que não lhes pertencem, retirar tudo
aquilo que possa impedi-los de encontrar a vida em sua forma mais próxima daquilo que ela é.
Temos que retirar um pouco daquilo que sabem, não para simplesmente eliminar o que sabem, mas
para criar uma página em branco, disponível para receber os acontecimentos externos. (LECOQ, J.
2010, p. 57)
E ainda mais, Lecoq, preocupado como pedagogo em como direcionar suas críticas,
descobriu um dispositivo de composição que se baseia no que ali está, apenas, invés de verdades
pré-concebidas, isso se dava através de constatações:

A constatação é o olhar que se foca na coisa viva, tentando ser o mais objetivo possível. A crítica
feita a um trabalho não é uma crítica do bem ou do mal, é uma crítica do justo, do longo demais,
do curto demais, do interessante, do desinteressante. Isso pode parecer pretensioso, mas só nos
interessa o que nos é justo: uma dimensão artística, uma emoção, um ângulo, uma relação de
cores. Tudo isso existe em obras que, independentes da dimensão histórica, duram. Isso todos
podem senti-lo, e o publico sabe perfeitamente quando é justo. Se ele não sabe por quê, nós
devemos sabe-lo, pois somos, além de tudo... especialistas. (LECOQ, J. 2010, p. 48)

Meyerhold e Lecoq conseguiram produzir, cada um, uma diferença, um dado, do qual
não se pode ignorar, do qual reorganizou todo o teatro, extrapolaram-no, fizeram-no saltar de
plano, arrastaram o que já estava estratificado assim como se arrebenta um tubo. E outros
também o fizeram. Fizeram isso sem ressentir ao que tinham, aos problemas que tinham, aos
materiais disponíveis. Agora resta perguntar: Quais linhas eles deixaram, quais foram
estratificadas? Como usá-las, ou como estão sendo usadas, no teatro de hoje para se produzir
novas linhas de fuga? Seja nos grupos ou nos indivíduos: o teatro no mundo, na Europa, no
Brasil, em Curitiba, o seu teatro. E não lamentar opressões, pois o estado não oprime, o estado
ilumina, ilumina por que quer capturar, mas no que ele ilumina, aparecem novas possibilidades
de fuga.

NOTAS:
1 - Apoio: Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

2 - O livro: Playful Training - Towards Capoira in the physical training of actors, de Maria Brigida de Miranda, foi
escrito originalmente em inglês e essa tradução não é oficial. Segue a mesma citação no original: Michel Foucault’s
(1995) writings about “disciplinary technology” are the basis for the following theoretical discussion about actor
training methods. In Foucault’s writings disciplinary power is a productive force, and its “technologies” produce a
specific kind of body. Foucault explains that he is interested in “map[ping]” the “essential techniques” that travel
from one institution to another, rather than investigating the particular history of each disciplinary institution
(1995:139). He examines the techniques, processes and mechanisms that forge bodies. Nonetheless he analyses and
draws examples from specific social institutions, mainly prison, the army and educational institutions, in order to
describe how disciplinary practices operate and how specific “disciplinary technologies” are disseminated to other
spheres of society.

3 - No original: According to Foucault, “docility” is the notion “which joins the analysable body to the manipulable
body” (1995:136); this is the actor’s purpose. The particular docility of an actor is that he or she is also expected to
have the capacity to analyse his or herself and mould him or herself physically according to the theatrical task.

REREFÊNCIAS:

DELEUZE, G. PARNET, C. Diálogos. Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2004.

FOUCAULT, Michel; Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 27. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
1977.

GORDON, Mel. A Biomecânica de Meyerhold. The Drama Review, 1973. pp. 73-78),
tradução de Maria Elizabeth Jhin.

LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: Uma Pedagogia da Criação Teatral. São Paulo: Editora
SENAC São Paulo: Edições SESC SP, 2010.

MIRANDA, M. B. Playful Training: Towards Capoira in the physical training of actors.


Publisher: LAP LAMBERT Academic Publishing AG & Co. KG. Saarbrücken, Germany.
Copyright © 2010 by the author and LAP LAMBERT Academic Publishing AG & Co. KG and
licensors. All rights reserved. Saarbrünken, 2010.

PICON-VALLIN, B. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena


contemporânea. org. Fatima Saadi; tradução Cláudia Fares, Denise Voudois e Fatima Saadi. 2 ed.
- Rio de Janeiro: 7letras: Teatro do Pequeno Gesto, 2013.

VIGARELLO, Georges; HOLT, Richard. "O Corpo Trabalhado: Ginastas e esportistas no


século XIX". In HISTÓRIA do corpo2: da revolução a grande guerra. Tradução de João Batista
Kreuch, Jaime Clasen; Direção de Alain Corbin, Jean-Jacques Courtine, Georges Vigarello;
Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

ZOURABICHVILI, F. O Vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de Janeiro:


Centro interdisciplinar de Estudo em Novas Tecnologias e Informação, 2004.

Vídeo - Biomecanica de Meyerhold Film Original – Acesso em: 04/07/2014 13h28min -


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1VKhnoMLomY

Vídeo - Meyerhold El Inspector general (Buena copia) – Acesso em – 04/07/2014 13h32min -


Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qSuhgGYVT_0
1

TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO


MARCHA SOBRE O CORPO: A PRIMEIRA RELAÇÃO ESPACIAL DOS
ATORES-DANÇARINOS DA COMPAGNIE DOS À DEUX.
Carolina Gosch Figner de Luna (Bolsa Capes); Orientadora: Profa. Dra. Maria Brígida
de Miranda; Programa de Pós-Graduação em Teatro – PPGT; Centro de Artes –
CEART; Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.
O processo de construção de uma pesquisa pode ser comparado a um jogo de
quebra-cabeça. Cada peça possui o seu encaixe preciso que organiza a sua estrutura e,
aos poucos, começa a definir a sua imagem final. O presente artigo apresenta-se como o
momento inicial do jogo, quando as peças ainda embaralhadas suscitam em mim o
desejo de tornar os seus fragmentos uma composição imagética. Assim, imersa em meu
quebra-cabeça sobre A construção do gesto no processo de treinamento dos atores-
dançarinos da Compagnie Dos à Deux1, procuro organizar as primeiras peças a fim de
demonstrar como a técnica de treinamento de Catherine Dubois, denominada por ela
como Marcha sobre o corpo foi utilizada pelos diretores e atores-dançarinos da Dos à
Deux, André Curti e Artur Ribeiro, no ano de 1997. Esta maneira de envolver o corpo,
os sentidos humanos através do órgão mais profundo do corpo2– a pele – não só
preparou e organizou os artistas para a sua primeira peça como direcionou e determinou
a maneira como todos os demais espetáculos seriam criados posteriormente.
A relação espacial que surgiu entre Curti e Ribeiro a partir da execução da
técnica definiu não só o nome do primeiro espetáculo como o nome da companhia e a
maneira como a mesma executa o seu treinamento diário. O primeiro grande ato do ser
humano na posição ortostática e as fases da psicomotricidade e cognição que culminam
na marcha, juntamente com o primeiro grande sentido humano – o tato – tiveram e têm
importância singular na escritura teatral da Dos à Deux.
O exercício constante de caminhar sobre o corpo do outro potencializou o
acionamento das musculaturas profundas gravitacionais, a tonicidade dos microgestos e
a percepção dos espaços interno e externo dos atores-dançarinos da Compagnie,
tornando-os mais capazes para recepcionar e gerar diferentes qualidades gestuais e de
movimento. O presente artigo apresenta as peças inicias do quebra-cabeça da referida
pesquisa: os encontros, o treinamento e a criação a dois.

Sobre os encontros

O primeiro encontro foi no ano de 2010. Em um sábado ensolarado e de muito


calor no Rio de Janeiro, vi o sorriso de uma senhora vindo em minha direção. Ela me
fitava os olhos como se me conhecesse desde pequena de tal maneira irresistível que
não hesitei ao afeto e ao toque da sua mão em meu rosto no momento em que ela me
dava um precioso conselho: “Minha querida, leia um livro chamado Tocar: o
significado humano da pele3. Ele é maravilhoso.”.
Até aquele momento, Angel Vianna era para mim uma dessas figuras que se
olha de longe e se admira. Mestra das artes da dança e do teatro, respeitada por artistas
de todas as áreas, fundadora da Faculdade e da Escola Angel Vianna [Rio de Janeiro],
bailarina, professora e pesquisadora. Angel era até então para mim, diva intocável. Até
aquele momento, quando a sua mão tocou com ternura o meu rosto em um gesto
simples.
2

Montagu (1988), autor do livro que Angel recomendou a devida leitura, chama
esta minha experiência com a mestra de sentido háptico. O tato é, na verdade, um
grande conjunto de diferentes sentidos táteis e

O termo háptico é usado para descrever o sentido do tato em sua extensão


mental, desencadeada diante da experiência total de se viver e agir no espaço.
Nossa percepção do mundo visual, por exemplo, de fato mescla o que já
sentimos em associações passadas com o que já vimos ou com a cena à nossa
frente. (...) O sentido háptico tem um papel altamente significativo no cenário
da humanidade. Quando falamos em nos “manter em contato”, sabemos do
que falamos, sabemos que não se trata de uma simples metáfora e, sim, de
uma consumação altamente desejável. (1988, p.33-34).

Montagu (1998) afirma através do relato de experiências científicas realizadas


em animais mamíferos de diversas espécies a importância do estímulo do toque desde o
nascimento do filhote. O ato de a mãe lamber o corpo do filhote ao nascer, em especial,
a região do corpo conhecida como assoalho pélvico e, mais especificamente, o períneo4,
garante a sobrevivência do filhote. O que parecia ser um ato de higiene para os
cientistas, após observações e estudos de casos, confirmou-se como um ato primordial
para o desenvolvimento produtivo da vida. Assim, o filhote desenvolve de maneira
eficiente os seus sistemas respiratório, urogenital e gastrointestinal.
Nos humanos, Montagu (1988) sugere que o trabalho de parto possivelmente
ofereça ao bebê o estímulo das lambidas das fêmeas de outras espécies em seus filhotes.
Além disso, Montagu (1988) aponta sobre a conscientização de que a pele envolve e
protege não apenas o corpo externamente, como internamente. A pele cria relações
diretas com o ambiente, com o espaço externo do corpo e com o espaço interno - outros
órgãos, vísceras, músculos e ossos - pois ela possui características específicas em
diferentes partes do corpo modificando texturas, inervações, cores e odores.
No entanto, o dado que me afetou sobremaneira no livro Tocar (MONTAGU,
1988) e me fez refletir sobre o gesto delicado de Angel em meu rosto - que transformou
a relação e a imagem estanque que eu possuía da mestra – refere-se ao momento em que
o autor afirma que o mundo ocidental passou a utilizar demasiadamente as palavras e a
comunicação verbal em detrimento das linguagens dos sentidos.
Para o pesquisador (1988, p. 18), atualmente, a “tendência é as palavras
ocuparem o lugar da experiência. As palavras passam a ser declarações ao invés de
demonstrações de envolvimento.”. Já as linguagens dos sentidos, especialmente a do
tato - possibilitam uma melhor e maior compreensão e valorização do outro e de outras
formas de se relacionar: “Tocar é a principal dessas linguagens. As comunicações
[transmitidas] através do toque constituem o mais poderoso meio de criar
relacionamentos humanos, como fundamento da experiência.”. (1988, p.19).
É da relação entre a experiência e as palavras, o envolvimento, a compreensão e
a valorização do outro que surgiu o segundo encontro deste artigo. Artur Ribeiro, um
dos fundadores, diretores e atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux, me disse em
entrevista5 que, frequentemente, o seu corpo traz lembranças de acontecimentos vividos
no passado. Ele me contou que estava pensando muito em Angel Vianna durante aquela
semana. No dia que me concedeu a entrevista, o seu corpo - em um dado momento - fez
uma posição corporal que ele não recordava qual era, mas que trouxe a lembrança do
seu primeiro dia de aula como aluno da mestra: Angel havia pedido para os seus alunos
que, ao chegarem em suas casas, olhassem e prestassem atenção na cor da janela do
3

prédio localizado à frente da casa de cada um. Esta memória, presente no corpo de Artur
Ribeiro, o afetou profundamente: “Naquele dia, eu me dei conta de que ela não estava
falando sobre a cor da janela do prédio, mas sim sobre a importância de eu perceber a
pessoa que está ao meu lado. Eu só posso interpretar a vida se eu tiver um olhar sobre o
meu próximo. Como eu posso criar diferentes personagens e falar do mundo se eu não
tenho um olhar voltado para o outro? Se eu não paro e observo o outro? Este, para mim,
é um dos fundamentos da dança contemporânea e do teatro que eu aprendi.” (LUNA,
2014).
A experiência de Artur Ribeiro com o ensinamento de Angel Vianna sobre parar
para olhar, parar para perceber o outro e o mundo vai ao encontro do artigo de Jorge
Larossa Bondía (2002) denominado Notas sobre a experiência e o saber da experiência.
Nele, o autor descreve o quanto o excesso de informação, de opinião, de trabalho, a
pressa e a falta de tempo, características dos tempos atuais fragilizam a experiência.
Esta, “é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o
que acontece, ou o que toca.” (2002, p.2). Para Bondía (2002, p. 5),

A experiência, a possibilidade de algo nos aconteça ou nos toque, requer um


gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que
correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar
mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais devagar; parar para sentir,
sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender
o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a
atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos
acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro,
calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço.

A pele, o sentido háptico e a experiência possibilitam para Montagu (1988,


p.19) o aprendizado

da amorosa gentileza. Aprender a aprender, aprender a amar e a ser gentil


estão intimamente interconectados e tão profundamente entrelaçados, em
especial com o sentido do toque, que seria muito benéfico à nossa
reumanização se dedicássemos mais atenção à necessidade de experiências
táteis sentidas por todos nós.

As experiências táteis acontecem antes do desenvolvimento de qualquer outro


sentido humano6. Elas iniciam a relação do feto com o movimento e com o espaço.
Após o nascimento, o bebê passa a desenvolver a sua propriocepção organizando assim,
a sua maneira de se locomover e estabelecer dinâmicas gestuais e de movimento.
Hubert Godard, ex-bailarino e pesquisador renomado das áreas da educação
somática7, da dança e da medicina, que investigam o movimento e o gesto humanos,
afirma que

a primeira fase de qualquer percepção e de qualquer gesto consiste na tomada


de referências no espaço. É o modo como vou me orientar que ditará a
qualidade do gesto que seguirá. Essa orientação precisa de um mínimo de
vetores. Um vetor que vai ser o substrato, o chão, e o outro que vai ser o
espaço, a projeção no espaço. (2010, p.5)
4

Esta organização da percepção do que acontece no ambiente, informado pelo


sistema nervoso central, se relaciona diretamente com os estados de pensamento
construídos ao longo da história pessoal de vida de cada pessoa. Inibir
microajustamentos ou os pré-movimentos dos hábitos posturais antes mesmo de iniciá-
los é uma maneira de construir novas possibilidades gestuais corporais. Mas como inibi-
los e como reorganizar os padrões corporais já existentes?
Godard (2010) defende que é a relação do contato do meu corpo com o chão e
com o outro no espaço que possibilita esta experiência. Para ele, a dança contato-
improvisação e as técnicas de educação somática são fundamentais para o
aprimoramento e a construção das relações espaciais corporais do indivíduo.
A dança contato-improvisação urge constantemente durante a sua execução a
flutuação da realidade dos movimentos e gestos conhecidos. O meu corpo em contato
com o corpo do outro percebe que o ambiente se modifica a cada instante. As
experiências táteis, o sentido háptico e a inibição dos pré-movimentos - que geram
padrões gestuais e de movimentos conhecidos - são reconfiguradas de diferentes
maneiras pela relação de interdependência entre o meu corpo e o corpo do outro durante
a dança. A criação nasce em conjunto e ao mesmo tempo.
Já as técnicas e métodos da educação somática como Feldenkrais, Alexander e
Pilates, são citados por Godard (2010) como bons exemplos de conhecimentos
empíricos que permitiram ao mundo científico descobertas fundamentais para a
reconstrução de novos gestos e movimentos, reabilitação e organização da
funcionalidade do corpo de maneira sistêmica, além da utilização consciente de
musculaturas profundas gravitacionais que potencializam novas plasticidades gestuais.
A conscientização das fases da psicomotricidade e cognição que culminam na
marcha corporal, o aprendizado da lentidão, da paciência em reter, observar, repetir
movimentos com precisão e aprofundar com sensibilidade, delicadeza e cuidado o amor
sobre o próprio corpo, transformando a autoimagem8 do indivíduo estão presentes na
técnica somática de Feldenkrais. Estas características aliadas à realidade flutuante da
dança contato-improvisação, os ensinamentos da mestra Angel Vianna e o teatro,
enquanto espaço físico e arte cênica geraram o terceiro encontro deste artigo.
Os movimentos corporais do bebê e da criança ao conquistar a sua capacidade
única de se locomover no espaço auxiliaram Moshe Feldenkrais (1977) – Doutor em
Física, professor de matemática, engenheiro, construtor, cartógrafo, judoca, pesquisador
das áreas de psicologia, neuropsicologia e neurofisiologia – a desenvolver o seu
método. Nele, a consciência pelo movimento se dá sem julgamentos, a partir da
execução de lições de movimentos em diferentes posições que visam integrar e
proporcionar novas organizações espaciais para o corpo através de constante
aprendizado.
Catherine Dubois, amiga pessoal de Artur Ribeiro, possui formação no método
Feldenkrais e sua pesquisa sobre o movimento humano se dá também através da
linguagem da dança e do teatro. Atriz e diretora na França, Dubois ministra oficinas de
teatro gestual e clown. A sua técnica denominada Marcha sobre o corpo - cuja principal
característica é o contato dos corpos através do ato de um indivíduo caminhar sobre o
corpo do outro de diferentes maneiras, transformando e potencializando estados
corporais diversos não conhecidos – imprimiu significativas experiências táteis em
Artur Ribeiro que estão presentes em seu corpo até hoje.
Quando na cidade de Paris [França], Ribeiro viu Curti pela primeira vez dentro
do teatro, durante o festival de dança Sous les Tropiques de Capricorne, em 1995,
Ribeiro o viu de costas. Ao se apresentarem e reconhecerem que ambos eram
5

brasileiros9 mantiveram contato. Dois anos depois, desenvolveram um espetáculo de


teatro gestual, inspirado na peça Esperando Godot, de Samuel Beckett, denominado
Dos à Deux em que a Marcha sobre o corpo foi utilizada como parte do treinamento
diário.

Sobre o treinamento
De acordo com Josette Féral, em Você disse “training”? (2000), o termo
training - de origem inglesa - tem sido cada vez mais utilizado na França desde a década
de 80, do século XX. A palavra treinamento, originalmente ligada às práticas esportivas
e militares, começou a perder força oral no campo teatral para a palavra training. Esta
parece ampliar a noção de treinamento da palavra francesa pelo fato de conseguir unir
todos os processos existentes referentes ao trabalho e à formação do ator. Parte desta
influência se deve ao teórico do teatro Eugenio Barba, que procurou difundir o conceito
training de maneira intercultural, em que o mesmo pudesse ser utilizado em diferentes
locais do mundo com equivalente caráter e definição. Além dele, a teórica (2000)
aponta outros pensadores e reformadores do teatro que contribuíram para tal
apropriação léxica na França, tanto na forma oral como, encontrada mais recentemente,
na forma textual. Entretanto, embora a palavra training possua certa interferência no
campo teatral francês, Féral (2000) afirma que as práticas de treinamento de origem
anglo-americana parecem não ter a mesma preponderância.
Féral (2000) relata que no início do século XX, as práticas de treinamento atoral
que emergem na Europa e América do Norte buscam reformar a figura do ator. Os
movimentos estudantis de culto ao corpo na Alemanha, as vanguardas russas, os teatros-
laboratório, os teatros-escola são alguns exemplos dos diversos experimentos existentes
na época criados pelos seus teóricos, artistas, pedagogos e reformadores que desejavam
uma nova teatralidade e um novo ator. Féral (2000) cita Jacques Copeau, Charles
Dullin, Louis Jouvet, Étienne Decroux, Jacques Lecoq, Gordon Craig, Adolphe Appia,
Èmile Jaques-Dalcroze, Max Reinhardt, Constantin Stanislavski, Jerzy Grotowski,
Yevgeny Vakhtangov e Alexander Tairov como alguns dos responsáveis pelas
reformulações da educação atoral.
As novas pedagogias e treinamentos sistemáticos, que trabalhavam os corpos
por meio do método e repetição, possuíam características peculiares que as
diferenciavam umas das outras. Contudo, convergiam em relação ao conhecimento do
ator, que deveria ser galgado paulatinamente, num processo contínuo, que o
acompanhasse durante toda a sua vida contemplando ao mesmo tempo, a sua
fisicalidade e interioridade. Féral (2000) corrobora o pensamento dos reformadores ao
afirmar que esta duração potencial do treinamento estimula no ator, uma constante
capacidade de criação, visto que este novo olhar sobre o processo de treinamento não
objetiva um resultado, um fim, mas uma nova corporeidade atoral e um novo
entendimento sobre o teatro:

O ator deve usar o tempo necessário. Presente desde o início da


aprendizagem, o verdadeiro treinamento continua para toda a vida. É preciso
concebê-lo como uma “formação contínua” para que permita realmente que o
ator, como o músico ou o dançarino, mantenha o seu instrumento10 (físico e
psíquico) em condições, quer dizer (sic) em estado de criação.
Consequentemente, o treinamento não está necessariamente vinculado ao
espetáculo. (...) A maior parte dos exercícios, gestos, movimentos
descobertos no decorrer do treinamento não serão importadas (sic) tais quais
para a cena. Mais do que o resultado, é o próprio processo que importa.
(FÉRAL, 2000, p. 10).
6

Escutar, tocar, degustar, cheirar e olhar: sentir, perceber, criar e construir. Eis
aqui o que comprovei ser o primeiro processo de um dos eixos do treinamento dos
atores-dançarinos da companhia franco-brasileira de teatro gestual Compagnie Dos à
Deux11.
A fórmula, que de início, parece ser uma tarefa simples, possui, na verdade
grandes desafios: criar novas sensações, propriocepções, autoimagens, dinâmicas
espaço-temporais, experiências e tonicidades gestuais específicas que ultrapassem a
subjetividade dos seus corpos. Independente da técnica corporal, do estilo e da
linguagem que utilizem, se tal técnica vem da dança ou do teatro, o fato é que, para
construir uma partitura gestual e compor assim os seus personagens é imprescindível
que haja primeiro, entre os atores-dançarinos receptividade, abertura, porosidade e
poesia, para enfim dedicarem-se às técnicas corporais escolhidas para o treinamento.
Desenvolver a escuta, aprender a receber o toque e transformar a qualidade do
toque, compreender como acontece a respiração para que o seu corpo ganhe
profundidade e globalidade, exercitar a visão periférica, estimulando assim, a
possibilidade de enxergar de modo amplo, são alguns dos princípios que sustentam a
metodologia do trabalho diário deles e dos seus atores-dançarinos. É preciso estar atento
ao outro e a tudo que possa transformar os estados corporais de seus personagens. Para
Artur Ribeiro e André Curti, qualquer microgesto é capaz de influenciar e modificar a
qualidade de uma cena e até mesmo, do espetáculo inteiro.
A teatralidade dos atores-dançarinos da Compagnie Dos à Deux nasce da
dedicação que os seus diretores investem em relação às ações sensoriais durante o seu
treinamento. O mais importante não é a reprodução de uma técnica, mas a maneira
como os corpos serão estimulados para a mesma. Para que os seus atores-dançarinos
conquistem um maior vocabulário gestual teatral é fundamental que ampliem o modo
como executam os exercícios. O treinamento só começa a acontecer a partir do
momento em que os atores-dançarinos abrem os seus corpos para sensações
desconhecidas, ampliando assim, a sua percepção corporal.
As diversas e significativas experiências sensoriais que potencializam a
percepção, assim como a utilização de técnicas corporais que treinem ginasticamente os
seus atores-dançarinos, como a Mímica Corporal Dramática, de Étienne Decroux, as
danças balinesas e o contato-improvisação, dentre outras, faz com que eles conquistem
um controle gestual em cada cena de seus espetáculos. Este controle não nasce apenas
da repetição de movimentos exigidos nas técnicas corporais utilizadas em seu
treinamento. O controle gestual tem antes, a ver com a respiração. De acordo com Jean-
Jacques Roubine (2011):

O controle do gesto depende do domínio da representação. Uma má


respiração descontrola rapidamente o trabalho do corpo. Por falta de uma
completa liberdade, ele fica bloqueado e não responde mais plenamente à
intenção do intérprete. Ora, esta liberdade só lhe é dada pelo equilíbrio
orgânico e pela resistência ao cansaço – e para tanto a respiração é o fator
essencial. Esta liberdade, por outro lado, multiplica as potencialidades
gestuais do ator. (2011, p.37).

Sentir [como os sentidos afetam a subjetividade do corpo], perceber [como a


propriocepção transforma as informações sensoriais], criar [como o corpo inova os
7

gestos] e construir [como a subjetividade corporal agencia novas partituras de


movimento] definem as relações espaciais.

Sobre o criar a dois

Todo o processo de criação artística dos diretores da Compagnie acontece como


uma brincadeira de crianças em que uma alimenta o jogo da outra e a brincadeira não
tem mais fim. “Somos até hoje, duas crianças brincando de fazer teatro, vestidas em
peles de adultos.” Esta foi a principal mensagem que André Curti e Artur Ribeiro
passaram para mim nos encontros formais e informais que tive e tenho tido com eles. E
esta também foi a sinopse do primeiro espetáculo deles cujo nome referencia a
companhia: Dos à Deux. Curti e Ribeiro não sabem o que é e muito menos como é criar
artisticamente um espetáculo sem a presença, a generosidade, a conexão e o contato do
outro.
O universo infantil que traz a sutileza e a ingenuidade necessárias para a
escritura teatral da Compagnie Dos à Deux me deixa cada vez mais imersa com o meu
quebra-cabeça. Outras peças como o afeto, a porosidade, a abertura, a entrega e o amor
possivelmente permitirão novos encantamentos e poesia. Artur Ribeiro e André Curti
são poetas do gesto. Segundo Burnier (2009, p.17),

Os termos “poesia”, “poética” e “poeta” vêm do grego poíêsis, poiêtikê,


poiêtikês, que se relacionam com o verbo de mesma raiz: poiéô, que significa
fazer, criar. Enquanto, na perspectiva das ciências, a prioridade é o objeto e a
inteligência será verdadeira na medida em que se adaptar a ele, nas artes, ela
precede o objeto, conhece-o criando. O conhecimento implícito no fazer
artístico é, portanto, um conhecimento criador, fazedor, produtor. Entre o ator
e espectador, aquele que faz a arte é obviamente o ator, o que nos leva à
conhecida conclusão de ser o teatro a arte do ator.

Cumprida a primeira etapa de criação, em que os personagens são construídos,


as sequências gestuais são improvisadas e, posteriormente, coreografadas, chega o
momento de trabalhar a precisão, o controle sobre os mínimos movimentos, os
encadeamentos e o desenho espacial de cada cena. André Curti e Artur Ribeiro afirmam
categoricamente que é então, a repetição que possibilita um profundo estado de criação.

“Repetir, repetir – até ficar diferente


Repetir é um dom de estilo.”
(Manoel de Barros).
8

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Brasileira de Educação. Jan/Fev/Mar/Abr 2002, n. 19, p. 20 - 28. Disponível em:
http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LAROSSA_B
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BURNIER, Luis Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. Campinas: Editora
da UNICAMP, 2009.

COELHO, Marcelle Teixeira. O corpo no teatro de animação: contribuições da


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Pós-Graduação em Teatro. Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis,
2011

DRAKE, Richard L., VOGL, Wayne & MITCHELL, Adam W. M..Gray’s, anatomia
clínica para estudantes. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005

FELDENKRAIS, Moshe. Consciência pelo movimento. São Paulo: Summus, 1977

FÉRAL, Josette. Você disse training?. In: BARBA, Eugenio et alii, p. 7-27. O training
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Dramatique, 2000

GODARD, Hubert. Buracos Negros. O Percevejo: periódico do Programa de Pós-


Graduação em Artes Cênicas (PPGAC). Rio de Janeiro: UNIRIO, 2010-, vol.02. n.02.
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GIL, José. Metamorfoses do Corpo. Lisboa: Relógio D’Água, 1997

GOUVÊA, Terezinha Augusta. Impressões sobre um território frágil. 2007.


Disponível em: http://www.iar.unicamp.br/galeria/tere_gouvea/release.htm. Acesso em:
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LUNA, Carolina Gosch Figner de. Cadernos de notas, anotações pessoais sobre a
pesquisa de campo com a Compagnie Dos à Deux. Mestrado em Teatro da
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, Rio de Janeiro, 2014

MONTAGU, Ashley. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus,


1988
ROUBINE, Jean Jacques. A arte do ator. Trad. MICHALSKI, Yann; TROTTA,
Rosyane. Rio de Janeiro: Zahar, 2011
9

1
Tema da pesquisa de Mestrado em Teatro financiada pela CAPES, que realizo no Programa de Pós-
Graduação PPGT; do Centro de Artes – CEART; da Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC,
sob a orientação da Professora Doutora Maria Brígida de Miranda. A Dos à Deux é uma companhia de
teatro gestual franco-brasileira reconhecida e premiada mundialmente, fundada pelos artistas André Curti,
Artur Ribeiro e a colaboração da produtora Nathalie Redant em 1998, na cidade de Paris, França. (Nota
minha).
2
“O mais profundo é a pele.” (VALÉRY apud GOUVÊA, 2007).
3
MONTAGU, Ashley. Tocar: o significado humano da pele. São Paulo: Summus, 1988
4
“O períneo situa-se inferiormente ao assoalho pélvico entre os membros inferiores. Sua margem é
formada pela saída pélvica (abertura inferior da pelve). Uma linha imaginária entre as tuberosidades
isquiáticas divide o períneo em duas regiões triangulares: anteriormente o triângulo urogenital contém as
raízes da genitália externa e, nas mulheres, as aberturas da uretra e da vagina. Nos homens, a parte distal
da uretra está envolvida por tecidos eréteis e abre-se na extremidade do pênis. Posteriormente o triângulo
anal contém a abertura anal.”. (DRAKE, MITCHELL & VOGL, 2013, p.372).
5
Realizada em Belo Horizonte, no dia 05 de abril de 2014. (Nota minha).
6
“Quando o embrião ainda tem menos do que 2, 5cm de comprimento da cabeça e tronco (Os membros
do embrião encontram-se flexionados e encostados ao peito e abdômen, não sendo assim considerados
nesta medição), quando ainda tem menos de seis semanas de vida, um leve acariciar do lábio superior, ou
das abas do nariz, fazem o pescoço se curvar e o tronco se afastar da fonte de estimulação. Nesse estágio
de seu desenvolvimento, o embrião ainda não tem olhos ou orelhas. Contudo, sua pele já está altamente
desenvolvida, embora de modo algum num nível comparável ao de seu ulterior desenvolvimento. (...)
Tanto a pele quanto o sistema nervoso originam-se da mais externa das três camadas de células
embriônicas, a ectoderme. A ectoderme constitui uma superfície geral que envolve todo o corpo
embriônico. A ectoderme também se diferencia em cabelo, dentes e nos órgãos dos sentidos do olfato,
paladar, audição, visão e tato, ou seja, em tudo que acontece fora do organismo. O sistema nervoso
central, cuja função principal é manter o organismo informado do que está se passando fora dele,
desenvolve-se como a porção da superfície geral do corpo embriônico que se vira para dentro. O restante
do revestimento de superfície, após a diferenciação do cérebro, da medula espinhal e de todas as demais
partes do sistema nervoso central, torna-se pele e seus derivados: pelos, unhas e dentes. Portanto, o
sistema nervoso, é uma parte escondida da pele ou, ao contrário, a pele, pode ser considerada como a
porção externa do sistema nervoso.”. (MONTAGU, 1988, p.22-23).
7
“Na Educação Somática (sic) a ênfase está no próprio indivíduo, na percepção das sensações internas
produzidas no organismo. [...] Por meio do desenvolvimento do sentido cinestésico- a propriocepção –
essas práticas [Eutonia, Alexander Technique, Feldenkrais, Pilates, Barthenieff Fundamentals, entre
outras] colaboram com o refinamento motor, como também possibilitam a melhora da expressividade do
movimento.” (COELHO, 2011, p. 65-66).
8
“Nós agimos de acordo com a nossa auto-imagem (sic). Esta, que por sua vez, governa todos os nossos
atos – é condicionada em graus diferentes por três fatores: hereditariedade, educação e auto-educação
(sic). A parte herdada é a mais imutável. A herança biológica do indivíduo, a capacidade e a forma do
seu sistema nervoso, sua estrutura óssea, tecidos, glândulas, pele, sentidos – tudo isso é determinado pela
sua hereditariedade física, muito antes que ele tenha qualquer identidade estabelecida. Sua auto-imagem
(sic) desenvolve-se de suas ações e reações no curso normal da experiência.” (FELDENKRAIS, 1977, p.
19).
9
André Curti é brasileiro e Artur Ribeiro é angolano, naturalizado brasileiro. (Nota minha).
10
Embora concorde com a autora sobre o tempo do treinamento e da constante aprendizagem, discordo da
ideia, utilizada pela teórica, do corpo como instrumento e justifico-me através de duas citações, a seguir:
“A esta docilidade da linguagem equivale uma violência real exercida sobre o corpo: quanto mais sobre
ele se fala, menos ele existe por si próprio.” (GIL, 1997, p. 13).
“Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um
espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo?” (UNISINOS. Instituto Humanitas Unisinos.
Disponível em: < http://www.ihu.unisinos.br/noticias/38572-o-corpo-utopico-texto-inedito-de-michel-
foucault#.Uc-c_xLbGa >. Acesso em: 17 jul. 2013).
11
Dado construído após pesquisa de campo realizada nos meses de novembro e dezembro de 2013, na
sede brasileira da companhia. Para chegar a esse resultado, participei ativamente de workshop com os
diretores Artur Ribeiro e André Curti, adquiri alguns materiais audiovisuais com Artur Ribeiro, além de
entrevista-lo no final deste primeiro processo da pesquisa. (Nota minha).
TEMA: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

PARTITURAS CORPÓREAS: VERBOS DE AÇÃO NO ESPAÇO CÊNICO

Clara Monteiro Brito (Orientadora: Renata Lemes; Instituto de Cultura e Arte;


Universidade Federal do Ceará).

Resumo: Executar uma ação. Logo, pensar em como executá-la. Então, imprimir
significado a ela. Ter como premissa um verbo de ação – empurrar, puxar, acenar, etc. –
e a partir daí deslocar o corpo de modo que uma ação cotidiana transite para um lugar não
habitual, dotado de outro fluxo de energia. Este artigo traz reflexões em torno de um
estudo prático-teórico sobre o trabalho do ator com partituras de ações como
procedimento para a sua criação artística e sobre os desdobramentos desse trabalho na
apropriação do espaço cênico. Inserida no contexto de montagem do espetáculo Calígula,
da obra de Albert Camus, esta escrita traz questionamentos a respeito do processo de
criação de um grupo de atores da cidade de Fortaleza através da composição de partituras
corporais engendradas por verbos de ação que sofrem interferência das qualidades e
significados presentes no espaço cênico.

Palavras-chave: Ator. Partituras de ação. Espaço cênico.

Em março de 2014, teve início um processo de investigação prática sobre o trabalho do


ator com partituras de ação, impulsionado pelo desejo de um grupo de atores residentes
na cidade de Fortaleza, no estado do Ceará, intitulados Comedores de Abacaxi S/A¹, em
refletir sobre as questões que perpassam a obra de Albert Camus, Calígula, em
consonância com o mapeamento do corpo do ator enquanto objeto de estudo. Propunha-
se, então, deslocar a funcionalidade característica das ações cotidianas a partir de um
redirecionamento do fluxo de energia no corpo do ator.

Com frequência chamamos esta força do ator de “presença”. Mas não se trata
de algo que está, que se encontra aí, a nossa frente. É contínua mutação,
crescimento que acontece diante de nossos olhos. É corpo-em-vida. O fluxo de
energia que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi redirecionado. As
tensões que secretamente governam nosso modo normal de estar fisicamente
presentes, vem à tona no ator, tornam-se visíveis, inesperadamente. (BARBA.
1995. P. 54).

Diante desse processo de montagem teatral que nos impulsionou a perceber outras
instâncias do trabalho do ator, neste caso, enquanto pesquisa de partituras corporais,
abriram-se caminhos para a redescoberta dos corpos presentes na sala de ensaio, fazendo
uso da ponte corpo e pensamento como um só lugar de mutação e movimento.

Nesse processo de criação, ainda em andamento, de caráter inédito para o grupo de atores,
com direção de Renata Lemes, diretora da Companhia do Miolo de São Paulo, atualmente
professora do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará, temos
trabalhado com verbos de ação – empurrar, lançar, acenar, etc. – como premissas para a
composição de ações que atravessam a obra de Camus e se constroem como partituras
relacionadas à pessoalidade de cada ator.
O trabalho com partituras de ação

O primeiro verbo trabalhado em sala de ensaio foi empurrar. A partir dele surgiram três
ações que constituíram a primeira partitura pensada individualmente por cada ator. Os
movimentos criados se relacionavam de maneiras distintas com o verbo, na mesma
proporção que formavam uma liga entre si, de modo a gerar uma unidade entre as ações,
compondo uma partitura de ação.

Embora partindo do mesmo princípio, no caso o verbo empurrar, cada partitura possuía
qualidades muito singulares, que ao longo do processo, se revelaram como uma condição
inerente ao trabalho com partituras de ação. Em cada jogo de ações pensadas pelos atores,
também se faziam presentes as qualidades dos próprios artesãos e não somente do verbo
em questão, ou seja, as características presentes nos corpos de cada ator, as diferentes
experiências vivas na memória corporal também trabalhavam na composição das
partituras.

Neste sentido, a partir de um mesmo verbo surgiram imagens carregadas de força com
movimentos mais amplos, como também imagens caracterizadas por uma leveza e
precisão nas ações. As partituras nos mostravam como um mesmo impulso criativo podia
nos gerar significados opostos.

Em um segundo momento, passamos a extrair os verbos de ação do próprio texto


dramático, voltando o nosso estudo para o trabalho com outras imagens e significados
mais próximos da obra do autor. Desse modo, pensando nos diferentes sentidos que uma
mesma cena carrega, e nas possibilidades de reflexão em torno desse processo de criação,
começamos a nos questionar sobre diferentes impressões por parte de cada ator a respeito
do texto dramático.

Quais verbos de ação impulsionam cada cena e congregam as principais ideias da obra?

A partir daí, outras maneiras de construção das partituras foram surgindo em sala de
ensaio, agora com um direcionamento maior sobre a elaboração das ações diante do
contexto das cenas, as composições ganharam qualidades inerentes ao jogo de ideias da
obra, como também uma nova distribuição no espaço cênico.

A presença de uma composição coletiva ampliou as perspectivas do trabalho com


partituras de ação, à medida que partituras mais híbridas em seus significados surgem de
uma criação colaborativa entre os atores. O coro ganha voz na cena. Começamos a
trabalhar partituras corporais que sintetizassem as ideias da cena. O espaço cênico ganhou
outras proporções. A relação coro-corifeu se fez presente diante da relação corpo-cena
dos atores.

Desse modo, pensando para além da criação individual e alcançando outras perspectivas
desse trabalho, começamos a pensar em outros espaços de investigação para além da sala
de ensaio com paredes brancas.
Partituras corpóreas fora da sala de ensaio

HÉLICON: Aproximem-se! Aproximem-se! Mais uma vez, os deuses


desceram à terra. Caio, César e deus, que chamamos de Calígula, emprestaram
a eles sua forma humana. Aproximem-se, reles mortais, o milagre sagrado se
opera diante dos nossos olhos. Por um favor especial ao reino bendito de
Calígula, os segredos divinos são oferecidos a todos os olhos. (CAMUS.1994.
P.41).

A frase dita pelo personagem Hélicon da obra de Camus, foi trabalhada em sala de ensaio
por um dos atores como um fator de transformação da partitura de ação elaborada a partir
dos verbos esfregar e lançar. Quatro ações juntas formaram a primeira partitura.

Nesta etapa do nosso processo de pesquisa, deslocamos o trabalho com partituras de ação
para fora da sala de ensaio, teríamos a totalidade do prédio do Instituto de Cultura e Arte
da Universidade Federal do Ceará como fator propulsor de transformações nas partituras
anteriormente criadas na sala de ensaio.

Um dos aspectos inerentes ao espaço vazio é a inevitável ausência de cenário.


Isto o torna melhor que os outros, pois não estou julgando nada, apenas
constatando o óbvio: num espaço vazio não poder haver cenário. Se houver, o
espaço não estará vazio, haverá objetos coupando a mente do espectador.
Como a área vazia na conta uma história, a imaginação, a atenção e os
processos mentais dos espectadores ficam livres e desimpedidos. (BROOK.
2008. P.63).

Nossa proposta foi fazer exatamente o oposto, procurar um espaço não-vazio, repleto de
suas características e signos. Um espaço em que suas condições intervissem nas ações já
criadas e modificassem a partitura nos seus mais diversos aspectos.

A partitura inicial com o texto de Hélicon possuía ações de esfregar os pés no chão, lançar
algo com a mão direita, com movimentações em níveis alto e médio. Saímos da sala de
ensaio para perceber o espaço do prédio, onde o ator poderia investigar as diferentes
possibilidades de intervenção na partitura inicial.

O espaço foi escolhido, um canteiro com plantas de altura aproximada de um metro. O


ator se posicionou no local e começou a trabalhar com a repetição de sua partitura a fim
de perceber os desdobramentos que o novo espaço provocava na sua movimentação.

Ao longo da investigação prática, percebíamos que a terra molhada presente no canteiro


de plantas alterava o esfregar dos pés – seu ritmo, seu peso – o objeto lançado da mão
direita agora era terra, o tempo da partitura se estendeu à medida que o texto falado
também se modificou na repetição. A voz do ator se transformava com suas ações,
variando entre grave e agudo, na proporção em que se estabelecia uma relação com o
público, o olhar dentro da partitura ganhou outro significado e força.

E assim aconteceu com as demais partituras de ação, uma rampa que transformava a
qualidade do caminhar, um chão áspero que modificava a intensidade do movimento, etc.

O olhar do público é o primeiro elemento que nos ajuda.Quando sentimos esse


escrutínio como uma expectativa autêntica, exigindo a todo modo que nada
seja gratuito, que não haja desleixo e sim precisão, compreendemos finalmente
que o público não tem uma função passiva. (BROOK. 2008. P.56).

Pensando em outras perspectivas da apreciação cênica, dentro dessa investigação, propus


também me relacionar com o público a partir de um dos verbos de ação contido na cena,
aproximar. Sendo assim, a ação estava sujeita às diferentes posições de cada espectador,
estando a aproximação vinculada à disposição do público no espaço. Através da partitura,
me aproximava de cada espectador e executava o texto falado.

O espaço vazio

Do mesmo modo, o trabalho no espaço vazio voltou nossa atenção para outros aspectos
da criação artística. Na proporção que os estímulos pareciam estar menos presentes, o
grupo se tornava mais sensível aos mínimos impulsos provenientes do espaço e do
coletivo. Esses estímulos nos chegavam de variadas formas: sons, movimento, cheiro,
etc.

Em nosso trabalho costumamos usar um tapete como zona de ensaio, com um


objetivo muito claro: fora do tapete, o ator está na vida cotidiana, pode fazer o
que quiser: desperdiçar a energia, fazer movimentos que não expressam nada
particular, coçar a cabeça, tirar um cochilo...mas assim que pisa no tapete está
obrigado a ter uma intenção definida, estar imensamente vivo, pela simples
razão de que há um público observando. (BROOK.2008. P. 66).

Essa outra maneira de se relacionar com o espaço, marcada por linhas bem definidas,
áreas limitadas e um espaço desnudado para encenação, retoma aspectos semelhantes a
um jogo muito presente em nosso processo de criação, o jogo Coro-Corifeu². Demarcando
a área de jogo – um quadrado grande – como um espaço vazio na sala, o primeiro corifeu
(jogador) entra e ocupa este espaço a sua maneira, ressaltando a importância da
consciência corporal do ator para a criação artística. Em seguida, entra o segundo corifeu
(jogador), nesse momento se estabelece as duas instâncias do jogo, o primeiro jogador
torna-se coro, enquanto o segundo assume a posição de corifeu, devendo continuar se
relacionando com o espaço, mas também com o coro presente, o qual irá reagir – a seu
modo – a qualquer estímulo oferecido pelo corifeu. Um jogo de ações se estabelece no
espaço vazio. Assim, à medida que um novo corifeu entra no espaço, a unidade do coro
aumenta seu tamanho.

Como aproveitar os mínimos impulsos gerados no jogo/cena/espaço e reagir a esses


estímulos?

Existe uma relação de suspensão dentro do jogo de teatro, uma marca pela espera do
acontecimento, um olhar vivo, um corpo-em-vida³ do ator que potencializa as ações do
jogo e da cena. Retomando as relações do jogo coro-corifeu, me questiono também sobre
a qualidade dos estímulos gerados para o coro: Como fortalecer a relação coro-corifeu
pensando não somente na receptividade do outro, mas também naquilo que eu jogo para
o outro.

Em paralelo, podemos refletir em torno da relação dos atores em cena, como também da
relação ator-espectador. Um canal de troca se estabelece entre essas instâncias, as duas
vias tornam-se abertas para que haja um atravessamento das partes. A suspensão é
rompida pelo acontecimento que vem do outro e que nos impulsiona ao novo, a outro
lugar, que nos permite trocar com o outro ator em cena ou com o espectador ali presente.

Neste contexto do jogo coro-corifeu, jogamos com verbos de ação no espaço cênico, os
verbos ficavam dispostos ao redor do tabuleiro como ferramentas para o jogo e
impulsionavam as ações criadas dentro do espaço. Verbos do texto de Camus que
ganhavam forma no corpo do corifeu e, de maneira análoga, reverberavam nas imagens
do coro. Criavam-se partituras corporais pelos estímulos do jogo, marcadas pela presença
do coro, pela força do coletivo e por outras qualidades de composição.

Dentro dessa ideia de unidade do coletivo, investigamos possibilidades de criação a partir


de um jogo de teatro chamado jogo do nada, definimos o ponto de partida como uma roda
entre os atores, os quais estavam sujeitos a qualquer estímulo gerado a partir da roda –
um mínimo movimento, ruído, etc. – o coletivo reagia junto e dessas reações eram gerados
mais estímulos e consequentemente mais reações, estabelecendo uma cadeia de ações
dentro do jogo.

Redescobrir o corpo em cena através do nada, estar suspenso a qualquer impulso que
tenha origem em qualquer ponto do espaço, redescobrir a descoberta.

Vivemos numa época em que nossa vida interior é dominada pela mente
discursiva. Essa parte da mente divide, reparte, etiqueta – empacota o mundo
e o envolve como se ele fosse “entendido”. Nossas experiências vão se
tornando cada vez mais rasas, e deixamos de perceber as “coisas” diretamente,
como fazem as crianças, para percebê-las como se fossem signos de um
catálogo que já nos é familiar. (RICHARDS. 2008. P. 4).

O desconhecido comumente se torna petrificado ao longo do tempo, passamos a chamá-


lo de conhecido. Aquilo que já rotulamos no decorrer da vida parece não ter mais sobras,
nem novas possibilidades, encontra-se estagnado juntamente com nossa compreensão das
coisas. A sensação da criança, de encontrar o novo, de descobrir o entremeio daquilo que
já nos foi ensinado, de olhar para o espaço sobre diferentes perspectivas vai se esvaindo.

Ocupar o espaço cênico com o desejo de redescobri-lo, perceber detalhes, falhas, formas
a serem exploradas, retomar o sentindo da criança quando rola pelo chão e procura o
novo, busca e se ocupa do inédito. Perceber como apropriar-se dessas sensações dentro
do processo de criação do ator, como redescobrir o próprio trabalho, fazer uso disso, por
exemplo, no trabalho com partituras de ação, na relação partituras corporais e espaço
cênico.

i
Notas:

¹ Grupo composto por atores cearenses em formação vinculados ao curso de Licenciatura em Teatro da
Universidade Federal do Ceará. A realização da pesquisa prática tem apoio do Instituto de Cultura e Arte
da UFC.
² O jogo coro-corifeu possui diversas abordagens dentro das diferentes linguagens artística. Nesta
pesquisa, ele foi usado como um dispositivo de trabalho da relação corpo-cena na perspectiva teatral.

³ Expressão oriunda do livro A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral de Eugenio Barba.
Faz parte do segmento o corpo dilatado de sua obra.

Bibliografia

ÁQIS: Núcleo de pesquisas sobre processos de criação artística. Estados: Relatos de uma
experiência de pesquisa sobre atuação. Florianópolis. UDESC, 2011.

CAMUS, Albert. Calígula. Lisboa. Livros do Brasil, 1994.

BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de


antropologia teatral. São Paulo. E Realizações, 2008.

BROOK, Peter. A porta aberta. BCD. São Paulo, 2008.

RICHARDS, Thomas. Trabalhar com Grotowski sobre as ações físicas. São Paulo.
Perspectiva, 2008.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
A TRANSFORMAÇÃO DO ATOR EM PERFORMER
Cristina Sanches Ribeiro; Orientador: Edélcio Mostaço; Universidade do Estado de
Santa Catarina

O corpo redescoberto

No início do século XX, as grandes mentes do teatro procuravam criar um novo


sentido: na busca de “reteatralizar o teatro”, tarefa que faria com que o teatro
encontrasse a si mesmo, e esse caminho se mostrou através de sua marginalização e da
exclusão do texto falado e da palavra, que antes havia tomado um lugar supremo na arte
teatral. O que restaria se a palavra fosse suprimida do teatro? O corpo do ator, com seus
gestos, movimentos.
De acordo com Marinis (2000), o francês François Delsarte foi um dos pioneiros
do estudo do corpo, iniciando com a ginástica, esportes modernos e outras
manifestações do corpo humano do ponto de vista físico e estético.
No final do século XIX um conjunto de fatores e experiências colocou o corpo no
centro das atenções, e a expressão alemã Körperkultur [Cultura do Corpo] era utilizada
para esse fenômeno. No campo artístico, a dança se renovou com a “dança livre”,
seguida da “dança moderna”, levando o corpo humano para outras instâncias antes não
imaginadas, a ressignificação da beleza do movimento livre, livre de se submeter às
tradições ditas ultrapassadas.
Já no teatro do início do século XX, a redescoberta do corpo foi além de somente
destronar a palavra.
“Mais exatamente, tratava-se da intenção de subtrair
o ator da tirania do texto, do papel escrito, para pô-lo
nas condições de expressar-se e talvez de criar
autonomamente, além do texto, até sem o texto; em
todo o caso, entre os espaços do texto (Marinis,
2000)”.

Para se transformar em alguém criativo e não somente um repetidor de textos, o


ator precisou tomar as rédeas de sua formação e um começo para isso foi o domínio do
seu aparelho corporal e vocal. Usar o próprio corpo com precisão faria os atores
recriarem de certa forma todo o conceito de teatro e do ator. A concepção do gesto era
herdada do século anterior, como algo comunicativo e de certa forma inexplorado.
Quanto mais desacreditada estava a palavra, maior importância o gesto teria como meio
de comunicação.
O teatro que Adolphe Appia parecia buscar se definia nesse encontro com a
descoberta do corpo humano, direcionado a expressão da cultura estética do momento,
um corpo que encontrasse a si mesmo esteticamente. Craig por outro lado, acreditava
que o corpo humano era algo que não se podia utilizar como obra artística, por ser
pouco confiável.
Parece então que essa tentativa de redescobrir o teatro e o corpo do ator não seguia
uma única lógica e com isso “criou para os homens de teatro do início do século muito
mais problemas do que os resolveu: primeiro entre todos, o problema da escola, ou seja,
o de um repensar global da formação teatral (Marinis, 2000)”. Toda a formação do ator
precisou ser reformulada.
Marinis (2000) coloca que essa redescoberta se referiu a, principalmente, dois
elementos: a presença física do ator na base da criação cênica com sua formação e a
elevação do corpo humano como meio de expressão artística crucial.
Foi necessário então lidar com a questão da educação corporal, além das
atividades corriqueiras como ballet e esgrima. Um grande número de escolas foi criado
na Europa, com foco nas técnicas de “adestramento físico”. Stanislavski criou o seu
estúdio em 1912 com técnicas de movimento, ginástica, esgrima, dança e mimo.
A expressão “mania de exercícios” usada para designar as técnicas utilizadas nos
estudos stanislavskianos, ao contrário do que parece, ao invés de ser uma tentativa de
ditar um tipo de adestramento corporal, não era feito para criar um ator exibicionista,
um cabotino do músculo e sim criar consciência no ator das suas possibilidades
expressivas pelo corpo. No “método das ações físicas” elaborado por Stanislavski nos
últimos momentos de sua pesquisa, as palavras não eram proibidas, apenas no começo
do trabalho. Antes de utilizá-las, o ator deveria criar uma sequência de ações físicas do
personagem e só depois chegar ao texto.
Marinis (2000) propõe uma conclusão nessa trajetória da descoberta do corpo
pelos atores:
Neste ponto, uma primeira conclusão se impõe: por
mais importante ― e até decisiva ― que seja a tarefa
reservada num projeto do gênero à expressão do
corpo, é evidente, porém, que aí figura sempre como
um instrumento, como um meio, em suma, ordenado
para um fim superior: de fato, ao término desse
percurso de regeneração, de regra, se prevê e se
deseja que o ator remeta ao serviço do poeta
dramático e ao do encenador as novas capacidades
ideativas e expressivas assim conquistadas. (Marinis,
2000).

Com essas ideias de criação de novas expressividades, aparece então no final da


década de 20 a criação do mimo corporal, o novo mimo, baseado na subtração
temporária do texto, na improvisação muda, representando no século XX como a
“utopia de um teatro puro”, criado por Decroux na Escola do Vieux-Colombier, dirigida
por Copeau. O mimo corporal tornou-se não mais um meio mas uma arte autônoma,
podendo então ser posta ao lado de outras visões teatrais do mesmo século, como o ator-
supermarionete de Craig, com o “mestre das ações físicas” de Stanislavski, ao controle
do corpo do ator biomecânico de Meierhold e ao Performer de Grotowski, “cuja
partitura cênica combina indissoluvelmente processo orgânico e processo artificial, ou
seja, espontaneidade e precisão” (Marinis, 2000), entre outros.
Teatro do Gesto e Teatro da Palavra

Um equívoco comum de alguns propositores das renovações na cena do século


XX teria sido a crítica extrema em relação ao texto, colocando-se contra qualquer tipo
de emprego da palavra na encenação e um certo ódio a qualquer aplicação de texto ou
sonoridade verbal e vocal. Por mais que a negação de uma corrente acabe criando
possibilidades para novas, nota-se que esse sentimento era infundado, pois de acordo
com Marinis (2000), os pioneiros dos denominados teatros do corpo e movimento como
Delsarse, Laban, Meierhold, Artaud, Decroux, Grotowski, entre outros, mostravam
grande interesse pela palavra, seja ela escrita, proferida, recitada ou dita.
Este equívoco parece ter levado a contrapor um Teatro do gesto e Teatro da
palavra como se fossem coisas opostas e exclusivas, principalmente nas décadas de 60-
70. Os porta-vozes do chamado Teatro do Gesto, como o Living Theatre, Teatro
Laboratorium de Grotowski, Odin Theatre, Bread and Puppet Theatre faziam o uso da
linguagem verbal em seus espetáculos, mesmo que de forma inovadora. O engano
permanecia no rótulo, que de certa poderiam ter condicionado o trabalho de outros
grupos jovens.
A redescoberta do corpo foi uma influência muito grande nessas décadas, e
executou um papel importante na criação do movimento do chamado Novo Teatro,
colocando a expressão corporal como criação estética para muitos artistas e grupos
jovens em suas obras. Uma das heranças do Novo Teatro foi a sua ligação com a
performance.

Performance

Féral (2009) explana sobre dois tipos de performance. Sobre a performance


concebida como forma artística, a performance art, e a performance de Richard
Schechner, contemplada como como ferramenta teórica de conceituação do fenômeno
teatral, conceito popularizado principalmente nos Estados Unidos, e que constituiu a
base principal sobre a qual se estruturaram os “Estudos da Performance”.
Para Schechner (2006) as noções de performance são mais amplas e, por meio de
um pensamento pós-estruturalista e pós-moderno, propõe uma visão relativa da
realidade. Performance para ele seria “o ser, o fazer, o mostrar-se fazendo e o explicar
as ações demonstradas”, abrindo uma brecha para todas as aproximações no campo dos
estudos performáticos.
Na performance art, a arte deixa de ser uma mercadoria e suscita questionamentos
acerca da sua recepção, a função do espectador e sua relação social. Mostaço (2009)
coloca que performance art toma o corpo do artista como “locus” preferencial. A
conduta do artista estaria em uma situação não cotidiana que almeja romper, transgredir,
instaurar o corte ou a fissura ou algo que seria corriqueiro ou repetitivo.
A performance art normalmente recorre a rituais estabelecidos, algumas práticas
chamadas primitivas, em uma zona que o instintual encontra o cultural, “razão pelo qual
toma a vida em seus aspectos especificamente performáticos como ponto de incisão e
território de exploração (Mostaço, 2009)”. O performer busca então com suas ações e
estratégias alcançar relações de zombaria, de transgressão ou ultrapassagem, tomando
como ponto de referência para suas operações e reflexões, transformando a
performance art de certa forma um lado crítico da performance.
Para Schechner (2006), a vida pode ser uma performance, pois está sempre se
recriando e retomando procedimentos, através do comportamento restaurado, que pode
ser visto como uma repetição ou retomada de processos.

Treinamento do ator e do performer

Para Quilici (2012), a existência de um panorama tão diversificado de


possibilidades e linguagens cênicas é um caso de problematização do treinamento do
ator no teatro contemporâneo.
Com as novas investigações disponíveis para o ator, “de maneira geral, parece que
as técnicas que visam à aquisição de habilidades ligadas a uma estética específica
tornam-se muito limitadas diante das questões colocadas pela cena atual (Quilici,
2012)”.
O trabalho cênico para Stanislavski se ancorava no “trabalho do ator sobre si
mesmo”, fomentado no desenvolvimento de um “estado criativo” para a elaboração
teatral. O dualismo entre corpo e mente, existente na herança da cultura ocidental, foi
trabalhado por Stanislavski recorrendo às técnicas orientais como o Yoga.
O conceito de “trabalho do ator sobre si mesmo” criou um campo de pesquisa
advindo de várias práticas culturais diversas, colocando a questão do treinamento do
ator em um patamar para questionamentos mais profundos, indagando sobre problemas
mais abrangentes como às transformações possíveis do artista enquanto sujeito, sendo
então essa a base para o processo criativo. É nesse ponto que o trabalho do ator
aproxima-se do trabalho da arte da performance. Quilici (2012) faz a ligação entre a
área do teatro e da performance através do trabalho de Grotowski:

A conexão entre essas áreas aparece explicitamente,


por exemplo, na última fase da pesquisa de Jerzy
Grotowski. Como se sabe, o “performer arcaico”
grotowskiano se desvincula das matrizes ficcionais da
dramaturgia convencional para fundar sua pesquisa
num processo de transformação pessoal que se
articula na criação de “ações” (Quilici, 2012).

O diálogo intercultural então aparece como mecanismo essencial na criação de


estratégias de treinamento, baseando-se na recriação de diversos procedimentos
artísticos, culturais, rituais na constituição de uma performance.
Quilici (2012) ressalta a transição do interesse de técnicas essencialmente teatrais
orientais como o Nô, Kathakali, Teatro Balinês, etc para a pesquisa mais específica de
práticas rituais, religiosas, meditativas e marciais como procedimentos que visam
promover alteração nos modos de percepção e consciência.
Esses processos formam o eixo das “ações performáticas” de Grotowski, com o
entendimento que a ação artística seria capaz de conversão da intensidade e qualidade
dos estados do artista, criando também um vínculo comunicativo com o público. Quilici
(2012) cita performers que podem ser colocados nessa categoria, como Marina
Abramovic, Joseph Beuys, John Cage, Meredith Monk entre outros.
A performance então se torna um acontecimento ao invés de um espetáculo com
ator e público afastados:

Na medida em que a arte performática e parte do


teatro contemporâneo toma um distanciamento mais
radical da própria noção de espetáculo,
compreendendo-se mais como um “acontecimento”
modificador da qualidade de consciência, a discussão
dos procedimentos criativos e treinamentos tende a
abrir-se para campos de conhecimento distintos da
área artística strictu sensu (Quilici, 2012)”.

Quilici (2012) situa o produto-espetáculo como algo que “automize” o ator, não
dando a brecha necessária para essa nova arte que desloca a reflexão para os processos
de transformar os modos de arte e vida. O treinamento do performer passa pela
necessidade de dominar outras áreas do conhecimento.
Já Marinis (2000) vê o trabalho de Grotowski como uma passagem do ator ao
performer através da cultura teatral do corpo ao ultrapassar as fronteiras tradicionais do
teatro, partindo da ação física do ator. É na ação física que o ator desvenda algo que vá
além do trabalho direcionado para o espetáculo e espectador, associando esse processo
“orgânico” do ator de teatro ao performer, como um ser atuante, que cria a ação e a vive.
O ritual é uma parte muito importante no trabalho de Grotowski, situado como o
ato em si, a ação consumada, o desempenho e a forma como que cada experiência se
eleva a partir da corporeidade e processo conjunto.

Por “ritual” entende cada experiência forte,


“elevada”, na qual a corporeidade, o processo
orgânico integral de quem age é envolvido de modo
profundo e total e se expressa ritmicamente,
articulando o fluxo da vida em formas visuais e
vocais (Marinis, 2000)”.

A pesquisa de Grotowski desde a década de 80 procura um caminho para uma arte


que seria mais como um veículo do que uma apresentação, através do trabalho do ator
sobre si mesmo, sobre as ações físicas, levando o performer a readquirir a plenitude e
intensidade do processo orgânico no ritual/performance. Diferente do caminho do ator
de teatro tradicional, que buscaria a criação para uma simples representação.

O ator e o performer

Para Féral (2009), o ator torna-se performer quando em suas ações, o seu corpo,
seu jogo e suas competências técnicas são colocadas à frente da representação. O
público então navega entrando e saindo da narrativa de acordo com as imagens que
aparecem em seu olhar. “O espectador, longe de buscar um sentido para a imagem,
deixa-se levar por esta performatividade em ação. Ele performa (Féral, 2009)”.
Para Schechner (2006), as ações performativas não podem ser classificadas de
verdadeiras, falsas, certas ou erradas, elas simplesmente acontecem, sobrevêm. Uma
classificação importante da performance é o caráter de evento, colocando o processo em
cena, aumentando o aspecto lúdico de quem faz e de quem participa. O performer se
coloca em risco na frente de quem o assiste.
Féral (2009) então explica que duas ideias estão no centro do ato performativo: de
um lado, as ações que são realizadas pelo performer e no outro, o caráter descritivo dos
fatos. A performance cria seu lugar no real e desconstrói essa noção de realidade ao
mesmo tempo. O espectador é obrigado a se adequar ao jogo de signos instáveis que se
apresentam a ele:

“[...]inscrevendo sempre a cena no lúdico e tentando


por aí escapar da representação mimética. O
performer instala a ambiguidade de significações, o
deslocamento dos códigos, os deslizes de sentido.
Trata-se, portanto, de desconstruir a realidade, os
signos, os sentidos e a linguagem.(Féral, 2009)”.

Nessa desconstrução, o performer institui a pluralidade do sentido da cena através


de fragmentação, paradoxo, sobreposição de significados, colagens-montagens,
intertextualidade, desconstrução, citação e deslocamento. A escrita cênica é caótica, ela
se desconstrói, baseada não em uma finalização mas no processo, ela se identifica no
risco.
O performer trabalha na inter-relação entre o seu corpo, os objetos e o espectador,
não mais procurando construir signos como o ator antes fazia, mas na tentativa de
instalar a dubiedade de todas as significações e sentidos. A força da ilusão é encontrada
no jogo da falsa aparência, em um jogo de representação que nega a si mesmo,
mostrando o procedimento através da tecnologia. Ao mostrar o procedimento do jogo, o
performer mantém a ilusão e ao mesmo tempo sua enganação.
Para Féral (2009), o performer mantém engajamento total em sua ação, colocando
em cena o seu desgaste, sua vivacidade é a presença do corpo humano sem artifícios. O
espectador encontra-se totalmente absorvido pela ação do momento, pelos riscos do
jogo e uma certa frieza por ter a escolha de permanecer com o olhar exterior.
Para Schechner (2010), o performer precisa de trabalho duro se quiser levar seu
trabalho a um nível em que consiga deixar a sua máscara de lado e se revelar como ele
realmente é, na ação que ele está vivendo. Ele acrescenta que essa ação não parte do
famoso “se” de Stanislavski, onde coloca-se a ilusão da representação, mas na realidade
da ação, daquilo que “é”.
A performance torna-se então um tipo de nudez espiritual, um trabalho entre a
região do “personagem” e a composição que o performer faz de si mesmo. As bases da
peça tornam-se as reações do performer, evocando novos elementos e transformar a
encenação.
Schechner (2010) instaura quatro etapas no processo do performer:

“1. Entrar em contato consigo mesmo. 2. Entrar em


contato consigo mesmo diante de outros. 3.
Relacionar-se com os outros sem uma história e sem
uma estrutura formal elaborada. 4. Relacionar-se com
os outros dentro de uma história ou estrutura formal
elaborada (Schechner, 2010)”.

Estas etapas acontecem simultaneamente, uma fomentando a outra. O treinamento


do performer baseia-se ao retorno constante às etapas, criando variações e misturando
com outros exercícios. Os exercícios desse treinamento vêm de padrões que o
performer aprende de fora e os impulsos íntimos que evocam do seu ser interior. O
trabalho do treinamento do performer então é auto-gerativo, pois parte de cada um que
cria as variações e os contextos na disciplina dos exercícios, através do seu corpo e voz.
“Os movimentos e os sons que esse processo gera se transformam em novos padrões
disciplinados, que formam, por sua vez, a base de novos impulsos e associações
(Schechner, 2010)”.
A história do performer estaria então, evidentemente inserida na história do ator.
Estaria a história do ator na do performer no teatro contemporâneo? Fica a questão. A
performance só existe com o corpo do ator e a história a ser vivida na cena. Esse ator-
performer estimula o público a reagir com o próprio corpo ao que acontece com ele em
cena. O verdadeiro performer para Schechner (2010) pede para que a audiência o
observe enquanto derrama suas próprias vísceras e enquanto se cura, em um ciclo de
conflito, agonia, morte e restauração. O teatro se encontra na performance, ao mesmo
tempo que se encontra o ritual, o mistério, a medicina e a religião. A história a ser
contada sempre terá profundas consequências a nível social, ao mesmo tempo que há
uma partilha de uma experiência visceral que toca profundamente o público e o
performer. A cada performance, o performer nasce diante do público, cresce, derrama-
se, morre e renasce. É a magia do ritmo vivo, é o teatro vivo e puro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABIRACHED, Robert. “ L`acteur et son jeu” [O ator e seu Jogo]. p. 154-166, in


COUTY, Daniel & REY, Alain (org.). Le Théâtre [O Teatro]. Tradução de José Ronaldo
FALEIRO. Paris: Bordas, 1980.

FERAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo.


Universidade do Quebéc. Tradução: Lígia Borges. 2009.
______________ A arte do ator. Em Encenação e jogo do ator: entrevistas. Tradução
José Ronaldo Faleiro. Montreal (Québec)/Carnières (Morlanwelz): Jeu/Lansman, 2001.
_______________Performance e performatividade: o que são os estudos
performáticos? In: Sobre Performatividade. Edélcio Mostaço, Isabel Orofino, Stephan
Baumgartel, Vera Collaço (organizadores) – Florianópolis: Letras Contemporâneas,
2009.
MARINIS, Marco De. 5. La riscoperta del corpo [A Redescoberta do Corpo], p.
129-158, in In cerca dell´attore. Un bilancio del Novecento teatrale [Em busca do Ator.
Um balanço do século XX no Teatro]. Roma: Bulzoni, 2000. Tradução inédita de José
Ronaldo Faleiro.

MOSTAÇO, Edélcio. Fazendo cena: a performatividade. Sobre Performatividade.


Edélcio Mostaço, Isabel Orofino, Stephan Baumgartel, Vera Collaço (organizadores) –
Florianópolis: Letras Contemporâneas, 2009.
QUILICI, Cassiano S. O Treinamento do Ator/Performer: Repensando "O Trabalho
Sobre Si" a Partir de Diálogos Interculturais. In: Urdimento n° 19, Universidade do
Esado de Santa Catarina, Sc. Novembro de 2012
SCHECHNER, Richard. “O que é performance?” in: Performance studies: an
introduccion, second edition. New York & London: Routledge, p. 28-51. tradução de r.
l. almeida. 2006.
____________________ Performer. In: Sala preta 9. USP, São Paulo, SP, 2010.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

CALÇANDO UM SAPATO APERTADO: OS CAMINHOS E O PERCURSO DE


UMA EXPERIÊNCIA IMPROVISACIONAL

Cristóvão de Oliveira; Professor Assistente; Faculdade de Artes do Paraná/UNESPAR –


Universidade Estadual do Paraná

Muitos de nós temos uma história com sapatos apertados. É comum querermos muito
um sapato mesmo que este não sirva bem. Talvez pelo modelo, talvez pela moda, talvez pelo
simples fato de ser um sapato que agrade ou ainda, pela necessidade de se calçar um sapato,
qualquer que seja, apenas para ter um sapato que calçar.
Quando usamos um sapato menor que nosso tamanho, vivemos a sensação do aperto,
do sufocamento. Sentimos nossos pés espremidos, sem espaço para respirar, para se adequar.
Sentimos, ainda, a dificuldade de pisar com firmeza, de equilibrar nosso peso e nossa
velocidade no caminhar, tentando ser mais leves ou mais lentos, experimentando pisar em
terrenos mais suaves ou menos acidentados.
Quando caminhamos calçando um sapato apertado, vivemos a sensação de querer
chegar logo ao nosso destino para libertar os pés, para respirarmos aliviados, para pisarmos
com tranquilidade no chão e esparramarmos nosso corpo sobre a carne amassada e sentir-se
livres.
Neste texto, serão discutidas algumas ideias e determinadas noções que fazem uma
aproximação poética com esta experiência dos sapatos apertados. O intuito principal é
apresentar alguns contornos de uma experiência improvisacional bastante relevante no
contexto não só das práticas artísticas mas da conformação de uma possível metodologia para
o ensino de novos procedimentos improvisacionais bem como sua aplicação nos mais
diversos processos criativos.
Aqui, serão tratadas algumas questões sobre as estratégias de criação e os
procedimentos de trabalho do Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade. A
constituição deste grupo se deu a partir de um Projeto de Extensão da professora Ana Cristina
Fabrício que desenvolve, há muitos anos, pesquisas práticas a partir da improvisação. Como
um desdobramento natural da disciplina “Jogos e Improvisação”, componente da grade
curricular dos cursos de graduação da Instituição, este projeto de extensão nasceu da
necessidade docente de investigar determinados aspectos relacionados à experiência
improvisacional que se encontram por trás das regras de jogo e para além das dinâmicas
cômicas.
Assim, em seu primeiro ano de atividades, o trabalho do grupo se pautou pela
aplicação e desenvolvimento de determinado vocabulário de base visando, sobretudo, a
instrumentalização do ator no uso de técnicas e procedimentos de improvisação. A estrutura
desenvolvida se construiu a partir da criação de cenas curtas elaboradas sobre o pressuposto
de jogo à sombra das noções clássicas da improvisação, pautadas em teóricos como Keith
Johnstone, Viola Spolin e Sandra Chacra, entre outros.
Em sua segunda formação 1 , as atividades do Grupo Tosco se desenvolveram
tomando, como pressuposto, a improvisação não-cômica. Nesta seara – e a título de
instrumentalização de integrantes novos – foram retomadas algumas dinâmicas anteriores
mas, sobretudo, foi-se desenvolvendo um novo vocabulário mais vinculado às práticas de

                                                                                                               
1
Faz parte da dinâmica do grupo a entrada e saída de integrantes devido ao vínculo com a Instituição durante a
graduação. Outrossim, por se tratar de um projeto de extensão, há a abertura para pessoas da comunidade. A
cada ano, faz-se uma chamada para a seleção de novos integrantes.
corpo, estabelecendo um léxico – oral e também corporal, sintático mas também sinestésico –
a partir do qual as atividades do grupo se apoiaram.
É para a experiência onde se funda este léxico que nos interessa olhar neste texto.

UM LÉXICO

Faz parte de toda experiência artística a definição de um vocabulário a partir do qual


um entendimento direto se dê por via das noções vinculadas a este vocabulário. Quando a
experiência acontece em grupo, mais importante ainda é possuir tais ferramentas a fim de
potencializar a criação.
No Grupo Tosco de Improvisação e Espetacularidade, há em voga um extenso
vocabulário – teórico e prático, por assim dizer – que determina os encaminhamentos da
experiência. Neste léxico, tomam parte desde noções próprias da improvisação até conceitos
inerentes às elaborações poético-estéticas próprias do campo filosófico.
Desta feita, a apropriação que se faz de determinados conceitos faz valer os
entendimentos e as noções que engendram critérios capazes de delimitar as leituras que
emergem da experiência improvisacional.
Para citar um exemplo, é importante enfatizar que todo o desenvolvimento do
trabalho do grupo parte do corpo do ator em dinâmicas as mais variadas. Um dos
procedimentos mais comuns é iniciar a prática com um exercício intitulado “Mapa”. Neste,
os atores se distribuem no espaço e, estabelecendo um vínculo perceptivo entre si, tem como
“regra” mover-se passo a passo pelo espaço sem perder a conexão inicialmente estabelecida.
Podemos notar que este simples exercício é semelhante a vários outros muito básicos
que costumamos [re]conhecer com facilidade. Contudo, aqui este procedimento expande as
fronteiras do simples “passo a passo no espaço” para desencadear, no ator, as mais complexas
estratégias criativas. Primeiro, por determinar um caráter de “contaminação” em que um
simples movimento ou gesto de um ator pode atravessar o espaço criativo de outro[s],
influenciando seu modo de [re]agir em sua própria busca criativa. Segundo, porque esta
estratégia de contaminação dispara com a subjetividade, gerando imagens que se reconhecem
como um universo narrativo que determina o que se tornará [ou não] a cena improvisada.
O conceito de “mapa” não é novo. Encontramos uma transversalidade em Deleuze
quando consideramos o rizoma naquilo que corresponde à cadeia, aos pontos singulares, à
multiplicidade, à cartografia.
A ideia própria de mapa está vinculada ao princípio de que é uma experiência
ancorada no real, de modo que ultrapassa a possibilidade de reprodução no sentido da réplica,
mas que se estabelece pela disseminação, pela percepção dos deslocamentos, pela disposição
intersubjetiva dos corpos já que “o mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele
mesmo, ele o constrói” (DELEUZE, 2011, p. 30).
O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,
suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um individuo, um
grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como uma
obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma meditação.”
(DELEUZE, 2011, p. 30).

Portanto, percebemos no discurso do Grupo Tosco, uma conjunção de ideias práticas


(a distribuição no espaço, o mapa como ferramenta de um exercício corporal) e fundamentos
teóricos (a dimensão processual do exercício, o mapa como conceito para entender a prática e
fundamentar as elaborações poéticas do grupo).
Colada a esta conjunção de ideias, a “Arquitetura” vem como um conceito vinculado
ao “Viewpoints” (técnica preconizada por Anne Bogart), muito utilizada pelo grupo para se
referir ao uso do espaço cênico, à distribuição dos corpos neste espaço e sua disposição
cênica. Deste modo, falar sobre a arquitetura da cena, considerando os entendimentos a ela
vinculados, torna-se inerente à prática do grupo.
Percebemos, então, ao falar sobre a constituição de um léxico, que no caso do Grupo
Tosco seu vocabulário estabelece parâmetros e padrões que constituem uma dinâmica capaz
de alinhar diversos dos objetivos que o projeto de pesquisa pressupõe, especialmente no que
diz respeito a investigar a Espetacularidade a partir de procedimentos improvisacionais.
Ademais, é importante ressaltar que o léxico do grupo está vinculado a conceitos teóricos que
sustentam as leituras que o grupo faz do próprio trabalho, da cena improvisada e, então, do
espetáculo que experimenta construir a partir da improvisação.
A esta altura talvez seja importante falar sobre como se procedem as dinâmicas
improvisacionais que culminam na Espetacularidade. Como dito anteriormente, o trabalho do
Grupo Tosco inicia sempre com algum exercício físico que estabeleça alguma relação com o
espaço. Além do exercício “Mapa”, o grupo dispõe de uma série de outros dispositivos de
jogo que se pautam no corpo como pressuposto das dinâmicas que se estabelecem.

A DINÂMICA DOS CORPOS NO ESPAÇO

Criar um movimento e repeti-lo. Fluir para outro movimento e mais outro até gerar
uma sequência que se repete. A partir daí, se relacionar com a sequência de movimentos de
outra pessoa até se converter em uma quase-dança que, além de vincular os indivíduos no
jogo também instaura núcleos e determina sua relação com o espaço.
Esta descrição refere-se a um exercício muito importante que costuma ser chamado de
“Chacrinha”. A própria denominação joga com a ideia de brincadeira, em que o que conta é a
possibilidade de se valer de um movimento livre para a elaboração de uma estrutura que vai
se complexizando à medida em que avança.
Assim, uma quase-dança torna-se potente o suficiente para instaurar um ambiente
criativo de múltiplas possibilidades. O pensamento torna-se não mais um reflexo da
linguagem verbal – a despeito do léxico do grupo – mas das imagens que o corpo gera. A
leitura que se estabelece a partir de exercícios com a “Chacrinha” funda um modo de pensar
arraigado sobretudo no corpo e, deste modo, as elucubrações que daí surgem estão fundadas
neste pensamento que é, antes de mais nada, corpóreo.
Trata-se de uma “atividade reflexiva” (SOMBRA, 2006) onde o pensar-em-ação
estabelece contornos muito mais borrados e, portanto, difíceis de definir, para a experiência.
Neste sentido, tais dinâmicas corporais remontam ao pensamento de Merleau-Ponty que
preconizava a importância de se partir da experiência para, então, se chegar ao sentido das
coisas.
José Carvalho Sombra (2006) faz uma bela abordagem desta conjunção ao destacar a
percepção como meio através do qual o corpo desencadeia ocorrências subjetivas, partindo
das singularidades: “o corpo próprio, tal como eu existo e o reconheço como meu corpo, o
corpo que eu vivo, que eu sou e que eu tenho, o qual se conduz como sujeito de meus desejos,
intenções e movimentos” (SOMBRA, 2006, p. 25).
Portanto, se consideramos que o corpo é condutor de leituras que estão para além da
linguagem verbal, o que “lemos” deste corpo é o que ele conduz como mediador, como meio
através do qual as percepções se comunicam, já que “o corpo é sempre o estado de um
processo em andamento de percepções, cognições, ações” (SETENTA, 2008, p. 38).
Ao concatenarmos o entendimento de percepção ao que o corpo comunica,
estabelecemos uma possibilidade de leitura mais vinculada às imagens que lemos e, então, o
sentido das coisas torna-se poroso. Acima de tudo, ao restituir às percepções o caráter
hegemônico das práticas do Grupo Tosco, assumimos que a experiência improvisacional se
concretiza enquanto uma atividade reflexiva, ou seja, no momento mesmo em que se faz, se
pensa e, portanto, se diz.
Nas práticas deste grupo, entende-se desde logo que não é possível falar do que
poderia ser feito senão daquilo que se experienciou, ou melhor, não somos capazes de
elaborar um sentido para uma experiência se não a percepcionamos. Em outras palavras
ainda, não é possível projetarmos o que gostaríamos de ter visto sem ter vivido aquela
experiência. Então, é muito comum falarmos de algo que “pensávamos” ter “lido” no
trabalhos dos atores que jogam acreditando que a cena improvisada teria sido melhor caso
fosse da maneira como a estávamos lendo.
Contudo, há uma estratégia presente nestas dinâmicas do Grupo Tosco que aponta
para a percepção como um princípio maior no(s) olhar(es) que estabelecem estas leituras
todas: a proposição das imagens como dispositivo de jogo a partir do qual a cena é
improvisada. Neste sentido, a profusão de imagens desencadeia um universo narrativo
estabelece pequenas células poéticas que, por sua vez, engendram um discurso cuja cena se
desenvolverá em seu entorno.
Como a geração de mapas está relacionada às percepções do ator em jogo/cena, as
dinâmicas corporais adotadas pelo grupo se mostram mais potentes que a palavra, seja em sua
formulação reflexiva – através das leituras que os integrantes fazem de suas experiências
improvisacionais – seja em seu território de ação – através dos diálogos improvisados em si.
Ocorre que as imagens geradas a cada dinâmica corporal ou em cada cena
improvisada são absolutamente porosas e colocam diante dos atores uma série de fissuras a
serem preenchidas, por isso a importância de ancorar a experiência improvisacional nas
percepções:
As imagens são extremamente maleáveis e transitórias, indicando o princípio
subjacente a todas as percepções: os mecanismos de percepção estão envolvidos em
negociações, acordos de correlações estatísticas com o ambiente, para que se
compreenda porque cada imagem é uma imagem, ou seja, que existe um sentido
transitório em cada imagem. (BITTENCOURT, 2012, p. 29).

As dinâmicas corporais, face ao repertório construído e experimentado pelo grupo,


são sem dúvida mais potentes que a palavra. Em termos de discurso, geram possibilidades
mais abrangentes, mais porosas, mais abertas pois permeiam um espaço criativo conformado
por um sentido que não é lógico, mas perceptivo.
As metáforas corporais, por outra via, podem promover um outro lugar para a
narrativa - quando a palavra se manifesta - já que aciona a percepção de si e do outro de um
modo menos "interpretativo".
O andamento da experiência é pontuado pelas metáforas corporais; neste sentido,
cada ator estabelece um território de ação que é permeado pelo espaço do outro, configurando
uma topologia que não está claramente demarcada já que tais espaços são permeados pela
contaminação. É claro, então, que o corpo propositor como elemento criativo que gera
espaços de contaminação, permite que os territórios de ação se tornem espaços abertos, onde
um preenche a fissura do outro.
A narrativa, portanto, se conforma em um tipo de discurso que não é do sentido, mas
da percepção. Talvez esta seja a dificuldade em preservar a percepção já que o lugar da
palavra é, culturalmente, o da lógica.
Então, se o corpo é a imagem em ação, em movimento, podemos afirmar que as
imagens que o corpo gera são uma “conjunção sígnica de sentidos, percepções e ações”
(BITTENCOURT, 2012, p. 34) onde os sentidos são determinados em sua elaboração poética
– ou seja, a leitura discursivo-reflexiva – as percepções são determinadas pela relação de jogo
que se estabelece na cena através das estratégias e dos procedimentos de criação e as ações
são determinadas pelos espaços a serem preenchidos em seu fazer-dizer do corpo (Setenta,
2008).
Adriana Bittencourt (2012) afirma que as imagens que se manifestam são ideias do
corpo. Neste sentido, tal afirmação conflui para os estudos de António Damásio (2011)
quando ele diz que “as imagens representam as propriedades físicas das entidades e suas
relações espaciais e temporais, bem como suas ações. Algumas imagens, que provavelmente
resultam de um mapeamento que o cérebro faz dele próprio no ato de mapear, são muito
abstratas” (DAMÁSIO, 2011, p. 96).
Se o corpo gera imagens, o cérebro gera mapas. Contudo, este mapeamento que o
cérebro faz trata-se em primeira instância fisiológica já que o cérebro é um órgão dotado de
tais capacidades. Mas se considerarmos a percepção deste mapeamento, o corpo inteiro age.
Os mapas cerebrais não são estáticos como os da cartografia clássica. São instáveis,
mudam a todo momento para refletir as mudanças que estão ocorrendo nos neurônios
que lhes fornecem informações, os quais, por sua vez, refletem mudanças no interior
de nosso corpo e no mundo à nossa volta. As mudanças nos mapas cerebrais também
refletem o fato de que nós mesmos estamos constantemente em movimento. Vamos
para perto de objetos, nos afastamos deles, podemos tocá-los, não podemos mais,
podemos provar um vinho, depois o gosto desaparece, ouvimos uma música, logo ela
termina; nosso corpo muda conforme as diferentes emoções, e diferentes sentimentos
sobrevêm. Todo o ambiente oferecido ao cérebro é perpetuamente modificado, de
modo espontâneo ou sob o controle de nossas atividades. (DAMÁSIO, 2011. pp. 91-
92).

Portanto, se o corpo é o espaço físico das ideias e perceber já é agir, as imagens são
geradas através de nossos mapeamentos cerebrais. Trata-se de um fenômeno convergente
entre objetividade e subjetividade, de definição das atividades reflexivas e das elaborações
poéticas que fazemos a partir do vocabulário que define nosso léxico (teórico e prático).

DO AQUECIMENTO CRIATIVO À ESPETACULARIDADE

Como sabemos, um dos principais objetivos do Grupo Tosco é investigar a


Espetacularidade a partir de experiências improvisacionais. Para tanto, vale-se de um
amálgama de procedimentos e estratégias que lhe dá suporte para a criação. Igualmente, há a
conjunção de elementos constituintes do espetáculo, especialmente a estreita relação com
sonoplastia e iluminação – elementos primordiais da cena improvisada e fundamentais para a
definição do que convencionamos entender como “espetáculo”. Sobretudo, o que mais se
enseja nesta busca do grupo é a relação com o público e suas possibilidades de leitura desta
experiência.
É aí que o sapato aperta!
Antes de se chegar ao espetáculo, é importante falar sobre o trabalho do grupo sob a
perspectiva do aquecimento, que já é criativo desde o momento em que os atores se colocam
em atividade. Então, disto a que chamamos no grupo de “Aquecimento Criativo”2, surgem
                                                                                                               
2
O “Aquecimento Criativo” é uma formulação que o autor utiliza para investigar a não separação entre
preparação e criação, considerando as singularidades do ator. Assim, parte-se do aquecimento funcional
(alongamentos, espreguiçamentos, etc) como disparador para ocorrências já criativas, potencializando o
movimento, gerando imagens e criando possibilidades cênicas. Este procedimento é desenvolvido na disciplina
“Projeto de Investigação da Cena II – Dramaturgia do Corpo.
potencialidades que se convertem em intensidades para uma possível cena; destas
possibilidades criativas que se manifestam desde o trabalho coletivo, emergem as células
poéticas que se encaminham para o desenvolvimento da cena em um contexto narrativo ou
universo dramatúrgico, revelando a Espetacularidade a partir da improvisação não-verbal.
Trata-se de um panorama de intensa potência, uma vez que o corpo-imagem gera um
discurso para a cena e, portanto, os atores devem alimentar suas percepções para que, quando
vem a palavra, o texto preencha e não redunde a cena. Nesta circunstância podemos observar
que, quando vem a palavra, o corpo tende a ir para outro lugar como se pudesse se anular em
função da palavra. O corpo, sempre presentificado pela experiência em curso, mantém-se
potente, mas como se estivesse em stand-by por conta do texto verbalizado.
Um outro fator valioso nas experiências improvisacionais do Grupo Tosco é que, no
escopo de suas atividades, são utilizados termos como “Contaminação” e “Atualização” para
o desenvolvimento da cena.
De forma superficial, podemos dizer que a “Contaminação” é entendida não como a
reprodução de movimentos que se experimentam de um ator para outro mas sim a réplica, ou
seja, jogar o mesmo jogo, pulsar da mesma maneira, fluindo para uma relação de afecção.
Quando o trabalho está na contaminação, existem atravessamentos e imagens muito potentes
se manifestam e podem ser plenamente investigadas pelos atores.
Já a “Atualização” é um termo utilizado pelo grupo como princípio fundamental da
improvisação propriamente dita mas, sobretudo, na construção da cena improvisada.
Atualizar significa receber todas as proposições, não desperdiçando nenhum impulso ou
nenhuma informação nova que se manifeste no momento mesmo em que a experiência
acontece.
Então, ao considerar que as dinâmicas corporais se constituem como o elo principal
que mantém vinculadas preparação e criação, surge uma questão ainda a ser respondida: qual
o real tempo do acionamento dos códigos criativos? Quando tem sonoplastia, por exemplo, o
ator tende a se deixar fluir na experimentação até que o desejo de falar ou a cena se
manifestem como uma pulsão maior que o puro exercício do corpo. Ao tirar a música desse
processo perceptivo, parece que a subjetividade vai encontrando novas estratégias de
“manifestação”.
Aí vemos o quanto o léxico do grupo vai “apertando o pé” na medida em que seu
próprio vocabulário engendra estratégias e procedimentos de criação nem sempre claros, pois
os dispositivos – recursos que são usados na experiência improvisacional – não se organizam
estaticamente senão pela organicidade com a qual os atores os manipulam.
Desestabilizar os dispositivos que estão se engessando, porém, começa a ser um dos
desafios do Grupo Tosco, já que estes requisitam permanecer vivos e pulsantes para que
sejam utilizados de forma orgânica e não impositiva. Dentre tantos aspectos inerentes às
experimentações aqui apresentadas, o ponto de maior fragilidade é, justamente, a culminância
na Espetacularidade.
Se de um lado vemos a dimensão processual do espetáculo absolutamente aberta –
desde o aquecimento criativo, passando pelas dinâmicas corporais, o emprego da linguagem
verbal e a definição do universo narrativo – de outro lado nem sempre a experiência se
converte em uma cena improvisada com contornos espetaculares.
Ciosos de tal fragilidade, os integrantes do grupo investem no aprofundamento do que
chamam “Dispositivos de Transição” a fim de estabelecer novos parâmetros para a
concretização da Espetacularidade a partir da improvisação.
Investigar a transição das ações na conjuntura do grupo é importante já que tais
dispositivos já estão arraigados. Isso significa que há uma percepção ampliada com relação a
eles: quando acionados, há um trânsito entre o que estava acontecendo e uma ação nova.
Portanto, os saltos não são claros, as rupturas não são definidas ou definitivas.
É neste ponto que o sapato apertado pode causar um calo.
É neste ponto que a(s) noção(ões) de “Escuta” do grupo – enquanto percepção
ampliada – ganha importante status na conformação da cena. Ecoando a pergunta de Tatiana
Mota Lima (2012), perguntamos se os códigos estabelecidos pelo Grupo Tosco não estariam
muito objetivados, impedindo que outros fluxos circulem na experiência improvisacional.
Isto quer dizer que, talvez, o que ocorre é que há o acesso a uma “escuta objetivante, ou seja,
que mantem/constrói um espaço exterior que deverá ser rapidamente lido pelos atores, e ao
qual eles devem estar atentos e com o qual devem estar sintonizados para que possam
produzir uma resposta corporal condizente” (LIMA, 2012, p. 4).
Aqui surge uma questão difícil de ser esgotada, posto que não é possível chegar a uma
composição cênica, ou à Espetacularidade, sem certa objetivação. Contudo, uma das
dificuldades observadas no escopo das pesquisas desenvolvidas por este grupo é que as
singularidades agem por vezes fora das intensidades, isto é, certas ocorrências subjetivas dos
atores – que se apresentam como necessidades – são deixadas de lado em detrimento da
relação coletiva estabelecida pelas noções de escuta em voga. A isto, Lima (2012) chama de
“volúpia pela produção de acontecimentos” no sentido de que, em geral, se estabelece uma
excitação ou prontidão que impele o ator a já criar uma cena – dialogada ou não – ou a estar
sempre conectado, sempre “ligado” ao que acontece em seu entorno quando outras pulsações
[individuais] estão sendo desprezadas em função da composição da cena e/ou do trabalho
coletivo.
A própria noção de “Contaminação” – no que diz respeito a afetar-se pelo outro e
“jogar o seu jogo” – mostra-se objetivante: de repente não está sendo uma contaminação de
fato, mas uma necessidade de contaminar que se antecipa ao contaminar-se. O senso de
contaminação mostra-se prosaico pois já está se encaminhando para o lugar-comum. Em
termos de dinâmicas corporais, por exemplo, poderíamos novamente citar o exercício
“Mapa” para argumentar que em muitos casos os atores apenas se deslocam no espaço
conectados um aos outros mas não necessariamente estão afetados; absorvem os movimentos
que são propostos mas não estão precisamente atravessados pelas pulsões que circulam,
partem para certos universos narrativos sem que antes o discurso dramatúrgico se apresente
com clareza e/ou potência necessária(s) para se tornar espetacular.
A própria prática engendrou um hábito que, talvez inesperadamente ou contra a
vontade, opera certo tipo de autoridade ou hierarquia que, por vezes, domina a experiência
improvisacional, tirando-a das ocorrências subjetivas para a objetividade pura e simples da
cena.
Podemos dizer que uma das estratégias de desestabilização deste tipo de controle seja
a importância em se trabalhar a sensibilidade para perceber quando há um desejo particular
do ator por investigar suas singularidades para que o movimento não esteja pelo movimento,
mas que se torne afetação, antes da contaminação. Contaminar não é afetar, necessariamente.
Percebe-se que, às vezes, o ator está manifestando o desejo de investigar determinada
corporeidade em detrimento da contaminação, mas como contaminar tem se exercitado como
uma necessidade, o investigar as necessidades não está gerando intensidades.
E como a Espetacularidade é um dos objetivos fundantes da pesquisa a partir das
experiências improvisacionais, às vezes é realmente necessário saltar algumas etapas para
que a busca individual não fique ensimesmada.
Mas é certo que, em dado momento, há que se abandonar determinados
pressupostos... Para que a cena se crie e seja potencializada enquanto Espetacularidade, não é
preciso estar junto o tempo todo com o corpo do outro, trabalhar sempre em conjunto, estar
sempre “em cena”, etc. O exercício da criação de um espetáculo a partir da improvisação cria
este falso entendimento de que todos os atores devem estar na cena sempre.
Naturalmente, surgem diversas cenas paralelas que, tal qual a maioria dos jogos de
improvisação, acabam por poluir ou dificultar a elaboração espetacular. Apesar disso, há um
constante olhar para tais ocorrências de modo a possibilitar que os atores criem estratégias
não-convencionais de desencadeamento da cena, aproveitando e potencializando as
dinâmicas corporais, os discursos (verbais ou não) e as relações que vão se construindo na
conformação da cena enquanto espetáculo.
Certamente, por fim, tais estratégias valem-se de uma subjetividade muito grande dos
atores e, em termos de acabamento, deixam a desejar certa fluência na leitura do espectador
por se tornar, geralmente, muito abstratas, posto que as experiências improvisacionais vividas
pelo Grupo Tosco são singulares e irrepetíveis.
Costumamos acreditar que não é possível calçar um sapato apertado depois de ter
feito uma longa caminhada com ele. Surgem calos, os pés doem, os dedos se dobram... Faz
parte, também, desta figura de linguagem a ideia de que só calçando um sapato apertado é
que temos consciência dos pés, para cuidar onde se pisa.
No caso do Tosco – Grupo de Improvisação e Espetacularidade, não trata-se de uma
metáfora pejorativa. É mais como uma “nota mental” que nos dá suporte para seguir com a
busca, apesar das dificuldades ou das complexidades [que são muitas].
Não é um sapato apertado no mau sentido.
É um sapato apertado pois já não cabem nele tantos pressupostos.
É um sapato apertado pois já não cabe ali tanta experiência.
É um sapato apertado pois queremos muito calçá-lo – e tanto o queremos, que nos
esprememos nele para seguir caminhando.
Mas calçamos este sapato. E propositalmente apertado para que possamos lembrar, a
cada passo, que ele está ali.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Adriana. Imagens como acontecimento: dispositivos do corpo,


dispositivos da dança. Salvador: EDUFBA, 2012.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia 2, vol. 1.
Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Celia Pinto Costa. 2ª Edição. São
Paulo: Ed. 34, 2011.
LIMA, Tatiana Mota. A noção de escuta: afetos, exemplos e reflexões. In: Revista do
LUME – Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, n. 2, nov. 2012.
Disponível em:
http://www.cocen.unicamp.br/revistadigital/index.php/lume/article/viewFile/149/148.
Acessado em: 07/07/2014.
SETENTA, Jussara Sobreira. O fazer-dizer do corpo: dança e performatividade. Salvador:
EDUFBA, 2008.
SOMBRA, José de Carvalho. A subjetividade corpórea: a naturalização da subjetividade na
filosofia de Merleau-Ponty. São Paulo: Ed. UNESP, 2006.
Tema: TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

TRÊS OLHARES PARA O ESPAÇO NA CENA

Daves Otani (Bolsa CAPES Doutorado e Escola Superior de Artes Célia


Helena; orientadora: Prof.ª Dra. Verônica Fabrini Machado de Almeida;
Instituto de Artes; UNICAMP).

O espaço não é o ambiente (real ou lógico) em que as coisas se


dispõem, mas o meio pelo qual a posição das coisas se torna possível
(MERLEAU-PONTY, 1999, p.328).

O que importa para a orientação do espetáculo não é meu corpo tal


como de fato ele é, enquanto coisa no espaço objetivo, mas meu corpo
enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo “lugar”
fenomenal é definido por sua tarefa e sua situação (MERLEAU-
PONTY, 1999, p.333).
Maurice Merleau-Ponty, em “A Fenomenologia da Percepção”.

O espaço na cena, os espaços da cena. A cena se dá em um espaço


externo (1): em um prédio adaptado, em um teatro propriamente dito, em uma
sala; são diversas possibilidades. Esse espaço ganha um novo sentido na
medida em que olhamos para ele como um espaço da cena, ele é “um meio
pelo qual se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.328) criar um jogo de
imaginação; ou seja, se estabelece uma nova dimensão do espaço quando
atores e plateia convencionam vivenciar o universo do teatro nesse ambiente.
Importante no presente olhar sobre a cena é também o espaço imaginário da
fábula (2). O espaço imaginário é uma circunstancia que deriva da fábula, o
lugar em que está o ator nessa circunstância fictícia. Proponho, ainda, o
espaço interior do ator (3), onde se processa a ação interior, como caracterizou
Stanislavski, que define a ação como interior e exterior1. O espaço interior, além
de subjetivo, psicológico, é também um espaço fisiológico, ele é marcado pela
biologia do ator, é sangue, veias, fluidos, é o lugar da experiência das
sensações vivas; dos sentimentos, das imagens. Foi a partir da percepção e da
observação do meu processo de atuação na “Boa Companhia2” que classifiquei
o espaço nestas três formas: externo, imaginário e interior. Esta classificação é
resultado direto de uma vivência que provocou a necessidade de adaptar-se a
cada diferente local (inúmeros e diversos) que os espetáculos se
apresentavam. Portanto, se faz necessário manter-se fiel às bases da atuação

1
Naturalmente o elo entre o corpo e a alma é indissolúvel. A vida de um gera a vida da outra, e vice-
versa. Em toda ação física, a não ser quando é puramente mecânica, acha-se oculta alguma ação
interior, alguns sentimentos. Assim é que são criados os dois planos da vida de um papel, o plano
interior e o plano exterior. Estão entrelaçados. Um propósito comum os aproxima ainda mais e reforça o
elo inquebrantável que há entre os dois. STANISLAVSKI, Constantin. A criação de um papel. Tradução
de Paulo de Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. P. 270.
2
“Boa Companhia” (www.boacompanhia.art.br) é o grupo teatral no qual atuo desde 1992 (desde a
Graduação em Artes Cênicas na UNICAMP), como ator e gestor. Dirigido artisticamente por Verônica
Fabrini e sediado em Barão Geraldo o grupo é também formado atualmente pelos atores Alexandre
Caetano, Eduardo Osorio e Moacir Ferraz. Realizei com o grupo mais de 20 peças como ator, entre elas,
“Primus”, „Portela, patrão; Mário, motorista” (também diretor em parceria com Eduardo Osorio e co-
direção de Verônica Fabrini), “O Artista da Fome”, entre muitas outras.
e, ao mesmo tempo, estar aberto a especificidade de cada novo espaço
externo, tal necessidade concreta é que edifica a reflexão sobre os espaços.
Merleau-Ponty diz, na afirmação acima, que o “espaço não é o ambiente (real
ou lógico) em que as coisas se dispõem, mas o meio pela qual a posição das
coisas se torna possível” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 328). Ao espaço físico,
referente às condições do lugar enquanto arquitetura; que torna possível a
posição das coisas palpáveis chamo de espaço externo (1). As reflexões sobre
esse aspecto se orientam primordialmente pela ocupação coletiva,
coreográfica, e relaciona-se à memória seletiva espacial. O espaço imaginário
(2) está de forma intrínseca ligado ao espaço interior (3), por depender da
relação interior do ator com a circunstância do acontecimento cênico, mas
concerne também a um aspecto coletivo; é o espaço onde os atores estariam
se fossem3 esses personagens. O espaço imaginário não é um espaço
permanente de referência para o ator no momento da atuação, ele diz respeito
à circunstância e gera elementos que podem alimentar a imaginação em lapsos
instantâneos, ou como recurso de concentração e prontidão, por exemplo,
como retomada da memória das circunstâncias. Como ator percebo que, em
momentos pontuais, retomo a atenção ao espaço imaginário, tal retomada me
permite reconstruir minha atenção na cena. Tal classificação, a meu ver, deriva
do conceito stanislavskiano do círculo de atenção:

A ideia desse elemento veio da comparação com certas características


da nossa visão. O olho humano abrange um campo de visão de quase
180 graus. É fácil constatar isso na prática. Estendam os braços para
frente e depois lentamente, pouco a pouco, afastem as mãos uma da
outra. [...] Nessa posição, se quiserem ver em detalhes as suas mãos,
isto é, se prestarem muita atenção às mãos, constatarão que deixarão
de enxergar o que está a sua frente. E, pelo contrário, se prestarem
muita atenção ao que se achar na sua frente, a visão das extremidades
quase desaparecerão (KUSNET, 1992, p. 49).

Na busca por uma reflexão que parta da definição de Kusnet para criar
questões próprias, vejo que voltar a atenção ao espaço imaginário é uma
possibilidade de concentrar-se na circunstância, no sentido de aguçar a
sensação coerente com a cena. Assim, em momentos em que houver
elementos que tendam a dispersar a atuação (lapsos de desconcentração de
um ator, pequenos imprevistos na cena ou na plateia), a retomada da sensação
do espaço imaginário pode reconectar o ator na cena. É um fator que pode
estimular a recuperação do ritmo cênico do ator, inclusive, para ajudar na
reconstrução da atenção coletiva. Seria um “círculo de atenção interior” a partir
de um dado já estruturado; por isso, improvisar como se estivéssemos no
espaço imaginário da fábula são maneiras de proporcionar materiais para o
ator, eventualmente, recorrer diretamente a tais sensações para reestabelecer
3
Mal havia pronunciado o “se” mágico e senti como se alguma coisa me tivesse atingido pelas costas.
Comecei a correr, mal sabia o que estava fazendo, e de repente me achei dentro do meu quarto de hotel
imaginário. STANISLAVSKI, Constantin. A criação do papel, op. cit., p. 265. Stanislavski, em suas
principais obras, constantes de nossa bibliografia, define o mágico se fosse como um recurso para agir na
situação imaginária da personagem: o que eu, ator, faria, se fosse essa personagem, nessa situação. Nesse
caso nos referimos a uma intenção coletiva de criar um espaço imaginário, pois em “Primus”, todos os
atores são o mesmo personagem, na maioria das vezes, na mesma situação; embora cada ator tenha sua
própria imagem e seu próprio espaço interior, o estímulo para a improvisação é de um mesmo espaço
imaginário.
seu espaço interior. O espaço interior é a terceira maneira de olhar para o
espaço da cena que proponho.
Esse terceiro espaço, o espaço da imagem interior do indivíduo, é a
experiência subjetiva do intérprete; uma subjetividade que se liga aos objetivos
da personagem e da encenação; é um espaço psicofísico onde se processam
as memórias pessoais e coletivas, as lembranças, a poesis de cada um, lugar
da carne e do espírito do ator, é a morada da imagem interior. O espaço interior
é o lugar da potência íntima, é onde se dá a manifestação única do indivíduo,
espaço da imaginação do ator, onde ele processa sua pessoalidade. O ator
deve encontrar esse lugar em si mesmo, a cada montagem, com sua temática
e matrizes específicas. No processo de improvisação, as portas desses
espaços se abrem e o ator penetra em seus próprios ambientes secretos,
encontra atalhos, constrói caminhos, esculpe as chaves que voltarão a
conduzi-lo aos seus domínios.
Importante é, sobretudo, compreender cada um desses “espaços” como
um “lugar fenomenal cuja virtualidade de um corpo o define pela sua tarefa e
situação” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 333). Esses espaços existem como
propósito de viver o teatro, a intenção de imaginar um universo poético, de
jogar este jogo. No espaço externo os atores se colocam para viver uma
experiência imaginária, que supõe um espaço imaginário. Através de seus
espaços interiores os atores dão à experiência contornos íntimos, afetivos, no
entanto, de indivíduos que compõem um coletivo.
A tarefa e a situação dos que estão envolvidos no fenômeno conectados
à tarefa e à situação do ser imaginário motivam as conformações espaciais. O
que Merleau-Ponty chama de tarefa e situação, como definidores do espaço,
em afirmação citada4. No caso do ator em cena, relaciona-se com o que
Stanislavski nomeia de objetivo e circunstância5. Assim, o ator definiria o lugar
fenomenal do ser ficcional baseado na circunstância (situação) e no objetivo
(tarefa). Essa conexão (tarefa/ situação e objetivo/ circunstancia), na
improvisação, permite que se inaugure uma maneira de abordar o espaço e
suas características e que se inaugure o lugar fenomenal da cena – uma fusão
do espaço real, do espaço imaginário e do espaço interior. A abordagem ativa
do texto de referência de uma montagem (análise ativa) estabelece uma
ocupação do espaço externo a priori. Esse “desenho espacial” gerado
proporciona uma forma concreta de lidar com o conflito e determina, em certa
medida, uma atitude dos atores em relação às personagens, visto que opera
nas relações tarefa/situação e objetivo/circunstância.
Eugenio Kusnet apontou a associação dos conceitos de Stanislavski às
pesquisas científicas ligadas ao estudo do ser humano e de seus processos
perceptivos, como pode-se ver, de forma semelhante, na obra de Merleau-
Ponty:

4
Idem, ibidem, p. 328.
5
Nessa comparação, a tarefa seria a ação que o personagem realiza para conquistar seu objetivo,
mediante a situação / circunstância em que ele se encontra; essa fusão entre tarefa e situação é elevada a
um grau de complexidade que envolve o objetivo dos atores e o objetivo da encenação. Uso esse paralelo,
entretanto, a tarefa, no âmbito da conceituação de Stanislavski, não é, necessariamente, a ação. A tarefa é
o que a personagem faz, sem, necessariamente, traduzir a complexidade de sua ação maior. Por exemplo,
o personagem lava louça, essa é sua tarefa, contudo, sua ação é mostrar para alguém que também ajuda
nas tarefas domésticas, sua ação é mostrar-se colaborativo, e não apenas lavar louça. Para melhor
entendimento desses conceitos ver STANISLAVSKI, Contantin. A criação do papel, 2003, Op. cit.
A psicologia moderna praticamente confirmou o Método de
Stanislavski, corrigindo apenas a sua terminologia: o que
Stanislavski chamava „Circunstâncias Propostas‟, na linguagem
dos psicólogos, é chamado de „Situação‟; o termo „objetivo da
personagem‟, na psicologia é „necessidade‟, o mágico „SE
FOSSE‟ é „Atitude Ativa‟ na psicologia e, finalmente a fé cênica
de Stanislavski é equivalente a „Instalação” (KUSNET, 1992, p.
58).

Tais conceitos, tanto vindos do sistema de Stanislavski quanto da


fenomenologia fundamentam esta reflexão, porém, é importante buscar um
jeito próprio de articular tais conceitos em acordo com cada contexto de
trabalho. Portanto, embora as terminologias se diferenciem, é possível localizar
os princípios e perceber que as pesquisas de Stanislavski dialogavam com o
universo dos estudos do comportamento humano vigentes no seu tempo.
Compreende-se, desse modo, que a importância de sua obra está ligada a um
movimento histórico. Stanislavski trouxe o princípio da autonomia do ator na
criação cênica, a análise ativa, pressupõe, antes de tudo, o papel central do
ator no ato criativo.
Ressalto que a abordagem ativa do texto estabelece uma ocupação do
espaço externo a priori. Gera-se, desde o princípio, um desenho pelo espaço.
Esse “desenho espacial” proporciona uma forma de lidar com o conflito e
determina um caráter na ação dos atores. Por meio da exploração do espaço,
os atores passam a compreender os conflitos ativamente, e desde os primeiros
trânsitos moldam-se as relações cênicas também a luz da composição
espacial. O espaço é um elemento que ajuda a compor, inclusive, os
pormenores das personagens e suas relações. Por isso, a prontidão no
processo inicial é fundamental, uma atitude que dialoga com o aspecto
inaugural das improvisações primeiras. A atitude é conquistada também
ativamente.
O procedimento improvisacional seria, em si, uma possibilidade de
abordagem prática do conceito stanislavskiano de instalação. Ao colocar-me na
situação do personagem, eu ator, como se eu fosse este personagem, sinto
que posso me alocar nas tensões e potências necessárias à criação cênica.
Acreditar que a improvisação pré-estruturada e o período inicial preparatório da
montagem, se contundentemente experimentado, em sua objetividade retórica
e em sua subjetividade poética, é capaz de gerar o estado potente de
instalação que, a meu ver, é uma manifestação da fé cênica. A instalação se
faz, portanto, numa atitude ativa que é deflagrada na decisão do uso do
recurso “se fosse”. Portanto, no uso do conceito de fé cênica, como o propôs
Stanislavski e como expõe Kusnet, assim como no uso do conceito de
instalação, ou ação instaladora é fundamental que o ator acredite na imersão
do elenco nas matrizes criativas como um ato criador, tenha convicção e fé de
que esse período resulta em uma base de retomada e de mergulho no universo
da cena e que o instala nessa atmosfera da nova peça. É necessário ainda que
essa fé se torne ativa, que instalado o elenco nesse universo imaginário, ele
retome e reconstrua, frequentemente, suas atitudes e ações, voltado a essa
prática que germinou os materiais.
A ocupação do espaço, despertada em tal processo improvisacional, é
uma forma de discurso que tende a perdurar, na medida em que estabelece
algumas características à atuação. As distâncias e as linhas de ocupação do
espaço se caracterizam como traduções dos conflitos, encontrá-las, por meio
da ação improvisacional efetiva, proporciona que esse encontro já traga, por si
mesmo, raízes dos conflitos e das questões da ação imaginária. É salutar que
o ator-criador, amparado pela direção/ encenação, acredite nos primeiros
“passos” do personagem. Os criadores deixam que a memória da primeira
“dança pelo espaço” os conduza suavemente até a futura cena.
Essa geração de formas de ocupar espaços via a improvisação é um
recurso que ativa a memória em dois níveis, a novidade radical do instante,
vivenciada no processo criativo, fornece o impulso para a rotina da repetição, o
hábito como assimilação rotineira de uma novidade (BACHELARD, 2007, p 67),
indicando possibilidades de geração de materiais não programados
inicialmente.
Os trânsitos espaciais gerados durante o período de montagem
possibilitam aos atores uma superfície sólida, o “chão” a que já me referi, para
retomar a novidade do instante criativo e reapresentar o frescor da cena, como
em sua origem.
Essa novidade radical começa a ser semeada no envolvimento total dos
criadores no contato inicial com o universo do conto, semelhante ao que
Stanislavski diz sobre a primeira leitura:

As primeiras impressões têm um frescor virginal. São os


melhores estímulos possíveis para o entusiasmo e o fervor artístico,
duas condições de enorme importância no processo criador.
Essas impressões são inesperadas e diretas. Muitas vezes
deixam no trabalho do ator uma marca permanente. São livres de
premeditação e de preconceito. Não sendo filtradas por nenhuma
crítica, passam desimpedidamente para as profundezas da alma do
ator, para os mananciais da sua natureza, e muitas vezes deixam
vestígios inextirpáveis, que permanecerão como base do papel, o
embrião de uma imagem a ser formada.
As primeiras impressões são...sementes.(...) É tanta a força, a
profundidade e o poder de permanência dessas impressões, que o ator
deve ter especial cuidado ao travar conhecimento pela primeira vez
com a peça.
Para registrar essas impressões, é preciso que os atores
estejam com uma disposição de espírito receptiva, com um estado
interior adequado (STANISLAVSKI, 2003, p. 21-22).

O procedimento da aproximação à temática via a ocupação do espaço


externo pode trazer uma profundidade na relação do ator com a encenação,
profundidade nascida da ideia de cuidado, concentração e plenitude nos
contatos iniciais; é um modo de proceder que, acredito, pode ser utilizado em
processos criativos diversos. Sobretudo por meio de uma atitude seletiva
consciente por parte da direção e dos atores, nos momentos subsequentes à
prática improvisacional.
Esse procedimento requer um estado de atenção, um estado produzido
em uma ação instaladora – a disposição e disponibilidade criadora do ator no
processo criativo –, tal atitude é gerada a partir do momento em que o ator se
coloca na situação imaginária dentro deste processo. Segundo Kusnet,
comentando o livro A imaginação como fator de comportamento, do psicólogo
R. G. Natadze:
Ele define esse termo como segue: “instalação é o estado de prontidão
do sujeito para a execução de uma ação adequada, isto é, a
mobilização coordenada de toda a sua energia psicofísica, que
possibilita a satisfação de uma determinada necessidade dentro de
uma determinada situação” (NATADZE apud KUSNET, 1992, p. 54).

O espaço interior tem papel fundamental na novidade que resulta dessa


ação. Nele, a experiência é vivenciada e retomada. Diferentemente do espaço
externo e suas variáveis, o espaço interno guarda certa rigidez, as sensações
se repetem em áreas específicas do corpo. Certo é que a imagem que percorre
esse espaço é reconfigurada, posto que revivida. A essência do indivíduo se
abre à variação dessa imagem que o preenche. Um modo pessoal de
curiosidade, um jeito original de afetar-se, uma maneira particular de
experimentar as sensações da vida. Ainda que suscetível a transformações, a
essência individual se afeta mais lentamente, talvez no longo transitar das
idades e das condições gerais de cada vida. No entanto, o homem sente,
segundo creio, nas mesmas vísceras, outro amor e outro ódio. Cada dor e cada
alegria tem seu lugar em cada corpo. Vejo, na atuação, a carne como endereço
do habitual, uma mecânica de sangue e fluidos que percorre os mesmos
atalhos, dessa forma, a experiência instantânea, numa ação estética, revive-se
e atualiza suas expressões subjetivas em iguais locações de um mesmo corpo.
A subjetividade da imagem tem a mobilidade para reverberar diversamente no
seu espaço original, como que continuando um movimento interrompido, do
mesmo ponto, em um ritmo que reocupa o espaço da sensação sentimento: “A
energia não passa de uma grande memória” (ROUPNAEL apud BACHELARD,
2007, p.66). “Com efeito, ela só é utilizável pela memória, ela é a memória de
um ritmo” (BACHELARD, 2007, p. 66). O ator, corpo e espaço da imagem,
lugar de transição, percorrendo o espaço externo, adequando a sua corpografia
(o desenho em si mesmo) e coreografia (o desenho coletivo no espaço),
encontra a dimensão conhecida da imagem em si.
As variáveis do espaço externo são compreendidas via a ocupação. A
ocupação é o que se repete, adaptando o espaço externo ao movimento
estabelecido da cena. Diferentes distâncias e diferentes dimensões que são
reorganizadas. O espaço interior, lugar do sentimento, dialoga dinamicamente
com essas variações, torna o “espaço” um “lugar”. Na constância do espaço
interno – ainda que afetado pelos elementos da atualidade –, esse diálogo
dinâmico gradua as forças da imagem que o ocupa, por isso a experiência da
intuição instantânea funciona como o agente inspirador que, via a memória,
“reaplica” a imagem mediante novas tensões.
Estes três olhares sobre o espaço buscam melhor compreender os
procedimentos do ator frente à cena. Pretendem apontar formas de
problematizar a questão do espaço e, sobretudo, trabalhar com a ideia de que
o conceito de espaço nasce de uma fusão do ator com seu entorno e com sua
imaginação, não se restringindo a uma questão de compartimentos, mas, ao
contrário, ampliando para uma imagem de totalidade no fenômeno da cena.
Esta reflexão, embora organizada inicialmente como parte de meu
doutoramento na UNICAMP, no Programa de Pós-graduação em Artes, é
alimentada pela minha prática como professor na Escola Superior de Artes
Célia Helena, onde atualmente investigo a improvisação e suas repercussões
na formação do ator, tanto na graduação como na Pós-graduação.
BIBLIOGRAFIA

BACHELARD, Gaston. A intuição do Instante. Tradução Antonio de Pádua


Danesi. Campinas: Verus Editora, 2007.

KUSNET, Eugenio. Ator e Método. Rio de Janeiro: Hucitec, 1992.

MERLOT-PONTY, Maurice. A fenomenologia da percepção. 2ª ed. Trad. Carlos


Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo. Martins Fontes, 1999.

STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Trad. Paulo de


Pontes Lima, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004.

_______________________ A criação de um papel. Tradução de Paulo de


Pontes Lima. – 9ª edição – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

_______________________ A Preparação do ator. Trad. Pontes de Paula


Lima – 19ª Ed. – Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______________________ A criação do papel. 9ª ed. Trad. de Pontes de


Paula Lima. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

______________________ El trabajo del actor sobre sí mismo: el trabajo sobre


si mismo en el proceso creador de las vivencias. Trad. Salomón Merener.
Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1980 (Obras completas, 1).
CIRCO-TEATRO
O TRABALHO DO ATOR DEBAIXO DA LONA: ASPECTOS DA
ESPACIALIDADE CIRCENSE E DA INTERPRETAÇÃO NO CIRCO-TEATRO
JANNUZZELLI, Fernanda (Bolsa de Mestrado FAPESP). Mario Santana; Instituto de
Artes; Universidade Estadual de Campinas.

O fenômeno teatral é passível de ser executado nos mais diversos espaços.


Das tradicionais salas à italiana aos espaços alternativos, como galpões, ruas e praças, o
fenômeno ocorrerá desde que haja a presença de, no mínimo, um ator e um espectador.

Pode o teatro existir sem figurinos e cenário? Sim, pode. Pode existir sem a
música acompanhando a trama? Sim. Pode. Pode existir sem efeitos de luz?
Sim, pode. E sem o texto? Sim; a história do teatro confirma isto. Na
evolução da arte teatral o texto foi um dos últimos elementos a ser
adicionado. (...) Mas pode o teatro existir sem o ator? Eu não conheço nem
um exemplo disto. Alguém poderia mencionar o teatro de bonecos. Mesmo
neste exemplo, porém, o ator encontra-se atrás da cena, embora seja de um
outro tipo. Pode o ator existir sem audiência? Pelo menos um espectador é
preciso para fazer disto uma performance (GROTOWSKI, 1987: 32).

Cada tipo de espaço cênico gera um determinado número de áreas de


atuação e necessita de técnicas específicas de encenação e interpretação. O espaço
escolhido, em consonância com o jogo cênico nele instaurado, definem o tipo de relação
que será criada entre atores e plateia. Segundo Rubens Brito,

É no ato da concretização do espaço cênico que todos os sistemas


significantes do espetáculo – texto, cenários, figurinos, maquiagem, música,
dança, interpretação, etc – precipitam-se no espetáculo, o qual molda o
próprio espaço ao mesmo tempo em que por ele é moldado (BRITO, 2004:
98).

Este estudo visa investigar as características encontradas nas encenações de


peças teatrais no espaço cênico específico dos circos de lona de médio e grande porte,
da região Sudeste e, especificamente, do estado de São Paulo. Indo de encontro ao
explicitado por Brito, analisarei como os elementos relacionados ao trabalho do ator do
circo de lona são moldados, ao mesmo tempo em que moldam este determinado espaço
cênico.
O circo de números de variedades que povoa o imaginário das gerações
mais recentes constitui, na verdade, uma das diversas formas e configurações que o
espetáculo circense pode assumir. Até meados dos anos 1960, a maior parte dos circos
brasileiros eram circo-teatros e os espetáculos eram divididos em duas partes:
primeiramente, no picadeiro, eram executados os números de variedades – malabares,
acrobacia, mágica e entrada de palhaços, por exemplo – e em seguida representava-se,
sob um palco, a peça teatral do dia. Além disso, era muito comum a presença de
convidados especiais, como cantores de sucesso da época e até mesmo a execução de
sorteios, bingos e lutas livres.
O circo-teatro, que ainda conta com representantes na atualidade, originou-
se da transformação e aprofundamento da linguagem teatral que faz parte do circo
chamado de “moderno” desde sua origem e pode ser compreendido como a
representação de peças teatrais de diversos gêneros como parte integrante do espetáculo
circense.
A lona exerce influência determinante sob o espaço cênico e sob o modo
como se dá a configuração estética desta vertente da teatralidade circense. Desse modo,
apesar do espaço cênico utilizado ser, comumente, o tradicional palco italiano, o fato
deste estar armado debaixo de uma lona faz com que especificidades surjam,
modificando a relação dos intérpretes com o espaço da cena e com os espectadores.
Para Carlos Alberto Soffredini – fundador do Grupo Mambembe, grande
pesquisador, ator, autor, dramaturgo e diretor brasileiro, que estudou profundamente as
manifestações cênicas populares através de intensa pesquisa nos circo-teatros da
periferia de São Paulo – a estética e linguagem do circo-teatro estão tão ligadas ao fato
destas serem executadas neste ambiente específico, que ele chega a afirmar que

Aqueles dramas, aquelas comédias, aquelas chanchadas, aquelas variedades


só tem sentido lá, debaixo da lona, nos palcos altos e de madeira carcomida,
vistos dos puleiros ou das cadeiras duras sobre a serragem... Como de resto
toda a arte popular, esse Teatro só tem sentido naquele clima, que é
absolutamente intransportável i.

Soffredini está falando na passagem anterior sobre o chamado circo-família


ou circo tradicional, foco deste estudo.
A utilização dos termos “circo tradicional”, “circo novo” e “circo
contemporâneo” gera grandes discussões na atualidade (BOLOGNESI, 2006),
acarretada por uma disputa política e de saberes. Neste estudo utilizarei o termo “circo
tradicional” partindo do significado que este tem para os próprios circenses:

(...) ser tradicional, para o circense, não significava e não significa apenas
representação do passado em relação ao presente. Ser tradicional significa
pertencer a uma forma particular de fazer circo, significa ter passado pelo
ritual de aprendizagem total do circo, não apenas de seu número, mas de
todos os aspectos que envolvem a sua manutenção (SILVA, 2009: 82).

O que Soffredini chama de “clima absolutamente intransportável” é criado


pela conjunção de uma série de paradigmas, como o próprio processo de formação /
socialização/ aprendizagemii que rege a vida do artista circense, organiza o seu modo de
trabalho e, consequentemente, determina a configuração estética do espetáculo (SILVA,
2007).
No caso dos circos tradicionais, os circenses mantêm como característica
herdada dos artistas saltimbancos das feiras europeias, incorporados ao “circo
moderno”, “a transmissão oral do conjunto de saberes e práticas de geração a geração;
saberes que davam conta da vida cotidiana, capacitação e formação dos membros do
grupo” (SILVA, 2009: 25). Esta formação ampla e integrada é responsável por produzir
um determinado tipo de espetáculo que se revela “como o resultado visível de um
longo, rigoroso e complexo processo de formação artística” (ABREU in SILVA, 2007:
14).
Porém, este “clima absolutamente intransportável” também é criado pela
própria presença física da lona, que não à toa, povoa o imaginário coletivo quando
pensamos em “circo”, juntamente com o cheiro da serragem e da pipoca, o gosto da
maçã do amor, e assim por diante.
Além disso, a lona exerce influência direta sobre o processo de
comunicação expressiva e poética do espetáculo de circo-teatro, a preparação vocal e
corporal dos atores e também os procedimentos de composição das personagens.
Diferentemente do teatro de rua, que propõe uma ruptura lúdica em meio ao
cotidiano da cidade e feito para que qualquer pessoa que estiver passando ao acaso se
interesse e pare um pouco para ver, o circo-teatro de lona se assemelha, neste ponto,
mais às salas teatrais convencionais, pois o espectador vai até esta edificação – no caso,
não tão edificada – ciente de que ocorrerá um fenômeno teatral.
Assim como as salas convencionais, no circo-teatro comumente também há
a clara divisão entre palco e plateia. Porém, o ambiente da lona é inegavelmente mais
dispersivo, seja pela falta de isolamento acústico e, consequentemente, pela
interferência de ruídos externos, pela venda de quitutes, pela disposição muitas vezes
plana das fileiras da plateia, que obriga os espectadores a se esquivarem um dos outros à
procura de uma boa visão do palco ou pela própria acústica não privilegiada, que
dificulta o entendimento do texto dito pelos atores.
Entretanto, essa mesma dispersão contribui para que o espectador se sinta
mais à vontade, permitindo com que ele interfira, muitas vezes, diretamente no
espetáculo. Nas visitas recentes ao Circo de Teatro Tubinho – um circo de médio porte
– pelo interior do estado de São Paulo, muitas vezes pude presenciar espectadores que
repetiam em voz alta os bordões lançados pelo palhaço Tubinho e também outros que
dialogavam com as personagens em meio à representação, com direito à vaia aos vilões,
aplausos ao palhaço e assobios às atrizes bonitas.
O circo abre margem para qualquer tipo de interferência, de forma que as
intervenções mais agressivas ou exageradas são reprimidas pelos próprios espectadores
que desejam continuar acompanhando a encenação. O ator circense é apto a incorporar
estes estímulos, fazendo deles um comentário ou uma boa piada; além desta agilidade
de raciocínio e prontidão física, o ator executa essa e todas as suas demais ações sem
perder o controle sob a plateia, que tem suas reações cuidadosamente estudadas e
direcionadas.
E mais: como o ambiente é dispersivo, o espectador, interessado em
acompanhar a história que está sendo contada, precisa fazer um esforço extra de
concentração para tentar captar a maior quantidade de informações possíveis. Desse
modo, ao prestar mais atenção para vencer as condições adversas, o espectador é
envolto mais intensamente pelo fenômeno teatral, de modo que ele não assiste
passivamente à história que lhe é contada; ou seja, ele se coloca numa posição de
recepção ativa que acaba contribuindo, também, para que ele se sinta participando da
história e livre para expressar suas reações.
A lona de médio e grande porte pressupõe também uma grande área de
atuação e uma grande área destinada à plateia. Desse modo, para uma representação
captar e prender a atenção de mais de quinhentas pessoas e chegar até a famosa
“velhinha surda da última fileira” é condição sine qua non que esta esteja alicerçada em
uma linguagem “exagerada”, que comporte ações físicas ampliadas.
No circo-teatro, portanto, o acento recai sobre a encenação e interpretação
dos atores. Esta linguagem “exagerada” pode ser definida ainda como uma forma de
representação com alto teor de teatralidade, “o tão cantado Teatro da magia teatral (...) é
de mentira, mas é como se fosse de verdade. É de papelão mas é pedra. É irreal mas a
gente acredita. A gente acredita” iii.
A máxima que rege o espetáculo circense consiste, sem dúvida, em agradar
o espectador. Este termo, que é comumente usado pelos próprios circenses e representa
fundamentalmente a síntese do ideal do espetáculo circense, não deve ser visto como
algo pejorativo, e sim como nomeador de um conjunto de elementos estruturais desse
ofício.
O artista de circo nunca perde o público de vista, de modo que tudo é feito
para que ele deseje retornar na noite seguinte. Nas palavras de Soffredini:

(...) o espetáculo de circo-teatro tem uma finalidade imediata: ele não é feito
para ser avaliado pelos entendidos ou pelos críticos em colunas
especializadas, nem para ser comentado nas mesas dos bares da moda, nem
para ir figurar nos anais da história do espetáculo. Não: ele é feito para
agradar o público, para que este volte no dia seguinte e compre seu ingresso
na bilheteria para possibilitar ao artista a compra de comida no dia seguinte
(SOFFREDINI, 1980 in BRITO, 2004: 36).

Para prender a atenção da plateia, o circo sempre utilizou de diversos


recursos, principalmente visuais e sonoros, que visam despertar a sensibilidade e,
consequentemente, a empatia da plateia. Fernando Neves, ator, diretor, importante
pesquisador do circo-teatro e descendente da família Viana-Santoro-Neves, do Pavilhão
Arethuzza, costuma dizer que “o circo aproveita tudo, retrabalha e devolve com cores
fortes... o que os olhos veem o coração sente!”.
Desta maneira, as companhias de circo-teatro desenvolveram um olhar
apurado para os recursos visuais, criando encenações recheadas de luxo e requinte.
Antônio Santoro Junior, também da família do Pavilhão Arethuzza, descreve que

Como cenógrafos e artistas plásticos, o pessoal do circo montava


adequadamente: bosques, jardins, interiores de palácios, residências inclusive
com escadarias, beira de rios, ruas de várias partes do mundo, como Paris,
Roma com pedras e chafarizes, Londres com a ponte do Tâmisa onde os
atores podiam até caminhar, convés de navios, inclusive com simulações de
ondas, prisões, torres, masmorras, etc. (SANTORO JUNIOR, 1997: 43).

Em meio à lona de médio e grande porte não há detalhe intimista que


resista, o que torna adequada esta encenação grandiosa. Além disso, não podemos nos
esquecer de que o circo-teatro emerge da tradição circense como o desdobramento da
teatralidade presente no espetáculo de circo desde a sua “origem moderna” com Philip
Astley que, ao incorporar artistas mambembes ao espetáculo de habilidades e destrezas
com cavalos, fez surgir um novo modo de organização do trabalho e configuração do
espetáculo (BOLOGNESI, 2009; SILVA, 2007). Destarte, faz parte da tradição circense
a constituição de estéticas e linguagens não-realistas, de alto cunho teatral e que
explicitam a natureza fantasiosa e fantástica do fenômeno teatral:
Levar o dia-a-dia para o palco, só se for para rir dele, exagerando o seu
absurdo, complicando as peripécias necessárias para vivê-lo, valorizando a
esperteza indispensável para encará-lo. Iluminando-lhe, portanto, o lado
fantástico. (...) Nós achamos que Teatro é a hora de encher os olhos. (...) É a
hora de se ver no espelhado sim, mas não num espelho comum, que esse a
gente tem no guarda-roupa, mas num daqueles espelhos que fazem a gente rir
se vendo de uma forma inesperada iv.

Condizentes com a estética não-realista, os atores constroem suas


personagens baseados na tipologia inerente ao circo-teatro, característica que sofre a
influência inegável dos antepassados saltimbancos incorporados ao “circo moderno” –
dentre eles representantes da commedia dell’arte –, como também das companhias
portuguesas contemporâneas ao período de consolidação do circo-teatro e que
representavam nos edifícios teatrais, principalmente das capitais.
Além disso, os circo-teatros permanecem semanas e até meses numa mesma
cidade. Para que se mantenham financeiramente, é necessário que a cada dia se
represente uma nova peça. Cada circo conta, portanto, com um imenso repertório de
peças – conhecido entre os circenses como “baú da família” –, que geralmente são
ensaiadas de dia e apresentadas à noite.
Assim sendo, o circo-teatro se fundamentou como um modo de fazer teatral
alicerçado sob uma série de paradigmas que possibilitam a encenação de diferentes
peças em um curto espaço de tempo. Um desses paradigmas reside justamente no fato
da interpretação ser tipificada, o que permite a especialização do ator num determinado
papel, possibilitando que este transite e crie, dentro desta estrutura fixa, nuances e
especificidades para cada personagem de cada uma das dezenas de peças representadas
todas as noites. Este sistema de interpretação fornece uma partitura para cada ator, que
ao mesmo tempo em que limita, amplia as suas possibilidades de criação, pois permite o
trabalho na zona em que o intérprete melhor se expressa.
Os circenses passaram de geração em geração a valorização de qualidades
como criatividade e prontidão para adaptações e improvisações segundo a situação do
momento, além de técnicas que contribuem para o domínio físico e artístico dos meios
de expressão do corpo e a noção da necessidade do desenvolvimento de um repertório
de cenas prontas – os lazzi. A liberdade artística proveniente da possibilidade de se
improvisar, tendo como parâmetro as características do seu tipo específico, unida ao
exercício contínuo da representação de uma peça diferente todos os dias resultou como
uma fórmula eficaz na configuração deste sistema de representação.
Os tipos são distribuídos baseados no que Fernando Neves define como
temperamento e Soffredini como personalidade e geralmente possuem um padrão
biótipo. Soffredini afirma ainda que após se romper a primeira camada do tipo, pode-se
perceber algo a mais no ator que o representa, no sentido de que o tipo é mais do que
um biótipo ou personalidade, mas sim um verdadeiro estado-de-espírito deste atorv.
Desse modo, a personagem entra em cena e se revela imediatamente para o
público, por meio da sua composição física, maquiagem, figurinos e cores escolhidas.
Para ocorrer essa revelação absoluta no ambiente dispersivo da lona, o ator precisa estar
alicerçado sob um trabalho de interpretação limpo, direto e contundente, que possui a
clara intenção de atingir um determinado efeito na plateia. Neste sentido, Soffredini
demonstra como a utilização diferenciada do espaço cênico por cada tipo contribui para
a revelação exata deste, bem como para a criação de atmosferas em cena:

Os antigos atores conheciam e aprimoravam uma série de EFEITOS. Eles


sabiam a forma de dizer melhor uma piada, o valor exato de uma pausa, a
maneira de se colocar em cena dependendo do clima a ser criado ou do
caráter a ser revelado. Não é por acaso que o Circo-Teatro ainda conserva
uma fuga central no cenário. Não se trata dessas atuais convenções pobres,
tais como: “a fuga da esquerda leva ao quarto, a do centro à cozinha, a da
direita leva à rua...” Não. Trata-se de uma consciência exata do valor (efeito)
da entrada ou saída de um ator de cena. Cada personagem que entra em cena,
se o ator souber entrar, só pode levar a peteca pra cima. Cada personagem
que sai, se o ator souber sair, deixará a peteca em cima. Se um personagem
tem caráter positivo, se ele “chega”, entrará pela fuga do meio: como num
passe de mágica a figura aparecerá no meio da cena. Da mesma forma, se um
personagem tem caráter dissimulado, se sua ação é sorrateira, ele entra ou sai
pelas laterais. Parece um processo ingênuo, mas o EFEITO é matemático.
Sabe-se que os “vilões dos velhos dramas não só entravam em cena pelas
laterais como cobrindo parte do rosto (do nariz pra baixo) com uma capa
negra” vi.

O espetáculo de circo-teatro sob a lona exige que o ator maximize as


potencialidades de criação do universo sonoro e visual de sua personagem, de forma que
sua voz e seu corpo cumpram tanto as exigências técnicas quanto as expressivas do
processo comunicacional do espetáculo. É necessária, portanto, a presença cênica de um
corpo/voz ampliado, dilatado, de grandes gestos, sempre precisos e limpos.
Alguns circos, como o Circo de Teatro Tubinho, possuem em sua boca de
cena microfones que captam razoavelmente bem os diálogos e falas das personagens.
Apesar deste recurso, para a compreensão do texto por parte de todos os espectadores
presentes na lona, é necessário que o ator amplie a sua projeção vocal, valorizando a
articulação das palavras e elevando a altura da emissão do texto, o que acaba por impor
ao ator outro tempo de enunciação da fala, fato que vai de encontro e realça a linguagem
não-realista instaurada no circo-teatro.
Por trás de toda esta forma estruturada está sempre a intenção vital e
primordial de manter a relação com o público. Os atores de circo-teatro – assim como os
pertencentes a outras formas populares de teatro, como a commedia dell’ arte – sabem
que o contato com o público e a consequente cumplicidade dessa relação são as bases
do jogo teatral.
Segundo Rubens Brito, foi o grupo Mambembe em sua pesquisa pelos
circos-teatros da periferia paulistana, sob a direção de Soffredini, quem descobriu que
havia “um ‘suporte’, um tipo de ‘estrutura’ que formatava, a partir da interpretação, o
próprio espetáculo de circo-teatro. Tratava-se daquilo que o grupo viria a denominar de
triangulação” (BRITO, 2006: 80). Rubens Brito afirma que este mecanismo da
triangulação se dimensiona e se consagra na commedia dell’arte e que o grupo
Mambembe apenas se apercebeu deste mecanismo e lhe deu um nome.
A função da triangulação é colocar o público como centro da representação
e a par de tudo o que acontece com as personagens, podendo encará-las, portanto, com
superioridade. O ator de circo executa a técnica da triangulação com extrema
naturalidade e exatidão e este recurso permite que a divisão espacial entre palco e
plateia se mantenha ao mesmo tempo em que é criado um jogo cênico jogado por atores
e espectadores juntos.
Por fim, menciono a questão de como a margem de instabilidade da lona
pode afetar diretamente um espetáculo. Em uma das viagens ao Circo de Teatro
Tubinho, em uma conversa Pereira França Neto, o palhaço Tubinho, me confidenciou:
“Você devia fazer um estudo de como um espetáculo é modificado quando tem perigo
de tempestade...”. A chuva é temida pelos circenses, pois corre-se o risco de uma
tempestade derrubar a lona – fato que já aconteceu, inclusive, com o próprio Circo de
Teatro Tubinho.
Coincidentemente pude acompanhar nesta mesma viagem a apreensão e
nervosismo de todo o elenco do circo num dia de possível chuva forte. Com o passar do
dia, à medida que ia se aproximando o horário da sessão e, ao mesmo tempo,
aumentando a probabilidade de chuva, o medo de todos os circenses também crescia.
Em todos os lugares do circo e nos trailers o assunto era um só: será que vai ter
tempestade? Destarte, é fato que a circunstância dada do risco de queda da lona
influencia diretamente um espetáculo que ocorre sob essas condições.
Porém, apesar de possuir essa margem de risco, é inegável que, graças à
lona e sua itinerância, o circo-teatro atravessou o país levando a manifestação teatral a
cidades não atingidas pelas companhias convencionais. A despeito disso, por décadas o
circo-teatro foi excluído da história do teatro brasileiro, ignorando-se seu papel
fundamental na consolidação da arte cênica em nosso país.
O circo chegou, já no século passado, a municípios brasileiros em que o
teatro convencional não chegou até hoje. Os circenses abriam caminhos para a
divulgação da arte cênica e também abriam caminhos, literalmente, pelo interior do
país, atravessando e cortando matas com facão, dormindo ao relento nas carrocerias dos
caminhões e se colocando em risco ao atravessar áreas dominadas por tribos indígenas
que penduravam corpos de seringueiros mortos nas árvores como estratégia de
intimidação (PIMENTA, 2005).
Como força motriz para vencer todas as adversidades, os circenses partiam
da premissa básica de que, pra ganhar o pão de cada dia, o artista tem que ir onde está o
povo e que este merece todo o seu respeito, amor e dedicação. Assim sendo,

Milhares de cidades e vilarejos eram visitados pelas companhias de circo-


teatro e, para muitos deles, esse era o único contato com o fantasioso
universo da representação. Mais do que o mérito de ir até o povo, o circo-
teatro tinha o poder de atraí-lo. O conforto e a proteção da mágica lona eram
a versão popular das grandes casas de espetáculos. Até hoje encontramos,
mesmo nas grandes cidades, pessoas simples cuja única experiência teatral se
deu em um circo-teatro. Pessoas que acreditam que o circo é um lugar a que
têm realmente direito de acesso, onde não importa a roupa que vistam ou o
que calcem, tudo se iguala na poeira de serragem (PIMENTA, 2005: 119 e
120).

Encerro aqui, reafirmando a importância do circo-teatro enquanto forma de


expressão artística brasileira, que ao longo dos séculos tem se mostrado de extrema
qualidade artística e eficácia comunicativa.

BIBLIOGRAFIA

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São Paulo: Departamento de Artes Cênicas. Escola de Comunicações e Artes.
Universidade de São Paulo, n. 6, 2006.
_____________. Philip Astley e o circo moderno: romantismo, guerras e
nacionalismo. Revista O Percevejo on line. Rio de Janeiro: Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas. Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, v. 1,
2009.
BRITO, Rubens de Souza. O Grupo de Teatro Mambembe e o Circo-Teatro. Revista
Sala Preta. São Paulo: Departamento de Artes Cênicas. Escola de Comunicações e
Artes. Universidade de São Paulo, n.6, 2006.
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contribuição do Grupo de Teatro Mambembe (SP). Tese de Livre Docência.
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GROTOWSKI, Jerzy. Em Busca de um Teatro Pobre. Rio de Janeiro: Civilização
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PIMENTA, Daniele. Antenor Pimenta: Circo e Poesia. . São Paulo: Imprensa Oficial
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Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. São Paulo, 1997.
SILVA, Ermínia. Circo-Teatro: Benjamin de Oliveira e a Teatralidade Circense no
Brasil. São Paulo: Altana, 2007.
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2009.
SOFFREDINI, Carlos Alberto. De um trabalhador sobre seu trabalho. In:
http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini

NOTAS

i
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
ii
Ermínia Silva (2007) utiliza a expressão separando as palavras por barras, ao invés de
ligá-las com a conjunção “e”, partindo da ideia de que, no circo, a formação do
individuo, do artista e do ser social ocorre concomitantemente, dentro de um processo
de aprendizagem integrado.
iii
Fonte: http://www.soffredini.com.br/pt/91/aulas-de-teatro/referencias-tecnicas/de-um-
trabalhador-sobre-o-seu-trabalho---de-c.-a.-soffredini
iv
Ibidem.
v
Ibidem.
vi
Ibidem. Grifos do autor.
TEMA: O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO.

TÍTULO: MASCARAMENTO ESPACIAL: UM PROCESSO CRIATIVO


ENVOLVENDO A ESPACIALIDADE CORPORAL DO ATOR.

Autor: Ipojucan Pereira da Silva (Bolsa CAPES – Doutorado; Orientador: Prof. Dr.
Felisberto Sabino da Costa; Universidade de São Paulo; Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas).

A pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo


envolvendo a espacialidade corporal do ator”1 representa a evolução de uma longa jornada
artística de investigação, exploração e ampliação do princípio do mascaramento como
ferramenta de criação para o intérprete. Ela tem as suas raízes na fundação, em 1997, do
Grupo Teatral Isla Madrasta – em atividade até os dias atuais, e do qual sou ator, diretor e
pesquisador –, e iniciou-se como uma proposição artística abrangendo duas vertentes: o
cruzamento de linguagens que fazem uso de uma maior plasticidade física e vocal do
intérprete, tais como Clown, Commedia dell’Arte, Mímica e Teatro de Animação, e o uso
de “objetos inanimados” (máscaras, figurinos, bonecos etc) para mediar a composição de
personas e dinamizar a presença cênica do ator diante do espectador.
Naquela época, o grupo tinha dois eixos de pesquisa: o ator em sua própria
fisicalidade e o ator com o “objeto inanimado” (outra fisicalidade). Era uma busca de um
estado de relaxamento e concentração no qual o intérprete se colocava como observador,
cedendo aos impulsos, e permitindo que o “objeto inanimado” atuasse como o seu mestre e
encontrasse livre expressão por meio do seu corpo. Investigávamos uma espécie de estado
“energético inicial”, que poderia ser chamado de ponto zero, ou neutro, ou ponto de
concentração, que geraria uma presença dilatada responsável pelas ações e pelos
movimentos. Foi nesse processo que surgiu o germe inicial de um pensamento que viria a
extrapolar o trabalho desenvolvido até então com um tipo de máscara mais tradicional – de
cunho antropomórfico e restrita ao rosto – para a ideia do “mascaramento”, relativo às
trocas e fluxos com o ambiente, a partir dos elementos de cena tais como cenários,
iluminação e sonoplastia.
Quando optei por retomar os meus estudos acadêmicos, na pós-graduação em 2005,
estava decidido a dar continuidade a essa exploração da linguagem da forma e do
movimento por meio de máscaras e objetos, objetivando instrumentalizar melhor os atores
no uso de seu potencial técnico. O ponto de partida para pesquisa seria verificar se
interpretar é modificar o estado de energia através do movimento ao se considerar que o
ator é o manipulador das energias latentes da cena (dos bonecos, das máscaras, dos objetos,
do espaço, das formas).
Contudo, antes mesmo de inscrever um projeto no programa de pós-graduação, esta
abordagem, que eu poderia chamar de “pré-histórica”2, evoluiu do interesse pelos processos
de atuação causados pela modificação do estado de energia do ator por meio da máscara e
do movimento, para os processos de atuação do performer, por meio de construção de
personas3 responsáveis pela mediação e dinamização de sua presença cênica. Deste amplo
universo foi feito um recorte para o trabalho da performer brasileira Denise Stoklos, o que
levou à elaboração do projeto definitivo e tema da minha dissertação de mestrado: “O
Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um sistema pessoal de atuação”,
concluída em 2008.
No ano de 2011, com o meu ingresso no doutorado, apresentou-se a possibilidade de
agregar as investigações acerca da atuação performática, desenvolvida no mestrado, aos
questionamentos iniciais sobre o mascaramento, presentes já no começo da minha trajetória
artística. A tese, intitulada “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a
espacialidade corporal do ator”, propõe um trabalho de pesquisa que aborda a ambientação
da cena não como cenografia, mas como um dispositivo para os processos de criação do
ator. A idéia é que as projeções do espaço cênico sobre o corpo do atuante instaurem uma
outra idéia acerca do “mascaramento”, como uma ferramenta de trabalho que amplia o seu
repertório estético e metodológico.
Mas como o intérprete pode se valer desse pensamento sobre o espaço e sobre a
atuação num processo criativo? E como esse ator desenvolve rotinas de trabalho para
alcançar essa competência? O conceito que Francisco Javier (1998) tem sobre a
espacialidade da cena como a primeira realidade sensível a partir da qual se constroem
todos os signos do espetáculo, nos auxilia nessa reflexão da ambientação cênica como um
princípio norteador do processo de criação a partir do espaço, tornando-o a matéria prima
na qual o artista esculpe as suas idéias e emoções, e imbricando dessa maneira a relação
corpo/movimento/ambiente no ato criativo.

Mascaramento Espacial I: processos de abstração da ação física e da


espacialidade.

Matteo Bonfitto (2002), no livro “O Ator Compositor”, estabelece nas suas


proposições que o corpo é o material primário por excelência a ser trabalhado pelo atuante
para que se possam desenvolver as ações físicas – elemento básico de todo o fenômeno
teatral –, e que essas são empregadas na composição de partituras que auxiliam o intérprete
no desenvolvimento e organização do seu discurso cênico. Devido à necessidade do
emprego de elementos concretos que possam ser manipulados e reproduzíveis na confecção
dessas partituras, a ação física deve ser também um material tão palpável e operacional
quanto o corpo. Consequentemente isso requer, segundo Bonfitto, que já na construção
dessas ações sejam empregadas matrizes efetivas – capazes de sensibilizar o corpo do ator –
, assim como procedimentos tanto para a criação quanto para a organização dessas ações
físicas em partituras executáveis pelo intérprete.
Sendo assim, ao ser proposta a utilização do espaço como uma dessas matrizes,
automaticamente passamos a lidar com a problemática de operacionalizar conceitos
espaciais abstratos em oposição à materialidade corporal do ator. Para promover o trânsito
entre tais materiais de naturezas tão diversas e propiciar o surgimento de um princípio
criativo a partir do diálogo entre o orgânico e o não-orgânico, passaremos a pensar não em
opostos, mas sim no hibridismo expresso na ideia de levar o ator a “ver” o espaço como
consequência da sua própria espacialidade corporal. Com esse horizonte em mente – de que
“ao realizar as suas ações, o [...] [intérprete] gera uma energia espacial que vai moldando o
espaço cênico4” (IRAZÁBAL, 2004, p. 5, tradução nossa) –, tanto o impacto do movimento
sobre o espaço quanto o seu revés, isto é, a forma como o ambiente provoca deslocamentos
e reorganizações na dinâmica daquele que se move no seu interior, passa a ter como
epicentro a corporeidade e suas interações com os objetos de cena, com os diferentes planos
que o corpo ocupa, com as dinâmicas rítmicas, com as imagens físicas em constante fluxo e
transformação.
Ao se pensar na referencialidade dessa abordagem, é possível perceber o seu
comprometimento com uma extensa linhagem de homens de teatro que fizeram da relação
entre a plasticidade do corpo e do espaço um eixo de investigação para evolução do ofício
do ator. Como exemplo disso, observemos as palavras de Edward Gordon Craig, no
alvorecer do século passado:

Há uma coisa de que o homem não aprendeu ainda a tornar-se senhor; uma coisa
de que não se suspeita mesmo, que está pronta para ser absorvida com amor,
invisível e no entanto sempre presente, magnífica de sedução e pronta a escapar-
se; uma coisa que espera a vinda de homens aptos, pronta a elevar-se com eles
acima do mundo terrestre: e não é senão o Movimento (CRAIG, 1911, p. 78).

Ao se pautar pelo movimento para pensar a arte do teatro, Craig passou a refletir
sobre as maneiras de responder à demanda de tornar o espaço um dos eixos conformadores
da arte da encenação, gerando uma proposta estética que colocava em xeque os excessos
historicistas e o decorativismo ilusionista da cenografia de cunho Realista/Naturalista,
realizando uma transição do estatismo para o dinamismo cênico. Suas considerações sobre
o movimento o levaram a criar uma espacialidade em constante mutação por meio do jogo
conjugado entre a iluminação e os volumes móveis. Contemporaneamente a Craig, Adolphe
Appia também dirá que o movimento é algo essencial para o teatro, levando-o a pensar a
cena em função do deslocamento do corpo do ator, e substituir a bidimensionalidade
cenográfica do telão pintado por um cenário que dialogasse com a tridimensionalidade do
corpo humano e com a sua rítmica. Observando as palavras do pesquisador estadunidense
E. T. Kirby para esse processo, podemos perceber como esses questionamentos estavam
atrelados às discussões da época, no campo das artes plásticas, acerca da abstração como
reação à arte figurativa:

De Gordon Craig (e do Neo-Romantismo) passando pelos Futuristas, Dada, o


trabalho dos Formalistas Russos, os Expressionistas, os Surrealistas, a
Bauhaus, e assim por diante, [...] [p]ercebemos muito claramente [...] uma
intenção subjacente: a criação de um teatro abstrato. Seu símbolo, e o que
explicitamente representa a sua função e estética, é a máscara - ou o ator
mascarado a quem Craig denominou como a Super-Marionete5 (KIRBY,
1972, p. 06, grifo do autor, tradução nossa).

A máscara é metamorfose, transcendência, simulação. Um objeto que ao se


amalgamar ao corpo cumpre a função de uma ponte entre a divindade e as forças
sobrenaturais, como nos rituais, ou entre as ideias e personificações, como na arte. Ocorre
por seu intermédio um processo de identificação com o que se deseja imitar, que desloca a
pessoa que porta a máscara para um contexto diferente do costumeiro, modificando tanto a
sua corporeidade quanto o ambiente a sua volta. Dessa maneira, não é por acaso que
Gordon Craig propõe o princípio da Super-Marionete como mascaramento para trabalhar a
fisicalidade do intérprete, estimulando uma plasticidade corporal mais afinada com as
imagens cênicas e, portanto, harmonizada com o espaço (cênico).
Quanto menos mimetizado com o mundo natural, maior a potencialidade desse tipo
de mascaramento em representar conceitos espaciais. A abstração pode tanto evocar
características essenciais da natureza quanto falar de uma não-realidade. Para o trabalho do
ator, as máscaras teatrais de formatos abstratos têm a capacidade de ajudá-lo na
materialização corporal de algo tão impalpável como o espaço. Sendo assim, dentre os
reformadores do teatro do início do século XX, citados acima por E. T. Kirby, vamos
observar neste momento algumas propostas e procedimentos do diretor da oficina de teatro
da Bauhaus – escola alemã de artes, design e arquitetura –, Oskar Schlemmer, que
direcionou as suas investigações para que as formas do espaço se projetassem sobre o corpo
do intérprete por meio de elementos que tinham a função de máscaras abstratas.
Schlemer observa que a arquitetura do palco, na qual o ator está imerso, constitui-se
num volume encerrado pelas paredes, colunas, piso, vigas e teto cuja resultante é um
equilíbrio de forças que mantém toda a estrutura em suspenso, uma dinâmica
momentaneamente paralisada, fixa e imutável. Ele aponta para o fato de que comumente
esse espaço é submetido ao “homem e transformado novamente em natureza ou na imitação
da natureza [...] no ilusionismo do teatro realista6” (SCHLEMMER, 1961, p. 22-23,
tradução nossa). Contudo, a base do seu pensamento é propor um funcionamento oposto a
esse: ao explorar a arquitetura do movimento a partir das leis do espaço cúbico por meio da
planimetria, da “geometria do chão, do acompanhamento das retas, das diagonais, do
círculo e da curva, desenvolve-se quase que espontaneamente uma estereometria do espaço
através da figura móvel que dança” (WINGLER, 1981 apud GRANERO, 1995, p. 145).
Numa composição coreográfica, a planimetria e a estereometria7 estão relacionadas
para dar suporte ao fluxo de movimento do dançarino, sendo que a primeira é a
representação no plano do chão dos deslocamentos e localizações, e a segunda a
transposição dessa geometria para a espacialidade dos corpos. Um dos procedimentos
empregados por Schlemmer era a marcação sobre o assoalho do palco das trajetórias e
posições dos bailarinos – estas conectadas às projeções estereométricas da sala –, que
propiciava tanto a visualização de todas as áreas no solo a serem exploradas nos
deslocamentos, quanto a percepção das linhas invisíveis que subdividiam o espaço e que
orientavam a gestualidade corporal.
Partindo da oposição entre a verticalidade da figura humana e o plano horizontal do
chão, essa ortogonalidade se desdobrava tridimensionalmente pelo espaço quando o corpo,
nas suas torções em torno de seu próprio eixo, se movimentava criando linhas diagonais,
ampliando os efeitos dinâmicos e expressivos. Essa conexão entre a forma humana e as
extensões da arquitetura tornava o espaço e o corpo os elementos principais das matrizes
que organizam as partituras e coreografias das obras de Schlemmer.
Além das projeções sobre as superfícies – do solo e do corpo –, a estereometria
também podia ser materializada em indumentárias e adereços cênicos, ocasionando a
transformação do corpo humano, a sua metamorfose. A figura mecânica e artificial da
marionete, ou do boneco articulado, passou a ser para Oskar Schlemmer o centro de um
processo que transformava o corpo do intérprete e o reorganizava tecnicamente segundo as
suas leis funcionais. Escondido sob máscaras e figurinos que alteravam significativamente
o desenho corporal, o intérprete só podia agir e se expressar por meio de um simulacro,
uma figura artificial sem voz ou individualidade.
Na sua busca pela essencialidade do ser humano, o caminho foi abstrair as formas
naturais para revelar os elementos plásticos e assim poder criar formas artísticas. A
gestualidade passava a evidenciar uma qualidade de abstratação que podia assumir a
coordenação motora de uma marionete, ou os aspectos arquitetônicos do espaço cúbico
circundante, como também uma expressão corporal tecnicamente mais limpa e precisa, ou
mesmo uma variabilidade de movimentos que praticamente impossibilitava a fixação de
uma forma específica. Esta foi a maneira encontrada de inserir no palco um organismo vivo
– tal como uma imagem pictórica, uma escultura animada, um andróide mecanizado ou
uma marionete articulada – com o propósito de fazê-lo participar das ações cênicas
baseadas em medidas e cálculos geométricos.
A partir dessas propostas envolvendo o uso da planimetria e da estereometria como
forma de mascaramento, foram desenvolvidos alguns procedimentos práticos no âmbito da
pesquisa de doutorado “Mascaramento Espacial: um processo criativo envolvendo a
espacialidade corporal do ator”. A aplicação dessas rotinas de trabalho aconteceu na oficina
“A Espacialidade Como Matriz Geradora de Partituras Cênicas”, como parte da
programação da Mostra de Artes Cênicas do Centro de Pesquisa em Experimentação
Cênica do Ator (CEPECA)8 do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP, em maio de
2014. Durante dois dias seguidos, e com uma média de vinte pessoas por encontro, foram
experimentados princípios de construção, organização e execução de pequenas partituras
cênicas, tendo como eixo referencial para a construção de ações físicas algumas propostas
de diferentes tipos de espacialidades. Por conta da síntese necessária exigida pelos limites
óbvios do formato deste artigo, vamos nos ater apenas a dois procedimentos a título de
exemplo.
Inicialmente, definiu-se uma área de jogo para os participantes da oficina, com a
preocupação de que esse fosse desvinculado de modelos prévios de construção cenográfica,
e com vocação suficiente para ser percebido e operacionalizado como um local abstrato e
flexível para receber qualquer narrativa cênica. Para a configuração desse espaço, foi
traçado um retângulo com fita crepe no centro da sala de ensaio, deixando o seu contorno,
ao redor das suas arestas, livre para a circulação dos jogadores (essa área funcionava como
uma espécie de coxia). Na parte interna do retângulo foram traçadas duas linhas diagonais a
partir dos cantos de modo a se cruzarem no centro, bem como, paralelas aos lados, três
linhas horizontais equidistantes e outras três verticais também equidistantes. Obtivemos
dessa maneira uma planimetria esquemática, pois não havia nenhum compromisso com a
projeção das medidas ortogonais da sala de ensaio sobre o desenho traçado no chão.
Como aquecimento prévio, os alunos foram orientados a se deslocarem sobre essa
“grade”, procurando observar as relações de equilíbrio, tensão, proporção e composição
entre as posições ocupadas pelos seus corpos. O foco principal era a percepção aos
estímulos que as condições desse formato de enquadramento incitava às dinâmicas
corporais. Após essa sensibilização, foram disponibilizadas fotografias de esculturas, sendo
pedido como procedimento a cada um dos participantes que criasse uma seqüência de ações
simples, com começo, meio e fim, a partir da escolha de uma delas.
Todas as imagens escultóricas representavam posturas físicas, que deveriam ser
encaradas como o ponto médio de uma provável trajetória do corpo pelo espaço, durante o
desenvolvimento de uma ação qualquer. Com a falta de referencialidade a um contexto
específico, o grau de abstração se tornou elevado, por conta do leque de possibilidades em
se definir uma combinação que resultasse numa possível narrativa. Essa micro-partitura de
ações passou a funcionar como um tipo de mascaramento, um foco que obrigava o
intérprete a manter a sua concentração na sustentação e na manipulação de algo com o qual
a sua totalidade psicofísica poderia ficar completamente envolvida.
No procedimento seguinte, a turma foi dividida em dois grupos que se revezaram
nas funções de atuadores e espectadores, isto é, enquanto um grupo executava uma tarefa o
outro o observava. Ao ouvir uma instrução de comando específica, o grupo a ser
primeiramente observado deveria entrar no espaço retangular de jogo ao mesmo tempo,
procurar um local para realizar a sua micro-partitura de ações e dar início à execução das
mesmas. Ao final de toda a movimentação em cena, o grupo se retirava conjuntamente para
a área externa ao retângulo, que representava as coxias. Para cada um dos participantes, as
restrições impostas a sua livre expressividade eram compensadas pelas possibilidades de
investigação e entendimento das leis matemáticas que construíam a arquitetura na qual se
encontrava imerso. A necessidade de submeter a corporeidade aos eixos vertical, horizontal
e diagonal propiciou o alcance de uma expressão abstrata.
Nesse segundo exercício também foi conduzida uma reflexão com o auxílio dos
colegas colocados como platéia, direcionada tanto para as escolhas compositivas de cada
membro do grupo em relação à totalidade do conjunto, quanto para as conexões que
surgiram entre as seqüências de ações de cada um. Concluiu-se, por exemplo, que os
sentidos do espectador não só se determinam por meio dos diferentes recursos da
encenação, como também a partir da consideração da unidade do espaço teatral, a partir do
tipo de relação que a arquitetura promove entre a sala e a cena. Mesmo sendo um desenho
planimétrico de solo esquemático, o estímulo serviu a um pensamento tridimensional de
que o corpo cênico constrói algo a ser visto pelo público.
Esses procedimentos instauraram uma outra dinâmica de exploração do espaço
teatral, desdobrando-o como uma proposta em que podem ser lidas uma poética e uma
estética fomentadora de um processo criativo. Os seus resultados apontam para a
importância do tipo de espacialização sofrida pelos signos cênicos, pois o ambiente cênico
não tem só a função de ser continente de linguagens heterogêneas, mas também cria uma
identidade quando imprime a sua ação unificadora, resultando num corpus artístico
homogêneo e coerente a ser comunicado à platéia. É o princípio da ideia de uma
dramaturgia que se faz na articulação das linhas, nas texturas das superfícies, nas variações
de dinâmicas, ou seja, na “relação de todos os sistemas significantes usados na
representação e cujo arranjo e interação formam a encenação” (PAVIS, 2001, p. 409).

Mascaramento Espacial II: máscaras dinâmicas e espacialidade corporal.

O que discutimos até o momento pelos exemplos e procedimentos apresentados


foram propostas em que a síntese por meio do exercício da abstração tem como
consequência a redução do espaço cênico a um caráter essencialista, que tanto se torna um
trampolim para uma expressividade baseada na plasticidade do corpo e da voz, como
também proporciona um enquadramento máximo da atenção sobre o ator, já que o
esvaziamento da cena serve de pano de fundo para os gestos, dá relevância à linguagem e
estabelece um foco definido sobre os signos que se deseja veicular. Esse tipo de
espacialidade serve de molduragem aos elementos, mas não na qualidade de janela
perspéctica do drama burguês (cujo significado é dar enfoque a uma mímesis puramente
ficcional), e sim como procedimento estético que “traz à tona elementos simples e sem
significado [...] [, que] intensifica e concentra a propensão perceptiva de tal maneira que
também o que é cotidiano se torna interessante” (LEHMANN, 2007, p. 268).
Essa abordagem que propõe abstrair a realidade que nos cerca como matriz para
alcançar uma essencialidade expressiva está presente também na metodologia de um outro
exemplo que trataremos agora: o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM)9 de Jacques
Lecoq. Ali os estudantes articulam duas questões fundamentais para as nossas discussões:
“o trabalho com o movimento, [...] e [...] o trabalho de criação que envolve a construção - e
posterior 'animação' - de estruturas que procuram capturar, expressar e dar vida às
qualidades dos movimentos explorados10” (MURRAY, 2003, p. 89, tradução nossa). Os
estudos das leis do movimento humano e dos espaços do corpo, com a conseqüente
construção de estruturas e formas portáteis (máscaras corporais) que dialogam com as
dinâmicas exploradas fisicamente, têm como objetivo principal proporcionar ao aluno a
compreensão e a percepção de “que não se representa diante de um cenário, mas dentro de
um espaço construído para a ação do ator na situação” (LECOQ, 2010, p. 229).
A característica fundamental das estruturas portáteis é a representação plástica da
observação e análise sensível do movimento nas suas mais variadas manifestações – no
ambiente, na corporeidade, na matéria inorgânica, nas variações cromáticas etc. A captação
apenas dos traços dinâmicos daquilo que se pretende transpor para uma materialidade
plástica é um passo de fundamental importância no trabalho do LEM para se alcançar uma
leitura adequada das características essenciais do ambiente.
A escala projetada para essas formas abstratas pode ser facial, corporal ou espacial,
sendo que, independentemente do seu tamanho, a sua função principal é atuar como uma
“partitura física”, pois são concebidas para mobilizar o movimento no corpo da mesma
forma que “todo o espaço habitável traz ‘propostas dramáticas’ e influencia o
comportamento dos que ali vivem ou dos personagens que ali atuam” (LECOQ, 2010, p.
227). Confeccionadas para serem usadas sobre o rosto, essas formas abstratas recebem o
nome de máscaras dinâmicas e, alcançando as proporções do corpo, passam a ser chamadas
de estruturas portáteis. Esses objetos podem ser manipulados, habitados ou usados em
associação ao físico, como próteses, extensões, figurinos ou máscaras. Se exploradas pelo
aluno (ou intérprete) de modo a se penetrar em seu interior ou amalgamando-se a elas, essas
estruturas ou máscaras reconfiguram a sua cinesfera pessoal, proporcionando ao corpo o
estudo direto das qualidades espaciais.
O papel desses objetos plásticos é intermediar a pesquisa sobre o espaço, pois essas
estruturas, quando postas em movimento pelo manipulador, afetam a atividade física do
mesmo com os seus ritmos. Esse caminho promove as condições necessárias para a
organicidade do corpo não só dialogar, mas também agenciar a sua multiplicidade
expressiva segundo os princípios físicos e concretos que regem a matéria inorgânica, tais
como linhas, planos, ritmos, peso, forças, densidade etc.
O ponto de convergência que tentaremos explorar nesse momento entre as propostas
do LEM e as nossas investigações está no tipo de tratamento abstrativo dado ao espaço por
aquele, que tem como resultado uma estilização formal de caráter geométrico, chamada de
estrutura (ou arquitetura) portátil. A partir desse campo de exploração, foram realizados
alguns experimentos sobre a linguagem das formas no espaço na disciplina “Teatro de
Animação I”, em 2011, na qual fui professor conferencista a convite do orientador da
pesquisa, ministrando as aulas para o primeiro ano da graduação em Artes Cênicas da
ECA-USP. Esse exercício de docência proporcionou um campo de experimentação muito
rico na condução de um processo de aprendizagem fundamentado na linguagem da
máscara, que procurei direcionar para que fosse perpassado pela exploração constante do
diálogo entre a forma e o movimento, ao experimentar o uso de máscaras dinâmicas
inspiradas nos processos desenvolvidos pelo LEM.
O percurso escolhido foi iniciar uma investigação primeiramente com a máscara
neutra, com o intuito de se estabelecer um estado de abertura e prontidão para os estímulos,
bem como uma primeira abordagem das relações que a máscara estabelece entre a sua
geometria e o espaço ao redor, seja ele arquitetônico ou humano. A máscara neutra é uma
máscara de fisionomia simples e simétrica, sem conflitos, que propõe ao ator ampliar todos
os seus sentidos, encontrando a essência das ações e das situações. Por meio dela, “ao [se]
subtrair o sistema de expressão do rosto desvela-se o corpo, que se torna a ferramenta da
tessitura gestual no espaço” (COSTA, 2005, p. 29).
O resultado disso é uma dilatação da presença do ator quando se instala um estado
físico de prontidão, “o ponto zero, momento de energização e de escuta que antecede a
ação, pausa antes de agir” (AMARAL, 2002, p. 43-44). Tal condição vem a ser um
instrumento importante para potencializar a presença, ao se criar uma disponibilidade que
pode ser associada a um esvaziamento de qualquer pré-disposição para a ação, tornando
assim a motivação bastante reativa aos impulsos. O seu emprego propicia ao ator
consciência corporal, presença cênica, disponibilidade física, economia da gestualidade,
escuta (percepção) e justeza do tempo das ações.
A máscara neutra não é um personagem, é um estado que se apóia na calma e na
percepção, fontes de vida para todas as outras máscaras. Dessa maneira, ela representou
para os alunos da disciplina “Teatro de Animação I” uma primeira etapa no percurso para
se chegar às máscaras dinâmicas. Contudo, antes de se chegar ao fim dessa caminhada,
ainda foi proposto um estágio intermediário pautado pelo uso e exploração da máscara
expressiva. Esse tipo de máscara personifica rostos de personagens que podem abranger
uma gama extensa de expressões, que vai da plasmação perfeita e realista da face humana
até a representação de tipos exagerados e grotescos, nos quais não importa a perfeição dos
traços, mas sim o impacto emocional.
No caso específico da disciplina, a máscara expressiva serviu para o improviso de
personagens a partir da máscara. À medida que os alunos interagiam com elas, procuravam
conhecer e reproduzir – por meio de gestos, posturas corporais, entonações na fala e modos
de se comportar e agir – as regras, os ritmos, as intenções presentes nos traços da máscara.
Essa metodologia de criação a partir da observação e experimentação corporal das
características físicas e concretas do objeto vem a ser fundamental para a abordagem
criativa de qualquer mascaramento, inclusive aquele propiciado pela máscara dinâmica, que
foi apresentada posteriormente aos alunos como parte final do curso.
Como procedimento inicial para o trabalho inspirado nas estruturas portáteis do
LEM, foram utilizados imagens e vídeos como modelo para a confecção e construção de
máscaras de formatos geométricos, sem menção a qualquer tipo de corpo orgânico, seja ele
animal ou humano. O sentido aqui não era o da cópia ou da simples imitação das máscaras
dinâmicas do LEM, mas sim uma relação de aprendizagem modelar, na qual se desvenda e
se conhece o objeto de estudo enquanto se procura reinventá-lo. As estruturas e formas
abstratas foram realizadas com materiais comuns e de fácil manuseio (no geral, artigos de
papelaria), para que se obtivessem elementos leves e fáceis de serem manipulados.
A segunda proposição foi o improviso em grupo com essas estruturas abstratas
confeccionadas pelos alunos. A orientação dada para esse trabalho foi em direção à
percepção individual das possibilidades de projeção do corpo no espaço a partir das linhas
de força da máscara. Assim que cada membro do grupo estabeleceu uma dinâmica para si,
o grupo procurou experimentar conjuntamente um jogo de relações com ações
improvisadas, sem a preocupação com qualquer menção a uma narrativa previamente
estabelecida. Após essa fase de criação, os grupos apresentaram as suas formalizações
cênicas uns para os outros.
Os resultados apontaram para uma compreensão refinada das relações de tempo e
espaço, no qual o corpo, imerso numa dinâmica, desenhava imagens precisas e fazia a
geometria espacial das máscaras entrar em ação a serviço da emoção do ator. Ao se
privilegiar o espaço como material de criação, obteve-se como resposta um tipo de ação
caracterizada pela ausência de significado (que faz menção a um contexto ficcional),
resultando numa carga de referencialidade que dizia respeito à própria concretude do
material, isto é, às características físicas que definem o tipo de espacialidade utilizada como
matriz geradora. As ações assim constituídas tinham um alto grau de abstração e de modo
algum intentaram expressar os conteúdos da psicologia de um sujeito em particular, ou
mesmo resultar em metáforas e ilusionismos que encaminhavam a construção de
significados a partir do mundo interiro do ator. Como não havia uma interioridade
apriorística que modelasse as formas do corpo, foi o espaço físico exterior ao atuante que se
tornou signo a ser articulado.
Tanto o percurso dos procedimentos como os resultados cênicos experimentados até
aqui apontam caminhos para a utilização de processos envolvendo o mascaramento espacial
como base de criação para o intérprete, para que o mesmo lide com o seu aparato físico
(aqui compreendido como a somatória mente/corpo/voz) como uma modalidade do espaço.
A preocupação em erigir espacialidade e corpo como eixos de investigação e pilares de uma
linguagem psicofísica é apontar um caminho para a compreensão das especificidades dos
processos criativos do atuante no âmbito interno e externo das encenações, aumentando
dessa forma a sua capacidade criativa/compositiva/autoral. Dessa maneira, pretende-se
contribuir, sobretudo, para as demandas de novas competências técnicas que os artistas
atualmente enfrentam em sua formação.

Referências:

AMARAL, Ana Maria. O Ator e seus Duplos: máscaras, bonecos e objetos. São Paulo: Ed.
SENAC, 2002.
BONFITTO, Matteo. O Ator Compositor. São Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
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experimentação. São Paulo: Edusp / Perspectiva, 1989.
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Jaraguá do Sul, SCAR/UDESC, ano 1, vol. 1, 2005, p. 25-51.
CRAIG, E. Gordon. Da Arte ao Teatro. Lisboa: Arcádia, 1911.
GRANERO, Maria Victoria V. Machado. A Aventura do Teatro da Bauhaus. Tese de
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IRAZÁBAL, Federico. Francisco Javier: la renovación de la escena argentina está
alojada em las pequeñas salas. Cuadernos de Picadero, año 2, no 4, diciembre
2004, Instituto Nacional del Teatro, Buenos Aires, p. 4-11.
JAVIER, Francisco. El Espacio Escénico como Sistema Significante. Buenos Aires: Ed.
Leviatán, 1998.
KIRBY, E. T. The Mask: abstract theatre, primitive and modern. The Drama Review
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LECOQ, Jacques. O Corpo Poético: uma pedagogia da criação teatral. São Paulo: Ed.
Senac São Paulo / Ed. SESC SP, 2010.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac & Naify, 2007.
MURRAY, Simon. Jacques Lecoq. London / New York: Routledge, 2003.
PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
SCHLEMMER, Oskar. Man and Art Figure, in: GROPIUS, Walter (ed.). The Theater of
the Bauhaus. London: Eyre Methuen Ltd., 1961, p. 17-46.
SILVA, Ipojucan Pereira. O Teatro Essencial de Denise Stoklos: caminhos para um
sistema pessoal de atuação. Dissertação de Mestrado, São Paulo, ECA-USP, 2008.
WINGLER, Hans. The Bauhaus: Weimar, Dessau, Berlin, Chicago. Cambridge,
Massachusetts and London: MIT Press, 1981.

Notas:
1
Esta pesquisa tem o apoio da agência de fomento CAPES/CNPq.

2
Apesar de não ter sido levada adiante como pesquisa de mestrado, essas questões ganharam certo aprofundamento no
artigo: SILVA, Ipojucan Pereira . Corpo/Objeto: o “mascaramento” na cena contemporânea brasileira. Revista Móin-
Móin (UDESC), ano 6, v. 07, 2010, p. 14-26.
3
Para Renato Cohen, em Performace como linguagem: criação de um tempo – espaço de experimentação (São Paulo:
Edusp / Perspectiva, 1989, p. 103), a persona diz respeito a algo mais universal, arquetípico, e a personagem diz respeito a
algo mais referencial. Segundo ele, o trabalho com a persona se dá geralmente pela forma, de fora para dentro, a partir da
postura, da energia.
4
[...] al realizar sus acciones, el actor genera una energia espacial que va dando forma al espacio escénico, [...]

5
[...] from Gordon Craig (and Neo-Romanticism) through the futurists, Dada, the work of the Russian formalists, the
Expressionists, the Surrealists, the Bauhaus, and so on, [...]We perceive ever more clearly in this work an underlying
intention: the creation of an abstract theatre. Its symbol, and that which clearly represents its function and aesthetics, is the
mask – or the masked actor whom Craig called the Übermarionette.
6
“[...] man and transformed back into nature or the imitation of nature [...] in the theater of illusionistic realism”.

7
A estereometria, ou geometria do espaço, é um ramo da matemática que estuda o volume dos sólidos geométricos e que
nos auxilia na medição do mundo tridimensional que nos rodeia. A planimetria é a representação em um plano de algum
espaço tridimensional; os pontos medidos são projetados sobre uma superfície horizontal.
8
Coordenado pelos professores Dr. Armando Sérgio da Silva e Dr. Eduardo Coutinho, o objetivo principal do CEPECA é
reunir, em grupo de estudos práticos sobre interpretação, professores, alunos de pós-graduação e interessados na área.
Visando a resultados perceptíveis em trabalhos práticos e espetáculos, caminham juntos os aspectos acadêmicos e
criativos, ou seja, professor e alunos se obrigam e se comprometem com os resultados estéticos, a partir de suas escolhas
metodológicas.
9
A partir de cursos ministrados aos alunos de arquitetura da Escola de Belas Artes de Paris (Ecole Nationale Supérieure
des Beaux-Arts), Jacques Lecoq criou, em 1976, o Laboratório do Estudo do Movimento (LEM), um departamento de
artes plásticas e cenografia experimental da Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq. O departamento é consagrado
ao estudo dinâmico do espaço e dos ritmos através da representação plástica, com aulas de movimento, de construção e de
desenho, envolvendo os domínios da arquitetura, do design e da cenografia. Junto ao arquiteto Krikor Belekhian, Lecoq
esteve à frente da direção do LEM até o ano de 2011, quando foi substituído por sua filha, arquiteta e cenógrafa Pascale
Lecoq. Apesar da sua autonomia, a proposta pedagógica do LEM não está desvinculada da Escola Internacional de Teatro
Jacques Lecoq, o que resulta em atividades que dialogam e interagem com a pedagogia da escola.
10
“[...] movement work [...] and [...] creative work that entails the building - and subsequent 'animation' - of structures
which seek to capture, express and bring to life the qualities of the movements explored hitherto.”
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

DISCUSSÕES SOBRE O CONCEITO DE UNIPERSONAL


Jennifer Jacomini de Jesus (Mestranda em Teatro e bolsista do Programa de Bolsa de
Monitoria de Pós-Graduação - PROMOP); Dra. Fátima Costa de Lima (Orientadora);
Programa de Pós Graduação em Teatro - PPGT/Centro de Artes - CEART/Universidade do
Estado de Santa Catarina - UDESC).

RESUMO: O presente artigo empreende uma análise do conceito de unipersonal. O


unipersonal tem origem no idioma espanhol e foi um formato vastamente utilizado na
Argentina a partir da década de 80. Refere-se a uma forma cênica realizada por um único
ator/atriz que assume outras funções teatrais (dramaturgia/direção) e cujo texto cênico mescla
representação de personagens a instâncias narrativas. Propõe um fazer teatral que resgate na
solidão, e por meio dela, o restabelecimento da comunicação com o espectador. Para tanto,
são consideradas as circunstâncias espaciais e temporais do surgimento do termo e
investigados aspectos desta modalidade cênica em relação a formas criativas com as quais
têm características comuns (monólogo, one man/one woman show, recital, solo, stand up
comedy), bem como àquelas às quais se opõe, a fim de identificar as peculiaridades e
especificidades do unipersonal. Também são discutidas questões relacionadas à interpretação
e ressignificação na tradução cultural do conceito.

PALAVRAS-CHAVE: unipersonal, ator-autor, espetáculo solo.

O conceito de unipersonal surge no contexto teatral argentino das últimas três décadas
e embora seja amplamente utilizado naquele país, aparece ainda timidamente no Brasil. A
dificuldade em se definir o que é um unipersonal para nós, brasileiros, advém de dois
problemas fundamentais, sobre os quais discorro a seguir.
O primeiro está ligado à ressignificação da palavra que é gerada pela tradução do
conceito. Seu correspondente em língua portuguesa - unipessoal - conduz a interpretações e
relações dissociadas do universo teatral.
O segundo problema se deve ao fato de a definição do unipersonal confundir-se com
outras modalidades criativas, com as quais compartilha algumas características. A aparente
ideia de semelhança entre essas formas espetaculares leva a uma generalização que conduz a
equívocos.
Na tentativa de elucidar essas questões, me proponho a investigar o conceito de
unipersonal, considerando, para tanto, as ressignificações que ele adquire a partir de sua
tradução cultural. Realizarei uma análise desde uma perspectiva da etimologia e genealogia
do termo. Também abordo neste artigo o unipersonal a partir de uma perspectiva filosófica,
recorrendo aos conceitos de aporia, de Derrida e antinomia, de Kant.
A palavra unipersonal tem origem no latim: o prefixo uni vem de unos e significa um
e o sufixo personal, vem de personális e significa pessoa. Assim, semanticamente, reunindo
esses dois verbetes, chegaríamos à conclusão de que unipersonal designa algo que é relativo,
correspondente ou pertencente a uma única pessoa. Essa definição é apropriada para nomear
a criação cênica cuja concepção, criação e execução é correspondente a um só indivíduo.
Porém, se aprofundamos a questão, teríamos também a associação aos significados de
uni relacionados a união/universalidade, o que nos leva a uma compreensão inteiramente
oposta, ligada à totalidade, à integração, ao globalizante e ao coletivo. Esse entendimento até
teria alguma relação com o unipersonal se o pensarmos de forma poética, como a
aproximação, o encontro entre os universos do ator e do espectador.
Em nosso idioma, em geral emprega-se a tradução literal de unipersonal, unipessoal,
para referir-se a instâncias, operações e organizações jurídicas formadas por uma só pessoa,
tais como sociedade unipessoal, empresa unipessoal, contrato unipessoal.
Utiliza-se ainda o unipessoal como classificação de verbos que possuem sujeito em
uma única pessoa do discurso – a saber: 3ª pessoa do singular (ele/ela) e do plural (eles/elas).
São os casos, para citar exemplos, dos verbos doer, aprazer, e também daqueles que
exprimem ações ou estados relativos às vozes de animais: latir, miar, ladrar, relinchar, rosnar,
mugir, etc.
Percebemos, portanto, que essas noções de unipessoal escapam completamente ao
contexto cênico. Como vimos, em teatro, a referência ao conceito de unipersonal surge na
Argentina, com mais ênfase dos anos 80 em diante. Essa modalidade aparece, portanto, no
período pós-ditadura, e pode ser percebida como uma necessidade de afirmação da identidade
perdida durante os anos de repressão e como uma busca por uma autoralidade que responda
aos desejos pessoais. A forma cênica unipersonal teve, ao menos em seus primórdios, uma
tradição política.
Nos deparamos, nesse estudo, com a incapacidade discursiva da exatidão e precisão,
uma vez que a linguagem, e em nosso caso uma mesma palavra, produz uma multiplicidade
de significados e faz referência a uma diversidade de fenômenos.
Devido a utilização corrente da palavra em português, com outras acepções diversas
daquela que me interessa, opto pela não tradução literal do termo, e adoto a concepção que
Peter Burke chama de tradução cultural e que vai evidenciar os limites da tradutibilidade.
Para esse pesquisador, a operação de tradução deve ser entendida em um contexto amplo
como sendo o processo interpretativo de entendimento de objetos estrangeiros, um esforço
significativo de encontro entre duas culturas (BURKE, 2009).
Diante do impasse terminológico e a fim de promover uma confluência entre as
culturas brasileira e argentina, procuro abordar outras formas de definição do unipersonal,
que possam esclarecê-lo, senão completamente, ao menos parcialmente. Busco me aproximar
de uma elucidação sobre a que estou me referindo quando utilizo o conceito de unipersonal.
Em virtude das dificuldades apresentadas para definição e utilização do termo
unipersonal no Brasil, proponho uma abordagem filosófica do conceito.
O filósofo francês Jacques Derrida sugere a desconstrução dos conceitos a fim de
demonstrar que o sentido está no domínio do indeterminado. Ele define este tipo de análise
como aporia. Uma investigação aporética pressupõe a definição de um tema central a partir
da refutação de todas as tentativas de definição. Este é um dos procedimentos que tento
realizar com o unipersonal: defini-lo a partir da via negativa, ou seja, busco explicar o que é
um unipersonal a partir daquilo que ele definitivamente não é.
Um solilóquio, por exemplo, não é um unipersonal. O solilóquio é um tipo de
monólogo. O monólogo, embora também seja interpretado por uma só pessoa, não é
sinônimo de unipersonal. Segundo Pavis (2005), o monólogo se caracteriza por ser a
expressão de um só personagem, que em cena não está acompanhado por ninguém e que
elabora um discurso para si mesmo, para um interlocutor imaginário ou para o público. Pode
ser a expressão de seus sentimentos e/ou pensamentos em voz alta, e, nesse caso, o
chamamos de solilóquio. Pode, ainda, ser o anúncio, para o público, de um acontecimento
que está por vir ou comentário sobre outro personagem ou situação que acontece na peça.
Nesse caso, que chamamos de aparte, fica evidente a busca do estabelecimento de
cumplicidade com a plateia.
Nerina Dip (2002), em sua dissertação de mestrado, expõe outras formas cênicas que
podem confundir-se com o unipersonal. Abaixo listo algumas delas:
One-man/one-woman show: forma espetacular que teve origem no music hall, e na
qual um personagem apresenta esquetes, canções, danças e imitações;
Recital: apresentação de um músico ou bailarino que interpreta textos teatrais ou
poemas;
Solo: modalidade cênica que se refere a criações realizadas por um só interprete,
utilizado em outras áreas além do teatro, como na dança, no circo e na música.
Stand up comedy: espetáculo no qual um comediante, geralmente sozinho, se dirige
diretamente ao público, rompendo a quarta parede, com narrativas que tem objetivo
de serem engraçadas.
Mas a pergunta persiste: o que diferencia esses formatos do unipersonal? Talvez o
mais apropriado seria afirmar que a única coisa em que se assemelham a ele é o fato de serem
representados por um único ator/atriz.
Ao contrário do monólogo, do recital, do solo e do one man/woman show, o
unipersonal é composto por uma dupla enunciação: que contempla monólogos, numa relação
lírica ou épica, mas que também apresenta diálogos entre personagens interpretados pelo
mesmo ator e que comunicam-se entre si. No unipersonal, portanto, o ator não apenas unifica
as funções narrativa e representativa, como também interpreta diversos personagens.
Quanto ao stand up, que também emprega as duas estratégias discursivas (monólogo e
diálogo), a diferença em relação ao unipersonal se dá pela temática e pelos objetivos. O stand
up comedy obrigatoriamente pertence ao gênero cômico, trata de temas humorísticos e tem o
intuito de entreter o público. Assim, podemos dizer que um stand up pode ser um
unipersonal, mas um unipersonal não necessariamente será um stand up.
Uma outra característica importante do unipersonal, que nos auxilia a diferenciá-lo
dos outros formatos teatrais, é apontada Nerina Dip. De acordo com a pesquisadora, o
unipersonal procura expor, de forma exarcebada, a condição de solidão do ser humano na
contemporaneidade, tanto na sua forma como no signo, assumindo, portanto, uma dimensão
crítica em relação a esse estar só na sociedade (DIP, 2005).
Todos esses aspectos que mencionei até agora são importantes para a compreensão do
unipersonal, mas talvez o que realmente o fundamente seja a dimensão política que ele
pressupõe.
No unipersonal o intérprete não apenas está só em cena. Existe um poder simbólico
no encontro do público com a visão pessoal do artista que assume todos os riscos do processo
criativo e interpretativo. O unipersonal responde a uma necessidade de expressão artística
suscitada por contextos políticos, sociais, econômicos e pessoais. Dessa maneira o ator,
diante de uma situação insatisfatória, rompe o abismo do silêncio e expressa sua
subjetividade – na voz, no corpo e na cena. Isso talvez explique o aparecimento de traços
autobiográficos em muitas das criações unipersonais.
Conforme Beatriz Trastoy, ao longo da história, os unipersonais foram empregados
como ferramenta de trabalho por setores marginalizados, em confronto com os discursos
dominantes. Este é o caso dos grupos sociais minoritários, como o dos travestis, das
feministas e dos anarquistas (TRASTOY, 2002). A pesquisadora aponta que ainda que não
tenham sido realizados estudos aprofundados a respeito do caráter político do unipersonal, é
impossível considerá-lo alheio às estruturas institucionais e sociais atuais. Ela afirma que
embora as estratégias e formas de encenação tenham se modificado ao longo dos anos, o
aspecto político não deixou de estar presente nos espetáculos teatrais (TRASTOY, 2009).
Essa parece ser uma perspectiva interessante para a compreensão da função política no teatro,
em específico no caso dos unipersonais.
A respeito do caráter político do ato teatral, Javier Daulte sugere a existência de uma
nova “responsabilidade do teatro”. Para ele, após o fim do governo militar, do terrorismo de
estado e da censura, há nas artes uma mudança de eixo político do discurso para o ato
libertário criativo. Conforme esse autor, com o reestabelecimento da democracia, o teatro
recupera sua especificidade, sua própria linguagem, que está relacionada ao estado de jogo
(DAULTE, 2014). Em consonância com o pensamento desse dramaturgo e diretor argentino,
podemos compreender a dimensão política do unipersonal como sendo o próprio jogo que ele
instaura a partir de sua forma.
Com relação às características dessa modalidade cênica e fazendo referência à teoria
semiótica de Tadeusz Kowzan, María Victoria Fornoni afirma que no unipersonal, os signos
teatrais que pertencem ao ator (palavra, entonação, expressão facial, gestual, movimentação
cênica, maquiagem, penteado e figurino) ocupam o primeiro plano na encenação, enquanto
que os signos externos a ele (acessórios, cenário, iluminação, música e som) adquirem uma
função direta com o ator e objetivam direcionar o olhar do espectador para aquele. Outro
traço desta modalidade cênica que a figurinista argentina destaca é a teatralidade que,
segundo ela, é acentuada pela nova relação que se estabelece entre ator e espectador. No
unipersonal a convenção de palco e plateia é interrompida. Essa mudança é atribuída por ela
não somente à nova configuração de cena, que ocorre com a apresentação de unipersonais em
espaços não convencionais - frequentemente locais pequenos e ambientes mais intimistas -
como também ao próprio jogo entre ilusão e verossimilhança, existente neste tipo de
espetáculo (FORNONI, 2014).
Este jogo entre real e ficcional está diretamente relacionado às instâncias de
enunciação, uma vez que no unipersonal se alternam e se imbricam as vozes do narrador, do
personagem e do próprio ator, mesclando relatos e representações ficcionais a acontecimentos
reais e por vezes autobiográficos. Podemos apontar a presença de matrizes biográficas nos
espetáculos unipersonais, como sendo outro traço marcante que os diferencia das demais
formas cênicas realizadas por um único intérprete.
Se por um lado, como vimos, há algumas premissas básicas para que um espetáculo
seja considerado unipersonal, por outro, esta modalidade cênica pode abarcar uma enorme
gama de gêneros e estilos teatrais, que vão desde o teatro de pesquisa ao teatro comercial.
Atualmente, o termo unipersonal é aplicado genericamente para fazer referência a
diversos tipos de espetáculos. Tornou-se comum o seu emprego, nas programações e críticas
jornalísticas, com menção a encenações individuais, cujas funções de dramaturgia e direção
de cena nem sempre coincidem e, muitas vezes, não são desempenhadas pelo mesmo artista
que realiza o espetáculo. Com isso, o unipersonal perdeu a dimensão política e o caráter
autoral que originalmente possuía e que em certa medida justificava o emprego desta nova
nomenclatura em contraponto ao já conhecido monólogo.
Beatriz Trastoy (2002) aponta dois principais motivos para a proliferação massiva
deste tipo de espetáculo na programação teatral argentina: o primeiro deles, relacionado a
fatores econômicos, diz respeito aos reduzidos custos e sua consequente facilidade de
produção e realização. O segundo, ligado a questões estéticas, é atribuído ao alto grau de
exposição e expressão individual que o unipersonal propicia.
Gostaria de propor ainda uma reflexão a partir de uma análise antinômica kantiana. A
antinomia propõe uma abordagem dos fenômenos a partir das contradições. Baseados nessa
perspectiva filosófica, poderíamos tentar entender o surgimento do unipersonal em oposição
ao chamado teatro de grupo e às demais composições cênicas coletivas: companhias, elencos
e associações.
As criações coletivas têm sua expressão máxima nos anos 60/70, época imediatamente
anterior à ascensão do unipersonal, e surgem em contextos ditatoriais como uma resposta à
repressão e ao pensamento autoritário vigente. De acordo com Luís Alberto de Abreu, são
percebidas como uma possibilidade de organização compartilhada com ampla participação e
mútua interferência de todos os integrantes do grupo na elaboração de um espetáculo
(ABREU, 2003).
Assim como a conjuntura social externa interferiu diretamente na forma de expressão
artística durante os governos ditatórias latino-americanos, podemos supor que a sociedade
contemporânea também exerce influência nas realizações criativas atuais.
Pode parecer paradoxal pensar uma obra teatral, prática artística coletiva por
excelência, sendo produzida por um único indivíduo. Contudo, se verificamos as
circunstâncias do surgimento do unipersonal, em nossa sociedade pós-moderna e em um
contexto de valorização da padronização e da uniformidade, essa expressão subjetiva pode
ser percebida como uma forma de resistência e ruptura com um modelo hegemônico, uma
possibilidade de unir pessoas.
BIBLIOGRAFIA

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p. 101-116.

_____. Teatro autobiográfico: los unipersonales de los 80 y 90 en la escena argentina. Buenos Aires:
Nueva Generación, 2002.
TEMA: ESPAÇOS DE PEDAGOGIA E FORMAÇÃO

O ESPAÇO VAZIO NA FORMAÇÃO DO ATOR/DANÇARINO NO BUTOH

Kysy Amarante Fischer (Bolsa CAPES – mestrado); Orientadora: Prof ª Dra. Maria Brígida
de Miranda; Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)i.

Resumo:

Neste trabalho busco uma reflexão sobre o papel do mestre no Butoh, arte do corpo que não
possui uma definição fechada e única. Para esta análise, utilizo noção de “mestre ignorante”
apresentada por Jacques Rancière e a discussão sobre dialogismo dos comentadores de
Mikhail Bakhtin. O objetivo desta pesquisa foi promover uma discussão acerca do ensino no
Butoh como impossibilidade que gera novos caminhos para pensar treinamento.

Palavras-chave: Butoh, ensino, mestre ignorante.

Abstract:

In this work I pursue a reflection on de master’s role in Butoh, art of the body that doesn’t
have a closed and unique definition. For this analysis, I use the notion of the ignorant
schoolmaster that is presented by Jacques Rancière and the discussion about dialogism from
Mikhail Bakhtin´s commentators. The aim of this investigation was to promote a discussion
concerning the teaching in Butoh as an impossibility that brings new paths to conceive the
training.

Keywords: Butoh, teaching, ignorant schoolmaster.

A não existência de um treinamento específico no Butoh pode ser vista como um


espaço vazio que abre possibilidades de invenções de procedimentos tanto para os mestres
como para os discípulos. Para ter uma vaga ideia de onde essas invenções podem chegar, cito
como exemplo, o trabalho de Min Tanaka na Body Weather Farm, onde o treinamento está
associado ao trabalho no campo, na plantação de arroz. Já nos registros das aulas de Kazuo
Ohno (BAIOCCHI, 1995), ao invés de exercícios típicos para dançarinos, imagens poéticas
servem de gatilhos para a dança. Como acontece nesta fala de Onho: “para os mortos, olhar a
flor e comê-la é a mesma coisa. Os fantasmas comem com os olhos. Você e a flor são a
mesma coisa. Comendo a flor está comendo a si mesmo. Nós precisamos dos dois” (OHNO
apud BAIOCCHI, 1995, p. 50). Imagens como esta são ignições para que o dançarino acesse
suas memórias, seu corpo ancestral, um corpo que vai das trevas em direção à luz ou que
retorna ao útero materno, etc. Tais imagens não apontam claramente para a forma que a dança
deve ter. No Butoh não há fórmula, não há um procedimento fixo que possa apontar para um
fim, pois não há um objetivo a ser alcançado. Nesta arte existe espaço para um conhecimento
que não está dado em livros ou métodos e me interessa pensar em como este conhecimento
pode ser suscitado. Assim, me questiono sobre quais especificidades pedagógicas são exigidas
no ensino de uma prática que não reside no campo do conhecido, do codificado, do já
calcificado por um saber. O conhecimento sobre o Butoh se produz nele mesmo. Como coloca
Hijikata Tatsumi, “[...] não há filosofia antes do butoh. Só é possível que a filosofia possa sair
do butoh.” (HIJIKATA apud BAIOCCHI, 1995, p. 18).
Proponho aqui, pensar a questão do “ensino” do Butoh pelo viés do mestre ignorante
(RANCIÈRE, 2002). Para tanto, me utilizo dos textos O mestre ignorante e O espectador
emancipado, ambos de Jacques Rancière. No primeiro, o foco está concentrado na
possibilidade de um outro formato de pedagogia e no segundo, o autor pensa a condição do
espectador a partir da ideia de mestre ignorante e pela problematização da ligação entre causa
e efeito. O mestre ignorante reflete sobre a teoria de Joseph Jacotot, professor francês do
século XIX que afirmou, como explica Rancière, “que uma pessoa ignorante poderia ensinar a
outra pessoa ignorante o que ela mesma não conhecia” (RANCIÈRE, 2010, p. 108). A
distância de contextos entre Jacotot e o ato de pensar a condição do espectador hoje, é
assumida por Rancière que afirma que a própria distância pode ser interessante se forem
explicitados os pressupostos que ainda colocam a condição do espectador num ponto entre
arte e política. Partindo também da distância, utilizo a ideia do mestre ignorante para pensar a
postura do mestre no Butoh. Quando faço essa associação, entre o mestre ignorante e o mestre
de Butoh, o faço pelo fato de que ambos não sabem o que ensinam. Porém, ainda assim
podem fazê-lo de forma eficaz. Por não saber o que é o Butoh ou qual a sua forma, o mestre
deve criar maneiras de suscitar a busca nos seus discípulos. Hijikata e Ohno falam muito
sobre o Butoh como um conceito quase flutuante mas nunca dizem o que ele “será” nos
corpos dos outros dançarinos. Seus discursos se retém um passo antes disso. Suas linguagens
são reticentes e enigmáticas, e dizem “o que é”, mas o trabalho de descobrir “o que será” está
aberto para o outro, quase como no Zenii, que

nada tem a ensinar, no que se refere à análise intelectual, nem impõe qualquer
conjunto de doutrinas a seus seguidores. Nesse sentido o Zen é caótico. Seus adeptos
podem formular conjuntos de doutrina, formulando-as, porém, por sua conta e para
benefício próprio e não do Zen (SCOFANO, 2007, p.109).

A partir disso, reflito sobre as posições de professor e aluno, mestre e discípulo.


Quando utilizo o termo professor isso traz consigo toda a ideia de instituição de ensino e de
algo a ser ensinado e aprendido. Quando olho para os mestres de Butoh, vejo que a partir do
que é dito por eles, os discípulos são incitados a se manter numa busca constante. Tal busca
não cessa nem no caso do mestre, que continua seu percurso, nem no caso dos discípulos, que
trabalham com invenções de caminhos, de treinamentos que os levem aos seus próprios
Butohs. A postura do mestre é a daquele que não trabalha para o outro, não lhe dá respostas,
mas faz com que o outro trabalhe, que persiga suas próprias respostas.
Segundo Rancière, o questionamento da pedagogia pode servir de reflexão para as
Artes Cênicas. A posição que o mestre da educação embrutecida – termo utilizado por Jacotot
e que define o negativo da educação emancipadora – assume, impede sempre que o aluno se
emancipe. Por mais que o mestre da educação embrutecida tenha consciência de que o aluno à
sua frente possui um repertório de conhecimento pessoal anterior àquele encontro, ele precisa
ignorar esse fato para impor uma distância que determina quando, onde e como o aluno deve
aprender, além de estabelecer o que ele deve conhecer antes disso ou daquilo. Um outro tipo
de distância porém, pode ser pensada: “a distância que a pessoa ‘ignorante’ precisa atravessar
[...] é a distância entre o que ela já conhece e o que ela ainda não conhece, mas pode aprender
pelo mesmo processo” (RANCIÈRE, 2010, p. 114). O aprendizado mais essencial, que é o da
língua materna, já foi efetuado pelo aluno e é através dele que este pode passear por um
universo de signos que fazem a intermediação do seu contato com o outro e com o mundo. O
aprendizado de outros conteúdos que não a língua materna, pode se dar por também por
adivinhação, e Rancière questiona se não seria esse método da adivinhação, que devolveria o
poder e a verdadeira inteligência ao homem. Pois ao tentar reconhecer e responder a algo que
lhe é endereçado, o homem pode fazê-lo sob o signo da igualdade e não na condição de aluno
ou de sábio.
Para Rancière, compreender não é nada mais que traduzir. Neste processo de tradução,
não se faz necessária a presença de uma inteligência “outra”, do explicador, que revele algo
que se esconde por detrás do texto, da página. Para o autor, não existe esta instância
escondida do conhecimento que demande um terceiro explicador, não há “nenhuma língua do
mestre, nenhuma língua da língua cujas palavras e frases tenham o poder de dizer a razão das
palavras e frases de um texto” (Rancière, 2002, p. 22). Um outro ponto de reflexão se abre
aqui. Os workshops e textos sobre Butoh passam por várias traduções. Kazuo Ohno dava suas
aulas em japonês com alguns termos em inglês, Tadashi Endo fala em inglês e alguém o
traduz para o portuguêsiii. Sobre o ato da tradução, Edélcio Mostaço comenta:

Transladar para outra língua os termos, expressões, construções frásicas e vocábulos


muitas vezes forjados pelo autor resulta desconcertante, pois implica fazer falar um
texto dialógico, no interior do qual nos deslocamos, nos interrogamos, à deriva do
que somos frente àquelas formulações, muitas vezes sem equivalentes em nossa
língua. Negociação talvez exprima esse paradoxo, que também pode ser designado
como permuta ou diplomacia (MOSTAÇO, 2010, p. 11-12).

Para Beth Brait um dos eixos do pensamento de Mikhail Bakhtin é justamente a


natureza dialógica da linguagem. Assim, não ignoro os processos dialógicos e de tradução
constante efetuados numa relação de mestre e discípulo. É importante explicitar que termos
como dialogismo, polifonia, interdiscurso e heterogeneidade não correspondem
necessariamente às palavras cunhadas por Bakhtin, mas às definições posteriores a ele e
condensadas por seus comentadores. Sendo assim, me valho de dois desses comentadores –
Brait (2007) e Faraco (2007) – para ler com maior precisão o dialogismo na perspectiva do
presente trabalho. Brait tenta rastrear a questão do sentido e da significação na obra do autor
russo, além de esboçar o seu “projeto em torno do sentido” (BRAIT, 2007, p. 64).
O ser humano pensa e produz sentidos partindo de suas referências. Assumir ou não
que tais referências são retalhos de pensamentos, são traduções, são estrangeiras, é uma
escolha. Esta questão parece bastante óbvia quando colocada nestes termos, mas vejo a
importância de explicitar e reiterar essa obviedade. Um brasileiro, falante de português,
jamais terá um “contato original” com um texto proveniente de outro idioma. Por mais que
nós possamos aprender com maestria inglês, alemão, espanhol, russo, japonês, nós não
crescemos inseridos na cultura que produziu estas línguas. A grande questão é que este
processo de tradução não ocorre apenas entre idiomas, ele ocorre constantemente entre
discursos, sendo os enunciadores conterrâneos ou pessoas vindas de lugares muito diferentes.
Tendo o fato dado de que a mensagem emitida não é a mesma recebida, pode-se expandir esta
visão e considerar que o saber surge deste jogo entre ruídos, entre desentendimentos, ou seja,
é por dialogismo que o conhecimento emerge.
Quanto se trata de dialogismo, deve-se ressaltar que existem duas concepções deste
conceito em Bakhtin. O dialogismo entre discursos (intertextualidade para Tzvetan Todorov)
e entre sujeitos. E a ideia de sujeito em Bakhtin é a de um sujeito histórico e ideológico. É da
interação entre esses sujeitos que o sentido emerge. Ou seja, os estudos da comunicação
verbal – pautados na Teoria da informação que considera um emissor e um receptor e
um “fazer-saber” – não dão conta da teoria da comunicação em Bakhtin. O autor considera
a “heterologia” ou a “pluridiscursividade”. Portanto, o sistema de mão única emissor-receptor
passa a ser visto como um sistema interacional. Deste modo, por meio de Bakhtin posso
pensar um sentido para o Butoh sendo construído conjuntamente e não sendo emitido por uma
voz única. Pois, como afirma Daiana Luz Pessoa de Barros sobre o dialogismo, "os falantes
no diálogo se constroem e constroem juntos o texto e seus sentidos" (BARROS, 2007,
p.29). A ideia de distancia entre interlocutores é subvertida pela ideia de intersubjetividade e
historicidade. Sobre isso, Brait explica que

o dialogismo diz respeito às relações que se estabelecem entre o eu e o outro nos


processos discursivos instaurados historicamente pelos sujeitos, que, por sua vez,
instauram-se e são instaurados por esses discursos. E aí, dialógico e dialético
aproximam-se, ainda que não possam ser confundidos, uma vez que Bakhtin vai
falar do eu que se realiza no nós, insistindo não na síntese, mas no caráter polifônico
dessa relação exibida pela linguagem. (BRAIT, 2007, p. 69).

No embate de pensamentos que surge em uma relação de mestre e discípulo e que


constrói o que vem a ser o Butoh, o que me interessa é justamente esse caráter polifônico e
não uma síntese, um aniquilamento das distâncias. Para Rancière, a tentativa de acabar com as
distâncias se baseia justamente na pressuposição de oposições distantes: olhar/saber;
aparência/realidade; etc. Estas oposições são alegorias da desigualdade, o que o autor nomeia
como a “partilha do sensível”. A emancipação, por outro lado, trabalha com a ideia da
igualdade. O espectador – ou o aprendiz – é visto como ativo, pois interpretar o mundo já é
dar a ele uma nova configuração. Ele faz o seu poema a partir do poema que é a ele
apresentado. O dramaturgo, o diretor e os atores, porém, muitas vezes esperam que o poema
do espectador seja exatamente o que eles planejaram, como se este controle pudesse existir. O
princípio da emancipação desmonta esse processo de causa e efeito. Para Rancière:

esta identidade entre causa e efeito é o princípio do embrutecimento. Em


contrapartida, o princípio da emancipação é a dissociação entre causa e efeito. O
paradoxo do mestre ignorante está aí. O aluno do mestre ignorante aprende o que o
mestre não sabe já que o mestre fala para ele procurar alguma coisa e recontar tudo o
que ele descobriu no caminho, enquanto o mestre verifica se ele está realmente
procurando. O aluno aprende alguma coisa como um efeito do ensinamento do
mestre. Mas ele não aprende o conhecimento do mestre (RANCIÈRE, 2010, p. 116).

O que o aluno aprende não é necessariamente o que o outro sabe, ele pode inclusive
aprender o que o mestre não sabe. Vejo que no Butoh se caminha por essa via quando se trata
do “ensino”. Assim como Jacotot afirmava que “é preciso que eu lhes ensine que nada tenho a
ensinar-lhes” (JACOTOT apud RANCIÈRE, 2002, p. 27), em Campinas, Tadashi Endo nos
disse que não havia aprendido Butoh com Kazuo Ohno e que tampouco nos ensinaria Butoh,
visto que não se trata de dança, mas sim de uma escolha de vida. Ou seja, ser um dançarino e
ser um butoísta são coisas diferentes. É preciso viver o Butoh. É preciso caminhar sozinho.
Sendo assim, é impossível definir quando começa e quando termina o aprendizado em Butoh.
É preciso abrir a percepção para a vida e encontrar nela o Butoh, a poesia ou a própria vida.
No livro Kazuo Ohno: el último emperador de la danza, Gustavo Collini Sartor diz que:

Uma lição de Kazuo Ohno não é uma lição normal. Quando começa? Talvez quando
tomamos o trem de Tóquio até Yokohama? Quando nos sentamos no seu estúdio, ao
redor da mesa, tomando uma xícara de chá e o escutando antes de trabalhar?
(SARTOR, 1995, p.123).
No caso do mestre ignorante e no caso do Butoh, o mestre ocupa o lugar de verificar
se o aluno está engajado em sua busca. Deste modo, o percurso lógico de uma proposta de
treinamento pode não ser claro. Por vezes uma proposta de experiência traz consigo uma
tentativa de criar espaços de vida. Isso me remete à quando, no meio do workshop O visível e
o invisível no trabalho do ator-dançarno, Tadashi e Simioniiv nos convidaram para passar um
dia na casa do segundo e nos propuseram uma série de ações. Nos dividimos em equipes.
Alguns fariam diferentes molhos, outros fariam a salada e outros ainda a sobremesa, os
mestres fariam macarrão. Pela manhã, nos encontramos para comprar ingredientes, esperar
algum colega que se atrasa ou se perde. Quando chegamos na casa, estivemos conversando e
esperando que algo acontecesse. Quando fomos cozinhar a instrução que recebemos foi que
não poderíamos falar uns com os outros. Imediatamente nossas teimosias começaram a
aparecer na feitura do molho. Nossos entendimentos pelo olhar também. As ações simples
envolvidas no cozinhar, exigiam de nós a mobilização de nossas sensibilidades. Enquanto
isso, os dois proponentes passavam por nós, observavam e davam algumas risadinhas.
Uma outra ação proposta foi a de que cada um tomasse a iniciativa de cantar uma
canção de sua infância enquanto os demais se manteriam em silêncio. Toda a casa se
envolveu numa nuvem de ternura e saudade, parecendo que o silêncio cantado era mais
silencioso. Quando uma linda mesa estava arrumada fomos convidados a procurar o envelope
de hashi que nos pertencia pois o nosso nome estava escrito lá, em japonês. Quando cada um
estava com o seu envelope, Tadashi foi passando e reorganizando a distribuição dos hashis, se
divertindo como os nossos enganos. Comer aquela comida estava envolvido por tudo o que
sentimos enquanto cozinhávamos. Conversamos muito, contamos nossas histórias do Brasil,
Colômbia, Equador, Dinamarca, Espanha.
Nessas duas propostas de ações fomos levados a nos encontrar conosco mesmos de
diferentes maneiras, e diferentes “nós mesmos”. Estas propostas não contêm em si, nenhuma
relação direta com a dança. É um treinamento do sensível, da relação e do invisível. A partir
dessa experiência em Campinas, penso que o mestre deixa, com suas ações, espaços vazios
que os discípulos devem preencher. Por exemplo, vivendo o que me é proposto, posso me
questionar sobre o que o mestre quer de mim, o que está pensando sobre mim ou sobre como
eu danço. Este trabalho de preencher esta falta é também falho em muitos sentidos, o que
produz uma busca constante. A busca de quem faz Butoh, e os resultados que isso produz,
gera o que pode vir a ser Butoh. Este trabalho é feito conversando sobre o que faz sentido
para a minha dança, é feito quando alguém escreve um artigo sobre Butoh, um poema, ou
quando se tem a coragem de dizer: o que eu faço é Butoh.
O movimento gerado pela dúvida é fértil. Mas para que ocorra criação a partir destas
dúvidas e incertezas é necessário que o sujeito se coloque em uma posição de não saber e de
perseguição deste saber. Por exemplo, uma fala relativamente clara pode ser endereçada a
alguém, e ainda assim, este que recebe essa mensagem produzir questionamentos a partir
disso. Percebo esta postura quando Kazuo Ohno conta que Yukio Mishima sempre dizia “sua
dança é boa”, e Ohno relata que pensava:

Dizer que alguma coisa é boa pode ser interpretado de várias maneiras. O que, na
verdade, ele queria significar com isso? [...] eu pensava comigo mesmo: “Minha
dança é boa, mas o que é bom?” Poderia valer menos que o ruim, então significaria
“o que você faz é ruim”. Isso me deixou pensando durante anos (OHNO, 1995,
p.130).
Portanto, não é apenas o mestre que coloca espaços vazios na sua mensagem, por
vezes é o próprio ouvinte que demanda a busca de mais sentidos naquilo que lhe é oferecido.
E, como afirma Rancière, o querer saber é a condição fundamental para o processo do
conhecer.
REFERÊNCIAS

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BARROS, D. L. P. de. Contribuições de Bakhtin às teorias do textos e do discurso. In:


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MOSTAÇO, E. Da arte de quebrar pedras ou a cena da emancipação. Urdimento,


Florianópolis, n. 15, out 2010, p. 11-19.

OHNO, K. Entrevista a Sartor. In: SARTOR, G. C. Kazuo Ohno: El último emperador de la


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RANCIÈRE, J. O mestre ignorante - cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad.


Lilian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

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SARTOR, G. C. Kazuo Ohno: El último emperador de la danza. Buenos Aires: Editorial


Vinciguerra, 1995.

NOTAS:
                                                                                                               
i
Agência financiadora da pesquisa: CAPES.
ii
O Zen-Budismo surgiu como uma adaptação japonesa do Tch’an (corrente budista chinesa) que chegou ao
Japão no século XII, a pedagogia do Zen manteve a meditação assentada (zazen) e os enigmas verbais (koans).
Segundo Scofano (2007), o Zen não se funda na lógica ou na análise, “ele apenas sugere o caminho. A menos
que consideremos este sugerir como ensinamento, nada há no Zen propositalmente estabelecido como doutrina
primordial ou filosofia fundamental” (SCOFANO, 2007, 109 -110).  
iii  Esses embates entre línguas maternas geram matizes de entendimento que se perdem, se recriam e que podem
apontar para algo interessante a ser estudado. Pois no Brasil, o acesso restrito a traduções e aos próprios mestres,
pode gerar uma maneira bastante autônoma de criar pensamento e dança em Butoh.  
iv  Carlos Simioni é ator do Lume – núcleo interdisciplinar de pesquisas teatrais da UNICAMP – que em quase
30 anos de existência, estabelece alguns diálogos com o Butoh, principalmente através dos contatos com Anzu
Furukawa, Natsu Nakajima e Tadashi Endo.  
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

DRAMÁTICO, CÊNICO E IMAGINATIVO –


OS DIFERENTES ESPAÇOS EM O MENSAGEIRO DO REI
Lucas de Carvalho Larcher Pinto; Orientadora: Prof.ª Dr.ª Vilma Campos dos Santos
Leite; Programa de Pós-Graduação em Artes; Universidade Federal de Uberlândia.

INTRODUÇÃO

Um quarto escuro, um menino doente em uma cama e uma janela por onde
se pode ver o mundo... No quintal, brincam esquilos. Na rua, passam o vendedor de
coalhada, o guarda do pequeno lugarejo, o chefe da guarda, uma menina vendedora de
flores, algumas crianças e também um falso faquir. Nos pensamentos do pequeno
enfermo, montanhas, rios, oceanos, ilhas, aldeias distantes, e histórias fantásticas
ganham forma através da imaginação de quem não pode sair de casa. Estas são algumas
das imagens que nos vêm à mente ao falarmos de O Mensageiro do Rei.
Escrita pelo primeiro não-europeu a conquistar, em 1913, o prêmio Nobel de
Literatura, o poeta e filósofo Rabindranath Tagore, a peça O Mensageiro do Rei (1912)
conta, na perspectiva oriental, a história de Amal. Um menino que, após perder seus
pais, é adotado por seus tios, vivendo sob rígidas ordens médicas, confinado em seu
quarto. Doente, observa os dias passarem através de uma janela frontal a uma casa de
Correios. O lugar no qual, segundo o garoto, chegará uma mensagem enviada a ele pelo
próprio rei, libertando-o para correr mundo afora.
A peça que trata, de maneira lúdica e lírica, a temática da morte e da
liberdade, vem sendo levada à cena por egressos e concluites do curso de graduação em
Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Ficando em cartaz durante os meses de
Maio e Junho de 2014, na cidade de Uberlândia-MG, o espetáculo infantojuvenil ganha
forma através da encenação assinada por Mário Piragibe, lançando mão da linguagem e
dos recursos do Teatro de Formas Animadas (bonecos, objetos, sombras e máscaras)
para abordar as questões filosóficas que se fazem presentes na trama mensionada.
Neste sentido, o texto de Tagore torna-se apenas um pretexto para a
montagem em questão. A encenação, construída com base na representação metafórica
do desejo de Amal: curar-se e correr todo o mundo, insere na área de atuação um par de
sapatos inertes, os quais o menino poderá calçar, um dia, quando livre de sua
enfermidade. Uma alusão à liberdade que a morte pode simbolizar. Liberdade que
permitiria a Amal romper com espaço da casa que o aprisiona, e conhecer os lugares dos
quais apenas ouvira falar, desenhados em seu pensamento.
Com o objetivo de compartilhar algumas reflexões sobre o espetáculo citado
acima, foco da pesquisa de mestrado “A linguagem cênica no Teatro Infantojuvenil: O
Mensageiro do Rei como objeto de análise” (PPGA – UFU), neste breve artigo,
falaremos sobre a presença dos diferentes espaços na montagem em questão. Ou seja,
tal como nos apresenta Patrice Pavis em seu Dicionário de Teatro (2008, p. 132): o
espaço dramático – “espaço dramatúrgico e ficcional, no qual o texto indica ocorrer a
ação dramática” - , e o espaço cênico – “espaço concreto que se configura como área de
atuação dos atores”. E, ainda, aquele evocado pelas falas dos personagens, e que não
pode ser caracterizado como dramático ou cênico, que aqui chamaremos de espaço
imaginativo.

O ESPAÇO DRAMÁTICO
Ao nos depararmos com o texto O Mensageiro do Rei, podemos perceber a
existência de diferentes espaços nos quais a ação dramática se desenrola. Na
dramaturgia em questão, constituída por três atos, em um primeiro momento, temos a
ambientação dos acontecimentos no interior da casa dos tios de Amal. Já em um
segundo momento, - ou segundo ato - , o espaço externo à casa, provavelmente uma rua
vista pelo menino através da janela de seu quarto, serve como pano de fundo para a
história. E, no terceiro ato, novamente, a trama volta a acontecer no interior da casa,
agora, especificamente, no quarto de Amal.
Logo na primeira cena do texto de Tagore, ao sermos apresentados ao
conflito da peça: a doença de Amal, através da figura do Doutor que vem examinar o
menino, proibindo-o de sair ao ar livre, podemos levantar algumas informações sobre o
espaço. Estas, em colaboração com os indícios extraídos das falas da segunda e da
terceira cena, ajudam-nos a entender o contexto no qual a criança está inserida. Amal
vive em um pequeno vilarejo indiano, na casa de seus tios, enclausurado em seu quarto,
sob prescrições médicas. O ano dos acontecimentos não é apresentado, sendo que por
este motivo, podemos considerar a história atemporal.
Além disso, de acordo com as palavras do Doutor, sabemos que a estação do
ano é o outono (um verdadeiro veneno para a doença do menino). E, como podemos
inferir por meio das falas do velho Takurda, - na segunda cena - , a morada de Amal não
é um ambiente simplório, nem luxuoso. Madhav Dutta, o tio, é um pequeno
comerciante, proprietário de uma casa com um quintal repleto de esquilos. Quintal este
onde sua esposa mói lentilhas, e para o qual, nem ao menos, Amal pode se deslocar.
O segundo ato do texto nos apresenta a rua para onde a janela do quarto de
Amal é direcionada. Neste ambiente público, pessoas vem e vão preocupadas com seu
cotidiano. E são justamente estas pessoas, – tais como o vendedor de coalhada, o guarda
do vilarejo, o chefe da guarda, a menina florista, e alguns meninos que brincam na
calçada - , que Amal cumprimenta, estabelecendo uma relação de amizade.
Um dos personagens citados acima adquire importância impar, neste ato, ao
nos referirmos ao espaço, redimensionando a concepção de Amal quanto à rua. Trata-se
do guarda, o responsável por desfazer a curiosidade do garoto quanto o que seria a
enorme casa com uma bandeira no alto, fronteira a sua janela. Ele dirá a Amal ser a
nova casa de Correios, um empreendimento do rei. E, também, que um dia chegará ali
uma carta do próprio rei destinada ao garoto. Uma carta que será entregue pelos
mensageiros do rei: homens que correm de um lado para o outro, com insígnias
douradas em seus peitos.
Ainda com relação ao segundo ato, a rua e seus transeuntes assumem um
caráter afetivo para o menino, através da amizade travada com as crianças que brincam
em sua calçada, e com a florista Shudha. No primeiro caso, Amal se reconhece como
toda criança de sua idade, que não vê o tempo passar ao brincar, quando acompanhado
de outras crianças, livre da solidão imposta por sua doença. Já no segundo caso, o
garoto começa a nutrir um sentimento amoroso, próprio do primeiro amor da infância,
pela pequena vendedora de flores, a única personagem feminina que aparece em cena
durante toda a peça.
O terceiro ato do texto do qual estamos falando, retoma o espaço fechado da
casa de Madhav. Contudo, agora, ao invés de uma possível sala de visitas, em que
ocorrem as três primeiras cenas, que juntas constituem o primeiro ato da peça, o
ambiente no qual a ação dramática se desenvolve é o interior do quarto do menino.
Amal está em sua cama, proibido pelo Doutor de permanecer na janela, sob o pretexto
de que ficar ali piora ainda mais a sua doença.
Neste contexto, em que a doença de Amal configura-se como exacerbada,
algumas visitas se fazem presentes nos últimos momentos de vida do garoto,
imprimindo ao espaço ternura e tensão. São elas: a de Takurda, fantasiado de faquir, a
do Doutor para seus exames periódicos, e a do chefe da guarda, que tendo conhecido o
menino no segundo ato, acha uma afronta a ideia do mesmo de esperar uma carta do rei,
e resolve, por maldade, levar uma falsa carta a Amal, afim de zombar de Madhav, com
quem teve desavenças no passado.
No entanto, uma pancada é dada na porta de entrada da casa dos Dutta, e
pedidos de “abram a porta” são escutados, calando todos os visitantes. A porta da casa é
derrubada, e com a penetração de um feixe de luz advindo da rua do pequeno lugarejo,
veem-se duas figuras sobrenaturais. O arauto e o médico do rei visitam Amal, pedindo
para que todas as portas e janelas da casa sejam abertas. A casa sofre, assim, um
processo de metamorfose. De gaiola que aprisiona Amal, agora, passa a ser leito do
corpo que jaz, ao mesmo tempo em que o menino liberto de sua dimensão material, o
corpo, ganha asas e corre o mundo.

O ESPAÇO CÊNICO

Na montagem de O Mensageiro do Rei sobre a qual nos referimos, ao


propor um universo distinto do da fábula, a encenação do espetáculo se utiliza do
espaço cênico como “área de jogo”, aberta a leituras polissêmicas dos espectadores, e
que é capaz de se adaptar às diversas necessidades e ambientações propostas pela
história a ser contada. Deste modo, tal como sugerido por Brecht, no passado, o
espetáculo conserva a estrutura à italiana, desfigurada por dentro, revelando, assim,
seus recursos técnicos, e explorando a exibição de sua teatralidade.
No espaço cênico de O Mensageiro do Rei – criado por Emilliano Freitas -
vemos a presença de almofadas das laterias do palco nas quais os atores estão sentados
quando não dão vida aos personagens do texto de Tagore. Também estão presentes na
área de atuação os dispositivos cênicos que compõem a cenografia do espetáculo.
Sendo eles: dois baús, de onde saem grande parte dos objetos e bonecos utilizados em
cena ( criados por Angie Mendonça, e que não remetem diretamente ao universo indiano
do texto), assim como a estrutura de uma casa, na qual é projetada a imagem/sombra de
Amal durante o primeiro e o segundo ato, e que é usada em sua significação de morada,
propriamente dita, no terceiro ato.
Explorando as diversas possibilidades proporcionadas pelos dispositivos
mencionados, a cenografia do espetáculo não possui o objetivo de ser figurativa ou
descritiva, reproduzindo os diferentes espaços dramáticos em que os acontecimentos do
texto se desenrolam, mas, sim, sugerir possíveis ambientações para a trama. Deste
modo, a cenografia serve de suporte para que os atores possam contar a história em
questão, algo tido como um grande desafio em espetáculos infantojuvenis, como nos
lembra Osvaldo Gabrieli em seu artigo O Espaço Cenográfico: Cenografia ou
Decoração?. Para o encenador, cenógrafo e figurinista:

...no contexto do teatro infantil está o que eu chamo de “área de jogo” do ator
ou espaço cenográfico lúdico. A cenografia nesse caso existe para colocar o
jogo teatral num contexto simbólico que organiza o olhar do espectador. Um
cenário que expressa uma “concepção visual”, uma intenção plástica ao
articular imagens, cores e formas, para organizar o olhar do espectador,
provocar sensações e sensibilizar o olhar da criança, um cenário que serve
também de apoio espacial e temporal para o ator se manifestar. Esse ambiente
deveria permitir articulações lúdicas, transformações, jogos e possibilidades
de movimentação para os atores e para os desenhos de direção. (GABRIELI,
2003, p. 77)

Em conjunto com a iluminação - de Camila Tiago - , os dispositivos


cenográficos ganham diferentes significações a cada uma das cenas, durante o
espetáculo. Com variações de cor, foco, e intensidade, a luz de O Mensageiro do Rei
colabora para que a área de atuação se transforme no interior escuro da casa dos Dutta,
no primeiro ato da peça; em espaço público recoberto pelo sol, caracterizado pelas cores
quentes e amareladas, no segundo ato; e no quarto de Amal, iluminado pela penetrante
luz azulada das estrelas, no terceiro ato, ou ato final.
Ainda sobre o espaço cênico, podemos dizer que os outros elementos
constituintes da encenação, como os figurinos – assinados por Letícia Pinheiro - , a
maquiagem – criada por Marina Vilela - , e a trilha sonora – organizada por Mario
Piragibe e Lúcio Pereira - , colaboram para que o universo indiano proposto no texto de
Tagore possa ser sugerido, ou até mesmo, materializado na área de atuação. Mesmo que
de uma forma simbólica, não figurativa.
Sendo assim, na produção aqui observada, misturam-se dois universos
distintos: o proposto pela direção do espetáculo, ou seja, o cênico, e o já presente no
texto teatral, o dramático. Observando as apresentações do espetáculo, vemos a
transformação do espaço cênico em espaço dramático, sem que o primeiro seja uma
representação mimética do segundo. Ambos se interpenetram e co-existem em O
Mensageiro do Rei.

O ESPAÇO IMAGINATIVO

Para falarmos sobre a existência do(s) espaço(s) evocado(s) pelas falas dos
personagens, e que não pode(m) ser caracterizado(s) como dramático ou cênico: o(s)
espaço(s) imaginativo(s), utilizaremos como exemplo uma das cenas do terceiro ato de
O Mensageiro do Rei. Esta é caracterizada pelo diálogo entre o pequeno Amal
(interpretado por Renata Sanchez) e o velho Takurda (personagem de Lucas Larcher).
Entre outros assuntos, os dois conversam sobre as viagens a lugares fantásticos
realizadas pelo falso faquir, e de como o garoto imagina os mensageiros do rei que
trarão a carta que ele tanto aguarda.
Na descrição realizada por Amal, o menino diz a seu senhoril amigo que vê
diante de seus olhos um mensageiro do rei atravessando colinas com uma lanterna na
mão e uma sacola de cartas às costas. Mesmo sabendo ser fruto de sua imaginação essa
imagem, Amal descreve todo o caminho trilhado pelo funcionário real para finalmente
chegar à casa de seus tios, e entregar-lhe a mensagem escrita pelo rei. Um campo de
milho, uma cachoeira, um canavial, barulhos de grilos, e aves balançando as caldas
formam a imagem sinestésica descrita pelo garoto.
Já o velho Takurda, fantasiado de faquir, conta a Amal histórias de suas
viagens, que segundo ele, não dependem de gastos, nem econômicos, nem temporais.
Suas incursões por lugares distantes são realizadas por meio de seu pensamento,
frisando a importância da dimensão não-material do ser humano. Takurda diz que
acabara de chegar das Ilha dos Papagaios, um lugar fantástico, onde só vivem os
pássaros, sem qualquer ser humano por perto. Nesta ilha, ninguém fala e ninguém anda,
todos apenas cantam e voam.
Ainda com relação a Ilha, o falso faquir diz a Amal que esta porção
delimitado de espaço físico-imaginativo é coberta por colinas, nas quais a grama parece
brilhar feito ouro. E, também, é cercada por uma água clara, feito diamante derretido,
que escorre até alcançar o oceano... Sendo que ninguém, nem mesmo um doutor (alusão
ao Doutor que cuida de Amal) poderá fazê-la parar por um segundo que seja.
Podemos aproximar Takurda, desta maneira, da figura de um contador de
histórias, ou de um narrador que verbaliza suas experiências (ficcionais, ou não),
compartilhando-as com Amal. Walter Benjamin em seu famoso artigo O narrador,
oferece-nos subsídios para o entendimento desta figura. Para o autor, podemos dividir
ou classificar os narradores segundo dois grupos que se interpenetram: os nômades, ou
seja, os narradores que vem de longe, partindo da premissa de que “quem viaja tem
muito que contar”; e os sedentários, que correspondem ao homem que ganhou sua vida
honestamente sem sair de seu país, e que conhece suas histórias e tradições. Nas
palavras do autor:

A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses


dois grupos. "Quem viaja tem muito que contar", diz o povo, e com isso
imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos
com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país
e que conhece suas histórias e tradições. (BENJAMIN, 1996, p. 198)

Deste modo, sendo o narrador alguém que tem algo da tradição ou de terras
distantes a ser contado, sua relação com os ouvintes é dominada pelo interesse destes
em apreender aquilo que é narrado, tal como acontece quando Amal escuta Takurda,
formulando em seu pensamento imagens dos lugares que não conhece, já que não pode
sair de casa. Por isso, podemos dizer que a cada narrativa de Takurda, Amal imagina
uma nova história, repleta de novas imagens, acrescendo à narrativa sua própria
experiência visual, ou ainda, seu espaço imaginativo.

POR FIM, O LÚDICO

Com o intuito de finalizarmos este breve texto, em que algumas reflexões


sobre os diferentes espaços presentes no espetáculo O Mensageiro do Rei foram
apresentadas, citaremos uma das questões expostas no artigo O lúdico e a construção
do sentido, de Maria Lúcia Pupo. Parafraseando a autora, há muito tempo a cena teatral
deixou de ser constituída pela simples transposição de um texto para o espaço cênico.
Ela não equivale apenas a “um texto e mais alguma coisa”, mas sim a uma complexa
trama em que diferentes sistemas de signos, que não têm sentido absoluto em si
mesmos, formam um significado maior.
Em O Mensageiro do Rei, tal como podemos perceber, após a leitura deste
artigo que aqui se encerra, diferentes são os elementos utilizados para a caracterização
e a construção dos espaços dramático, cênico e imaginativo. No entanto, reconhecemos
em ambos a presença do lúdico em suas composições. Referindo-se à dimensão humana
que evoca os sentimentos de liberdade e espontaneidade de ação, a ludicidade
configura-se como uma recorrência no teatro voltado para crianças e jovens. É através
do lúdico que podemos (re)formular a concretude dos espaços que nos cercam, sejam
eles advindo da criação literária, artística ou imaginativa. Metaforicamente, a ludicidade
é uma janela aberta para mundo.
BIBLIOGRAFIA:

BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e


historia da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1996.

GABRIELI, Osvaldo. O Espaço Cenográfico: Cenografia ou Decoração?. In:


KUHNER, Maria Helena. O Teatro dito Infantil. Florianópolis: Fundação Cultural de
Blumenau, 2003. p.77 – 80.

PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. São Paulo; Perspectiva, 2001.

PUPO, Maria Lúcia. O lúdico e a construção do sentido. Sala Preta. Departamento de


Artes Cênicas, ECA-USP, junho de 2001, p. 181 – 187.

TAGORE, Rabindranath. O Mensageiro do Rei. [S.I.]: [s.n.], 1912. Tradução de Mário


Piragibe.
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

ESTADO DE JOGO:
REFLEXÕES SOBRE O PAPEL DO CORPO NA BUSCA DO ATRITO

Lucas Heymanns (CNPQ – PIBIC; Iniciação Científica); Orientador: André Carreira; CEART;
UDESC.

O século XX foi palco de intensos questionamentos no campo da investigação teatral que


não podem ser dissociados do contexto histórico de onde emergiram. As pesquisas em atuação, que
tem como marco a investigação e o sistema propostos por Stanislavski, já no início dos anos 1900,
são parte de uma grande mudança nos paradigmas teatrais com base em novas concepções tanto da
arte em si e de sua finalidade como das novas contribuições das teorias do corpo, da filosofia e das
ciências cognitivas. De distintas formas, grandes encenadores, atores e pesquisadores tentaram
libertar o teatro de sua submissão à literatura, ou mais amplamente, da representação de um texto
literário, e dotá-lo de objetivos e técnicas próprias: uma arte autônoma que encara o texto dramático
como um dos tantos elementos do acontecimento teatral e não mais como eixo organizativo
dominante.
Em seu artigo O teatro e a ação física: uma tradição do século XX, De Marinis (2005)
descreve esse processo de questionamento do teatro tradicional da época como movido por uma
busca do que há de essencial no teatro. Ele usa o termo volta às origens para caracterizar esse
movimento em duas direções ilustrado pela oposição original/originário: uma busca pelo original no
teatro no sentido do novo e da originalidade, assim como uma volta ao originário, ao que é primário
e “como tal, pode servir para re-fundar ou simplesmente re-orientar desde as bases o trabalho teatral
sem ter que, por isso, renegar totalmente o passado”. (p. 44) Segundo De Marinis, a resposta quase
unânime dos grandes mestres do teatro do século XX à pergunta “o que é primário, essencial, no
teatro?” se refere ao ator enquanto presença e ação física e à relação ator-espectador, e resume:

Creio que tal unidade de fundo pode ser ressaltada imediatamente em toda sua
evidência se reformularmos e definirmos o tema desta investigação do século XX
em uma pergunta: como (o quê) fazer para que a ação na cena seja real (quer dizer,
obviamente não realística senão eficaz, crível, sincera, segundo os distintos léxicos
que encontraremos). (DE MARINIS, 2005:47)

Assim sendo, as principais experimentações pedagógicas do século XX trataram de


investigar o corpo do ator, sua presença concreta e suas ações não mais como (ou apenas como)
ilustração de uma personagem ou de uma ficção senão como acontecimento real no tempo e espaço
da performance, buscando uma ação eficaz, real, em oposição à mera re-presentação de uma ficção.
O corpo assume um lugar fundamental nesse teatro e passa a ser visto cada vez mais na sua
materialidade: em oposição à abstração do discurso, a ação eficaz é a ação que une corpo e alma,
corpo e mente, ação e pensamento. Essa vertente da investigação da arte do ator passa a debruçar-se
cada vez mais sobre os fenômenos da auto-percepção, da memória e da consciência em um trabalho
sobre o próprio corpo-mente e suas imagens, sensações, associações: o trabalho sobre si mesmo,
nos termos de Stanislavski.
Neste artigo, me apoiarei no trabalho de Stanislavski, Artaud e Grotowski para discutir o
papel do corpo na crise da representação no teatro, relacionando parte de suas teorias com o
trabalho desenvolvido pelo ÁQIS – Núcleo de Processos em Criação Artística, assim como propor
um breve diálogo entre essas práticas e teorias sobre o entendimento do corpo-mente.

Perspectivas históricas

Nos escritos de Stanislavski é evidente a busca por uma atuação orgânica, onde ação,
pensamento e sentimento estivessem juntos. O ator e diretor russo usava-se constantemente da
metáfora interno – externo: a ação externa, a forma, deveria ser preenchida, animada pelo processo
interior, a vivência. Em um primeiro momento de suas investigações, Stanislavski apostou em
procedimentos interiores como forma de preencher e justificar as ações da personagem, através de
técnicas que ficaram muito conhecidas tais como o pensamento em ação, o se mágico, a memória
emotiva. À grosso modo, tais procedimentos consistiam em buscar uma justificação interna para as
ações que deveriam ser realizadas, partindo de lembranças, pensamentos, intenções, sub-texto. É
mais para o fim de sua vida que Stanislavski desloca o foco desses procedimentos mais
explicitamente mentais para o corpo através das ações físicas. Porém, antes de nos aprofundarmos
na questão da ação física, é importante deixar claro que essa mudança de foco representa uma
mudança de ponto de partida que visa no entanto a mesma união entre dimensão interior e exterior
da ação, como atesta essa sua declaração:

(…) A relação entre corpo e alma é indivisível. Da vida do corpo nasce a vida da
alma e vice-versa. Em toda ação física que não seja puramente mecânica e sim
animada desde o interior, se encontra a ação interna; quer dizer, a vivência. Dessa
maneira se criam duas plataformas da vida do papel: interna e externa. As duas se
infiltram mutuamente. Seu fim comum as atrai e fixa sua inseparável relação.
(STANISLAVSKI, 1990:259)

Este entendimento da indissociabilidade do corpo e da alma, do externo e interno, é chave


para a leitura do Sistema de Stanislavski e reflete uma prática artística em intenso diálogo com o
conhecimento científico produzido então.Tal entendimento é consonante com o ambiente teórico de
sua época, como mostra Sandra Nunes em seu livro As Metáforas do Corpo em Cena (2009).
Citando as pesquisas de Joseph Roach, Nunes aponta pelo menos três questões centrais surgidas no
século XIX e que teriam influenciado o entendimento de Stanislavski em relação às suas pesquisas
em atuação. São elas a teoria evolucionista de Darwin, o monismo e a teoria do inconsciente.
Através da teoria evolucionista e dos estudos de etologia, o movimento expressivo passa a ser visto
como “algo inerente, a exemplo de outras espécies animais. De algo conduzido pelos espíritos
animais cartesianos, a emoção passa a ser entendida como uma manifestação vinculada, de fato, à
natureza animal”. (NUNES, 2009:197) Isso implica em um entendimento da emoção e do
movimento expressivo em suas bases biológicas, corporais (na acepção de um corpo-mente
indissociável). A proposta da seleção natural darwiniana também põe em cheque uma definição
ontológica e imutável do homem ao colocar o ambiente como fator indissociável do
desenvolvimento humano: “A teoria darwiniana tornou evidente a ideia de uma ação contínua e co-
evolutiva entre organismos e meio”. (NUNES, 2009:197)
Junto a isso ganham força as correntes monistas, que descartam o dualismo de substância
que coloca o pensamento e a consciência como separados do corpo e da matéria, o que viria a se
desenvolver em um entendimento do corpomente como um continuum indissociável. Por sua vez,
as teorias do inconsciente levantavam questionamentos sobre o controle que de fato temos sobre
nossos processos mentais e nossas emoções, aumentando a desconfiança em relação a infalibilidade
de nossos processos racionais e relativos à memória: “O homem não deixou somente de ser o
centro do universo e da criação, como Copérnico e Darwin comprovaram. Freud fez ver ao homem
que ele não é o centro de si mesmo”. (NUNES, 2009: 199)
Simultaneamente, várias linhas dentro da psicologia e da neurociência, como a reflexologia
e estudos de comportamento, investigavam as estreitas relações entre estímulos externos, emoções
e reflexos físicos. William James, psicólogo do século XIX, foi um dos pioneiros a pesquisar como
estes fatores físicos influenciam na criação dos estados emocionais, usando-se do dictum “Eu vi o
urso, eu corri, eu fiquei assustado” (estímulo externo – resposta física – correspondência
emocional). (cf. GORDON, 2012) Tais teorias tem profunda relação com o deslocamento das
investigações em atuação da representação de sentimentos e emoções para a ação eficaz, entendida
como o total engajamento psicofísico do ator na execução presente da ação, e sustentaria muitas das
investigações em atuação até os dias de hoje.
Assim, Stanislavski propõe o método das ações físicas não só em consonância com o
ambiente teórico de sua época como também em parentesco com investigações em atuação de
outros grandes pesquisadores do teatro, tais como Meyerhold e Eisenstein na Rússia, e um pouco
mais tarde, Decroux e Artaud na França. Falando de forma simples, o método das ações físicas
propõe que o ator realize uma ação e a partir dela perceba as modificações corporais-mentais-
emocionais derivadas da própria ação: ao invés de buscar recordar e sentir a tristeza para aí
expressá-la, construir no corpo uma condição através do tensionamento de músculos, ritmo
respiratório, etc, e deixar-se afetar por essa condição concreta. A ação funcionaria como estrutura
de acionamento da natureza criadora: na sua famosa metáfora, Stanislavski compara a ação física
ao trilho de um trem – o que dá segurança para que o ator seja o passageiro viajante:

Ao viajante não lhe interessa os trilhos e sim o que há do lado de fora ou no interior
do vagão. Viajando em trem vemos sempre novas regiões, recebemos sempre novas
impressões. As vivenciamos, nos conduzem ao êxtase ou nos inspiram tristeza;
comovem e mudam a cada momento o estado de ânimo do viajante e também o
transformam. (STANISLAVSKI, 1990:278)

No trecho que segue, Stanislavski afirma que as tarefas físicas, realizadas com o corpo, são
as mais adequadas para compor os trilhos, já que “o material psíquico não possui propriedades de
constância, se fixa dificultosamente”. (STANISLAVSKI, 1990:278). A metáfora dos trilhos
reverberaria em muitas discussões do trabalho do ator representando a dialética entre precisão e
espontaneidade. Grotowski, alguns anos depois, desenvolveria a partir dos estudos de Stanislavski
um trabalho com ações físicas através de partituras precisas que podem ser vistas como a
radicalização do método das ações físicas, envolvendo um intenso trabalho sobre si mesmo no
sentido de desautomatizar hábitos corporais e livrar-se de bloqueios que impedissem o fluxo de
impulsos e associações desencadeadas pelas ações. As influências das filosofias e práticas orientais
foram também determinantes nesse entendimento de corpo-mente indissociáveis e no
desenvolvimento de técnicas de trabalho sobre si mesmo, a exemplo do yoga e de práticas
meditativas que muito influenciariam a pesquisa teatral do século XX.
Tais influências seriam tema para um longo ensaio. São muitos os exemplos e implicações
da noção de ação eficaz que se desenvolveram desde então, e não cabe aqui citá-los
exaustivamente. O que é de maior importância para nossa abordagem é o crescente deslocamento
da arte do ator como representação de uma personagem e de uma fábula para uma noção de ator-
performer fortemente estruturada na materialidade do corpo e no contato direto entre o ator e
espectador em um mesmo tempo-espaço. Se em Stanislavski as ações físicas ainda eram
direcionadas para a construção de uma personagem coerente com o texto dramático, a tendência das
pesquisas experimentais subsequentes foi explodir cada vez mais a noção fechada de personagem.

Atuação por estados

A pesquisa desenvolvida pelo ÁQIS – Núcleo de Processos em Criação Artística, apesar de


não partir diretamente das referências utilizadas até aqui, possui fortes ecos dessa tradição do
século XX, para usar os termos de De Marinis ao tratar sobre a ação eficaz no teatro
contemporâneo. Coordenado por André Carreira, o ÁQIS é um grupo de pesquisa vinculado ao
Centro de Artes da UDESC – Universidade Federal de Santa Catarina, e investiga uma atuação a
partir de estados. O objetivo da pesquisa tem sido investigar um procedimento de atuação que tenha
como ponto de partida a criação e percepção de uma condição corporal no ator, a qual chamamos
de estados. A ideia é pensar a atuação não a partir de um texto dramático, mas sim de
produzir/perceber estes estados e através deles relacionar-se não só com o texto mas com os demais
elementos do acontecimento teatral: espaço, figurino, relação entre atores, relação com o público.
Assim, desloca-se o foco da representação de uma ficção para o trabalho do ator como forma de
criar rupturas e sobreposições ao texto, dotando-o de outras possibilidades de significação.
Para isso, realizamos encontros práticos semanais onde por meio de exercícios e jogos
investigamos as possibilidades de criação e manutenção desses estados. Além disso, realizamos
encontros teóricos periódicos para discutir nossas práticas em diálogo com outras pesquisas em
atuação e com teorias de outras áreas, tais como a neurociência, psicologia e artes visuais.
Em um primeiro momento da pesquisa investigamos os estados como a criação de uma
determinada condição no corpo, que era então mapeada no sentido de identificar sensações, pontos
de tensão e qualidades de movimento surgidos dessas modificações corporais que compunham o
estado. A partir dessa percepção, buscávamos modular essa condição, suavizá-la e intensificá-la
seguidamente buscando se familiarizar com esse estado. O próximo passo era sobrepor ao estado o
texto dramático e a relação com o ambiente, buscando manter a intensidade produzida antes da
inserção do texto. Esta é uma forma de pensar os estados de maneira matricial, ou seja, utilizando
uma matriz corporal como base constantemente retomada para a “manutenção” da intensidade.
Com o tempo e através das reflexões dos atores-pesquisadores, o interesse da pesquisa
passou a ser menos a criação e retomada de estados específicos e já trabalhados, e sim a criação de
uma condição de jogo entre as matrizes propostas e as informações do meio. Esse novo foco reflete
um interesse de investigar um procedimento de atuação permeável ao acaso e à afetação constante
dos estados pelo ambiente. Usamos o termo ambiente no sentido dado por Richard Schechner em
sua proposta de Teatro Ambiental (1994), onde o ambiente é composto por todos os elementos da
performance, incluindo o público e o espaço que ele ocupa, os performers, os sons, o próprio espaço
da performance seja ele interno ou externo, etc. Assim, passamos a explorar os estados como um
território liminar entre o que é conscientemente proposto (ação) e as informações recebidas, tanto
do próprio corpo quanto do ambiente (percepção).
O acionamento destes estados no entanto não é direcionado pelo conteúdo do texto
dramático. Nas experimentações do grupo, a investigação dos estados é independente da
dramaturgia – esta entra como sobreposição da condição corporal instalada. Desta forma, procura-se
criar um atrito entre o estado do ator e o texto, propondo a criação de significados não determinados
pelo material dramatúrgico. Mais que isso, esse procedimento funciona como obstáculo para
dificultar a representação ilustrativa do texto por parte dos atores ao propor um ponto de partida
para a condição corporal independente do texto.
No espetáculo-laboratório Os Pequenos Burgueses (2011 - ), os atores aprendem o texto de
memória e jogam com os estados com poucas ou nenhuma marcação de cena. Os trilhos do trem
nesse processo podem ser vistos como o próprio texto, que estrutura a sequencia dos
acontecimentos sem porém definir as ações e relações que surgem das sobreposições entre estados e
texto. Essa tem sido uma forma encontrada pelo ÁQIS de experimentar uma atuação que fuja da
tendência a ilustrar de forma simplificadora uma ficção reduzindo-a a representação de um material
pré-concebido. Na pesquisa do grupo, a prática com os estados é uma forma de investigar uma
atuação que se crie justamente no diálogo e no conflito entre estes elementos ordenadores,
combinados de ante-mão em um tempo passado, e os elementos do acaso, que emergem no presente
do acontecimento teatral. Se não existe uma atualização à luz do presente desse material pré-
estabelecido, a atuação serviria apenas para ilustrar algo referente a outro tempo-espaço.
A discussão a respeito da representação ilustrativa é antiga e concerne não só ao teatro mas à
arte em geral. Segue um trecho de uma conversa entre David Sylvester e Francis Bacon sobre a
diferença entre uma forma ilustrativa e um forma não ilustrativa:

DS É uma questão de conciliar os opostos, suponho – de fazer que uma coisa


seja ao mesmo tempo coisas contraditórias.
FB Não é isso que se deseja? Que uma coisa seja tão factual quanto possível e
ao mesmo tempo tão sugestiva ou reveladora às áreas da sensação, em vez de
parecer simples ilustração do objeto que se pretendeu fazer? Não é em torno disso
que gira toda a arte?
DS Você poderia dizer qual a diferença entre uma forma ilustrativa e uma forma
não-ilustrativa?
FB Bem, acho que a diferença é que a forma ilustrativa imediatamente lhe diz,
através da inteligência, aquilo que ela expressa, enquanto no caso da não-ilustrativa,
ela primeiro atua nas emoções e depois faz revelações sobre o fato. Agora, por que
isso é assim, eu não sei. Talvez tenha a ver com a ambiguidade dos próprios fatos,
com a ambiguidade das aparências, e, portanto, esta maneira de registrar a forma se
aproximaria mais do fato por ela ser também ambígua no seu procedimento.
(SYLVESTER, 2007:56)

A partir disso, podemos entender a prática com os estados como um procedimento de


criação de atrito entre aquilo que é dito através da inteligência e aquilo de concreto instaurado no
corpo do ator, o que resultaria em uma forma contraditória, não-redundante. Ao contrário da forma
ilustrativa, a forma contraditória constitui-se na tensão entre diferentes vetores e não se apresenta
como síntese, convocando o espectador a sair de uma percepção passiva para criar um sentido
próprio para a forma. No caso da forma ilustrativa, reconhecemos automaticamente o símbolo,
compreendemos através da inteligência aquilo que ele denota, mas borra-se a percepção do objeto
em si, da percepção presente do objeto. Chklovsky fala de um objeto empacotado: “Nós sabemos
que ele existe a partir do lugar que ele ocupa, mas vemos apenas sua superfície.” Vê-se apenas a
ilustração.
Assim, algo nos é contado, referenciado, porém a percepção do objeto é enfraquecida e não
completa-se em vivência presente, dificultando nossa capacidade de transformar nossa relação com
aquilo que vemos e de criar algo novo a partir dali – um questionamento, uma atitude, uma reflexão.
No sentido contrário a essa automatização da percepção é que deve caminhar a arte, segundo
Chklovsky:

E eis que para devolver a sensação de vida, para sentir os objetos, para provar que
pedra é pedra, existe o que se chama arte. O objetivo da arte é dar a sensação do
objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da arte é o
procedimento da singularização1 dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de
percepção em arte é um fim em si mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio
de experimentar o devir do objeto, o que é já “passado" não importa para a arte.
(CHKLOVSKY, 1978)

Considerações Finais

Essa breve exposição pretende evidenciar como estão fundas as raízes que apoiam as
práticas contemporâneas de investigação da arte do ator e dos estudos da performance. O
entendimento do corpomente unificado em detrimento do dualismo de substância entre corpo e
mente pode ser uma das chaves para compreender a crise da representação do teatro contemporâneo
e a busca por um teatro fundado no encontro de corpos e presenças. O teatro que é reivindicado a
partir desse entendimento não é apenas uma recusa à literatura, mas um processo paulatino de
destronamento de um outro teatro pautado por uma comunicação exclusivamente linguística e
logocêntrica, que relegava a segundo plano elementos essenciais e originários do teatro enquanto
expressão humana e forma artística pelo menos desde os primeiros registros do que chamamos de
civilização. Essa mudança acontece de forma lenta e o cenário atual abriga as mais diversas matizes
desse continuum entre representação/ilustração e apresentação/performance – de fato, esses
binômios tendem a ser cada vez menos polos antagônicos de uma mesma linha e imbricam-se nas
novas teorias que surgem.
A recusa da ilustração, referenciada em Chklovski como o ato de percepção prolongada, de
1 No original em russo, ostranenie (остранение). Existe muito debate quanto a tradução do termo, e em diversas
línguas utiliza-se alternativas como estranhamento ou desfamiliarização.
experimentar o devir do objeto, pode nos dizer muito sobre a construção de formas de arte, e no
caso deste artigo, procedimentos de atuação, menos dominadores e fechados em si mesmo. Este
procedimento de singularização dos objetos é conceito que daria forma ao Verfrendungeffect
brechtiniano e tem grande potência em definir a arte em sua função de desnaturalização do
cotidiano, questionamento do hábito.
A ação eficaz, entendida como ação do total engajamento psicofísico do performer, é ainda
hoje uma sedutora ideia da eficácia do teatro e de sua possível função na sociedade atual, marcada
por uma virtualização cada vez mais intensa da experiência cotidiana. A ação física e a unidade
psicofísica engendrada por ela é um dos principais elementos que tem mantido vivo e inquieto uma
importante parte da investigação teatral contemporânea. Os paralelismos entre o trabalho sobre si
proposto por estes grandes pesquisadores do teatro moderno e as pesquisas científicas sobre o
entendimento do corpomente e da relação entre ação-percepção comprovam o potencial do teatro
como forma de arte e conhecimento fundado na práxis e na experiência do próprio corpo. Que é,
afinal, tudo que há.
Referências Bibliográficas

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sobre atuação. Florianópolis: Editora da UDESC, 2011.

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de Stanislavski según sus apóstoles : los apócrifos, la reforma, los falsos profetas y Judas
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el proceso creador de la encarnación. La Habana: Ediciones Alarcos, 2009.

STANISLAVSKI, Konstantin. El trabajo del actor sobre sí mismo: El trabajo sobre sí mismo en
el proceso creador de las vivencias. La Habana: Ediciones Alarcos, 2011.

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ZARRILLI, P. B. (Org.). Acting (Re)Considered. Oxon: Routledge, 2002.


A VOZ E O SAGRADO
A VOZ E O SAGRADO: RADIOGRAFIAS DE POÉTICAS VOCAIS EM DOIS
CONTEXTOS.

Maria Cláudia S. Lopes; Prof.Dr. Fernando Aleixo (orientador); Programa de Pós-


Graduação em Artes (subárea: Teatro); Universidade Federal de Uberlândia.

Introdução e Discussão
A pesquisa em questão se pretende à investigação da interface a voz e o sagrado,
para refletir sobre o tema voz/canto, espiritualidade e presença. Entende-se aqui a
espiritualidade como espaço de investigação e trabalho sobre si, conectado ao
alargamento da percepção de si e do mundo, de que fala Grotowski. Na realização do
projeto será feita pesquisa de campo em dois contextos distintos. Um deles é o trabalho
realizado por Cecília Valentim, cuja pedagogia da voz é pensada para cura e
desenvolvimento da expressividade do “ser cantante”. O segundo contexto é o trabalho
feito por Maria Thaís, da companhia Balagan em São Paulo, no recente espetáculo
Recusa, cujo processo criativo abarcou a pesquisa com cantos da tradição indígena.
Propõe-se então, a partir deste texto, à apresentação do projeto de mestrado intitulado
“A voz e o sagrado: radiografias de poéticas do canto em dois contextos” em suas
primeiras reflexões.
O canto e a voz poética sempre estiveram presentes em meu percurso - pois
somos seres cantantes. Ainda que o canto e a voz pareçam corrompidos pela
“profissionalização” e “comercialização” do ser, que delegam a possibilidade de cantar
apenas aos cantores, sabemos que há espaços onde o canto é mantido como prática de
todos e como expressão do ser ligado ao cotidiano e à cultura, um espaço cultivado e
fundamental. Neste sentido acredito que porque a palavra tenha se tornado, em um
contexto amplo, mero “utensílio de barganha” (NOVARINA, 2009), e, porque
parecemos nos distanciar da “voz poderosa”, talvez seja realmente importante propor
uma aproximação de trabalhos que envolvam o canto como experiência, seja na cena ou
fora dela.
Em minha trajetória pessoal reconheço um espaço considerável em que
experimentei a voz e o canto cotidianamente. Na infância em escolas de música e coral,
no teatro através de processos nos quais tomei parte como atriz, e depois no Grupo de
Pesquisa Sobre Práticas e Poéticas Vocais, no qual investigamos desde 2010 o limiar
entre fala e canto e praticamos canções entre os atores do grupo. Neste espaço, temos a
canção como possível disparadora da criação dramatúrgica e da exploração da
potencialidade poética da voz no trabalho do ator.
Em nossa herança indígena, o ser é entendido como corpo-som. Tupã significa
Grande Som, na língua abanhaenga, que originou o tupy. Tu é som e barulho e pan é a
expansão. O humano é considerado Tu-py: flauta- em- pé, ou som- em- pé - “(...) os
antigos afinavam o espírito a partir dos tons essenciais do ser, tons que participam de
todos os seres (o que a civilização reconhece como vogais).” ( JECUPÉ, 1998) . Nós,
que somos este “corpo-som”, colocamos e praticamos ações às vezes a serviço do
desserviço de nós mesmos; e se de um lado nossos ancestrais indígenas cantavam,
nomeavam ou entoavam sons com o intuito de fortalecer-se e conectar-se com o entorno
de uma forma a viver a experiência de integração, hoje são poucos os espaços em que
são mantidos/cultivados processos em que a identidade experimenta uma dissolução
parcial ou imersão no sentimento de comunidade e no exercício de totalidade, conexão
com o “sagrado” .
Recentemente duas experiências se articularam a essa trajetória anterior e
mobilizaram meu interesse pela interface entre voz e espiritualidade, tais experiências
são oriundas de contextos diferentes, e têm como ponto de interseção os canto de
tradições e a ligação com o sagrado ( ainda que de formas diferentes). Interessa-me
justamente os pontos de distinção entre tais contextos e as suas semelhanças:

Cecília Valentim:
Cecília Valentim é cantante, psicoterapeuta e educadora vocal. Especializou-se
em Música Antiga na Inglaterra e Espanha e em Healing Voice (Cura da Voz) e
Overtone Chanting (Canto dos Harmônicos) na Inglaterra. Aproximei-me de seu
trabalho fazendo uma oficina de quatro dias (2012/Jan) e um workshop no Seminário de
Voz II, realizado em Florianópolis (2012/Nov). Neste ano, no processo de escrita do
projeto, participei de outro curso com duração de um mês e também de um círculo de
práticas de cantos de tradições religiosas e mantras conduzido por ela. Esta aproximação
e experiência têm sido muito reveladoras, em parte porque reconheço alguns princípios
em comum trabalhados por nós no Grupo de Práticas e Poéticas Vocais – a imagem de
oposição entre topo da cabeça/céu e base/chão; a voz como corpo, que se propaga ao
contrário da ideia de projeção do som, etc. - e em parte porque me leva a pensar no
recorte canção/voz e espiritualidade movida por uma curiosidade e desejo de
aproximação. No trabalho de Cecília Valentim ela aborda dimensões humanas que se
engajam na prática do cantar, e nas quais ocorre uma alteração
física/psíquica/emocional que aproxima o ser da experiência corpórea-espiritual
Os campos do artístico e do espiritual estão em permanente deslizamento de
modo que é impossível compreender a pesquisa de Grotowski atendo-se apenas a um
desses campos. É justamente na arte que Grotowski vai encontrar a possibilidade de ser
um ‘investigador espiritual’, pois o terreno da arte permaneceria como um espaço de
pesquisa não submetido a correntes religiosas ou de fé. A noção de ‘trabalho sobre si’,
que Grotowski pegou emprestado de Stanislavski, é uma das que ajuda a manter esse
deslizamento arte/ sagrado em ação sem obrigar o pesquisador a optar por um dos
terrenos. Essa noção revela também o grau de ‘investigação’ e de não dogmatismo com
que Grotowski abordou o terreno do ‘espiritual’.( LIMA, 2010)

Maria Thaís:
Maria Thaís é professora da ECA/USP e encenadora da Cia Balagan de Teatro
na cidade de São Paulo. A companhia que dirige tem particular interesse nos cantos de
tradições e investigam este campo em seus trabalhos. A experiência que tive com o seu
trabalho e que me mobilizou, enquanto espectadora, foi a fruição de dois espetáculos da
Companhia Balagan, dirigidos pela encenadora, em que me impressionei com a
sonoridade/musicalidade da cena e em especial o trabalho com cantos da tradição grega
e indígena. Interessou-me investigar o processo de pesquisa do trabalho Recusa, pois a
qualidade da cena apresentada transcendia, para mim, o simples virtuosismo, parecendo
revelar-se como resultado de um mergulho nas potências do canto em conexão com o
campo da espiritualidade.

Metodologia
A investigação pretendida trata-se, nas terminologias, de uma pesquisa empírica,
porque se baseia na experiência e na observação. Foucault (LIMA, 2013) afirmava
que em nossa civilização desde o “momento cartesiano” nos separamos do acesso ao
conhecimento que subentedia uma transformação do ser, o conhecimento desvinculou-
se da ideia de lugar de emergência. Opto então, neste projeto, por uma abordagem
metodológica que me coloca no encontro com o outro e com o que me acontece a partir
dele.
Aquele que descobre o corpo, descobre os corpos no plural (...) Aquele que
descobre seu corpo, para descobri-lo deve descobrir o corpo de um outro. Não como um
estudioso, mas como quem ama. E então ele descobre o corpo de todas as coisas”
(GROTOWSKI,1978 apud LIMA, 2013)
Para a aproximação dos sujeitos escolhidos paras estudo, embasar-me-ei
conceitualmente, como ponto de diálogo, no “olhar fenomenológico” (MERLEAU-
PONTY,1999), buscando despir o olhar de pré-conceitos e julgamentos para encontrar o
outro na sua alteridade. Quanto à metodologia de escrita, dialogo com o conceito de
“descrição densa” (GEERTZ, 1989) que trata o observado não como objeto, incluindo
os sujeitos e suas vozes, e incluindo-se também como sujeito na observação.
Ainda sobre a escrita e o diário de bordo da pesquisa, Sally Ann Ness (1992), em
sua experiência etnográfica sobre as danças balinesas, sugere que seus leitores olhem
para a escrita como processo, ainda em movimento, o que ela chamou de “performative
mode”. A autora diz que está rascunhando uma nova forma de texto, um texto que
fracassa a tentativa comum de brilhar como um produto acabado e polido. Um texto que
diz NÃO ao “documento”; abrindo espaço para novas percepções do trabalho escrito de
etnografia, fazendo conexão entre os seres humanos envolvidos e que retrataria o evento
etnográfico como ocorrências em acontecimento.
Como procedimentos/ações da metodologia pretendo realizar observações
diretas, entrevistas e frequente escrita em diários de bordo conectados à literatura da
pesquisa.

Possíveis perguntas

Fernando Antônio Mercarelli (2013), ao pesquisar Grotowski, pontua que ao


partir de elementos de diversas tradições o corpo do ator se descondiciona, e que, as
“... diferentes tradições em sua diversidade antropológica possibilitam um certo
deslocamento que remete a outras possibilidades do homem em relação.”
(GROTOWSKI, 2006 apud MECARELLI, 2013). Ainda que deslocado de uma
intencionalidade institucionalizada ou fé específica, seria então a poética do canto
relacionado às tradições culturais e religiosas diversas, um elemento potente para o
alargamento da percepção e do trabalho sobre si nas práticas relacionadas à arte do
ator? Quais seriam as divergências e imbricamentos entre os dois contextos escolhidos
para estudo? Essas são as perguntas que no momento norteiam o trabalho em recém-
iniciada jornada.

Referências Bibliografias
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Komedi, 2007.
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e do cantar nas investigações do Workcenter of Jerzy Grotowski and Thomas
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240,jan/abr.2013.
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MACHADO, Marina Marcondes. O "Diário de Bordo" como ferramenta
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NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Rio de Janeiro. 7letras, 2009.
ROLNIK, Sueli. Pensamento, Corpo, Devir. Palestra proferida no concurso para o
cargo de Professor Titular da PUC/SP, realizado em 23/06/93, publicada no Cadernos
de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade,
Programa de Estudos Pós Graduados de Psicologia Clínica, PUC/SP. São Paulo,
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VALENTIM, Cecília. Círculo de Prática de Mantras. (Apostila de oficina). 2012.
ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GESTOS COMO RUÍDOS, ESPACIALIDADE COMO MEIO DE
COMUNICAÇÃO

Marli Fernandes Magalhães1

Resumo:
Este artigo tem por objetivo relatar interesses e descobertas dentro de um
processo de investigação sobre o trabalho do ator. Momentos vividos em uma monitoria
da disciplina Técnicas Vocais I, ministrada pelo Professor Dr° Fernando Aleixo, no
Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia. Trabalho realizado junto à
aluna Lorenna Karla do Curso de Teatro da UFU, no qual o objetivo fora observar a
disponibilidade natural com a qual a aluna utiliza dos ressonadores e o espaço em prol
da comunicação e do trabalho do ator, trabalho este que fez compreender uma
necessidade real de aprofundamento no universo do surdo. O texto apontará indagações
que estão presentes nesta trajetória de investigação, questões que surgiram ao pensar a
composição vocal, a construção do personagem e a espacialidade no contexto de
pessoas surdas. A apropriação de informações em benefício da pesquisa. O estudo de
pensamento de autores voltado ao fazer teatral, que mesmo sem mencionar a questão da
surdez, certamente é uma forte ferramenta para atingir o objetivo da investigação.
Conhecimentos que serão peça chave para possibilitar a execução de um projeto serão
compartilhados neste texto. Se não para responder, para questionar.

Palavras chave: Ressonadores. Surdez. Intérprete. Teatro. Corpo. LIBRAS2.

Introdução:

Graduada em Teatro no Curso de Teatro da Universidade Federal de Uberlândia (UFU).


Mestranda em Artes Cênicas (Teatro), UFU.

LIBRAS: Língua Brasileira de Sinais.

1
Trata-se realização de um projeto de pesquisa, em andamento, que compreende a
voz como extensão do corpo. Relatos de informações contidas em textos de autores que
exploram o fazer teatral em seus estudos. Embora não tenha encontrado ainda, leitura
diretamente direcionada ao trabalho teatral com surdos, no que diz respeito à sonoridade
possível a essas pessoas, ao trabalho vocal, a poetização da fala e o espaço como meio
de comunicação, o objetivo é, por meio deste texto, traçar um paralelo com alguns
autores que embora não falem dos surdos, oferecem material que permite pensar a
questão teatral, corpo, sonoridade, vocalidade, inseridos no universo desses indivíduos
que usam o corpo, a expressão facial e corporal e o espaço como meio de comunicação.
Movimento de mãos e do corpo que contam história, expressões que substituem a voz
falada. Os relatos tratarão de uma apropriação de informações para construir um
caminho traçado em busca de perguntas e respostas, no qual o fazer teatral, além das
ferramentas comuns ao teatro, terá a experiência junto à aluna Lorenna Karla enquanto
da utilização dos ressonadores para auxiliar a emissão sonora possível à aluna, também
como facilitador da comunicação, e ainda contaremos com a LIBRAS (Língua
Brasileira de Sinais) a favor da cena.

Apresentação

As questões tratadas aqui surgiram no decorrer da execução do projeto de


mestrado em Artes, subárea: Teatro, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). O
projeto aborda questões que surgiram da investigação para conclusão do mesmo, no
entanto a metodologia esquematizada não satisfez as necessidades da pesquisa. Seria
preciso ações complementares para possibilitar o andamento do trabalho. Como
aprender a linguagem de sinais, por exemplo. Seria impossível qualquer ação sem falar
a língua dos investigados, também não é só conhecer os sinais, é necessário entender o
contexto com o qual o surdo utiliza desses sinais para comunicar-se.

Então estratégias foram criadas, como monitora da disciplina: Técnica Vocal


(Semestre/1), do curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Drº Fernando
Aleixo, no qual foi possível esclarecer várias questões junto a aluna Lorenna Karla,
graduanda do 3º período do curso de Teatro da UFU, primeira ingressante surda no

2
curso, com relação à utilização dos ressonadores como potencializador de sons, assim a
possibilidade de investigação no que diz respeito à utilização desses ressonadores, do
espaço e ainda o aprendizado da LIBRAS com o contato direto com a aluna surda.

Outro fator relevante no processo é a escassez de material teórico para


fundamentar a pesquisa. Poucos autores falam das questões teatrais direcionados às
pessoas surdas, alguns falam pensando o deficiente. Faz-se necessário lembrar que os
surdos não se consideram deficientes e também não gostam de ser tratados como tal.
Segundo Lorenna Karla surdez não é deficiência. Devemos referir a eles como “surdos”.

Para melhor compreender essas questões foi preciso ampliar os estudos com
relação à pessoa surda, e assim voltar à atenção para toda e qualquer informação que
pudesse auxiliar de alguma forma. Além das disciplinas obrigatórias seria necessário
participar de palestras ministradas por profissionais do Teatro, encontros com pessoas
surdas e ainda pesquisar sobre a história dos surdos, um pouco de sua trajetória e de
como a LIBRAS chegou à suas vidas, para assim melhor entender o contexto explorado
pelos eles, questões espaciais e corporais, ou seja, locais usados no corpo e no espaço
para expressão, para comunicação.

A palestra ministrada na UFU, em 04 setembro de 2013, pelo Professor Dr.


Adilson Florentino, professor da UNIRIO, possibilitou uma reflexão a cerca do
conhecimento teatral. Florentino falou do Ser; acontecimentos teatrais e o Pode Ser; as
teorias teatrais, das investigações participativas, de intervenção na zona de experiência
teatral. Ele acredita que a zona do conhecimento exige um processo de luta, de busca, na
qual as condições de possibilidades de autonomia devem ser ponto de partida para
elaboração de uma prática investigativa, autônoma e emancipada. Florentino acredita
que um projeto exige um processo de investigação, exige investigadores, temos que ir
em busca de provas, de conhecimento. Se existe uma resposta não há pesquisa. Então,
seguindo essa linha de pensamento encontro tranquilidade para ousar durante o
processo, é preciso ouvir quem faz e quem assiste, ou seja, quem gosta de fazer teatro.
A busca, os encontros, a vivência com os surdos, com certeza darão condições e
possibilidades para a realização do fazer teatral dentro do universo dessas pessoas.

“O teatro e a experimentação de existência coletiva e subjetiva, o


banco de ensaio onde avaliam as possibilidades reais de intervenção

3
da liberdade no mundo e o lugar onde a humanidade vive o seu
próprio drama sob a máscara de personagens lendários ou inventados,
que no espetáculo das tensões, se enfrentam no nível mais complexo e
profundo da experiência coletiva”. (Florentino, 2013)3

Na tentativa de infiltrar no universo coletivo dos surdos, e conversando com


Lorenna, tornou-se perceptível uma grande barreira. As pessoas surdas não gostam de
trabalhar sonoridade, lembram os fonoaudiólogos que trabalham oralidade com eles.
Desconhecendo a rejeição que os surdos têm por trabalhos que eles acreditam estarem
obrigando-os a falar, a ideia seria trabalhar os vibradores/ressonadores para
potencialização da emissão sonora e não para obrigá-los a falar.

“No dicionário, ressonância é definida como prioridade ou qualidade


do que é ressonante; fenômeno físico pelo qual o ar de uma cavidade é
suscetível de vibrar com freqüência determinada, por influência de um
corpo sonoro, produzindo reforço de vibrações. Já, num enfoque da
fonoaudiologia, ressonância é considerada como sendo o “uso
adequado de algumas cavidades ósseas supra e infraglóides, que com
a vibração do ar vão permitir uma maior projeção vocal”. (ALEIXO,
2003)

A proposta é trabalhar o potencial já existente, como ações físicas,


movimentação corpórea, visão periférica que os surdos usam naturalmente para se
comunicarem. Ou seja, falar com o corpo. A princípio surgiu a dificuldade por causa
dessa rejeição, primeiramente seria fazer Lorenna e outros surdos envolvidos no
trabalho, entender que é possível conscientizá-los dos sons que eles conseguem emitir e
que podem ser usados em prol da cena, sem necessidade de descartar o uso da LIBRAS
em cena.

“Na vibração e ressonância da voz envolvemos o corpo inteiro com


todo o seu conteúdo sensível. Embora não existam comprovações
científicas sobre o fenômeno da ressonância subglótica (cavidades
torácica e traqueal abaixo da glote), o ator deve, no uso da
imaginação, desenvolver a capacidade de produzir vozes a partir de
diferentes regiões do corpo. O que lhe permite fazer vibrar em

FLORENTINO, Adilson: palavras registradas durante palestra realizada na Universidade


Federal de Uberlândia, em 04 de setembro de 2013.

4
diferentes padrões as pregas vocais e, consequentemente, alcançar um
repertório amplo de registros vocais”. (ALEIXO. 2007, p. 51)

Através de relatos de Lorenna e também textos retirados de livros e internet


oferecidos pelo Professor Paulo Henrique de Jesus, professor de LIBRAS I (UFU), fica
fácil acreditar que na verdade não lhes faltam motivos para que se revoltem com sua
própria história. Segundo o Professor Paul Henrique no início dos tempos os surdos
eram taxados, perseguidos, torturados e até mortos unicamente por serem surdos. Houve
uma época, em certas regiões que os bebês surdos eram sacrificados quando nasciam,
em outros tempos e regiões eles eram castrados para que não gerassem filhos surdos, em
outro tempo não lhe era permitido o matrimônio para que não constituíssem família não
deixando descendentes, que ao entender das pessoas da época poderiam nascer surdos.
Na idade Média os surdos eram sujeitos estranhos e objetos de curiosidades da
sociedade. Os surdos eram proibidos de receberem a comunhão nas igrejas. Também
existiam leis que proibiam os surdos de receberem heranças, de votar e, enfim, de
usufruírem de todos os direitos como cidadãos. De quando da instauração da linguagem
de sinais, antes, quando a comunicação entre surdos e ouvintes era bem precária, nem
mesmo as famílias sabiam comunicar-se com seus parentes surdos, as pessoas surdas
sofriam agressões, intimidações e até tortura por não ser permitido o uso das mãos para
comunicação, ou seja, a linguagem de sinais. Os surdos se encontravam as escondidas
para usarem as mãos, e quando surpreendidos sofriam punições como, por exemplo,
apanhavam com palmatória nas mãos até ficarem roxas. Eram obrigados a falar, mesmo
que não pudessem, era exigido que tentasse ao máximo usar a língua para falar. Por isso
só davam colheres para crianças ouvintes tomarem a sopa oferecida nas escolas, aos
surdos a ordem era que usassem a língua para tomarem a sopa, no intuito que
exercitassem e assim conseguissem falar. Eles eram sujeitos a cirurgias, na qual era
implantado um ímã atrás da orelha, por baixo do coro cabeludo (implante coclear).
Neste ímã era preso, externamente, um aparelho que possibilitaria a audição. Caso não
obtivessem resultado, tiravam o aparelho externo, mas não poderia retirar o interno
obrigando as pessoas a conviverem com aquilo pelo resto da vida. Essas cirurgias eram
feitas em crianças pequenas, com o passar do tempo, conseguiram que os surdos fossem
operados quando já tivessem condições de optar pela cirurgia, ou seja, após os 12 anos
de idade. Ainda assim o autoritarismo dos pais falava mais auto. A grande maioria dos

5
pais não aceitavam ter filhos surdos, faziam o possível e o impossível para que eles
ouvissem ou ao menos, falassem.

Até hoje ouvimos histórias de pais que fazem visitas constantes aos
fonoaudiólogos na expectativa de conseguir que o filho ouça e fale. Durante os
encontros com jovens surdos4 surgem relatos, que quando adolescentes, muitos deles se
revoltam, evitam os fonoaudiólogos, arrancam seus aparelhos auditivos e recusam
qualquer atitude ou pessoa que acreditam estar querendo que eles falem. Essas
informações são encontradas também na internet e são sempre passadas pelos
professores dos cursos oferecidos na UFU e também na ASUL (Associação dos Surdos
de Uberlândia – MG), eles fazem questão que saibamos desses momentos na trajetória
dos surdos.

Por tudo isso surge o problema da utilização dos vibradores/ressonadores, tanto


citados e utilizados pelos fonoaudiólogos. Lorenna, também outros surdos ao
perceberem das intenções do projeto de pesquisa questionam logo se é uma maneira de
tentar fazê-los falar. Sendo assim além do trabalho teatral natural voltado a essas
pessoas, também como mais uma estratégia, fazê-los entender o que se quer com o
trabalho, passar credibilidade, confiança durante a realização de qualquer exercício
principalmente os exercícios que utilizam dos ressonadores e ainda improvisações que
dispensam o uso da LIBRAS. No entanto os encontros com os surdos foi um momento
de extrema importância por possibilitar a conscientização da utilização do espaço como
meio de comunicação. É notória a utilização do espaço no ambiente teatral, mas tal
convivência com os surdos enriquece a visão possível a esse espaço, agora ele é visto
com outros olhos, a comunicação realizada ali depende do espaço físico e corporal para
acontecer. Sinais são modificados dependendo do espaço utilizado. A espacialidade
funciona como magia, a exploração da percepção visual e corporal se une em benefício
da comunicação. Nesse momento a pessoa ouvinte percebe possibilidades outras para
usar o corpo e o espaço a favor da cena.

Quando tratamos de um assunto fica difícil ter propriedade do que se diz se não
existe ainda um número considerável de autores que discutiram sobre o assunto, para
auxiliar na fundamentação teórica. Sem embasamento a preocupação esta na veracidade

4
Jovens surdos que participam de estudos bíblicos organizados pela Igreja Shalom; Comunidade Cristã
em Uberlândia – MG.

6
das informações passadas. O “achismo” pode comprometer o texto. Essa preocupação
era um empecilho até que houve a descoberta do livro: Teatro, Teoria e Prática: mais
além das fronteiras de Josette Féral. “O livro aborda a questão dos vínculos entre teoria
e prática e das censuras inevitáveis dos quais toda profissão parece carregar a marca,
tanto na América como na Europa”. Um livro que com certeza auxiliará muito, para
fazer pensar a pesquisa, descobrir que pode-se escrever sobre relatos de pesquisas sem
medo de informações que não se tenham plena propriedade, afinal trata-se de uma
investigação, uma pesquisa em andamento. “Este livro convida ao leitor a uma simbiose
entre prática e teoria num esforço constante por limitar um pouco mais, o frágil terreno
do desenvolvimento teatral”. (Féral, p. 11). Leitura importantíssima para dar suporte a
uma pesquisa, já que há dificuldades para encontrar embasamento no campo teórico.
Teoria e prática são ferramentas indispensáveis ao desenvolvimento de um projeto. “Um
corpo no espaço: percepção e projeção”. (Féral p.13). O objeto foco da pesquisa seria a
utilização dos vibradores/ressonadores, no entanto o convívio com pessoas surdas abriu
um leque de possibilidades em se pensar o fazer teatral. O corpo dessas pessoas que
possui a expressão corporal e facial como meio de comunicação. Sinais que são
definidos a partir da expressão corporal e facial, como também a colocação espacial.
Saibam que vários sinais sofrem alterações quanto se posicionam diferentemente no
espaço, ou ainda a expressão facial que muda totalmente o significado de um sinal,
como por exemplo: sentimento, depende da expressão facial pra identificar se trata-se
de um sentimento bom ou ruim.

No1º parágrafo da página 16 Féral fala da arrogância do pesquisador, no qual é


possível traçar um paralelo com a experiência de pesquisa, quando deparamos com
fatos, que às vezes são ligados indiretamente ao foco da pesquisa, no entanto são
acontecimentos que obrigam-nos a desviar o olhar, por entender que são etapas de
investigação que não dá pra pular. Metodologias que se transformam em estratégias.
Metodologias criadas a partir das exigências da pesquisa. Seguir de acordo com que a
própria pesquisa pede. Logo em seguida o 2º parágrafo, fala dos acontecimentos que
deixamos de lado, talvez por delimitar o tema, talvez por abrir leques que nos levariam
às questões outras, exigindo outras pesquisas, que o tempo desta não permitiria.

Esse momento de leitura é muito importante pra fazer pensar o que entendemos
por metodologia. A aproximação com o objeto de pesquisa leva-nos a uma metodologia
na qual cada decisão de um procedimento é relacionada à necessidade do andamento da

7
pesquisa. O que seria necessário fazer para atingir este ou aquele ponto que acreditamos
ser crucial. Então o que foi colocado no projeto com relação à Metodologia, entregue na
intenção de pesquisa, às vezes cai por terra. Estratégias foram criadas, mudanças foram
feitas. Algumas ações não foram possíveis, outras foram transformadas, outras
intensificadas, como por exemplo; aprender a Língua Brasileira de sinais exige mais
tempo que o previsto para aprender a língua. Féral fala ainda da teoria empírica da
produção, então pensar a respeito da escassez de material teórico para estudos. Segundo
Féral;

E necessário, então, que a pessoa que aventure no domínio teórico


tenha a humildade de reconhecer que jamais terá feito completamente
o contorno e que, infalivelmente lhe escaparão campos inteiros do
saber. Tal e a lei dos limites humanos. (Féral, pg 36).

A teoria é uma prática. Se este é o caso. Que diferença podemos estabelecer,


então, entre a teoria e a prática artística? Porque há que reconhecer, tudo que se vem
dizendo da teoria se aplica da mesma maneira a prática. (Féral, p. 40). A teoria é
retirada da prática. Sem a prática não tem como se discutir, se teorizar. Falar sobre o
que se conhece. Perceber acertos e falhas e escrever sobre, registrar para que haja
possibilidade de diálogo a confrontação. “É necessário por isso, confundir a reflexão
teórica dessas práticas teatrais e as teorias associadas à obra terminada? Seguramente
não. Teoria e prática são dois domínios interdependentes”(Féral, p. 41)

Pensando em teoria e prática Féral fala do tradutor, diz que sempre escapa algo
numa tradução. Esta fala faz lembrar o intérprete/tradutor dos surdos, geralmente não
conhecem os termos teatrais, pois não convivem com o universo teatral, então busca,
dentro do contexto da linguagem de sinais, uma aproximação ao dito, isso dentro da
interpretação dessa pessoa que não estudou teatro e sim LIBRAS. A tradução nunca é
fiel. E às vezes peca, nega ou modifica o que está sendo revelado.

“Um não pode fazer sem o outro, já que traduzir consiste em instituir
essa passagem em uma mesma inspiração, para criar, negando ao
mesmo tempo a possibilidade de uma transferência perfeita, de uma
adequação exata entre a fonte e o destino. Entre ambos se cria uma
abertura, uma brecha dentro da qual surge toda a inventividade do
tradutor”. (Féral, pg 46)

8
Como a linguagem de sinais abre mão da conjugação verbal e de detalhes, o
intérprete se vê a vontade para passar ao surdo algo próximo, e então a poesia se perde,
detalhes importantíssimos são deixados de lado. Digo isto, porque ao acompanhar a
aluna Lorenna Karla na disciplina de Teatro Brasileiro II5, pude observar ocasiões que a
intérprete não passou exatamente o que foi intencionado a dizer, ou por descuido, ou
ainda porque a informação se tratava de assuntos relacionados a abuso sexual,
falávamos da Ditadura Brasileira, momentos de torturas aplicados a mulheres e homens,
artistas da época, o qual a intérprete se envergonhou em passar, pois falava de
penetração anal e ou, vaginal, o professor explicava do porque da posição que a moça
era pendurada para tortura, a qual seria para a exploração com sexo oral, pois a cabeça
ficava pendurada e os órgãos genitais, o ânus ficavam expostos para facilitar a
penetração, tanto do pênis do torturador, quanto de materiais pontiagudos, vários outros
momentos foram observados, omissões que comprometeram o aprendizado da aluna
surda. Questões a serem exploradas em outras pesquisas. Logicamente deverá haver
uma delimitação, pois é tudo muito extenso, materiais deverão ser guardados para uma
próxima pesquisa.

Não só em Teatro Brasileiro II, mas mesmo durante a monitoria de Técnica


Vocal I, a questão do intérprete chamou a atenção, por várias vezes foi percebido o
conflito entre dados relatados e dados traduzidos/interpretados. O texto estudado no
momento era “Romeu e Julieta” de Shakespeare, uma cena na qual Julieta encontra
Romeu morto e se mata para estar junto dele. Em Shakespeare a poesia é muito forte,
embora exista a questão do contexto para o surdo, devemos entender que a utilização do
contexto não pode comprometer a poesia da cena. Neste caso podemos exigir do
intérprete a questão poética, ou seja, procurar uma maneira que traduza a poetização da
fala. No entanto, no momento da monitoria foi pedido a intérprete que usasse de
detalhes da fala, informações precisas que seriam indispensáveis ao momento cênico. O
pedido foi negado com a explicação de que seria dessa forma para que o surdo
entendesse, que ele não está habituado a conjugações verbais, junções, adjuntos e
detalhes. A questão seria de até onde o intérprete teria conhecimento para passar
informações. Outra coisa é sinônimos, recurso do intérprete, entender sobre o que está

Teatro Brasileiro II: Disciplina do Curso de Teatro da UFU, ministrada pelo Professor Luiz Humberto
Arantes.

9
falando, ele precisa estar qualificado ou nunca funcionará conforme as exigências do
teatro.

No momento da monitoria o conhecimento da LIBRAS se tornava suficiente


para entender o que não estava sendo passado, por várias questões foi substituído o
intérprete, agora o atual consegue participar de termos teatrais, de lógicas cênicas para
passar a aluna detalhes de falas importante para o fazer teatral sem contrariar o contexto
ao qual o surdo está habituado. Então a descoberta que uma troca deve acontecer, o
intérprete e o surdo devem invadir o meio teatral, se permitir aos contextos do surdo e o
teatral.

O mergulho no universo da pessoa surda, além do foco da pesquisa que é o


trabalho com os ressonadores, carrega consigo varias necessidades de aprendizado. Um
deles seria entender essa linguagem tão peculiar, que se comunica por contexto.
Sabendo que o surdo não conjuga verbos, ele usa o corpo, expressões faciais e
corporais, o espaço para se fazer entender, para falar de presente e passado. Tudo isso
faz pensar no que diz Féral a respeito de se aventurar em um domínio teórico, o
entendimento entre as pessoas surdas se dá diferente dos ouvintes, e não foi em nenhum
texto que pudemos ter essa constatação e sim com a convivência com os surdos. Os
ouvintes exploram detalhes que os surdos dispensam para se comunicarem e o meio
teatral exige escuta dos surdos para que possa acontecer, mesmo sabendo que eles
escutam com os olhas.

Com um simples sinal junto a um movimento o surdo diz uma frase inteira. E
como no teatro, não basta saber técnicas, ter domínio sobre termos, posso afirmar que
teatro e LIBRAS, são duas linguagens próximas, o mais próximo que se possam
imaginar. Ambas exigem o total envolvimento do individuo que resolve dedicar à
exploração desses universos, no qual o corpo é o coordenador das ações. O
envolvimento da pessoa que queira aprender LIBRAS, surda ou ouvinte é o mesmo da
pessoa que quer fazer teatro. Em ambos os casos o corpo, o desejo de se comunicar e de
se libertar de couraças adquiridas pela imposição da sociedade ou mesmo ligadas à
identidade da pessoa, precisam ser trabalhadas para atingir um estado de naturalidade de
ações. No palco ou no universo do surdo, o corpo precisa estar disponível para falar.
Nem todo surdo tem essa naturalidade, pois alguns falam LIBRAS do berço, outros, por
questões familiares, aprendem a língua depois de crescidos e levam algum tempo para

10
se soltarem em prol da comunicação. Isso acontece porque muitos pais de surdo, não
aceitando a condição do filho, e com esperança que o filho fale, insistem com
fonoaudiólogos, outros por falta de informação não dedicam ao aprendizado dos filhos
para auxiliá-los. Existem filhos de surdos, embora ouvintes, que falam LIBRAS
perfeitamente, e ainda pais de surdos que sendo ouvintes, dedicam ao aprendizado da
língua para comunicar com os filhos e com os amigos surdos dos filhos. E ainda filhos
de surdos que se envergonham dos pais e se recusam a aprender LIBRAS. Ou ainda
surdos que não tiveram acesso ao estudo da linguagem e criaram sinais próprios para se
comunicar e conseguem viver dessa forma, isso acontece entre pessoas com mais idade,
certamente de quando o acesso ao estudo da língua de sinais era mais restrito. Mas em
todos os casos a “presença cênica” é notória. No palco da vida o surdo explora a
expressão corporal, a visão periférica e o espaço para comunicarem-se.

Todas estas questões antes não pensadas, por não terem sido vivenciadas, aparecem
durante o trabalho como metas a serem atingidas. Como diz Cecília Almeida Salles em
Gesto Inacabado: processo de criação artística. “O tempo do trabalho é o grande
sintetizador do processo criador. A concretização da tendência se dá exatamente ao
longo desse processo permanente de maturação”. (SALLES, 2009).

Um detalhe relevante ao pensar o trabalho realizado junto a Lorenna Karla é a


questão religiosa, pois ela e sua família, também o grupo de surdo ao qual ela convive e
que de alguma forma tem sido elemento da pesquisa, são religiosos. Em se tratando
desse grupo específico, deve-se pensar estrategicamente, também na questão da
religiosidade dos indivíduos envolvidos, pois eles possuem questões que são estranhas
ao meio teatral, pois o teatro não vê questões religiosas como problema para
convivência em grupo. O fato do toque, contato físico que os atores usam em jogos
teatrais, em trabalhos corporais ou até mesmo na cena, como abraços apertados, beijos
ou qualquer intimidade que seria questão do personagem e não do ator, não são
permitidos à esses surdos por questões religiosas. Ainda o fato de figurinos ousados que
mostram parte do corpo, também da convivência no camarim ou em sala de aula, no que
se refere a trocas de roupa, muitas vezes realizadas diante dos colegas. Ao grande
número de pessoas homossexuais presentes no meio teatral, tudo isso se torna problema
para o grupo, que questiona certas atitudes ditas por eles; “mundanas”. As pessoas
integrantes da religião do grupo constatado acreditam não ser do “agrado” de Deus que
se dispam uns diante dos outros, acreditam que homossexualidade é “pecado”, por isso

11
o descontentamento com o fazer teatral realizado na academia. Outro fato contra os
interesses do grupo citado são dramaturgias sangrentas, violências, sexo, nada disso
seria aceitável pelo grupo. Acreditam ainda que na academia os atores utilizem drogas e
bebidas alcoólicas, também proibidas pela igreja. Então a estratégia seria, para este
momento, um acordo entre suas questões pessoais e o trabalho a ser desenvolvido.

Em uma palestra realizadas na UFU, em setembro de 2013, ministrada por Luiz


Fuganti, ele falava do conhecimento empírico, o que aprendemos “com a vida”,
assimilações que somamos no decorrer da nossa vivência, experiências utilizadas para
enriquecer a pesquisa. Fundamental pra esse momento de tantas incertezas e
descobertas. A inserção social usada sem premeditação. Naturalmente a convivência
com pessoas especiais surgida dentro de uma pesquisa, são dados que devo ressaltar.
Pensar esse momento de pesquisa como uma possibilidade de adquirir conhecimento,
novas experimentação, ações que exigem novas ações.

Também Gaston Bachelard fala do conhecimento em seu livro “A Formação do


Espírito Científico, então o conhecimento empírico e o científico de encontro, em prol
da arte.

“Tornar geométrica a representação, isto é, delinear os fenômenos e


ordenar em série os acontecimentos decisivos de uma experiência, eis
a tarefa primordial em que se firma o espírito cientifico. De fato é
desse modo que se chega à quantidade representada, a meio caminho
entre o concreto e o abstrato, numa zona intermédia em que o espírito
busca conciliar matemática e experiência, leis e fatos”.
(BACHELARD, 1996, p. 7).

Pensar nesta constatação para situar informações advindas dos encontros com os
surdos. Aprendizado conseguido através da observação, importante quanto qualquer
leitura o aprendizado realizado observando seu objeto de pesquisa, acredito, é
extremamente considerável as informações obtidas através da pesquisa prática, viver o
que se estuda, relacionar com o sujeito da pesquisa é um grande aprendizado.

“Mas, desde já, é preciso perceber que o conhecimento empírico,


praticamente o único que estudamos neste livro, envolve o homem
sensível por todas as expressões de sua sensibilidade. Quando o
conhecimento empírico se racionaliza, nunca se pode garantir que
valores sensíveis primitivos não interfiram nos argumentos. De modo

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visível, pode-se reconhecer que a ideia cientifica muito usual fica
carregada de um concreto psicológico pesada demais, que ela reúne
inúmeras analogias, imagens, metáforas, e perde aos poucos seu vetor
de abstração, sua afiada ponta abstrata”. (BACHELARD, 1996, p. 20)

Bachelard diz que o adolescente entra na aula de física com conhecimentos


empíricos já constituídos: “não se trata, portanto de adquirir uma cultura experimental,
mas sim de mudar de cultura experimental, de derrubar os obstáculos já sedimentados
pela vida cotidiana”. (BACHELARD, p. 23). Entendo que se fala aqui de resistência ao
que não se conhece, ao novo, ao diferente, causando uma autodefesa às vezes
desnecessária, como vejo os surdos de quando se fala em usar os ressonadores para
potencializar a produção sonora sem que se pensem na fala, unicamente sons, reagem de
maneira defensiva, como que se houvesse necessidade de se defenderem. Não
consideram o aprendizado que possuem por vivências anteriores, vezes que por um
motivo ou outro precisaram, para se fazerem ouvir, precisaram usar os ressonares,
quando choram, riem ou gritam, isso porque não têm consciência deste acontecimentos,
eles não percebem quando gritam, é necessário que conscientize mo os dessa
possibilidade, sem querer que falem, mas sim que utilizem do que possuem, que
aprendam a explorar com consciência.

Durante a trajetória da pesquisa senti ao observar os surdos, que minhas


constatações mudavam meu modo de pensar e de tentar entender o posicionamento
deles perante o mundo, religião e acontecimentos históricos relacionados a eles.
Imagino como seria meu pensamento sobre meu objeto de pesquisa se parasse com a
observação, então permaneceria somente dados que já tenho sem se saber o que é
verdadeiro ou não, o que poderia ser mudado ou acrescentado. Sem o conhecimento
empírico tão rico a pesquisa. Jean Duvignaud fala dos papéis sociais que o indivíduo
pode ocupar, de momentos dramáticos que vidas privadas são tomadas por várias
tramas, cerimônias que encarnam a prática social, a vida ocupando o teatro, e o teatro
transformando a vida. Acredito que esta pesquisa acrescentou um indivíduo na trama da
vida, buscando informações, que embora saiba que o foco da pesquisa não é ajudar o
surdo na inserção social, devo afirmar que, com certeza, sem imaginar o quanto, esta
pesquisa contribuirá sim para um crescimento pessoal da pesquisadora, e que abrirá
portas para novas pesquisas que possam de alguma maneira contribuir para que os
surdos possam sim fazer teatro, se colocarem em situações antes não ousadas, nas lutas
pela conquista de espaço. Por conseguinte, as buscas continuam, a sabedoria do outro

13
sempre será bem vinda para que a investigação aconteça e some ao conhecimento
conquistado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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trabalhos técnico-científicos: projetos de pesquisa, trabalhos acadêmicos,
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14
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auditivo. Revista CEFAC vol.9 o.3 São Paulo Julho/Setembro. 2007. (online)
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SALLES, Cecília. Gesto Inacabado: processo de criação artística.. São Paulo, 2009.

15
TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO

TRABALHO DO ATOR/ATRIZ EM MOTION CAPTURE: UM OLHAR SOBRE A


INTERPRETAÇÃO

Patricia Leandra Barrufi Pinheiro (Capes – FAPESC, Doutorado); André Luiz Antunes Netto
Carreira (orientador); PPGT - UDESC

Pensar no trabalho de ator na contemporaneidade, abre margem para diversas reflexões


acerca da noção de atuação. Além disso, os limites e as definições nas artes têm se tornado cada vez
mais tênues. Na atualidade existem diferentes termos para designar essas novas artes: performance,
arte e tecnologia, videodança, web art, internet art, midia arte, cibernética, ciberator, ator virtual,
dançarino virtual, entre outros. Podemos então afirmar que a profissão de ator pôde ser direcionada
para diferentes mídias como teatro, televisão, cinema, internet, jogos digitais, entre outros. Neste
contexto, o presente artigo apresenta um estudo sobre a presença cênica e a utilização de novas
tecnologias que podem ser aliadas ao trabalho de ator, gerando uma nova concepção de atuação.
Com ênfase no trabalho direcionado ao cinema e aos jogos digitais (games) por meio de
captura de movimento (Motion Capture), este estudo busca o entendimento do tipo de processo
criativo necessário para esse meio e a compreensão desta forma de atuação. Também são apontadas
possíveis distinções de qualidade de presença deste ator. Além disso, este trabalho discute a seguinte
questão: A atuação com o uso tecnológico de captura de movimentos pode ser considerado um
trabalho de interpretação?
Partindo do princípio de que interpretação é a utilização de diversas técnicas ou intuição
para dar vida à um personagem, tem-se que um ator, ao incorporar um personagem, mesmo que via
recursos tecnológicos tais como captura de movimento, ainda pode-se definir como um trabalho de
atuação. Este estudo faz uma reflexão acerca das especificidades de interpretação existentes no
antigo cinema mudo e como é possível encontrar similaridades com a atuação através deste recurso
tecnológico utilizado na atualidade.
Têm-se relatos que, desde o início da história do teatro, o ser humano fez uso de tecnologias,
como o deus ex machina na Antiga Grécia, que era um dispositivo mecânico em forma de
guindaste. Consistia em um elemento cênico que “vinha em auxílio do poeta quando este precisava
resolver um conflito humano, aparentemente insolúvel, por intermédio do pronunciamento divino”
(Berthold, 2004, p. 117), ou como aparatos de iluminação utilizados no teatro de sombras. Assim
também, o trabalho do artista contemporâneo se encontra mediado por recursos tecnológicos, que
podem ser utilizados em novos experimentos.
Com o advento do cinema e da televisão, as técnicas de atuação/interpretação dos atores
sofreram modificações necessárias para essas mídias. A atuação, agora mediada por um recurso
tecnológico como a câmera, possui suas especificidades para afetar o espectador. No início da
história do cinema, a interpretação baseava-se em exageros de gestos e expressões faciais, buscando
com o passar dos anos um trabalho mais “verossímil”, mais próximo do chamado “real”, para uma
maior identificação do público. A televisão também caminhou nessa direção. Para tal definição,
cita-se aqui Walter Benjamin que explicita que:
Ao contrário de um ator de teatro, o intérprete de um filme não representa diante de um
público qualquer a cena a ser reproduzida, e sim diante de um grêmio de especialistas –
produtor, diretor, operador, engenheiro do som ou da iluminação – que a todo o momento tem
o direito de intervir (...). O intérprete do filme não representa diante de um público, mas de
um aparelho.” (Benjamin, 1994, p.178).
Ao contrário do teatro, onde geralmente pode-se visualizar os atores interpretando em cima
do palco, com todos os artifícios teatrais à mostra como cenário, iluminação, entre outros, no
cinema e na televisão essa atuação é editada pelo recurso da câmera e só são mostrados os ângulos
necessários para nos ludibriar com a impressão de que tudo pode ser real. A interpretação para essas
mídias também entra nesse contexto.
Nos tempos idos do cinema, quando ainda nem existiam recursos de sonorização (com
exceção do piano tocado em uma sessão de cinema para “ambientar” o filme), um gesto “falava
mais que mil palavras”. Os atores precisavam ser “grandes” em cena, assim como no teatro. O
único modo de passar suas intenções e emoções era através de seu corpo. Se não agissem desse
modo, não passariam sua “mensagem” imagética. Em filmes como Um Cão Andaluz, O Gabinete
do Dr. Caligari, Nosferatu, Metrópolis, Aurora entre outros, é possível perceber esse tipo de
atuação. Também não existia ainda a preocupação atual do cinema com o naturalismo.
Especificamente, nas criações alemãs expressionistas, pode-se perceber a firme construção de
personagens grotescos e uma distorção imagética devido ao exagero da dramaticidade, da
teatralidade, da atuação e dos cenários fantásticos que parecem serem retirados do nosso imaginário
inconsciente. Essa estética, inspirada nas belas-artes, teatro e literatura valorizava a atmosfera, o
clima e o psicológico, sendo estes mais importantes que o realismo. A atuação explorava a
deformação ou exagero das figuras, buscando a expressão exagerada dos sentimentos do
personagem, com traços estilísticos bastante definidos visualmente. A precisão gestual era algo
importante, tendo em vista que, não podendo utilizar-se do recurso da fala, dever-se-ia ter uma
forma efetiva de comunicação através do corpo.
Já o cinema atual possui quase sempre uma busca mimética do real, tendo o intuito de
transportar o espectador para dentro da história, remetendo muitas daquelas cenas ao seu cotidiano,
com algumas exceções de opção estética. A forma como conhecemos a atuação para o cinema de
nossa época, teve início também na ilustre era do cinema mudo.
Com base em pesquisas históricas, pode-se citar o nome de Lilian Gish 1, atriz do consagrado
diretor D. W. Griffith2, como a precursora da fórmula diferenciada de atuação para o cinema. Em
plenos anos 20, do século passado, Lilian, até então atriz de teatro, foi trabalhar com o conhecido
diretor. Este a ensinou que a atuação para o cinema era diferente do que ela havia aprendido nos
palcos. O diretor enfatizou que a atriz poderia ser uma excelente intérprete no teatro, mas que as
falas, tão importantes para aquele espaço, não o eram no cinema. Griffith explicou a Lilian que esta
necessitava testar sua expressão corporal de forma ampla sem ser teatral. A atriz então se viu
obrigada a desenvolver uma nova técnica para sua representação, criando assim outra forma de
atuação também para o cinema (Bonfim, 2009). Mesmo assim, Lilian Gish era uma exceção em sua
época em termos de atuação.
Outra atriz, que também deve ser mencionada neste exemplo de exceção à regra, é Maria
Falconetti (também conhecida como Renée Jeanne Falconetti), protagonista de “O Martírio de
Joana D’Arc” com direção de Carl Theodor Dreyer em 1928. A veracidade na atuação de Falconetti
é impactante até os dias atuais. O rosto da atriz esboça fraqueza física e psicológica, impossíveis de
serem ignoradas como reais.
Seu olhar assustado e ao mesmo tempo pleno de fé e esperança traduz um estado de epifania
jamais obtido em outra performance capturada por uma câmera. Dreyer focaliza cada um de
seus poros, fios de cabelo e lágrimas com descomunal respeito — ademais, exibe os algozes
de Joana em ângulos de baixo pra cima, insinuando, assim, a humilhação da garota perante a
força e o poder dos impiedosos eclesiásticos. (Willemin, 2009) .
Apesar desses exemplos tão marcantes, os famosos elementos antinaturalistas ainda eram
usados e abusados no cinema mudo. Atores como Lon Chaney, se apropriavam da forma grotesca
para mostrar em cena sua versatilidade e habilidades de interpretação. Filho de pais surdos-mudos,
Chaney se expressava desde cedo através da mímica, criando fama na indústria cinematográfica
como um artista e maquiador polivalente. Sua atuação em O Fantasma da Ópera de 1925 lhe rendeu
o título de “O homem das mil faces”. Chaney criava máscaras e maquiagens que feriam seu rosto,
dilatando narinas e esbugalhando seus olhos para auxiliar no seu ideal para uma boa atuação
cinematográfica. Suas provações agonizantes em nome do cinema inspiraram artistas performáticos
do Torture Garden3 de Londres (Baddeley, 2005, p. 48).
Ou seja, por mais que para os espectadores seja possível vislumbrar um trabalho
considerado realista ou naturalista no cinema, este se dá através de procedimentos técnicos que
tornam inviável a existência do real. Ou como já diria Bergson: “É cinematográfico, porque é
ilusório e mecanicista” (Bergson apud Machado, 1997, p. 22).
Com o propósito de melhor compreender a transição na atuação entre o teatro, cinema, e
agora para a Captura de Movimento, vê-se aqui a necessidade inicial de expor o que se compreende
por Captura de Movimento e sua historicidade. Na antiguidade clássica, Aristóteles, desenvolveu o
estudo denominado De Motu Animalium (Do Movimento dos Animais), em que expôs os princípios
gerais a respeito dos movimentos dos animais (Aristóteles, 2010). Ele se interessou pelos corpos
dos seres vivos como sistemas mecânicos, mas também investigou questões como a diferença
fisiológica entre as espécies e como estas realizam suas ações de forma peculiar. Aristóteles 4 dava
início, assim, aos estudos da biomecânica. Da época do filósofo grego até os dias atuais, o interesse
pela biomecânica aumentou de forma considerável. Compreender a mecânica dos seres vivos
tornou-se uma ciência importante, não apenas para que entendêssemos o movimento dos seres, mas
também para auxiliar na correção de problemas físicos e ajudar a melhorar o desempenho de atletas.
A Cinemetria5 possui um maior destaque na área. Essa metodologia da biomecânica pode mostrar
não apenas as variações de movimento dos seres, mas também ilustrar sua locomoção no espaço.
Essa prática deu origem ao Fotograma e ao Cinema, conforme Flam:
(...) diversos estudiosos contribuíram para o surgimento da técnica de captura de movimento.
Em 1878, Eadweard Muybridge realizou uma das primeiras capturas de movimento ao
registrar fotografias de um cavalo galopando usando um conjunto de câmeras acionadas pelas
patas do animal. Dessa maneira, ele conseguiu provar que, em determinado momento do
galope, as quatro patas do animal estariam no ar. Muybridge contribuiu também para os
primeiros passos do cinema ao inventar o zoopraxiscópio, um dispositivo capaz de exibir um
série de imagens em sequência, dando impressão de movimento (Flam, 2009, p. 14).
Em um período posterior, outros equipamentos similares foram criados a partir da ideia da
Cinemetria, buscando um maior refinamento.
Max Fleischer e Howard Edgerton foram outros dois colaboradores para a captura de
movimento. Fleischer iniciou em 1915 a primeira animação usando um rotoscópio,
equipamento responsável por projetar e paralisar cada quadro de um filme. Ele filmou seu
irmão movimentando-se com uma roupa de palhaço e produziu desenhos sobre os quadros
individualmente, combinando-os em um animação concluída em 1916. Edgerton, por sua
vez, criou um instrumento conhecido como estroboscópio em 1931. O estroboscópio é capaz
de capturar fotografias nítidas de objetos em movimentos cíclicos de alta velocidade,
“congelando-os”, piscando luzes na mesma frequência em que o movimento ocorre (p. 14).
A partir desses aparatos tecnológicos, muitos outros recursos foram criados, dando origem a
chamada Captura de Movimento (Motion Capture):
Captura de movimento é a gravação de movimento do corpo humano (ou outro movimento)
para análise imediata ou postergada e reprodução. A informação capturada pode ser geral,
como uma simples posição do corpo em um espaço, ou complexa, como deformações da face
e massas musculares (Sturman apud Flam, 2009 p.1).
A Captura de Movimento é utilizada como recurso para testes militares, entretenimento 6,
esportes, trabalho com atletas e até mesmo em aplicações médicas. No últimos anos, a introdução
da Captura de Movimentos (ou Captura de Performance) no cinema teve seu ápice em função da
evolução e do acesso às novas tecnologias. Filmes como a trilogia Lord of the Rings (2001; 2002;
2003), The Polar Express (2004), King Kong (2005), Beowulf (2007), Avatar (2009), A Christmas
Carol (2009), Rise of the Planet of the Apes (2011), The Adventures of Tintin (2011), entre outros.
Neste contexto, pode-se citar o ator Andy Serkis 7, que encontrou seu diferencial enquanto
artista neste tipo de trabalho em filmes como “Senhor dos Anéis” (Lord of the Rings), “O Planeta
dos Macacos” (Rise of the Planet of the Apes) e no jogo “Enslaved: Odyssey to the West” (2013).
Em entrevista à Steve Weintraub8, Serkis explica como é utilizada a captura de movimento, ou
performance, na atualidade. Weintraub questiona como a tecnologia modificou a forma de criação
de um personagem para o cinema e o que mudou nos últimos dez anos na área:
A tecnologia de captura de performance saiu da tecnologia de captura de movimento, mas há
uma diferença significante. O que fizemos em "O Senhor dos Anéis" foi: eu fui filmando no
set com Elijah Wood e Sean Astin, fazendo as nossas cenas juntos, mas depois eu precisava ir
para um lugar diferente para filmar a captura em movimento, que era o movimento físico de
Gollum. E a forma que as reações faciais foram capturadas, em "O Senhor dos Anéis", em
que os animadores literalmente... o rosto do Gollum foi feito para se encaixar na minha
estrutura muscular. Então, os animadores depois combinavam o frame olhando pela minha
performance que estava filmada. Eles literalmente desenhavam por cima para combinar a
performance de Gollum. Mas, com este filme (O Hobbit), 12 anos depois, nós temos câmeras
de captura de performance, e captura de performance significa toda a performance, em um set
de verdade. Então, eu não tenho que repetir mais nada. Tudo acontece. Eu tenho uma câmera
na cabeça. Minhas expressões faciais são capturadas. Meus movimentos físicos são
capturados. E, lógico, o áudio é gravado. Então, é tudo sobre a atuação entre Martin Freeman,
neste caso, e eu. Eu não tinha que repetir a cena com Peter Jackson me dirigindo
(posteriormente). Então, não tem muita complicação e é como dirigir dois atores
normalmente. (Weintraub, 2013).
Na explicação de Serkis acima, o ator não possui um diferencial no momento de ser dirigido.
Mas ao analisarmos vídeos de making-of, pode-se perceber que a interpretação é regida pela
precisão dos gestos e pela presença do ator. A questão mais pertinente neste caso então é perceber
qual é a distinção na qualidade de presença deste ator que tem o seu trabalho mediado pelo captura
de movimentos. Sabemos que a noção de presença é ampla, mas em termos gerais, pode-se
denominar presença como sendo o “estar presente fisicamente”. Já no teatro a presença pode ser a
qualidade do estar ali, estar “vivo”, estar atuante, ter algo que se sobressaia e se destaque. De toda
forma, a definição de presença se liga a um contexto de fisicalidade. Já para Patrice Pavis (2010), na
atualidade, essa definição precisa ser mais ampla para abarcar as artes da atualidade, principalmente
as atreladas as novas tecnologias. Para Pavis, com a criação de espaços virtuais, o corpo do ator não
precisa ser visível para possuir presença.
O ator pode, assim, muito bem estar ausente do espaço cênico, e estar absolutamente presente
num lugar totalmente distinto. A presença não está mais ligada ao corpo visível. Se estou ao
telefone, estou presente-livre, mas evidentemente ausente no espaço visível (inversamente
ousaríamos dizer, se estou perdido nos meus pensamentos, meu corpo está lá, porém eu não
estou lá, meu espírito está alhures, ausente para alguém que queira falar comigo) (Pavis,
2010, p. 176).
A produção da ideia de presença pode assim redefinir o termo e trazer reflexões também
sobre a noção de ausência. Nem sempre presença pode ser rotulada como uma relação espacial entre
o mundo que vivemos e as coisas ao nosso redor. Gumbrecht (2010) cita que as coisas só estão
autorizadas a serem algo para nós, na medida em que autorizamos sua existência. E isso só se dá
quando se atribui a essas coisas um certo sentido.
No Brasil, coletivos teatrais como o Grupo Galpão e Giramundo, também estão
experimentando o trabalho em Motion Capture em suas criações com intuito de expandir suas
possibilidades e se conectar com as novas mídias. O Grupo Galpão criado em 1982 na cidade de
Belo Horizonte (MG-Brasil), famoso por seus espetáculos de rua, mas também por suas inserções
tanto no cinema, quanto na televisão, adentrou em uma proposta cinematográfica diferente do que
estavam acostumados. O grupo usou o recurso de MoCap (Motion Capture) em um curta-metragem
de animação, sobre uma história de Franz Kafka, intitulado Primeira Perda da Minha Vida. Um dos
integrantes do grupo, Beto Franco, diz que “A animação passa a utilizar o ator, tornando a produção
mais convincente. Além de dar mais possibilidades para o diretor: ele não instrui uma máquina, mas
uma pessoa” (Pacelli, 2011 p.1).
Também o grupo Giramundo, criado em 1970 em Belo Horizonte, interessou-se pela
tecnologia de captura de movimentos, levando a técnica para os palcos. O grupo, conhecido pelo
teatro de marionetes, decidiu ousar incluindo em seu novo trabalho “Aventuras de Alice no País das
Maravilhas”, um boneco digital manipulado em tempo real graças à tecnologia Motion Capture,
comum no cinema, mas rara no teatro. Segundo Marcos Malafaia, diretor do Giramundo, a técnica
de captura de movimento possui inúmeras aplicações.
Um dos tentáculos da captura de movimento é o suporte de construção de um novo
panorama/cenário humano que vai se fortalecendo passo a passo: o mundo das simulações
digitais. (...) A utilização da tecnologia é como na história da Alice, nós vamos entrando nessa
toca e não sei se a gente vai sair. É o universo sintético (Ibidem, p.1) .
Por trabalharem há muitos anos com marionetes, maquinários e afins, o Giramundo viu no
recurso da Captura de Movimento um elemento inovador e enriquecedor para o novo trabalho do
grupo.
É importante perceber que também grupos teatrais estão manifestando interesse em trabalhar
com os recursos de Captura de Movimentos. Apesar de ainda serem experimentos, esta tecnologia
tende a ser, futuramente, um grande auxiliar para práticas teatrais e cinematográficas em nosso país.
Com base nestes conceitos, este estudo continua assim uma busca para a compreensão deste tipo
específico de interpretação, refletindo sobre possíveis distinções na qualidade de presença do
ator/atriz mediado pela tecnologia.

NOTAS

1
Lillian Diana de Guiche (1893 - 1993) foi uma atriz norte-americana
2
David Wark Griffith, geralmente conhecido por D.W. Griffith (1875 - 1948) era um diretor de cinema estadunidense.
3
Clube londrino com temática fetichista.
4
Aristóteles pode ser considerado, inclusive, o pai da Cinesiologia (ciência que analisa os movimentos).
5
Metodologia biomecânica que se destina à obtenção de variáveis cinemáticas para a descrição de posições ou
movimentos de um ou mais corpos no espaço.
6
O Kinect, por exemplo, é um dispositivo de captura de movimentos do console de videogames XBox360 da
Microsoft© com um custo acessível e diversas funcionalidades.
7
Ator e Cineasta britânico nascido em 1964. Especializado em atuação atráves de Captura de Movimentos e
Performance. Ficou famoso ao atuar como o personagem Gollum na trilogia “Senhor dos Anéis” com direção de Peter
Jackson.
8
Correspondente internacional do site brasileiro Omelete – http://omelete.uol.com.br/.

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. De Motu Animalium. In: Obra Biológica. Tradução do grego: Rosana Bartolomé.
Madri: Luarna Ediciones, 2010.
BADDELEY, Gavin. Goth Chic: um guia para a cultura dark. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
BERTHOLD, Margot. História Mundial do Teatro. 2o ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
BONFIM, Mariana. Lillian Gish: Musa do cinema mudo. Site Monalisa de Pijamas, Seção Mona
Cine. http://monalisadepijamas.virgula.uol.com.br/monacine/mona-cine-lillian-gish-musa-do-
cinema-mudo acesso em 04 set 2009.
FLAM, David Lunardi. OpenMoCap: uma aplicação de código livre para a captura óptica de
movimento. Dissertação (mestrado) — Universidade Federal de Minas Gerais. Departamento de
Ciência da Computação. Belo Horizonte, 2009.
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença: o que o sentido não consegue transmitir. Rio
de Janeiro: Contraponto: Ed. Puc-Rio, 2010.
MACHADO, Arlindo. Pré-cinemas e Pós-cinemas. São Paulo: Papirus, 1997.
PACELLI, Shirley. Projeto de captura de movimento integra produções do Giramundo e do
Galpão. Em.com.br. Belo Horizonte (MG). Publicação em 01/12/2011. Disponível em:
http://www.em.com.br/app/noticia/tecnologia/2011/12/01/interna_tecnologia,265109/projeto- de-
captura-de-movimento-integra-producoes-do-giramundo-e-do-galpao.shtml acesso em 8/maio/2013.
PAVIS, Patrice. A Encenação Contemporânea: origens, tendências, perspectivas. São Paulo:
Perspectiva, 2010.
WEINTRAUB, Steve. O Hobbit – Uma jornada inesperada. Omelete entrevista Andy Serkis.
Canal Omeleteve. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=rSRHAcaNjwM acesso em
01/nov/2013.
WILLEMIN, Pierre. O Martírio de Joana D’Arc (La Passion de Jeanne D’Arc, 1928). Site
Cinema Filia. http://cinema-filia.blogspot.com/2007/11/o-martrio-de-joana-darc-la-passion-de.html
acesso em 19 set. 2009.
O TRABALHO DO ATOR E O ESPAÇO
O POLÍTICO NA RELAÇÃO ARTISTA-ESPAÇO
Raquel Purper (bolsa Capes); Orientador: Prof. Dr. Edélcio Mostaço; Programa de Pós-
Graduação em Teatro; Universidade Estadual de Santa Catarina.
Para quem pesquisa arte nos dias de hoje, existe ou deveria existir uma
preocupação em desenvolver um pensamento crítico sobre o papel sociopolítico da arte
e uma reflexão acerca da prática artística que compreende a relação artista-espaço como
condição fundamental da constituição de um espaço político. Uma prática artística que
se constitui como espaço político é aquela que carrega quais características? Sua
existência é determinada pelo que? Pelo modo como as relações entre os artistas são
desenvolvidas no espaço e/ou pela maneira como a relação do artista com o próprio
espaço é desenvolvida? Essas são algumas indagações que norteiam a reflexão sobre
como as relações estabelecidas entre os artistas no ou com o espaço são determinantes
para que se construa um espaço político.
A referência de espaço aqui apresentada é o espaço social, o qual é produzido
pelas interferências subjetivas e que está em permanente mutação. Milton Santos1
(1999) alerta que o viver com o outro – presença inevitável no espaço – supõe sempre
um saber acerca daqueles com os quais se interage e observa que é, principalmente pela
linguagem, que se realiza essa conexão de conhecimentos não-pensada, mas sempre
presente, e que isto inclui as rotinas de comportamento que assimilamos na interação
cotidiana e pela qual somos informados a respeito de algumas regras de sociabilidade. O
autor aponta que os olhares e gestos que trocamos, localizados em determinado registro
lingüístico, indicam certas formas de comportamento e, simultaneamente, de
motivações. Esse espaço construído pela interação, pela rotina de comportamentos,
pelas regras sociais, pelos olhares e pelos gestos irá conectar-se, a seguir, a uma
definição de política que fará com que possamos refletir sobre as relações que
constituem o caráter político do espaço.
Hannah Arendt2 (2004) entende que a política é baseada na pluralidade dos
homens e que trata da convivência entre os diferentes, ou seja, que os homens se
organizam politicamente para certas coisas em comum a partir do caos absoluto das
diferenças. A política, segundo Arendt, surge no “entre os homens” e se estabelece
como relação. Para Jacques Rancière3 (2009), a política é assunto de sujeitos, ou
melhor, de modos de subjetivação que, compreendidos por Foucault4 (2009), são as
escolhas estética e política por meio da qual se acolhe um determinado tipo de
existência. Ou seja, o modo como cada artista se relaciona com seus parceiros de
trabalho e com o espaço são determinados pelas suas escolhas políticas e estéticas. Se
levarmos em conta que a política é baseada na pluralidade dos homens, o modo como
cada indivíduo responde, se adapta ou se opõe a essa organização plural constrói um
espaço político.

1
Geógrafo brasileiro
2
Filósofa política alemã de origem judaica
3
Filósofo francês e professor emérito da Universidade de Paris.
4
Filósofo francês
Alan Badiou5 (2000) entende que o ato político é algo que cria tempo e espaço.
Cria espaço porque diz: “Vou transformar esse lugar em um lugar político”. Badiou
constata que o problema é saber se, atualmente, nós queremos e sabemos criar tempo e
espaços políticos. Para refletir sobre a questão de Badiou relacionada à arte, convoco
Rancière (2009), o qual acredita que “as práticas artísticas são maneiras de fazer que
intervém na distribuição geral das maneiras de fazer e nas suas relações com as
maneiras de ser e formas de visibilidade” (p.17) O pensamento de Rancière sugere que a
prática artística transforma o espaço em político, pois ela reconfigura as maneiras de
fazer, de ser e de ser visível de todo o contexto social, não só da própria arte. Então,
para contemplar Badiou, querer e saber criar espaço político na arte depende da vontade
do artista em modificar a distribuição geral das maneiras de fazer. Badiou (2000) reflete
sobre a capacidade política das pessoas e de como se organiza essa capacidade, com
uma lógica distinta da lógica do poder. Rancière (2010) fala da política como não sendo
uma busca pelo poder, e sim, um regime de distribuição do poder:

Porque a política, bem antes de ser o exercício de um poder


ou uma luta pelo poder, é o recorte de um espaço específico de
“ocupações comuns”, é o conflito para determinar os objetos que
fazem ou não parte dessas ocupações, os sujeitos que participam ou
não delas. Se a arte é política, ela o é enquanto os espaços e os tempos
que ela recorta e as formas de ocupação desses tempos e espaços que
ela determina interferem com o recorte dos espaços e dos tempos, dos
sujeitos e dos objetos, do privado e do público, das competências e das
incompetências que define uma comunidade política. (RANCIÈRE,
2010, p.46)

O espaço-tempo político em uma prática artística se desenvolve a partir de


posições tomadas pelos artistas envolvidos em um “grupo criador”, termo o qual Badiou
utiliza para definir uma organização política. A escolha de como cada indivíduo irá se
disponibilizar ou não para essa relação de convivência entre os diferentes de que fala
Arendt define o espaço político. O fato de escolher, por exemplo, entre ser sempre um
locutor ou um interlocutor e o tempo de permanência nesse papel em um processo de
prática artística, estabelece o tipo de relação que um indivíduo irá travar com um
determinado “grupo criador”. Essa observação pode ser encontrada também nas
reflexões de Rancière (2010), o qual acredita que a arte é política quando ela “enquadra
um sensorium específico de espaço-tempo e na medida em que esse sensorium define
maneiras de estar juntos ou separados, de estar dentro ou fora, em frente de ou no meio
de, etc”. (p.46) Esses posicionamentos – junto/separado; dentro ou fora; em frente de ou
no meio de - definem a relação do artista com o espaço como política, pois envolve uma
tomada de posição que age diretamente na distribuição do poder.
Rancière (2009) argumenta que, para que se pense a paisagem artística
contemporânea, é preciso reconfigurar o que se entende por estético e político hoje, e
que a arte não é política por transmitir mensagens políticas ou representar estruturas
sociais e políticas, da mesma forma que a política não seria um exercício de poder, mas,
antes de tudo, a configuração de um espaço como político. O autor pensa novas formas
de interseção entre o artístico e o político no mundo atual:

5
Filósofo, dramaturgo e romancista francês.
A articulação entre estética e política se define através da
“partilha do sensível”, que é este sistema de evidências sensíveis que
dá a ver ao mesmo tempo a existência de um comum e as decupagens
que definem nele os lugares e as partes respectivas (...) Essa repartição
das partes e dos lugares se funda sobre a partilha de espaços, de
tempos, de formas de atividades que determinam a maneira pela qual
um comum se presta à participação e pela qual uns e outros tomam
parte nessa partilha (...) Atos estéticos são, portanto, configurações de
experiências que fazem existir novos modos de sentir e induzem a
novas formas de subjetividade política (RANCIÈRE, 2009, p.7-12)

Dentro dessa perspectiva, todo o dispositivo espetacular implica


necessariamente certa forma de partilha no espaço, de configuração das
intersubjetividades e, portanto, da experiência do que pode significar um coletivo.
Bakhtin6 (1995) apresenta a ideia de intersubjetividade ao definir compreensão como
uma forma de diálogo, o que implica o reconhecimento da interação entre locutor e
interlocutor no processo de construção de sentido. Assim, o espaço político na prática
artística é construído quando há consciência de que os papéis de locutor e interlocutor
constituem a relação espaço-temporal dos artistas entre si. A escolha por ocupar uma
posição e o tempo de permanência nela articula o político na intersubjetividade e no
próprio espaço. Em outros escritos, Bakhtin (1992) revela que a compreensão de uma
fala viva é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa: o ouvinte concorda ou
discorda, completa, adapta, apronta-se para agir desde as primeiras palavras emitidas
pelo locutor.
Essa atitude responsiva ativa pode ser relacionada ao conceito de afeto
desenvolvido pelo filósofo Bento Espinosa7 (1997), o qual é entendido como afecção
corporal que aumenta ou estimula a potência de agir ou a potência de pensar, pois, em
uma relação de fala e escuta como sugere Bakhtin, a reação do ouvinte deriva de um
afeto sofrido, que acontece como conseqüência de um aumento ou de uma diminuição
da sua potência de agir ou de pensar. Se a política é a distribuição do poder (Rancière),
podemos observar que uma atitude de diminuir a potência de agir seria fazer mau uso
desse poder, pois inibiria uma possível motivação daquele que sofreu a diminuição para
que pudesse se pronunciar. Se alguém diminui a potência de agir de outro, esse outro
possivelmente irá se isentar de tomar sua parcela de poder. Isso, de fato, é um fator
variável, pois os espaços tanto podem ser motivadores quanto inibidores, visto que são
constituídos por modos de subjetivação que se transformam o tempo todo.

O espaço na prática artística se constitui na relação entre os artistas, nos quais


locutores e interlocutores aumentam ou diminuem a potência de agir uns dos outros. É
importante perceber que, para a construção de um espaço político, no qual de fato
aconteça um regime de distribuição de poder, ao qual Rancière se refere, as posições de
locutores e interlocutores devam alternar-se incessantemente podendo, assim, viabilizar
maneiras para que todos possam contribuir para o aumento da potência de agir e de
pensar do grupo. Assim, o espaço político na prática artística deveria ser motivador e
congregar as diferentes possibilidades de intervir na intensidade da ação do outro, pois
cada modo de subjetivação envolvido no grupo definirá a qualidade das
intersubjetividades contidas nele.

6
Filósofo e pensador russo
7
Filósofo holandês
Espaço político: consenso e/ou dissenso?
O espaço político constitui-se pela criação de espaço e tempo. Após as
reflexões sobre o conceito de política em Arendt, Rancière e Badiou conclui-se que,
através da convivência entre os diferentes em um grupo criador, locutores e
interlocutores vão revezando-se nos papéis, afim de que o poder possa ser distribuído.
No entanto, ainda é preciso pensar em como as questões são abordadas dentro desse
grupo, em como as opiniões e decisões são conduzidas. Será que, em um espaço que se
pretende político, a noção predominante é a de consenso ou a de dissenso? Ou será que
é possível uma interlocução entre as duas?

Para iniciar a reflexão sobre as noções propostas, tem-se a apresentação clara e


simples da definição de consenso: uma palavra que significa “acordo”, “anuência”,
“consentimento”, “conformidade de opiniões, ideias, sentimentos ou impressões”.
Ligado à ordem, o consenso remete à noção de contrato, o qual implica o acordo de
várias vontades na realização de uma ação comum, respeitando as regras e obrigações
recíprocas. Hoje, a noção de consenso significa, sobretudo, a construção de uma
vontade comum a partir de interesses individuais, sendo utilizada com freqüência na
análise das regras e dos debates que constituem a vida política e a cidadania. Habermas8
(2001), em sua Teoria da Ação Comunicativa, preconiza um modelo de comunidade
intersubjetiva de comunicação, orientada para a formação de consensos, ou seja, para
um acordo entre interesses concorrentes.

Essas definições de consenso nos incitam a imaginar um espaço no qual cada


participante abandona sua opinião particular em prol de uma única opinião, o que, no
ponto de vista da reflexão aqui apresentada, não constitui um espaço político. O espaço
que se constitui como político incita as opiniões desiguais e não objetiva apaziguar a
discussão através de um consenso. Ele respeita as diferenças e sua luta é para que essas
contradições sejam contempladas. A prática artística que busca a construção de um
espaço com essas características agrega artistas de diversos posicionamentos estéticos e
não procura apagar essas múltiplas possibilidades de criação, ao contrário, faz desse
dissenso o modo de operação desse espaço que se define como político.

O termo dissenso provém do verbo latino dissero (examinar, discutir uma


matéria) que se transforma no substantivo dissensus. Segundo Alberto Buela9 (2011),
dissenso significa “outro sentido”, “divergência”, “contrário parecer”, “desacordo”. O
autor revela que existe muito pouca literatura acerca do dissenso e a pouca que existe,
vem desde o pensamento institucionalmente aceito, com o qual o dissenso está
caracterizado negativamente: "O dissenso é negativo porque sempre está referido a um
consenso prévio" e vinculado às minorias: "uma das características de toda minoria é
uma atitude de dissenso". Buela não compartilha dessa classificação e a define como
interessada e parcial, pois dissentir não é somente negar um acordo e sim, acima de
tudo, pretender dar “outro sentido” ao que, atualmente, possuem as coisas e as ações dos
homens. Assim, afirma Buela, dissentir é uma atitude livre, pessoal ou coletiva, de
afirmar outra coisa à proposta; enriquece as práticas humanas e consolida uma

8
Filósofo e sociólogo alemão. Conhecido por suas teorias sobre a racionalidade comunicativa e
a esfera pública.
9
Filósofo argentino que trabalha sobre temas específicos: metapolítica, teoria do dissenso e
teoria da virtude
sociedade plural, ao mesmo tempo em que invalida qualquer tentativa homogeneizadora
ou totalitária.

Buela (2011) explica que a função ético-política do dissenso é expressar a


opinião dos menos, dos diferentes, ante o discurso homogeneizador da ética discursiva
ou comunicativa que somente legitima o valor moral do consenso. O autor defende que
não existe nenhuma razão, salvo a conveniência pessoal, para que o homem em
sociedade renuncie às suas ideias para que se assemelhem às do resto dos cidadãos.
Dentro de um espaço de prática artística que se projeta como político devem ser
motivadas relações que priorizem o desmoronamento do homogêneo e que possam
promover a validação, e não a renúncia da diferença e do dissenso. Concordando com a
relação entre arte, dissenso e política, Rancière (2010) argumenta que a arte não produz
conhecimentos ou representações para a política, e sim,

produz ficções ou dissensos, agenciamentos de relações de


regimes heterogêneos do sensível. Ela os produz não para a ação
política, mas no seio de sua própria política, isto é, antes de mais nada,
no seio desse duplo movimento que, por um lado, a conduz para sua
própria supressão e, de outro, aprisiona a política da arte na sua
solidão. Ela os produz ocupando essas formas de recorte do espaço
sensível comum e de redistribuição das relações entre o ativo e o
passivo, o singular e o comum, a aparência e a realidade, que são os
espaços-tempo do teatro. Ela produz, assim, formas de reconfiguração
da experiência que são o terreno sobre o qual podem se elaborar
formas de subjetivação políticas que, por sua vez, reconfiguram a
experiência comum e suscitam novos dissensos artísticos.
(RANCIÈRE, 2010, p.10)

Rancière (2010) nota, por outro lado, a existência do consenso, que é o modo
de simbolização da comunidade que visa excluir aquilo que é o próprio cerne da
política: o dissenso, o qual não é simplesmente o conflito de valores ou de interesse
entre grupos, mas a possibilidade de opor um mundo comum a outro. É possível
observar, na reflexão de Rancière, as noções de consenso e dissenso sendo entrelaçadas,
atuando de forma interdependente: são consensos que interagem na forma de dissenso,
verificando também a possibilidade de haver dissenso dentro dos mundos comuns dos
próprios consensos. Peter Pál Pelbart10 (2008) alerta que é preciso pensar a questão do
comum quando se considera um grupo, um conjunto humano. O autor explica que as
formas que antes pareciam garantir aos homens um contorno comum e asseguravam
alguma consistência ao laço social, entraram definitivamente em colapso:
Perambulamos em meio a espectros do comum: a mídia, a
encenação política, os consensos econômicos consagrados, a
militarização da existência para defender uma forma de vida dita
comum. No entanto, sabemos que essa forma de vida não é realmente
comum, que quando compartilhamos esses consensos, essas guerras,
esses pânicos, esses circos políticos ou mesmo essa linguagem que
fala que fala em nosso nome, somos vítimas ou cúmplices de um
seqüestro. (PELBART, 2008, p.2,3)

10
Filósofo, ensaísta, professor e tradutor húngaro, residente no Brasil.
Pelbart (2008) questiona se as relações podem compor-se para formar uma
nova relação mais abrangente ou se os poderes podem se organizar de modo a constituir
uma potência mais intensa e ainda: como um ser pode tomar outro no seu mundo, mas
conservando ou respeitando as relações e o mundo próprios? O autor suscita algumas
questões que devem ser discutidas por aqueles que pesquisam ou simplesmente se
interessam em aprofundar estudos sobre o espaço como político e as relações contidas
nele. É importante salientar que, embora haja inúmeras proposições possíveis a serem
feitas acerca da relação do artista com o espaço e do próprio espaço como políticos, a
reflexão aqui apresentada acredita que a qualidade das intersubjetividades, o aumento da
potência de agir e o modo de operação relacionado ao dissenso determinam a existência
do político.

Referências:
ARENDT, Hannah. O que é política? Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
BADIOU, Alain. Qué es la política? Conferência de Alain Badiou 24 e 25 de abril de
2000. Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/54532605/Badiou-Alain-Que-es-la-
politica>. Acesso em: 25 jun.2014.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
. Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método
sociológico na ciência da linguagem. 7ª edição. São Paulo: Hucitec, 1995.
BUELA, Alberto. Teoria do dissenso. 2011. Disponível em: <http://legio-
victrix.blogspot.com.br/2011/10/teoria-do-dissenso.html>. Acesso em: 05. jul. 2014.
ESPINOSA, Bento de. Ética: demonstrada à maneira dos geômetras. Os pensadores.
Traduzido por Joaquim Ferreira Gomes e Antônio Simões. São Paulo: Nova Cultural,
1997.
HABERMAS, J. Teoría de la acción comunicativa: complementos y estúdios prévios.
Traduzido por Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Catedra, 2001.

MANSANO, Sônia R. V. Sujeito, subjetividade e modos de subjetivação na


contemporaneidade. Revista de Psicologia da Unesp. 2009. Disponível em:
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Acesso em: 02 jul.2014.
PELBART, Peter Pál. Elementos de uma cartografia da grupalidade. In SAADI,
Fátima; GARCIA, Silvana (org). São Paulo: Itaú Cultural, 2008.
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Traduzido por Mônica
Costa Netto. São Paulo: EXO experimental org; Editora 34, 2009.
. Política da arte. Urdimento – Revista de Estudos em Artes Cênicas,
número 15, outubro 2010. Disponível em:
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jun.2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: espaço e tempo, razão e emoção. 3ª edição.
São Paulo: Hucitec, 1999.
Trabalho do Ator e o Espaço
PERCEPÇÃO E ESCUTA NA IMPROVISAÇÃO E
ESPETACULARIDADE

Ricardo Miguel Branco de Azevedo; Orientação: Ana Cristina Fabricio; Universidade Estadual do
Paraná – Campus de Curitiba II – FAP – Faculdade de Artes do Paraná

RESUMO

O texto aqui desenvolvido surgiu de vários questionamentos que emergiram de


experiências vivenciadas no grupo TOSCO: Improvisação e Espetacularidade, da
UNESPAR – FAP. Considerando um trabalho em grupo, que se propõe chegar à cena
através de jogos e exercícios improvisacionais, como se daria a percepção? Partindo
desta pergunta, que engloba uma série de outros questionamentos, pretende-se refletir
sobre o corpo do ator que percebe o todo em torno de si e tem que dar conta das
demandas do grupo, do individuo, da cena. Ou seja, supri-las de acordo com a
relevância do material que o ator identifica em jogo no momento da ação. O objetivo
maior é encontrar, nesta reflexão aspectos que ajudem a entender a percepção, tanto
em conceituação quanto aplicação, inserida no processo de criação e espetacularização
do grupo TOSCO.

Palavras-chave: Percepção; Escuta; Processo.

INTRODUÇÃO

Entendendo a necessidade do improvisador ter uma percepção bem


desenvolvida, compreender como se dá a percepção dentro de um processo de criação
que visa a espetacularidade através de dinâmicas improvisacionais é o desafio aqui
proposto. Porém, antes de procurar encontrar uma possível resposta, é necessário
situar o contexto de onde a pergunta emergiu. Faço parte do Tosco, Grupo de Estudos
em Improvisação e Espetacularidade, um projeto de extensão da UNESPAR/FAP -
Faculdade de Artes do Paraná. O projeto investiga as possibilidades espetaculares das
dinâmicas improvisacionais.

As atividades criativas que são desenvolvidas no grupo são condicionadas por


diversos disparadores1 cênicos que afetam os atores enquanto constroem a cena, como
a iluminação ou a sonoplastia que são criadas em tempo real, portanto também
improvisadas, ou regras de ação de jogos indicadas pela direção para delimitar a
temática do dia. Dada a quantidade de disparadores utilizados e a simultaneidade com
que se apresentam aos atores na construção da cena, foram surgindo questionamentos
dentro do grupo, sobre como poderiam ser respondidos ou quais dos disparadores

1
Disparadores são dispositivos que usamos para atualizar a ação que se desenvolve.
deveríamos selecionar para nos relacionar e deixar afetar. Foi neste contexto que os
temas percepção e escuta passaram a fazer parte das discussões do grupo, que
compreendia a necessidade de reconhecer como estes princípios operam dentro do
nosso processo criativo que se desenvolve já numa perspectiva espetacular.

A escuta, dentro do processo do TOSCO, refere-se a um estado especial de


atenção onde o ator/improvisador deve estar ciente de todas as dinâmicas propostas
para o espetáculo e dos disparadores que podem aparecer durante a construção da
cena, ou seja, é um estado anterior à ação, mas que deve permanecer enquanto durar o
processo. A escuta não deve atribuir valor ao observado apenas recolher as imagens.

Já a noção de percepção, entendida como um processo para a construção de


sentido, demanda escolhas, o que, a princípio, a torna um processo consciente. Nosso
cérebro trabalha sempre fazendo escolhas sobre a prioridade que damos a tudo o que
nos ocorre, às imagens que constroem o ambiente. Nos processos do TOSCO, as cenas
são criadas pela percepção das dinâmicas que vão sendo individualmente propostas
pelos atores/improvisadores, na força destas proposições em sua capacidade de
agregar as escolhas, determina uma possibilidade narrativa para cena.

O que nos move e o que às vezes nos imobiliza

Nossas práticas espetaculares colocam em movimento em primeiro lugar, nossa


disponibilidade física, pois mesmo nossos aquecimentos acabam tendo um caráter
criativo e buscam o desenvolvimento de algum tipo de comunidade.

O grupo se utiliza de diversas dinâmicas, práticas e conceitos que possam


colaborar para o processo improvisacional. Essas dinâmicas são atualizadas sempre
que sua relevância como disparador criativo para o grupo deixa de ser uma
experiência, e torna-se um dispositivo automático. A improvisação só pode ser
desenvolvida num contexto em que o disparador seja mais que um estímulo, pois “Ao
sujeito do estímulo, da vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agita,
tudo o choca, mas nada lhe acontece.” (Bondía, 2002). Considerando o caráter
espetacular de nossas pretensões, só a mobilização oportunizada pela experiência pode
criar a conexão com o público. E esse é um dos aspectos que às vezes nos imobiliza.

Alguns dos exercícios que utilizamos conseguem se manter vivos por bastante
tempo, principalmente os que tem uma estrutura espacial mais bem delimitada, como
por exemplo o QUAD, que é baseada na peça televisiva homônima de Samuel Beckett
(1981)2, este exercício foi trazido para nos ajudar no sentido de desenvolver uma
melhor noção do coletivo no espaço, passou a fazer parte de nossos aquecimentos e de
disparador inicial de alguns espetáculos. Neste exercício, depois de vencida a fase de
apropriação de sua topologia, passamos a ter uma estrutura muito rica em
possibilidades de criação e conexão, vários jogos rítmicos passaram a acontecer na
relação entre a sonoplastia e as percepções individuais, pois

2
Vídeo disponível em: http://palcoprincipal.sapo.pt/bandasMain/beckett/video/LPJBIvv13Bc
[...] se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o
mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência
é para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. (Bondía, 2002).

Porém algumas vezes nos imobilizamos diante da cristalização da forma,


ficamos todos mobilizados pelo desejo de fazer mais, de ser mais criativos e acabamos
“sujeitos do estímulo” e não da experiência.

Há quase um ano o TOSCO vem estudando também alguns princípios de View


Points, como a contaminação3, que em particular auxilia a criar um estado de
percepção conscienteem que os percepcionam o colega de cena e o jogo que este já
está propondo, mas também improvisadores não apenas percepcionam e jogam com os
disparadores. Esse “estado coletivo”, almejado pelo grupo para a construção cênica, é
muitas vezes razão de imobilidade, pois às vezes se constitui de modo muito frágil, e
as individualidades acabam por se impor àquilo que se queria coletivo.

Em 2013, trabalhando ainda com um dispositivo novo, os Avatares, que


deveria ajudar na estruturação dos “proto-personagens”. Para este fim criamos cartas
inspiradas nos baralhos de tarô, que também nos auxiliaram a conformar, junto com
elementos básicos dos arquétipos junguianos, uma tríade inspiradora: característica
geral, força e fraqueza. Estes dispositivos foram desenvolvidos e discutidos por vários
encontros, para que a caracterização não fosse totalmente aleatória. Os avatares vieram
para nos ajudar na construção dos conflitos para as fábulas, principalmente quando a
palavra ganha relevo. O trato com a palavra, talvez seja nossa maior causa de
imobilidade.

Como o processo do TOSCO busca não se cristalizar, esta instabilidade acaba


gerando diversas crises no grupo, já que cada um trás uma percepção particular do
andamento da construção cênica, e ainda nos surpreendemos quando estas percepções
diferem de modo mais expressivo. Dentro das discussões do grupo, vários pontos são
levantados e as vezes questões que já haviam sido consideradas superadas retornam,
pois o corpo do grupo está em constante mudança mas isso felizmente, não representa
necessariamente um retrocesso. Percebe-se que é na verdade uma reafirmação do que
estamos de fato produzindo artisticamente.

Entretanto, não pretendo levantar aqui todas as questões do grupo. Desejo


apenas considerando os últimos seis meses de trabalho, refletir sobre um dos pontos
que recebeu vários questionamentos e mobilizou o meu interesse, a percepção. Este
estado de atenção em que o improvisador se põe em cena, ciente das dinâmicas que
tem à disposição para a criação e está disponível para reagir os disparadores que
podem surgir a qualquer tempo, atualizando suas percepções, além de saber que está
(ou pelo menos deve estar) em contato com outros improvisadores e que precisam,
juntos, criar uma linguagem no momento presente.

3
Para Bogart, “resposta Cinestésica”.
Esse estado de atenção ativa, que definimos dentro do grupo como percepção,
não tem sido alcançado plenamente. Uma das razões apontadas em nossas discussões é
a de não compreensão do que realmente constitui esse estado, no qual ficamos
especialmente alertas e paradoxalmente tranquilos. Talvez seja, ainda, algo acima da
nossa capacidade atual. Porém prefiro considerar que o exercício continuado nos
permita avançar e vencer estas dificuldades.

Pra onde estamos indo

Entretanto, em vez de nos atrapalhar, a imobilidade que gerou crise, nos serve
como propulsora para que as discussões ganhem consistência e crie-se o estado de
escuta almejado. Lidamos interminavelmente com nossas fragilidades perante todo o
processo, sendo criticados e apontados quando essas fragilidades atrapalham o
andamento ou quando nos fazem esquecer da percepção, automatizando a atenção,
para uma reação rápida e sem base numa real afecção.

Com o artigo de Tatiana Motta Lima (2012) no qual questiona a escuta, por
meio de exemplos que ela presenciou, começamos a nos dar conta da cristalização de
alguns conceitos, nos vimos espelhados em seus alunos. Mas assim como ela,
entendemos que as sutilezas que envolvem a percepção não encontram soluções claras,
apenas geram novas reflexões sobre o modo de operar e de pensar a escuta, mas não
nos trás uma resposta definitiva.

Seguindo essa linha, quero refletir possíveis estratégias para suprir a


necessidade de encontrar, dentro da construção cênica através do estado de escuta, um
coletivo. Um coletivo que leve em consideração a definição de Bogart (2005) sobre
escuta, que é: “... ao invés de agir somente por impulsos e desejos próprios, o ator é
estimulado a compreender sua individualidade em relação com o ambiente.” (Bogart
apud Meyer, 2005) O coletivo será diferente a cada cena construída, entretanto sempre
estará pautado nesse estado de escuta ‘ambiental’ como ponto de partida da
composição.

Após diversas leituras e reflexões para tentar entender como opera a percepção
para o improvisador e como se pode alcançar uma construçaão coletiva através dela. A
imagem do Cubo de Necker, (NECKER, Louis Albert 1832) 4 é uma metáfora visual
que pode melhor traduzir o que tentamos materializar através da percepção no grupo.

O desenho do cubo, só é visto pelo cérebro quando se olham os 8 círculos. Na


metáfora do cubo, cada círculo representa um improvisador, ou seja, para que o
espectador enxergue o cubo, neste caso a cena. É necessário que os atores estejam,
interligados através das linhas dentro dos círculos, criando a partir desta conexão,

4
Trata-se de uma ilusão ótica representada por oito círculos pretos posicionados no que seriam os vértices de
um cubo. Cada círculo possui um vértice, em branco, no centro composto por três linhas. A ilusão se dá pelo
cérebro ao ler a imagem como um cubo branco em um fundo branco, com apenas as informações dos círculos.
Imagem disponível em http://www.chasqueweb.ufrgs.br/~slomp/gestalt/imagens/9d-necker55.gif
proporcionada pela percepção a possibilidade do cubo como uma narrativa para quem
assiste a cena.

Esta é só uma possibilidade para explicar a noção de percepção que o TOSCO


questiona e tenta alcançar. Portanto, dentro da metáfora do cubo, as linhas são
formadas por nossa disponibilidade para o jogo, nossa sensibilidade e atenção para o
ambiente que se conforma com a fisicalidade do espaço, os outros improvisadores e
nossos disparadores.

É nas relações possíveis a partir daí que as cenas se constroem, que posição o
círculo, que seria o improvisador, ocupa; quais linhas está mostrando; como ele vê os
demais círculos e as demais linhas; e como todos juntos constroem a possibilidade de
visualizar uma imagem maior, ou seja, a cena, para o espectador.

Uma das frases que mais motivou a pesquisa e me ajudou a manter o foco foi
de LIMA(2012) “O mais importante aqui é podermos pensar sobre o que nomeamos e
praticamos como o ‘estar aqui e agora’”.As definições de percepção e escuta propostas
aqui são suficientes, neste momento, para responder aos questionamentos e crises que
tive ao pensar sobre a conceituação dessas duas palavras. Porém, como afirma Bondía
(2002) “a experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca.”, portanto
é necessário levar essas conceituações para a sala de encontros do grupo e experenciá-
las, com todos juntos, e descobrir se fazem sentido no coletivo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIMA, Tatiana Motta. A Noção de Escuta: Afetos, Exemplos e Reflexões. Revista do


LUME. Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais – UNICAMP, 2012.

BONDÍA, Jorge Larrosa. A experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira de


Educação, 2002.

FABIÃO, Eleonora. Corpo Cênico, Estado Cênico. Revista Contrapontos, 2010.

NUNES, Sandra Meyer. Escuta extraordinária: uma proposição do método


Viewpoints.

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