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"Hidrelétricas formam um caso-limite.

Em sua monumentalidade absurda, procuram


transformar a engenharia numa categoria do Sublime. Isto ocorre, claro, pela escala
fascinante de suas conquistas, mas antes de tudo pelo assalto a uma vítima sacrificial,
pois hidrelétricas são quase sempre o cadáver de um acidente natural portentoso, de
uma cascata ou de um conjunto fluvial, que substituem, racionalizando-os e injetando
neles uma única finalidade: gerar milhões de quilowatts/hora, iluminar uma cidade do
tamanho de etc. É esta antiga maravilha que as hidrelétricas de grande porte
sequestram, como um cidadão abduzido por uma nave espacial (cujo relato ninguém
acredita).

Além disso, transformam a ideia da água e todos os seus demônios, toda a potência dos
seus naufrágios e afogamentos - o madeirame das caravelas rompido pela água salobra,
a craca feroz devorando o casco, a estranha luz azul nos mastros antes da tempestade,
as tripulações perdidas em ilhotas do Pacífico, a extinção virótica das populações
nativas, as miríades de línguas esquecidas para sempre, os pulmões cheios de água, a
tapeçaria de sal e de espuma, a ossada branca sob a corrente da âncora - numa utilidade
ao nosso dispor e serviço: a energia que chega às nossas casas. O imenso lago, novo e
falso, que circunda as barragens é a imagem perfeita dessa operação em que todos os
conflitos são apaziguados, reduzidos a girar turbinas e acender lâmpadas.

Hidrelétricas unificam numa única eclusa, num único motor, inúmeras possibilidades,
físicas e simbólicas, do mundo natural, produzindo inevitavelmente um excesso de
energia nessa canalização forçada. A energia de uma usina não é gerada pelas águas ao
mover as turbinas imensas, sendo antes o resultado natural e inevitável da restrição
simbólica, feita a ferro e fogo, por séculos e séculos, de tantas possibilidades e
metáforas - da transformação de uma força absolutamente ambígua (a água) no
combustível desencantado da engrenagem de um motor. É este radical
empobrecimento poético daquilo que pode estar aprisionado na água que produz
efetivamente a eletricidade.

Muito da força da tecnologia, pensada em sua generalidade, vem desta conversão de


uma ambivalência ancestral em uma força única. É isto que faz o avião voar, a roda do
carro girar, a lâmpada acender - o assassinato do possível. A tecnologia não é falsa
maravilha mas a mais violenta delas, já que cala todas as demais. Pois quem pode
garantir que o borrifamento gracioso e a dispersão contínua da água, como uma
gigantesca fonte barroca, não seriam capazes, numa outra evolução tecnológica (feita a
partir do pó e não do fogo, da lama e não da roda, do vinho e não do pergaminho, do
grito e não da fala), de gerar mais energia do que hidrelétricas? Ou que ao invés de
utilizar aviões pudéssemos ser catapultados em colchões de ar até o outro lado do
oceano, abraçados a travesseiros de penas de ganso que voassem ainda? Não haverá em
nosso grito uma enorme fonte de energia desperdiçada, e será que o mecanismo de
nossa pálpebra não dispensaria combustíveis fósseis? E se cuspíssemos para cima? E se
não fizéssemos nada? E se acendêssemos lâmpadas com bocejos?"

(Nuno Ramos em Ó)

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