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Além disso, transformam a ideia da água e todos os seus demônios, toda a potência dos
seus naufrágios e afogamentos - o madeirame das caravelas rompido pela água salobra,
a craca feroz devorando o casco, a estranha luz azul nos mastros antes da tempestade,
as tripulações perdidas em ilhotas do Pacífico, a extinção virótica das populações
nativas, as miríades de línguas esquecidas para sempre, os pulmões cheios de água, a
tapeçaria de sal e de espuma, a ossada branca sob a corrente da âncora - numa utilidade
ao nosso dispor e serviço: a energia que chega às nossas casas. O imenso lago, novo e
falso, que circunda as barragens é a imagem perfeita dessa operação em que todos os
conflitos são apaziguados, reduzidos a girar turbinas e acender lâmpadas.
Hidrelétricas unificam numa única eclusa, num único motor, inúmeras possibilidades,
físicas e simbólicas, do mundo natural, produzindo inevitavelmente um excesso de
energia nessa canalização forçada. A energia de uma usina não é gerada pelas águas ao
mover as turbinas imensas, sendo antes o resultado natural e inevitável da restrição
simbólica, feita a ferro e fogo, por séculos e séculos, de tantas possibilidades e
metáforas - da transformação de uma força absolutamente ambígua (a água) no
combustível desencantado da engrenagem de um motor. É este radical
empobrecimento poético daquilo que pode estar aprisionado na água que produz
efetivamente a eletricidade.
(Nuno Ramos em Ó)