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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS


MESTRADO EM ARTES CÊNICAS

AMANDA DE SAMPAIO ALVES DUARTE

BREVE CONSIDERAÇÃO TEÓRICA SOBRE AS


APROXIMAÇÕES ENTRE O DRAMA E O PROCESSO
COLABORATIVO

Salvador
Outubro/2016
BREVE CONSIDERAÇÃO TEÓRICA SOBRE AS APROXIMAÇÕES ENTRE O
DRAMA E O PROCESSO COLABORATIVO

Resumo:

Considerando que a pedagogia do teatro e a criação teatral em grupos profissionais são duas
aplicações de uma mesma arte, o seguinte artigo compara os mais relevantes princípios do
Drama – metodologia do ensino do teatro de origem inglesa – e do processo colaborativo.
Utilizando-nos de alguns dos principais autores sobre os temas – Antonio Araújo, Beatriz
Cabral, Rafael Ary, Flávio Desgranges -, apresentamos a organização interna de ambos os
métodos estudados para estabelecer aproximações entre as duas instâncias, na tentativa de
compreender como os dois processos criativos se relacionam entre si e com a linguagem
teatral.

Palavras-chaves: Drama. Processo colaborativo. Pedagogia do teatro. Criação teatral.

A organização metodológica do Drama

O drama1, metodologia de ensino do teatro de tradição inglesa, trazido para o Brasil


por meio da pesquisa desenvolvida por Beatriz Cabral, difunde-se nacional e mundialmente
após a segunda guerra mundial, quando os primeiros livros sobre o tema são lançados (ainda
na língua inglesa). Criado sob uma perspectiva separatista entre o que é o drama in education2
e o que é o theatre3, constitui-se, resumidamente, de “uma atividade criativa em grupo, na
qual os participantes se comportam como se estivessem em outra situação ou lugar, sendo eles
próprios ou outras pessoas. ” (CABRAL, 2012, p 11)

Apesar de seu longo trajeto de pesquisas, estudos e aplicações, há “muitas e diferentes


compreensões de Drama, tanto no que se refere aos seus objetivos, quanto aos seus
procedimentos. ” (DESGRANGES, 2006, p 122-123) Por seu caráter coletivo, que busca a
atuação direta dos alunos na criação e na exploração de uma narrativa teatral, o método não se
fecha em uma prática rígida a ser aplicada indiscriminadamente em todos os grupos. Pelo

1
Utilizamos o destaque na palavra para diferenciar o process drama, aqui tratado, da escrita dramatúrgica. Nas
citações selecionadas, mantivemos o modelo de destaque dado pelo próprio autor.
2
Aplicação pedagógica do teatro, dentro das escolas, com crianças.
3
Aplicação profissional do teatro, dentro das casas e grupos especializados.
contrário, apresenta-se maleável para que o facilitador4, em cada situação, de maneira
específica, possa selecionar seus procedimentos e estímulos para inserir os alunos-criadores
na tensão dramática e no tema proposto.

Ainda assim, é possível pensar algumas características presentes em todas as


experiências que se enquadram nessa metodologia. A primeira e mais importante delas é a
preocupação com a criação coletiva, que seja centrada nos alunos e que possibilite uma
relação o mais horizontalizada possível entre facilitador e participantes. Flávio Desgranges,
em seu livro A Pedagogia do teatro: provocação e dialogismo (2006), nos explica que

O Drama propõe um processo coletivo de construção de uma narrativa dramática,


estimulando os participantes a conceberem teatralmente uma história. O Drama
constitui-se, assim, em uma experiência que solicita a adesão e a cooperação dos
diversos integrantes do grupo. Podemos compreendê-lo como uma forma de arte
coletiva, em que os participantes (coordenador e grupo) assumem as funções de
dramaturgos, diretores, atores, espectadores, etc. (DESGRANGES, 2006, p 125)

O desejado, nesse cenário, é que os alunos possam dispor de ambientes e estímulos


que o possibilitem criar uma narrativa e seus desdobramentos da maneira mais independente e
coletiva possível – contrapondo-se, dessa forma, a experiência (ainda muito vivenciada no
Brasil) de um professor de teatro que chega à turma com um texto dramático pronto, divide os
personagens e faz com que os alunos apenas executem a sua visão da peça. No drama, os
participantes, em conjunto com um facilitador que controla sua intervenção, são quem
comandam o desdobrar do processo. Essa perspectiva, além de modificar uma intervenção
costumeira de alguns arte-educadores, também questiona o lugar pré-estabelecido de
hierarquia entre aquele que ensina e aquele que aprende.

A parceria entre professor e aluno ou adulto e criança, em um processo dramático,


implica equivalência ou troca de status. O professor (ou estagiário) não está lá para
definir a cena e tomar decisões, mas para entrar no jogo proposto pelas crianças. O
objetivo de sua presença é sutilmente manter o jogo e o foco, fazendo perguntas,
quando necessárias. (CABRAL, 2012, p 23)

4
Na literatura sobre drama é possível encontrar diversos termos distintos para se referir ao professor de teatro
que aplica a técnica: coordenador, líder, professor-ator, entre outros. Aqui, acolho o termo facilitador por
entender que, nessa prática, o professor atua como alguém que facilita o contato entre os alunos e o contato
desses com a linguagem teatral. Nas citações escolhidas, mantive os termos defendidos por cada um dos
autores.
As intervenções do facilitador ficam, dessa forma, restritas a coordenação do processo,
a aplicação de atividades disparadoras do criar cenicamente, a manter o foco da investigação,
a mudar a trajetória quando perceber que o caminho trilhado pela narrativa irá se esgotar
rapidamente, a sempre estimular os alunos, ludicamente, a permanecerem na situação
dramática. Percebe-se, nessa breve e sucinta descrição, que mesmo tentando horizontalizar as
relações e propiciar uma criação de grupo – deixando os alunos encarregados, inclusive, dos
elementos visuais da cena -, sua intervenção ainda é muito forte, valiosa e necessária.

Retomando as principais características definidoras de uma criação por meio do


drama, três procedimentos se mostram fundamentais para que o grupo consiga adentrar na
situação dramática e ser capaz de manter sua tensão durante o período necessário – seja ele
horas, semanas ou meses: o processo, o pré-texto e os episódios.

Por processo entende-se o caminho percorrido pelo grupo durante a criação, e


relaciona-se diretamente com os objetivos estabelecidos para o percurso com a narrativa –
objetivos esses que podem ser definidos apenas pelo facilitador ou pelo facilitador junto aos
participantes. “O processo, em drama, pode ser definido como a negociação e a renegociação
dos elementos da forma dramática, quanto ao contexto e aos objetivos dos participantes
(O’Toole, 1992). ” (CABRAL, 2012, p 17) É, portanto, a parte mais importante do drama: o
espaço da criação, da negociação e recriação.

A ênfase no processo, tanto pelo professor quanto pelo diretor teatral, tem por
objetivo lembrar que em qualquer tipo de atividade dramática a preocupação com a
dimensão da aprendizagem, quer do contexto, circunstâncias ou valores focalizados,
quer da linguagem cênica devem estar presentes. Em ambos os casos, se o processo
se desenvolve de acordo com as regras do meio dramático, a experiência poderá ser
considerada pela perspectiva do teatro e/ou da educação (formação do ator e/ou do
indivíduo). (CABRAL, 2012, p 17)

Mas esse processo só se dará plenamente, com envolvimento real e total dos alunos, se
o tema selecionado para tal for do interesse e do conhecimento deles. Somente com o
engajamento dos participantes será possível manter a tensão dramática e toda a aprendizagem
proveniente dela. Além de estar no domínio de interesse deles, o tema também precisa ser
convincente, tanto no tratamento dado a história, quanto nos personagens que ela suscita.

Entretanto, para que o contexto estabelecido para uma determinada experiência


permita esse cruzamento do real com o imaginário, e para que as crianças consigam
interagir como participantes destas duas realidades simultaneamente (a do contexto
real e a do contexto imaginário), é necessário que a situação ou circunstâncias
exploradas sejam convincentes, tanto no tratamento do tema/assunto, quanto na
ambientação e papéis selecionados. (CABRAL, 2012, p 13)

O pré-texto, por sua vez, é a forma como o tema é apresentado aos alunos. É o
primeiro contato dos alunos com o princípio da narrativa, ao mesmo tempo em que é o que
norteia todo o processo criativo e a ele oferece personagens, climas, tensões, acontecimentos.
Pretende envolver os alunos, emocional e intelectualmente, na história que será dramatizada –
e, para isso, há várias formas comumente usadas no drama: estímulo composto, contação de
história, professor-personagem, entre outros. Em outras palavras, o pré-texto é aquilo que “vai
ativar e dinamizar o contexto e as situações do Drama, sugerindo papéis e atitudes aos
participantes, além de apresentar os antecedentes da ação e propor o engajamento do grupo
nas tarefas e papéis necessários ao desenvolvimento da narrativa.” (DESGRANGES, 2006, p
126)

Os episódios, então, são os fragmentos da narrativa maior que vão sendo construídos
sequencialmente durante o processo. No dia a dia da sala de aula, novas atividades são
propostas pelo facilitador para que os alunos deem andamento na criação e façam com que a
narrativa caminhe. Assim,

os episódios convidam, desafiam o grupo a se relacionar com as novas situações


propostas, mantendo o interesse e o envolvimento dos participantes, além de dar
continuidade à construção da história e possibilitar a exploração teatral dos
elementos presentes na trama. Contudo, os episódios não se constituem apenas em
aglomerados de atividades ajuntadas acerca de uma situação, mas uma sequência em
que se percebe uma relação estreita entre uma atividade e outra, em que aspectos de
um episódio solicitam um desenvolvimento investigativo, que se efetivará no
episódio posterior. Um processo de Drama propõe, assim, a investigação teatral de
uma narrativa, investigação esta que vai se aprofundando de episódio em episódio.
(DESGRANGES, 2006, p 126-127)

Para além destas características básicas, é importante ressaltar algumas outras


preocupações relevantes do drama. A atenção especial que a metodologia aplica à
coletividade, ao grupo e as especificidades de cada turma acabam modificando também sua
estrutura. É recorrentemente solicitado pelos autores que o tema e as atividades propostas pelo
facilitador relacionem-se com a realidade acessível dos alunos, e, como essas realidades
podem ser semelhantes, mas dificilmente serão iguais, nenhuma aplicação do drama será igual
a outra.
Ainda refletindo sobre a coletividade, o drama só pode existir se todos os participantes
nele se engajarem e nele assumirem responsabilidade pela criação cênica. Como dito por
Desgranges: “Dessa maneira, o Drama, metaforicamente, pode ser comparado a um tear
coletivo, onde cada um assume a sua função no processo de enredamento das tramas que
tecem a narrativa. O condutor, como visto, vai gerindo este processo. ” (DESGRANGES,
2006, p 130)

Por fim, é relevante destacarmos, caso ainda não tenha sido esclarecido, que o texto
dramático, no process drama, é inteiramente construído pelos participantes. Raramente
chegam aos alunos textos completos ou scripts, e, quando chegam, passam por adaptações e
acabam servindo apenas como estímulo inicial para uma criação própria na qual os
participantes se reconheçam enquanto autores.

O modo de fazer do colaborativo

A partir da nova explosão do teatro de grupo no Brasil na década de 1990, o termo


processo colaborativo passou a ser costumeiramente utilizado nos meios criativos e
acadêmicos. Historicamente relacionado à criação coletiva praticada pelos grupos
contestadores das décadas de 1960 e 1970, o processo colaborativo não possui uma definição
conceitual concreta, mas podemos dizer que ele se

constitui num modo de criação em que cada um dos integrantes, a partir de suas
funções artísticas específicas, tem espaço propositivo garantido. Além disso, ela não
se estrutura sobre hierarquias rígidas, produzindo, ao final, uma obra cuja autoria é
dividida por todos. (ARAÚJO, 2008, apud CONCÍLIO, 2010, p 1)

Prática há muito já utilizada nos grupos profissionais, a criação colaborativa ganha


espaço quando seus praticantes passam a sentir a necessidade de teorizar sobre ela,
produzindo artigos, teses e livros. Assim, não é uma metodologia que nasce teórica e depois é
aplicada. No caminho oposto, ela nasce na prática, nos grupos, e depois tenta ser
sistematizada – o que dificulta sua conceituação, uma vez que cada grupo pratica colaborativo
a sua maneira, da forma que melhor lhes cabe. Também não parece ser um fenômeno isolado
da experiência teatral, pois “circunscreve diferentes movimentos artísticos e sucessão de
estilos, não encerrando uma única definição. Notamos que o procedimento não se limita
apenas a arte teatral.” (FISCHER, 2003, p 44)
Refletindo sobre os precedentes históricos do colaborativo na tentativa de
compreendê-lo e expor seus princípios, Rafael Ary nos conta que

De certa maneira, o processo colaborativo prioriza dois aspectos que eram


considerados opostos entre si – se contrapormos a criação coletiva à década do
encenador –, que eram:
• O estímulo à criação em coletivo, com liberdade de proposições entre os
envolvidos no trabalho, como era corrente na primeira experiência.
• E a determinação de funções artísticas específicas para cada envolvido, como era
primordial na década do encenador.
Desta forma, o processo colaborativo promove uma síntese das experiências
realizadas nas duas décadas anteriores ao seu surgimento. Quando fomenta dois
aspectos até então distintos e separados por considerações irreconciliáveis. (ARY,
2015, p 2)

Não é pertinente, também, pensarmos no colaborativo como um modelo rígido a ser


seguido por todo e qualquer grupo profissional que deseje uma criação em coletividade. Ele é
mais uma série de valores e crenças compartilhadas por vários grupos do que uma série de
atividades a serem realizadas. Antonio Araújo chega a questionar, em um artigo apresentado à
Revista Olhares, o uso do termo método para referir-se ao colaborativo. Para ele, seria mais
um modo de fazer – como “maneira de colocar em diálogo, de inter-relacionar os diferentes
elementos na construção da obra” (ARAÚJO, 2009, p 48) - do que uma série de diretrizes.

E esse modo de fazer, segundo o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, se oporia a um


“modo funcionalista de proceder”.

No entendimento do dramaturgo, um teatro funcionalista estaria preocupado apenas


com o resultado estético da obra. A cada artista é delegado apenas uma parte do
processo. O ator deve se preocupar apenas com sua personagem, sem se intrometer
em nenhuma outra função. Os artistas, ao trabalhar dessa maneira, são alienados de
uma visão do todo. Para realizar a visão de espetáculo de quem estiver comandando,
pode ser utilizado todo e qualquer meio para o fim desejado. Os artistas, em uma
produção dessa natureza, são uma peça do maquinário de alguém, seja esse alguém
o produtor, o diretor ou o dramaturgo. (ARY, 2015, p 3)

Pensando dessa forma, um resumo possível para essa diferenciação é pensar que as
pessoas envolvidas nos espetáculos que podem ser encaixados como “modo funcionalista de
proceder” preocupam-se apenas com a obra finalizada e em circulação, visando uma captação
de dinheiro maior ou um apelo midiático para a produção de determinado encenador. O
processo colaborativo, por outro lado, como o nome anuncia, prima pelo processo – que passa
a ser tão ou mais importante que a obra finalizada.

Com o novo apelo ao processo, aparece também a valorização da pesquisa continuada


de linguagem cênica e a relevância de cada artista, em sua especificidade, para a criação. Isto
porque, ainda que cada integrante do grupo tenha sua função cênica específica, todos são
estimulados e convocados a expressarem suas percepções sobre todos os demais aspectos,
assim como são parte fundamental na construção do material criativo para cada elemento –
pois nada é criado verticalmente; tudo nasce nas improvisações, amadurece nos debates e se
finda na decisão do coordenador da área.

Nessa corrente de princípios, o criar é visto não como um direito que é concedido a
alguém, mas como uma necessidade do artista – só assim poderá existir o teatro que se deseja.
Esse procedimento exigiria, então, artistas capazes de criar de forma abundante, ou que
estejam dispostos a aprender.

A criação em coletividade do colaborativo, diferentemente de como é entendida a


criação coletiva, não pressupõe uma ausência total de hierarquia, mas uma horizontalidade
nas funções e uma hierarquia dinâmica. Nesse procedimento, os momentos de coordenação e
de subordinação são flutuantes. Ou seja, essas hierarquias ficam “localizadas por algum
momento em um determinado polo de criação (dramaturgia, encenação, interpretação etc.)
para então, no momento seguinte, mover-se rumo a outro vértice artístico.” (ARAÚJO, 2009,
p 48)

Mas, para pensar colaboração, funções determinadas e hierarquias flutuantes, é preciso


dispor de um artista profundamente consciente do caráter global da obra e de todos os
aspectos que circundam a experiência teatral. Além disso, deve ser capaz de concentrar seu
impulso criativo em cada uma dessas funções, para poder contribuir de maneira direcionada,
no momento destinado a cada elemento, sem perder de vista a sua própria criação enquanto
ator, dramaturgo, encenador, etc.

Uma vez que o processo é o protagonista da experiência, é natural que o tempo


necessário para se chegar a um resultado estético pertinente se alargue. O ir e vir das
negociações, as improvisações constantes em sala de ensaio, as experimentações sobre as
primeiras propostas visuais... toda essa crise é necessária para o colaborativo – mas exige o
preço do tempo. “E não há harmonia nesse tipo de processo, há fricção e esforço de
convergência formal, necessário para a consolidação de uma obra.” (ARY, 2015, p 4)
Para tanto, encontrar um tema aglutinador é essencial como fator motivador do
processo. Pois, sem eliminar as individualidades, um tema que impulsione os artistas
para o mergulho criativo – os torne comprometidos com o todo –, pode ser
considerado um tema com grande capacidade de mobilização. Sua riqueza e força
reside nas camadas de leitura que este possibilita ao coletivo criador, o que pode
resultar em uma obra complexa e instigante para o público. (ARY, 2015, p 5)

Na maioria dos casos, a dramaturgia também é criada coletivamente, sob coordenação


de um dramaturgo do próprio grupo ou de um dramaturgo convidado para um projeto
específico – ainda que haja um texto teatral prévio servindo como referencial. Em ambas as
situações, eles são chamados a adentrarem a sala de ensaios e acompanhar as improvisações,
transformando em textualidade o que está sendo pesquisado para a cena. Nasce, nesse
movimento, o que hoje é conhecido como dramaturgia em processo.

Aproximações entre sala de ensaio e sala de aula

Baseando-nos nas perspectivas teóricas aqui apresentadas, podemos enumerar pelo


menos quatro grandes aproximações entre o drama e o processo colaborativo:

1. Trabalho aprofundado sobre o coletivo e a criação em compartilhamento.

2. Valorização do processo sobre o produto.

3. Divisão determinada das funções criativas.

4. Dramaturgia autoral.

De fato, o trabalho com o coletivo não é novidade no teatro. Desde as origens


ritualísticas da linguagem teatral, ele não podia ser realizado sozinho. Sempre houve a
necessidade do outro – tanto o outro artista, que ajuda a pensar a cena, quanto o outro público.
Entretanto, do ponto de vista da criação, nem sempre todos os trabalhadores cênicos tiveram
espaço para colocar-se criticamente e ter uma participação ativa nas decisões poéticas.

Sem dúvidas o caráter coletivo é valorizado, tanto no ensino quanto no ambiente


profissional, por ser essa característica essencial da linguagem e por carregar consigo um
vasto valor pedagógico. No processo de criar junto se aprende a ceder, a pensar no benefício
da proposta geral, a ter argumentos para defender o que se acredita, a compartilhar, a decidir
em grupo. Rafael Ary reflete que
O impacto de um processo colaborativo na formação dos artistas envolvidos é
explicado pelo forte caráter pedagógico imbuído na prática, que está presente em
seus procedimentos criativos mais basais e pode ser observado no cotidiano de
diversos grupos pelo Brasil. O artista não cria um produto somente, como diria
Abreu, ele está em formação, como artista e como ser humano. (ARY, 2015, p 6)

Essa formação do artista e do humano também não pode deixar de ser tocada no
âmbito educacional do teatro. Aproveita-se que as crianças têm uma tendência natural pelo
agrupamento (como todo ser humano, na verdade, até que isso seja tolhido) e utiliza-se essa
característica na linguagem teatral para desenvolver um processo criativo que compartilhe
saberes.

Contudo, o conhecimento adquirido durante o envolvimento com o processo do drama


vai além da possibilidade de nomear aprendizagens em áreas previamente
determinadas – objetivos específicos (relacionados com o conhecimento de conceitos,
habilidades, conteúdos e formas artísticas) interagem com objetivos não específicos
(relacionados com o desenvolvimento de atitudes e valores), fazendo que a
experiência viva do fazer teatral, do agir e do observar concomitantes, transforme a
compreensão ou o entendimento dos participantes em nível estético e artístico.
(CABRAL, 2012, p 31-32)

E, uma vez que se valoriza o coletivo, o contato, a fricção e a troca de saberes, parece
natural que se valorize também o processo de criação sobre o produto final. O que está em
jogo, tanto no drama quanto no processo colaborativo, é que não há a possibilidade de trocar
sensações, percepções e críticas se não há o tempo de maturação necessário à experiência, se
o espetáculo precisa ficar pronto em um mês. Para criar uma apresentação dentro desses
parâmetros é necessário um tempo para que o grupo ganhe confiança entre os participantes,
para que se sintam à vontade com a criação, para que o tema reverbere neles, para que os
primeiros improvisos gerem resultados, para a chegada das primeiras propostas dos núcleos
criativos, para os primeiros debates sobre as propostas, para um novo processo de criação...

Esse tempo, que também não deve ser apressado ou o resultado final não será
satisfatório, precisa ser vivido. Mas ele só cabe dentro de uma perspectiva que veja no
processo sua razão de existir. Que entenda a pesquisa da narrativa e da linguagem como fonte
necessária de vida para um espetáculo (ou mesmo uma mostra parcial, se pensamos na
escola). Se há essa perspectiva de valorização da descoberta processual da linguagem própria
do grupo, o tempo dilatado pode deixar de ser um problema.

A divisão determinada das funções, deixando claro para todos quem será o (ou os)
responsável pela iluminação, pela cenografia, pelo figurino, pela interpretação, pela
dramaturgia, pela encenação, etc., permite, primeiro, que haja alguém constantemente
preocupado com esse aspecto e, depois, que a sua responsabilidade diante da criação grupal se
torne consciente – principalmente no caso do ensino com crianças.

Ao mesmo tempo, o ato de escolher alguém para ser responsável por um ou outro
elemento é um ato de confiança e um ato de solução de problemas. Quando essa pessoa é
selecionada delega-se a ela o poder de decidir qualquer impasse que diga respeito a sua área e
que não possa ser resolvido coletivamente, o que só acontece porque todo o grupo percebeu
que esta pessoa tem uma aptidão para lidar com aquele elemento. Delegar responsabilidades
ao outro e assumir responsabilidades para si também é um aprendizado constante.

Por fim, o fato de ambas as expressões teatrais preocuparem-se em desenvolverem


textos próprios durante seus processos evidencia um caráter autoral e representativo que
ambas mantêm. A decisão de compartilhar a criação carrega consigo a necessidade de que
esse grupo de pessoas se enxergue – individual e coletivamente – no resultado final do
trabalho. Por isso, buscar uma expressão autoral e que represente a todos os participantes –
sem perder em esmero estético – é imprescindível para que o coletivo continue existindo
enquanto corpo minimamente coeso. Não seria possível manter um processo verdadeiramente
colaborativo se os alunos/atores envolvidos deixassem de se enxergar no produto, pois este
voltaria a ser a visão de um (ou poucos) e deixaria de ser a visão de todos.

Sendo assim, reforçamos que a pedagogia do teatro e o trabalho dentro de grupos


profissionais são duas áreas de uma mesma linguagem artística e, portanto, refletem as
mesmas necessidades expressivas, políticas e estéticas. Podemos pensar, então, a partir desse
ponto, uma reaproximação dos métodos e das instâncias, para tentarmos verificar em que
medidas o ensino pode enriquecer a produção profissional e vice-versa.

Referências

ARY, Rafael. Princípios para um processo colaborativo. Revista Cena, Porto Alegre, n 18, p
1-7, 2015.

ARAÚJO, Antonio. O processo colaborativo como modo de criação. Revista Olhares, São
Paulo, n 1, p 48-51, 2009.

CABRAL, Beatriz. Drama como método de ensino. São Paulo: Hucitec, 2012.
CONCÍLIO, Vicente. A pedagogia do teatro em processos colaborativos: o caso do Grupo
XIX de Teatro. In: VI Congresso de Pesquisa e Pós-graduação em artes cênicas, 6º, 2010.
Anais, ABRACE, 2010.

DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do teatro: provocação e dialogismo. São Paulo:


Hucitec, 2006.

FISCHER, Stela. Processo colaborativo: experiências de companhias teatrais brasileiras nos


anos 90. 2003. 231f. Dissertação (mestrado em artes) – Instituto de Artes, Universidade
Estadual de Campinas, Campinas, 2003.

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