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Passes sociais: a solidariedade não exclui os pobres de Lisboa e

Porto - Daniel Oliveira


Expresso - 13.9.2018

Na Área Metropolitana de Lisboa há quase cem títulos de transporte. Com o fim dos passes
sociais, multiplicaram-se passes de geometria variável que só compensam para
movimentos pendulares e que atingem preços exorbitantes. Em Sintra, o passe que dá para
CP, Scotturb, Carris e Metro chega aos 146 euros mensais. Para quem viva em Palmela, o
passe que inclui Fertagus, Carris, Metro e TST é mais do que 170 euros. Quando sabemos
que quem vive nas periferias mais distantes e usa os transportes públicos são as pessoas
com menos recursos, percebemos que estamos perante preços proibitivos. Ainda por cima,
em muitos casos, em troca de maus serviços.

O preço do Passe L123 é de 70 euros e a maioria dos passes intermodais está acima dos
50 euros. Segundo um inquérito divulgado pela Câmara Municipal de Lisboa (de onde vêm
estes dados que aqui deixo), a população residente na Área Metropolitana de Lisboa está
disponível a pagar 33 euros. A enorme diferença entre o que as famílias podem pagar e o
preço praticado tem este resultado: os passes que custam mais do que 70 euros deveriam
abranger 34% da população de Lisboa, apenas são usados por 1% e correspondem a 5%
das vendas. Os passes são demasiado caros. E são demasiado caros para quem vive mais
longe do centro, geralmente mais pobre, que mais precisaria deles e que menos os usa.

Há medidas urgentes para dar racionalidade ao sistema de transportes, como a criação de


verdadeira autoridade pública sobre todos os operadores, sejam públicos ou privados, que
os obrigue a cumprir horários e unifique os títulos de transporte. Mas isso não chega. É
preciso garantir uma drástica redução dos preços

Graças a um desenvolvimento urbano disfuncional, nunca os transportes públicos foram tão


necessários e nunca foram tão pouco usados. Em 1991, 74% da população da Área
Metropolitana de Lisboa vivia fora da cidade de Lisboa, hoje são 82%. Nessa altura, 47%
usavam transporte público e apenas 22% carro próprio. Hoje, 25% usam transporte público
e 57% carro próprio. É pior do que Boston, Estocolmo, Paris, Londres, Amesterdão ou
Barcelona.

Há medidas urgentes para dar racionalidade ao sistema de transportes, como a


criação de verdadeira autoridade pública sobre todos os operadores, sejam públicos
ou privados, que os obrigue a cumprir horários e unifique os títulos de transporte.
Mas isso não chega. É preciso garantir uma drástica redução dos preços. Isto implica
um reforço do financiamento público. O que não gastarmos nisso gastaremos nos
efeitos da utilização crescente do transporte individual. Em média, os custos
operacionais dos transportes públicos das áreas metropolitanas da Europa têm um
financiamento de 50% do Estado. Em Portugal é de 10%.

O investimento preparado pelo Governo e pelas câmaras de Lisboa e Porto é das melhores
notícias políticas do último ano. Conseguir baixar para 30 euros o Navegante (para Lisboa)
e para 40 euros o passe para a restante Área Metropolitana teria um efeito revolucionário na
mobilidade na região onde vive mais de um quarto da população portuguesa. Isto
significaria uma redução de 40 a 100 euros de quem vem de Sintra ou de Vila Franca de
Xira e de 50 a 120 euros de quem vem da margem sul do Tejo. No Porto, que conheço pior,
imagino um impacto semelhante.

Em defesa desta medida, a Câmara de Lisboa estima que poderíamos estar perante uma
poupança de 150 euros por agregado familiar na aquisição do passe e, caso decidissem
transferir do carro para o transporte púbico, muito acima dos 200 euros por mês. O que
corresponde a menos 175 mil toneladas de emissão CO2 por ano, menos seis mil viaturas
importadas por ano, menos 75 milhões de litros de combustível, num ganho económico e
social de 600 milhões de euros anuais em troca de um investimento de 60 a 65 milhões de
euros em Lisboa, 20 a 25 milhões no Porto e cinco milhões no resto do país. As contas
poderão ser otimistas, mas ninguém consegue negar que estamos perante um investimento
com enorme retorno, como prova a estratégia usada na generalidade das grandes cidades
europeias.

O apoio aos passes sociais de quem vive nas periferias de Lisboa e do Porto é um
apoio aos mais pobres. Gastam três horas por dia a chegar e ir para o trabalho e são
obrigados a despender uma parte muito substancial dos seus magros rendimentos
para se deslocarem todos os dias. O país tem para com eles o mesmo dever de
solidariedade que tem para com que quem vive em zonas de difícil acesso

Surgiu, a propósito disto, uma estranha polémica: se este investimento deveria ser pago
pelo Estado central ou exclusivamente pelas autarquias envolvidas. No caso, estamos a
falar apenas dos movimentos intermunicipais, já que os intramunicipais serão integralmente
pagos pelas câmaras. O ministro do Ambiente já disse que, a ser incluída no Orçamento do
Estado, tal medida abrangerá todo o país.

Confesso que me custa perceber a polémica. As autoestradas, linhas de comboio (tratarei


do estado da CP noutro texto) e todas as infraestruturas que combatem o isolamento são e
devem ser um investimento nacional ou pelo menos parcialmente coberto por ele. Podemos
discutir quais devem ser gratuitas, quais devem ser subsidiadas e quais devem ser pagas
pelos utilizadores. Mas não discutimos o dever de solidariedade nacional. Para esse dever
solidário de todos é indiferente a pouca população que é servida por eles e o que ela
contribui para o orçamento nacional. Seria estranho que os problemas específicos de quem
vive em grandes centros urbanos – que não são o isolamento mas a dificuldade de
mobilidade por causa da alta densidade – também não fossem vistos como problemas
nacionais. Que mais de metade da população, que vive nas duas áreas metropolitanas
fosse excluída da solidariedade como se fosse composta por privilegiados.

As pessoas que vão ser beneficiadas por esta medida não são as que ganham com a
centralidade das duas maiores cidades. Essas, ou vivem nos centros das cidades ou usam
carro. São os prejudicados, que pagam os custos da centralidade sem usufruir dos seus
benefícios. O apoio aos passes sociais de quem vive nas periferias de Lisboa e do Porto é
um apoio aos mais pobres. É nestas zonas, aliás, que vive grande parte da população mais
carenciada do país que não tem de pagar pela demagogia simplista que olha para lisboetas
e portuenses como uma casta de privilegiados. Para além de lidarem com o aumento
galopante do preço da habitação, gastam três horas por dia a chegar e ir para o trabalho e
são obrigados a usar uma parte muito substancial dos seus magros rendimentos para se
deslocarem todos os dias. O país tem para com eles o mesmo dever de solidariedade que
tem para com quem vive em zonas mais remotas de difícil acesso. Uns e outros pagam o
preço de dificuldades de mobilidade.

Acontece que o investimento não pode ser feito exclusivamente pelos municípios. Só em
Lisboa são 18 e isso e é impossível de operacionalizar a partilha de custos dos movimentos
intermunicipais. Se houvesse regiões administrativas a coisa fazia-se e as transferências
teriam em conta as especificardes de cada região. Na realidade, poderíamos distribuir o
dinheiro de forma justa e deixar que cada região definisse as suas prioridades.
Curiosamente, são os mesmos que se opuseram a esta reforma estrutural absolutamente
central os que mais depressa recorrem à demagogia regionalista que explora o
ressentimento de quem se sente abandonado. Com um problema: no interior ainda há
alguma elite local que fala em nome das populações, nas periferias pobres de Lisboa e do
Porto só há mesmo pobres sem capacidade para se fazerem ouvir à mesa do Orçamento.

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