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CAPÍTULO 1

EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO
PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL AO DIREITO
CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

We must think things not words.


ǻ•’ŸŽ›ȱŽ—Ž••ȱ
˜•–ŽœǼ

1.1 Introdução: por que devemos estudar o pragmatismo


jurídico?
A proposta do capítulo é formular um “princípio” jurídico do
pragmatismo que seja útil para a interpretação do Direito Constitucional
Œ˜—â–’Œ˜ǯȱ™›ŽœŽ—Š–˜œȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱŽœŽȱŠœȱ˜›’Ž—œȱꕘœàꌊœȱŠ·ȱ
sua possível incidência no Direito, assim como as críticas a ele. Não só as
Œ›Ç’ŒŠœǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱŠœȱ›Žœ™˜œŠœȱŠȱŽ•Šœǯȱ˜ȱꗊ•ȱ˜ȱŒŠ™Çž•˜ǰȱ™˜œž•Š–˜œȱ
alguns critérios para o que poderia ser esse “princípio”.
Antes de ingressar no tema, cabe uma metapergunta: qual é a impor-
tância de se estudar o pragmatismo jurídico? Tornando mais complexa a
primeira parte da questão, não seria mais interessante — para a sociedade
e para a comunidade jurídica — deixar o pragmatismo jurídico como ferra-
menta, inconfessada ou não autoconsciente, dos juízes?4 5 Estudá-lo poderia
œ’—’ęŒŠ›ǰȱ ™Ž•˜ȱ Š˜ȱ Šȱ ˜–ŠŠȱ Žȱ Œ˜—œŒ’¹—Œ’Šǰȱ ˜›—¤Ȭ•˜ȱ –Š’œȱ Œ˜—œ™ÇŒž˜ǯȱ
Será que realmente precisamos de juízes conscientemente pragmatistas?

4
A questão adquire particular importância em relação à atividade dos juízes, porque, em rela-
ção aos legisladores e aos administradores públicos, sempre se entendeu que devessem atuar
com os olhares próximos às consequências de suas ações.
5
“Não seria melhor, então, que nossos juízes fossem pragmatistas inconscientes? Não seria melhor,
não apenas ao reassegurar ao público que os magistrados estão atuando juridicamente da forma
como este entende que devam fazê-lo, ou seja, aplicando normas pré-existentes de um modo
‘objetivo’, mas, também, ao inocular os juízes contra uma possível embriaguez advinda da per-
cepção de poder?” (POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155, grifos no original).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
28 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Se a ideia for aumentar o controle de sua atuação, sim. Raciocínios


pragmáticos são, antes de tudo, uma incontornável realidade. O que cos-
tuma ocorrer, no Brasil e em diversos países de Ordenamento da linhagem
romano-germânica, é que o pragmatismo, no cotidiano jurídico, aparece às
escondidas. Por questão menos de subteorização,6 e mais de preconceito,
advindo da percepção, por parte dos operadores do Direito e da socie-
dade, de que o papel do juiz é o de “aplicar a lei”, e não o de manipular
resultados, argumentos relativos a consequências são mascarados dentro
de argumentos formais e normativos. É o cripto-consequencialismo,7 um
pragmatismo que não ousa dizer seu nome, mas que está bem vivo.
Considerando tal situação, estudá-lo não é só boa ideia, mas neces-
sidade. Duas razões militam em favor disso. A primeira é um dever de
transparência na esfera pública: como há uma ferramenta sendo utilizada,
é requisito republicano que se investigue seu modo de atuação. A segunda
é que, mercê de seu estudo, talvez se possa exercitar a autocontenção.
Tratar-se-ia, aqui, pelo lado dos juízes, de uma espécie de autocontenção
pela autodescoberta.8
Quanto à importância de se estudar o pragmatismo jurídico no
Brasil, diga-se que o tema está maduro. Não faltam referências, em discur-
sos de magistrados, à importância de se considerar as consequências das
decisões,9 nem artigos e textos acadêmicos, muitos dos quais citados neste
•’Ÿ›˜ǯȱ–ŠȱŠœȱ–Š’˜›Žœȱ™˜•¹–’ŒŠœȱȯȱ—˜ȱœŽ—’˜ȱ›ŽŠ•ǰȱ—¨˜ȱ—˜ȱꐞ›Š˜ȱȯȱ
que apimentou os círculos jurídicos em meados do ano de 2009 envolveu
dois Ministros do STF e um bate-boca cujo pano de fundo era a tomada

6
Recentemente, na doutrina brasileira, tem aparecido uma série de artigos e estudos mono-
›¤ęŒ˜œȱŠŒŽ›ŒŠȱ˜ȱŽ–Šȱ—Šȱ˜ž›’—Šȱ‹›Šœ’•Ž’›Šǰȱ—˜ȱšžŽȱœŽȱ™˜Ž›’ŠȱŒ‘Š–Š›ǰȱŠ•ŸŽ£ȱŒ˜–ȱŠ•ž–ȱ
exagero, de “virada pragmatista” da teoria jurídica. Entretanto, uma coisa são as ondas da
academia, outra, não de todo distante daquela, é verdade, é a aceitação consistente da ideia
por parte da jurisprudência. De toda forma, ainda se está muito distante da produção teórica
dos Estados Unidos, locus ™˜›ȱŽ¡ŒŽ•¹—Œ’Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱœŽ“Šȱꕘœàꌘȱ˜žȱ“ž›Ç’Œ˜ǯ
7
SOUZA NETO. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político: uma crítica conse-
quencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
8
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 155. Posner defende que um juiz exercitará com
mais comedimento seu poder discricionário quando possuir clareza de que o está fazendo, ao
invés de se sentir como mera correia de transmissão de decisões tomadas em outras instâncias
(como o Legislativo), sem maiores responsabilidades pelas consequências daí advindas. Em certa
medida, o “intérprete consciente de suas circunstâncias”, aquele que se autocritica e se autoco-
nhece, preconizado por Luís Roberto Barroso, é um operador do Direito que deverá possuir, tam-
bém, consciência e conhecimento de suas técnicas argumentativas e interpretativas, e não apenas
ŽȱœžŠȱ™˜œž›Šȱ’Ž˜•à’ŒŠȱŽȱŽȱœžŠœȱ›žœ›Š³äŽœȱǻǯȱž—Š–Ž—˜œȱŽà›’Œ˜œȱŽȱꕘœàꌘœȱ
do novo direito constitucional brasileiro. In: VIEIRA. Temas de direito constitucional, p. 6).
9
Exemplo disso são as diversas referências feitas por Nelson Jobim, quando Ministro do STF, à
importância das consequências. Em discurso de posse como presidente do TSE, mencionou o
seguinte: “Discutir-se-á o voto obrigatório. Não se vai discutir a partir da concepção acadêmica
de ser bom ou mau. Discutir-se-á, isto sim, de acordo com o que temos e o que podemos fazer.
Nada mais. É a conveniência da solução, porque o compromisso é com a consequência” (JOBIM.
Discurso de posse como presidente do Tribunal Superior Eleitoral. Revista Diálogo Jurídico,
grifos nossos).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
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de posição em relação às consequências das decisões judiciais.10 11 Até a


grande mídia já se apercebeu do fenômeno.12
Para além da oportunidade do tema, resta sublinhar sua conveniência
num país que, politicamente amadurecido, começa a arrumar tempo para
discutir alguns dos grandes assuntos da agenda internacional relativos à inter-
pretação da Constituição: ativismo,13 democracia,14 capacidade institucional.15

10
Segue resumo da discussão havida no dia 22 de abril de 2009 no plenário do STF. Destacamos,
em itálico, os trechos das falas dos Ministros mais afetos à nossa exposição. O Estado do Paraná
Š™›˜Ÿ˜žȱž–Šȱ•Ž’ǰȱŽ–ȱŗşşşǰȱšžŽȱ’—Œ•ž’žȱ˜œȱ—˜¤›’˜œȱ—˜ȱœ’œŽ–Šȱ™›ŽŸ’Ž—Œ’¤›’˜ȱ˜ęŒ’Š•ǯȱŠ•ȱ•Ž’ȱŸŽ’˜ȱŠȱ
ser declarada inconstitucional em 2006. Discutiam-se, no STF, os efeitos da decisão para os notá-
rios aposentados entre 1999 e 2006. Na mesma sessão da Suprema Corte, discutia-se, também, o
ponto exato para a cessação da produção de efeitos de outra lei, de 2002, igualmente já declarada
inconstitucional pelo STF, em 2005, que estendia o foro privilegiado a autoridades durante o perío-
do em que o processo estivesse em julgamento. No primeiro caso, o da aposentadoria dos notá-
rios, Joaquim Barbosa defendeu a plena retroatividade da declaração de inconstitucionalidade. O
Ministro alegou que seus colegas “deveriam se inteirar das consequências da decisão”, com ênfase em
ȃšžŽ–ȱœŽ›’Š–ȱ˜œȱ‹Ž—ŽęŒ’¤›’˜œȄȱǻ—˜ȱŒŠœ˜ǰȱ˜œȱ—˜¤›’˜œǼǯȱȃžȱŠŒ‘˜ȱž–ȱŠ‹œž›˜ȄǰȱŠę›–˜žǯȱ ¤ȱ—˜ȱŒŠœ˜ȱ
do foro privilegiado, Joaquim Barbosa não chegou a votar, mas alegou que haveria “consequências
graves” caso o Supremo votasse pela retroatividade, já que inúmeros julgamentos seriam anula-
dos. Foi aqui que Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa começaram a se acusar de julgar por classes.
Gilmar Mendes acusou o Ministro Joaquim Barbosa de dar parâmetro ideológico ao julgamento
˜œȱ—˜¤›’˜œǰȱšžŽǰȱŠę—Š•ǰȱ‘ŠŸ’Š–ȱŒ˜—›’‹žÇ˜ȱ™Š›Šȱ˜ȱœ’œŽ–Šȱ™›ŽŸ’Ž—Œ’¤›’˜ȱŒ˜–˜ȱ˜˜œȱ˜œȱŽ–Š’œȱ
servidores. “Eu sou atento às consequências das minhas decisões, só isso”, redarguiu Barbosa. Todas as
Š•Šœȱ˜›Š–ȱ˜‹’Šœȱ—˜ȱœÇ’˜ȱ˜ȱȱ—Šȱ’—Ž›—Žȱǻǀ‘Ĵ™DZȦȦ   ǯœǯ“žœǯ‹›ǁǼǯȱŒŽœœ˜ȱŽ–DZȱŖŘȱ–Š’˜ȱŘŖŖşǯ
11
Em março de 2012, outra polêmica, em tons pragmatistas, ocupou a ordem do dia no Supremo.
O STF, após detectar falha na sistemática legislativa de edição de Medidas Provisórias, declarou
inconstitucional a Medida Provisória que havia criado o Instituto Chico Mendes. Alertado,
pelo Advogado Geral da União, de que a consequência de tal decisão seria a invalidação de
mais de quinhentas outras Medidas Provisórias, o Supremo acabou voltando atrás.
12
Merval Pereira, colunista do jornal O Globo, em coluna do dia 24 de abril de 2009, intitulada
“Embate Político”, a propósito da referida discussão entre os dois Ministros do Supremo, ano-
tou o que segue (grifos nossos): “Mas o bate-boca entre os dois Ministros revelou também um
debate doutrinário latente, quando Gilmar Mendes acusou Joaquim Barbosa de fazer ‘popu-
lismo judicial’, argumentando que ‘esse negócio de classe não cola’. Ao que Joaquim Barbosa
retrucou que levava em conta ‘as consequências’ de suas decisões. Gilmar Mendes estava se
referindo aos ataques que tem sofrido devido às últimas decisões do Supremo, como a de que
˜ȱŠŒžœŠ˜ȱœàȱꌊ›¤ȱ™›Žœ˜ȱŽ™˜’œȱŽȱŠŒŠ‹Š›Ž–ȱ˜˜œȱ˜œȱ›ŽŒž›œ˜œȱ•ŽŠ’œǯȱMas revelava que também
no Supremo há um debate entre os ‘consequencialistas’, que interpretam a lei, atentos ao resultado da
decisão, contra os ‘formalistas’, que se atêm à letra da lei. Esse debate doutrinário é sério, e ocorre em
vários lugares do mundo” (Clipping Ȯȱ Ž•Ž³¨˜ȱ Žȱ ˜ÇŒ’Šœǯȱ ’œ™˜—ÇŸŽ•ȱ Ž–DZȱ ǀ‘Ĵ™DZȦȦŒ•’™™’—–™ǯ
™•Š—Ž“Š–Ž—˜ǯ˜Ÿǯ‹›ȦŒŠŠœ›˜œȦ—˜’Œ’ŠœȦŘŖŖşȦŚȦŘŚȦŽ–‹ŠŽȬ™˜•’’Œ˜ǁǯȱŒŽœœ˜ȱŽ–DZȱŖŘȱ–Š’˜ȱŘŖŖşǼǯ
13
Cf. BARROSO. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática. Atualidades Jurídicas
– Revista Eletrônica do Conselho Federal da OAB.
14
As relações entre a atuação do Poder Judiciário e o princípio democrático, na atuação cotidiana
e no exercício da jurisdição constitucional, vêm sendo tratadas em larga escala na produção
‹’‹•’˜›¤ęŒŠȱ˜œȱø•’–˜œȱŠ—˜œǯȱž–Šȱ•’œŠȱ—¨˜ȱŽ¡Šžœ’ŸŠǰȱŒǯDZȱȱȱet al. (Coord.).
Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da política no direito constitucional; MAUÉS
(Org.). Constituição e democracia; BINENBOJM. Uma teoria do direito administrativo: direitos fun-
damentais, democracia e constitucionalização; SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia
deliberativa: um estudo sobre o papel do direito na garantia das condições para a cooperação
na deliberação democrática. De nossa autoria, seja-nos concedido mencionar MENDONÇA.
Ulisses e o superego: novas críticas à legitimidade democrática do controle judicial de consti-
tucionalidade das leis. Revista de Direito do Estado. O tema da democracia — em especial o da
democracia deliberativa — será estudado no próximo capítulo do livro.
15
CYRINO. Direito constitucional regulatório: elementos para uma interpretação institucionalmente
adequada da Constituição econômica brasileira (a dissertação foi publicada pela editora Renovar

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30 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

É dentro desse contexto que se inicia, então, um debate em prol de


ž–ŠȱŠžŠ³¨˜ȱšžŽȱœŽȱšžŽ›ȱ–Š’œȱŒ˜—›˜•ŠŠǯȱŒŽ—Ž›Š–ȬœŽȱ˜œȱȃ›ŽĚŽ˜›ŽœȱŒ˜•˜-
ridos do pragmatismo”16 sobre a prática jurídica; pretende-se direcionar
tal luz provocativa até algumas zonas escuras do Direito Constitucional
Econômico, na esperança de que não haja cômodo subaproveitado nessa
“casa” que é o Ordenamento.

ŗǯŘȱ ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ—Šȱ’•˜œ˜ęŠDZȱž–ȱŒ˜—˜ȱŽȱ›¹œȱŒ’Š¨˜œǯȱ
Algumas questões clássicas
O termo “pragmatismo” é noção confusa.17 Não possui a carga
emotiva de palavras como “liberdade” ou “igualdade”, mas carrega suas
complicações. A maioria das pessoas, quando ouve falar no assunto, pensa
numa “atitude prática”, num posicionamento pedestre em relação aos
problemas da vida.18
E o pragmatismo não é isso, embora, sob certo aspecto, o pragmatismo
Š•ŸŽ£ȱœŽ“Šȱ™Š›Žȱ’œœ˜ǯȱ¨˜ȱ·ȱž–Šȱ’•˜œ˜ęŠȱ™›˜™›’Š–Ž—Žȱ’Šȱȯȱž–ȱŒ˜›™˜ȱ
˜ž›’—¤›’˜ȱȯǰȱ–Šœȱž–Šȱ˜›–ŠȱŽȱœŽȱŠ£Ž›ȱꕘœ˜ęŠǯ19
No início dos anos setenta do século XIX, na Universidade de
Cambridge, um grupo de estudantes reuniu-se no que um deles chamou
de “O Clube Metafísico” — uma piada, porque, naquela época e lugar, o

em 2010 com o mesmo título). ARGUELHES. Deuses pragmáticos, mortais formalistasDZȱŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ


consequencialista de decisões judiciais, especialmente item 4.1 - A ‘virada institucional’ no debate
sobre interpretação jurídica, f. 177-183.
16
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 184.
17
PERELMAN. Ética e direito, p. 6-7. Ainda, Ángel Manuel Faerna (Introducción a la teoría prag-
matista del conocimiento, p. xi): “De um tempo para cá, os termos ‘pragmatismo’ e ‘pragmatista’
Š™Š›ŽŒŽ–ȱŒ˜–ȱ›Ž•Š’ŸŠȱ›Žšž¹—Œ’Šȱ—Šȱ•’Ž›Šž›Šȱꕘœàꌊǰȱ™˜›·–ȱ·ȱ‹ŠœŠ—Žȱ™›˜Ÿ¤ŸŽ•ȱšžŽȱœŽžȱ
œ’—’ęŒŠ˜ǰȱ‘˜“Žǰȱ›Žœž•Žȱ’žœ˜ȱ™Š›Šȱ–ž’˜œȱ•Ž’˜›ŽœDZȱœ¨˜ȱŽœœŠœȱ’Ž’ŠœȱšžŽȱ–Š’œȱœžŽ›Ž–ȱ˜ȱ
que dizem”.
18
ȱ Šȱ’—›˜ž³¨˜ȱ¥ȱ˜‹›ŠȱšžŽȱ˜›Š—’£˜žǰȱ˜››’œȱ’Œ”œŽ’—ȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱŽ–ȱŽ›Š•ǰȱŠœȱšžŠ•’ŠŽœȱŠœœ˜-
ciadas ao “pragmatismo” no discurso comum ganham nossa entusiástica aprovação. Políticos e
experts eleitorais têm-no em alta conta, como “arte do possível”, associado a certa tendência aos
compromissos e aversão à ideologia. Quem adota perspectiva pragmática em política externa
vai-se imaginar negociando diferenças e chegando a resultados concretos, ao invés de se afer-
›Š—˜ȱŠȱ’–™Ž›Š’Ÿ˜œȱ–˜›Š’œȱ’—ĚŽ¡ÇŸŽ’œǯȱꛖŠ›ȱšžŽȱŠ•ž·–ȱ·ȱ™›Š–¤’Œ˜ȱœ’—’ęŒŠǰȱŽ–ȱ›Ž›Šǰȱ
dizer que se trata de político ou juiz “resolvedor de problemas”, “gente que faz”: ao invés de
se deter em supostas questiúnculas — formais, ideológicas, “burocráticas” —, o pragmático se
preocuparia, antes e acima de tudo, com o resultado [DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN
(Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 2].
19
Nas palavras de um de seus fundadores, “o método pragmático é, antes de tudo, um método
de resolver disputas metafísicas que, de outro modo, seriam intermináveis”. Mais adiante,
Šę›–ŠDZȱ ȃȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ —¨˜ȱ ŽŽ—Žȱ šžŠ’œšžŽ›ȱ ›Žœž•Š˜œȱ Ž–ȱ Žœ™ŽŒ’Š•ǯȱ •Žȱ ·ǰȱ Š™Ž—Šœǰȱ ž–ȱ
–·˜˜Ȅȱǽ ǯȱ‘Šȱ›Š–Š’œ–ȱŽŠ—œǯȱ
 ȱǻ›ǯǼǯȱPragmatism, Old & New: Selected
›’’—œǰȱ™ǯȱŘşŗǰȱŘşřǾǯ

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
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agnosticismo se ocupava de fazer terra arrasada da Metafísica.20 Entre seus


’—Ž›Š—Žœǰȱ‘Š›•ŽœȱŽ’›ŒŽǰȱꕑ˜ȱŽȱž–ȱŠ–˜œ˜ȱ–ŠŽ–¤’Œ˜ȱŽȱ
Š›ŸŠ›Dzȱ
’••’Š–ȱ Š–Žœǰȱ˜ȱžž›˜ȱ™œ’Œà•˜˜ȱšžŽȱŸ’›’ŠȱŠȱŽ¡™Š—’›ȱŽȱ˜›—Š›ȱ™Š•Š¤ŸŽ•ȱ
Šȱ’•˜œ˜ęŠȱšžŽȱœŽȱŽœŠŸŠȱ—ŠšžŽ•ŽȱŠ–‹’Ž—ŽDzȱŽȱ•’ŸŽ›ȱŽ—Ž••ȱ
˜•–Žœǰȱ
futuro juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos e um dos mais notáveis
pragmatistas jurídicos ŠŸŠ—ȱ•Šȱ•ŽĴ›Ž.
Foi numa dessas reuniões que Peirce apresentou um esboço de ideias
a serem publicadas, às quais aplicou a designação de “pragmatismo”.21
Como resultado daquelas anotações, dois artigos, hoje clássicos, vieram a
lume.22 Mas não foi por esses artigos, nem por Charles Peirce, que o pragma-
’œ–˜ȱœŽȱ˜›—˜žȱŒ˜—‘ŽŒ’˜DZȱ˜’ȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœȱšžŽ–ǰȱ–ž’˜ȱŽ–™˜ȱŽ™˜’œǰȱ
a partir de uma conferência na Universidade de Berkeley, na Califórnia,
popularizou e difundiu o termo, as ideias e o amigo.23
Popularizou, mas não respeitou integralmente a fonte. O pragma-
tismo de Peirce, um lógico, era mais modesto e árido do que a versão de
’••’Š–ȱ Š–Žœǯȱ›ŠŠŸŠȬœŽǰȱŽ–ȱŽœœ¹—Œ’ŠǰȱŽȱž–ŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱœ’—’ęŒŠ³¨˜; uma
™›˜™˜œŠȱ ’—ŸŽœ’Š’ŸŠȱ Šȱ ›Žœ™Ž’˜ȱ ˜ȱ šžŽȱ ™˜Ž–ȱ œ’—’ęŒŠ›ȱ ˜œȱ Œ˜—ŒŽ’˜œȱ
linguísticos em relação às coisas do mundo. Seus limites terminavam
–ž’Çœœ’–˜ȱŠ—ŽœȱŠœȱŽ›’ŸŠ³äŽœȱ™˜•Ç’ŒŠœȱŽȱœ˜Œ’Š’œȱŠȱšžŽȱŒ‘Ž˜žȱ’••’Š–ȱ
James, e, principalmente, John Dewey, terceiro autor da santíssima trindade
dos pragmatistas clássicos.

20
MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 201.
21
Peirce posteriormente viria a preferir o termo “pragmaticismo” para diferenciá-lo do pen-
œŠ–Ž—˜ȱ Žȱ ’••’Š–ȱ Š–Žœǯȱ ›Šȱ Š›ŽDZȱ Šȱ ™Š•ŠŸ›Šȱ ȃ™›Š–Š’œ–˜Ȅȱ “¤ȱ ŽœŠŸŠȱ Œ˜—œŠ›ŠŠǯȱ Žȱ
–˜˜ȱ’›â—’Œ˜ǰȱ‘Š›•ŽœȱŽ’›ŒŽȱŠę›–Šǰȱ—˜ȱŽ¡˜ȱŽ–ȱšžŽȱŠ™›ŽœŽ—˜žȱŠȱ™›˜™˜œŠȱ˜ȱ—˜Ÿ˜ȱŽ›–˜ǰȱ
šžŽȱ œžŠȱ ’Ž’Šȱ ˜›’’—Š•ǰȱ –Ž›Œ¹ȱ Šȱ Š–™•Šȱ ’žœ¨˜ǰȱ Žȱ Šȱ ™˜™ž•Š›’ŠŽȱ Šȱ ꕘœ˜ęŠȱ Žȱ ’••’Š–ȱ
James, precisava ser designada por uma nova palavra, daí “pragmaticismo”, “palavra feia o
œžęŒ’Ž—Žȱ™Š›Šȱ–Š—¹Ȭ•Šȱ•’Ÿ›ŽȱŽȱœŽšžŽœ›Š˜›ŽœȄȱǽ ǰȱ‘Š›•ŽœȱŠ—Ž›œǯȱ›Š–Š’œ–ȱŠ—ȱ
Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱŽ•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŗŜŜǾǯȱž›Šȱ
observação: a expressão “pragmatismo” é de origem kantiana. Na Introdução à Metafísica dos
Costumes, Kant distingue entre pragmático e prático. Este se refere às leis morais apriorísticas,
enquanto “pragmático” diz respeito às normas da arte e da técnica que são baseadas na ex-
periência. Charles Peirce fez, assim, opção terminológica consciente. Para essa explicação, não
consultamos Peirce, mas Dewey “The Development of American Pragmatism” [In: THAYER
(Org.). PragmatismDZȱ‘Žȱ•Šœœ’ŒŠ•ȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŘřȬŘŚǾǯ
22
PEIRCE. The Fixation of Belief. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱŽ•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ
p. 107-126; PEIRCE. How to Make our Ideas Clear. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
Ž•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŗŘŝȬŗśŖǯ
23
Cf. Menand (The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, cap. 9 - The Metaphysical
•ž‹ȱŽȱŒŠ™ǯȱŗřȱȬȱ›Š–Š’œ–œǼǯȱȱ·™˜ŒŠȱŽ–ȱšžŽȱ™›˜Ž›’žȱœžŠȱ™Š•Žœ›ŠǰȱŽ—šžŠ—˜ȱ’••’Š–ȱ Š–Žœȱ
era Professor de Harvard e uma celebridade acadêmica internacional, Peirce estava, quase
•’Ž›Š•–Ž—Žǰȱ—ŠȱœŠ›“ŽŠDZȱŽ–‹˜›Šȱꕑ˜ȱŽȱž–ȱ™›Žœ’’˜œ˜ȱ›˜Žœœ˜›ȱŽȱ
Š›ŸŠ›ǰȱ˜’ȱŽ–’’˜ȱŽȱ
seu cargo na Universidade Johns Hopkins por causa de um escândalo conjugal; também havia
œ’˜ȱŽ–’’˜ȱŽȱž–ŠȱŽ—’ŠŽȱŽŽ›Š•ȱŽȱ™Žœšž’œŠȱŒ’Ž—ÇꌊȱǻŠȱǯǯȱ˜ŠœŠ•ȱž›ŸŽ¢Ǽǯȱ’Ÿ’Šȱ
˜‹œŒž›Š–Ž—ŽǰȱŽ–ȱŗŞşŞǰȱŠŠȱŠȱŒ˜—Ž›¹—Œ’ŠȱŽȱ’••’Š–ȱ Š–Žœǰȱ—ŠȱŽ—œ’•Ÿ¦—’Šǰȱ—ž–ŠȱŽ—˜›–Žȱ
casa aos pedaços, depois de anos ao relento pelas ruas de Nova Iorque.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
32 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ž’›ŒŽȱ™›˜™ž—‘Šȱž–Šȱ’•˜œ˜ęŠȱŠȱ’¹—Œ’Šȱ›Ž˜›–ž•ŠŠȱ™Ž•˜ȱ™›Š–Š-
’œ–˜ǯȱȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŽȱž–ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽšž’ŸŠ•Ž›’Šȱ¥œȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŽȱž–Šȱ
Œ˜—›˜•ŠŠȱŽȱŽ•’‹Ž›ŠŠȱ—ŽŠ³¨˜ȱ˜žȱŠę›–Š³¨˜ȱŠšžŽ•ŽȱŽ›–˜ǯ24 Existiriam
três graus de clareza conceitual. O primeiro grau seria o da capacidade de
se utilizar a palavra adequada (por exemplo, o uso de “elétrico”, e não o de
“sonoro”, para descrever o fenômeno envolvido com colocar um dedo na
˜–ŠŠǼǯȱȱœŽž—˜ȱœŽ›’ŠȱŠȱŒŠ™ŠŒ’ŠŽȱŽȱ˜›—ŽŒŽ›ȱž–ŠȱŽę—’³¨˜ǰȱŸŽ›‹Š•ȱ
˜žȱŽœŒ›’ŠǯȱȱŽ›ŒŽ’›˜ȱ›Šžȱ›ŽšžŽ›Ž›’ŠȱŠȱŒ˜–™›ŽŽ—œ¨˜ȱŽȱœŽžȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ
™›Š–¤’Œ˜ǯȱȃŽȱŠ•ž·–ȱ·ȱŒŠ™Š£ȱŽȱŽę—’›ǰȱŽȱ–˜˜ȱŠŒž›Š˜ǰȱ˜˜œȱ˜œȱ
Ž—â–Ž—˜œȱŽ¡™Ž›’–Ž—Š’œȱŒ˜—ŒŽ‹ÇŸŽ’œȱšžŽȱŽŒ˜››Ž›’Š–ȱŠȱŠę›–Š’ŸŠȱ˜žȱ
Šȱ—ŽŠ³¨˜ȱŽȱž–ȱŒ˜—ŒŽ’˜ǰȱŽœœŽȱŠ•ž·–ȱ™˜œœž’›¤ȱž–ŠȱŒ˜–™•ŽŠȱŽę—’³¨˜ȱ
do conceito, e não há absolutamente mais nada nele”.25
œŠ—˜ȱ Ž¡Ž–™•˜ȱ ˜ȱ ™›à™›’˜ȱ Ž’›ŒŽǰȱ ˜ȱ šžŽȱ œ’—’ęŒŠ–˜œȱ šžŠ—˜ȱ
falamos que uma substância é dura é que ela será capaz de riscar vidros,
resistir a ser entortada etc. A soma de tais efeitos práticos é o conceito de
“dureza”. Não há uma essência abstrata: “dureza” é o conjunto de todos
os efeitos práticos das coisas duras.26
’••’Š–ȱ Š–ŽœȱŠ™›˜™›’˜žȬœŽ27 daquilo que chamou de “princípio de
Peirce, o princípio do pragmatismo” e, a partir de algo que era uma regra
–Ž˜˜•à’ŒŠȱ›Ž•Š’ŸŠȱŠ˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ˜œȱŒ˜—ŒŽ’˜œǰȱŽ¡™Š—’žȱŠȱ’Ž’Šȱ™Š›Šȱ
Šȱ’•˜œ˜ęŠȱŽȱ˜ȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱŽ–ȱŽ›Š•ǰȱ›Š—œ˜›–Š—˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ—¨˜ȱ
Š™Ž—Šœȱ—ž–ŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱœ’—’ęŒŠ³¨˜ǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱ—ž–Šȱteoria da verdade.
Em suas palavras:
ȱŽœŽȱŽę—’’Ÿ˜ȱŠŒŽ›ŒŠȱ˜ȱšžŽȱž–ŠȱŸŽ›ŠŽȱœ’—’ęŒŠȱ·ǰȱŽȱŠ˜ǰȱŠȱŒ˜—žŠȱ
šžŽȱŽ•Šȱ’Šȱ˜žȱ’—œ™’›ŠǯȱǽǯǯǯǾȱȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŽŽ’Ÿ˜ȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱ™›˜™˜œ’³¨˜ȱ
ꕘœàꌊȱ ™˜Žȱ œŽ–™›Žȱ œŽ›ȱ Žž£’˜ȱ Šȱ ™Š›’›ȱ Žȱ Š•ž–Šȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šȱ
particular, em nossa experiência prática futura, seja ela ativa ou passiva; a
questão está mais no fato de que a experiência deva ser particular do que
no fato de que ela deva ser ativa.28

24
ȱ  ǯȱȱŽę—’’˜—ȱ˜ȱ›Š–Š’œ–ǯȱIn: MENARD (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 56.
25
PEIRCE. Pragmatism and Pragmaticism. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
›’’—œǰȱ™ǯȱŗŜŘǯ
26
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xiv.
27
ȱ ȱ–Š’œȱŠ–˜œ˜ȱ‹’à›Š˜ȱŽȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœǰȱŠ•™‘ȱŠ›˜—ȱŽ››¢ǰȱŽ•Žȱ™›à™›’˜ȱ’–™˜›Š—Žȱę•àœ˜˜ȱ
norte-americano, acreditava que o que hoje chamamos de pragmatismo é, na verdade, o resul-
tado da incompreensão de James em relação à obra de Peirce. Em suas palavras, “é uma interes-
œŠ—ŽȱšžŽœ¨˜ȱŽœœŠȱŽȱœŠ‹Ž›ȱœŽȱ·ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱȁŽ›’ŸŠ›ȂȱŽȱž–ȱę•àœ˜˜ȱ’Ž’ŠœȱšžŽȱŽ•Žȱ—ž—ŒŠȱŽŸŽDzȱ˜žȱœŽȱ
·ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱšžŽȱŠ•ž·–ȱ™˜œœŠȱ›Š£˜ŠŸŽ•–Ž—ŽȱžŸ’Š›ȱŠȱ™ŠŽ›—’ŠŽȱŽȱž–ȱꕑ˜ȱšžŽǰȱŒ˜—˜›–Žȱ
ŸŠ’ȱꌊ—˜ȱ–Š’œȱŸŽ•‘˜ǰȱ˜›—ŠȬœŽȱ™›˜›Žœœ’ŸŠ–Ž—Žȱ–Š’œȱŽœœŽ–Ž•‘Š—ŽȱŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱŠȱœŽžȱ™Š’ǯȱ
Talvez seja correto, e o mais justo para todas as partes envolvidas, dizer que o movimento
moderno conhecido como pragmatismo é, em grande parte, o resultado da incompreensão de
James em relação a Peirce” (BERRY. The Thought and Character of William James, p. 281).
28
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 291.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
33

James ampliou o insight de Peirce até o domínio mais amplo do


pensamento em geral: o que era verdadeiro para o conhecimento cien-
ÇꌘȱŽŸŽ›’ŠȱœŽ›ȱŸŽ›ŠŽ’›˜ǰȱŠ–‹·–ǰȱ™Š›Šȱ˜ŠœȱŠœȱ—˜œœŠœȱŒ›Ž—³Šœǯȱȱ˜ȱ
que torna uma crença verdadeira? Não sua capacidade de ultrapassar
escrutínios lógicos, mas, simplesmente, a relevância das consequências
que decorrerem de sua admissão.29 30
–ȱ Š–Žœǰȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ–˜’Ÿ˜œȱ™Š›ŠȱœŽȱ‹žœŒŠ›ȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱꕘœàꌘœȱž—’ę-
cadores ou abstrações advindas de uma Grande Teoria.31 É desperdício de
energia. O que importa é (se) perguntar quais serão os efeitos práticos da
Š˜³¨˜ȱŽȱž–Šȱ˜žȱ˜ž›Šȱ™›˜™˜œ’³¨˜ȱꕘœàꌊǯȱȃ–ȱšžŽȱŠ˜œȱŽ•Šȱ›Žœž•Šǵȱ
Qual é seu valor líquido em termos de experiência prática? Que diferença,
em particular, adviria ao mundo, se ela fosse, respectivamente, verdadeira
ou falsa?”.32
O terceiro passo na história foi dado por John Dewey. É o passo mais
radical. Dewey foi um reformador social, um ativista político, e, antes de
tudo, um educador. Nada mais distante do pragmatismo como adesão ao
status quo — como seria a tônica de certa crítica ao movimento —, ou do
pragmatismo como mero “senso prático”, do que as ideias revolucionárias,
até utópicas, de John Dewey.33

29
ȱ –ȱ›’˜›ǰȱ’••’Š–ȱ Š–Žœȱ—¨˜ȱŽœ¤ȱ™›˜™˜—˜ȱŠ™Ž—ŠœǰȱŒ˜–˜ȱ˜‹œŽ›ŸŠȱŽ››Š—ȱžœœŽ•ǰȱž–ȱteste
da verdade; para James, isto é o próprio œ’—’ęŒŠ˜ȱda verdade (RUSSEL. The Philosophy of
’••’Š–ȱ Š–ŽœǯȱIn: GOODMAN. (Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, p. 199).
30
ȱ ȃ1ȱ ’–™›Žœœ’˜—Š—Žȱ ŸŽ›ȱ Œ˜–˜ȱ –ž’Šœȱ ’œ™žŠœȱ ꕘœàꌊœȱ ŽœŠ™Š›ŽŒŽ–ȱ —Šȱ ’—œ’—’ęŒ¦—Œ’Šȱ —˜ȱ
momento em que você as submete a esse teste simples de traçar uma consequência concreta.
Não pode haver diferença naquilo que não faz nenhuma diferença — nenhuma diferença
numa verdade abstrata que não se expresse numa diferença num fato concreto e, assim, numa
conduta relacionada com aquele fato, conduta imposta a alguém, de alguma forma, em algum
•žŠ›ǰȱ Ž–ȱ Š•ž–ȱ –˜–Ž—˜ǯȱ ˜˜ȱ ˜ȱ ™›˜™àœ’˜ȱ Šȱ ꕘœ˜ęŠȱ ŽŸ’Šȱ œŽ›ǰȱ Ž—¨˜ǰȱ ŽœŒ˜‹›’›ȱ šžŠ•ȱ
diferença faria, para você ou para mim, em certo momento de nossas vidas, se essa ou aquela
à›–ž•Šȱ Ž—·›’ŒŠȱ ˜œœŽȱ ŸŽ›ŠŽ’›ŠȄȱ ǽ ǯȱ ‘Šȱ ›Š–Š’œ–ȱ ŽŠ—œǯȱ In: HAACK (Org.).
Pragmatism, Old & NewDZȱŽ•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŘşřǾǯ
31
“Um pragmatista vira suas costas, de modo resoluto e de uma vez por todas, a uma série de
‘¤‹’˜œȱ’—ŸŽŽ›Š˜œȱŒŠ›˜œȱŠ˜œȱę•àœ˜˜œȱ™›˜ęœœ’˜—Š’œǯȱ•ŽȱŠ‹Š—˜—ŠȱŠȱŠ‹œ›Š³¨˜ȱŽȱŠȱ’—œžęŒ’¹—Œ’Šǰȱ
as soluções verbais, as péssimas razões a priori, os princípios imutáveis, os sistemas fechados,
as pretensas Origens, os supostos Absolutos. Ele vai em direção à concretude e à adequação;
Š˜œȱ Š˜œǰȱ ¥ȱ Š³¨˜ȱ Žȱ Š˜ȱ ™˜Ž›ǯȱ ǽǯǯǯǾȱ ǽȱ ™›Š–Š’œ–˜Ǿȱ ’—’ęŒŠȱ ˜ȱ Š›ȱ •’Ÿ›Žȱ Žȱ Šœȱ ™˜œœ’‹’•’ŠŽœȱ Šȱ
—Šž›Ž£ŠǰȱŒ˜—›Šȱ˜ȱ˜–ŠǰȱŠȱŠ›’ęŒ’Š•’ŠŽǰȱŽȱŠȱ™›ŽŽ—œ¨˜ȱŽȱꗊ•’ŠŽȱ—ŠȱŸŽ›ŠŽȄȱǽ ǯȱ
‘Šȱ›Š–Š’œ–ȱŽŠ—œǯȱIn: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱŽ•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŘşřǰȱ
grifos no original].
32
JAMES. Philosophical Conceptions and Practical Results. University Chronicle, p. 307, grifos no
original.
33
“Suas aspirações [do pragmatismo] não se detinham no esclarecimento dos conceitos; tal coisa
era importante apenas como meio para potencializar a ação. E é precisamente este confessado
ideal o ponto de partida de uma imagem distorcida do pragmatismo que, ainda hoje, circula
—˜ȱ–Ž›ŒŠ˜ȱ–Š’œȱœž™Ž›ęŒ’Š•ȱŠœȱ’Ž’Šœǰȱ—˜ȱšžŠ•ǰȱŒ˜–ȱ‹ŠœŠ—Žȱ›Žšž¹—Œ’ŠǰȱŠ£ȬœŽȱŒ˜–ȱšžŽȱ˜ȱ
™›Š–Š’œ–˜ȱ ™Š›Ž³Šȱ ž–ȱ ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱ Œ‘Š˜ȱ Žȱ ‹Š—Š•ǰȱ šžŽȱ •˜›’ęŒŠȱ ˜ȱ ›Ž—’–Ž—˜ȱ ™›¤’Œ˜ȱ Šœȱ
concepções humanas, entendido este em termos de interesse individual imediato, e despreza
as formas mais elevadas de realização intelectual, as quais se supõem desvinculadas de

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
34 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Trata-se de autor crítico do empirismo, “concebido como relacionado


a algo que foi, ou é, ‘dado’”, ao passo que a ideia de experiência, pedra de
toque do pragmatismo, “é, em sua forma vital, experimental, um esforço
para mudar o que foi dado; caracteriza-se pela projeção, por se mover
adiante em direção ao desconhecido; a conexão com o futuro é seu traço
essencial”.34
Dewey não acreditava na distinção clássica entre conhecimento e
ação. Conhecer e fazer integram o mesmo processo de adaptação: apren-
demos fazendo, fazemos aprendendo. O conhecimento não é uma cópia
mental de uma realidade externa a nós, “é um instrumento ou órgão da
ação bem-sucedida”.35 Sua teoria da verdade é pragmatismo vintage: ser
ŸŽ›ŠŽ’›˜ȱ·ȱŒ˜—’³¨˜ȱŽȱŽ›ȱœŽžȱžœ˜ȱŸŽ›’ęŒŠ˜ȱŽ–ȱŒ˜—’³äŽœȱŽ¡™Ž›’–Ž—-
tais.36ȱžŠ—˜ȱ¥ȱœžŠȱ™›˜™˜œŠȱ™Š›ŠȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ™›˜™›’Š–Ž—Žȱ’Šǰȱ•Ž’ŠȬœŽȱ˜ȱ
que dela fala Thamy Pogrebinschi:
1ȱ™›ŽŒ’œ˜ȱšžŽȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ˜•‘Žȱ™Š›ŠȱŠȱ™›¤’ŒŠȱŒ˜–˜ȱ˜ȱø—’Œ˜ȱ–Ž’˜ȱ™Ž•˜ȱšžŠ•ȱ
tudo o que for julgado como admirável e louvável possa ser mantido na
Ž¡’œ¹—Œ’ŠȱŽ¡™Ž›’–Ž—¤ŸŽ•ȱŽȱŒ˜—Œ›ŽŠǯȱǽǯǯǯǾȱȱꕘœ˜ęŠȱŽŸŽȱŠ–‹·–ȱŽ’¡Š›ȱ
de ignorar as consequências objetivas e as diferenças que elas acarretam
nas relações naturais e sociais; deve deixar de desprezar o valor da ação,
deixar de colocá-la em uma posição inferior às outras formas de processos
mentais, ao pensamento e ao sentimento.37

‘Š›•Žœȱ Ž’›ŒŽǰȱ ’••’Š–ȱ Š–Žœǰȱ ˜‘—ȱ Ž Ž¢ǯȱ™ŽœŠ›ȱ Šœȱ —Šž›Š’œȱ


diferenças entre o pensamento de cada um, há consenso de que, com eles,
˜›Š–ȱŽœŠ‹Ž•ŽŒ’ŠœȱŠœȱ‹ŠœŽœȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǯȱ
Pode-se dizer que, a partir do percurso teórico representado pela
tríade, o pragmatismo passou de um método lógico para uma teoria ética,
chegando a se tornar uma teoria social.
¡’œŽ–ȱŠ•ž–ŠœȱšžŽœäŽœȱŒ•¤œœ’ŒŠœȱŽ—Ÿ˜•ŸŽ—˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘȬ
œàꌘȱšžŽȱŽœŽȱŒŠ™Çž•˜ȱ—¨˜ȱ™˜Ž›’Šȱ™›ŽŽ—Ž›ȱŽœ˜Š›ǯȱŽȱ—¨˜ȱŽœ˜ŠǰȱŠ˜ȱ

qualquer demanda prática. Os que, alguma vez, aproximaram-se das obras de James, Peirce
˜žȱŽ Ž¢ǰȱ˜žǰȱ’—Œ•žœ’ŸŽǰȱŠ™Ž—ŠœȱŽȱœžŠœȱ‹’˜›ŠęŠœǰȱœŠ‹Ž–ȱŠ·ȱšžŽȱ™˜—˜ȱŠœȱŒ˜—˜Š³äŽœȱŽœŠȱ
descrição são imerecidas” (FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 2,
grifos no original).
34
ȱ ǯȱ‘ŽȱŽŽȱ˜›ȱŠȱŽŒ˜ŸŽ›¢ȱ˜ȱ‘’•˜œ˜™‘¢ǯȱIn: SIDORSKY (Ed.). John Dewey: the Essential
›’’—œǰȱ™ǯȱŝŗǯ
35
MENAND. An Introduction to Pragmatism. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. xxiv.
36
ȱ ǯȱ ›ž‘ȱ Š—ȱ ˜—œŽšžŽ—ŒŽœǯȱ In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New: Selected
›’’—œǰȱ™ǯȱřŚŜǯ
37
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 34-35. De próprio Dewey, acerca
do tema, consultar “The Need for a Recovery in Philosophy” (In: MENAND. Pragmatism: a
ŽŠŽ›ǰȱ™ǯȱŘŗşȬŘřŘǼDZȱȃȱꕘœ˜ęŠȱœŽȱ›ŽŒž™Ž›ŠȱšžŠ—˜ȱŽ•ŠȱŽ’¡ŠȱŽȱœŽ›ȱž–ȱ’—œ›ž–Ž—˜ȱ™Š›Šȱ•’Š›ȱ
Œ˜–ȱ ˜œȱ ™›˜‹•Ž–Šœȱ ˜œȱ ę•àœ˜˜œȱ Žȱ œŽȱ ›Š—œ˜›–Šȱ —ž–ȱ –·˜˜ǰȱ Œž•’ŸŠ˜ȱ ™˜›ȱ ę•àœ˜˜œǰȱ ™Š›Šȱ
lidar com os problemas dos homens”.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
35

–Ž—˜œȱŠ™›ŽœŽ—ŠDZȱŽ¡’œŽǰȱŽ–ȱŽ›–˜œȱ·Œ—’Œ˜œǰȱž–Šȱȃꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠȄǵ38
Quantos pragmatismos existem: um, treze, tantos quantos sejam os autores
que resolvam escrever sobre o tema?39 Em que medida o pragmatismo
·ȱŠ•˜ȱ’—˜ŸŠ˜›ȱ—Šȱ›Š’³¨˜ȱꕘœàꌊǰȱ˜žȱ›Ž™›ŽœŽ—Šȱ¨˜ȱœ˜–Ž—ŽǰȱŒ˜–˜ȱ
’••’Š–ȱ Š–ŽœȱšžŽ›’Šǰȱž–ȱ—˜Ÿ˜ȱ—˜–Žȱ™Š›ŠȱŸŽ•‘Šœȱ˜›–ŠœȱŽȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ǵ40

38
Ángel Faerna estabelece três critérios com base nos quais um pensamento pode ser tido como
Œ˜—œ’ž’—ŽȱŽȱž–ŠȱŽœŒ˜•ŠȱꕘœàꌊDZȱǻ’ǼȱœžŠœȱ˜—Žœȱ‘’œà›’ŒŠœǰȱǻ’’ǼȱœŽžȱŒ˜—Žø˜ȱ˜ž›’—¤›’˜ȱ
Žœ™ŽŒÇꌘȱ Žȱ ǻ’’’Ǽȱ œŽžȱ ™›˜•˜—Š–Ž—˜ȱ —˜ȱ ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱ ™˜œŽ›’˜›ǯȱ –ȱ ˜˜œȱ ŽœœŽœȱ ›Žšž’œ’˜œǰȱ ˜ȱ
™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ·ȱ™›˜‹•Ž–¤’Œ˜ǯȱžŠœȱ›ŠÇ£Žœȱ‘’œà›’ŒŠœȱœ¨˜ȱŒ˜—žœŠœǯȱȱŒ›Ž›ȱŽ–ȱ Š–Žœǰȱ
o pragmatismo possuiria antecedentes tão distintos quanto Sócrates, Aristóteles, Kant,
Stuart Mill, Francis Bacon, Spinoza, Locke, Hume. Outros autores clássicos poderiam ser (e
provavelmente foram) citados por pragmatistas antigos e modernos. Em segundo lugar, o
Œ˜—Žø˜ȱ ˜ž›’—¤›’˜ȱ Žœ™ŽŒÇꌘȱ —¨˜ȱ ·ȱ –Ž—˜œȱ Œ˜—žœ˜DZȱ Šœȱ Ž˜›’Šœȱ Žȱ Ž’›ŒŽǰȱ Š–Žœȱ Žȱ Ž Ž¢ȱ
ȯȱ ™Š›Šȱ ꌊ›ȱ Š™Ž—Šœȱ —ŽœœŽœȱ ›¹œȱ ȯȱ ’Ž›Ž–ȱ Ž–ȱ ’–™˜›Š—Žœȱ ™˜—˜œǯȱ ’—Š•–Ž—Žǰȱ Šȱ ‘Ž›Š—³Šȱ
˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ —¨˜ȱ œŽž’žȱ ˜œȱ –˜•Žœȱ ꕘœàꌘœȱ ›Š’Œ’˜—Š’œǯȱ •Šȱ ·ȱ œŽ—’Šȱ —¨˜ȱ Š™Ž—Šœȱ —Šȱ
’•˜œ˜ęŠǰȱ–ŠœǰȱŠ–‹·–ǰȱ—Šȱ•’Ž›Šž›Šǰȱ—˜ȱ’›Ž’˜ǰȱ—Šȱ™œ’Œ˜•˜’Šǰȱ—ŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱŽžŒŠ³¨˜ȱŽŒǯȱȱ
šžŽȱꌘžȱ—¨˜ȱ˜’ȱž–ȱŒ˜›™˜ȱŽà›’Œ˜ȱ–Š’œȱ˜žȱ–Ž—˜œȱŒ˜—œ’œŽ—ŽȱȯȱŒ˜–˜ǰȱ’Š–˜œǰȱŠȱȃꕘœ˜ęŠȱ
platônica” ou a epistemologia kantiana —; antes, foram algumas ideias seminais, que, ori-
ginadas dos clássicos, vieram a ser disseminadas no mundo contemporâneo, até o ponto
em que não se poderiam mais reconduzir a uma unidade original. Assim, conclui Faerna, o
pragmatismo não pode ser tido, ao menos em termos técnicos rigorosos, como uma “escola”
ou um corpus teórico. No entanto, e aqui uma observação interessante do autor espanhol, o
™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŽŸŽȱœŽ›ȱŸ’œ˜ȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱ•Ž—Žœȱ™›Š–¤’ŒŠœǰȱ’œ˜ȱ·ǰȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱœŽžœȱ
efeitos discerníveis no pensamento e na cultura posterior (FAERNA. Introducción a la teoría
pragmatista del conocimiento, p. 3-6). Em nossa opinião, seguindo Faerna, não existe uma
ȃꕘœ˜ęŠȱ ™›Š–Š’œŠȄȱ ȯȱ –Šœȱ Œ•Š›Š–Ž—Žȱ Ž¡’œŽȱ ž–Šȱ Š’žŽȱ ꕘœàꌊȱ ™›Š–¤’ŒŠ. Também
·ȱ ™˜œœÇŸŽ•ȱ Š•Š›ǰȱ —¨˜ȱ —ž–ȱ Œ¦—˜—Žȱ ™›Š–Š’œŠǰȱ –Šœǰȱ ŽŒ˜Š—˜ȱ ’ĴŽ—œŽ’—ǰȱ —ž–Šȱ família de
pensadores pragmatistas, compartilhando interesses, posturas, atitudes.
39
ȱ Š’œȱ ž–ȱ Šœœž—˜ȱ ’—ŽŸ’¤ŸŽ•ȱ —˜œȱ •’Ÿ›˜œȱ šžŽȱ ›ŠŠ–ȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘǯȱ ȱ ™›’–Ž’›˜ȱ
autor a defender a existência não de um, mas de vários pragmatismos — precisamente treze
—, foi Arthur Oncken Lovejoy, num artigo chamado “The Thirteen Pragmatisms” (1908).
Lá, ele sustentava que, deixando de lado algumas observações laterais dos diversos autores,
existiriam, à época, treze pragmatismos, todos logicamente independentes entre si. Ainda,
dizia que o pragmatismo era mais reconhecido por sua originalidade e inventividade do que
por sua capacidade de autoanálise, e que, por isso, às vezes se criticava um pragmatismo por
todos, ou por vários outros; far-se-ia mister, então, diferenciá-los um a um, o que ele ora se
propunha a fazer [LOVEJOY. The Thirteen Pragmatisms. In: GOODMAN (Ed.). Pragmatism:
Critical Concepts in Philosophy, p. 159-174]. Há, ainda, quem defenda que o pragmatismo
é um único pensamento — mas um único pensamento multifárioǯȱ ŽœœŽȱ œŽ—’˜ǰȱ ŠĴ‘Ž ȱ
Festenstein (Pragmatism & Political Theory: from Dewey to Rorty, p. 3 et seq.). O pragmatismo
ꕘœàꌘȱ ·ȱ ’ŸŽ›œ’ęŒŠ˜ȱ ŽœŽȱ œžŠœȱ ˜›’Ž—œDzȱ —Ž–ȱ ˜œȱ ™›˜™àœ’˜œȱ —Ž–ȱ ˜œȱ ˜—œȱ Žȱ œŽžœȱ
ž—Š˜›Žœȱ˜›Š–ȱ˜œȱ–Žœ–˜œǯȱŽ’›ŒŽȱšžŽ›’ŠǰȱŽœœŽ—Œ’Š•–Ž—Žǰȱ›Ž˜›–Š›ȱŠȱꕘœ˜ęŠȱŠȱ’¹—Œ’ŠDzȱ
seu tom admite passagens como: “A verdade É ASSIM, quer você ou eu ou qualquer outra
pessoa acredite nisso ou não”. Já James pretendia abrir espaço para as crenças religiosas numa
era que se mostrava pouco afeita a isso. Sua máxima pragmática é menos técnica e “lógica” (no
rigor da palavra). Finalmente, as aspirações de Dewey circulam em torno a uma epistemologia
reconstruída, na qual o conhecimento constitui ou altera seus objetos. Três preocupações
diferentes. Três pragmatismos? [V. HAACK. Preface. HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
Ž•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱşȬŗŘǾǯ
40
ȱ ˜–ȱ˜ȱ•Š—³Š–Ž—˜ȱŽȱœŽžȱ•’Ÿ›˜ǰȱŽ–ȱŗşŖŝǰȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœȱŽœ™Ž›ŠŸŠȱ’—Šžž›Š›ȱŠ•˜ȱȃ™›à¡’–˜ȱ
à reforma protestante”. Apesar disso, et pour cause, ele se preocupou com a estratégia de
apresentação: para não soar muito revolucionário, e, daí, possivelmente, perder adesões,
James, a partir do subtítulo, tratou de desarmar ânimos. Pragmatism – A New Name for Some

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
36 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱž–Šȱȃꕘœ˜ęŠȄȱŠȱ›ŽŠ•’ŠŽǰȱŠȱŠ³¨˜ǰȱŠȱŽ¡™Ž›’-
mentação. Filha de um tempo e de um lugar — o século XIX nos Estados
Unidos —, reagindo a um inimigo demarcado: o realismo e o racionalismo
‘ŽŽ–â—’Œ˜œȱ—ŠȱŠŒŠŽ–’ŠȱŠ—•˜ȬœŠ¡¨ȱ˜ȱꗊ•ȱŠšžŽ•Žȱœ·Œž•˜ǰȱŠ•ŸŽ£ȱœŽ“Šȱ
Šȱ’•˜œ˜ęŠȱ–Š’œȱŠŠ™Š’ŸŠȱ¥ȱ–˜Ž›—’ŠŽǯ41 Há quem nele veja ecos do
ceticismo de Hume e do positivismo, mas também do marxismo e do
Š› ’—’œ–˜ǯȱŽžȱ™›˜™àœ’˜ǰȱœŽȱ·ȱšžŽȱŠœœ’–ȱœŽȱ™˜ŽȱŠ•Š›ȱŽȱž–Šȱ’•˜œ˜ęŠȱ
tão multifária, é o de resgatar o valor da experiência: num mundo cindido
em dualismos anódinos — objetos mentais versus mundo extramental,
teoria versus prática, cultura humanística versus Œž•ž›Šȱ Œ’Ž—Çꌊȱ ȯǰȱ ˜ȱ
pragmatismo quer depurar nossa compreensão de conceitos viciadamente
abstratos. Como há continuidade, e não separação, entre teoria e prática,
depurar nossos conceitos de muitas das noções vagas que muitas corren-
Žœȱꕘœàꌊœȱę£Ž›Š–ȱŒ˜››Ž›ȱŽ–ȱ—˜œœŠȱŒ˜—œŒ’¹—Œ’ŠȱŒ˜’’Š—ŠȱȯȱŽȱ’œœ˜ȱ™˜›ȱ
intermédio de um apelo a que olhemos para as consequências concretas
da adoção desta ou daquela proposição — é, ao mesmo tempo, contribuir
™Š›ŠȱšžŽȱ˜ȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱ™˜œœŠȱœŽ›ȱ–Š’œȱŽęŒŠ£ǰȱŽȱŠȱŒ˜—žŠǰȱ–Š’œȱ’—Ž•’Ž—Žǯ42

1.2.1 A matriz pragmatista: antifundacionalismo,


consequencialismo e contextualismo
˜Šȱ œÇ—ŽœŽȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ ·ȱ Šȱ šžŽȱ ˜’ȱ ™›˜™˜œŠȱ ™˜›ȱ
Thamy Pogrebinschi. Segundo a professora, a “matriz pragmatista” — o
núcleo comum de ideias do movimento, tal como representado por seus
autores clássicos — poderia ser reconduzida a três conceitos, (i) o antifunda-
cionalismo, (ii) o consequencialismo e (iii) o contextualismo. Estas características
œ¨˜ȱ’—Ž›Ȭ›Ž•ŠŒ’˜—ŠŠœǰȱŽȱŠ•ȱ–˜˜ȱšžŽȱœŽ›’ŠȱŠ·ȱ’ÇŒ’•ȱŽę—’›ȱž–ŠȱŽ•Šœȱ
sem o auxílio das demais.43
Faremos, a seguir, uma breve introdução a cada um desses traços, que
serão úteis para a compreensão global das ideias apresentadas neste livro.
O (i) antifundacionalismo é “a ideia de que as verdades são criadas,
não encontradas; situadas, não objetivas; mutantes, não eternas; parciais,

Old Ways of Thinkingǯȱȱ“ž•Š›ȱ™Ž•˜ȱŽ¡Ž—œ˜ȱ—ø–Ž›˜ȱŽȱŠ—ŽŒŽœœ˜›ŽœȱšžŽȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœȱŒ’Šȱ


™Š›Šȱ œžŠȱ ꕘœ˜ęŠǰȱ ŽœœŽȱ œŽ›’Šȱ Žȱ Š˜ȱ ˜ȱ ŒŠœ˜ǯȱ ¡’œŽ–ȱ ˜œȱ šžŽȱ ™Ž—œŠ–ȱ Žȱ –˜˜ȱ Œ˜—›¤›’˜ǯȱ ȱ
œ’—ž•Š›’ŠŽȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ —¨˜ȱ ŽœŠ›’Šȱ Ž–ȱ œŽžȱ Œ˜—Žø˜ȱ ˜ž›’—¤›’˜ȱ ȯȱ Š·ȱ
porque bastante variado —, mas na propositura de um método, não de um método qualquer,
–ŠœȱŽȱž–ȱ–·˜˜ȱȃŒ˜–ȱŠ’žŽȄȱǻ–Š’œȱž–ŠȱŸŽ£ǰȱ—Šœȱ™Š•ŠŸ›ŠœȱŽȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœǼǯ
41
E, talvez, até mesmo à pós-modernidade, como não cansam de demonstrar uma série de pen-
sadores pós-modernos, em especial americanos, que recorrem ao antifundacionalismo do
pragmatismo clássico (v. adiante no texto principal) quando buscam raízes nativas para seu
pensamento.
42
FAERNA. Introducción a la teoría pragmatista del conocimiento, p. 6-9.
43
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 24, 62.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
37

não absolutas”.44 É a rejeição, sistemática e constante, de verdades apriorísticas,


dogmas, abstrações metafísicas.45ȱœœŠœȱȃŒ›Ž—³Šœȱ‹¤œ’ŒŠœǰȱ“žœ’ęŒŠŠœȱŽȱ–˜˜ȱ
não inferencial [isto é, de modo independente de outras crenças] e imunes
ao erro”46ȱœ¨˜ǰȱ™Š›Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱ—ŠŠȱ–Š’œǰȱ—ŠŠȱ–Ž—˜œǰȱ˜ȱ
šžŽȱŸŠŒž’ŠŽœǰȱ˜žǰȱ™Š›ŠȱŒ˜—’—žŠ›ȱ—˜ȱŽ››Ž—˜ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱǻŽȱŽȱœžŠȱŒ›Ç’ŒŠǼǰȱ
“nuvens”, como as que Aristófanes via no pensamento de Sócrates.47
Aceitar o método pragmatista — avaliar teorias por suas consequên-
Œ’Šœȱȯȱ’–™•’ŒŠȱŠ‹Š—˜—Š›ȱ™˜œ’³äŽœȱŽà›’ŒŠœȱę¡ŠœǰȱŽœœ¹—Œ’Šœǰȱšž’—Žœœ¹—Œ’Šœǯȱ
É, também, assumir uma postura radicalmente crítica e experimental, bem
™›à¡’–ŠȱŠ˜ȱŠ•’‹’•’œ–˜ȱŽȱŠ˜ȱŽœ™Ç›’˜ȱ˜ȱ–·˜˜ȱŒ’Ž—ÇꌘDZȱŠ‹Ž›ž›ŠȱŠȱ—˜ŸŠœȱ
possibilidades, tentativa, erro, correção, autocorreção.
O antifundacionalismo é o antídoto, mas antídoto humilde e exposto
a seu próprio teste, contra o fetichismo das teorias. A tentação de torcer os
Š˜œȱ™Š›Šȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱ™›˜™˜œ’³¨˜ȱŽà›’ŒŠȱŽ’¡ŠȱŽȱŠ£Ž›ȱœŽ—’˜ȱœŽǰȱŒ˜–ȱ
isso, estivermos falseando a própria teoria. Não há teorias sagradas. Não
‘¤ȱ™˜—˜œȱŽȱ™Š›’Šȱ—Ž–ȱ’—’ŒŠ’Ÿ˜œȱŽȱꗜǯȱ
¤ǰȱ—˜ȱŽ—Š—˜ǰȱŠȱ’Ž’ŠȱŽȱ
que as teorias devem ser medidas pela diferença que fazem no mundo.
Teorias são instrumentos da experiência viva, não brinquedos nas mãos
de intelectuais.48
Quanto ao (ii) consequencialismo, acerca do qual vamos dedicar todo
um item a seguir, basta dizer, nesse momento, que se trata de característica

44
ȱ  Dzȱǯȱ —›˜žŒ’˜—ǯȱ Dzȱȱǻ›ǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 1.
45
Há passagens na obra de Charles Peirce que podem apontar para um pragmatismo metafísi-
co. Sua pretensão seria a de fundar uma Metafísica baseada na ciência. Assim, por exemplo,
quando compara seu pragmatismo ao positivismo de Augusto Comte, Peirce, citado por Susan

ŠŠŒ”ǰȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱȃŠ˜ȱ’—Ÿ·œȱŽȱœ’–™•Žœ–Ž—ŽȱŒ›’’ŒŠ›ȱŠȱŽŠÇœ’ŒŠǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŽ¡›Š’ȱŽ•Šȱ
uma essência preciosa”. Em outros trechos, Peirce considera a Metafísica como a “Paris do
intelecto: excitante, porém perigosa”, e sustenta que “quase todas as proposições da metafísica
ontológica são bobagens”. Mas, uma vez que essas bobagens sejam neutralizadas, pode come-
³Š›ȱ˜ȱ›Š‹Š•‘˜ȱŽœœŠȱ—˜ŸŠȱŽŠÇœ’ŒŠǰȱž–ŠȱȃŽŠÇœ’ŒŠȱŒ’Ž—ÇꌊȄȱǻ
 ǯȱ —›˜žŒ’˜—ǯȱIn:
HAACK (Org.). Pragmatism, Old & NewDZȱŽ•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŗŜǰȱŘŖǼǯ
46
ETCHEVERRY. O fundacionismo clássico revisitado na epistemologia contemporânea, p. 34-35. O fun-
dacionismo surge, classicamente, como tentativa de resposta ao trilema de Agripa, segundo o
qual só existiriam três soluções para uma cadeia de argumentos: ou se termina numa suposição
arbitrária; ou se retorna ao ponto de partida, perfazendo, assim, movimento circular; ou se
›Ž›ŽœœŠȱ’—ę—’ŠȱŽȱŽŽ›—Š–Ž—Žǯȱȱž—ŠŒ’˜—’œ–˜ȱ›Žœ™˜—ŽȱŠ˜ȱŽœŠę˜ȱ™›Žœœž™˜—˜ȱž–Šȱ‹ŠœŽǰȱ
˜›–ŠŠȱ ™˜›ȱ ž–Šȱ Œ›Ž—³Šȱ ž—Š–Ž—Š•ȱ “žœ’ęŒŠŠȱ Žȱ –˜˜ȱ ’—Ž™Ž—Ž—Žǰȱ —¨˜ȱ ’—Ž›Ž—Œ’Š•ǰȱ Šȱ
™Š›’›ȱŠȱšžŠ•ȱŠœȱŽ–Š’œȱŒ›Ž—³ŠœȱœŽ›¨˜ȱ“žœ’ęŒŠŠœǯ
47
ARISTOPHANES. The Clouds. Ainda, Alfonso Morales (Renascent Pragmatism: Studies in Law
and Social Science, p. xiv): “O pragmatismo afasta a pura e simples criação de conceitos em
favor do desenvolvimento de ferramentas capazes de auxiliar na compreensão do mundo que
observamos e das regras que o produzem”.
48
O antifundacionalismo não se confunde, embora tenha tudo a ver, com outra característica
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŠȱœŠ‹Ž›ǰȱ˜ȱfuncionalismo, a ideia de que as crenças são instrumentos
para a ação. Segundo o funcionalismo pragmatista, não agimos porque temos ideias, mas
Ž–˜œȱ’Ž’Šœȱ™˜›šžŽȱŽŸŽ–˜œȱŠ’›ǰȱŽȱŠ’–˜œȱ™Š›ŠȱŠ•ŒŠ—³Š›ȱŽŽ›–’—Š˜œȱꗜǯȱȱŽœœŽȱ›Žœ™Ž’˜ǰȱ
v. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 364.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
38 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱšžŽȱ™›’˜›’£ŠȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ˜ȱŠ˜ǰȱŽ˜›’Šȱ˜žȱ
conceito. Há muita discussão teórica acerca das proximidades e distancia-
mentos do consequencialismo — que muitas vezes é usado como sinônimo
tout court Žȱ™›Š–Š’œ–˜ȱȯȱŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱŠ˜ȱ–·˜˜ȱꕘœàꌘȱŽȱŽ’›ŒŽȱŽȱ
’Šǯȱ˜›ȱŠ˜›Šǰȱ›ŽŒ˜›Ž–˜œȱŠȱ–¤¡’–Šȱ™›Š–¤’ŒŠDZȱ˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŽȱŠȱŸŽ›ŠŽȱ
de teorias e conceitos devem ser buscados por intermédio de uma análise
da diferença que fazem para a realidade. Ou seja, por um processo mental
de adiantamento e avaliação de suas consequências. Donde nada mais na-
tural do que apresentar o consequencialismo como uma das características
ŒŽ—›Š’œǰȱŠ•ŸŽ£ȱŠȱ–Š’œȱŒ˜—‘ŽŒ’Šǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǯ
O (iii) contextualismo não causa grandes dúvidas. É o destaque do
Œ˜—Ž¡˜ȱȯȱœ˜Œ’Š•ǰȱ™˜•Ç’Œ˜ǰȱ‘’œà›’Œ˜ǰȱŒž•ž›Š•ȱȯȱ—Šȱ’—ŸŽœ’Š³¨˜ȱꕘœàꌊȱ
ŽȱŒ’Ž—Çꌊǯȱ–ȱ™›Š–Š’œŠȱꕘœàꌘȱ—¨˜ȱŒ›¹ȱŽ–ȱŠ‹œ›Š³äŽœȱŠŽ–™˜›Š’œǰȱ
se não por seu antifundacionalismo, então porque elas costumam se inse-
rir num plano a-histórico, acima do tempo, do lugar e das circunstâncias
pessoais e culturais.
É porque o método pragmatista preza a diferença prática que as
teorias possam fazer — e só é possível perscrutar uma diferença prática a
partir de um contexto real — que o contextualismo assume importância
como traço do pragmatismo. “O pragmatismo é sempre contextual, o que
œ’—’ęŒŠȱšžŽȱ—ž—ŒŠȱŽ¡Š–’—Šȱ—ŠŠȱŽȱ–Š—Ž’›Šȱ’œ˜•ŠŠǰȱ–Šœȱœ’–ȱŽ—›˜ȱŽȱ
contextos que irão determinar seu sentido e seu valor”.49
Eis que a matriz pragmatista se completa: se não existem fundações
šžŽȱ“žœ’ęšžŽ–ȱ˜žȱŸŠ•’Ž–ȱŒ˜—ŒŽ’˜œȱ˜žȱŽ˜›’ŠœǰȱŽŸŽȬœŽȱŠ™›ŽŒ’¤Ȭ•ŠœȱŠȱ™Š›’›ȱ
de suas consequências, as quais só adquirem sentido dentro do contexto no
qual estão inseridas. Os deuses estão mortos; é hora de se preocupar com
as consequências concretas de nossos conceitos, juízos e ações, praticados
por nós em nosso único mundo.

1.2.2 Críticas e contracríticas: a decadência do pragmatismo


ꕘœàꌘȱŒ•¤œœ’Œ˜
Com tantas propostas radicais, com tanta sintonia com seu tempo50
Žȱ•žŠ›ǰȱŽœ™Ž›Š›ȬœŽȬ’ŠȱšžŽȱŽœœŽȱ™›’–Ž’›˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ˜œœŽȱ–Š’œȱ
bem-sucedido. Não que, com James e Dewey, o pragmatismo não tenha

49
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on
Social Thought, Law, and Culture, p. 8.
50
“Embora o pragmatismo e o modernismo frequentemente divirjam, e os primeiros pragmatis-
tas tivessem opiniões reticentes sobre Arte Moderna, o momento do pragmatismo foi, também,
o momento do Cubismo de Picasso e de Braque, da Teoria da Relatividade de Einstein, e de
uma nova geração de literatura moderna” (MENAND. An Introduction to Pragmatism. In:
MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 4).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
39

tido sucesso. Teve.51 Só que, lá pela metade do século XX, o pragmatismo


já era considerado, no mercado das ideias, carta fora do baralho; resíduo
ingênuo de um liberalismo desacreditado pelas guerras mundiais e pela
depressão econômica, já devidamente expurgado do âmbito acadêmico
™Ž•ŠȱŽ—¨˜ȱ›’ž—Š—Žȱ’•˜œ˜ęŠȱ—Š•Ç’ŒŠǯ52 Alguma coisa havia dado errado.
Mas o quê?
Numa frase: muitas críticas, alguma incompreensão, defesas incon-
sistentes. Comecemos pelas críticas. Sem contar aquelas que eram apenas
formas preconceituosas de desdém para com a América do Norte, ou as
šžŽȱŸ’—‘Š–ȱŽȱšžŽ–ȱŠŒ‘ŠŸŠȱšžŽȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ—¨˜ȱ™˜’ŠȱŽ›ȱšžŠ•šžŽ›ȱŒ˜’œŠȱ
a ver com a ideia de utilidade,53 podem-se resumir as críticas ao pragma-
’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŽ–ȱšžŠ›˜ȱ™˜—˜œǯȱ
ŒžœŠŸŠȬœŽȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ ǻ’Ǽȱ Žȱ œŽ›Ÿ’›ȱ ™Š›Šȱ “žœ’ęŒŠ›ȱ
qualquer resultado, não importando quão amoral ele fosse, (ii) de ser
uma banalidade, nada mais solicitando de nós do que a continuação de
nossas práticas de senso comum, (iii) de ser uma banalidade, mas, agora,
—˜ȱœŽ—’˜ȱŽȱšžŽȱ—¨˜ȱŠę›–Š›’Šȱ—ŠŠȱ–Š’œȱ˜ȱšžŽȱŠȱŒŽ—›Š•’ŠŽȱŠȱŠ³¨˜ǰȱ
entendida em sentido trivial, (iv) de ser um instrumento incompleto, in-
ŒŠ™Š£ȱŽȱ’›ŽŒ’˜—Š›ȱŠȱŠžŠ³¨˜ȱ‘ž–Š—ŠȱŽ–ȱ’›Ž³¨˜ȱŠȱž–ȱę–ǯ54
As ideias pragmatistas encontram inimigos em diversas correntes:
’ŽŠ•’œŠœǰȱ›ŠŒ’˜—Š•’œŠœǰȱ˜›–Š•’œŠœǰȱ–˜›Š•’œŠœǰȱ›Š’Œ’˜—Š•’œŠœǯȱ’••’Š–ȱ
James bem tentou suavizar a reação — o pragmatismo não seria nada de
¨˜ȱ—˜Ÿ˜ǰȱŠę—Š•ȱȯǰȱ–Šœȱž–ȱ™›˜›Š–ŠȱꕘœàꌘȱŽ’ŒŠ˜ȱŠȱŽœŒŠ›Š›ȱ˜Šœȱ
ŠœȱŒ›Ž—³Šœȱꕘœàꌊœȱ–Š’œȱ™›˜ž—Šœǰȱ˜žǰȱ™Ž•˜ȱ–Ž—˜œǰȱŠȱȃŽœŽ—ŒŠ—¤Ȭ•ŠœȄǰ55
ao percebê-las por seu valor de uso; é, no fundo, um golpe na autoimagem
de qualquer teoria e de qualquer teórico.
Apresentando as críticas de trás para frente: (iv) muito se falou que
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱœ’—’ęŒŠ›’Šȱž–ŠȱŽœ™·Œ’ŽȱŽȱ’—œ›ž–Ž—˜ȱŠęŠ˜ǰȱ
mas sem bússola moral. Em outras palavras: na sua preocupação com a
ideia de ação e de experiência, o pragmatismo acabaria não se preocupando
Œ˜–ȱ˜œȱŸŠ•˜›ŽœȱŽȱŠœȱꗊ•’ŠŽœȱŠȱŠžŠ³¨˜ȱ˜ȱ‘˜–Ž–ǯȱŽȱ—ŠŠȱŠ“ž˜žȱŠȱ

51
V. MENAND. The Metaphysical Club: a Story of Ideas in America, p. 371 et seq.
52
DICKSTEIN. Introduction. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on
Social Thought, Law, and Culture, p. 1.
53
GHIRALDELLI JÚNIOR. O que é o pragmatismo?, p. 23.
54
ȱ  ȱ ǯȱ ‘¢ȱ ›Š–Š’œ–ȱ  ˜›”œȱ ˜›ȱ –Žǯ Boston College Law School – Legal Studies
Research Paper Series, p. 347-348.
55
Estamos, aqui, usando a expressão “desencantamento” no sentido técnico que ela passou a ter
a partir de sua utilização, como conceito-chave para o entendimento da sociedade moderna,
™˜›ȱŽ‹Ž›ǯȱȱȃŽœŽ—ŒŠ—Š–Ž—˜ȱ˜ȱ–ž—˜ȄǰȱŠŠ™Š³¨˜ȱŽȱEntzauberung der Welt — literal-
–Ž—ŽDZȱŠȱȃŽœ–Š’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ–ž—˜Ȅȱȯǰȱ·ȱ˜ȱ™›˜ŒŽœœ˜ǰȱ˜Œ˜››’˜ȱ—Šȱœ˜Œ’ŽŠŽȱ–˜Ž›—Šǰȱ™˜›ȱ
intermédio do qual a racionalidade técnica expulsou representações mágicas tradicionais (Cf.
PIERUCCI. O Desencantamento do mundoDZȱ˜˜œȱ˜œȱ™Šœœ˜œȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽ–ȱŠ¡ȱŽ‹Ž›Ǽǯȱ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
40 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

defesa que Dewey fez da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra,56
˜žȱ›ŠœŽœǰȱŽœ•˜ŒŠŠœȱŽȱœŽžȱŒ˜—Ž¡˜ǰȱŒ˜–˜ȱŽœœŠǰȱŽȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœDZȱȃŽȱ
acordo com os princípios pragmáticos, não podemos rejeitar nenhuma
hipótese se dela decorrem consequências úteis para a vida”.57 Quando
veio, a rejeição atacou por todos os lados.
Randolph Bourne, intelectual que fora aluno e admirador de Dewey
em Columbia, publicou, em 1917, artigo na revista Seven Arts intitulado
“Twilight of Idols”, no qual atacava seu ex-professor, expressava preocu-
pação por sua defesa da guerra e responsabilizava-o indiretamente pelo
ŽœŠ˜ȱŠȱ–·›’ŒŠȱ˜ȱ˜›Žȱž›Š—Žȱ˜ȱ™Ž›Ç˜˜ǯȱȃȱꕘœ˜ęŠȱŽȱŽ Ž¢ȱ·ȱ
inspiradora para uma sociedade em paz, próspera, e com uma reserva
™›˜›Žœœ’ŸŠȱŽȱ‹˜ŠȬŸ˜—ŠŽǯȱ1ȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱŽȱŽœ™Ž›Š—³ŠǰȱŽȱŒ˜–™›ŽŽ—œ¨˜ȱ
clara de ferramentas e de meios”. No entanto, nada disso aparece durante
Šȱ žŽ››Šǯȱ ȃŠȱ Š™•’ŒŠ³¨˜ȱ Žȱ œžŠȱ ꕘœ˜ęŠȱ ¥ȱ ™˜•Ç’ŒŠǰȱ —˜œœ˜œȱ ™›Š–Š’œŠœȱ
Žœ¨˜ȱŽœŒ˜››ŽŠ—˜ȱšžŠ—˜ȱ¥ȱšžŽœ¨˜ȱŒ›žŒ’Š•ȱ˜œȱꗜȄǯ
Bourne continua: “A guerra revelou uma jovem intelligentsia, trei-
nada no pragmatismo, imensamente pronta para a ordenação executiva
de atividades, mas lamentavelmente despreparada para a interpretação
’—Ž•ŽŒžŠ•ȱ˜žȱ™Š›Šȱ˜ȱ˜Œ˜ȱ’ŽŠ•Çœ’Œ˜ȱŽ–ȱꗊ•’ŠŽœȄǯȱž•™ŠȱŽȱŽ Ž¢ǵȱ
Certamente, o professor tinha e defendia seus valores, mas havia aspectos
pouco claros em seu pensamento.
Ž Ž¢ǰȱ·ȱŒ•Š›˜ǰȱœŽ–™›Žȱšž’œȱšžŽȱœžŠȱꕘœ˜ęŠǰȱšžŠ—˜ȱ˜–ŠŠȱŒ˜–˜ȱž–Šȱ
ꕘœ˜ęŠȱ™›¤’ŒŠǰȱŒ˜–Ž³ŠœœŽȱŒ˜–ȱ˜œȱŸŠ•˜›Žœǯȱ˜›·–ǰȱœŽ–™›Žȱ‘˜žŸŽȱŽœœŠȱ’—Ž•’£ȱ
ambiguidade em sua doutrina acerca de como os valores eram criados, e foi
ꌊ—˜ȱŒŠŠȱŸŽ£ȱ–Š’œȱ¤Œ’•ȱŠœœž–’›ȱšžŽȱšžŠ•šžŽ›ȱŒ›ŽœŒ’–Ž—˜ȱ˜žȱŠ’Ÿ’ŠŽȱ
ŽœŠŸŠȱ“žœ’ęŒŠ˜ǰȱŽœŽȱšžŽȱŒ‘ŽŠœœŽȱŠȱž–ȱ›Žœž•Š˜ǯ

56
ȱ –ȱŠ›’˜œȱŒ˜–˜ȱȃ˜—œŒ’Ž—ŒŽȱŠ—ȱ˜–™ž•œ’˜—Ȅǰȱȃ‘Žȱžž›Žȱ˜ȱŠŒ’ęœ–Ȅǰȱȃ‘Šȱ–Ž›’ŒŠȱ
’••ȱ ’‘ȱ ˜›Ȅǰȱ ȃ˜—œŒ›’™’˜—ȱ ˜ȱ ‘˜ž‘Ȅǰȱ ™ž‹•’ŒŠ˜œȱ ˜›’’—Š•–Ž—Žȱ —Šȱ ›ŽŸ’œŠȱ The New
Republic, John Dewey defendeu pragmaticamente a Primeira Guerra, além de criticar aquilo
šžŽȱŸ’ŠȱŒ˜–˜ȱŽ¡ŒŽœœ˜œȱ˜œȱ™ŠŒ’ęœŠœǯȱ
57
O trecho original, em inglês: “On pragmatic principles we cannot reject any hypothesis if
Œ˜—œŽšžŽ—ŒŽœȱžœŽž•ȱ˜ȱ•’Žȱ̘ ȱ›˜–ȱ’ǯȱ—’ŸŽ›œŠ•ȱŒ˜—ŒŽ™’˜—œǰȱŠœȱ‘’—œȱ˜ȱŠ”ŽȱŠŒŒ˜ž—ȱ˜ǰȱ
may be as real for pragmatism as particular sensations are. They have indeed no meaning and
no reality if they have no use. But if they have any use they have that amount of meaning. And
the meaning will be true if the use squares well with life’s other uses”. Em nossa tradução:
“De acordo com os princípios pragmáticos, nós não podemos rejeitar nenhuma hipótese se
dela decorrerem consequências úteis para a vida. Conceitos universais, enquanto algo a ser
considerado, podem ser tão reais para o pragmatismo como as sensações particulares o são.
Žȱ Š˜ǰȱ œŽȱ —¨˜ȱ ¹–ȱ ž’•’ŠŽǰȱ —¨˜ȱ ¹–ȱ œ’—’ęŒŠ˜ȱ —Ž–ȱ ›ŽŠ•’ŠŽǯȱ Šœǰȱ œŽȱ ™˜œœžŽ–ȱ Š•ž–ȱ
žœ˜ǰȱ ™˜œœžŽ–ȱ ŠšžŽ•Šȱ Ž¡ŠŠȱ šžŠ—’ŠŽȱ Žȱ œ’—’ęŒŠ˜ǯȱ ȱ ˜ȱ œ’—’ęŒŠ˜ȱ œŽ›¤ȱ ŸŽ›ŠŽ’›˜ȱ œŽȱ ˜ȱ
žœ˜ȱž—Œ’˜—Š›ȱ‹Ž–ȱŒ˜–ȱ˜œȱ˜ž›˜œȱžœ˜œȱŠȱŸ’ŠȄǯȱ¹ȬœŽȱšžŽȱ’••’Š–ȱ Š–Žœȱ—¨˜ȱŒ˜—ŒŽŽȱŒŠ›Šȱ
branca ao pragmatismo para qualquer uso, mas busca não descartar, de modo a priori, as
ŸŽ›ŠŽœȱž—’ŸŽ›œŠ’œDZȱ™›ŽŽ—Žȱ—Ž•ŠœȱŽœŒ˜‹›’›ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱœžŠœȱž’•’ŠŽœǰȱœŽȱ·ȱšžŽȱ
possuem (JAMES. Pragmatism, p. 105).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
41

E, num tom que viria a ser seguido por muitos, atacou:


O encanto das ideias novas e verdadeiras, da especulação livre, do vigor
artístico, dos estilos culturais, da inteligência inundada pelo sentimento,
˜ȱ œŽ—’–Ž—˜ȱ šžŽȱ Š—‘Šȱ ꋛŠȱ Žȱ ŽœŠšžŽȱ ™Ž•Šȱ ’—Ž•’¹—Œ’Šǰȱ —¨˜ȱ ŸŽ’˜ǰȱ Žȱ
’ęŒ’•–Ž—Žȱ ™˜Ž›’Šȱ Ÿ’›ȱ ȯȱ ŸŽ–˜œȱ ’œœ˜ȱ ‘˜“Žȱ ȯȱ Ž—šžŠ—˜ȱ —˜œœŠȱ ꕘœ˜ęŠȱ
reinante for uma de caráter instrumental.58

O ex-aluno de Dewey viveu pouco — morreu com trinta e dois


anos —, mas seu padrão de críticas ao pragmatismo serviu de base para
as críticas subsequentes, e se somou a algumas anteriores.59
Os tempos também mudaram: cada vez menos, o otimismo asso-
ciado ao pragmatismo tinha espaço, numa realidade devastada por duas
guerras mundiais e uma depressão econômica. Marxistas, como Theodor
˜›—˜ǰȱ Ÿ’Š–Ȭ—˜ȱ Œ˜–˜ȱ –Ž›Šȱ “žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ ˜ȱ status quo; conservadores
ŽœŒ˜—ęŠŸŠ–ȱŠȱŒ›Ç’ŒŠȱ™›Š–¤’ŒŠȱŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱŠ˜œȱŸŠ•˜›Žœȱ›Š’Œ’˜—Š’œǯȱ
ꗊ•DZȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱ–Žœ–˜ȱŽœœŠȱŽ››Š–Ž—ŠȱœŽ–ȱ–Š—žŠ•ǰȱŽœœŠȱ
fôrma sem forma — para falarmos nos termos da poesia de Eliot?
Como em muitas coisas na vida, a resposta é: talvez. De fato, a
preocupação primordial dos pragmatistas clássicos não era com o des-
cobrimento de propósitos para a ação humana, mas com a superação do
que viam como óbices a um entendimento mais proveitoso das teorias e
dos conceitos, e tudo isso com vistas a uma melhor atuação prática. Em
que medida a discussão acerca de valores não comprometeria o sentido do
método pragmatista? Ele se tornaria mais uma vítima do fundacionalismo
ꕘœàꌘDzȱ–Š’œȱž–ŠȱŸÇ’–Šȱ˜ȱ–Š•ȱŒž“ŠȱŒž›Šȱ™›ŽŽ—’ŠȱœŽ›ǯȱ
Não há como negar que o pragmatismo clássico toma como um dado
Šœȱꗊ•’ŠŽœȱŠœȱŠ³äŽœȱ˜ȱ‘˜–Ž–ȱȯȱŽǰȱ’—Œ•žœ’ŸŽǰȱ’—˜›ŠȱšžŽȱŽ•Šœȱ™˜Ž–ȱ
fazer com que se aja de modo antipragmático. Por outro lado, sempre é
possível, a partir de trechos da obra dos três autores, reconciliar alguns
Žȱ œŽžœȱ ŽœŒ›’˜œȱ Œ˜–ȱ Šȱ ‹žœŒŠȱ ™˜›ȱ ™›˜™àœ’˜œȱ ‘ž–Š—˜œȱ Ž’ęŒŠ—Žœǰȱ ˜žǰȱ
pelo menos, não desprezíveis (dos quais a defesa de Dewey da Primeira

58
BOURNE. War and the intellectuals: collected essays (1915-1919), p. 53-64.
59
ȱ –ȱ˜œȱ–Š’œȱŠ–˜œ˜œȱŠŠšžŽœȱŠ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŸŽ’˜ȱŒ˜–ȱŽ››Š—ȱžœœŽ•ǰȱšžŽǰȱŽ–ȱ
˜’œȱŠ›’˜œȱǻȃ›Š–Š’œ–ȄȱŽȱŗşŖşȱŽȱȃ‘Žȱ‘’•˜œ˜™‘¢ȱ˜ȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœȄȱŽȱŗşŗŖǼǰȱœžœŽ—˜žȱ
˜ȱŒŠ›¤Ž›ȱ˜–¤’Œ˜ȱŠȱ—˜ŸŠȱꕘœ˜ęŠȱȯȱœŽȱ—¨˜ȱŽ¡’œŽ–ȱŸŽ›ŠŽœȱŽ–ȱœ’ȱ–Žœ–Šœȱ—Ž–ȱ–Žœ–˜ȱ—Šȱ
tábua de multiplicação (3 x 3 = 9), mas, apenas, a partir de suas consequências, resta a dúvida
sobre se o pragmatismo é menos dogmático do que os sistemas que pretendia substituir —, ou
cunhou frases fortes contra o movimento: “Se o pragmatismo triunfar, então encouraçados e
–Ž›Š•‘Š˜›ŠœȱœŽ›¨˜ȱ˜œȱ¤›‹’›˜œȱꗊ’œȱŠȱŸŽ›ŠŽȱ–ŽŠÇœ’ŒŠȄǯȱž›ŠȱŒ›Ç’ŒŠȱŽȱžœœŽ•ȱŽ›’ŸŠȱ
˜ȱšžŽȱŽ•Žȱ™Ž›ŒŽ‹’ŠȱŒ˜–˜ȱ’Ž—’ęŒŠ³¨˜ȱŸž•Š›ȱŽ—›ŽȱŸŽ›ŠŽȱŽȱž’•’ŠŽȱ—Šȱꕘœ˜ęŠȱŽȱ Š–ŽœDZȱ
“Ora”, argumentava, “como qualquer um percebe, há verdades que não são úteis, assim como
existem proposições úteis que não são verdadeiras” (RUSSEL. Pragmatism. In: GOODMAN
(Ed.). Pragmatism: Critical Concepts in Philosophy, v. 1, p. 175-195). Ainda, republicado na
–Žœ–ŠȱŒ˜•Ž¦—ŽŠǰȱ˜ȱ–Žœ–˜ȱŠž˜›ǰȱȃ‘Žȱ‘’•˜œ˜™‘¢ȱ˜ȱ’••’Š–ȱ Š–ŽœȄǰȱ™ǯȱŗşŞȬŘŖŗǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
42 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Guerra certamente não é exemplo). Mas não vamos avançar no tema, que
é complexo e exige aprofundamento.
Próxima crítica: (i) o pragmatismo seria um método incompleto e
™˜Ž›’Šȱ“žœ’ęŒŠ›ȱšžŠ•šžŽ›ȱ›Žœž•Š˜ǯȱȱ›Žœ™˜œŠȱ·ȱœ’—Ž•ŠDZȱœŽȱŽœœŽȱ˜›ȱ˜ȱ
caso, a saída é associá-lo a uma teoria substantiva, que proíba determinadas
escolhas e oriente resultados.
Quanto às duas outras críticas — (ii) o pragmatismo seria uma bana-
lidade, solicitando, tão somente, que continuássemos com nossas práticas
de senso comum, ou (iii) ele seria uma banalidade por sublinhar, apenas,
a importância da ação, sem maiores consequências ou profundidade —,
são objeções que merecem ser refutadas de plano.
ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ—¨˜ȱ·ȱ’œœ˜ǯȱ•Žȱ—¨˜ȱœ˜•’Œ’ŠȱšžŽȱŒ˜—’—žŽ–˜œȱ
com nossas práticas usuais. Lendo Dewey e James, há um subtexto muito
Œ•Š›˜ȱšžŽȱŠę›–ŠȱœŽ›–˜œȱ˜—˜œȱŽȱ —˜œœ˜œȱ ™›à™›’˜œȱŽœ’—˜œǯȱȱꕘœ˜ęŠȱ
™›Š–Š’œŠȱ·ȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱŠȱ›Š—œ˜›–Š³¨˜ǯȱžŠ—˜ȱŽ Ž¢ȱŽŽ—Žǰȱ
por exemplo, o conceito de “inteligência criativa”, ele imagina que se
possa superar a barreira da criação intelectual e dos condicionamentos
sociais, em direção a uma realidade comunitária radicalmente transformada
(a ênfase em “radicalmente” não é retórica). Ideias que, hoje, poderiam
ser reputadas como intensamente transformadoras encontram ancestral
no pragmatismo social desses primeiros pensadores. Provavelmente esse
é o erro mais comum quando se fala em pragmatismo. Erro decorrente de
Œ›ŠœœŠȱ’—Œ˜–™›ŽŽ—œ¨˜DZȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǰȱ
ŠȱŽ¡™Ž›’¹—Œ’ŠȱŽȱŠȱŠ³¨˜ǰȱ–Šœȱ·ǰȱŠ–‹·–ȱŽȱ™›’—Œ’™Š•–Ž—Žǰȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱ
Šȱ›Š—œ˜›–Š³¨˜ǯȱŠŠȱ–Š’œȱ’œŠ—Žȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ˜ȱšžŽȱ
uma postura de tibieza diante da realidade, de conformismo, de “render-se
aos fatos”. Ao antigo lema do movimento estudantil brasileiro “seja rea-
•’œŠǰȱŽ¡ħŠȱ˜ȱ’–™˜œœÇŸŽ•Ȅǰȱ™˜Ž›ÇŠ–˜œȱŒ˜—›Š™˜›ǰȱŒ˜–ȱ•’ŒŽ—³Šȱ™˜·’ŒŠǰȱž–ȱ
•Ž–Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ šžŽȱ˜œœŽȱŠœœ’–DZȱȃœŽ“Šȱ™›Š–¤’Œ˜ǰȱ Œ›’Žȱ
um novo possível”.
•·–ȱ ’œœ˜ǰȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ —¨˜ȱ ·ȱ ž–Šȱ •˜›’ęŒŠ³¨˜ȱ Šȱ
ação pela ação, como faz crer a crítica (iii). John Dewey defende seu papel
intermediárioǯȱ1ȱŒ•Š›˜ȱšžŽȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠȱŽ–ȱŠȱŸŽ›ȱŒ˜–ȱŠȱŠ³¨˜ǰȱ–Šœǰȱ
Š™Ž—Šœǰȱ Œ˜–˜ȱ Ž›Šžȱ ™Š›Šȱ ž–Šȱ ꗊ•’ŠŽǰȱ šžŠ•ȱ œŽ“Šǰȱ ˜ȱ œ’—’ęŒŠ˜ȱ ˜œȱ
conceitos (ou das teorias ou da verdade). Em suas palavras:
1ȱŒ˜–ž–ȱ’£Ž›ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱšžŽȱŽ•ŽȱŠ£ȱŠȱŠ³¨˜ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱŠȱŸ’Šǯȱ
’£ȬœŽǰȱŠ’—ŠǰȱšžŽȱŽ•Žȱœž‹˜›’—Šȱ˜ȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱŽȱŠȱŠžŠ³¨˜ȱ›ŠŒ’˜—Š•ȱŠȱꗊ-
lidades particulares de interesse e de proveito. É verdade que a teoria, de
acordo com a concepção de Peirce, implica essencialmente uma relação com
a ação, com a conduta humana. Mas o papel da ação é o de um intermediário.
Š›ŠȱšžŽȱœŽȱ™˜œœŠȱŠ›’‹ž’›ȱž–ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŠ˜œȱŒ˜—ŒŽ’˜œǰȱŽŸŽȬœŽȱœŽ›ȱŒŠ™Š£ȱ
de aplicá-los à existência. E é por intermédio da ação que esta aplicação se
˜›—Šȱ™˜œœÇŸŽ•ǯȱȱ–˜’ęŒŠ³¨˜ȱŠȱŽ¡’œ¹—Œ’ŠȱšžŽȱ›Žœž•ŠȱŽœœŠȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ·ȱ˜ȱ

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
43

ŸŽ›ŠŽ’›˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ˜œȱŒ˜—ŒŽ’˜œǯȱȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱŠœœ’–ǰȱŽœ¤ȱ•˜—ŽȱŽȱ
œŽ›ȱŠȱ•˜›’ęŒŠ³¨˜ȱŠȱŠ³¨˜ȱ™Ž•ŠȱŠ³¨˜ȱšžŽȱ·ȱ’ŠȱŒ˜–˜ȱŠȱŒŠ›ŠŒŽ›Çœ’ŒŠȱ™ŽŒž•’Š›ȱ
da vida norte-americana.60

À parte qualquer sintética defesa que se possa fazer, há quem diga


que os pragmatistas clássicos não conseguiram estar à altura do volume
Šœȱ Œ›Ç’ŒŠœǯȱ ž›˜œȱ ’£Ž–ȱ šžŽȱ ˜ȱ ę–ȱ ˜ȱ ’—Ž›ŽœœŽȱ —˜ȱ Šœœž—˜ȱ ŽŒ˜››Žžȱ
da necessidade acadêmica por novidades: quando um autor trata de um
assunto novo, ele se diferencia de seus antecessores e contemporâneos e,
com isso, ganha prestígio.61ȱŠ˜ȱ·ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŽȱž–ȱ
ápice acentuado, sumiu de cena por alguns bons anos.

ŗǯŘǯřȱ ȱ—Ž˜™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘDZȱŽ—›ŽȱŠȱŠžŽ—’Œ’ŠŽȱŽȱŠȱ
reinvenção. A explosão contemporânea da abordagem
pragmatista
O renascimento do pragmatismo possui data, certidão de nasci-
mento e paternidade conhecida. Com a publicação, em 1979, da primeira
edição do livro Philosophy and the Mirror of Nature, de Richard Rorty,62 o
™›Š–Š’œ–˜ȱ›Žœœž›’žȱ™Ž•Šœȱ–¨˜œȱŽȱž–ȱę•àœ˜˜ȱ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱšžŽȱ—¨˜ȱ
ŠŒ›Ž’ŠŸŠȱ—Šȱ’•˜œ˜ęŠȱ™›˜ęœœ’˜—Š•ǰȱŸ’ŠȱŽ’›ŒŽȱȃŠ™Ž—Šœȱž–ȱ–Š—ÇŠŒ˜ȱ™Ž•˜ȱ
número três”63 e, salvo diferenças pontuais de áreas de interesse, conside-
rava suas propostas teóricas idênticas às de John Dewey.64
Ressurgiu não com um suspiro, mas com uma explosão. Rorty
defendia um rompimento com a então predominante tradição analítica
Šȱ ’•˜œ˜ęŠȱ —˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—Šȱ mainstreamǰȱ Šȱ ȃ’•˜œ˜ęŠȱ ˜œȱ ę•àœ˜˜œȄǰȱ Šȱ

60
ȱ ǯȱ ‘Žȱ ŽŸŽ•˜™–Ž—ȱ ˜ȱ –Ž›’ŒŠ—ȱ ›Š–Š’œ–ǯȱ In: THAYER (Org.). Pragmatism: the
•Šœœ’ŒŠ•ȱ›’’—œǰȱ™ǯȱŘśǯȱ
61
MORALES. Foreword. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law and Social
Science, p. xvii.
62
RORTY. Philosophy and the Mirror of Nature.
63
RORTY The Pragmatist Progress. In: COLLINI (Org.). Interpretation and Overinterpretation,
p. 93. A acusação de que Peirce buscava uma associação com o número três em tudo, numa
espécie de “triadomania”, é contemporânea à vida do lógico, merecendo resposta do autor. O
prefácio ao manuscrito The Quest for the Quest – An Inquiry into the Sucess of Inquiry chama-se
ȃž‘˜›Ȃœȱ Žœ™˜—œŽȱ ˜ȱ ‘Žȱ Š—’Œ’™ŠŽȱ œžœ™’Œ’˜—ȱ ‘Šȱ ‘Žȱ ŠĴŠŒ‘Žœȱ Šȱ œž™Ž›œ’’˜žœȱ ˜›ȱ Š—Œ’ž•ȱ
importance to the number THREE, and forces Divisions to a Procrustean Bed of THRICOTOMY”,
Žǰȱ—Ž•ŽǰȱŽ’›ŒŽȱŠ™›ŽœŽ—ŠǰȱŽȱ˜›–ŠȱŠ•˜ȱ“˜Œ˜œŠǰȱ›¹œȱŠ›ž–Ž—˜œȱŒ˜—›¤›’˜œȱŠȱŽœœŠȱŠę›–Š³¨˜DZȱ
1. Ele teria usado diversas outras divisões (de vinte e nove divisões em sua obra, apenas cinco
œŽ›’Š–ȱ›’Œ˜˜–’ŠœǼDzȱŘǯȱȱ™›˜‹•Ž–ŠȱŠœȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³äŽœȱŒ’Ž—ÇꌊœȱœŽ›’ŠȱŽ¡›Ž–Š–Ž—ŽȱŒ˜–™•Ž¡˜Dzȱ
3. Dever-se-ia entender que há diferença entre o raciocínio matemático e outros tipos de
›ŠŒ’˜ŒÇ—’˜ǰȱŽȱ–˜˜ȱšžŽȱž–Šȱ—ž–Ž›Š³¨˜ȱ›Ž™Ž’Šȱ—¨˜ȱœ’—’ęŒŠ›’Šȱ–ž’ŠȱŒ˜’œŠǯȱŠ’œȱœ˜‹›Žȱ˜ȱ
tema v. SPINKS. Peirce and TriadomaniaDZȱŠȱ Š•”ȱ’—ȱ‘ŽȱŽ–’˜’Œȱ’•Ž›—Žœœǯȱ
64
BORRADORI. ȱꕘœ˜ęŠȱŠ–Ž›’ŒŠ—Š: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto,
Rorty, Cavell, Macintyre e Kuhn, p. 149.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
44 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

’•˜œ˜ęŠȱŠŒŠ¹–’Œ˜Ȭ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱšžŽȱŠ—‘˜žȱ™›˜“Ž³¨˜ǰȱœŽž—˜ȱŽ•Žǰȱ™˜›ȱ
ž–Šȱ›Ž“Ž’³¨˜ȱ’Ž˜•à’ŒŠȱ¥œȱꕘœ˜ęŠœȱ–ŠŽ›’Š’œǰȱŠœœ˜Œ’ŠŠœȱŠ˜ȱ—Š£’œ–˜ǯ65
˜—›ŠȱŽœœŠȱ’•˜œ˜ęŠȱŠ—à’—Šǰȱ–Ž•‘˜›ȱœŽ›’Šȱ›ŽœŠŠ›ȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱ
com “f” minúsculo, uma disciplina dentre outras, sem maiores pretensões a
ž–ȱŠŒŽœœ˜ȱŽ¡Œ•žœ’Ÿ˜ȱŠȱŠ•ž–ŠȱŽ›ŠŽDzȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱšžŽȱ˜œœŽȱž–ŠȱŽœ™·Œ’Žȱ
de crítica cultural, sem medo do tom literário, e que servisse, apenas, para
comparar as diversas visões de mundo.66
“O que os pragmatistas estão a dizer é que a maior esperança para
Šȱꕘœ˜ęŠȱ·ȱ—¨˜ȱŠ£Ž›ȱ’•˜œ˜ęŠǯȱŽ—œŠ–ȱšžŽȱ™Ž—œŠ›ȱœ˜‹›ŽȱŠȱŽ›ŠŽȱ—¨˜ȱ
ajuda a dizer algo verdadeiro, nem pensar sobre o Bem ajuda a agir bem,
nem pensar sobre a Racionalidade ajuda a ser racional”.67 Nessa “cultura
™àœȬꕘœàꌊȄǰȱ—¨˜ȱœŽȱ‹žœŒŠȱŠȱŽ›ŠŽǰȱ—Ž–ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ·ȱŠ•˜ȱŽȱŽœ™ŽŒ’Š•ǯȱ
É, apenas, um estudo comparativo das diversas narrativas criadas pelo
homem: literatura, ciência (“um gênero de literatura”), Ética.68 Outros
Ž–Šœȱ˜–’—Š—ŽœȱŽ–ȱœžŠȱ™›˜ž³¨˜ȱŠŒŠ¹–’ŒŠȱŒŽ—›Š–ȬœŽȱŽ–ȱ›ŽĚŽ¡äŽœȱ
acerca do pluralismo, da solidariedade e da ironia, entendida, esta, não
como humor ácido, mas como uma espécie de desencanto transgressivo,
que impulsiona o intelectual em direção a uma “utopia liberal” que não
surge da história nem da natureza humana, mas que é construída pelos
próprios indivíduos.69
ȱȃ—Ž˜™›Š–Š’œ–˜ȄȱŽȱ˜›¢ȱȯȱ˜ȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ȱꌘžȱŠœœ’–ȱŒ˜—‘Ž-
cido —, tal como descrito, assemelha-se, bem vistas as coisas, a certas pro-
postas teóricas pós-modernas, descrentes das chamadas grandes narrativas,
“desconstrutivas”, críticas.
O que isso tem a ver com o pragmatismo de Peirce, James e Dewey?
Š•Ÿ˜ȱŒ˜–ȱ˜ȱŽȱŽ’›ŒŽǰȱ–ž’ŠȱŒ˜’œŠǰȱŠę›–Šȱ˜›¢ǯȱžŠœŽȱ—ŠŠǰȱŠę›-
mam outros. Explica-se.

65
BORRADORI. ȱꕘœ˜ęŠȱŠ–Ž›’ŒŠ—Š: conversações com Quine, Davidson, Putnam, Nozick, Danto,
Rorty, Cavell, Macintyre e Kuhn, p. 151.
66
“A fortiori, tal cultura não conteria ninguém chamado ‘o Filósofo’, que pudesse explicar como
e porque é que certas áreas da cultura gozariam de uma relação especial com a realidade.
Tal cultura conteria, sem dúvida, especialistas em ver como as coisas são compatíveis. Mas
seriam pessoas que não teriam ‘problemas’ para resolver, nem nenhum ‘método’ especial para
aplicar, não estariam submetidas a normas particulares, não teriam uma auto-imagem coletiva
Ž—šžŠ—˜ȱž–Šȱ™›˜ęœœ¨˜ǯȱǽǯǯǯǾȱŽ›’Š–ȱ’—Ž•ŽŒžŠ’œȱ™Š›Šȱ˜ŠœȱŠœȱŠ›ŽŠœǰȱšžŽȱŽœŠ›’Š–ȱ™›˜—˜œȱŠȱ
oferecer um ponto de vista sobre quase tudo, na esperança de o tornar compatível com tudo o
mais” (RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 41).
67
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 15.
68
RORTY. Consequências do pragmatismo, p. 42.
69
RORTY. Contingency, Irony, and SolidarityǯȱŽœŽȱ•’Ÿ›˜ǰȱ˜›¢ȱŒ›’ŠȱŠȱꐞ›Šȱ˜ȱȃ’›â—’Œ˜ȱ•’‹Ž›Š•Ȅȱ
(ou “ironista liberal”, como aparece em algumas traduções), que é o sujeito que reconhece a
contingência de todas as suas crenças, mas, mesmo assim, acredita na existência de um mal
extremo na existência humana — a crueldade e a humilhação —, e aposta em seu desapare-
Œ’–Ž—˜ǯȱ
¤ȱ —ŽœœŠȱ ꐞ›Šǰȱ Š’—Šǰȱ ž–ȱ Ž›ŒŽ’›˜ȱ ŸŠ•˜›DZȱ Šȱ œ˜•’Š›’ŽŠŽǰȱ —¨˜ȱ Š™Ž—Šœȱ Œ˜–˜ȱ Š“žŠȱ
humanitária, mas como evitação da humilhação. Desenvolver em Gabriel Bello Reguera (Rorty
y el Pragmatismo. Doxa – Cuadernos de Filosofía del Derecho).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
45

œȱ™›˜™àœ’˜œȱŽȱŽ’›ŒŽȱœŽ–™›Žȱ˜›Š–ȱŒ’Ž—Çꌘœǯȱ•ŽȱŽœŠŒŠŸŠȱŠȱ
’–™˜›¦—Œ’ŠȱŠȱŠ’žŽȱŒ’Ž—ÇꌊǯȱŒ›Ž’ŠŸŠȱœŽ›ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱŒ‘ŽŠ›ȱŠȱž–Šȱ
verdade, provisória que fosse, graças ao consenso da comunidade de inves-
’Š˜›Žœǯȱȱ›Š—Žȱ™›˜™˜œŠȱŽȱ‘Š›•ŽœȱŽ’›ŒŽȱŽ›ŠȱŠȱ›Ž˜›–ŠȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ
da Ciência pela introdução da máxima pragmática. Isso nada tem a ver
Œ˜–ȱ˜ȱ™›˜›Š–ŠȱꕘœàꌘȱŽȱ˜›¢ǰȱ™Š›ŠȱšžŽ–ȱŠȱŒ’¹—Œ’Šȱ·ȱŠ™Ž—Šœȱ–Š’œȱ
um discurso, e as preocupações com método e estrutura de argumentos
devem ser deixadas para trás conforme as pessoas forem se dando conta
de que “conhecer nossos desejos é conhecer o critério da verdade”.70
Há outros pontos de discordância entre o pragmatismo clássico
e o neopragmatismo de Rorty. No primeiro pragmatismo, conquanto o
conceito de verdade não possa ser dado a priori, ele pode ser buscado com
a projeção das consequências. Para Rorty, a ideia de procura da verdade
deve ser descartada.71 Em outro ponto, a ênfase do pragmatismo clássico
no conceito de experiência — o conjunto de crenças presentes na sociedade
e a forma como elas se relacionam com as instituições e práticas sociais —
é substituída, em Rorty, pela preocupação com o conceito de linguagem,
—ž–Šȱ Ž–˜—œ›Š³¨˜ȱ Žȱ šžŽȱ —Ž–ȱ ˜ȱ ę•àœ˜˜ȱ šžŽȱ ™›ŽŽ—Žžȱ œž‹œ’ž’›ȱ Šȱ
’•˜œ˜ęŠȱ—Š•Ç’ŒŠȱ™Šœœ˜žȱ’—Œà•ž–Žȱ™Ž•ŠȱȃŸ’›ŠŠȱ•’—žÇœ’ŒŠȄǯȱž‹–Ž’˜ȱ
às três características da matriz pragmatista — o antifundacionalismo, o
consequencialismo e o contextualismo —, o neopragmatismo de Rorty só
œŽȱ’Ž—’ęŒŠȱŒ•Š›Š–Ž—ŽȱŒ˜–ȱŠȱ™›’–Ž’›Šǯ72
Independentemente de o neopragmatismo ser ou não um velho
nome para novas ideias,73 ou uma antropofagia das crenças do antigo
™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰ74 fato é que a reinterpretação idiossincrática de
temas de James e Dewey, por Richard Rorty, fez renascer o pragmatismo.
Pensando no que gerou — o ressurgimento do tema e a atualização de
œŽžœȱŒ˜—Žø˜œȱȯǰȱŽœœŽȱ—Ž˜™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ·ǰȱœ’–ǰȱ™›Š–¤’Œ˜ǯ75
A discussão sobre quem é autêntico não é profícua. Fiel ou não às suas
œž™˜œŠœȱ ˜›’Ž—œǰȱ Š˜ȱ ·ȱ šžŽȱ ˜ȱ —Ž˜™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ ›ŽŠ‹’•’˜žȱ ˜ȱ
debate pragmatista.
Reabilitado e repaginado, o pragmatismo explodiu, e, como cos-
tuma acontecer, as partículas mais distantes acabam mantendo, apenas,

70
RORTY. Essays on Heidegger and Others: Philosophical Papers, p. 31.
71
ȱ ȃ¨˜ȱšžŽȱŠȱŸŽ›ŠŽȱ—¨˜ȱŽ¡’œŠǰȱ™˜’œȱ’œœ˜ȱœŽ›’Šȱž–ŠȱŠę›–Š³¨˜ȱ™Š›Š˜¡Š•ǰȱŽǰȱŠ·ȱ–Žœ–˜ǰȱ˜•ŠDzȱ
o que Rorty diz é que a questão da ‘natureza da verdade’ é dispensável” (GHIRALDELLI
q ǯȱ–Šȱ—˜ŸŠȱŠŽ—Šȱ™Š›ŠȱŠȱꕘœ˜ęŠǯȱIn: RORTY. Pragmatismo e política, p. 8).
72
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos
Estudos CEBRAP, p. 125-138.
73
POGREBINSCHI. Pragmatismo: teoria social e política, p. 183.
74
RAPOZO, Joana Tavares da Silva. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las
teorías en el âmbito conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 26.
75
POGREBINSCHI. Será o neopragmatismo pragmatista?: interpretando Richard Rorty. Novos
Estudos CEBRAP, p. 138.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
46 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

leve semelhança com a matéria original. Hoje temos o eco-pragmatismo,76


o pragmatismo feminista,77 além de estudos acerca das ligações entre a
literatura, a retórica e o pragmatismo,78 entre uma série de outras pos-
síveis ligações interdisciplinares que, se ainda não existem, ainda serão
imaginadas por gerações e gerações de teóricos. Há quem fale até mesmo
na existência de um neoneopragmatismo, o qual seria professado pelos
discípulos de Rorty.79
Nestes tempos pós-modernos, em que tudo se recicla, o pragma-
’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŠ—’˜ȱ˜žȱ—˜Ÿ˜ǰȱŽ’¡˜žȱœžŠœȱ˜›’Ž—œȱŠŒŠ¹–’ŒŠœȱŒ˜–˜ȱ
Ž˜›’Šȱ˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ˜žȱŒ˜–˜ȱŽ˜›’ŠȱŠȱŸŽ›ŠŽȱŽȱ™Šœœ˜žȱŠȱŽœ’—Š›ȱž–Šȱ
atitude geral em relação ao mundo. Muitíssimo mais geral do que a ideia
inicial de ser apenas um método. O pragmatismo, hoje, é uma orientação
de espírito, aplicada à pesquisa ou à vida, em que se prefere a ação e se
rejeitam dogmas.

ŗǯŘǯŚȱ ȱž’•’ŠŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ™Š›Šȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱ
sobre o pragmatismo jurídico: a visão de Richard
Posner, Thomas Grey e David Luban
Há questão essencial que deve ser enfrentada: qual a utilidade do
™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ™Š›Šȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱœ˜‹›Žȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ǵ
Apesar de natural a intuição de que há alguma relação entre o prag-
–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ǰȱšž’³¤ȱŠ˜ȱœŽȱ’–Š’—Š›ȱšžŽȱœŽȱ
trata de uma aplicação daquele ao mundo do Direito,80 há quem defenda
que a utilidade não é muita.
Richard Posner, juiz norte-americano que é um dos principais
autores sobre o assunto, e cujo pensamento será analisado em breve,
œžœŽ—ŠȱšžŽǰȱŽ–‹˜›Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱŽȱ˜ȱꕘœàꌘȱŽ—‘Š–ȱŒ˜ŽŸ˜-
luído na experiência americana, seria um erro imaginar que as críticas ao

76
FARBER. Eco-pragmatismDZȱŠ”’—ȱŽ—œ’‹•Žȱ—Ÿ’›˜—–Ž—Š•ȱŽŒ’œ’˜—œȱ’—ȱŠ—ȱ—ŒŽ›Š’—ȱ˜›•ǯȱ
Ainda, MINTZ. Some Thoughts on the Merits of Pragmatism as a Guide to Environmental
Protection. ˜œ˜—ȱ˜••ŽŽȱ—Ÿ’›˜—–Ž—Š•ȱ슒›œ.
77
SEIGFRIED. Pragmatism and Feminism: Reweaving the Social Fabric.
78
POIRIER. Reading Pragmatically. In: MENAND (Org.). Pragmatism: a Reader, p. 437-455.
79
HAACK. Introduction: Pragmatism, Old and New. In: HAACK (Org.). Pragmatism, Old & New:
Ž•ŽŒŽȱ›’’—œǰȱ™ǯȱśŗǯ
80
ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão judicial: caracte-
rização, estratégias e implicações, p. 7. No entanto, conferir o verbete “Pragmatismo”, escrito
por José Eisenberg, no ’Œ’˜—¤›’˜ȱŽȱꕘœ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜ coordenado por Vicente Barreto: “O prag-
matismo jurídico é uma escola da Teoria do Direito que nasceu nos EUA no início do século XX
e que tem naquele país seus maiores expoentes. Sua principal característica é o esforço de aplicar
Šȱ›Š’³¨˜ȱꕘœàꌊȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŠ˜ȱ™›˜‹•Ž–ŠȱŠȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠ” (BARRETO. Dicionário de
ꕘœ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜, p. 656, grifos nossos).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
47

™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ™˜œœŠ–ȱœŽ›ȱŠž˜–Š’ŒŠ–Ž—ŽȱŠœœ˜Œ’ŠŠœȱŠ˜ȱ™›Š-
matismo jurídico. Em suas palavras: “A defesa do pragmatismo jurídico
·ȱŽ’ŠȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ—¨˜ȱ—˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱꕘœàꌘǰȱ–Šœȱ—Šœȱ—ŽŒŽœœ’ŠŽœȱŽȱ—˜ȱ
caráter do Direito norte-americano”.81
Tanto o pragmatismo clássico quanto o neopragmatismo teriam
pouco a dizer para operadores institucionais do Direito sem vocação ou
Ž–™˜ȱ™Š›ŠȱŠȱ•Ž’ž›ŠȱŽȱ˜‹›Šœȱꕘœàꌊœǯȱ›ŠŠ›ȬœŽȬ’Š–ȱŽȱŽœ™·Œ’Žœȱ˜ȱ¹—Ž›˜ȱ
ꕘœ˜ęŠȱ·Œ—’ŒŠǯ82ȱ–ȱŽ›–˜œȱ˜™Ž›ŠŒ’˜—Š’œǰȱ˜ȱ™Š™Ž•ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœà-
ꌘȱœŽ›’Šȱ›Žœ’žŠ•ǯȱŽ“Šȱ—Šœȱ›Š›Šœȱ˜™˜›ž—’ŠŽœȱŽ–ȱšžŽǰȱ—ŠȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ
“ž›Ç’ŒŠǰȱŽ•Ž–Ž—˜œȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠȱ˜œœŽ–ȱ’›ŽŠ–Ž—Žȱž’•’£Š˜œǰ83
seja em sua principal função, a de questionar preconceitos, o pragmatismo
ꕘœàꌘȱœŽ›Ÿ’›’ŠȱŽœœŽ—Œ’Š•–Ž—Žȱ™Š›Šȱ’—œ’Š›ȱŠȱøŸ’Šȱ—Šȱ–Ž—Žȱ˜œȱ“žÇ£Žœǰȱ
tornando-os menos dogmáticos.84 Esse seria o principal papel do pragmatismo
ꕘœàꌘȱ“ž—˜ȱŠ˜ȱ’›Ž’˜DZȱȃ•’–™Š›ȱŠœȱ–ŽœŠœȱ˜œȱ“žÇ£ŽœȄǰȱŠ£Ž›ȱŒ˜–ȱšžŽȱ˜œȱ
–Š’œ›Š˜œȱŽœŒ˜—ꎖȱŽȱšžŽȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ—¨˜ȱ™˜œœž’ȱž–ŠȱŽœ›žž›Šȱ•à’ŒŠȱ
autônoma.85 Questionar o discurso do “apenas apliquei a lei aos fatos” seria
Šȱ–Š’˜›ȱž’•’ŠŽȱ“ž›Ç’ŒŠȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠǯȱȱšžŽǰȱœŽ–ȱøŸ’ŠǰȱŽœ¤ȱ
longe de ser novidade: dezenas de autores e posições teóricas, há tempos,
questionam tais pressuposições. Hoje em dia, provavelmente ninguém,
juízes ou opinião pública, leva a sério tal positivismo ingênuo à la Escola
da Exegese, ainda que alguns magistrados, quando lhes seja conveniente,
não hesitem em apelar a esse argumento convencional.86

81
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 149.
82
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 41.
83
Exemplo disso é trazido pelo próprio Posner no livro The Problems of Jurisprudence (p. 179-184),
šžŠ—˜ǰȱ™Š›’—˜ȱŽȱ™›Žœœž™˜œ’³äŽœȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŠ›ž–Ž—ŠȱŽ–ȱ™›˜•ȱŽȱž–Šȱ–Š’˜›ȱ
Š–’œœ’‹’•’ŠŽǰȱ—˜ȱ’›Ž’˜ȱ—˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—˜ǰȱŽȱŒ˜—ęœœäŽœȱ’—Ÿ˜•ž—¤›’ŠœȱŽ¡›ŠÇŠœǰȱ™˜›ȱŽ¡Ž–™•˜ǰȱ
a partir da inoculação de “soros da verdade” e de falsas promessas de punições brandas.
84
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
85
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
86
Usamos aqui o termo “convencional” na acepção cunhada pelo sociólogo americano Charles
Tilly. No livro Why? – What Happens When People Give Reasons... and Why, o Professor de
›’—ŒŽ˜—ȱ™›˜™âœȱšžŠ›˜ȱŒŠŽ˜›’ŠœȱŽȱ›Š£äŽœȱŽȱšžŽȱž’•’£Š–˜œȱ™Š›Šȱ“žœ’ęŒŠ›ȱ—˜œœŠœȱŒ˜—ž-
tas. São elas as convenções, as histórias, os códigos e os relatos técnicos. Relatos técnicos são des-
crições minuciosas, frias, tendencialmente objetivas, acerca de acontecimentos do mundo. Um
parecer técnico, um laudo acerca de um acidente aéreo. Já os códigos são razões baseadas em
categorias, procedimentos, regras. Os argumentos jurídicos comumente são códigos, mas tam-
bém o são os códigos dos rituais cívicos ou religiosos, as maneiras pelas quais se torna inteli-
ÇŸŽ•ȱž–ŠȱŒŠ—³¨˜ȱŽŒǯȱ
’œà›’Šœȱœ¨˜ȱ›Ž•Š˜œȱŠ•Š–Ž—Žȱ™Žœœ˜Š’œȱŽȱœ’–™•’ęŒŠ˜œǰȱŒŠ››ŽŠ˜œȱ—Šœȱ
’—Šœȱ›Š–¤’ŒŠœǰȱšžŽȱ™›ŽŽ—Ž–ȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠ³äŽœȱ’—’Ÿ’žŠ’œǯȱ˜›ȱę–ǰȱŒ˜—ŸŽ—³äŽœȱœ¨˜ȱ›Š£äŽœȱ
que, desprovidas de conteúdo técnico, são aceitas muito mais por uma questão de adequação
do que de relação lógico-causal, e que costumam ser expressas em fórmulas estereotipadas
(“Deixe de ser bobo, menino”). Além de traçar as categorias de razões, Tilly defende que cada
ž–ȱ ˜œȱ ’™˜œȱ Žȱ ›Š£äŽœȱ Ž—‘Šȱ œŽžȱ ™›˜™àœ’˜ȱ Žœ™ŽŒÇꌘDZȱ šžŠ—˜ȱ ž–ȱ ŒŠœŠ•ȱ Žœ¤ȱ Ž–ȱ Œ›’œŽǰȱ Žȱ ˜ȱ
marido conta uma história (“Desde que arrumei meu novo emprego, tenho tido menos tempo
para nós [...]”), expressa seu desejo de reconciliação e de conservação do vínculo, ao passo que,
ao recorrer a uma convenção (“A culpa é minha, não sua”), está marcando uma posição de

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
48 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

O pragmatismo que realmente serve ao Direito, na visão de Posner,


—¨˜ȱ·ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱŠŒŠ¹–’ŒŠǰȱ—˜ŸŠȱ˜žȱŠ—’Šǰȱ–Šœȱž–ȱpragmatismo cotidiano.
Uma disposição de espírito “sem frescuras”, “direto à ação”, com pouca
™ŠŒ’¹—Œ’Šȱ™Š›ŠȱŽ˜›’Šœǯȱ¨˜ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱœŽ“Šȱ’—Œ˜–™ŠÇ-
vel com tal postura; é compatível, mas independente. As diferenças são
’—œ’žŒ’˜—Š’œǯȱȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ·ȱž–ȱ’œŒž›œ˜ȱŠŒŠ¹–’Œ˜ǰȱ·Œ—’Œ˜ǰȱ
expresso numa linguagem abstrusa, enquanto o pragmatismo cotidiano é,
simplesmente, uma postura prática de “resolvedor de problemas”. Numa
Œ˜—›Š™˜œ’³¨˜ȱ’•žœ›Š’ŸŠǰȱ˜œ—Ž›ȱ’£ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œŠȱꕘœàꌘȱ·ȱ˜ȱœž-
jeito que explica que o senso comum é um bom método para solucionar
problemas, enquanto o pragmatista cotidiano é quem vai lá e os resolve.87
Thomas Grey concorda em parte com Posner. Sustenta que o prag-
matismo jurídico pode ser defendido sem que se precise sequer conhecer
˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘǰȱ —˜Ÿ˜ȱ ˜žȱ Š—’˜ǯȱ™àœȱ ’—’ŒŠ›ȱ ˜œȱ ™˜—˜œȱ Ž–ȱ
comum aos dois pragmatismos — o contextualismo e o instrumentalismo
—, explica que tais pontos representam coisas parcialmente diferentes para
ŒŠŠȱ™›Š–Š’œ–˜ǯȱȱŒ˜—Ž¡žŠ•’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŠ·ȱ™˜ŽȱœŽ›ȱŠ‹œ˜›Ÿ’˜ȱ™Ž•˜ȱ
ecletismo autoconsciente do mundo do Direito, que se serve de teorias com
o propósito claro de produzir convencimento.
Em certa medida, diz Grey, o Direito aplicado, o Direito em ação,
não deixa de ser contextualista e antifundacionalista, pois incorpora uma
completa ausência de fundamentos últimos: respeitados certos limites ins-
titucionais e práticos (prazos, endereçamento, estilo de linguagem, apelo a
precedentes etc.), não defende um ideal último, mas apenas o interesse do
cliente ou a correção da sentença, fazendo uso de todas as peças possíveis.
ȱ’—œ›ž–Ž—Š•’œ–˜ȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ·ȱž–ŠȱŒ›Ç’ŒŠȱŠ˜ȱŽœŒŠ™’œ–˜ȱ™Ž›ŒŽ‹’˜ȱ—˜œȱ
temas clássicos — “quem somos”, “de onde viemos” —, em prol de uma
’•˜œ˜ęŠȱ–Š’œȱŸ˜•ŠŠȱ¥ȱŸ’Šȱ™›¤’ŒŠǯȱȱ’—œ›ž–Ž—Š•’œ–˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ
jurídico não é isso: é uma crítica ao formalismo jurídico, dentro de uma
™Ž›œ™ŽŒ’ŸŠȱŽȱ˜›—Š›ȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱž–ȱ’—œ›ž–Ž—˜ȱ™Š›Šȱž–ȱę–ǯ
Ora, continua Grey, se suas principais características são diferentes,
os pragmatismos não precisam ser defendidos conjuntamente. Sua pro-
™˜œŠȱ·ȱŠȱŽȱž–ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ•’‹Ž›˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǯ

’œ˜•Š–Ž—˜ȱŽȱŽȱŠŒŽ’Š³¨˜ȱŽȱž–ŠȱŽŸŽ—žŠ•ȱœŽ™Š›Š³¨˜ǯȱȱŠž˜›ȱœžœŽ—ŠȱšžŽȱ˜ȱŒ˜—Ě’˜ȱŽ—›ŽȱŠœȱ
ŒŠŽ˜›’ŠœȱŽȱ›Š£äŽœȱŽȱœžŠœȱ’Ž›Ž—Žœȱꗊ•’ŠŽœȱ·ȱŽ—¹–’Œ˜ȱŠ˜ȱ–ž—˜ȱ“ž›Ç’Œ˜DZȱŠœȱŽ–Š—Šœȱ
judiciais surgem em histórias, mas se resolvem em códigos — os quais, aptos a responderem à
imparcialidade exigida pelo Ordenamento Jurídico, são, todavia, incapazes de “curar” as per-
sonalíssimas feridas deixadas pelas lesões. Voltando ao tema do livro: razões como “apenas
apliquei a lei aos fatos”, inseridas no discurso jurídico, são convenções, razões estereotipadas
šžŽȱŠ™Ž•Š–ȱŠ˜ȱŽ—ŒŽ››Š–Ž—˜ȱ˜ȱ’¤•˜˜ȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱž–Šȱœž™˜œŠȱŠŽšžŠ³¨˜ȱ‹ŠœŽŠŠȱ—Šȱꐞ›Šȱ
institucional do magistrado. Fogem completamente à razão-padrão do mundo do Direito — o
código —, e, quase sempre, prestam-se a encerrar, de modo indevido e autoritário, um dis-
curso para o qual não se encontra, ou não se quer encontrar, uma razão baseada num código
imparcial. Cf. TILLY. WhyǵDZȱ‘Šȱ
Š™™Ž—œȱ‘Ž—ȱŽ˜™•Žȱ ’ŸŽȱŽŠœ˜—œǯǯǯȱŠ—ȱ‘¢ǯ
87
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 50-52.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
49

ȱŽ˜›’Šȱ“ž›Ç’ŒŠȱ·ȱ™›¤’ŒŠȱŽȱž–Šȱ–Š—Ž’›ŠȱšžŽȱŠȱ’•˜œ˜ęŠǰȱ™˜›ȱŽę—’³¨˜ǰȱ
“Š–Š’œȱ™˜Ž›¤ȱœŽ›ǯȱ•Š›˜ȱšžŽȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ™˜ŽȱœžœŒ’Š›ȱ™›˜‹•Ž–Šœȱꕘœàꌘœȱ
genuínos — pensemos no debate sobre os limites da vida, na discussão
acerca do aborto do feto anencefálico —, mas, aí, já são problemas de
’•˜œ˜ęŠȱŽœ™ŽŒž•Š’ŸŠȱtout court, não mais problemas jurídicos.
ȱŠž˜›ȱŽ¡Ž–™•’ęŒŠȱ—Šȱ˜›–ŠȱŽȱž–ȱŽ‹ŠŽȱŽ—›ŽȱŽ•Žȱ–Žœ–˜ȱȯȱŠŽžȱ
™›Š–Š’œŠȱŒž“˜ȱę•àœ˜˜ȱ™›ŽŽ›’˜ȱ·ȱŽ Ž¢ȱȯȱŽȱž–ȱŒ˜•ŽŠȱŒ›’œ¨˜ǯȱ–‹˜›Šȱ
’œŒ˜›Ž–ȱꕘœ˜ęŒŠ–Ž—ŽȱŽ–ȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ™˜—˜œȱǻ˜ȱ™Š™Ž•ȱ˜ȱ‘˜–Ž–ȱŽȱ
da razão, Deus), quando começam a conversar sobre o Direito, as concor-
dâncias são integrais. Ambos estão de acordo que o Direito é empreitada
terrena devotada a encontrar formas menos desagradáveis de lidar com
desavenças; concordam com a importância do Estado de Direito; estão de
acordo, ainda, que normas de conduta, criadas a partir de procedimentos
prévios, e aplicadas por agentes públicos responsáveis, com disputas
fatuais e interpretativas remetidas à resolução por juízes independentes,
são a melhor forma de lidar com essas desavenças.
žȱœŽ“ŠDZȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ·ǰȱ—˜ȱꗊ•ȱŠœȱŒ˜—Šœǰȱž–ŠȱŽ˜›’Šȱ
que, em si mesma, é de fácil aceitação pelos juristas práticos, não exigindo
qualquer prévio conhecimento ou opinião acerca das abstrusas discussões
šžŽȱ™˜›ȱŸŽ£ŽœȱŒŽ›ŒŠ–ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǯȱ–ŠȱŽ˜›’Šȱœ’—Ž•ŠǰȱŠ•ŸŽ£ȱ
banal.88
Outro autor que contribui para o debate é David Luban. Para ele, do
modo como Posner e Grey expõem o pragmatismo jurídico — como uma
teoria que advoga, simplesmente, o ecletismo metodológico, o antiformalismo
Žȱ˜ȱ›ŠŒ’˜ŒÇ—’˜ȱ™ŠžŠ˜ȱ™˜›ȱ›Žœž•Š˜œȱȯǰȱ—¨˜ȱ‘¤ȱŒ˜–˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘ-
œàꌘȱœŽ›ȱø’•ȱŠ˜ȱ’›Ž’˜ǯȱŽȱ˜œœŽȱŠ™Ž—Šœȱ™˜›ȱ’œœ˜ǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ
seria incontroverso porque pouco corajoso. Só que o próprio Posner, em
outros lugares, não defende apenas estas platitudes: toma posições em
›Ž•Š³¨˜ȱŠȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ™˜—˜œȱꕘœàꌘœȱ™˜•¹–’Œ˜œȱǻŽŽ—Žȱž–ŠȱŠ™›ŽŽ—œ¨˜ȱ
behaviorista dos estados mentais, um determinismo moderado em relação
ao livre arbítrio, uma concepção econômica de racionalidade etc.).
E não teria como ser diferente. Embora, sustenta Luban, para
efeitos práticos, nenhuma questão jurídica possa ser decidida em termos
ꕘœàꌘœȱȯȱž–ȱ“ž’£ȱ—¨˜ȱŸŠ’ȱœŽ—Ž—Œ’Š›ȱŠ™Ž—ŠœȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱŽ–ȱŒ’Š³äŽœȱŽȱ
Kant —, o Direito, mesmo quando entendido como aplicação dessa teoria
antiformalista, eclética e orientada a resultados, não pode simplesmente
Š›ȱŠœȱŒ˜œŠœȱŠȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱšžŽœäŽœȱꕘœàꌊœȱšžŽȱ•‘Žȱœž‹“Š£Ž–ǯȱȱ•’œŠȱ
é extensa: debates sobre o paternalismo ou não paternalismo do Estado,

88
GREY. Freestanding Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new
Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 254-274.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
50 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

a função geral e especial da pena,89 a vedação da autoincriminação.90 Para


todos esses conceitos essenciais ao Direito pressupõe-se uma posição
ꕘœàꌊǯ
O debate entre Thomas Grey e seu amigo cristão só pôde chegar a
‹˜–ȱŽ›–˜ǰȱ—Šȱ˜™’—’¨˜ȱŽȱž‹Š—ǰȱ™˜›šžŽȱꌘžȱ—˜ȱ™•Š—˜ȱŠ‹œ›Š˜ȱŠȱŒ˜—-
cordância em relação a ideias gerais relacionadas ao Estado de Direito. Se
ingressasse em terreno igualmente jurídico, porém mais concreto — por
exemplo, a pergunta sobre se homossexuais devem ter direito a se casar —,
‘ŠŸŽ›’Šȱž–ȱŒ‘˜šžŽȱŽȱ™˜œ’³äŽœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱ‹ŠœŽŠŠœȱŽ–ȱ˜™³äŽœȱꕘœàꌊœǯȱ
ŠÇȱŠȱŒ˜—Œ•žœ¨˜DZȱŽ–‹˜›Šȱ—¨˜ȱœŽȱŽŒ’Šȱ“ž›’’ŒŠ–Ž—ŽȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ—Šȱ’•˜œ˜ęŠǰȱ
e mesmo que se recorra a uma conceituação básica de pragmatismo jurídico,
œŽ–™›Žȱ‘ŠŸŽ›¤ȱšžŽœäŽœȱꕘœàꌊœȱ™˜•¹–’ŒŠœȱ™Ž›–ŽŠ—˜ȱ˜ȱžœ˜ȱŽȱŒ˜—ŒŽ’˜œȱ
“ž›Ç’Œ˜œǯȱȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ—¨˜ȱ·ȱ’—ø’•ȱ—Ž–ȱŠ•‘Ž’˜ȱŠ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ
“ž›Ç’Œ˜ǰȱ—Šȱ–Ž’ŠȱŽ–ȱšžŽȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ—¨˜ȱœŽȱ’œŠ—Œ’Šȱǻ–ž’˜Ǽȱ˜ȱ’›Ž’˜ǯȱ
™ŽœŠ›ȱŽȱ—¨˜ȱœŽ›ȱǻ—Ž–ȱŽŸŽ›ȱœŽ›Ǽȱž–ȱœž‹Ȭ›Š–˜ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱŠ™•’ŒŠŠǰȱŽȱŽȱ
não se submeter a seus códigos nem de se ocupar das mesmas questões,
o Direito, “pragmático” ou não, não existiria sem ela.91
˜œœŠȱ ™˜œ’³¨˜ȱ —ŽœœŽȱ Ž‹ŠŽȱ Ž—Žȱ Šȱ ›Ž•Š’Ÿ’£Š›ȱ Šę›–Š³äŽœȱ šžŽȱ
ŸŽŽ–ȱ—Šȱꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠǰȱ—Šȱ•’—‘ŠȱŽȱ˜œ—Ž›ȱŽȱ ›Ž¢ǰȱž–Šȱ•’–’ŠŠȱ
relevância. A questão é saber o quão limitada é essa relevância que se está
postulando, e, principalmente, impedir que “limitada” seja sinônimo, na
prática, de irrelevância.
Eis a posição deste livro: ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ—¨˜ȱ·ȱ’—ø’•ȱŠ˜ȱŽ‹ŠŽȱ
acerca do pragmatismo jurídico. É perfeitamente possível aplicar a matriz pragma-
tista — consequencialismo, antifundacionalismo, contextualismo — para examinar
institutos jurídicos e decisões judiciais, e aproximá-los ou afastá-los dos resultados
da incidência de uma teoria do pragmatismo jurídico.92

89
David Luban fala que o sentido especial da pena (desestimular a prática do crime por outras
pessoas) seria juridicamente pragmatista por excelência — olha para frente, importando-se
com as consequências do ato. Já o sentido especial, de retribuir o mal causado, só poderia ser
Ž—Ž—’˜ȱŒ˜–ȱŠ•ž–Šȱ™Ž›ŒŽ™³¨˜ȱꕘœàꌊȱ™›˜ž—Šǰȱ™˜›šžŽǰȱŠ˜ȱœŽȱ’–Š’—Š›ȱšžŽȱž–Šȱ™Žœœ˜Šȱ
“merece” uma punição, isso só pode ocorrer à conta de sua dignidade humana, e, ainda, com
˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŽȱ›ŽŠę›–Š›ȱŠȱ’—’ŠŽȱŠȱ™Žœœ˜Šȱ˜Ž—’Šǯȱǯȱǯȱ‘ŠȂœȱ›Š–Š’ŒȱŠ‹˜žȱ
Legal Pragmatism. In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of Pragmatism: new Essays on Social
Thought, Law, and Culture, p. 292.
90
ȱ Ž›’Šȱ ’ÇŒ’•ȱ “žœ’ęŒŠ›ȱ Šȱ ŸŽŠ³¨˜ȱ Šȱ Šž˜’—Œ›’–’—Š³¨˜ȱ Ž–ȱ Ž›–˜œȱ ™ž›Š–Ž—Žȱ ™›Š–¤’Œ˜œǯȱ
˜ȱ Œ˜—›¤›’˜DZȱ –˜œ›Š›ȬœŽȬ’Šȱ ø’•ȱ ǻŠ˜ȱ –Ž—˜œǰȱ Ž—›˜ȱ Žȱ Œ˜—ŒŽ’˜ȱ Žȱ ž’•’ŠŽȱ šžŽȱ œ’—’ęšžŽȱ
ȃ–¤¡’–ŠȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ™Ž›œŽŒžà›’ŠȄǼȱœŽȱœŽȱ™žŽœœŽȱžœŠ›ȱ™›˜ŸŠȱ™›˜ž£’Šȱ™Ž•˜ȱ’—’ŸÇž˜ȱŒ˜—›Šȱ
Ž•Žȱ–Žœ–˜ǯȱȱŸŽŠ³¨˜ȱœàȱœŽȱ“žœ’ęŒŠ›’ŠȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱŽ–ȱ—˜³äŽœȱꕘœàꌊœȱŠŒŽ›ŒŠȱŠȱ’—’ŠŽȱ
‘ž–Š—Šǯȱǯȱǯȱ‘ŠȂœȱ›Š–Š’ŒȱŠ‹˜žȱŽŠ•ȱ›Š–Š’œ–ǯȱIn: DICKSTEIN (Org.). The
Revival of Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 292.
91
ȱ ǯȱ ‘ŠȂœȱ ›Š–Š’Œȱ Š‹˜žȱ ŽŠ•ȱ ›Š–Š’œ–ǯȱ In: DICKSTEIN (Org.). The Revival of
Pragmatism: new Essays on Social Thought, Law, and Culture, p. 275-303, passim.
92
Por ex., como se faz em Thamy Pogrebinschi (A normatividade dos fatos, as consequências po-
líticas das decisões judiciais e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito
Administrativo, p. 181-193).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
51

Talvez não seja necessário estudá-lo em profundidade, mas alguma


noção é útil, até porque se está falando de certa semelhança de família.
Expandido o argumento acerca da relevância limitada, nem mesmo a
’•˜œ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ·ȱ’—Ž’›Š–Ž—Žȱø’•ȱ¥ȱ™›¤’ŒŠǯȱꗊ•ǰȱœŽȱŽœŠȱ™âŽȱœ˜‹›Ž-
viver até aqui com tantos raciocínios incompletos e, muitas vezes, retóricos,
por que seria necessária, logo agora, uma depuração metódica a partir de
ž–ȱœŠ‹Ž›ȱŽœ›Š—‘˜ȱŒ˜–˜ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱŠ™•’ŒŠŠȱǻ›Š£¨˜ȱ™›¤’ŒŠǼȱ˜žȱŠȱŽ˜›’Šȱ
da argumentação? Milhares de desembargadores puderam viver até hoje
com seus “onde a lei não distingue, não cabe ao intérprete distinguir” e
œŽžœȱȃŠȱ•Ž’ȱ·ȱŒ•Š›ŠȄǯȱ¨˜ȱ·ȱ™˜›ȱ’œœ˜ȱšžŽȱœŽȱŸŠ’ȱŽ¡Œ•ž’›ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ
dos currículos acadêmicos.93
A questão é compreender que o pragmatismo jurídico só tem a ga-
—‘Š›ȱœŽȱœžŠȱŽŽœŠȱœŽȱę£Ž›ȱ™›ŽŒŽ’ŠȱŽȱž–Šȱ’—›˜ž³¨˜ȱŠ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ
ꕘœàꌘǯȱȱ’œœ˜ȱŸŠ•Žȱ–Žœ–˜ȱšžŠ—˜ȱœŽȱŠŒŽ’ŠȱšžŽȱœ¨˜ȱ˜’œȱ™›Š–Š’œ–˜œȱ
’Ž›Ž—Žœǯȱ–ȱꕑ˜ȱ·ȱ’Ž›Ž—ŽȱŽȱž–ȱ™Š’ǰȱ–Šœǰȱ™Š›ŠȱŽ—Ž—¹Ȭ•˜ȱŠȱž—˜ǰȱ
é interessante analisar a história da família.
A grande prova da utilidade, e, mesmo, da conveniência do estudo
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ—˜ȱŽ‹ŠŽȱœ˜‹›Žȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ·ȱšžŽǰȱ
em todas as obras a respeito deste, aquele está presente, nem que seja para
provar que é inútil, ou não tão útil (é uma autonegação, algo metalinguís-
’ŒŠǰȱŠȱ’–™˜›¦—Œ’ŠȱŠȱŽ˜›’Šȱꕘœàꌊȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜Ǽǯȱ
Ora, por que investir tanta energia na comprovação de que uma
Œ˜’œŠȱ—¨˜ȱ·ȱø’•ǵȱ˜›ȱšžŽȱ—¨˜ȱŠœŠ›ȱŽœœŽȱŽ–™˜ǰȱŽ–ȱŸŽ£ȱŽȱŠę›–Š›ȱšžŽȱ
˜ȱꕑ˜ȱ—¨˜ȱ·ȱ˜ȱ™Š’ȱȯȱŒ˜’œŠȱŒ˜–ȱŠȱšžŠ•ȱ˜˜œȱŽœŠ–˜œȱŽȱŠŒ˜›˜ȱȯǰȱ™Š›Šȱ
ŽœŒ˜‹›’›ȱŽ–ȱšžŽȱ™˜—˜œȱ˜ȱꕑ˜ȱ™Š›ŽŒŽȱŒ˜–ȱ˜ȱ™Š’ǰȱŽȱŽ–ȱšžŽȱ–Ž’ŠȱŽœœŠȱ
ŒŠ›ŠȱŽ—·’ŒŠȱ™˜Žȱœ’—’ęŒŠ›ȱŠ•˜ȱŽȱ‹˜–ȱ˜žȱŽȱ›ž’–ȱ™Š›Šȱ˜ȱ–ž—˜ǵ

1.2.5 Sobre o uso das expressões “argumento prático”,


“argumento pragmático” e “argumento
consequencialista”
Pergunta-se: é admissível a utilização da expressão “argumento
pragmático” de modo fungível a “argumento consequencialista”?
Em rigor, não. Acrescente-se ao estudo, ainda, a expressão “argu-
mento prático”, que, por vezes, aparece na literatura. 94 “Argumento

93
ȱ ȱ›Žœ™Ž’˜ȱŠȱž’•’ŠŽȱŠȱŠ™›ŽŽ—œ¨˜ȱŽȱŒ˜—ŒŽ’˜œȱꕘœàꌘœȱ™Ž•˜œȱ“žÇ£ŽœȱŽȱŽ–Š’œȱ˜™Ž›Š˜›Žœȱ
’—œ’žŒ’˜—Š’œȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ǰȱ Ÿǯȱ  ǯȱ žœȱ ˜ž›ȱ žŽœȱ ‹Žȱ ‘’•˜œ˜™‘Ž›œǵDZȱ ŒŠ—ȱ ‘Ž¢ȱ ‹Žȱ
Philosophers?.
94
ÁVILA. Argumentação jurídica e a imunidade tributária do livro eletrônico. Diálogo Jurídico.
ŠȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱŸ’•Šȱ™›˜™˜œŠȱ—ŽœŽȱŠ–˜œ˜ȱŠ›’˜ǰȱ˜œȱŠ›ž–Ž—˜œȱȃ™›¤’Œ˜œȄǰȱšžŽȱœŽȱ’Ÿ’-
dem quanto ao conteúdo e quanto ao resultado, são “não institucionais”, ou seja, “decorren-
tes apenas do sentimento de justiça que a própria interpretação eventualmente evoca” (p. 7).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
52 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

prático”, “argumento consequencialista” e “argumento pragmático”


œ’—’ęŒŠ–ȱŒ˜’œŠœȱ’Ž›Ž—Žœǯȱ˜Ž•ȱ›žŒ‘’—Ž›ǰȱ™Š›’—˜ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱŽ›Š•ǰȱ
esclarece: argumentos práticos, descendentes de Aristóteles, são os que
intencionam levar o auditório a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa,
contrapondo-se aos argumentos teóricos, que são os que objetivam conven-
ŒŽ›ȱ˜ȱŠž’à›’˜ȱŠŒŽ›ŒŠȱŠȱŸŽ›ŠŒ’ŠŽȱ˜žȱŠȱŠ•œ’ŠŽȱŽȱž–ŠȱŠę›–Š³¨˜ǯ95
Além disso, é possível imaginar argumentos práticos não consequen-
cialistas, ou seja, argumentos que, fundados em dados da realidade, não
œ’—’ęšžŽ–ȱŠ™Ž•˜ȱ¥œȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŽȱž–ŠȱŠ³¨˜ǯȱ¡Ž–™•˜DZȱ˜ȱž—’ŒÇ™’˜ȱ
de Itapipoca não pode concretizar a tutela antecipada consistente na inter-
nação do munícipe num hospital dos Estados Unidos para tratamento de
um raro caso de câncer porque não possui verba.
A chamada “reserva do possível”96 é argumento prático não con-
sequencialista. Não é difícil, no entanto, torná-la argumento consequen-
cialista. Basta apelar às consequências negativas da extensão daquele
precedente. Se o sistema público de saúde não suporta uma única decisão,
ŽœŽ—¹Ȭ•Šǰȱ™Ž•ŠȱŸ’Šȱ˜ȱŽ¡Ž–™•˜ǰȱŠȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ˜ž›˜œȱŒŠœ˜œǰȱœ’—’ęŒŠ›’Šȱ
quebrar as contas municipais por alguns anos, o que deve ser evitado.
Por sua vez, um argumento pragmático não é, apenas, uma razão
“pé no chão” (como o é o argumento prático); é um argumento contextua-
•’œŠǰȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠǰȱŽȱšžŽȱ—¨˜ȱœŽȱ‹ŠœŽ’ŠȱŽ–ȱž—Š–Ž—˜œȱ“žœ’ęŒŠ˜›Žœȱ
últimos.

Em outro trecho (p. 18), ele esclarece que “Os argumentos não-institucionais não fazem refe-
rência aos modos institucionais de existência do Direito. Eles fazem apelo a qualquer outro
elemento que não o próprio ordenamento jurídico. São argumentos meramente práticos que de-
pendem de um julgamento, feito pelo próprio intérprete, sob pontos de vista econômicos, políticos e/ou
éticos. As consequências danosas de determinada interpretação e a necessidade de atentar para os
planos de governo enquadram-se aqui” (grifos nossos). Nesse trecho, a explicação do uso do
termo dá a entender que o argumento prático confunde-se com o argumento consequencialista,
o que não é o caso, como deixaremos claro ao longo do livro.
95
Noel Struchiner apud ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: sub-
sídios para uma compatibilização, p. 4, nota de rodapé n. 8.
96
ȱ ȃȱ Œ˜—Œ›ŽŠȱ Š›Š—’Šȱ Žȱ ’›Ž’˜ȱ ž—Š–Ž—Š•ȱ œž›Žȱ Œ˜–˜ȱ Ž™Ž—Ž—Žȱ ˜œȱ –Ž’˜œȱ ꗊ—ŒŽ’›˜œȱ
estatais disponíveis. A ‘impossibilidade econômica’ apresenta-se como limite — necessário —
da garantia (prestacional) dos direitos fundamentais” (BÖCKENFÖRDE. Escritos sobre derechos
fundamentalesǰȱ™ǯȱŜśǼǯȱȱŽ¡™›Žœœ¨˜ȱȃ›ŽœŽ›ŸŠȱ˜ȱ™˜œœÇŸŽ•ȄǰȱŽȱŠœŒŽ—¹—Œ’ŠȱŽ›–¦—’ŒŠǰȱœ’—’ęŒŠȱ˜ȱ
•’–’Žȱꗊ—ŒŽ’›˜ȱŠ˜ȱŒžœŽ’˜ȱ™ø‹•’Œ˜ȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱŠȱ™›ŽœŠ³äŽœǯȱ
˜“ŽȱŽ–ȱ’Šǰȱ˜ȱ›ŠŠ–Ž—˜ȱŒ’Ž—-
ÇꌘȱŠȱ›ŽœŽ›ŸŠȱ˜ȱ™˜œœÇŸŽ•ǰȱŽȱŽȱœžŠœȱ’–™•’ŒŠ³äŽœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱŽȱ˜›³Š–Ž—¤›’ŠœǰȱŒŽ—›Š•’£Š˜ȱ—˜ȱ
Ž‹ŠŽȱŠŒŽ›ŒŠȱŠȱœ’—’ŒŠ‹’•’ŠŽȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱ™›ŽœŠŒ’˜—Š’œǰȱ·ȱ™›Š’ŒŠ–Ž—Žȱ’—ę—¤ŸŽ•ǯȱ™Ž—Šœȱ
alguns exemplos: GOUVÊA. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas
de implementação dos direitos prestacionais, passim (para a reserva do possível, p. 19-21);
BARCELLOS. ȱŽęŒ¤Œ’Šȱ“ž›Ç’ŒŠȱ˜œȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š’œ: o princípio da dignidade da pes-
soa humana; SARLET. ȱŽęŒ¤Œ’Šȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œ; CAPITANT. ŽœȱŽěŽœȱ“ž›’’šžŽœȱŽœȱ
droits fondamentaux en Allemagne; GALDINO. Introdução à teoria dos custos dos direitos: direitos
não nascem em árvores; GIMÉNEZ. La exigibilidad de los derechos sociales; TORRES. O direito
ao mínimo existencial; HOLMES; SUNSTEIN. The Cost of Rights: why our Liberties Depend on
Taxes; TAVEIRA. —Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱŽȱŽęŒ¤Œ’Šȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œ: a responsabilidade do Estado
na garantia dos direitos sociais.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
53

¡’œŽ–ǰȱ—Šž›Š•–Ž—Žǰȱ˜ž›Šœȱ˜™’—’䎜ǯȱ
¤ȱšžŽ–ȱ’Ž—’ęšžŽȱȃŠ›ž-
mento pragmático” a “argumento consequencialista”,97 e outros para quem
o “argumento pragmático” é um gênero do qual “argumento consequen-
cialista” é uma de suas espécies.98
Esta última posição, dentro do desenvolvimento teórico aqui pro-
posto, pode ser adotada, mas com restrição, pois o argumento consequen-
cialista é um argumento pragmático a menor, quer dizer, um argumento
pragmático incompleto, já que ausentes suas duas outras características.
Seja como for, não pretendemos gastar muita energia nesse tipo
de debate. A teoria jurídica brasileira não deve mergulhar em discussões
analíticas para além do útil.99 Uma coisa é usar o mesmo nome para desig-
nar duas realidades diferentes, o que é um equívoco e deve ser evitado,100
porque a confusão é deletéria não apenas à higidez dos conceitos, mas à
prática. Outra é usar vários nomes para se referir a idênticas realidades
— não é o ideal, mas essa criatividade doutrinária não causa problemas
œŽȱŠȱ›ŽŽ›¹—Œ’ŠȱŸ’Ž›ȱŒ˜—Ž¡žŠ•’£ŠŠǯȱž›ŠǰȱŠę—Š•ǰȱ·ȱžœŠ›ȱ—˜–Žȱ’¹—’Œ˜ȱ
para realidades muito próximas: talvez não corresponda a nenhuma utopia
Žȱ™›ŽŒ’œ¨˜ȱŒ’Ž—Çꌊǰȱ–Šœǰȱ—˜ŸŠ–Ž—Žǰȱ—¨˜ȱœŽȱŸŠ’ȱ“žœ’ęŒŠ›ȱ—Ž—‘ž–ŠȱŒ›ž-
zada em prol da pureza conceitual se o custo da transição for alto, ou se
o resultado prático for desprezível.
É o caso de se aplicar a máxima pragmática à questão: que diferença
vai fazer, ao mundo da aplicação do Direito, se as expressões “argumento

97
ȱ 1ȱ˜ȱŒŠœ˜ȱŽȱ‘ŠÊ–ȱŽ›Ž•–Š—ǯȱžŠȱŽę—’³¨˜ȱ™Š›ŠȱȃŠ›ž–Ž—˜ȱ™›Š–¤’Œ˜ȄȱŠ£ȱŒ˜–ȱšžŽȱŽœŽȱœŽȱ
confunda com o argumento consequencialista: “Chamo de argumento pragmático um argumento
das conseqüências que avalia um ato, um acontecimento, uma regra ou qualquer outra coisa,
consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis; transfere-se assim todo o valor
destas, ou parte dele, para o que é considerado causa ou obstáculo” (PERELMAN. Retóricas,
™ǯȱŗŗǰȱ›’˜œȱ—˜ȱ˜›’’—Š•Ǽǯȱ¨˜ȱŒ˜—Œ˜›Š–˜œȱŒ˜–ȱ˜ȱŠž˜›ȱ™˜›šžŽȱŠ•ȱŽę—’³¨˜ȱŒ˜››Žœ™˜—ŽȱŠȱ
apenas uma das características do pragmatismo, se bem que a mais destacada, que é o con-
œŽšžŽ—Œ’Š•’œ–˜ǯȱȱŽę—’³¨˜ȱŽȱŠ›ž–Ž—˜ȱ™›Š–¤’Œ˜ȱ·ȱŠ•˜ȱŠ•·–ǰȱ™˜’œȱ’—Œ˜›™˜›Šȱ˜˜œȱ˜œȱ
elementos característicos da “matriz pragmatista”.
98
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridicaDZȱœŠ’ǰȱ™ǯȱşŖǯȱŽ—˜—’ȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱ—Šȱ•Ž–Š—‘Šǰȱ
usa-se “argumentação orientada às consequências” (folgenorientierte Argumentation) em substitui-
ção a “argumento consequencialista” (consequentialist argumentǼǰȱ˜™³¨˜ȱ—˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—ŠǯȱꛖŠǰȱ
ainda, que, embora “argumento pragmático” seja gênero do qual “argumento consequencialista”
é uma das espécies, na maioria das vezes utiliza-se, de modo indistinto, um pelo outro.
99
Comentando acerca de Paul Feyerabend, Virgílio Afonso da Silva anotou o seguinte (com o
itálico do original e o sublinhado adicionado): “A leitura do trabalho de Feyerabend é extre-
–Š–Ž—Žȱ›ŽŒ˜–Ž—¤ŸŽ•ǰȱ™›˜Ÿ˜ŒŠ—ŽȱŽȱ’—œ’Š—Žǰȱ™›’—Œ’™Š•–Ž—ŽȱŒ˜–˜ȱ˜›–ŠȱŽȱŽœ–’œ’ęŒŠ›ȱ
um pouco o papel da metodologia no progresso da ciência. Apesar de seus exageros — como
’£Ž›ȱšžŽȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ’Ž›Ž—³ŠȱŠ•ž–ŠȱŽ—›Žȱ–’˜œȱŽȱŽ˜›’ŠœȱŒ’Ž—Çꌊœȱȯǰȱsuas provocações servem,
pelo menos, para evitar que o apego ao método sirva de escudo para que não sejam discutidos
problemas de conteúdo” (SILVA. Interpretação constitucional e sincretismo metodológico. In:
SILVA (Org.). Interpretação constitucional, p. 139, nota de rodapé n. 79). A mencionada obra de
Feyerabend é seu clássico: Contra o método (São Paulo: UNESP, 2007).
100
Nesse sentido, ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱŠȱŽę—’³¨˜ȱ¥ȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ˜œȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱ“ž›Ç’Œ˜œǯȱ
4. ed., passim.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
54 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

pragmático” e “argumento consequencialista” forem diferenciadas? Muito


pouca. Assim, registramos a polêmica conceitual, mas optamos pelo uso
fungível das duas expressões.
Portanto, neste livro, “argumento pragmático” e “argumento con-
sequencialista” são sinônimos.101

1.3 O pragmatismo como teoria e metateoria do Direito


Advogados são seres pragmatistas. Recebem o cliente, ouvem o
relato, e, já nesse momento, recortam dados, constroem argumentos,
tudo para apresentar o caso do modo mais propício a vencer a demanda.
™Ž›ŠȬœŽȱ ›ŠŒ’˜ŒÇ—’˜ȱ ˜ŒŠ˜ȱ —Šȱ ™›˜ž³¨˜ȱ Žȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šȱ Žœ™ŽŒÇꌊDZȱ ˜ȱ
convencimento da autoridade.102
Juízes e demais julgadores, embora regulados por certa pretensão
de correção,103 também atuam, às vezes, como pragmatistas. Projetam
consequências, optam por uma delas, e depois vão buscar, no momen-
to de descrever circunstâncias fáticas, e no de articular argumentos,
aqueles que mais harmoniosamente conduzam à decisão escolhida.104

101
ȱ ¨˜ȱž’•’£Š›Ž–˜œȱŠȱŽ¡™›Žœœ¨˜ȱȃŠ›ž–Ž—˜ȱ™›¤’Œ˜Ȅȱ™˜›ȱŒ˜—œ’Ž›¤Ȭ•ŠȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—Žȱ’œ’—ŠȱŠœȱ
realidades conotadas pelas expressões “argumento pragmático” e “argumento consequencialista”.
102
Mesmo na advocacia preventiva, o raciocínio é o mesmo. Trata-se de adequar práticas, de modo
a evitar qualquer tipo de consequência negativa havida por parte das autoridades controladoras.
103
ȱ ȱ Ž–Šȱ Šȱ ™›ŽŽ—œ¨˜ȱ Žȱ Œ˜››Ž³¨˜ȱ ·ȱ Œ˜–™•Ž¡˜ȱ ™Š›Šȱ œŽ›ȱ ›ŠŠ˜ȱ Ššž’ȱ Žȱ –˜˜ȱ œžęŒ’Ž—Žǯȱ ŠœŠȱ
dizer que ele se baseia na ideia de que o discurso jurídico seria um caso especial do discurso
prático geral, diferenciando-se desse por algumas características (a importância do precedente
e da norma jurídica). Assim como o discurso prático possui uma pretensão de correção moral,
que decorre de certos pressupostos advindos da comunicação entre as pessoas — quando
estabelecemos um diálogo, a comunicação só se torna possível porque há uma pressuposição de
que estejamos falando a verdade —, também isso valeria para o discurso prático em geral (que
é comunicação, só que de regras de agir) e, naturalmente, para o discurso jurídico, como caso
especial deste. O juiz pode até não fazer justiça no caso concreto, mas, segundo essa teoria, deve
œŽ–™›Žȱ™›ŽŽ—Ž›ȱŠ£¹Ȭ•Šǯȱȱ›Ž•Š³¨˜ȱŽ—›Žȱ’›Ž’˜ȱŽȱ–˜›Š•ǰȱŽ–ŠȱŽœœŽ—Œ’Š•ȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜ǰȱ
deixa de ser uma relação binária (“existe” ou “não existe”) e passa a ser um elemento condicional
(é objetivo a ser alcançado). Sobre pretensão de correção, consultar Robert Alexy (La tesis del caso
especial. Isegoría). Ainda, na doutrina brasileira, v. DUARTE. Teoria do discurso e correção normativa
do direito: aproximação à metodologia discursiva do direito. Sobre o debate da relação entre
Direito e moral, v. VÁZQUEZ (Org.). Derecho y moral: ensayos sobre un debate contemporáneo.
104
Nesse sentido, trecho de voto do Ministro Marco Aurélio de Mello, do Supremo Tribunal Federal,
no Recurso Extraordinário nº 111.787, publicado no Diário de Justiça, 13 set. 1991 (RTJ, 136/1292):
“Ao examinar a lide, o magistrado deve idealizar a solução mais justa, considerada a respectiva
formação humanística. Somente após, cabe recorrer à dogmática para, encontrado o indispensá-
vel apoio, formalizá-la”. Em idêntico sentido, ver trecho de seu voto no RE nº 140.265-2, julgado
em 20.10.1992, DJ, 28 maio 1993. Conferir, ainda, a opinião do chanceler James Kent: “Eu vejo
para onde a justiça e o bom senso estão e, então, sento e procuro as autoridades até esgotar
meus livros; de vez em quando, surpreendo-me embaraçado por uma regra técnica, mas, quase
sempre, encontro princípios que se adaptam à minha visão daquele caso [...]” (KENT, James. An
—™ž‹•’œ‘ŽȱŽĴŽ›ȱ˜ȱ‘Š—ŒŽ••˜›ȱ Š–Žœȱ Ž—ǯ The Green Bag, p. 210 apud SCALIA; GARNER.
Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 27). Comparar também com trecho de artigo

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
55

Compreensivelmente, nenhuma dessas duas categorias gostaria de assim


ser percebida. Não seriam meros engenheiros da persuasão, ou “decidi-
dores” ex post, mas lidariam com um tipo especial de racionalidade — a
racionalidade jurídica —, desenvolveriam teses, articulariam princípios,
destacariam coerências sistemáticas, sublinhariam artigos de lei, tudo para
que, em concreto, fosse feita a justiça, palavra que, não por outra razão,
costuma enfeitar, em letra maiúscula, a retórica das petições, às vezes
ŠœœŠœœ’—ŠŠȱ™˜›ȱŸ¤›’ŠœȱŽ¡Œ•Š–Š³äŽœȱŠ˜ȱꗊ•ǯȱ
É dizer, sem medo do trocadilho: na prática, somos todos pragma-
tistas jurídicos.105 106
Resta saber o que é isso que somos.
Em primeiro lugar, a advertência de sempre: a locução pragmatismo
jurídico é esponjosa.107 Já esclarecemos que a expressão, quando utilizada
em discussões sobre interpretação jurídica, é um “termo guarda-chuva”,
que acoberta uma série de visões diferentes acerca do Direito.108

do juiz Richard Posner, um dos maiores defensores do pragmatismo jurídico como teoria da
adjudicação, no qual relata a forma como decide os casos que tem diante de si: “O modo como
me aproximo de um caso como juiz [...] é, em primeiro lugar, perguntar a mim mesmo o que
seria um resultado razoável, de bom senso, tal como um leigo acharia e, havendo respondido a
essa questão, perguntar se tal resultado está claramente proibido pelo texto da Constituição ou
das leis, pela jurisprudência majoritária, ou por outra restrição atuante sobre a discricionarie-
dade judicial” (POSNER. Tap Dancing. The New Republic Online).
105
“O pragmatismo é a teoria operacional implícita da maioria dos bons advogados” (GREY.

ŽŠ›ȱ ‘Žȱ ˜‘Ž›ȱ ’ŽDZȱ Š••ŠŒŽȱ ŽŸŽ—œȱ Š—ȱ ›Š–Š’œȱ ŽŠ•ȱ ‘Ž˜›¢ǯȱ Southern California Law
Review, p. 1590).
106
Talvez, hoje, mais do que nunca, ao menos no que diz respeito à advocacia. Embora os dados
œŽȱ›Žę›Š–ȱŠ˜œȱǰȱ‘¤ȱŒ˜—œ’Ž›¤ŸŽ•ȱ–ŠœœŠȱŽȱŽœž˜œȱšžŽȱŠ™˜—ŠȱšžŽǰȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ
Š˜›Žœȱ›Ž•ŠŒ’˜—Š˜œȱ¥ȱ›ŽŠ•’ŠŽȱ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱŠȱŠŸ˜ŒŠŒ’Šȱȯȱ˜ȱ—ø–Ž›˜ȱŒ›ŽœŒŽ—ŽȱŽȱŠŸ˜Š˜œǰȱ
a cultura de que quem traz o cliente é o que vai receber a maior parte dos honorários, a maior
instabilidade na relação entre cliente e advogados, havendo sempre concorrência entre
todos os escritórios —, os advogados cada vez menos sejam capazes de negar pedidos ou
sugestões de seus contratantes. Desse modo, tornam-se pragmatistas-instrumentalistas não
Š™Ž—Šœȱ ™˜›šžŽȱ Ÿ¨˜ȱ Š£Ž›ȱ œŽ“Šȱ ˜ȱ šžŽȱ ˜›ȱ šžŽȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ȱ Ž¡ħŠȱ ™Š›Šȱ ™Ž›œŽž’›ȱ ˜œȱ ’—Ž›ŽœœŽœȱ Žȱ
seus representados, mas porque vão fazer tudo o que for necessário para concretizar esses
mesmos interesses, incluindo manipular a lei e todos os argumentos possíveis, só parando
diante de ilegalidades ou inconstitucionalidades óbvias (sendo que até essas noções podem
ser generosamente estendidas). A noção de advogado devotado aos interesses do cliente, mas
também ao bem comum, capaz de rejeitar pretensões absurdas, é, cada vez mais, substituída
pela do advogado “engenheiro de argumentos jurídicos”, que vai fazer tudo o que for
—ŽŒŽœœ¤›’˜ȱ™Š›ŠȱŠ—‘Š›ȱŠȱŒŠžœŠȱȯȱŠ·ȱ™˜›šžŽǰȱœŽȱ—¨˜ȱ˜ȱę£Ž›ǰȱ˜ž›˜ȱ˜ȱŠ›¤ǯȱŠ’œȱœ˜‹›Žȱ˜ȱŽ–Šȱ
v. KISCHER, Robert K. Legal Advice as Moral Perspective. Georgetown Journal of Legal Ethics,
p. 223 et seq. Ler, ainda, Brian Z. Tamanaha (Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law,
p. 133-155. cap. 8 - Instrumentalism in the Legal Profession).
107
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 240.
108
SMITH. The Pursuit of Pragmatism. Yale Law Journal. Frank Cross, com algum exagero,
reputa-a “talvez a mais controversa de todas as teorias de interpretação de textos legislativos”
(The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 102).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
56 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Segundo visões distintas e variados autores, o pragmatismo é “uma


aversão geral à teoria”;109 é “resolver os problemas jurídicos com todas as
ferramentas que estejam à mão, incluindo o uso de precedentes, da tra-
dição, de textos normativos e de políticas públicas — e renunciar como
um todo ao projeto de encontrar uma fundação teórica para o Direito
Constitucional”.110 Talvez seja “uma compreensão de que o que nós vemos
depende sempre de nosso ponto de vista, e de que entender os outros é
frequentemente uma tentativa de recriar o modo como eles veem a partir
de seus pontos de vista”,111 quiçá a noção de que “uma teoria satisfatória
da adjudicação para advogados deve torná-los capazes de prever o que as
cortes farão”,112 ou “o reconhecimento de que a devoção à teoria pode ser
tão danosa e infrutífera quanto a devoção ao formalismo tradicional”,113
ou, quem sabe, “uma extensão do ceticismo, baseada, em última instância,
—˜ȱœ˜ęœ–˜ȱ›Ž˜Ȅǯ114
ž’Šœȱ˜ž›ŠœȱŽę—’³äŽœȱŠ’—Šȱ™˜Ž›’Š–ȱœŽ›ȱŽ—ę•Ž’›ŠŠœǯ115

1.3.1 O “pragmatismo jurídico cotidiano” de Posner:


Žę—’³¨˜ȱŽȱŒŠ›ŠŒŽ›Çœ’ŒŠœȱ
Vamos nos concentrar, neste momento, naquela que é a mais famosa
das versões do pragmatismo jurídico: a teoria de Richard Posner. Ao contrário
Žȱ˜ž›Šœȱ¤›ŽŠœǰȱŒ˜–˜ȱŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǰȱŽ–ȱšžŽȱŠȱ–Šœœ’ęŒŠ-
ção das discussões produziu uma espécie de teoria padrão, composta pelas
opiniões de Robert Alexy e de Neil MacCormick,116 não há nada parecido
com isso em relação ao pragmatismo jurídico.
O pragmatismo de Posner não é, nem de longe, uma teoria padrão
do pragmatismo jurídico. É, apenas, a mais famosa de suas versões.

109
ATIYAH. Pragmatism and Theory in English Law, p. 5.
110
FARBER. Legal Pragmatism and the Constitution. Minnesota Law Review.
111
ȱ
 ǯȱŽŠ•ȱ ——˜ŸŠ’˜—ȱ’‘’—ȱ‘Žȱ ’Ž›ȱ —Ž••ŽŒžŠ•ȱ›Š’’˜—DZȱ‘Žȱ›Š–Š’œ–ȱ˜ȱ•’ŸŽ›ȱ
Ž—Ž••ȱ
˜•–ŽœǯȱNorthwestern University Law Review, p. 595.
112
LEITER. Rethinking Legal Realism: Toward a Naturalized Jurisprudence. Virginia Law Review,
p. 285-286.
113
ȱ ǯȱ‘ŽȱȁŽ–˜Œ›ŠŒ¢ȱ˜ȱŽ•ȬŽŸ˜’˜—ȂDZȱ•’ŸŽ›ȱŽ—Ž••ȱ
˜•–Žœǰȱ ›ǯǰȱŠ—ȱ›Š–Š’œ–ǯȱIn:
MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: studies in Law and Social Science, p. 3-30.
114
LEAF. Pragmatic Legal Norms. In: MORALES (Org.). Renascent Pragmatism: Studies in Law
and Social Science, p. 73.
115
ȱ Š›Šȱž–Šȱ•’œŠǰȱŸǯȱ
 ǯȱ—ȱŽŠ•ȱ›Š–Š’œ–DZȱ‘Ž›Žȱ˜Žœȱȁ‘ŽȱŠ‘ȱ˜ȱ‘ŽȱŠ Ȃȱ•ŽŠȱžœǵǯ
American Journal of Jurisprudence.
116
GASCÓN ABELLÁN; GARCÍA FIGUEROA. La argumentación en el derecho, p. 49 et seq.;
ATIENZA. Teorias da argumentação jurídica: Perelman, Toulmin, MacCormick, Alexy e outros;
ALEXY. Teoria da argumentação jurídicaDZȱ Šȱ Ž˜›’Šȱ ˜ȱ ’œŒž›œ˜ȱ ›ŠŒ’˜—Š•ȱ Œ˜–˜ȱ Ž˜›’Šȱ Šȱ “žœ’ę-
cação jurídica; FERREIRA. Uma introdução à teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy;
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
57

Propomo-nos a apresentar as características essenciais do pragma-


tismo de Posner e, logo após, indicar, de modo sistemático, as críticas que
lhe são feitas, junto com algumas das possíveis respostas. Não se trata de
Š˜Š›ȱŠȱŽ˜›’ŠȱŽȱ˜œ—Ž›ȱǻ˜ȱšžŽȱꌊ›¤ȱŒ•Š›˜ȱ–Š’œȱŠ’Š—ŽǼǰȱ–ŠœȱŽȱœŽ›–˜œȱ
amplos na exposição. Completamos o subcapítulo com a apresentação
de algumas outras versões menos festejadas de pragmatismos jurídicos.
Como já dito, Richard Posner não vê seu pragmatismo como apli-
ŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŠ˜ȱŒŠ–™˜ȱ˜ȱ’›Ž’˜ǯ117 Numa primeira
formulação de sua teoria, caracterizou-a como razão prática — caracteri-
zação pouco ortodoxa para o termo, diga-se —, isto é, “colcha de retalhos
que inclui evidências anedotais, introspecção, imaginação, senso comum,
empatia”.118 Mesmo assim, “ainda capaz de produzir um grau de certeza
tão alto quanto o das demonstrações lógicas”.
Em desenvolvimentos posteriores, assentou os pressupostos de seu
pragmatismo: trata-se de um pragmatismo cotidiano,119 de uma rejeição
de considerações morais abstratas. Seria, simplesmente, uma disposição
de basear a atuação judicial em fatos e consequências em vez de em con-
ceitualismos, generalidades, slogans.120
Na essência desse pragmatismo pé no chão, duas ideias: o primado
das consequências e o ꕝ›˜ȱŠȱ›Š£˜Š‹’•’ŠŽ. O juiz, ao decidir, deve fazê-lo
com olhos bem postos nos resultados de sua decisão, e cuidar para que
seus comandos concretos sejam “razoáveis”. Seu pragmatismo, como teoria
normativa da decisão (teoria que indica como os juízes devem decidir),
pode ser assim resumido: decida de modo a produzir as consequências mais razoá-
veis, consideradas todas as variáveis relevantes. Variáveis tão díspares quanto
ŠœȱŽœ™ŽŒ’ęŒ’ŠŽœȱ˜ȱŒŠœ˜ǰȱŠœȱ—˜›–Šœȱ•ŽŠ’œȱŠ™•’Œ¤ŸŽ’œǰȱŠȱ’–™˜›¦—Œ’ŠȱŽȱ
se preservar os valores do Estado de Direito, considerações psicológicas e
prudenciais, regras de experiência.121

117
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 24-56.
118
POSNER. The Problems of Jurisprudence, p. 73-74. Mesmo depois, Posner continuou defendendo
šžŽȱ—¨˜ȱŽ¡’œŽȱšžŠ•šžŽ›ȱ’Ž›Ž—³Šȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠȱŽ—›ŽȱŠȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠȱŽȱŠȱŠ›ž–Ž—Š-
³¨˜ȱ™›¤’ŒŠȱŽ–ȱŽ›Š•DZȱȃǽǯǯǯǾȱ¨˜ȱ‘¤ȱ—Ž—‘ž–ȱ™›˜ŒŽ’–Ž—˜ȱŠ—Š•Ç’Œ˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱšžŽȱ’Ž›Ž—Œ’ŽȱŠȱ
argumentação jurídica da argumentação prática em geral. Os juízes conhecem algumas coisas
šžŽȱ˜œȱ•Ž’˜œȱŽœŒ˜—‘ŽŒŽ–DzȱžœŠ–ȱž–ȱŸ˜ŒŠ‹ž•¤›’˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘDzȱ™˜œœžŽ–ȱŒŽ›ŠœȱœŽ—œ’‹’•’ŠŽœȱ
apuradas, por exemplo, em relação aos valores do Estado de Direito. A educação jurídica não
é uma fraude, embora possa ser encurtada. E a prática jurídica é, também, um processo de
œ˜Œ’Š•’£Š³¨˜ȱ—ž–ŠȱŒž•ž›Šȱ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱŽœ™ŽŒÇꌊǯȱŠœȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ’Ž›Ž—³Šȱ’—›Ç—œŽŒŠȱ˜žȱž—Š-
mental entre como um juiz trata uma questão jurídica e como um homem de negócios trata
uma questão de administração ou de marketing” (POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy,
2003, p. 73).
119
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 49 et seq.
120
POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 227.
121
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 64. Posner destaca que “todas as variá-
ŸŽ’œȱ ›Ž•ŽŸŠ—ŽœȄȱ —¨˜ȱ œ’—’ęŒŠ–ȱ ȃ˜Šœȱ Šœȱ ŸŠ›’¤ŸŽ’œȱ ™˜œœÇŸŽ’œȄǯȱ
¤ȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ šžŽǰȱ ™˜›ȱ
razões práticas — as limitações de disponibilidade de informação relativas aos juízes — ou

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
58 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ŠȱŽ—Š’ŸŠȱŽȱŽę—’›ȱŽœœŠȱ›Š£˜Š‹’•’ŠŽǰȱ˜œ—Ž›ȱ›ŽŒ˜››ŽȱŠ˜ȱjustice
Holmes, que, ao conceituar o juiz pragmático como aquele que coloca a
Ž¡™Ž›’¹—Œ’Šȱ—Šȱ›Ž—ŽȱŠȱ•à’ŒŠǰȱŠę›–ŠȱšžŽȱ’—›ŽœœŠ–ǰȱ—ŠȱŒ˜—ŠȱŽȱœžŠȱŽŒ’-
são, “as necessidades do momento presente, as teorias morais e políticas
dominantes, intuições sobre políticas públicas, até mesmo os preconceitos
que os juízes compartilham com seus companheiros”.122
Logo se vê que o juízo de razoabilidade de Posner é uma espécie de
recomendação para que os juízes, ao decidirem, levem em consideração
toda espécie de fator — institucional ou não — capaz de contribuir para
uma decisão segura e “justa”. Possui muito pouco em comum com o uso
na doutrina brasileira do termo, onde, como “princípio da razoabilidade”,
aparece ora como sinônimo do teste da proporcionalidade, ora como sinô-
nimo para “proibição de situações absurdas”.123
˜œ—Ž›ȱ—¨˜ȱŠŒ›Ž’ŠȱšžŽȱœžŠȱŽ˜›’ŠȱœŽ“ŠȱŽ¡Ž–™•’ęŒŠ’ŸŠȱ˜ȱŒ˜—œŽ-
quencialismo utilitarista, pois o standard adotado é “aquilo que é razoável”,
e não “as mais úteis consequências para a obtenção de algo”. Claro que sua
versão do pragmatismo jurídico aproxima-se mais do consequencialismo-
utilitarismo do que das moralidades deontológicas, mas há distinções.
Numa hipótese em que, com base na violação à liberdade de autodeter-
minação, questione-se a constitucionalidade de lei que proíba o incesto a
casais adultos estéreis, um utilitarista poderia concordar com o argumento
ȯȱŠę—Š•ǰȱŠȱ›Žœ›’³¨˜ȱ—¨˜ȱœŽ›’Šȱø’•ȱŠȱ—Ž—‘ž–ȱ’—Ž›ŽœœŽǰȱŽȱ™›˜ŸŠŸŽ•–Ž—Žȱ
restringiria a felicidade do casal. Todavia, um pragmatista posneriano,
atento ao horror ao incesto presente na sociedade americana, e às possíveis
consequências sociais deletérias de tal invalidação, defenderia a validade
da norma.124
Há aspecto no pragmatismo jurídico de Posner que, de certa forma,
faz com que seja teoria mais palatável a espíritos formalistas como os nos-
sos, inseridos na tradição romano-germânica:125 o de que a autoridade, ao
decidir, deve levar em consideração consequências não apenas casuísticas

por razões jurídicas — a separação de poderes e a especialização de funções públicas — não


devem ser consideradas pelos juízes. V. POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151.
122
ȱ
ǰȱ•’ŸŽ›ȱŽ—Ž••ǯȱThe Common Law, p. 1 apud POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy,
2003, p. 64.
123
ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱŠȱŽę—’³¨˜ȱ¥ȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ˜œȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱ“ž›Ç’Œ˜œǯȱŚǯȱŽǯ
124
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 65-71.
125
ȱ –ȱ’ŸŽ›œŠœȱ˜ŒŠœ’䎜ǰȱ’Œ‘Š›ȱ˜œ—Ž›ȱŠę›–ŠȱšžŽȱŠȱŠ˜³¨˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ˜žȱ˜ȱ˜›–Š•’œ–˜ȱ
depende das tradições e das características de cada sistema jurídico nacional ou regional. Diz
mesmo que tivessem os EUA estruturas e instituições similares às europeias (ou às nossas —
no que nos importa), provavelmente teriam um sistema jurídico formalista, não tão propício
ao pragmatismo. De qualquer modo, ele acredita que, com os maiores contatos entre os siste-
mas jurídicos, a globalização e a internet, há uma natural tendência a que os sistemas se apro-
ximem, com o pragmatismo jurídico deixando de ser fenômeno essencialmente anglo-saxão
(POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 147-159).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
59

— para aquele caso —, mas também aquelas relevantes ao sistema jurídico


como um todo. Ou seja, são importantes os efeitos casuísticos e, de igual
modo, os efeitos sistêmicos. Tais efeitos sistêmicos são, resumidamente,
considerações ligadas à ideia de Estado de Direito: previsibilidade, gene-
ralidade, estabilidade, segurança jurídica.
Levar a sério a noção de Estado de Direito,
Š›Šȱ ž–ȱ ™›Š–Š’œŠǰȱ —¨˜ȱ œ’—’ęŒŠȱ Š˜Š›ȱ ˜ȱ ˜›–Š•’œ–˜ȱ “ž›Ç’Œ˜ȱ Œ˜–˜ȱ
adesão cega às normas preexistentes — ›žŠȱŒŠŽ•ž–ȱžȱꊝȱ’žœ’’Šȱ(que o
céus caiam desde que a justiça seja feita) — e, assim, como renúncia a
˜ŠȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱ̎¡’‹’•’ŠŽǰȱŒ›’Š’Ÿ’ŠŽȱŽȱŒŠ™ŠŒ’ŠŽȱŽȱŠŠ™Š³¨˜ȱ˜ȱ
ž’Œ’¤›’˜ǯȱ’—’ęŒŠǰȱ—ŠȱŸŽ›ŠŽǰȱŽ›ȱŽŸ’ŠȱŒ˜—œ’Ž›Š³¨˜ȱǻ—¨˜ȱŽ¡Œ•žœ’Ÿ’œŠDzȱ
sem desconsiderar possíveis ›ŠŽȬ˜ěœ) pelos valores políticos e sociais da
continuidade, coerência, generalidade, imparcialidade e previsibilidade na
administração de direitos e deveres.126

A maioria dos casos envolvendo leis e contratos pode ser facilmente


resolvida com base no sentido claro e imediato dos textos. Essas seriam,
também, decisões pragmatistas. Com isso, vê-se o óbvio: existem decisões
pragmatistas fáceis e difíceis. Nem todas precisam ser dilemas complicados,
para os quais se solicite o uso de todas as ferramentas teóricas. O julgador
pragmatista deve se aproximar do Direito legislado e dos precedentes com
olhos no valor social da expectativa por eles criados, já que são os principais
materiais aos quais a sociedade recorre quando precisa saber o que é o
Direito. Devem ser as principais fontes da decisão judicial. O pragmatismo
jurídico aproxima-se de modo respeitoso — embora não acrítico — da lei
e do precedente. São utilizáveis não por seu valor a priori, mas por sua
importância como produtores de expectativas.
O formalismo jurídico pode ser estratégia pragmática. Decide-se
conforme as regras postas, de maneira pretensamente cega, mas porque
isso é estratégia pensada para produzir os melhores resultados em rela-
³¨˜ȱŠ˜ȱ›Ž—Š–Ž—˜ȱ ž›Ç’Œ˜ȱŒ˜–˜ȱž–ȱ˜˜DZȱ’—Œ›Ž–Ž—Š›ȱŠȱŒ˜—ꊗ³Šȱ—˜ȱ
’›Ž’˜ǰȱ—Šȱ™›ŽŸ’œ’‹’•’ŠŽȱŠœȱ—˜›–Šœǰȱ—Šȱꐞ›Šȱ’—œ’žŒ’˜—Š•ȱ˜ȱ ž’Œ’¤›’˜ǯȱ
Posner reconhece a virtude da generalidade, da previsibilidade e da im-
parcialidade do formalismo jurídico, mas prefere utilizá-las na condição
de estratégia pragmática.127

126
POSNER. Law, Pragmatism, and Democracy, 2003, p. 61.
127
POSNER. Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151. Posner acredita que a adoção do formalismo
como estratégia pragmática, embora possível, não seja comum na Suprema Corte dos Estados
Unidos, por conta da tradição da Common Law e da própria força do órgão. Os incentivos em
favor do formalismo seriam mínimos: a Corte seria chamada a resolver muitos problemas para
os quais a Constituição americana não ofereceria virtualmente nenhum auxílio e não existiria
qualquer pressão advinda do risco de ter seu pronunciamento revertido por cortes superiores.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
60 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Bom exemplo desta ideia de Posner, vindo da realidade brasileira,


é a construção, pela jurisprudência dos tribunais superiores, de uma série
Žȱ›Žšž’œ’˜œȱ˜›–Š’œȱšžŽȱ’ęŒž•Š–ȱŠȱŠ–’œœ¨˜ȱ˜œȱ›ŽŒž›œ˜œȱŽ¡›Š˜›’-
nários em sentido amplo (RE e RESP). Diante de um problema prático
— a litigância parafrênica, que faz com que STF e STJ tornem-se terceiras
instâncias, e não cortes constitucionais ou de uniformização128 —, estes
tribunais começaram a inventar (o termo é esse) uma série de requisitos
ultraformais, que vão desde a questão constitucional ter sido expressamente
debatida, com citação de artigos, nos tribunais inferiores,129 até coisas
como a qualidade da fotocópia, com o evidente propósito de diminuírem
o número de recursos a serem julgados.130
œŽȱ Šœ™ŽŒ˜ȱ Šȱ Ž˜›’Šȱ ™˜œ—Ž›’Š—Šȱ ·ȱ ’–™˜›Š—Žȱ ™˜›šžŽȱ œ’—’ęŒŠǰȱ
numa primeira análise, sua própria negação. Ora, como ser formalista e
pragmatista ao mesmo tempo? A saída para isso está na compreensão do
nível do discurso ao qual se está referindo. Pode-se ser formalista por razões
pragmáticas. Adota-se o formalismo como teoria normativa da decisão — é
o formalismo que vai decidir como devemos decidir os casos —, porque,
antes, adotou-se o pragmatismo como metateoria jurídica (como teoria que
indica como devemos escolher uma teoria normativa da decisão).131 Sobre

O órgão seria bastante livre para ser diretamente pragmatista (POSNER. Law, Pragmatism, and
Democracy, 2003, p. 64). É importante levantar o ponto sobre se o nosso STF também não seria,
por essas próprias razões, instância propícia para a adoção do pragmatismo vis-à-vis o formalismo
(v. discussão à frente).
128
ȱ Žž—˜ȱŠ˜œȱ˜‹’˜œȱ—˜ȱœÇ’˜ȱ˜ȱȱ—Šȱ’—Ž›—Žȱǻǀ‘Ĵ™DZȦȦ   ǯœǯ“žœǯ‹›ǁǼǰȱœàȱŽ–ȱŘŖŖŞȱ˜›Š–ȱ
julgados 45.136 recursos extraordinários. Somando-se a isso os 73.915 agravos de instrumento,
que, em regra, são tirados de decisões denegatórias de seguimento desses mesmos recursos
extraordinários por parte dos tribunais locais (Tribunais de Justiça e Tribunais Regionais
ŽŽ›Š’œǼǰȱꌊȱ¤Œ’•ȱŒ˜–™›ŽŽ—Ž›ȱŠȱ™›Ž˜Œž™Š³¨˜ȱŽȱ˜—£Žȱ’—’œ›˜œȱŒ˜–ȱ˜ȱŸ˜•ž–ŽȱŽȱŽ–Š—-
das a serem apreciadas e julgadas.
129
Enunciado nº 287 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF: “É inadmissível o recurso
extraordinário quando não ventilada, na decisão recorrida, a questão federal suscitada”.
Ainda, Enunciado nº 356: “O ponto omisso da decisão sobre o qual não foram opostos
embargos declaratórios não pode ser objeto de recurso extraordinário por faltar o requisito do
prequestionamento”.
130
Sobre tais requisitos, ver, por todos, Rodolfo de Camargo Mancuso (Recurso Extraordinário e
Recurso Especial). Posteriormente, o próprio legislador brasileiro encampou a ideia, ao criar, por
exemplo, a repercussão especial para a admissibilidade de RE. O exemplo de Posner, embora
parecido, parte de uma preocupação pragmática mais consistente (ainda que a preocupação
‹›Šœ’•Ž’›Šȱȯȱ—¨˜ȱœŽ›ȱœ˜Ž››Š˜ȱ™˜›ȱŸ˜•ž–Žȱ’—Š–’—’œ›¤ŸŽ•ȱŽȱŒŠžœŠœȱ’—œ’—’ęŒŠ—Žœǰȱ˜–Š—˜ȱ
tempo de julgamento das demandas realmente importantes — seja, também, louvável): o
autor menciona que as cortes federais americanas criam uma série de requisitos formais (“às
ŸŽ£Žœȱ‹ŠœŠ—ŽȱŠ›‹’›¤›’˜œȄǰȱ™Š•ŠŸ›ŠœȱŽ•ŽǼȱŒ˜–ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱŽȱŽŸ’Š›ȱ’—Ž›ŸŽ—³äŽœȱ™›Ž–Šž›Šœȱ
do Judiciário nos assuntos da nação. “Nada é mais antipragmático para uma corte do que
declarar que um programa é inconstitucional ou ilegal antes que ele tenha tido a chance de
entrar em prática e provar seu valor (ou sua falta de) de modo empírico, ao invés de por
especulação” (Legal Pragmatism. Metaphilosophy, p. 151).
131
“A distinção é importante porque não existe conexão necessária entre teoria e metateoria.
Mesmo se o pragmatismo for a melhor teoria, pode não ser a melhor metateoria; e, mesmo se o

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
61

essa questão, há debate nos Estados Unidos, e muitos autores defendem o


formalismo justamente dentro dessa perspectiva pragmática.132
Para além desse foco nas consequências razoáveis da decisão, as
quais podem incluir seus efeitos sistêmicos — o que, por sua vez, pode
comandar a adoção do formalismo como teoria normativa da decisão —,
o pragmatismo jurídico, na proposta de Richard Posner, possui seis carac-
terísticas. Ele é (i) eclético, (ii) instrumental, (iii) contextual, (iv) antiformalista,
(v) empírico, e (vi) usa da retórica. Vamos analisar cada um dos pontos.
O pragmatismo jurídico é (i) eclético. Não possui preocupação com
ideologias,133 consistência teórica ou harmonias abstratas — está pronto
para aceitar sem trauma contribuições dos mais diversos saberes. Substitui-
se a pergunta “é teoricamente compatível?” por “funciona na prática?”.
Œ•Ž’œ–˜ȱ—¨˜ȱœ’—’ęŒŠȱŠ—’Ȭ’—Ž•ŽŒžŠ•’œ–˜ȱ˜žȱ›Ž“Ž’³¨˜ȱŠȱšžŠ•šžŽ›ȱ
teoria. A rejeição dá-se apenas em relação a teorias baseadas em abstra-
ções a respeito de indivíduos e instituições. Aí se inclui a maior parte
ŠœȱŽ˜›’ŠœȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š’œȱŽȱ•ŽŠ’œȱŽȱ‹ŠœŽȱꕘœàꌊȱŽǰȱŽȱšžŽ‹›Šǰȱ˜ž›Šȱ
™Š›ŽȱŠœȱŽ˜›’Šœȱ™˜•Ç’ŒŠœȱšžŽȱ‘˜“Žȱ’—ĚžŽ–ȱ—Šȱ˜›–ž•Š³¨˜ȱŽȱ—ŠȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ
˜ȱ ’›Ž’˜ǯȱ Šœȱ ‘¤ȱ ’—Ěž¡˜œȱ ™˜œ’’Ÿ˜œȱ Šȱ œŽ›Ž–ȱ ˜‹’˜œȱ Žȱ ¤›ŽŠœȱ Œ˜–˜ȱ Šȱ

™›Š–Š’œ–˜ȱ˜›ȱŠȱ–Ž•‘˜›ȱ–ŽŠŽ˜›’Šǰȱ™˜Žȱ—¨˜ȱœŽ›ȱŠȱ–Ž•‘˜›ȱŽ˜›’ŠȄȱǻ ǰȱ‘’•’™ǯȱ›Š–Š’œ–ȱ
and Consequentialism. Columbia University – Law School, p. 4). Ainda: “Essencialmente, o prag-
–Š’œ–˜ȱ·ȱž–Šȱ–ŽŠŽ˜›’ŠǯȱǽǯǯǯǾȱ•Žȱ·ȱœ˜ęœ’ŒŠ˜ȱ˜ȱœžęŒ’Ž—Žȱ™Š›Šȱ’—’ŒŠ›ȱšžŠ•šžŽ›ȱŽ˜›’Šȱ—˜›-
mativa — desde que essa teoria normativa produza as melhores consequências possíveis” (p. 5).
ȃ˜ȱŽ—Š—˜ǰȱ—¨˜ȱ·ȱ’—Ž’›Š–Ž—ŽȱŠŒž›Š˜ȱŠę›–Š›ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ǰȱŠ™Ž—Šœǰȱž–Šȱ–ŽŠŽ˜›’Šǯȱ
Na doutrina, o pragmatismo é comumente indicado como uma teoria normativa”. Em outro
–˜–Ž—˜ǰȱŠ—ǰȱŒ˜—›Š’˜›’Š–Ž—ŽǰȱŠę›–ŠȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱœŽ–™›Žȱž–ŠȱŽ˜›’Šȱ—˜›–Š-
tiva, pois, mesmo quando se está sendo textualista por razões pragmáticas, no fundo está-se
adotando o pragmatismo, p. 6. Em nossa opinião, não há predominância de nenhum aspecto. O
pragmatismo pode ser tanto uma coisa quanto outra. A respeito da estratégia das “decisões de
segunda ordem” — decisões sobre qual é o melhor critério a ser adotado na hora de decidir —,
tanto no Direito quanto na vida prática em geral, desenvolver em Cass Sunstein e Edna Ullman-
Margarit (Second order-decisions. University of Chicago Law School, Public Law and Legal Theory).
132
Ainda voltaremos ao assunto. Alguns artigos e livros que defendem tal perspectiva, na doutrina
nacional e estrangeira: ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da
decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49; SUNSTEIN. Must Formalism
be Defended Empirically?. University of Chicago, John M. Olin Law & Economics; SUNSTEIN;
VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law Research Paper;
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation. Para
uma visão crítica do discurso das capacidades institucionais no Brasil, cf. ARGUELHES;
LEAL. O argumento das “capacidades institucionais”: entre a banalidade, a redundância e o
absurdo. Revista Direito, Estado e Sociedade.
133
“O pragmatismo jurídico não possui um conteúdo ideológico em si mesmo. Apoia-se na
teoria dos jogos, na Ciência Política e em outras ciências sociais, mais do que em determinadas
preferências ideológicas” (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84). Há quem
critique a teoria por uma suposta proximidade ao capitalismo liberal. Não só contra o
pragmatismo jurídico, não só contra o pragmatismo jurídico de Posner: essa crítica também
é comum em relação às éticas consequencialistas e utilitaristas em geral. V. SAPHIRO. The
Flight from Reality in the Human Sciences, p. 100-151, especialmente p. 149-151 - “Ideological
Implications of Posner’s View”.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
62 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Estatística, a Economia, a Sociologia experimental, a Psicologia.134 “Em


síntese, a objeção do pragmatista não é à ideia de ‘teoria’, mas se dirige
Œ˜—›ŠȱŠȱ–¤ȱŽ˜›’ŠǰȱŠȱŽ˜›’Šȱ’—ø’•ǰȱŠȱ˜ž˜›Šȱ˜ȱÇž•˜ȱ‘˜—˜›ÇꌘȱŽȱȁŽ˜›’ŠȂȱ
à retórica formalista”.135
O ecletismo vale, também, quanto à incorporação de ideias, concei-
tos, fragmentos teóricos, princípios, argumentos, de modo que se forme
aquilo que Aulis Aarnio chamou de “teia argumentativa”, um aglomerado
de topoi, não absolutamente coerente entre si, mas que, em conjunto, é capaz
de provocar um estado de convencimento racional (em um juiz ou em uma
autoridade administrativa, quando usados por um advogado; no público
em geral, quando utilizados pelo Judiciário ou pela Administração).136
O pragmatismo de Posner é (ii) instrumental. A teoria é instrumento
™Š›Šȱž–ȱę–ȱŒ˜—Œ›Ž˜ǰȱŠȱœŠ‹Ž›ǰȱŠȱ’œ›’‹ž’³¨˜ȱŽȱ‹Ž—œȱ˜žȱŠȱ›ŽŒ˜–™˜œ’³¨˜ȱ
de estados operada por intermédio do Direito. Também o Direito é meio
™Š›Šȱ ’ŸŽ›œ˜œȱ ꗜǯȱȱ ™›˜™˜œ’³¨˜ȱ —¨˜ȱ ·ȱ ›ŽŸ˜•žŒ’˜—¤›’ŠDzȱ ’ŸŽ›œŠœȱ Ž˜›’Šœȱ
“ž›Ç’ŒŠœǰȱŠ—’ŠœȱŽȱ—˜ŸŠœǰȱ’—œ’œŽ–ȱ™Š›ŠȱšžŽȱœŽȱŽŸ’ŽȱŠȱ›Ž’ęŒŠ³¨˜ǯ137 Aqui,
ŽœŠ–˜œȱŽ–ȱŽ››Ž—˜ȱŒ˜—œŽ—œžŠ•ǯȱ’ęŒ’•–Ž—ŽȱŠ•ž·–ȱœžœŽ—Š›’Šǰȱ‘˜“ŽǰȱšžŽȱ
˜ȱ’›Ž’˜ȱŽŸŽȱœŽȱŽŒ‘Š›ȱŽ–ȱœ’ȱ–Žœ–˜ȱŽȱ–˜˜ȱ’—ĚŽ¡ÇŸŽ•ȱŽȱȃŽœ˜¡’Ž—Š˜Ȅȱ
Ž–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱ¥œȱꗊ•’ŠŽœȱšžŽȱ•‘Žȱœž‹“Š£Ž–ǯ
A próxima característica, apesar da negativa de Posner quanto à
descendência de sua versão do pragmatismo jurídico em relação ao prag-
–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱ·ȱŒ˜–™Š›’•‘ŠŠȱŽ—›ŽȱŠ–‹˜œDZȱ˜œȱ˜’œȱœ¨˜ȱǻ’’’Ǽȱcontextuais.
A teoria e seus resultados fundam-se numa dependência do contexto em
que estão inseridos. A decisão pragmaticamente correta de hoje pode não

134
ȱ ˜–ȱ ›Š£¨˜ǰȱ ˜ȱ ŽœŠšžŽȱ Žȱ ˜œ·ȱ ’œŽ—‹Ž›DZȱ ȃȱ ŽęŒ¤Œ’Šȱ Š›ž–Ž—Š’ŸŠȱ ŽœŠȱ ›ŽŒ˜—œ›ž³¨˜ȱ ˜ȱ
contexto depende, portanto e necessariamente, dos recursos conceituais e metodológicos das
Ciências Sociais: cabe sempre ao operador do Direito, sob a ótica do pragmatismo jurídico,
realizar o importante trabalho de descrever o contexto a partir de uma pesquisa empiricamente
orientada, para decifrar com conceitos aplicáveis à realidade social os seus determinantes e seus
Š˜œȱŸŽ›’ęŒ¤ŸŽ’œȄȱǻŠ›ŠȱšžŽȱœŽ›ŸŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ǯȱIn: FILOSOFIA e teoria do direito).
135
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80.
136
Em rigor, a defesa da ideia de razoabilidade como aceitabilidade racional, trazida por Aarnio,
é mais demandante do que o sentido descrito. Em nosso favor, diga-se que, dentre as várias
teorias da razoabilidade, a de Aarnio é uma das que mais se aproxima da razoabilidade em
sentido loose, “solto”, defendida por Posner. Desenvolver em Aulis Aarnio (Lo racional como
razoableDZȱž–ȱ›ŠŠ˜ȱœ˜‹›Žȱ•Šȱ“žœ’ęŒŠŒ’à—ȱ“ž›Ç’ŒŠǼǯ
137
BARBER; FLEMING Constitutional Interpretation: the Basic Questions, p. 186. Como prova do
tradicionalismo da proposta, basta ver que, já em 1935, Felix Cohen defendia uma ciência jurí-
dica livre do “nonsenseȱ›Š—œŒŽ—Ž—Š•Ȅȱ›Ž’ęŒŠ˜›ȱŽȱŒ˜—ŒŽ’˜œȱŸŠ£’˜œȱŽȱ™›˜–˜˜›ȱŽȱ’œŒžœœäŽœȱ
etéreas. A doutrina deveria se dedicar à discussão de casos e à realidade comportamental, eco-
nômica e psicológica da administração da justiça (Transcendental Nonsense and the Functional
Approach. Columbia Law Reviewǰȱ™ǯȱŞŖşȬŞŚşǼǯȱŽœœŽȱ™˜—˜ǰȱŠ•’¤œǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŠ£ȱ“žœȱ¥ȱŠę›-
mação de Rorty (e de outros) de que, mercê de sua ampla difusão, haver-se-ia tornado banal.
Ver RORTY. The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice. InDZȱ Dzȱȱǻ›ǯǼǯȱ
Pragmatism in Law and Societyǰȱ™ǯȱŞşȬşŝǯȱ˜›ȱ˜ž›˜ȱ•Š˜ǰȱŠ•ŸŽ£ȱœžŠȱȃ‹Š—Šȱ•’ŠŽȄȱœàȱœ’—’ęšžŽǰȱ
realmente, sua vagueza. Assim, CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 104.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
63

ser a de amanhã — e a diferença pode estar no contexto. Aliás, o contex-


tualismo não deixa de se basear, também, num antifundacionalismo. É
por não existirem lugares estáticos — pontos de partida ou de chegada,
˜™’—’䎜ȱŽę—’’ŸŠœȱȯȱšžŽȱŠȱŽ˜›’Šȱ™˜ŽȱœŽȱ‹ŠœŽŠ›ȱ—˜ȱŒ˜—Ž¡˜ǰȱŽ•Ž–Ž—˜ȱ
ŽœœŽ—Œ’Š•–Ž—Žȱ–˜’ęŒ¤ŸŽ•ǯ
O pragmatismo de Richard Posner é (iv) antiformalista. É sua caracterís-
’ŒŠȱ–Š’œȱŽœŠŒŠŠǯȱ–ȱ›’˜›ǰȱ·ȱŒ˜–™•Ž¡˜ȱŠ·ȱŽę—’›ȱ˜ȱšžŽȱ·ȱ˜ȱȃ˜›–Š•’œ–˜Ȅǯ138
˜—ŽȱŽȱ’›ŽœœäŽœǰȱŽę—ŠȬœŽȱ˜›–Š•’œ–˜ȱŒ˜–˜ȱž–Šȱ’œ™˜œ’³¨˜ȱꛖŽȱŽȱ
basear decisões em normas escritas e/ou precedentes. Pois bem, se o for-
malismo é isso, então o pragmatismo jurídico de Posner é antiformalista,
na medida em que não parte do pressuposto de que normas escritas ou
precedentes devam ser observados por si mesmos, mas apenas quando sua
observância vá produzir os melhores efeitos (casuísticos e, principalmente,
sistêmicos). O julgador pragmatista pode e deve ignorar o precedente — ou
adaptar a norma escrita à incidência via plasticidade das interpretações
— se isso produzir os melhores resultados.139
O pragmatismo é (v) empírico. Quer ver resultados. A autoridade
julgadora que “segura” um processo, na expectativa de quais serão os
resultados daquele ato regulatório ou lei, e isso para que possa julgá-lo
Œ˜–ȱ ‹ŠœŽȱ —ŽœœŠœȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǰȱ ·ǰȱ ™˜›ȱ Žę—’³¨˜ǰȱ ž–ȱ ™›Š–Š’œŠǯȱ ¨˜ȱ

138
SCHAUER. Formalism. Yale Law Journal, p. 509 et seq. Para uma apresentação do tema na dou-
trina brasileira, ver o verbete “formalismo”, escrito por Noel Struchiner (In: BARRETO (Org.).
’Œ’˜—¤›’˜ȱŽȱꕘœ˜ęŠȱ˜ȱ’›Ž’˜, p. 363-366).
139
Há outro sentido no qual o pragmatismo de Posner é antiformalista. É que tal pragmatismo
não é um complemento ao positivismo jurídico de Hart. Este defendia, forte na experiência do
Direito inglês, que, em casos fáceis, incluídos dentro da zona de certeza positiva da linguagem
jurídica, a aplicação seria meramente subsuntiva: o juiz, pura e simplesmente, aplicaria o que
está escrito. Já nos casos difíceis, inseridos dentro da área cinzenta de certeza da linguagem, o
juiz haveria que agir como se legislador fosse, formulando norma e a aplicando ao caso. Por isso,
muitos poderiam imaginar que o pragmatismo jurídico de Posner servisse para complementar,
na parte em que o juiz é livre, o positivismo de Hart. Só que Posner não pensa como Hart. Não
acredita que os juízes, ordinariamente, coloquem seus chapéus de legisladores nos momentos
de incerteza e recoloquem suas capas de juízes nas horas de certeza da linguagem. A explicação
œ˜ŠȬ•‘ŽȱŠ›’ęŒ’Š•ȱǻœŽ–ȱŒ˜—Š›ȱ˜ȱ’—Œ˜—ŸŽ—’Ž—ŽȱŽȱŠ•Š›ȱšžŽȱŠœȱŠž˜›’ŠŽœȱ“ž’Œ’¤›’ŠœȱŽŸŽ›’Š–ȱ
agir como legisladores, quando técnicas e condições de atuação são completamente distintas),
sendo certo que ele busca com sua teoria pragmática da adjudicação uma proposta útil porque
realista. Além disso, não existiriam lacunas no Direito porque este não é uma coisa, é uma
atividade: a atividade diária dos juízes e demais autoridades públicas. Aplicar e criar o Direito
são momentos simultâneos e essencialmente indistintos. Sem falar que há muitas outras
zonas de incerteza para o Direito além da linguagem; e as zonas de certeza não são, de fato,
assim tão certas. Muito embora seja sensato aderir, em casos em que as consequências não são
Š‹œž›Šœȱ˜žȱŒŠŠœ›àꌊœǰȱŠ˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ™ž›˜ȱŽȱœ’–™•ŽœȱŠœȱ—˜›–ŠœǰȱŒ˜–˜ȱ–Ž’˜ȱŽȱ™›ŽœŽ›ŸŠ›ȱ
expectativas e de manter a linguagem legal como forma de comunicação jurídica, isso se dá
— diz Posner — por razões pragmáticas. A teoria de Posner quer que sempre os juízes ajam
de modo pragmático. Suas propostas não são complementares, sequer compatíveis, com o
positivismo hartiano (POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80-82). Para a visão
de Hart, v. STRUCHINER. Direito e linguagem: uma análise da textura aberta da linguagem e
sua aplicação ao direito. Ainda, o capítulo clássico em Hart (O conceito de direito, p. 137-168).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
64 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

decidir é, também, resultado de uma decisão, não necessariamente ruim.


Tudo depende, mais uma vez, das circunstâncias.
O juiz que, sem demora, invalida uma portaria recente de uma agên-
cia reguladora, nos casos em que a ilegalidade ou inconstitucionalidade não
·ȱ̊›Š—ŽǰȱŠ˜Šȱ™˜œž›ŠȱŠ—’™›Š–¤’ŒŠDZȱŠ£ȱŒ˜–ȱšžŽȱ˜ȱŠ˜ȱœŽšžŽ›ȱŽ—‘Šȱ
condição de provar seu mérito. Da mesma forma, nos estágios iniciais de
consolidação de uma linha jurisprudencial, não é pragmaticamente correto
decidir de modo amplo, com o que se evita o risco da generalização pre-
matura. Decidir “antes” e decidir “muito” são posturas antipragmáticas
porque neutralizam as virtudes da experimentação.140
O empirismo dessa versão do pragmatismo jurídico decorre do fato
de ele ser apenas mais uma manifestação da argumentação prática em
geral. As teorias importam, embora nem todas, e, mesmo assim, apenas no
nível certo de abstração. Regras de cautela, dados de expertise, “princípios”
do Direito que são, na verdade, guias práticos de decisão (o “princípio da
cautela” no Direito Ambiental; o “princípio da culpa” na responsabilidade
civil subjetiva), normas que direcionam a pesquisa e o tratamento dos
dados factuais sem pretender suplantá-los, são os princípios e teorias do
pragmatismo de Posner. Já princípios como o da “liberdade”, “integridade”
e “dignidade” são, tão somente, formas de falar bonito sem dizer muito.141
O pragmatismo de Posner é empírico, também, quando diz que se
deve preferir decisão formalmente subótima (ainda que juridicamente
ŽŽ—œ¤ŸŽ•Ǽǰȱ–ŠœȱŽ–™’›’ŒŠ–Ž—Žȱ“žœ’ęŒŠŠǰȱŠȱŽŒ’œ¨˜ȱšžŽǰȱœ˜‹ȱŠȱŒŠ™ŠȱŠȱ
correção formal, resulte num desastre. Quanto a esse ponto, a sugestão para
que sejamos empíricos é, de fato, uma recomendação para que não sejamos
ingênuos quanto aos resultados de nossas decisões. Considerando o padrão
Žȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŠœȱŽŒ’œäŽœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱȯȱŠ–™•˜ǰȱ™˜•¹–’Œ˜ǰȱŽȱž—Š˜ȱ—Šȱ
linguagem humana, coisa das mais abertas à pluralidade interpretativa
—, a melhor escolha é, sempre, a que produzirá os resultados menos con-
traintuitivos e mais sensíveis à realidade.
Exemplo do empirismo: numa discussão sobre eutanásia, o juiz
pragmatista vai pesquisar os efeitos da prática na Holanda, país em
que é legalizada, em vez de caracterizar o debate como uma discussão
político-constitucional entre o “princípio da autonomia” e o “princípio da
dignidade da vida”, ou como uma questão de como se deve interpretar a
palavra “liberdade”, conforme apareça em um dispositivo constitucional.142

140
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 80. A vindicação de decisões judiciais mais
restritas é desenvolvida em Cass Sunstein (One Case at a Time: Judicial Minimalism on the
Supreme Court).
141
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 75.
142
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 74. Exemplo do tratamento expressamente
rejeitado por Posner vem com o livro de Ronald Dworkin Life’s Dominion de 2003.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
65

Neste livro, por vezes apelaremos a esse raciocínio. Assim, numa


eventual polêmica a respeito da possibilidade constitucional da criação de
empresas públicas e sociedades de economia mista, a questão não estaria
na interpretação do princípio da livre-iniciativa, mas, simplesmente, na
ŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠȱ’—Ž›ŸŽ—³¨˜ȱǻŒǯȱŒŠ™Çž•˜ȱŗȱŠȱœŽž—Šȱ™Š›ŽǼǯȱȱ
O caráter empírico do pragmatismo de Posner possui três sentidos.
É manifestação da razão prática e, portanto, a) quer ver resultados antes
de decidir a respeito de alguma ação pública, e, nos estágios iniciais de
consolidação doutrinária e jurisprudencial, prefere decidir “menos” a
“mais”, b) quer raciocinar em cima de dados concretos, não de constru-
ções intelectuais abstratas, c) prefere soluções realistas, úteis e sensatas, a
decisões formalmente perfeitas, mas conducentes a resultados desastrosos.
Finalmente, o pragmatismo jurídico é (vi) retórico. Não retórico na
˜›–ŠȱšžŠœŽȱ™Ž“˜›Š’ŸŠȱŒ˜–ȱšžŽȱŠȱ’•˜œ˜ęŠȱ›ŽŠȱŽȱ›Š’£ȱ™•Šâ—’ŒŠȱŽœŒ›Ž-
veu a técnica: uma coleção de truques para ganhar a adesão do público per
fas et per nefas. Ele é “positivamente” retórico. Em certas situações, como nos
domínios do Direito e da Política, não existem respostas certas em termos
lógicos, mas se trata do domínio do verossímil, da argumentação baseada
no bom senso, no qual decisões argumentativamente melhores ou piores
assumem o lugar das decisões falsas ou verdadeiras.143
Concretamente, o uso pragmatista do Direito não se limita à lin-
guagem formalista e formalizante dos tribunais, mas busca exemplos no
cotidiano, apela ao bom senso (“sempre baseie seu pedido não apenas
nas regras, mas também no senso de Justiça e no bom senso”, diz um
juiz da Suprema Corte americana),144 ilustra os casos com referência a
˜ž›ŠœȱŒ’¹—Œ’Šœȱǻ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱŽŒ•·’Œ˜ǰȱ˜ȱšžŽȱœ’—’ęŒŠȱšžŽȱ·ǰȱŠ–‹·–ǰȱ
’—Ž›’œŒ’™•’—Š›Ǽǯȱȱ’–™˜›Š—Žȱ·ȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱ›Š£˜Š‹’•’ŠŽȱ˜ȱ™Ž’˜ȱ˜žȱ
da decisão, não para convencer um lógico, mas para ultrapassar o juízo
crítico de um homem médio esclarecido.145

143
“É a arte de defender-se argumentando em situações nas quais a demonstração não é possível,
o que a obriga a passar por ‘noções comuns’, que não são opiniões vulgares, mas aquilo que
cada um pode encontrar por seu bom senso, em domínios nos quais nada seria menos cientí-
ꌘȱ˜ȱšžŽȱŽ¡’’›ȱ›Žœ™˜œŠœȱŒ’Ž—ÇꌊœȄȱǻǯȱIntrodução à retórica, p. 27).
144
SCALIA; GARNER. Making your Case: the art of Persuading Judges, p. 26 et seq.
145
“Questões jurídicas difíceis tendem a não possuir respostas ‘certas’ no sentido que Platão
aprovaria. Em vez disso, elas possuem respostas melhores ou piores — e muitas vezes não é
claro qual é qual. Essas incertezas chegam a seu apogeu em certos casos nos quais os juízes
enfrentam o desconhecido em cima de um abismo para o qual não possuem nenhum dos ma-
teriais necessários para a travessia. Nesses casos, diante dessas descontinuidades, um insight
›ŽŸŽ•Š˜›ǰȱ Ž¡™›ŽœœŠ˜ȱ Žȱ –˜˜ȱ Š˜›Çœ’Œ˜ǰȱ –Žœ–˜ȱ ›ŽĚŽ’—˜ȱ ž–Šȱ ŸŽ›ŠŽȱ ™Š›Œ’Š•ȱ ȯȱ Š•ŸŽ£ȱ
seja, apenas, um tiro no escuro —, pode desempenhar adequadamente um papel no desenvol-
vimento do Direito. Talvez seja a melhor coisa que se possa fazer” (POSNER. Law, Pragmatism
and Democracy, 2003, p. 83).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
66 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Antiformalista, empírico, instrumental, eclético, talvez fosse o caso


de entender o pragmatismo jurídico de Posner como uma versão requen-
tada do realismo jurídico146 ou do movimento dos critical legal studies.147
Mas, segundo Posner, não é o caso. Duas seriam as diferenças.
—šžŠ—˜ȱŽœŽœȱ–˜Ÿ’–Ž—˜œȱ™˜œœž’›’Š–ȱ—ǝ’ŠȱŠę•’Š³¨˜ȱ™˜•Ç’ŒŠȱȯȱ˜ȱ›ŽŠ-
lismo, ao New Deal; os critical legal studies, à esquerda —, o pragmatismo
não teria qualquer valência política. Além disso, tanto o realismo quanto
o movimento crítico seriam “fracos na análise de políticas públicas”: além
de sua política de base, não teriam nada a oferecer em troca ao formalismo.
Já o pragmatismo posneriano, próximo à Economia, à Teoria dos Jogos,
¥ȱ˜Œ’˜•˜’ŠȱŠ™•’ŒŠŠǰȱ—¨˜ȱŽ™Ž—Ž›’ŠȱŽȱŒ›Ž—³Šœȱ’››ŽĚŽ’Šœǰȱ–ŠœȱœŽ›’Šȱ
capaz de analisar políticas públicas e, de modo propositivo, incorporar
o melhor que todas essas ciências sociais aplicadas pudessem oferecer.148

146
O realismo jurídico é o designativo de duas linhas de pensamento — uma americana e outra
advinda da Europa do Norte, especialmente da Escandinávia — que advogavam a quintes-
sencial indeterminação do Direito e, a partir daí, a ideia de que o Direito se constituiria nas
decisões judiciais e nas atividades administrativas em concreto. O realismo ainda defendia o
’—œ›ž–Ž—Š•’œ–˜ȱŽȱŠȱ’—Ž›’œŒ’™•’—Š›’ŠŽǯȱ•ž—œǰȱŽ—›˜ȱŽœœŠȱ•’—‘ŠȱŽȱ™Ž—œŠ–Ž—˜ǰȱŠę›-
mavam que as autoridades decidiriam antes os casos — a partir de seu senso interior de Justiça
ou, segundo alguns, com base em sua intuição ou instinto (numa tradução para guts) — e,
™˜œŽ›’˜›–Ž—Žǰȱ‹žœŒŠ›’Š–ȱ›Š£äŽœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱŽȱŠ™˜’˜ǯȱ’ŠȬœŽȱ Ž›˜–Žȱ›Š—”ȱŒ˜–˜ȱ‘ŠŸŽ—˜ȱŠę›-
mado que a decisão judicial poderia ser determinada pelo que o juiz comeu no café da manhã.
Como representativo da corrente europeia do realismo, numa vertente lógica, ver o clássico de
Alf Ross (Direito e justiça). Ainda, num interessante estudo dos conceitos fundamentais da lin-
guagem jurídica — “direito subjetivo”, “obrigação”, “dever” etc. —, caracterizando-os como
originários da linguagem da magia e essencialmente vazios, desempenhando função emotiva
(conclamar para a ação) e técnica, ver Karl Olivecrona (Lenguaje jurídico y realidade). Na ver-
Ž—Žȱ—˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—Šǰȱ‘¤ȱšžŽ–ȱ’ŠȱšžŽȱ˜ȱ™›’–Ž’›˜ȱ›ŽŠ•’œŠȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ˜’ȱ˜ȱ“ž’£ȱ•’ŸŽ›ȱŽ—Ž••ȱ
Holmes — mais uma vez, a proximidade entre realismo e pragmatismo jurídico é clara, porque
tantos outros tratam Holmes como pragmatista jurídico seminal —, enquanto outros veem
na sociologia jurídica de Pound traços do realismo. Mais recentemente, Karl Llewellyn e Felix
Cohen são nomes de destaque. V. POSNER; HOLMES (Ed.). The Essential Holmes: Selections
›˜–ȱ ŽĴŽ›œǰȱ ™ŽŽŒ‘Žœǰȱ ž’Œ’Š•ȱ ™’—’˜—œȱ Š—ȱ ‘Ž›ȱ ›’’—œȱ ˜ȱ •’ŸŽ›ȱ Ž—Ž•ȱ
˜•–Žœǰȱ
Jr.; POUND. An Introduction to the Philosophy of LawDzȱ ǯȱ Jurisprudence: Realism
in Theory and Practice; COHEN. Transcendental Nonsense and the Functional Approach.
Columbia Law Review, p. 809-849; LEITER. Naturalizing Jurisprudence: Essays on American Legal
Realism and Naturalism in Legal Philosophy. Boa apresentação está em Michael Steven Green
(Legal Realism as Theory of Law. William and Mary Law Review). Na literatura nacional, v.
FONTES. Aspectos do realismo jurídico. Justiça & Cidadania.
147
O movimento dos critical legal studies seria, segundo alguns, uma derivação do realismo jurí-
dico de base mais política. Com ele, compartilharia a ideia de que normas e precedentes não
determinariam o Direito. Ao contrário do realismo, no entanto, os estudos críticos acreditariam
que o Direito seria, na verdade, política (Law is politics) e que, de modo geral, prestar-se-ia a ser
instrumentalizado pelas classes economicamente dominantes com o propósito da manutenção
do status quo. Sendo assim, nada impediria — de fato, haveria muitos estímulos — que fosse
tomado por operadores politicamente conscientes em prol da mudança social. Diferentemente
do realismo jurídico, os critical legal studies adquiriram certa projeção na doutrina brasileira dos
anos sessenta e setenta, embora, hoje, já não possuam tanta força nem nos EUA nem no Brasil.
Por todos, Mark Kelman (A Guide to Critical Legal Studies). No Brasil, resumindo o histórico
do movimento, mas adotando tom crítico — imaginar que o Direito se iguala à política aca-
baria negando efetividade ao Direito —, ver a primeira parte da obra de Paulo Ricardo Schier
(SCHIER. Filtragem constitucional: construindo uma nova dogmática jurídica).
148
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 84.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
67

Pode-se acrescentar, ainda, terceira distinção, já não mais por conta


de Posner. Enquanto, para o realismo, há de se ser sempre cético em relação
às normas e ao Direito institucional, o pragmatismo não é tão rigoroso e
admite que se possa recorrer a normas, precedentes, e ao raciocínio silo-
gístico que os acompanha, desde que se o faça por razões pragmáticas.149
O pragmatismo jurídico de Posner, teoria simples, chã, cujo objetivo
é secundar uma prática jurídica que funcione, pode ser resumido como
uma diretriz para que as autoridades decisórias não se preocupem apenas
com as consequências imediatas de suas decisões — mas, de toda forma,
preocupem-se com consequências.
É uma teoria da adjudicação que não nega o Estado de Direito, mas é
›Žœ˜•žŠ–Ž—ŽȱŠ—’˜›–Š•’œŠȱŽȱŒ˜—œ’Ž›Šȱ—¨˜ȱ‘ŠŸŽ›ȱ—ŠŠȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠ–Ž—Žȱ
diferente na forma como um juiz resolve uma questão jurídica do modo
como um homem de negócios soluciona um problema de administração.
Na preferência por decisões menos abrangentes quando do início da
consolidação de tendências, assim como na opção por não decidir quando
’œœ˜ȱœ’—’ęšžŽȱŠȱ’—ŸŠ•’Š³¨˜ȱ™›Ž–Šž›ŠȱŽȱŠ³äŽœȱ™ø‹•’ŒŠœǰȱŠȱŽ˜›’Šȱ“ž›Ç’ŒŠȱ
™›Š–Š’œŠȱ–˜œ›ŠȬœŽȱœ’–™¤’ŒŠȱ¥ȱ›Žà›’ŒŠȱŽȱŠ—’™¤’ŒŠȱ¥ȱ’•˜œ˜ęŠȱŽȱ¥ȱŽ˜›’Šȱ
˜›Š•ǯȱŒ›Ž’Šǰȱ™˜›ȱę–ǰȱšžŽǰȱŽ–ȱŒŠœ˜œȱ’ÇŒŽ’œǰȱŠœȱŠž˜›’ŠŽœȱŽŒ’œà›’Šœȱ
nada podem fazer além de chegar a resultados razoáveis (os quais não são
o mesmo que resultados demonstrativamente corretos sob crivo lógico).

1.3.2 Ataque e contra-ataque: o pragmatismo jurídico de


Posner em questão
As críticas dirigidas à versão jurídica do pragmatismo de Richard
Posner são variadas, e vão desde aspectos técnicos150 até observações tri-
viais.151 Optamos por selecionar seis delas.

149
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 32 et seq.
150
ȱ ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ “ž›Ç’Œ˜ȱ Žȱ ˜œ—Ž›ǰȱ Š˜ȱ “žœ’ęŒŠ›ȱ ™›¤’ŒŠœȱ Œ˜—œŽ›ŸŠ˜›Šœǰȱ —¨˜ȱ œŽ›’Šȱ œžęŒ’Ž—Ž-
mente pragmático, tal como o entenderia, digamos, John Dewey. V. SULLIVAN; SOLOVE. Can
Pragmatism be Radical?: Richard Posner and Legal Pragmatism. Yale Law Journal. Algumas linhas
merecem ser ditas a esse respeito. A teoria de Posner prefere deixar que a sociedade experimente
antes de tomar partido (judicial) a respeito das questões. “Um dos valores do pragmatismo é seu
›ŽŒ˜—‘ŽŒ’–Ž—˜ȱŽȱšžŽȱŽ¡’œŽ–ȱ¤›ŽŠœȱ˜ȱ’œŒž›œ˜ȱŽ–ȱšžŽȱŠȱŠ•ŠȱŽȱꗊ•’ŠŽœȱŒ˜–ž—œȱ˜‹œŠȱŠȱ
›Žœ˜•ž³¨˜ȱ›ŠŒ’˜—Š•DzȱŽǰȱŠšž’ǰȱ˜ȱŒ˜—œŽ•‘˜ȱ™›Š–¤’Œ˜ȱŠ˜ȱœ’œŽ–Šȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ·ȱ™Š›ŠȱšžŽȱꚞŽȱŽ–ȱœ’•¹—Œ’˜ǰȱ
preserve caminhos de mudança, não agite desnecessariamente as águas políticas”. Sob tal pers-
pectiva, o pragmatismo jurídico de Posner é pouco ativista — justamente o contrário da tônica
principal das críticas — e, de certa forma, política e socialmente conservador. Nem sempre, con-
tudo, não intervir corresponde a manter as coisas como estão. A sociedade pode estar mudando,
e a intervenção judicial servir de veículo ao conservadorismo econômico ou social (por exemplo,
a Suprema Corte americana contemporânea ao New Deal era economicamente conservadora e
“ž’Œ’Š•–Ž—ŽȱŠ’Ÿ’œŠǼǯȱŽȱ˜Šȱ˜›–ŠǰȱŽ–‹˜›ŠȱœŽ“ŠȱŸŽ›ŠŽȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŽ–ȱ
especial com Dewey, seja progressista, não é por isso que o pragmatismo jurídico precisará o ser.
Š›ŠȱŠȱŒ’Š³¨˜ȱšžŽȱ›Š—œŒ›ŽŸŽ–˜œǰȱŸǯȱǯȱ‘Šȱ‘Šœȱ›Š–Š’œ–ȱ˜ȱ쎛ȱŠ ǵǯȱIn: BRINT;
ȱǻ›ǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 42.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
68 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

As críticas são as seguintes: (i) o pragmatismo jurídico estimularia


uma amplíssima discricionariedade judiciária ao ignorar a força dos prece-
dentes e ao não se submeter ao Direito legislado; (ii) a concretização dos
–Ž•‘˜›Žœȱ›Žœž•Š˜œȱ™˜œœÇŸŽ’œȱ—¨˜ȱŽ–™›ŽœŠ›’ŠȱœžęŒ’Ž—Žȱrespeito aos direitos
fundamentais, que viriam a ser trunfos diante de considerações utilitaristas;
(iii) o pragmatismo de Posner seria incompleto, porque manda decidir da
melhor forma possível, sem indicar nenhum critério do que isso viria a ser;
(iv) o pragmatismo jurídico, considerando as características do processo
judicial e a competência institucional do Judiciário, seria pouco prático,
já que o caminho mais fácil e barato para a produção dos pretendidos
melhores resultados decisórios seria o formalismo; (v) o pragmatismo
estimularia negativamente o Legislativo quanto à qualidade das leis que este
Ÿ’›’Šȱ Šȱ ™›˜ž£’›Dzȱ ꗊ•–Ž—Žǰȱ ǻŸ’Ǽȱ Šœȱ Ÿ’œäŽœȱ ’—œ›ž–Ž—Š•’œŠœȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ȱ
— da qual o pragmatismo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão
da ideia de bem comum, com uma série de consequências negativas para a
noção de Estado de Direito (redução da natureza vinculante das normas
“ž›Ç’ŒŠœǰȱŠŒ’•’Š³¨˜ȱŠȱŒŠ™ž›ŠȱŠœȱŠž˜›’ŠŽœȱŽŒ’œà›’Šœǰȱ’—Ž—œ’ęŒŠ³¨˜ȱ
e perenização da litigiosidade na sociedade).151
Após apresentar as críticas, indicaremos algumas das possíveis
›Žœ™˜œŠœǰȱ—¨˜ȱŒ˜–ȱ˜ȱ’—ž’˜ȱŽȱŽŽ—Ž›ȱŠȱŽ˜›’Šȱǻ—¨˜ȱ·ȱ˜ȱŒŠœ˜ǰȱŒ˜–˜ȱꌊ›¤ȱ
Œ•Š›˜ȱ—Šȱ™Š›Žȱꗊ•ȱ˜ȱŒŠ™Çž•˜Ǽǰȱ–Šœȱ™Š›ŠȱœŽ›ȱŠ‹›Š—Ž—Žǯ
Comecemos com a crítica mais comum, dirigida ao pragmatismo
jurídico como um todo, não apenas à versão de Posner: (i) o pragmatismo
jurídico concederia amplíssima discricionariedade ao Judiciário — e, de resto, às
autoridades julgadoras em geral —, o que seria ilegítimo, tanto no aspecto
técnico-constitucional (violaria a ideia de previsibilidade ínsita ao Estado
Žȱ’›Ž’˜ǼȱšžŠ—˜ȱ—˜ȱꕘœàꌘȬ™˜•Ç’Œ˜ȱǻ·ȱŠȱŒ›Ç’ŒŠȱŠ˜œȱ“žÇ£ŽœȬ•Ž’œ•Š˜›Žœȱ
e à ideia-força da separação das funções estatais).
ŽœœŽȱœŽ—’˜ǰȱŠ•Ž›ȱ Ž——Ž¢ȱŒ˜–Ž—ŠȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ
“é, em certa medida, anárquico e desprovido de standards ou princípios,
quando o Direito requer um razoável grau de uniformidade, estabili-
dade e certeza”.152 O próprio Richard Posner registra o medo, por parte
de alguns, de que o pragmatismo leve à anomia: a ameaça de que juízes

151
A proposta estimularia a pobreza intelectual por reduzir as decisões judiciais e administrativas
ao critério “daquilo que é melhor naquele caso”. Uma espécie de eterno juízo de equidade,
sem que as autoridades precisassem sequer saber nada sobre dogmática jurídica, preceden-
tes e comandos normativos. É crítica injusta. O pragmatismo jurídico não é um decisionismo
desarvorado. É preciso conhecer a doutrina, os precedentes e a legislação para saber como
utilizá-los pragmaticamente. De resto, ao estimular a interdisciplinaridade, o julgador prag-
matista será obrigado a estudar muitas outras disciplinas além daquelas a que estaria acostu-
mado. Nesse sentido, então, o pragmatismo estimula — não empobrece — a intelectualidade
dos aplicadores do Direito. V. POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94-95.
152
KENNEDY. Pragmatism as a Philosophy of Law.ȱŠ›šžŽĴŽȱŠ ȱŽŸ’Ž , p. 72-73.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
69

pragmáticos “desconsiderem os precedentes, a interpretação direta, a doutrina


estabelecida, e outros obstáculos formalistas, tal como os juízes alemães
ę£Ž›Š–ȱ—Šȱ·™˜ŒŠȱŽȱ
’•Ž›Ȅǯ153 Variações dessa crítica falam do desapreço
do pragmatismo jurídico pelo precedente e/ou pelo Direito legislado.154
Se não há barreiras claras ao exercício do poder, poder-se-ia chegar a um
estado de ideologização extrema ou de exercício com base na simples má-
fé. Ter-se-ia, então, uma ditadura dos juízes, tornados ditadores por seu
“pragmatismo jurídico”.
Há algumas maneiras de se defender a teoria. Pode-se alegar, por
exemplo, que o pragmatismo jurídico não é teoria de incidência perma-
nente e que se destina, diretamente pelo menos,155 apenas aos hard cases.156
Seria, então, mais modesta do que, por exemplo, a proposta de Ronald
Dworkin — que pretende fazer uma leitura da Constituição americana
com base em princípios morais157 e cujo resultado pode ser a ampliação
dos poderes dos juízes.158 159 160

153
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 94.
154
“O pragmatismo nega que as pessoas tenham quaisquer direitos; adota o ponto de vista de
que elas nunca terão direito àquilo que seria pior para a comunidade apenas porque alguma
•Ž’œ•Š³¨˜ȱŠœœ’–ȱŽœŠ‹Ž•ŽŒŽžǰȱ˜žȱ™˜›šžŽȱž–Šȱ•˜—Šȱꕎ’›ŠȱŽȱ“žÇ£ŽœȱŠœœ’–ȱŽŒ’’žȱšžŽȱ˜ž›Šœȱ
™Žœœ˜ŠœȱŽ—‘Š–ȱŠ•ȱ’›Ž’˜Ȅȱǻ ǯȱO império do direito, p. 186).
155
Já que se teria o pragmatismo jurídico como teoria da adjudicação de fundo mesmo quando se
adotasse o formalismo.
156
Em diversos momentos, é o que dá a entender o próprio Richard Posner. Quando, por exemplo,
conceitua seu pragmatismo jurídico tendo por base especialmente as decisões pragmáticas
aplicadas aos casos difíceis; quando menciona que o pragmatismo não é sempre nem em todo
lugar a melhor estratégia de adjudicação; quando denota o valor social da expectativa criada
™Ž•Šœȱ—˜›–Šœȱ•Ž’œ•ŠŠœȱŽȱ™Ž•˜ȱ™›ŽŒŽŽ—ŽDzȱšžŠ—˜ȱŽœŒ›ŽŸŽDZȱȃ˜Žȱ˜ȱ“ž’£ȱŽœŠęŠ›ȱŠȱŸŠ•˜›Š³¨˜ȱ
legislativa das consequências? [...] Minha resposta é que apenas em casos extremos o juiz estará
autorizado a abandonar o julgamento legislativo. Porque a circunstância de os juízes abrirem uma
guerrilha contra os legisladores e as cortes superiores é desestabilizadora e, em geral, uma má
coisa, embora não seja sempre algo pior do que a alternativa” (POSNER. Law, Pragmatism and
Democracy, 2003, p. 71, grifos nossos; o segundo itálico está no texto original). Em outro livro,
ꌊȱŠ’—Šȱ–Š’œȱŒ•Š›˜DZȱȃ–ȱ™˜—˜ȱ›Ž•ŠŒ’˜—Š˜ȱ·ȱšžŽȱ˜ȱ’—Ž›ŽœœŽȱœ˜Œ’Š•ȱ—ŠȱŒŽ›Ž£ŠȱŠȱ˜‹›’Š³¨˜ȱ
jurídica requer que o juiz se mantenha bastante próximo ao texto da lei e ao precedente judicial
na maioria dos casos, agindo, na maior parte do tempo, pelo menos, como um formalista”
(POSNER. The Problematics of Legal and Moral Theory, p. 209).
157
CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
158
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 115.
159
Para uma visão geral da teoria do Direito como integridade e da ideia de leitura moral da
Constituição, ver introdução de Ronald Dworkin (Freedom’s Law: the Moral Reading of the
–Ž›’ŒŠ—ȱ˜—œ’ž’˜—ǰȱ™ǯȱŗȬřŞǼǯȱ
¤ȱ’œŒžœœ¨˜ȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱŠȱ—¨˜ȱŠę•’Š³¨˜ȱŽȱ ˜›”’—ȱŠ˜ȱ™›Š-
matismo jurídico, em que pese sua crítica expressa ao movimento. Quem crê nisso parte de
ž–ŠȱŽę—’³¨˜ȱŠ•Š›ŠŠȱŽȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ˜žȱŽȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ǯȱ1ȱ˜ȱšžŽȱŠ£ǰȱ™˜›ȱŽ¡Ž–-
plo, Thomas Grey, ao entender como pragmatistas duas linhas teóricas, a “teoria dos interes-
ses” (tradução aproximada de policy jurisprudence) e a moderna teoria dos direitos. Ambas
ultrapassam o texto legal na defesa de seus respectivos objetivos. No caso da primeira (a “teo-
›’Šȱ˜œȱ’—Ž›ŽœœŽœȄǼǰȱŽ–ȱ™›˜•ȱŽȱŒ˜—ŸŽ—’¹—Œ’ŠœȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠœǰȱž’•’ŠŽȱœ˜Œ’Š•ǰȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŽŒǯǰȱ
sendo seu mais destacado exemplo a própria teoria de Richard Posner. A outra (a moderna
teoria dos direitos) supera o texto legal em favor da defesa e da promoção de direitos morais,

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
70 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Além disso, Posner sugere que o pragmatismo jurídico, por ser


transparente, poderia até reduzir a discricionariedade, ou, pelo menos,
fazer com que fosse exercida de modo cauteloso.160Segundo ele, quando os
juízes não se sentem elos de transmissão de decisões tomadas por outrem
(no caso, o Legislativo), tendem a ser mais cautelosos.161ȱ
ŠŸŽ›ȬœŽȬ’ŠǰȱŠę-
nal, de concordar com Braxton Caven: “Existem apenas duas espécies de
juízes: [...] aqueles que são assumidamente orientados pelos resultados,
e aqueles que também são orientados pelos resultados, mas ou disso não
sabem ou, por variadas razões, declinam admiti-lo”.162
Se não há muitas alternativas à circunstância de que os juízes vão
exercer seu poder discricionário, não é verdade, na opinião de Posner,

como seria o caso da proposta de Dworkin. Ao lado desse pragmatismo estaria o formalismo,
ŠŒ›Ž’Š—˜ȱ—ŠȱŸ’›žŽȱŠȱꍎ•’ŠŽȱ¥ȱ—˜›–Šȱ“ž›Ç’ŒŠDZȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱŽŸŽ›’ŠȱœŽ›ȱž–ȱŒ˜—“ž—˜ȱŽȱ
regras e de princípios objetivos capazes de controlar as decisões daqueles que pretendem ser
œŽžœȱœŽ›Ÿ˜œȱę·’œȱǻ ǯȱ ž’Œ’Š•ȱŽŸ’Ž ȱŠ—ȱ›Š–Š’œ–ǯȱStanford Public Law and Legal Theory
Working Series, p. 5 et seq.). Cf. também a opinião de Margaret Jane Radin, para quem o juiz
Hércules, de Dworkin, aquela entidade contrafática que ele imagina como o ideal de julgador
(inatingível, mas que serve como princípio regulador da prática judicial), dotado de tempo
Žȱ Žȱ Œ˜—‘ŽŒ’–Ž—˜ȱ œžęŒ’Ž—Žœȱ ™Š›Šȱ ’—Ž›Š›ȱ ˜˜œȱ ˜œȱ ™›’—ŒÇ™’˜œȱ –˜›Š’œȱ Š’—Ž—Žœȱ ¥œȱ ‘’™àŽ-
ses concretas e chegar sempre à resposta correta, mesmo e especialmente em casos difíceis,
é um pragmatista, já que está comprometido com a construção de sentido por intermédio de
eventos concretos (adequação e coerência institucional), ao invés de apelar a um ideal abs-
trato de verdade ou de justiça (The pragmatist and the feminist. InDZȱ Dzȱȱǻ›ǯǼǯȱ
Pragmatism in Law and Society, p. 146 et seq.). Já Richard Rorty acredita que não seja necessário
alargar muito o sentido de “pragmatista” para acomodar, juntos, Dworkin e Posner, dada a
banalidade que assola o pragmatismo (The Banality of Pragmatism and the Poetry of Justice.
InDZȱ Dzȱȱǻ›ǯǼǯȱPragmatism in Law and Society, p. 90). Ver, por outro lado, a opinião
Žȱ ‘Š–¢ȱ ˜›Ž‹’—œŒ‘’ǰȱ ™Š›Šȱ šžŽ–ȱ  ˜›”’—ȱ Žę—’’ŸŠ–Ž—Žȱ não é um pragmatista jurídi-
co, sendo determinante para tal afastamento o papel da Moral e da História em sua teoria.
Enquanto, na concepção de Direito como integridade de Dworkin, seus famosos princípios
são o elo de conexão entre o Direito e a Moral, tida como elemento central da adjudicação, o
pragmatismo preocupa-se antes de tudo com a Política (entendida em sentido amplo). Além
disso, a teoria de Dworkin seria atenta e reverente aos precedentes (o juiz Hércules é entidade
que olha para trás ao propor algo novo); mesmo a ideia de interpretação do Direito como
redação de um capítulo numa novela seriada (chain novel) é noção sensível ao precedente
Žȱ¥ȱ‘’œà›’ŠȱŠœȱŽŒ’œäŽœȱǻ›ŠŠȬœŽǰȱŠę—Š•ǰȱŽȱž–ȱnovo capítulo dentro de um mesmo seriado),
Ž—šžŠ—˜ȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ·ǰȱ ™˜›ȱ Žę—’³¨˜ǰȱ ™›˜™˜œŠȱ šžŽȱ ˜•‘Šȱ ™Š›Šȱ ˜ȱ žž›˜ȱ Žǰȱ —˜ȱ –¤¡’–˜ǰȱ
vê a adesão ao passado como estratégia de preservação de expectativas (POGREBINSCHI.
Dworkin e o Pragmatismo Jurídico. In: FILOSOFIA e teoria do direito). Esta discussão está
œžŽ›’Šȱ Ž–ȱ ’Ž˜ȱ Ž›—ŽŒ”ȱ ›žŽ•‘Žœȱ Žȱ Ž›—Š—˜ȱ ŽŠ•ȱ ǻ›Š–Š’œ–˜ȱ Œ˜–˜ȱ ǻ–ŽŠǼȱ Ž˜›’Šȱ
normativa da decisão judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 4, nota de rodapé
—ǯȱşǼǯȱœ™ŽŒ’ęŒŠ–Ž—Žȱœ˜‹›Žȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱŽ—›Žȱ˜œ—Ž›ȱŽȱ ˜›”’—ǰȱŸǯȱǯȱJuízes & casos difí-
ceis: o pragmatismo de Richard Posner e a crítica de Ronald Dworkin.
160
Contrastar com a ideia de que também a teoria de Dworkin só se aplicaria a casos especiais. Na
–Š’˜›’ŠȱŠœȱŸŽ£Žœǰȱ˜ȱ“ž’£ȱ—¨˜ȱ™›ŽŒ’œŠ›’Šȱ’—›ŽœœŠ›ȱŽ–ȱ›Š—Žœȱ“žœ’ęŒŠ³äŽœȱŽà›’ŒŠœǯȱȱ“ž•Š˜›ȱ
“não precisará procurar mais em nossos argumentos interpretativos do que nos textos legais
˜žȱ —˜œȱ ŒŠœ˜œȱ ›Ž•ŠŒ’˜—Š˜œȱ ’›ŽŠ–Ž—Žȱ Œ˜–ȱ Šȱ ‘’™àŽœŽȱ Ž–ȱ šžŽœ¨˜Ȅȱ ǻ ǯȱ Justice in
Robes, p. 54).
161
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 96. Ainda, POSNER. Legal Pragmatism.
Metaphilosophy, p. 155.
162
CRAVEN JR. Paean to Pragmatism. North Carolina Law Review, p. 977.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
71

que o pragmatismo deixe-os livres. Há uma série de restrições materiais,


psicológicas e institucionais que os limita. A doutrina e o precedente criam
um valor social de expectativas que deve ser reconhecido pelo julgador
pragmatista. E o contato direto com diversos assuntos com os quais o
juiz formalista não possui tanta intimidade — como a Economia — faria
com que o pragmatista, supostamente um perigoso agente discricionário,
protegesse mais e melhor, por exemplo, os direitos de propriedade, do
que o formalista (que, às vezes, mercê de seu amor por fórmulas rituais,
acabaria permitindo com que se concretizassem prejuízos).163 Quanto à
pretensa contaminação dos pragmatistas com o poder, a verdade é que as
pessoas conscientes acabariam abusando menos dele.
No pragmatismo, não haveria insubmissão aos precedentes. Haveria
é seu uso pragmático. Na grande maioria das vezes, considerando o valor
social da expectativa, o pragmatista ater-se-ia ao precedente. Não pelos
™›à™›’˜œȱ™›ŽŒŽŽ—ŽœȱȯȱꚞŽȱŒ•Š›˜ȱȯȱ–Šœȱ™Ž•Šȱ™›ŽŸ’œ’‹’•’ŠŽǰȱ™Ž•ŠȱŽœŠ-
bilidade e pela segurança jurídica que possam conferir.164
Questão mais complexa é saber se haverá desrespeito ao Direito
legislado. Ao considerá-lo, para todos os efeitos, mais um topoi junto a
outros — a doutrina, os precedentes, a pesquisa empírica —, parece que
Posner faz pouco caso das leis. Essa é uma das acusações lançadas, entre
tantas, por Dworkin.165 Entretanto, e se o Direito legislado, em alguma
medida, quiser o exercício dessa faculdade pragmática pelos juízes? Não
seria inusitado imaginar tal situação perante o Direito norte-americano,
quiçá diante do Direito brasileiro (ao menos em certa medida, com base
—˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠǰȱŠ›ǯȱřŝǰȱcaput, da Constituição da República).166

163
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, 2003, p. 95-96.
164
Em homenagem ao contraditório, vejam-se, no entanto, alguns comentários críticos de
 ˜›”’—ȱœ˜‹›ŽȱŠȱ™›˜™˜œŠȱŽȱ˜œ—Ž›ȱ™Š›Šȱ˜ȱžœ˜ȱŽœ›Š·’Œ˜ȱ˜œȱ™›ŽŒŽŽ—ŽœǯȱŽ™˜’œȱŽȱŠę›–Š›ȱ
que se trata de algo implausível, Dworkin alega que “o pragmatismo só pode ser resgatado
como uma boa explicação de nossa imagem transversal da decisão judicial por meio de um
mecanismo procustiano que parece extremamente inadequado. Só pode ser resgatado se não
tomarmos as opiniões judiciais em seu sentido literal; precisamos tratar todos os juízes que se
preocupam com leis e precedentes problemáticos como se praticassem uma forma imotivada
de impostura. Devemos vê-los como se inventassem novas regras para o futuro de acordo
com suas próprias convicções sobre o que é melhor para a sociedade como um todo, livres de
quaisquer pretensos direitos que decorreriam da coerência com a jurisprudência, mas apre-
sentando-as, por razões desconhecidas, sob a falsa aparência de regras extraídas do passado”
ǻ ǯȱO império do direito, p. 194). Nas páginas seguintes, Dworkin defende a coerência
judicial por si mesma, não por qualquer valor instrumental, como derivação do princípio da
integridade, entendido este como o dever de tratamento de todos os indivíduos, por parte do
Estado, como agentes morais dignos de igual respeito e de consideração, o que inclui tratá-los
conforme a um conjunto único e coerente de princípios, e não consoante o que entende como
opiniões circunstanciais dos juízes.
165
ȱ  ǯȱO império do direito, passim.
166
No entanto, leia-se, ainda uma vez, a crítica de Dworkin: “É uma tentativa ousada de unir o
pragmatismo e o convencionalismo. Faz do pragmatismo o conteúdo de uma vasta e abrangente

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
72 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Além disso, o Direito legislado não autorizaria nem negaria expressamente


nenhuma teoria interpretativa, então estaríamos em situação de igualdade
em relação a todas.
Finalmente, por que motivo os outros métodos de interpretação
vinculariam mais o Judiciário? Texto e precedentes podem ser manipulados
pelos julgadores. A vinculação entre pragmatismo e ativismo judicial pode
ser empiricamente medida. Não é um dado da vida.167 Se o pragmatismo
“ž›Ç’Œ˜ȱŽȱ˜œ—Ž›ȱ—¨˜ȱœŽȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŽ–ȱŒ˜—Œ›Ž˜ȱȯȱŠ˜ȱŽ›Š›ǰȱ™˜›ȱ‘’™àŽœŽǰȱ
um ativismo judicial incontrolável —, que seja descartado; mas não se vai
saber se é bom ou ruim se não for colocado em ação.
Segunda crítica: (ii) a concretização dos melhores resultados práticos
possíveis —¨˜ȱœŽ›’ŠȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—Žȱ›Žœ™Ž’˜œŠȱŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱŠ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—-
tais. É uma das principais críticas de Dworkin. Construindo sua teoria como
um ataque tanto ao positivismo de Hart, na metodologia jurídica, quanto
ao utilitarismo, na Teoria Política168ȱǻšžŽȱŠ•ž—œȱŸŽŽ–ȱŒ˜–˜ȱŠȱꕘœ˜ęŠȱŽȱ
base do pragmatismo), Dworkin imagina que, ao considerar os melhores
resultados, o juiz pragmatista acabará desmerecendo os direitos e garan-
tias individuais, que, em sua opinião, são verdadeiros “trunfos contra a
opinião das maiorias” e contra qualquer consideração utilitária. Os direitos
fundamentais deveriam ser garantidos contra tudo e contra todos, o que
incluiria qualquer consideração de conveniência ou de oportunidade.169
A objeção é séria, é das mais tradicionais, e não se dirige apenas
ao pragmatismo jurídico de Posner, mas a todas as éticas normativas

convenção segundo a qual os juízes devem decidir seus casos de maneira pragmática. Uma vez
que, na melhor das hipóteses, o convencionalismo não é uma concepção de Direito mais po-
Ž›˜œŠȱ˜ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱŽœœŽȱŒŠœŠ–Ž—˜ȱ’ęŒ’•–Ž—Žȱ–Ž•‘˜›Š›’ŠȱŠȱœ’žŠ³¨˜ȱŽœŽȱø•’–˜ǯȱ
De qualquer modo, porém, esse casamento é uma farsa”. O autor norte-americano explica os
motivos da farsa: “Não é verdade que norte-americanos e ingleses, por exemplo, concordaram
tacitamente em delegar o poder legislativo aos juízes dessa maneira. [...] Já vimos que, assim,
ꌊȱ™˜›ȱŽ¡™•’ŒŠ›ȱž–ȱ›Š³˜ȱ˜–’—Š—ŽȱŠȱ™›¤’ŒŠȱ“ž’Œ’Š•ȱȯȱŠȱŠ’žŽȱšžŽȱ˜œȱ“žÇ£ŽœȱŠœœž–Ž–ȱ
com relação às leis e aos precedentes nos casos difíceis [...]. Não existe, sem dúvida, uma con-
venção que permita aos juízes adaptar seus pontos de vista sobre os direitos das partes a razões
puramente estratégicas. Pelo contrário, como observamos no começo deste livro, a maioria das
™Žœœ˜Šœȱ™Ž—œŠȱšžŽȱ˜œȱ“žÇ£ŽœȱšžŽȱŠŽ–ȱŽœœŽȱ–˜˜ȱœ¨˜ȱžœž›™Š˜›ŽœȄȱǻ ǯȱO império do
direito, p. 196).
167
A respeito do tema, conferir, CROSS; LINDQQUIST. Measuring Judicial Activism.
168
ȱ  ǯȱLevando os direitos a sério, p. VII-VIII. Ainda, CALSAMIGLIA. Ensaio sobre Dworkin.
In: A TESE dos direitos.
169
Para Dworkin, os princípios, em sentido amplo, dividem-se em princípios em sentido estrito —
que dão origens a direitos — e policies (traduzido como “políticas” ou “diretrizes políticas”) —
Œ˜–ȱ˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ•Š˜ȱŽȱ’—Ž›ŽœœŽœȱ™ø‹•’Œ˜œǰȱŒ˜—ŸŽ—’¹—Œ’ŠœȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠœǰȱ–Ž’ŠœȱŽ¡ŽŒž’ŸŠœȱ
etc. Os argumentos de princípio sempre preferem aos argumentos de política. Vale dizer que
as conveniências públicas não suplantam as exigências de justiça, moralidade ou equidade
nas quais se radicam os direitos. É nessa primazia dos argumentos de princípio que reside seu
Š—’ž’•’Š›’œ–˜ȱǻ ǯȱLevando os direitos a sério, p. 128 et seq.). Também SOUZA NETO.
Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, p. 225-228.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
73

consequencialistas. As respostas a ela defendem a existência de situações


nas quais é proibido fazer algo, mesmo útil, ou que, ainda que útil, talvez
não seja necessário fazê-lo. Outras respostas investem numa concepção
ampla do consequencialismo e defendem que o aparentemente subótimo,
‘˜“Žǰȱ™˜ŽȱœŽ›ȱ“žœ’ęŒŠ˜ǰȱŽ–ȱ•˜—˜ȱ™›Š£˜ȱ˜žȱŽ–ȱ›Š—ŽȱŽœŒŠ•Šǰȱ™˜›šžŽȱ
propiciaria utilidade ainda maior do que a advinda da prática daquele
ato então focalizado.
Posner provavelmente responderia que sua teoria não é menos
garantista dos direitos fundamentais do que a adotada por um juiz for-
malista que, debaixo dos panos, manobre argumentos formais em direção
às suas opiniões pessoais. Pelo contrário: o maior contato com a realidade
concreta e a assunção, às claras, das bases pragmatistas fariam com que
o juiz posneriano decidisse melhor e de forma mais responsável do que
o formalista.170
Outra crítica importante diz que o pragmatismo de Posner seria
(iii) incompleto, porque mandaria decidir da melhor forma possível sem
’—’ŒŠ›ȱŒ›’·›’˜ȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱ˜ȱšžŽȱ’œœ˜ȱŸ’›’ŠȱŠȱœŽ›ǯȱ ˜›”’—ȱŠę›–ŠȱšžŽȱŽœœŽȱ
pragmatismo só se sustenta com base numa Teoria Moral substantiva,
precisamente o que ele é incapaz de fornecer, sendo, então, incoerente.171
Adrian Vermeule, também por essa razão, critica Posner como propositor
Žȱž–ȱȃŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œ–˜ȱŠ›˜ęŠ˜Ȅǯ172 Posner recomenda fazer sempre
o que funciona, mas se esquece de estabelecer um critério do que é que
funciona.173
Ilya Somin resume o ponto:
ȱ ™›’—Œ’™Š•ȱ ’ęŒž•ŠŽȱ Œ˜–ȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ Žȱ ˜œ—Ž›ȱ ·ȱ šžŽǰȱ Š™ŽœŠ›ȱ Šȱ
insistência na importância de se tomar decisões baseadas em “fatos e
consequências”, ele não indica nenhuma forma de se decidir quais fatos
e consequências são desejáveis, e quais não são. Sem uma resposta a essa
questão, o pragmatismo não pode servir como uma guia de decisão, muito
menos como um guia superior a teorias alternativas.174

O pragmatismo de Posner, continua Ilya, é muito amplo e muito


restrito. Muito amplo, por não indicar o que o juiz deve excluir de suas
considerações.175 Deve levar em consideração os efeitos sistêmicos; texto e

170
CHIASSONI. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative,
p. 620.
171
ȱ  ǯȱJustice in Robes, p. 59.
172
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 84.
173
ȱ  ǯȱJustice in Robes, p. 24, 64-65.
174
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 3.
175
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 5. Também
Richard Epstein: “Existem tantos graus de liberdade no modo pragmatista de pensar que, ao
ŠŒŽ’Š›ȱ ž˜ǰȱ ŠŒŠ‹Šȱ —¨˜ȱ œ’—’ęŒŠ—˜ȱ —ŠŠȄȱ ǻ ǯȱ ‘Žȱ Ž›’•œȱ ˜ȱ ˜œ—Ž›’Š—ȱ ›Š–Š’œ–ǯȱ
University of Chicago Law Review, p. 639-650).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
74 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

precedentes devem ser tratados como o mais importante material para a


decisão. Não exclui sequer seu principal rival, o formalismo. “Depois de
Œ˜››ŽŠ–Ž—ŽȱŒ›’’ŒŠ›ȱŠȱŒ˜—ꊗ³ŠȱŽ¡Œ•žœ’ŸŠȱŽ–ȱȁŠ‹œ›ŠŠœȱŽ˜›’Šœȱ™˜•Ç’ŒŠœȱŽȱ
morais’, Posner oferece-nos uma teoria que é frequentemente mais vaga e
abstrata do que as que atacava”.176 “Razoabilidade” não é critério melhor
do que “justiça” ou “equidade”. Muito restrito, por não oferecer nenhum
critério seguro sobre o que fazer. O que leva a uma situação contraditória.
“Esse é o dilema do pragmatismo: sem uma teoria moral extrínseca, não
possui poder de guia. Uma vez que tal teoria seja formulada, é ela, e não
o pragmatismo, que se transforma no guia para o processo de tomada de
decisão”.177
Na verdade, pode-se defender a proposta de Posner entendendo-a
como humilde. Ele acredita que, se os juízes agirem pragmaticamente em
relação ao que eles acham melhor, os resultados para a sociedade serão, na
média, melhores.178 Decerto, não indica nenhum guia do que é razoável.
Razoável é o que as circunstâncias, o estudo dos dados concretos, a sensibi-
lidade trazida pela experiência, o input das diversas ciências experimentais,
a análise pragmática da doutrina e dos precedentes, a consideração dos
efeitos sistêmicos das possíveis decisões disserem que é.
A teoria do pragmatismo jurídico de Posner seria pouco prática (iv):
os melhores, mais rápidos e menos custosos resultados decisórios seriam
obtidos, na maioria das vezes, por intermédio de análises formalistas.
Pensemos no Judiciário. Juízes não seriam, em termos de competência
institucional, as melhores pessoas para formular políticas públicas con-
cretas ou tomar decisões na linha all things considered. Não estariam, por
exemplo, acostumados a apreciar materiais não jurídicos.179 Há uma série
de motivos. O fato de não serem eleitos torná-los-ia sociologicamente
distantes dos jurisdicionados, e a vitaliciedade afastá-los-ia ainda mais
de qualquer responsabilidade em relação ao resultado de suas decisões.
Existiriam as constrições relativas ao processo legal. O juiz deve julgar
com o que consta dos autos, não pode ouvir todos os interessados etc. (ao
Œ˜—›¤›’˜ȱ˜ȱ˜Ž›ȱ¡ŽŒž’Ÿ˜ȱŽǰȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ–Ž—ŽǰȱŠœȱŠ¹—Œ’Šœȱ›Žž•Š˜-
ras, que, segundo alguns, seriam as mais propícias a adotar uma teoria
pragmatista da interpretação).180

176
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 8.
177
SOMIN. Richard Posner’s Democratic Pragmatism. George Mason Law & Economics, p. 7.
178
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 122. Daí, inclusive, a sugestão de
˜œ—Ž›ȱŽ–ȱŠŸ˜›ȱŠȱŠ˜³¨˜ȱŽȱž–ȱ ž’Œ’¤›’˜ȱ’ŸŽ›œ’ęŒŠ˜ǰȱŒ˜–ȱ’Ž’ŠœȱŽȱ˜™’—’䎜ȱ‘ŽŽ›˜¹—ŽŠœǯȱ
“Tal Judiciário é mais representativo e suas decisões irão obter, portanto, maior aceitação
—ž–Šȱœ˜Œ’ŽŠŽȱ’ŸŽ›œ’ęŒŠŠȱ˜ȱšžŽȱŠœȱšžŽȱŠŸ’›’Š–ȱŽȱž–ȱ–Š—Š›’—Š˜ȄȱǻǯȱLaw,
Pragmatism and Democracy, p. 120).
179
VERMEULE. Judging under Uncertainty: an Institutional Theory of Legal Interpretation, p. 86 et
seq. chap. 4 - Judicial Capacities: a Case Study.
180
SUNSTEIN; VERMEULE. Interpretation and Institutions. University of Chicago Public Law
Research Paper.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
75

Em favor do pragmatismo jurídico, seja de Posner ou de qualquer


outro, pode-se dizer, como faz Frank Cross, que “o pragmatismo do
pragmatismo é, em essência, uma questão consequencialista que requer
investigação empírica. O pragmatismo pode ser, de fato, pouco pragmático,
mas isso só pode ser descoberto por intermédio de testes”.181 182
Analisando as consequências do pragmatismo à la Posner, alguns
falam que (v) ele produziria incentivos negativos em relação à qualidade das leis.
Se as leis são apenas mais um elemento a ser considerado no julgamento
de um caso, o Poder Legislativo não precisaria se preocupar em elaborar
leis “boas”, completas ou consistentes, porque, de todo modo, seriam de
pouca valia, podendo ser ajustadas pelo julgador no momento de sua
aplicação.183 Contra essa crítica, sem embargo do fato de que, adotando-se
o pragmatismo ou não, o “ajuste” no caso concreto sempre existiu, vale
sublinhar que o argumento admite reversão: pode ser que o pragmatismo
jurídico, ao contrário, encoraje o exercício legislativo mais intenso e profí-
cuo, ao neutralizar o medo, por parte do Legislador, de que circunstâncias
não concebidas no momento da edição de lei venham a produzir efeitos
—ŽŠ’Ÿ˜œǯȱȱšžŽœ¨˜ȱ·ǰȱ–Š’œȱž–ŠȱŸŽ£ǰȱŽ–™Ç›’ŒŠǯȱ¨˜ȱ·ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱŠę›–Š›ȱ
ou negar nada antes de ver a teoria em ação.

181
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 125. Posner pretende ver compro-
vação das virtudes do pragmatismo jurídico no sucesso econômico dos países da Common Law
em relação aos da Civil Law. Naqueles, os juízes agem de modo menos amarrado a scripts, ao
passo que, por formação e tradição, os juízes da Civil Law são mais formalistas. Em nossa opi-
nião, não é boa prova. O sucesso econômico depende de uma miríade de fatores que podem
nada ter a ver com o grau de formalismo jurídico dos países. V. POSNER. Law, Pragmatism and
Democracy, p. 95-96.
182
A questão do pragmatismo jurídico consiste em saber se a teoria é a mais útil ou, ao menos, com-
parativamente mais útil do que sua principal rival, o formalismo jurídico. Questão a ela ligada é
œŠ‹Ž›ȱœŽȱŠœȱŽ˜›’Šœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱȯȱŽȱŠšž’ȱ—¨˜ȱ’–™˜›ŠȱšžŠ•ȱȯȱ’—ĚžŽ—Œ’Š–ȱ—Šȱ™›¤’ŒŠȱŠȱŠ“ž’ŒŠ³¨˜ǯȱ
As respostas a essas perguntas, até aqui, têm sido desanimadoras para os teóricos do Direito,
œžŽ›’—˜ȱšžŽȱŠȱ’—Ěž¹—Œ’Šȱ·ȱ–Ž—˜›ȱ˜ȱšžŽȱœŽȱŽœ’–ŠǯȱŽ“ŠȬœŽǰȱ™˜›ȱŽ¡Ž–™•˜ǰȱ˜ȱŽœž˜ȱŽȱŠ—’Ž•ȱ
Farber, que selecionou quatro decisões julgadas por Richard Posner e Frank Easterbrook, na mes-
ma corte, em ocasiões em que houve dissenso entre os dois julgadores. Posner é um dos grandes
defensores do pragmatismo jurídico. Easterbrook, por sua vez, além de juiz, é teórico defensor
do formalismo como critério de adjudicação. No entanto, e de modo contrário ao que fariam crer
seus posicionamentos teóricos, ambos os juízes, na prática, souberam transitar, ao sabor de cada
caso, por posições que se aproximavam, ora do pragmatismo, ora do formalismo. Não havia, in
concreto, nenhuma consistência em relação às teorias que professavam. V. FARBER. Do Theories
˜ȱŠž˜›¢ȱ —Ž›™›ŽŠ’˜—ȱŠĴŽ›ǵDZȱŠȱŠœŽȱž¢ǯȱNorthwestern University Law Review, p. 1409 et
seq. Estudo mais recente comprovou que o formalismo teórico de Antonin Scalia, juiz da Suprema
Corte americana, não se projetava em sua prática como justice, que se baseava nos mesmos
métodos que os demais juízes (nesses métodos estavam incluídas técnicas como a análise dos
™›˜™àœ’˜œȱŠȱ•Ž’ǰȱŽȱ—ǝ’˜ȱŒž—‘˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠǼǯȱǯȱ ǯȱ˜ȱŠœȱ ȱ˜ǰȱ—˜ȱŠœȱ ȱœŠ¢DZȱŠ—ȱ
Empirical Investigation of Justice Scalia’s Ordinary Meaning Method of Statutory Interpretation.
University of San Diego Legal Research Papers.
183
ȱ   ǯȱ‘¢ȱŽŠ›—Žȱ
Š—ȱ˜ž•ȱŽŸŽ›ȱ˜—œž•ȱŽ’œ•Š’ŸŽȱ
’œ˜›¢ȱ˜Š¢ǯ Harvard Law Review,
passim.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
76 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Finalmente, (vi) as visões instrumentalistas do Direito — da qual o


pragmatismo jurídico é exemplo — propiciariam a corrosão da ideia de bem
comum, com uma série de consequências negativas para a noção de Estado
de Direito (redução da natureza vinculante das normas jurídicas, facili-
Š³¨˜ȱŠȱŒŠ™ž›ŠȱŠœȱŠž˜›’ŠŽœȱŽŒ’œà›’Šœǰȱ’—Ž—œ’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱ™Ž›Ž—’£Š³¨˜ȱ
da litigiosidade na sociedade).
É a crítica de Brian Tamanaha, resumida a seguir.
Em que pese a difusão atual da ideia de instrumentalismo do Direito,
nem sempre foi assim. Há alguns séculos, acreditava-se que o Direito
possuísse conteúdo determinado. A fonte do conteúdo não importava: ou
era Deus, a natureza, a razão humana, ou derivações lógicas de princípios
legais. Para essa visão não instrumental, o conteúdo do Direito “existiria”.
A criação das leis seria mais uma descoberta do que outra coisa, e o Direito
™˜œœž’›’ŠȱŠž˜—˜–’ŠȱŽȱž—’ŠŽȱ’—Ž›—ŠȱȯȱœŽ›’ŠǰȱŽ—ę–ǰȱž–ȱ˜˜ȱŒ˜Ž›Ž—Žǯȱ
As leis naturais da tradição católica, o Direito consuetudinário medieval,
o Direito da Common Law em suas origens, tudo representava o não instru-
mentalismo. O Direito não era criação nem estava a serviço de ninguém.184
A partir do Iluminismo, a situação começou a mudar. As normas
passaram a ser vistas como fonte da ordem social, não mais como o próprio
ordenamento social, o que permitiria, em longo prazo, discutir questões
Œ˜–˜ȱœžŠȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ˜žȱœžŠȱž’•’ŠŽǯ
A revolução instrumentalista deu-se no século XIX, quando, segundo
Horwtiz, citado por Tamanaha, baseado na experiência americana, “gru-
™˜œȱ’—žœ›’Š’œȱŽȱŒ˜–Ž›Œ’Š’œȱ˜›“Š›Š–ȱž–ŠȱŠ•’Š—³ŠȱŒ˜–ȱŠȱ™›˜ęœœ¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠȱ
para concretizar seus interesses por intermédio de uma transformação do
sistema jurídico”.185
O século XX assistiu a seu triunfo: o realismo jurídico, o primeiro
pragmatismo jurídico (do juiz Holmes), a visão sociológica do Direito de
Roscoe Pound e de Jhering.186 Não só na teoria, mas também, e principal-
mente, na prática da adjudicação, do que é exemplo o court-packing plan de
Franklin Roosevelt: uma suprema corte que invalidava leis atributivas de
benefícios sociais mudou de opinião quando ameaçada por proposta de lei
que criava novos cargos de juízes no Judiciário federal, a serem indicados
pelo presidente eleito.187 O projeto, mal recebido pelo Congresso, acabou

184
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 11-12.
185
ȱ
 ǰȱ ˜›˜—ǯȱ The transformation of American Law, 1780-1860. Cambridge: Harvard
University Press, 1977, p. 1 apud TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of
Law, p. 24.
186
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 60-76.
187
Duas semanas e meia após ser reeleito por histórica maioria de votos, Franklin Delano Roosevelt
apresentou projeto de lei que criaria uma vaga adicional para cada juiz do Judiciário federal
com mais de setenta anos. A intenção declarada era a de acelerar o julgamento dos processos.
A capacidade de oposição da Suprema Corte aos projetos de lei advindos do New Deal restaria

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
77

não sendo aprovado. Alguns contestam a ideia de que teria havido reação
de temor por parte da Suprema Corte — talvez ela já estivesse mudando
sua opinião quanto à possibilidade de intervenção do Estado na econo-
mia188 —, mas o que importa é a percepção pública de que o Direito era
um instrumento nas mãos de um grupo de juízes, políticos, empresários,
partidos, associações.
˜–˜ȱŠę›–Šȱ›’Š—ȱŠ–Š—Š‘ŠDZ
O ponto crítico foi a quase universal percepção de que a pressão externa na
Corte realizou o truque. A mensagem mais profunda aos observadores, a
partir desse evento, foi a de que a interpretação judicial da Constituição era,
para além de qualquer dúvida, produto das visões de juízes individuais, e isso
ꌘžȱŽ–˜—œ›Š˜ȱŽȱ–˜˜ȱ–Š’œȱŒ˜—Ÿ’—ŒŽ—Žȱ˜ȱšžŽȱ˜˜œȱ˜œȱŠ›’˜œȱ˜œȱ
realistas jurídicos juntos. [...] Os juízes da Suprema Corte não poderiam,
Šȱ ™Š›’›ȱ Žȱ Ž—¨˜ǰȱ Šę›–Š›ǰȱ Œ˜–ȱ Œ›Ž’‹’•’ŠŽǰȱ šžŽȱ Ž›Š–ȱ ˜›¤Œž•˜œȱ •ŽŠ’œȱ
meramente pronunciando as palavras da Constituição.189

Nos anos 60, 70 e 80 do mesmo século, novas teorias, como a aná-


lise econômica do Direito,190 os critical legal studies, o movimento Law and

virtualmente neutralizada porque, embora isso não haja sido dito em nenhum momento, era
óbvio que as indicações caberiam ao presidente eleito, que conseguiria maioria a partir de seus
indicados.
188
ȱ 
ǯȱ˜—œ’ž’˜—Š•ȱ‘Š—ŽȱŠ—ȱ‘ŽȱŽ ȱŽŠ•DZȱ‘Žȱ —Ž›—Š•’œȦ¡Ž›—Š•’œȱŽ‹ŠŽǯȱ
189
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 80-81.
190
A análise econômica do Direito, conhecida em inglês pelo termo Law and Economics, é movi-
mento que, surgido em meados do século passado, pressupõe que os indivíduos envolvidos
com o Direito ajam como maximizadores racionais de satisfações. Há duas assertivas básicas,
uma descritiva — o Direito funcionaria com o propósito de aumentar a riqueza, ou seja, as
normas e práticas jurídicas pretenderiam facilitar a atribuição de bens, valores e serviços a
quem mais os valorizasse —, outra, prescritiva — o Direito deve funcionar assim. O movimento
“žœ’ęŒŠȱŠ’œȱŠœœž—³äŽœȱŠ•ŽŠ—˜ȱšžŽȱ™˜žŒŠœȱ™Žœœ˜ŠœȱœŽȱ˜™˜›’Š–ȱŠȱ’œœ˜ǰȱŽȱšžŽȱŠœȱœ˜Œ’ŽŠŽœȱ
ocidentais contemporâneas perceberiam as funções públicas de modo utilitarista, sendo certo
que a maximização de riqueza seria forma de concretizar tal percepção. No mundo atual,
Œ˜–ȱœžŠȱ™•ž›Š•’ŠŽȱŽȱꗜǰȱ–Š¡’–’£Š›ȱŠȱ›’šžŽ£ŠȱœŽ›’Šȱ—˜³¨˜ȱœ’–™•ŽœȱšžŽȱ™Ž›–’’›’ŠȱŠŒ˜›˜ȱ
šžŠ—˜ȱŠȱž–Šȱø—’ŒŠȱꗊ•’ŠŽȱŠȱœŽ›ȱ‹žœŒŠŠǯȱȱ–˜Ÿ’–Ž—˜ȱœ˜›ŽȱŒ›Ç’ŒŠœDZȱŠȱ’Ž’ŠȱŽȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ
—¨˜ȱ·ȱ—Ž–ȱ™˜Ž›’ŠȱœŽ›ȱ˜ȱø—’Œ˜ȱę–ȱ˜ȱ’›Ž’˜Dzȱ‘¤ȱž–ȱŸ’·œȱŽŒ˜—˜–’ŒŠ–Ž—ŽȱŒ˜—œŽ›ŸŠ˜›ȱ™˜›ȱ
detrás de suas propostas; a teoria não daria devida atenção a questões de justiça distributiva; a
Š—¤•’œŽȱŽŒ˜—â–’ŒŠȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ™Š›’›’ŠȱŽȱ™›Žœœž™˜œ’³äŽœȱŒ˜—Žœ¤ŸŽ’œȱŽȱœ’–™•’ęŒŠ˜›ŠœȱǻŒ˜–˜ȱ
a associação do comportamento humano à de um maximizador racional), chegando a resulta-
dos pouco úteis; os cálculos e técnicas exigidos pela teoria seriam complicados e estariam além
Šȱ Š™’¨˜ȱ ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱ ˜›’—¤›’Šȱ Žȱ “žÇ£Žœȱ Žȱ ŠŸ˜Š˜œǯȱ ˜œȱ ǰȱ ˜ȱ –˜Ÿ’–Ž—˜ȱ Ššž’›’žȱ
bastante penetração, em especial na área do antitruste e da responsabilidade civil. No Brasil,
‘¤ȱŠ•ž–Šȱ’ęŒž•ŠŽȱšžŠ—˜ȱ¥ȱœžŠȱŠŒŽ’Š³¨˜ǰȱŽȱ˜ȱ˜–ǰȱŽ–ȱŽ›Š•ǰȱ·ȱŒ›Ç’Œ˜ǰȱŠ™ŽœŠ›ȱŽȱœžŽœ-
tões interessantes quanto a algumas apropriações em certas áreas (como no Direito Processual
Civil). No Direito Concorrencial, como ocorre nos Estados Unidos, o uso é mais difundido,
mas isso por características próprias da área. O grande autor do Law and Economics é, nova-
mente, Richard Posner, e, por isso, alguns associam o movimento ao pragmatismo jurídico.
Existem, sem dúvidas, proximidades — o uso da economia como técnica decisória de apoio é
uma —, apesar de o pragmatismo jurídico posneriano ser mais uma atitude geral em relação
ao Direito do que um corpo de propostas de conteúdo, como é o caso do Law and Economics.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
78 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Society191 e o próprio pragmatismo jurídico assentaram o instrumentalismo


jurídico como uma espécie de lugar-comum na sala de aula e de audiência.
Embora partindo de diferentes pontos de vista, todos concorriam para
Šę›–Š›ȱŠȱ—˜³¨˜ȱŽȱšžŽȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ·ȱ–Ž’˜ȱ™Š›Šȱž–ȱę–ȱȯȱœŽ“ŠȱŽ•ŽȱšžŠ•ȱ˜›ǯȱ
O Direito não é mais percebido (senão retoricamente) como possuindo
algum componente desinteressado, prévio ou superior. Ele agora é um
meio. Ele agora é só um meio.
E o problema está aí. Perde-se a visão de que o Direito deva pro-
mover, em alguma medida, o bem comum. Numa sociedade heterogênea,
na medida em que o Direito é apenas instrumento, ele se torna arma num
campo de batalha, ao sabor dos lobbies, dos grupos de pressão, das ideo-
logias. Enquanto se pensava num Direito não instrumental, fosse por qual
razão, ainda havia sentido na noção de limites superiores ao Direito. O
Direito instrumental não encontra limites em quase nada que ultrapasse
a opinião de seus aplicadores. Tudo pode ser ponderado, adaptado, ins-
trumentalizado à obtenção do resultado pretendido. Perde-se certa noção
de integridade, de núcleo de valores ou de propósitos ínsitos ao Direito:
“Quando o Direito perde sua própria integridade, há pouco que o separe
de qualquer outra ferramenta ou arma”.192
Enquanto ainda era plausível, em sociedades menos heterogêneas,
falar-se em algum conceito unitário de bem comum, a equação podia
fechar. “O Direito é simples instrumento destinado à promoção do interesse
™ø‹•’Œ˜ȄǯȱÇǰȱ ž–Šȱ Ÿ’œ¨˜ȱ ’—œ›ž–Ž—Š•’œŠȱ ŽœŠ›’Šȱ “žœ’ęŒŠŠǯȱ —›ŽŠ—˜ǰȱ
hoje, não há nada que se assemelhe a essa unidade de propósitos. Um
˜œȱŽ›–˜œȱŠȱŒ˜—ŠȱŽœŠ™Š›ŽŒŽžDzȱ˜ȱ˜ž›˜ȱ˜’ȱ™˜Ž—Œ’Š•’£Š˜ȱŠ˜ȱ’—ę—’˜ǯȱȱ
frase agora é: “O Direito é simples instrumento”. A percepção da prática
jurídica é a de indivíduos e grupos competindo agressivamente em defesa

Não há, em todo caso, contradição entre as ideias: a partir de uma atitude pragmatista, o jul-
Š˜›ȱ™˜ŽȱœŽȱž’•’£Š›ȱŽȱ·Œ—’ŒŠœȱŽŒ˜—â–’ŒŠœǰȱꕝ›ŠŠœȱ™˜›ȱœžŠȱŠ™›ŽŽ—œ¨˜ȱŸ’Šȱ–˜Ÿ’–Ž—˜ȱLaw
and Economics. Para uma apresentação do movimento, v. POSNER. Law and Economics in
Common-Law, Civil-Law, and Developing Nations. Ratio Juris. Introdução a algumas técnicas
está em COPE et al. Analytical Methods for Lawyers, p. 375-472. Uma discussão dos possíveis
usos do movimento no Processo Civil está em Flávio Galdino (Introdução à análise econômi-
ca do Processo Civil (I): os métodos alternativos de solução de controvérsias. Quaestio Iuris,
p. 171-204). Para as relações entre pragmatismo jurídico e análise econômica do Direito, v.
COTTER. Legal Pragmatism and the Law and Economics movement. Georgetown Law Journal,
p. 2071-2141. Analisando o Posner do movimento Law and Economics e o Posner do pragma-
tismo jurídico, v. KRECKÉ. Economic Analysis and Legal Pragmatism. International Review of
Law and Economics.
191
Trata-se de movimento teórico de origem norte-americana que, descendendo do realismo ju-
rídico e da sociologia jurídica de Pound, atualiza o debate sociológico aos dias atuais. As aten-
ções não são propriamente dogmáticas, mas se voltam a temas como “ordem social”, “controle
œ˜Œ’Š•Ȅǰȱȃ–žŠ—³Šȱ“ž›Ç’ŒŠȄǰȱȃ’Ž˜•˜’ŠȄǰȱȃ™›˜ęœœ¨˜ȱ•ŽŠ•Ȅǯȱǯȱ
ǯȱŠ ȱŠ—ȱ˜Œ’Ž¢ǯȱ
Saint John’s University School of Law legal Studies Research, p. 1-25.
192
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 219.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
79

de seus interesses — raciais, econômicos, sociais — com pouquíssima


possibilidade de compromisso.193
O instrumentalismo jurídico, do qual o pragmatismo jurídico seria
a teoria contemporânea da vez, tornou o Direito até mais propício a essa
captura. Se as normas jurídicas não possuem um núcleo essencial de cor-
›Ž³¨˜ǰȱŽȱœŽȱŠȱŠ“ž’ŒŠ³¨˜ȱ·ȱŠȱ‹žœŒŠȱ™Ž•Šȱ›ŽŠ•’£Š³¨˜ȱŽȱꗊ•’ŠŽœȱ›Š£˜¤ŸŽ’œȱ
a partir da consideração de diversas variáveis relevantes, não há nada de
errado em que ele se preste a promover o interesse empresarial de A ou
B, ou o do grupo X ou Y. São, apenas, mais alguns interesses, desses de
que o Direito está cheio.
Central à crítica do instrumentalismo jurídico é a ideia de debilitação
do Estado de Direito. Se o juiz não está vinculado, em sentido forte, às nor-
mas jurídicas, não estará vinculado a nenhuma norma. Numa sociedade
plural, decidir conforme as preferências de cada julgador é fazer pouco
caso das exigências de isonomia, estabilidade, previsibilidade.194
“A condição sine qua non do Estado de Direito é buscar decidir os
casos de acordo com o Direito”.195 A verdadeira ameaça das visões instru-
–Ž—Š•’œŠœǰȱ—˜ȱŽ—Š—˜ǰȱ—¨˜ȱŽœ¤ȱŽ–ȱŠę›–Š›ȱšžŽȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱ·ȱ’—œ›ž–Ž—˜ȱ
™Š›ŠȱšžŠ•šžŽ›ȱꗊ•’ŠŽǰȱ—Ž–ȱŽ–ȱŽœŠŒŠ›ȱŠȱ’–™˜›¦—Œ’Šȱ˜œȱŠ›ž–Ž—˜œȱ
práticos. A ameaça está em propagar aos juízes e às autoridades públicas
que não há alternativa a não ser decidir conforme as melhores consequên-
cias, incorporando ilimitadamente as opiniões pessoais como únicas ou
principais razões de decidir.
Nada pode ser feito quanto aos recônditos profundos do intelecto humano.
No entanto, pode-se evitar que o juiz abra mão da natureza vinculante do
Direito, tentando descobrir o que é que ele exige (por mais incerto que
seja), trocando tudo isso por uma manipulação instrumental das normas
“ž›Ç’ŒŠœǰȱŒ˜–ȱ˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŽȱŒ‘ŽŠ›ȱŠȱž–Šȱꗊ•’ŠŽȱŽœ™ŽŒÇꌊǰȱ™Š›ŽŒ’˜ȱ
com a forma como um advogado atua.196

A essa altura, já podemos prever as respostas de Richard Posner.


O pragmatismo jurídico é inevitável. Juízes sempre serão pragmatistas,
goste-se ou não. O pragmatismo não é sinônimo de decisionismo, porque
considera normas e precedentes, ainda que venha a usá-los por cálculo
pragmático. O juízo pragmático é uma ponderação entre consequências
imediatas e consequências sistêmicas. Na maioria das vezes, o juiz prag-
matista vai se comportar como um formalista. E assim por diante.

193
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 223.
194
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 242.
195
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.
196
TAMANAHA. Law as a Means to an end: Threat to the Rule of Law, p. 244.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
80 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

1.3.3 Outros pragmatismos jurídicos: as versões de Michael


Sullivan, Stephen Breyer e Jules Coleman
Existem teorias menos difundidas do pragmatismo jurídico. Apre-
sentemos algumas.
A primeira é a de Michael Sullivan, contida no livro Legal Pragmatism:
Community, Rigths, and Democracy.197 Sua proposta possui três inimigos:
o comunitarismo, a caracterização de pragmatismo jurídico feita por
Dworkin, e o pragmatismo de Posner — e um herói: John Dewey.
O comunitarismo, movimento acadêmico americano que critica
suposta ênfase contemporânea no discurso dos direitos, sem que valorize
a ideia de deveres públicos e a construção de ideais comunitários,198 é ata-
cado porque, na prática, notar-se-ia, ao contrário, a prevalência de metas
comunitárias diante de direitos individuais. Sullivan traz exemplos.199 A
sociedade americana precisaria de direitos individuais mais fortes, não
menos, e nisso o pragmatismo poderia ajudar, com sua atenção ao contexto
e sua ênfase nas consequências.200
˜—›Šȱ ˜›”’—ǰȱž••’ŸŠ—ȱŠę›–ŠȱšžŽȱŽ•ŽȱŠ™›ŽœŽ—Š›’ŠȱȃŽœ™Š—Š•‘˜Ȅȱ
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ǰȱšžŽȱȃŠ•ŸŽ£ȱ—Ž—‘ž–ȱę•àœ˜˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱŽŽ—ŠȄ.

197
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy.
198
Comunitarismo é rótulo debaixo do qual é agrupada uma série de autores, principalmente
Š–Ž›’ŒŠ—˜œȱǻ˜ȱŽ‹ŠŽȱœž›’žȱ•¤ȱ—˜ȱꗊ•ȱ˜ȱœ·Œž•˜ȱǼǰȱšžŽǰȱ¥ȱ™Š›Žȱ™›Ž˜Œž™Š³äŽœȱŽœ™ŽŒÇꌊœǰȱ
destacam a importância do aspecto comunitário numa era em que o discurso dos direitos
individuais e, com ele, o próprio individualismo, teria ido longe demais. Há uma tese descri-
tiva — a sociedade americana contemporânea priorizaria, de modo excessivo, o indivíduo, em
detrimento da esfera pública e da comunidade — e uma tese prescritiva — far-se-ia necessário
priorizar a comunidade. Outros temas e estilos de argumentos sublinham os deveres públicos
(em contraposição aos direitos individuais) e a importância dos direitos positivos prestacio-
nais. Os comunitaristas opõem-se, no debate acadêmico, aos liberais, entendida a palavra na
acepção americana, isto é: teóricos preocupados com a posição do indivíduo, mas que também
não descuidam de interesses redistributivos. A discussão é abstrata, mas incide concretamente
em polêmicas como o aborto, a abertura ao multiculturalismo em colégios públicos, a univer-
salidade dos direitos humanos, polêmicas nas quais se espera que o comunitarista defenda
posição mais culturalmente relativista, e o liberal, posição universalista. Entre os teóricos co-
–ž—’Š›’œŠœǰȱŽ–‹˜›Šȱ–ž’˜œȱ—ŽžŽ–ȱŠę•’Š³¨˜ǰȱŽœŠŒŠ–ȬœŽȱ’Œ‘ŠŽ•ȱŠ•£Ž›ǰȱ’Œ‘ŠŽ•ȱŠ—Ž•ȱ
Žȱ ‘Š›•Žœȱ Š¢•˜›ǯȱ ǯȱ ǯȱ Esferas da justiça: uma defesa do pluralismo e da igualdade;
SANDEL. Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy; TAYLOR (Org.).
El multiculturalismo y “la política del reconocimiento”. Em português, ver, por exemplo, SILVA. A
crítica comunitarista aos liberais. In: TORRES (Org.). Teoria dos direitos fundamentais, p. 197-242.
199
Num caso em que se discutia a validade da expulsão de aluno do ensino médio que profe-
riu discurso irônico numa campanha eleitoral interna (Fraser versus Bethel School District), a
Suprema Corte optou por mantê-lo fora do colégio com o argumento de que a liberdade de ex-
pressão não superaria o interesse público consistente em ensinar decoro social aos estudantes.
Outro caso, em 1987, Daryll Olesen foi suspenso da escola por usar brinco. O colégio alegou
que fazia parte do protocolo de vestuário proibir a utilização de adereços de gangues, embora
o aluno tivesse mencionado que usava o brinco apenas para expressar sua individualidade.
A Suprema Corte, em Olesen versus Board of Education of School District, manteve a suspensão,
Šę›–Š—˜ȱ šžŽǰȱ —Šȱ ŽœŒ˜•Šǰȱ ˜œȱ Š•ž—˜œȱ ŽŸŽ›’Š–ȱ Š™›Ž—Ž›ȱ —¨˜ȱ Š™Ž—Šœȱ
’œà›’Šȱ Žȱ —•¹œǰȱ –Šœȱ
também como se comportar em sociedade.
200
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 25-26.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
81

Uma das críticas de Dworkin ao pragmatismo jurídico refere-se à despreo-


cupação em relação ao passado. À pergunta “o que é melhor para o futuro?”
responder-se-ia sem olhar para trás. Sullivan diz que não é assim. O prag-
matismo aceitaria o precedente, sem, no entanto, ver nele valor ontológico.
Isso não é desprezo pelo passado. Ao contrário. Citando Dewey, Sullivan
sustenta que o parâmetro sobre o que é o melhor no futuro diz respeito
a problemas do presente, que chegaram por intermédio do passado.201
Contra Posner, Sullivan, apesar de concordar com a crítica diante
ŽȱŒŽ›Šȱꕘœ˜ęŠȱŽœ·›’•ǰȱŠŒ›Ž’ŠȱšžŽȱ˜ȱ“ž’£ȱŽ››˜žȱ—Šȱ˜œŽǯȱ˜ȱ›Ž“Ž’Š›ȱŠȱ
’•˜œ˜ęŠȱ™˜›ȱ’—Ž’›˜ǰȱœŽžȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱŠŒŠ‹Š›’ŠȱœŽ—˜ȱ™’˜›ȱ˜ȱšžŽȱ
˜ȱŽœ™Š—Š•‘˜ȱŽȱ ˜›”’—ǯȱŽ–ȱŽ—Œ˜—›Š›ȱž’•’ŠŽȱ™Š›ŠȱŠȱŽ˜›’£Š³¨˜ȱꕘœà-
ꌊǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ™˜œ—Ž›’Š—˜ȱ—¨˜ȱœŽȱ™›ŽœŠ›’Šȱ¥ȱŒ›Ç’ŒŠȱŽȱ¥ȱ›ŽŒ˜—œ›ž³¨˜ȱ
de práticas insatisfatórias — pilares do pragmatismo à Dewey — e acabaria
servindo à aquiescência ao status quo.202 Haveria, nisso, uma incompreensão
šžŠ—˜ȱŠ˜ȱ™Š™Ž•ȱŠȱŽ˜›’Šȱ—Šȱꕘœ˜ęŠȱ™›Š–Š’œŠȱǻŽȱŽ Ž¢ǰȱŒ˜–˜ȱœŽ–-
pre). Não se trataria de aprender a teoria e fazê-la incidir na prática, mas
de tornar a prática mais inteligente graças à teoria. “Isso não requer uma
razão teórica capaz de determinar seus objetivos para além das práticas
históricas; requer, na verdade, uma abordagem crítica e reconstrutiva em
relação às instituições sociais e às práticas”.203
O pragmatismo de Posner jogaria fora o bebê e a banheira. Termos
como “justiça” e “igualdade” possuiriam curso na linguagem ordinária
Š—ŽœȱŽȱŠ™Š›ŽŒŽ›Ž–ȱŽ–ȱŽ‹ŠŽœȱꕘœàꌘœǯȱȱ™›˜™˜œŠȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱ
›ŽŒ˜—œ›ž’›ȱœŽžȱœ’—’ęŒŠ˜ȱ™›’˜›’£Š—˜ȱŠȱŽ¡™Ž›’¹—Œ’Šǯȱ˜œ—Ž›ȱ›ŽŒ˜–Ž—ŠȱšžŽȱ
sejam colocados de lado. Ora, abandonados à própria sorte, eles poderiam
ser apropriados e destinados a seja qual for o mau uso.
žŠ—˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŽȱ˜œ—Ž›ȱ—¨˜ȱ’—’ŒŠȱšžŠ•šžŽ›ȱę–ǰȱŽ›ŠŠȬœŽȱ
Ž–ȱ™˜žŒ˜ȱ–Š’œȱ˜ȱšžŽȱž–ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŽȱŽęŒ’¹—Œ’Šǯȱ ¤ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŽȱ
Sullivan, na linha clássica, buscaȱœŽžœȱꗜȱ™˜›ȱ’—Ž›–·’˜ȱŠȱŒ›Ç’ŒŠȱŽȱŠȱ
Ž¡™Ž›’–Ž—Š³¨˜ǰȱŽœŠȱ˜œȱꗜȱŠžŠ•–Ž—ŽȱŠ˜Š˜œǰȱ•ŽŸŠ—ŠȱœžŠœȱ˜›’Ž—œȱŽȱ
™›˜™àœ’˜œǰȱŽœŒŠ›ŠȬ˜œȱŽ–ȱ‹žœŒŠȱŽȱꗊ•’ŠŽœȱ–Ž•‘˜›Žœǯ204
Há consequências práticas a partir dessas duas maneiras de se en-
tender o pragmatismo. Enquanto o pragmatismo de Posner recomenda a

201
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 35. Ainda, p. 41: “O
pragmatismo pode ser tudo, menos hostil, por princípio, a estudar as relações entre decisões
presentes e passadas. Até porque é apenas por intermédio de comparações assim que as deci-
sões atuais podem ser melhoradas”.
202
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 53.
203
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 54.
204
ȱ ȃ˜—Žȱ Žȱ –Ž›˜ȱ –·˜˜ȱ šžŽȱ ˜›—ŽŒŽȱ ™˜žŒŠȱ ˜›’Ž—Š³¨˜ȱ ¥œȱ —˜œœŠœȱ ꗊ•’ŠŽœȱ —˜›–Š’ŸŠœǰȱ ˜ȱ
™›Š–Š’œ–˜ȱ™Ž›–’ŽȱšžŽȱ›ŠŸŽ–˜œȱŽ‹ŠŽœȱꕘœàꌘœȱŠȱœŽžȱ›Žœ™Ž’˜ȱœŽ–ȱ˜ȱŠ™Ž•˜ȱŠȱŠ‹œ›Š³äŽœȱ
vazias. O pragmatismo é um convite a uma espécie diferente de debate — um debate que o
pragmatismo posneriano ignora por completo” (SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community,
Rights, and Democracy, p. 63).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
82 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

autocontenção judicial como forma de abrir espaço ao experimentalismo


legislativo, o pragmatismo de Sullivan não se compromete com nenhum
parti pris e está aberto à experimentação legislativa, mas também à judi-
cial; tanto o ativismo judicial quanto o self-restraint podem ser estratégias
pragmáticas.205
Viu-se, até aqui, a par destruens do pragmatismo de Michael Sullivan.
Qual é sua par construens?
Com base em Dewey, ele propõe uma teoria reconstrutiva do Direito
šžŽȱ‹žœšžŽȱŠœȱ˜›’Ž—œȱ˜œȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱ“ž›Ç’Œ˜œDZȱ™Š›ŠȱšžŽȱꗜȱœŽ›ŸŽ–ǵȱ–ȱ
que contextos de poder surgiram? Como as instituições os aplicam? Como
se pode fazer para que funcionem melhor? O próprio Direito passaria a
ser entendido como instrumento destinado ao cultivo de condições que
favoreçam o crescimento do indivíduo, no qual tudo vai depender do
conhecimento mais profundo possível acerca das consequências de cada
decisão. Essas consequências não devem ser entendidas do modo restrito
Œ˜–˜ȱ ˜œ—Ž›ȱ Š£ǰȱ “¤ȱ šžŽȱ ›ŽĚŽ¡äŽœȱ Žà›’ŒŠœȱ Žȱ —˜›–Š’ŸŠœǰȱ Žȱ œŠ‹˜›ȱ –Š’œȱ
ꕘœàꌘǰȱŠ–‹·–ȱ™˜œœžŽ–ȱŸŽ£ǯȱ’—Šȱ’–™˜›Š—Žȱ·ȱŠȱ™Ž›ŒŽ™³¨˜ȱŽȱšžŽȱ
’›Ž’˜œȱœ¨˜ǰȱŠ˜ȱ–Žœ–˜ȱŽ–™˜ǰȱꗜȱŽȱ–Ž’˜œǯȱŽ’˜œȱ™Š›ŠȱŠȱœ˜Œ’ŽŠŽȱ™›˜ŽŽ›ȱ
˜œȱŒ’Š¨˜œȱŠȱŠžŠ³¨˜ȱ’›¦—’ŒŠȱ˜ȱœŠ˜ǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱꗜǰȱ›Žœž•Š˜œȱ
da atividade legislativa que, nessa qualidade, devem ser respeitados e
defendidos.206
Em suma: o pragmatismo jurídico de Sullivan é uma atualização
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŽȱŽ Ž¢ǰȱŽŽ—’˜ȱŒ˜—›ŠȱŠ–’˜œȱŽȱ’—’–’˜œȱ
atuais. Da parte dos amigos, Posner, com seu pragmatismo jurídico con-
œŽ›ŸŠ˜›ǰȱŽȱœŽ—œ˜ȱŒ˜–ž–ǰȱ™˜žŒ˜ȱ–Š’œȱ˜ȱšžŽȱ·Œ—’ŒŠȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠǯȱŠȱ
parte dos inimigos, Dworkin e seu pragmatismo-espantalho, sustentado
por ninguém, que transforma a teoria num inimigo do passado, quando
tal acusação jamais poderia ser legitimamente lançada a uma proposta
que procura as melhores consequências, e, para isso, jamais poderia abrir
mão da pesquisa histórica.
O juiz Stephen Breyer, da Suprema Corte americana, é considerado
um magistrado pragmatista. Contudo, só em 2005 veio a lume a defesa
teórica de sua posição. É o livro Active Liberty: interpreting our democratic
constitution.207 A obra inspira-se no conceito de liberdade ativa, de Benjamin
Constant. À liberdade dos antigos, ativa, de participação política, dever-
se-ia associar conceito mais moderno de liberdade, a liberdade negativa,
espaço de não interferência estatal.
A ênfase do livro é na liberdade ativa. Breyer defende que os tri-
bunais, e, em especial, a Suprema Corte, devam ser sensíveis ao espírito

205
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 63-66.
206
SULLIVAN. Legal Pragmatism: Community, Rights, and Democracy, p. 98-99.
207
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
83

democrático da Constituição americana.208 Isso se concretizaria não numa


teoria interpretativa completa, mas numa questão de estilo na hora de
julgar.209 Diante dos elementos que os juízes consideram antes de decidir
ȯȱ•’—žŠŽ–ǰȱ˜—Žœȱ‘’œà›’ŒŠœǰȱ™›ŽŒŽŽ—Žœǰȱꗊ•’ŠŽœȱŠȱ—˜›–ŠȱŽȱŒ˜—-
sequências concretas —, Breyer defende que a ênfase deva recair sobre as
ꗊ•’ŠŽœȱŽȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǯȱ1ȱŠÇȱšžŽȱ›Žœ’ŽȱœŽžȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜DZȱ—Šȱ
importância das consequências para o julgamento.
A ideia de liberdade ativa entende que a Constituição incorpora
alguns propósitos básicos, expressos em termos gerais. Nas palavras de
Breyer:
A compreensão e a ênfase nesses propósitos básicos ajudará o juiz a melhor
Ž—Ž—Ž›ȱŽȱŠ™•’ŒŠ›ȱŠœȱ’œ™˜œ’³äŽœȱŽœ™ŽŒÇꌊœǯȱ•Žȱǽ˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱŠȱ•’‹Ž›ŠŽȱ
Š’ŸŠǾȱ ’Ž—’ęŒŠȱ Šœȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ Œ˜–˜ȱ ž–ȱ ’–™˜›Š—Žȱ Œ›’·›’˜ȱ ™Š›Šȱ œŽȱ
–Ž’›ȱ Šȱ ꍎ’—’ŠŽȱ Žȱ ŽŽ›–’—ŠŠȱ ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱ Šȱ ŽœœŽœȱ ™›˜™àœ’˜œȱ
democráticos básicos. Em síntese, o foco nos propósitos busca promover a
liberdade ativa insistindo em interpretações, tanto da Constituição quanto
da legislação infraconstitucional, que sejam consistentes com os desejos dos
Œ’Š¨˜œǯȱȱ˜Œ˜ȱ—ŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǰȱ™˜›ȱœžŠȱŸŽ£ǰȱ™Ž›–’ŽȬ—˜œȱŸŽ›’ęŒŠ›ȱœŽȱŽȱ
em qual extensão tivemos êxito em auxiliar a produção de resultados que
›ŽĚ’Š–ȱŠ’œȱŽœŽ“˜œǯ210

A liberdade ativa implica autocontenção judicial, mas é, de certo


modo, seletiva, porque admite ativismo quando se trata de garantir as
Œ˜—’³äŽœȱŠȱ™›à™›’Šȱ Ž–˜Œ›ŠŒ’Šǯȱȱ ¹—ŠœŽȱ —Šœȱꗊ•’ŠŽœȱŠȱ —˜›–Šȱ Žȱ
em suas consequências deve sempre ser compatível com a ideia de pro-
moção da maior participação dos cidadãos. A liberdade ativa recomenda
’—Ž›™›ŽŠ›ȱ Šȱ —˜›–Šȱ Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȱ Œ˜—˜›–Žȱ œžŠœȱ ꗊ•’ŠŽœǰȱ Žȱ —¨˜ȱ Žȱ
modo excessivamente preso ao texto ou à intenção original dos autores.211
–ȱ Ž›–˜œȱ Œ˜—Œ›Ž˜œǰȱ ’œœ˜ȱ œ’—’ęŒŠȱ —¨˜ȱ ŽŒ’’›ȱ Žȱ –˜˜ȱ –ž’˜ȱ
abrangente questões de privacidade, ainda mais diante das transformações
tecnológicas (o pragmatismo recomenda experimentação, não decisões
precipitadas numa área em constante mutação);212 validar leis que esta-
‹Ž•Ž³Š–ȱ•’–’ŽœȱŠ˜ȱꗊ—Œ’Š–Ž—˜ȱŽȱŒŠ–™Š—‘ŠœȱŽ•Ž’˜›Š’œȱǻŒ˜–ȱŸ’œŠœȱŠȱ
ŽŸ’Š›ȱŠȱŽ™Ž—¹—Œ’ŠȱŽ¡ŒŽœœ’ŸŠȱŠ˜ȱꗊ—Œ’Š–Ž—˜ȱŒ˜–˜ȱŒ˜—’³¨˜ȱ™Š›ŠȱœŽ›ȱ
eleito, o que poderia restringir parcelas ideológicas e grupos sociais);213
superar o atual entendimento da Suprema Corte americana que proíbe a
edição de leis federais impondo a participação de agentes estaduais e locais

208
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 5.
209
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 7.
210
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 115.
211
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 85-101.
212
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 66-74.
213
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 43-50.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
84 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

em programas administrativos conjuntos (tal possibilidade favoreceria o


federalismo cooperativo e, por decorrência, implicaria maior participação
local e regional na gestão pública);214 manter as decisões judiciais que vali-
Š›Š–ȱŠœȱ™˜•Ç’ŒŠœȱŽȱŠ³¨˜ȱŠę›–Š’ŸŠȱǻž›–Šœȱ‘ŽŽ›˜¹—ŽŠœȱ’›¨˜ȱ™›Ž™Š›Š›ȱ
melhor os estudantes, tanto para a sociedade quanto para o mercado);215
ser deferente às interpretações administrativas das agências reguladoras,
menos em questões extremamente relevantes (em tais casos, seria razoável
imaginar que o legislador pretendesse ele próprio decidir, e não a autori-
dade regulatória).216
’Š—Š—˜ȬœŽȱ¥œȱŒ›Ç’ŒŠœǰȱ›Ž¢Ž›ȱŠę›–ŠȱšžŽȱŠȱ™›˜™˜œŠȱ—¨˜ȱŽ’¡Šȱ
–Š›Ž–ȱŽ¡ŒŽœœ’ŸŠȱ¥ȱœž‹“Ž’Ÿ’ŠŽȱ˜ȱ“ž•Š˜›ǯȱꗊ•ǰȱž–ȱ“ž’£ȱšžŽȱŽ—Š’£Šȱ
as consequências, como qualquer outro, deve estar atento aos precedentes,
às normas do Direito positivo, aos standards, às práticas institucionais. Focar
—ŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ—¨˜ȱœ’—’ęŒŠȱŒ˜˜—ŽœŠ›ȱ–žŠ—³Šœȱ“ž›Ç’ŒŠœȱ›Š–¤’ŒŠœȱ
e corriqueiras. Os juízes, incluindo os consequencialistas, entendem que
mudanças radicais e rotineiras interferem com as necessidades humanas
Žȱ™›ŽŸ’œ’‹’•’ŠŽǰȱŒ˜—ꊗ³Šǰȱ™•Š—Ž“Š–Ž—˜ǯȱ
¤ǰȱŠ’—ŠǰȱŠȱ—ŽŒŽœœ’ŠŽȱ’—’-
vidual, por parte de cada juiz, de ser consistente no tempo, o que limita
ainda mais a discricionariedade (citando a juíza Sandra O’Connor, Breyer
menciona que as decisões de cada juiz deixam pegadas que ele, depois,
provavelmente vai seguir).217
Considerar as consequências não é sinônimo de o juiz apontar
quais são as melhores consequências em sua opinião. O julgador deve
ŸŽ›’ęŒŠ›ȱšžŠ’œȱŠœȱ–Ž•‘˜›ŽœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ™˜›ȱ’—Ž›–·’˜ȱŠœȱ•Ž—Žœȱ˜œȱ
valores constitucionais. “Os valores constitucionais pertinentes limitam as
possibilidades interpretativas. E, se são valores democráticos, podem até
aconselhar modéstia ou autocontenção”.218
Levar as consequências a sério traz, como benefício adicional, a
›Š—œ™Š›¹—Œ’Šǯȱ–ŠȱŽŒ’œ¨˜ȱšžŽȱ›ŠŽȱ’›ŽŠ–Ž—ŽȱŽȱŸŠ•˜›Žœǰȱꗊ•’ŠŽœȱ
da norma e consequências práticas, mas deixa às claras suas motivações,
de modo que todos possam criticar, não é menos subjetiva do que uma que
œŽȱ™›Ž—ŠȱŠȱœž™˜œŠȱꍎ’—’ŠŽȱ¥ȱ’—Ž—³¨˜ȱ˜›’’—Š•ȱ˜œȱŽ•Š‹˜›Š˜›Žœȱ
da Constituição americana. Crítica é controle.
Podemos resumir a proposta de Breyer como a de teoria pragmática
da interpretação jurídica que advoga, sem descartar os elementos tradicio-
—Š’œǰȱž–Šȱ¹—ŠœŽȱ—Šœȱꗊ•’ŠŽœȱŽȱ—ŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ™›¤’ŒŠœȱŠȱ—˜›–Šǰȱ
à luz do propósito de reforçar a participação dos cidadãos nas escolhas

214
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 58-62.
215
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 75-84.
216
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 102-108.
217
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 119-120.
218
BREYER. Active Liberty: Interpreting our Democratic Constitution, p. 120.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
85

públicas. Em muitos casos, isso implicará uma atitude de respeito às decisões


Œ˜—’Šœȱ—Šœȱ•Ž’œǰȱŽ¡ŒŽ˜ȱšžŠ—˜ȱ’—Ž›ę›Š–ȱŒ˜–ȱŠȱ™›à™›’ŠȱŒŠ™ŠŒ’ŠŽȱŽȱ
participação ou de manifestação democrática. Não se trata de proposta
que descambe para o subjetivismo dos julgadores, porque estes sempre
apreciarão as consequências à luz dos valores constitucionais pertinentes ao
caso, porque terão em mente a necessidade de estabilidade e de segurança
—˜ȱ’›Ž’˜ǰȱŽȱ™˜›šžŽǰȱŠ˜ȱŠœœž–’›ȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŽȱŠœȱꗊ•’ŠŽœȱŠȱ—˜›–Šȱ
como critérios importantes para a decisão, estarão sendo transparentes e
expondo-se à crítica.
Claro que o livro de Breyer sofreu objeções. Uma das críticas mais
consistentes veio com Cass Sunstein, que indicou dois problemas. O pri-
–Ž’›˜ȱœŽ›’Šȱ˜ȱŽȱ’Ž—’ęŒŠ›ǰȱŒ˜–ȱ™›ŽŒ’œ¨˜ǰȱ˜œȱ™›˜™àœ’˜œȱŠȱ—˜›–ŠȱȯȱŽ¡˜œȱ
legais raramente forneceriam indicativos seguros. O segundo aponta a
falha de que, se as consequências devessem ser realmente levadas a sério,
poderia ser que se terminasse adotando ideias rejeitadas por Breyer, como
o textualismo, o originalismo, a deferência absoluta à interpretação das
agências.
ȱ™›’–Ž’›ŠȱŒ›Ç’ŒŠȱ·ȱŠȱ›Š’Œ’˜—Š•ȱŠȱ’—Žę—’³¨˜ǰȱ’–™›ŽŒ’œ¨˜ȱŽȱ’—œŽ-
gurança, que viriam com a adoção de propostas interpretativas relativa-
mente descoladas do texto legal. O julgador, ao buscar a vontade da lei,
acabaria encontrando a sua própria. A segunda crítica tem a ver com a
ideia de pragmatismo do pragmatismo, a distinção entre teoria normativa
da decisão e metateoria, o “consequencialismo de segunda ordem”: é
que, a se julgar uma decisão pela correção de suas consequências, talvez
o mais sensato — considerando dados como competência institucional do
ž’Œ’¤›’˜ǰȱŠ™’¨˜ȱ™Š›Šȱ“ž•Š–Ž—˜ȱ›¤™’˜ǰȱœ’–™•’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱ›˜’—Šœȱȯȱ˜œœŽȱ
a adoção de teorias não pragmatistas.219
De toda sorte, concordando-se ou não com Breyer, a verdade é que
se trata de importante proposta de teoria pragmática que, sem causar tanta
polêmica quanto a de Posner (Breyer defende, essencialmente, uma ênfase
em certos elementos da teoria interpretativa tradicional, sem, contudo,
›Ž“Ž’¤Ȭ•ŠǰȱŽȱ—¨˜ȱ˜™’—Šȱœ˜‹›ŽȱŠȱž’•’ŠŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǼǰȱœŽ›ŸŽȱ
como contraponto às ideias mais radicais deste, e à tentativa de reabilitação
de Dewey formulada por Michael Sullivan.
Antes de concluirmos o item, uma última defesa do pragmatismo
jurídico merece ser lembrada, não pelo que propõe, mas pelo uso que faz
do termo. É a versão de Jules Coleman apresentada no livro The practice of
principle: in defence of a pragmatist approach to legal theory.220
Š•ȱŸŽ›œ¨˜ȱ—¨˜ȱ•Ž–‹›Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŒ•¤œœ’Œ˜ǰȱ˜ȱ—Ž˜™›Š-
matismo de Rorty e seguidores, muito menos o pragmatismo jurídico

219
SUNSTEIN. Justice Breyer’s Democratic Pragmatism.
220
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
86 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

“pé no chão” de Posner. É pragmatismo técnico, que lida com ideias como
˜ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱœŽ–¦—’Œ˜ȱ˜œȱŒ˜—ŒŽ’˜œȱŽȱŽȱ›Ž›Šœȱ’—Ž›Ž—Œ’Š’œǰȱŽȱšžŽȱ—¨˜ȱ
deriva de Peirce ou James, mas de Quine, Donald Davidson e Hilary
Putnam. É pragmatismo jurídico hardcore, que lamenta que o termo, “com
ž–Šȱ‘’œà›’Šȱ•˜—ŠȱŽȱ’•žœ›Žȱ—Šȱ’•˜œ˜ęŠȱ—˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—ŠȄǰȱŽ—‘ŠȱŒŠÇ˜ȱ—˜ȱ
gosto dos juristas.
Cinco são suas características, mas deixemos que Coleman tente
explicar:
(1) Um compromisso com um não-atomismo semântico; (2) a visão de
que o conteúdo dos conceitos deve ser explicada em termos de seu papel
’—Ž›Ž—Œ’Š•ȱ—Šœȱ™›¤’ŒŠœȱŽ–ȱšžŽȱꐞ›Ž–ȱǻœŽ–¦—’ŒŠȱ’—Ž›Ž—Œ’Š•ȱ™›¤’ŒŠȱŠȱ
ž—³¨˜ǼDzȱǻřǼȱŠȱŸ’œ¨˜ȱŽȱšžŽǰȱ¥œȱŸŽ£ŽœǰȱŠȱŽ¡™•’ŒŠ³¨˜ȱꕘœàꌊȱŽȱž–Šȱ™›¤’ŒŠȱ
assume a forma da demonstração de como certos princípios estão incorpo-
rados (explanação pela incorporação); (4) a visão de que o modo no qual
ž–ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱꐞ›ŠȱŽ–ȱž–Šȱ™›¤’ŒŠȱ’—ĚžŽ—Œ’ŠȱœžŠȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱŠŽšžŠŠȱŽ–ȱ
relação a todas as outras, e que, nesse sentido, as práticas devem ser vistas
de modo holístico; e (5) um comprometimento, por princípio, com uma
revisabilidade de todas as crenças, categorias de pensamento etc.221

O propósito do livro não é o de avançar uma teoria pragmatista do


Direito, mas o de defender três pontos: a base da responsabilização civil é
a ideia de justiça corretiva; uma versão do positivismo jurídico “inclusivo”;
uma teoria descritiva do Direito. A obra segue em tom denso, e seu prag-
matismo é distante de tudo o que vimos; distancia-se mesmo de tradição
tão pluriforme quanto a do pragmatismo jurídico.
Como era de se esperar, Posner é crítico em relação à obra. Fala
šžŽȱ˜•Ž–Š—ȱžœŠǰȱ—˜ȱ•’Ÿ›˜ǰȱŸŽ›œ¨˜ȱ˜›˜˜¡Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱ
entendido no sentido mais abstruso possível — sentido que se recusa a
ter qualquer coisa a ver com Dewey, James e Rorty —, para defender o
positivismo e determinada teoria de responsabilidade civil. “O livro de
˜•Ž–Š—ȱ ·ȱ –ž’˜ȱ Š‹œ›Š˜ȱ ™Š›Šȱ œŽ›Ÿ’›ȱ Šȱ ž–ȱ ™›˜ęœœ’˜—Š•ȱ “ž›Ç’Œ˜Dzȱ —¨˜ȱ
consigo ver nele qualquer utilidade para as questões discutidas aqui”.222
Também Dworkin, criticando o trabalho de Coleman, comenta que o autor
utiliza o termo de uma maneira que não guarda nenhuma conexão com a
tradição pragmatista norte-americana.223
Três autores — Sullivan, Breyer e Coleman —, três pragmatismos
jurídicos. Alguns mais próximos, outros menos, da proposta teórica mais
famosa e criticada, que é a de Posner. O pragmatismo jurídico, seja como
teoria normativa ou como metateoria, está longe de ser aceito de modo

221
COLEMAN. The Practice of Principle: in Defence of a Pragmatist Approach to Legal Theory, p. 6.
222
POSNER. Law, Pragmatism and Democracy, p. 42.
223
ȱ  ǯȱ‘’›¢ȱ¢ŽŠ›œȱ˜—ǯ Harvard Law Review.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
87

›Š—šž’•˜ȱ˜žȱŽȱœ’—’ęŒŠ›ȱŠ•˜ȱø—’Œ˜ȱ˜žȱŒ˜Žœ˜ǯȱ’—ŠȱŠœœ’–ǰȱ·ȱž–ŠȱŠœȱ
mais importantes teorias jurídicas contemporâneas.

1.4 O pragmatismo na argumentação jurídica


Acabamos de apresentar a principal teoria do pragmatismo jurídico
junto a algumas outras. Também mencionamos que, de modo a responder
a críticas, alguns sugerem que o pragmatismo jurídico seja entendido
como metateoria jurídica: teoria feita para auxiliar na escolha de teorias
normativas da decisão.
Há, entretanto, outros possíveis usos do pragmatismo jurídico.
Fala-se, por exemplo, na incidência do pragmatismo na elaboração
legislativa, terreno em que a aceitação é consensual.224ȱꗊ•ǰȱ˜ȱ“žÇ£˜ȱ™˜•Ç-
tico consistente na produção de leis é, por excelência, pragmático. Embora
condicionado pelo respeito à Constituição, o legislador mira, antes de
tudo, o resultado.225 Numa contraposição, o juiz aplicaria a norma jurídica
baseado nos fatos apresentados e, tradicionalmente, não se preocuparia com
os resultados da decisão (daí a existência de parêmias como Fiat Justitia,
pereat mundus); já o legislador criaria a norma a partir de resultado esperado.
O juiz aplica a norma aos fatos. O legislador cria a norma a partir de um
fato hipotético: o resultado ao qual se quer chegar.
Mas é outra a incidência que vai agora nos ocupar. É o estudo do
lugar do argumento pragmático/consequencialista na interpretação jurídica.

224
ȱ Dzȱ  ǯȱ ŠŒ’˜—Š•’Šȱ Žȱ •Šœȱ “žœ’ęŒŠŒ’˜—Žœȱ Œ˜—œŽŒžŽ—Œ’Š•’œŠœȱ Ž—ȱ •Šœȱ ŽŒ’œ’˜—Žœȱ
judiciales. Isonomía, p. 155.
225
Tradicionalmente, a teoria (alguns chamam de “ciência”) da legislação propõe dois enfoques
para as constrições incidentes junto ao processo legislativo: o enfoque minimalista — as cons-
›’³äŽœȱœŽ›’Š–ǰȱŠ™Ž—ŠœǰȱŠšžŽ•Šœȱ›ŽŽ›Ž—Žœȱ¥ȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ˜œȱ–Ž’˜œȱ•Ž’œ•Š’Ÿ˜œǰȱœŽ–ȱœŽȱ˜Œž™Š›ȱŽȱ
šžŠ•šžŽ›ȱŠ—¤•’œŽȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱŽȱœŽžœȱꗜȱȯǰȱŽȱ˜ȱŽ—˜šžŽȱ–Š¡’–Š•’œŠǰȱšžŽȱŠŒ›Ž’Š›’ŠȱšžŽȱ˜œȱ
Œ›’·›’˜œȱŠȱ›Š£¨˜ȱ™›¤’ŒŠȱœŽ›’Š–ȱŠ™•’Œ¤ŸŽ’œȱ—¨˜ȱŠ™Ž—ŠœȱŠ˜œȱ–Ž’˜œǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱ¥œȱꗊ•’ŠŽœȱ
˜œȱ™›˜“Ž˜œǯȱŽ–ȱŽ—›Š›ȱ—˜ȱ–·›’˜ȱŠȱ’œ™žŠǰȱŠę›–Š–˜œȱšžŽȱ˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱ•Ž’œ-
lação é sempre o de produzir um estado de coisas tido como ideal — mesmo quando se trate de
legislação simbólica, a produção do efeito-símbolo é o que se busca —, o que envolve raciocínio
pragmático. É possível ser pragmatista tanto ao se optar por enfoque minimalista quanto maxi-
malista; basta, ao projetar o ato normativo, fazê-lo com vistas à produção de resultados. Há,
ainda, outro sentido no qual se pode encetar estudo pragmático da legislação, que é quanto à
sua efetiva adesão pela sociedade (“a lei vai pegar?”), o que a doutrina jurídica e os estudos so-
Œ’˜•à’Œ˜œȱŒ‘Š–Š–ȱŽȱŽŽ’Ÿ’ŠŽȱ˜žȱŽęŒ¤Œ’Šȱœ˜Œ’Š•ȱŠȱ—˜›–ŠǯȱŠ›Šȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱœ˜‹›Žȱ˜œȱŽ—˜šžŽœȱ
da teoria da legislação, v. CÓRDOBA. Racionalidad legislativa: crisis de la ley y nueva ciencia de
la legislación, p. 275-343. Ver ainda, sobre o processo legislativo e seus processos de valoração
e avaliação, Ángeles Galiana Saura (La ley: entre la razón y la experimentación, especialmente
cap. III, IV). Interessante proposta teórica, dando notícia da pouca atenção tradicionalmente
ŽŸ˜ŠŠȱ¥ȱ•Ž’œ•Š³¨˜ȱ—˜ȱŽ‹ŠŽȱŒ˜—Ž–™˜›¦—Ž˜ǰȱŸŽ–ȱŽ–ȱžŒȱ ǯȱ’—Ž—œȱǻŽ’œ™›žŽ—ŒŽȱŠœȱŠȱ
New Theory of Legislation. Ratio Juris). Para a clássica apresentação, no Brasil, sobre o problema
(pragmático) da efetividade das normas constitucionais, v. BARROSO. O direito constitucional e
a efetividade de suas normas: limites e possibilidades da Constituição brasileira.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
88 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Vamos estudar as propostas de Neil MacCormick, Aulius Aarnio e Luigi


Mengoni. A seleção de autores não é arbitrária. Todos irão nos auxiliar
na construção de nossa proposta para o uso do pragmatismo no Direito
brasileiro, em geral, e no Direito Constitucional Econômico, em especial.

1.4.1 Os argumentos consequencialistas em Neil


MacCormick: consequências como implicações lógicas
e dever de universalização
˜–ŽŒŽ–˜œȱŽœžŠ—˜ȱŽ’•ȱŠŒ˜›–’Œ”ǯȱ•ŽȱŠę›–ŠȱšžŽȱ˜œȱ“žÇ£Žœȱ
devem considerar as consequências das várias decisões possíveis em cada
caso. MacCormick cita algumas decisões judiciais para comprová-lo. A
primeira é o voto do juiz Marshall, da Suprema Corte americana, no pre-
cedente Marbury vs. Madison, que estabeleceu as bases do controle judicial
constitucional das leis.
Se [...] as cortes devem preservar a Constituição, e se a Constituição é supe-
rior a qualquer lei ordinária, a Constituição, e não essa lei ordinária, é que
deve governar o caso para o qual ambas sejam aplicáveis.
Aqueles, então, que negam o princípio de que a Constituição deve ser
considerada, em juízo, como norma jurídica permanente, têm de sustentar
que as cortes devem fechar os olhos à Constituição e enxergar, apenas, o
Direito infraconstitucional.
Esta doutrina iria subverter o próprio fundamento de todas as Constituições escri-
tas. Ela declararia que um ato que, de acordo com os princípios e a teoria
de nosso Governo, é inteiramente vazio, é, ao mesmo tempo, na prática,
Œ˜–™•ŽŠ–Ž—Žȱ˜‹›’Šà›’˜ǯȱ•ŠȱŽŒ•Š›Š›’ŠȱšžŽǰȱœŽȱŠȱŽ’œ•Šž›Šȱę£Ž›ȱ˜ȱšžŽȱ
é expressamente proibido, tal ato, apesar da proibição expressa, é, de fato,
ŽęŒŠ£ǯȱœŠ›ȬœŽȬ’Šȱ˜Ž›ŽŒŽ—˜ȱ¥ȱŽ’œ•Šž›ŠȱŸŽ›ŠŽ’›Šȱ˜—’™˜¹—Œ’Šȱ™›¤’ŒŠǰȱ
Œ˜–ȱ˜ȱ–Žœ–˜ȱâ•Ž˜ȱŒ˜–ȱšžŽȱœŽȱŠę›–ŠȱŠȱ—ŽŒŽœœ’ŠŽȱŽȱ›Žœ›’—’›ȱœŽžœȱ
poderes em limites estritos. Estar-se-ia prescrevendo limites, e declarando
que tais limites podem ser livremente ultrapassados.226

MacCormick encontra argumentos parecidos na discussão judicial


britânica sobre se a Rainha Elizabeth poderia usar o título “Elizabeth
Segunda” (no Reino Unido [e não na Inglaterra], inexistira qualquer outra
Rainha Elizabeth). Os aspectos técnicos não interessam, mas há ponto a
respeito da admissibilidade da demanda, levantado por Lorde Cooper, em
que, segundo MacCormick, também se utilizou o argumento consequen-
cialista. Leia-se trecho do voto:

226
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 130, grifo nosso.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
89

É verdade que a Escócia reconhece, dentro de certos limites, a actio popularis,


por meio da qual qualquer membro do povo está legitimado a vindicar certas
espécies de direitos subjetivos públicos. Mas o mecanismo nunca foi esten-
dido a um caso assim. Não consigo ver como poderíamos admitir a legitimação e
o interesse destes demandantes em levar o ponto em discussão perante a Corte sem
conceder direito similar a quase todos os outros oponentes de praticamente qualquer
ação política em relação à qual surgiu oposição pública.227

Os exemplos mostram argumentos consequencialistas. MacCormick


Šę›–ŠȱšžŽȱ˜ȱ™›˜ŒŽœœ˜ȱŽȱŠŸŠ•’Š³¨˜ȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ·ȱŽ’˜ȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ
num escrutínio à luz daquilo que é tido como princípios constitucionais
ž—Š–Ž—Š’œǯȱ˜–˜ȱŠȱ˜—œ’ž’³¨˜ȱ—¨˜ȱ™˜œœž’ȱœŽ—’˜œȱę¡˜œǰȱŠœȱŽŒ’œäŽœȱ
judiciais dependerão da compreensão, pelos juízes, do que sejam tais valo-
res constitucionais.228ȱ™àœȱŠ—Š•’œŠ›ȱ–Š’œȱŒŠœ˜œǰȱŠŒ˜›–’Œ”ȱŸ˜•ŠȱŠȱŠę›–Š›ȱ
que as consequências são avaliadas consoante critérios de “justiça”, “bom
senso”, e, acima de tudo, com base em princípios constitucionais básicos,
šžŽȱœŽȱ›Š—œ˜›–Š›’Š–ȱŽ–ȱ™˜œ’Œ’˜—Š–Ž—˜œȱœ˜‹›Žȱ’•˜œ˜ęŠȱ˜•Ç’ŒŠȱŽȱœ˜‹›Žȱ
a correta distribuição da autoridade pública entre os órgãos do Estado.229
O aspecto central da proposta para o uso de argumentos consequen-
cialistas, uma vez constatada sua onipresença, é o seguinte: considerando
que as normas jurídicas devem ser tidas como possuidoras de racionali-
dade intrínseca230 — não são presumidamente arbitrárias —, é essencial à
“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱŽŒ’œ¨˜ȱšžŽȱ—¨˜ȱœŽ“Šȱ˜ŸŽ›—ŠŠȱ™˜›ȱŽŽ›–’—Š³¨˜ȱ
expressa oriunda de regra, ou quando a regra seja ambígua ou incompleta,
que se proceda a teste de suas possíveis consequências. E o aspecto im-
portante: “As consequências relevantes são aquelas produzidas a partir
da criação de um standard genérico de decisão tirado do julgamento nesse
˜žȱ—ŠšžŽ•ŽȱœŽ—’˜ǰȱ—¨˜ȱŠ™Ž—Šœȱ˜œȱŽŽ’˜œȱŽœ™ŽŒÇꌘœȱŠȱŽŒ’œ¨˜ȱŽœ™ŽŒÇꌊȱ
para aquelas partes individuais”.231
Em linguagem menos técnica, o que MacCormick está dizendo é
que, nas situações em que a norma não é clara, ou quando é incabível a
subsunção simples, o argumento consequencialista deve ser utilizado. As
consequências a serem consideradas são as que vão afetar o julgamento de
casos semelhantes, e não apenas as consequências para o caso. “Trata-se de
exigência do elemento prospectivo no princípio de justiça da adjudicação:
tratar casos iguais de modo igual, e, assim, tratar esse caso de modo tal que
œŽ“Šȱ“žœ’ęŒ¤ŸŽ•ȱ›ŠŠ›ȱ˜˜œȱ˜œȱŒŠœ˜œȱžž›˜œȱŠȱ–Žœ–Šȱ˜›–Š”.232

227
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 131-132.
228
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 133.
229
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 139.
230
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 149.
231
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150.
232
MACCORMICK. Legal Reasoning and Legal Theory, p. 150, grifo nosso.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
90 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

MacCormick apresenta o uso do argumento consequencialista como


uma espécie de aplicação do princípio da universalização. Os parâmetros
de avaliação das consequências, para além de seu potencial de univer-
salização, seriam não apenas a utilidade, mas também aspectos como
a ordem pública, a justiça, os princípios constitucionais, a conveniência
administrativa. Resumindo: em casos pouco claros, o juiz deve considerar
as consequências das decisões possíveis, avaliando-as com base, de um
lado, na justiça, nos valores constitucionais, e, de outro, na possibilidade
de sua universalização a casos semelhantes.
Em artigo escrito em 1982, MacCormick desenvolve sua ideia para
˜ȱžœ˜ȱŽȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ—ŠȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǯȱꛖŠȬœŽȱŒ˜—›¤›’˜ȱŠȱ
duas versões extremas de consequencialismo jurídico. Uma, que diz que
os juízes devem julgar tendo por base todas as consequências — isso ex-
Œ•ž’›’ŠȱšžŠ•šžŽ›ȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽȱŽȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ›ŠŒ’˜—Š•ȱŠœȱŽŒ’œäŽœǰȱ“¤ȱšžŽȱ
o futuro é incognoscível, e as cadeias de consequências podem se espraiar
Š˜ȱ’—ę—’˜ǯȱž›ŠǰȱšžŽȱ›Ž“Ž’ŠȱšžŠ•šžŽ›ȱŒ˜—œ’Ž›Š³¨˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠȱǻ·ȱ
ruim porque ignora que as normas são elaboradas a partir da intenção de
produzir consequências, e porque é imprudente decidir sem levá-las em
conta). MacCormick quer encontrar um caminho do meio. Não que precise
™›˜Œž›Š›ȱ–ž’˜ǰȱ™˜’œǰȱœŽž—˜ȱŠę›–Šǰȱ˜œȱ“žÇ£Žœȱ“¤ȱŽŒ’Ž–ȱŒ˜—œ’Ž›Š—˜ȱ
as consequências. “O apelo às consequências inaceitáveis de uma decisão
é característica onipresente da argumentação jurídica. De uma forma ou
de outra, a argumentação consequencialista está, como sempre esteve, viva
e saudável junto ao Direito”.233
Do que estamos tratando quando falamos de consequências? Aqui
entra a elaboração analítica de MacCormick.
Em primeiro lugar, consequências não são resultados. Quando al-
guém dispara o gatilho de revólver, pratica ato que tem como resultado o
arremesso de projétil no espaço. Se a arma estava apontada para alguém,
esse resultado pode ter uma consequência: João disparou a arma e, em
consequência, Pedro morreu. Aplicando ao mundo jurídico, o ato é decidir
a causa, sentenciando-a. O resultado é a condenação, absolvição, criação,
reconhecimento ou extinção de um direito.
Segunda distinção: consequências causais e consequências remotas (no
original, causal consequences e ulterior outcomes). Partindo do ato consis-
tente na sentença que reconhece que Carlos deve a Maria, o resultado é o
reconhecimento judicial da dívida e a obrigação de pagamento. As con-
sequências causais disso podem ser o desespero de Carlos, que vai ter de
pegar empréstimo de um milhão, e a alegria de Maria. As consequências

233
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 239-241.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
91

remotas daquele ato podem ser o fechamento de uma casa de caridade


— para quem Carlos faria uma grande doação — e o alcoolismo de Maria
(que recebeu o dinheiro e resolveu gastar em bebida).234
MacCormick, até aqui, distinguiu resultados, consequências cau-
sais e consequências remotas. Nenhum desses conceitos serve à argumentação
consequencialista. As que importam são as que chama de “consequências
como implicações” ou, simplesmente, “consequências jurídicas”. São im-
plicações lógicas de determinada decisão. Não se trata de consequências
como probabilidades estatísticas ou como resultados naturalísticos.
Š›Šȱ Ž¡Ž–™•’ęŒŠ›ǰȱ ŸŽ“ŠȬœŽȱ ›ŽŒ‘˜ȱ ˜ȱ Ÿ˜˜ȱ ˜ȱ “ž’£ȱ ˜•Ž›’Žǰȱ Šȱ
Suprema Corte inglesa, no caso Regina versus Dudley & Stephens, em que se
discutiu alegação de estado de necessidade em favor de dois marinheiros
que, perdidos no mar por oito dias, mataram e comeram um colega.
Não é necessário apontar o terrível risco de se admitir o pretendido princí-
pio. Quem será o juiz desse tipo de necessidade? Qual critério se vai adotar
para comparar o valor da vida? [...] É bastante claro que o princípio deixa
ŠȱŒ›’·›’˜ȱŽȱšžŽ–ȱŸŠ’ȱœŽȱ‹Ž—ŽęŒ’Š›ȱ˜ȱŠ˜ȱŽŽ›–’—Š›ȱŠȱ—ŽŒŽœœ’ŠŽȱšžŽȱ
ŸŠ’ȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱŽ¡’›™Š³¨˜ȱŽ•’‹Ž›ŠŠȱŠȱŸ’ŠȱŽȱ˜ž›Šȱ™Žœœ˜Šȱ™Š›ŠȱœŠ•ŸŠ›ȱ
a sua própria [...]. É evidente que tal princípio, uma vez admitido, poderá
servir de disfarce jurídico para paixões desenfreadas e crimes atrozes.235

MacCormick sustenta que o “terrível risco” é um perigo que vai


decorrer logicamente do princípio, caso venha a ser adotado. “A qualidade
alarmante ou inaceitável do princípio é demonstrada ao se analisar suas
implicações lógicas ao se tê-lo como norma para casos futuros”.236 O que
não é certo é se tais casos vão existir, nem se a comunidade vai mudar seu
comportamento a partir das decisões. Tais questões estão abertas apenas
a conjecturas, aliás difíceis de serem formuladas de modo não inconse-
quente. O ponto é: se tais casos ocorrerem, haverá disfarce jurídico com
base no precedente.
A consequência jurídica, a “consequência como implicação”, a que
importa para o teste consequencialista, está na implicação lógica contida
neste “se”, “haverá”, não na probabilidade — maior ou menor — de que
os tais casos venham a ocorrer, e, caso ocorram, de que efetivamente se
venha a utilizar o disfarce.237 “Em síntese, o que chamo de argumentação

234
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 246-249.
235
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 250.
236
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 251.
237
O mesmo raciocínio vale para a decisão do juiz Marshall em Marbury vs. Madison: a subversão
da Constituição, ao se admitir que leis inconstitucionais possam prevalecer diante dela, é

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
92 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

jurídica consequencialista não está tão preocupada em estimar as proba-


bilidades de mudanças comportamentais quanto nas possíveis condutas,
e seus status normativos determinados, consideradas à luz da decisão sob
escrutínio”.238 239
A avaliação das consequências é tema novamente tratado por
ŠŒ˜›–’Œ”ǯȱ•Žȱ›ŽŠę›–ŠȱšžŽǰȱ—Šȱ™›¤’ŒŠȱ“ž’Œ’¤›’ŠǰȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱœ¨˜ȱ
avaliadas de acordo com uma pluralidade de critérios, em vez de apenas
um — o que já descarta a utilidade como valor único de avaliação das
consequências jurídicas (e, naturalmente, descarta a associação entre seu
Œ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œ–˜ȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱž’•’Š›’œ–˜ǼǯȱŠœǰȱŠ˜›Šȱ™˜Ž›–˜œȱŠę›–Š›ȱ
que as avaliações são plúrimas, “todo o resto é opaco”.240
ŠŒ˜›–’Œ”ȱ™›ŽŽ—ŽȱŠŸŠ—³Š›ȱ—˜ȱ™˜—˜ȱŠ˜ȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱ˜œȱ’Ž›Ž—-
tes blocos de valores relacionados a cada área do Direito. No Direito da
Responsabilidade Civil, a integridade das pessoas e de seus bens; no Direito
dos Contratos, a liberdade da busca dos objetivos individuais, somada à
necessidade de se respeitar o que se prometeu; por aí adiante. Esses valo-
res setoriais também vão guiar o julgamento das consequências jurídicas.
“Os valores contra os quais nós testamos as consequências jurídicas são
aqueles que o ramo do Direito em questão torna relevantes”.241 Em Marbury
vs. Madison, o respeito à Constituição como base escrita do corpo político;
em Dudley & Stephens, o respeito à vida.
Considerando, então, a apresentação do consequencialismo jurídico
de MacCormick, tanto em seu principal livro quanto no desenvolvimento
posterior, parece possível sintetizá-lo como (i) teoria subsidiária (aparece ao
ꗊ•ȱ˜ȱŽœŽ—Ÿ˜•Ÿ’–Ž—˜ȱŠ›ž–Ž—Š’Ÿ˜ǰȱ™Š›ŠȱŠ“žŠ›ȱ—ŠȱŽŒ’œ¨˜ȱšžŠ—˜ȱ
houver dúvida), que (ii) lida com consequências tidas como implicações lógicas
de determinada proposta interpretativa, e não com consequências como pro-
babilidades, estatísticas ou intuitivas, a respeito de alterações comporta-
–Ž—Š’œȱ‘ŠŸ’ŠœȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱ–˜’ęŒŠ³äŽœȱ•Ž’œ•Š’ŸŠœȱ˜žȱ“ž›’œ™›žŽ—Œ’Š’œǰȱšžŽȱ
(iii) julga tais consequências como implicações a partir de critérios como a justiça,

implicação lógica. Não importa ao argumento consequencialista se tais leis irão existir ou se,
ao hipoteticamente decidir por sua validade, elas passarão, como resultado da decisão, a ser
mais comuns.
238
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 254.
239
“Mais do que a previsão de qual conduta a norma provavelmente irá induzir ou desestimu-
lar, o que interessa é responder à pergunta de que tipo de conduta autorizaria ou proibiria a
norma estabelecida na decisão; em outras palavras, os argumentos conseqüencialistas são, em
geral, hipotéticos, mas não probabilistas” (ATIENZA. Teorias da argumentação jurídica: Perelman,
Toulmin, MacCormick, Alexy e outros, p. 195).
240
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 255.
241
MACCORMICK. On Legal Decisions: from Dewey to Dworkin. New York University Law Review,
p. 257.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
93

Šȱ˜›Ž–ȱ™ø‹•’ŒŠǰȱ˜ȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜ǰȱŽȱ‹ŠœŽ’ŠȬœŽǰȱŽœ™ŽŒ’Š•–Ž—Žǰȱ—Šœȱꗊ•’ŠŽœȱ
típicas da área do Direito na qual o argumento estiver inserido, e que (iv) exige
que a incidência de um argumento consequencialista seja compatível com sua
aplicação a casos semelhantes.

1.4.2 Aulis Aarnio e os argumentos reais: as etapas da


“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠ
Aulius Aarnio não elabora teoria completa do uso dos argumentos
consequencialistas. Apenas registra que a utilização das razões referencia-
das em circunstâncias da realidade — que chama de “razões práticas” ou
“argumentos reais”242 — costuma se dar de modo consequencialista. O uso
do argumento consequencialista envolve duas etapas, a saber, a Žœ™ŽŒ’ęŒŠ³¨˜
das consequências atribuídas a cada uma das possibilidades interpreta-
tivas que se analisa e, então, a colocação delas numa ordem de preferência, de
modo a se encontrar a melhor. Depois, a argumentação retorna à análise
das interpretações sendo consideradas: a que será tida como a mais bem
“žœ’ęŒŠŠȱ·ȱŠȱšžŽȱ™›˜ž£’›ȱŠȱ–Ž•‘˜›ȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šǯ
A argumentação consequencialista, sem dúvida elemento relevante
Šȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŠœȱŽŒ’œäŽœǰȱ—¨˜ȱ™˜Žǰȱ™Ž•˜ȱ–Ž—˜œȱ™˜›ȱœ’ȱœàǰȱœŽ›ȱŒ˜—œ’Ž›ŠŠȱ
modelo genuíno de argumentação jurídica. Ela é o último passo do procedi-
–Ž—˜ȱŽȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ǯȱàȱ™˜ŽȱŽ—›Š›ȱšžŠ—˜ȱŠœȱ•Ž’œǰȱ›Š‹Š•‘˜œȱ•Ž’œ•Š’Ÿ˜œȱ
™›Ž™Š›Šà›’˜œǰȱŽŒ’œäŽœȱ˜œȱ›’‹ž—Š’œȱŽŒǯȱ“¤ȱŽę—’›Š–ȱŠœȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽœȱ
de interpretação do dispositivo. A interpretação jurídica só é legítima
porque está vinculada a fontes de Direito dotadas de autoridade. Daí que
o argumento consequencialista, em si mesmo, é, tão somente, uma forma
de discurso social. Pode ser útil e necessário, mas não possui valor jurí-
dico. Só o adquire quando utilizado em conexão com as fontes de Direito,
vale dizer, quando operado na condição de último passo interpretativo,
argumento de remate. A interpretação textual, a interpretação histórica, a
’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱꗊ•Çœ’ŒŠǰȱŠȱŒ˜–™›ŽŽ—œ¨˜ȱ˜ȱœ’œŽ–Šȱ•ŽŠ•ǰȱŠȱ™Žœšž’œŠȱ˜œȱ
precedentes, a opinião da doutrina, todos esses elementos delimitam um
espectro de interpretações possíveis; os argumentos reais, incidindo ao
ꗊ•ȱŠȱŒŠŽ’ŠǰȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ–ȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŠœœ˜Œ’ŠŠœȱŠȱŒŠŠȱž–ŠȱŠœȱ
opções interpretativas, hierarquizam-nas e indicam qual a decisão mais
‹Ž–ȱ“žœ’ęŒŠŠǰȱšžŽȱœŽ›¤ȱŠšžŽ•ŠȱŠœœ˜Œ’ŠŠȱ¥œȱ–Ž•‘˜›ŽœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǯ243
Aarnio, como MacCormick, coloca a argumentação consequencialis-
ŠȱŒ˜–˜ȱø•’–ŠȱŽŠ™ŠȱŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ǯȱ˜ȱŒ˜—›¤›’˜ȱŠšžŽ•Žǰȱ—¨˜ȱ’—’ŒŠȱšžŠ’œ

242
“Efetivamente, o termo ‘real’ se refere a este aspecto: a interpretação é sopesada à luz de certos
fatores que pertencem à realidade social” (AARNIO. Lo racional como razoable: um tratado sobre
•Šȱ“žœ’ęŒŠŒ’à—ȱ“ž›Ç’ŒŠǰȱ™ǯȱŗŞŖǼǯ
243
AARNIO. Lo racional como razoableDZȱž–ȱ›ŠŠ˜ȱœ˜‹›Žȱ•Šȱ“žœ’ęŒŠŒ’à—ȱ“ž›Ç’ŒŠǰȱ™ǯȱŗŞŘǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
94 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

as consequências a serem apreciadas — fala, apenas, que são argumentos


“reais”, que pertencem à realidade prática. Também nada fala acerca dos
critérios de avaliação ou de dever de universalização, mas descreve o
ž—Œ’˜—Š–Ž—˜ȱ˜ȱ›ŠŒ’˜ŒÇ—’˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠDZȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ›ȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǰȱ
hierarquizá-las, voltar e optar por uma linha de interpretação.

1.4.3 Luigi Mengoni e as regras metodológicas e


substantivas da argumentação consequencialista
A terceira e última peça de nosso quebra-cabeça teórico vem com
˜’œȱŠ›’˜œȱ˜ȱ’Š•’Š—˜ȱž’’ȱŽ—˜—’ǯȱ˜–Ž³ŠȱŠę›–Š—˜ȱšžŽȱ˜ȱŠ›ž-
mento consequencialista vem se difundindo no mundo da Civil Law, mas
que este não se limita à interpretação lógico-sistemática ou ao cânone
teleológico, os quais ainda pertenceriam ao positivismo jurídico, pois
discutiriam consequências jurídicas internas ao sistema, integrando-as à
estrutura linguística e conceitual dos textos legais.
Na metodologia jurídica pós-positivista, o argumento consequen-
cialista haveria assumido outra dimensão. Enquanto o modelo positivista
raciocinaria acerca de consequências certas, o modelo pós-positivista
›ŽĚŽ’›’Šȱœ˜‹›ŽȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŽȱœŽž—Šȱ˜›Ž–ǰȱŽ¡Ž›—ŠœȱŠ˜ȱœ’œŽ–Šȱ“ž›Ç-
dico, consequências apenas verossímeis; é modelo que “recebe e elabora
informações provenientes do ambiente circunvizinho ao sistema jurídico
a respeito de possíveis ou prováveis repercussões sociais da decisão”.244
Já vemos que a ênfase de Mengoni é diversa da de MacCormick.
Este se preocupa com consequências como implicações lógicas hipotéti-
cas; aquele as vê como possíveis repercussões sociais de decisões a serem
tomadas pelo julgador.
Mengoni sugere duas causas para isso. A primeira seria o pluralismo
·’Œ˜ȱŠœȱœ˜Œ’ŽŠŽœȱŒ˜—Ž–™˜›¦—ŽŠœǯȱ˜—œ’Ž›Š—˜ȱŠȱ’ęŒž•ŠŽȱŽȱœŽȱ
“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱ™›ŽŸŠ•¹—Œ’ŠȱŽȱž–ŠȱŸ’œ¨˜ȱŽȱ–ž—˜ȱœ˜‹›Žȱ˜ž›ŠǰȱŠȱŒ˜—›ž¹—Œ’Šȱ
Š¡’˜•à’ŒŠȱŽȱž–ŠȱŽœŒ˜•‘ŠȱœŽȱ›Š—œ˜›–Š›’Šȱ—ž–Šȱž—³¨˜ȱŽȱœžŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ
com base em suas consequências sobre o comportamento social. Conviria
reduzir a questão acerca de valores a uma questão acerca das consequências
sociais das escolhas.245

244
MENGONI, Luigi. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggiǯȱ’•Š—˜DZȱ ’žě›¸ȱ’˜›ŽǰȱŗşşŜǰȱ™ǯȱşśǯȱ’—Šǰȱ
CHIASSONI, Pierluigi. La Giurisprudenza Civile: metodi d’interpretazione e tecniche argomentative.
’•¨˜DZȱ ’žě›¸ȱ’˜›Žǰȱŗşşşǰȱ™ǯȱŜŘŘȬŜŘŚǯ
245
ȱ ȃžŠ—˜ȱ˜’œȱ˜‹“Ž˜œȱœ¨˜ȱœ’–’•Š›ŽœȱŽ–ȱž˜ǰȱŽȱ—¨˜ȱœ˜–˜œȱŒŠ™Š£ŽœȱŽȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŠȱ™›ŽŽ–’—¹—-
cia de um sobre o outro, observem-se suas consequências. De fato, o objeto do qual segue um
bem maior é preferível; se, ao invés, as consequências são piores, mais desejável é o objeto do
qual deriva o mal menor”. ARISTÓTELES. Topici, 117, a. Bari: 1970, p. 464 apud MENGONI.
Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
95

ž›Šȱ“žœ’ęŒŠ’ŸŠȱœŽ›’Š–ȱŠœȱ–žŠ—³Šœȱ—Šœȱ›Ž•Š³äŽœȱŽ—›Žȱ•Ž’œ•Š³¨˜ȱ
e jurisprudência, e entre doutrina e jurisprudência. As legislações contem-
porâneas concederiam espaço cada vez maior à discricionariedade judicial;
a doutrina viria perdendo seu papel de guia da jurisprudência. Com todo
esse protagonismo do Judiciário, os julgadores deveriam se adaptar à
proferição de julgamentos prospectivos, realizados com base em cláusulas
Ž›Š’œǰȱœŽ–ȱ’—Ěž¹—Œ’ŠȱŠȱ˜ž›’—ŠȱȯȱŽȱ·ȱŠÇȱšžŽȱŽ—›Š›’Šȱ˜ȱžœ˜ȱ˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱ
consequencialista.246
Não que o argumento jurídico-consequencialista seja isento de riscos.
O principal deles é indeferenciar o discurso político, orientado a resultados,
do discurso jurídico, baseado em direitos. Com isso, perder-se-ia a credibi-
lidade do Judiciário, que seria visto não mais como repositório de garantias
civilizacionais, mas como instrumento de engenharia social.247 Mengoni
opõe-se a essa crítica de dois modos: em primeiro lugar, o fenômeno seria
inevitável — far-se-ia mister discipliná-lo juridicamente. Em segundo,
porque a crítica partiria do pressuposto de que o discurso orientado às
consequências é insubmisso a restrições que não se originem da política.
Mas, para Mengoni, não precisa ser assim. É possível “domesticar” (a
palavra é nossa) o argumento consequencialista e torná-lo útil à prática
jurídica. Como fazê-lo? Luigi Mengoni propõe algumas regras metodológicas
e vínculos normativos para a argumentação consequencialista no Direito.
Nosso interesse reside aqui.
A primeira regra metodológica diz respeito à seleção das consequências.
É importante selecioná-las bem, seja para reduzir o risco de mensurações
equivocadas de suas probabilidades, seja para que possam ingressar dentro
dos limites da capacidade racionalizadora do sistema jurídico (um número
–ž’˜ȱŠ•˜ȱŽȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœȱŽœŒŠ™Š›’Šȱ¥ȱŒŠ™ŠŒ’ŠŽȱŽȱ›ŽĚŽ¡¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǼǯȱ
ȱ“ž•Š˜›ȱŽŸŽȱœŽȱę¡Š›ȱ—ž–ȱ™˜—˜ȱŠȱŒŠŽ’ŠȱŽȱŽŽ’˜œǰȱŽœŒ˜•‘’˜ȱ—¨˜ȱ
de modo discricionário, mas conforme a relevância para o caso. A escolha
dessas consequências será feita com base num cálculo de probabilidade
tirado de regras comuns de experiência ou de modelos estatísticos, eco-
—â–’Œ˜œȱ˜žȱœ˜Œ’˜•à’Œ˜œȱŒ’Ž—’ęŒŠ–Ž—ŽȱŒ˜—ę¤ŸŽ’œǯȱ

246
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 97-99.
ȱ ŽȱŒŽ›Šȱ˜›–ŠǰȱŽœœŠȱŒ›Ç’ŒŠȱ›ŽĚŽŽȬœŽȱ—ŠȱŒ›Ç’ŒŠȱŽȱ
Š‹Ž›–Šœȱ¥ȱ·Œ—’ŒŠȱŠȱ™˜—Ž›Š³¨˜ȱŽȱ’—Ž-
247

resses: “Para o Tribunal Constitucional Federal, a Lei Fundamental da República não constitui
tanto um sistema de regras estruturado através de princípios, mas uma ‘ordem concreta de
valores’ (semelhante à de Max Scheler ou de Nicolai Hartmann). [...] Essa interpretação vem ao
encontro do discurso da ‘ponderação de valores’, corrente entre os juristas, o qual, no entanto,
é frouxo. Os que pretendem diluir a constituição numa ordem concreta de valores desconhe-
ŒŽ–ȱ œŽžȱ ŒŠ›¤Ž›ȱ “ž›Ç’Œ˜ȱ Žœ™ŽŒÇꌘDzȱ Ž—šžŠ—˜ȱ —˜›–Šœȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ǰȱ ˜œȱ ’›Ž’˜œȱ ž—Š–Ž—Š’œǰȱ
como também as regras morais, são formados segundo o modelo das normas de ação obriga-
tórias — e não segundo o modelo dos bens atraentes” (HABERMAS. Direito e democracia: entre
facticidade e validade, v. 1, p. 314-315, 318, 320-321).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
96 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ou seja: na seleção das consequências, o julgador deve delimitar a


abrangência do círculo de consideração àquelas que, em número capaz
ŽȱŠ›ȱŒ˜—ŠǰȱœŽ“Š–ǰȱŒ’Ž—Çꌊȱ˜žȱ›Š£˜ŠŸŽ•–Ž—Žǰȱ™›˜Ÿ¤ŸŽ’œȱŽȱ˜Œ˜››Ž›ǯ
A segunda regra metodológica trata da seleção dos pontos de vista sob
os quais as consequências serão avaliadas. Mengoni sugere que o Ordenamento
Jurídico (italiano) pretende conciliar três valores: a economicidade, a justiça
social e a autonomia individual. Em muitos casos, o juiz ver-se-ia diante
de caso em que teria de aplicar critérios fortemente seletivos — para ga-
rantir racionalidade ao discurso —, mas, ao mesmo tempo, tais critérios
ŽŸŽ–ȱœŽ›ȱ̎¡ÇŸŽ’œȱ˜ȱœžęŒ’Ž—Žȱ™Š›Šȱ™Ž›–’’›ȱœžŠȱŠŒŽ’Š³¨˜ȱ™˜›ȱž–Šȱœ·›’Žȱ
de atores sociais.
É por isso que, reconhecendo a importância da análise econômica
do Direito para o tema, Mengoni acredita que a argumentação consequen-
cialista no Direito não se resume a ela, embora a englobe. Na “mistura
indispensável para garantir a razoabilidade”, diversos pontos de vista,
mais e menos preocupados com redistribuição de bens, mais e menos indi-
vidualistas, deverão ser integrados numa única perspectiva equilibrada
de avaliação das consequências.248
ȱ™›’–Ž’›˜ȱŸÇ—Œž•˜ȱ—˜›–Š’Ÿ˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱ·ȱ˜ȱrespeito à lei, ou, mais
precisamente, ao Direito Positivo. Mengoni recusa a ideia de que todo
caso jurídico deva ser decidido conforme a uma ponderação (de interesses,
valores, consequências). Nas situações em que há previsão legal expressa,
a argumentação consequencialista atua como critério de interpretação —
na condição de interpretação corretiva, aparando arestas —; ou, no má-
ximo, como critério de integração da fatispécie, se esta possuir cláusula que
reenvie aos standards sociais (por exemplo, um dispositivo normativo que
mencione os “melhores interesses da criança” ou as “melhores práticas da
indústria” seria necessariamente resolvido tendo por base uma integração
pragmático-consequencialista).
O vínculo ao Direito Positivo opera como condição seletiva das
consequências que poderão ser avaliadas. No plano da interpretação, isso
œ’—’ęŒŠȱŠ‹Š—˜—Š›ȱ˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠȱšžŽȱ•ŽŸŽȱŠȱŠ›’‹ž’›ȱŠ˜ȱ
Ž¡˜ȱ œ’—’ęŒŠ˜ȱ ’—Œ˜–™ŠÇŸŽ•ȱ Œ˜–ȱ œžŠȱ Žœ›žž›Šȱ •’—žÇœ’ŒŠǯȱ ˜ȱ ™•Š—˜ȱ
da integração jurídica, do preenchimento de lacunas, deve-se rejeitar
argumento consequencialista que leve a solução contrária a uma norma
jurídica imperativa.249 A argumentação consequencialista em Mengoni
não é compatível com qualquer espécie de argumentação contra legem.250

248
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 102.
249
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103.
250
Até porque, segundo Mengoni, a argumentação orientada a consequências não é, em si mes-
–Šǰȱ™›˜ŒŽ’–Ž—˜ȱŽȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠDzȱ·ǰȱŠ™Ž—Šœǰȱ™›˜ŒŽ’–Ž—˜ȱŽž›Çœ’Œ˜ȱŽȱ™Žœšž’œŠȱŽȱ
‘’™àŽœŽœȱ›ŠŒ’˜—Š•–Ž—Žȱž—ŠŠœǯȱȱŽŒ’œ¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠȱŽŸŽȱœŽ›ȱ™›˜™›’Š–Ž—Žȱ“žœ’ęŒŠŠȱ™˜›ȱ

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
97

O segundo vínculo jurídico é o respeito ao precedente judiciário. Claro


que não se deve entender precedente como stare decisis, precedente vin-
culante dos sistemas da Common Law. Mas, como presunção relativa, que
“žœ’ęšžŽȱŠŒ›·œŒ’–˜ȱ—ŠȱŒŠ›ŠȱŠ›ž–Ž—Š’ŸŠȱšžŠ—˜ȱœŽȱ›ŠŽȱŽȱŽŒ’’›ȱ
em sentido contrário, é vínculo que pode incidir sobre os argumentos
consequencialistas. De qualquer forma, é possível superar o precedente até
por razões consequencialistas, se bem que não por intermédio de cálculo
probabilístico das consequências de um julgamento — o que seria o tipo-
padrão do argumento —, mas com base num juízo negativo acerca das
consequências trazidas por uma linha de decisões já adotada.251
Pois bem. Com MacCormick, vimos uma proposta pouco usual de
conteúdo para as consequências jurídicas, um destaque para o dever de
universalização, e uma generalização dos critérios utilizados para a hie-
rarquização das consequências. Aarnio descreveu como o raciocínio opera
na prática. Mengoni indicou condicionantes, metodológicos e normativos,
destinados a tornar controlável o uso do argumento.
De todos os três, vamos nos apropriar de elementos no momento de formular
nossa proposta para a inserção do pragmatismo ao raciocínio jurídico. Antes, no
entanto, um breve histórico dos usos e desusos, na doutrina e na prática
jurídica brasileira, de argumentos e teorias que, de uma maneira ou de
outra, poder-se-iam reconduzir a uma noção de “pragmatismo”, “prag-
matismo jurídico” ou “consequencialismo”.
Tal histórico vai nos ajudar a, no momento de propor algo, adaptá-lo
às características já assentes na realidade da adjudicação e da teorização
‹›Šœ’•Ž’›Šǯȱ˜–˜ȱ’••’Š–ȱ Š–Žœȱ‹Ž–ȱœŠ‹’Šǰȱ¥œȱŸŽ£Žœǰȱ·ȱ’—Ž›ŽœœŠ—Žȱ’—ŸŽœ’-
gar o passado e o presente e, pragmaticamente, apresentar algo novo como
derivação, em consonância com as práticas atuais, e não como novidade
desgarrada.

1.5 Contraponto: usos e desusos do pragmatismo à brasileira


Considerações pragmáticas sempre estiveram presentes na doutrina
jurídica brasileira, embora raramente a partir desse referencial (argumen-
tação consequencialista, pragmatismo jurídico, Posner etc.). Mais comum
são referências aos “fatos” e à “realidade social” como condicionantes da
interpretação jurídica.

’—Ž›–·’˜ȱŽȱ›Ž–’œœäŽœȱŽȱŸŽ›’ęŒŠ³äŽœȱŽȱŒ˜–™Š’‹’•’ŠŽȱŽ–ȱŠŒŽȱŠȱŒ˜—›ž¹—Œ’Šȱœ’œŽ–¤-
’ŒŠǰȱŠȱž—’ŸŽ›œŠ•’£Š³¨˜ȱŠȱŽŒ’œ¨˜ȱŽŒǯȱȃœȱœ’—’ęŒŠ˜œȱ—˜›–Š’Ÿ˜œȱ—¨˜ȱ™˜Ž–ȱœŽ›ȱ˜‹’˜œȱ
senão no, e por intermédio do, sistema jurídico, e, portanto, só podem ser explicados dogma-
ticamente” (MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 107).
251
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 105.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
98 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Um de nossos exegetas clássicos, Carlos Maximiliano, já escrevia,


em 1924, em seu estilo característico:
A jurisprudência constituiu, ela própria, um fator do processo de desen-
Ÿ˜•Ÿ’–Ž—˜ȱŽ›Š•Dzȱ™˜›ȱ’œœ˜ȱŠȱ
Ž›–Ž—¹ž’ŒŠȱœŽȱ—¨˜ȱ™˜Žȱž›Š›ȱ¥ȱ’—Ěž¹—Œ’Šȱ
do meio no sentido estrito e na acepção lata; atende às conseqüências de deter-
minada exegese: quanto possível a evita, se vai causar dano, econômico ou moral,
à comunidade.252 (itálico acrescentado; sublinhado no original)

E isso porque “o julgador hodierno preocupa-se com o bem e o mal


resultantes de seu veredictum”.253 A adoção desse pragmatismo jurídico in
ꎛ’ȱnão se dava, como hoje não se dá, de modo descontrolado. A preocu-
pação é a mesma: o arbítrio do julgador.
Do exposto já se depreende dever-se apelar para os fatores sociais com
›ŽœŽ›ŸŠȱ Žȱ Œ’›Œž—œ™ŽŒ³¨˜ǰȱ Šȱ ę–ȱ Žȱ ŽŸ’Š›ȱ ˜ȱ ›’œŒ˜ȱ Žȱ Š£Ž›ȱ ™›ŽŸŠ•ŽŒŽ›Ž–ȱ Šœȱ
tendências intelectuais do juiz sobre as decorrentes dos textos, e até mesmo
sobre as dominantes no meio em que ele tem jurisdição, como sucedeu em
França, com o magistrado Magnaud.254

Carlos Maximiliano propunha critérios para ordenar a incidência


desses fatores sociais na interpretação. Rejeitar-se-ia o sentido trazido pelos
processos interpretativos tradicionais quando o texto legal se mostrasse apto
a uma “interpretação consentânea com a época”, ou quando a interpretação
levasse a uma “iniquidade manifesta” ou a uma “conclusão incompatível
com o sentir presumível de um legislador ponderado e conseqüente”.255
Poderíamos transcrever outros trechos,256 mas o que interessa é mostrar
como, na doutrina brasileira antiga, se bem que com algumas imprecisões

252
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129.
253
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 129-130.
254
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
255
MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 131.
256
Apenas por amor à completude, nesta nota seguem alguns desses trechos, com os sublinha-
dos do original e os itálicos acrescentados: “Preocupa-se a Hermenêutica, sobretudo depois que
entraram em função de exegese os dados da Sociologia, com o resultado provável de cada interpre-
tação. Toma-o em alto apreço; orienta-se por ele; varia tendo em mira, quando o texto admite
mais de um modo de o entender e aplicar. Quando possível, evita uma consequência incompatível
com o bem geral; adapta o dispositivo às ideias vitoriosas entre o povo em cujo seio vigem as
expressões de Direito sujeitas a exame. Prefere-se o sentido conducente ao resultado mais favo-
rável, que melhor corresponda às necessidades da prática, e seja mais humano, benigno, suave”
(MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 135). “A interpretação sociológica
atende cada vez mais às conseqüências prováveis de um modo de entender e aplicar determinado texto;
šžŠ—˜ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱ‹žœŒŠȱž–ŠȱŒ˜—Œ•žœ¨˜ȱ‹Ž—·ęŒŠȱŽȱŒ˜–™ŠÇŸŽ•ȱŒ˜–ȱ˜ȱ‹Ž–ȱŽ›Š•ȱŽȱŠœȱ’Ž’Šœȱ–˜-
dernas de proteção aos fracos, de solidariedade humana. Faça-se justiça, porém de tal sorte
que o mundo prossiga rumo a seus altos destinos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação
do Direito. 19. ed., p. 137). “O Direito é um meio para atingir os ꗜȱcolimados pelo homem
em atividade; a sua função é eminentemente social, construtora; logo não mais prevalece o
seu papel antigo de entidade cega, indiferente às ruínas que inconsciente ou conscientemente
possa espalhar” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19. ed., p. 138).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
99

— Carlos Maximiliano confunde, por exemplo, interpretação evolutiva com


argumentação consequencialista —, o pragmatismo já estava presente.
Š–‹·–ȱœ¨˜ȱŽ¡Ž–™•˜œȱ’œœ˜ȱŠœȱŠę›–Š³äŽœȱ˜ž›’—¤›’ŠœȱšžŽǰȱŠ˜ȱŒ›’-
ticar alguma interpretação jurisprudencial ou ato normativo, referiam-se
à expressão “revolta dos fatos diante do Direito” (ou, alternativamente,
“revolta dos fatos diante dos Códigos”), de Gaston Morand,257 em regra
para vindicar solução mais conforme às percebidas melhores consequên-
cias práticas, ou para denunciar algum pretenso atraso da norma jurídica
diante da realidade.
Pode-se dizer, portanto, que o pragmatismo jurídico ingressou na
doutrina nacional travestido ou como interpretação sociológica, ou como
apelo à importância da realidade social na adjudicação. Ainda não se falava
em análise econômica do Direito, consequencialismo, aptidões institucio-
nais. O pragmatismo jurídico, na época, reduzia-se a seu conteúdo mínimo
e quase inatacável: os aplicadores do Direito deveriam se importar com
as consequências de suas decisões; deveriam prestar atenção, em alguma
medida, à realidade na qual estavam inseridos.
Nos dias de hoje, com a maior facilidade de acesso e consequente
apelo do Direito Comparado, o debate internacional ingressou na acade-
–’Šȱ‹›Šœ’•Ž’›Šǯȱ ¤ȱ‘¤ȱœžęŒ’Ž—Žȱ•’Ž›Šž›ŠȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱŠœȱ–ž’ŠœȱŸŽ›Ž—Žœȱ˜ȱ
pragmatismo jurídico e do consequencialismo aplicado à argumentação
jurídica. Um típico artigo a respeito do pragmatismo jurídico aplicado vai
narrar o debate teórico, escolher um aspecto prático — digamos, determi-
nada linha de decisões judiciais a respeito da abrangência dos planos de
saúde — e criticá-la (ou louvá-la) partindo das bases teóricas ora adotadas.
Luis Fernando Schuartz chega a indicar três espécies de consequen-
Œ’Š•’œ–˜œȱ™›Š’ŒŠ˜œȱ—Šȱ˜ž›’—Šȱ‹›Šœ’•Ž’›ŠǰȱŒ•Šœœ’ęŒŠ˜œȱŽȱ–˜˜ȱŒ›ŽœŒŽ—Žȱ
quanto ao respeito à dogmática e ao precedente. Um consequencialismo
festivo, que incorpora direta e radicalmente ideias do movimento Law and
Economics e, sem pudores para com o Direito legislado e as formas típicas
da argumentação jurídica, pretende, ao desconsiderá-los, corrigi-los, no
šžŽȱ œŽȱ ›ŽŸŽ•Šȱ ’–™˜Ž—Žȱ ǻŠ˜ȱ ’—˜›Š›ȱ Šȱ Žœ™ŽŒ’ęŒ’ŠŽȱ Šȱ Š›ž–Ž—Š³¨˜ȱ
“ž›Ç’ŒŠǰȱ–˜œ›ŠȬœŽȱ’—ŒŠ™Š£ȱŽȱ’—ĚžŽ—Œ’Š›ȱŠȱ™›¤’ŒŠǼǯȱ–ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š-
lismo militante, também reticente em relação à dogmática, mas que, ao
menos, preocupa-se com as aparências, utilizando-se de técnicas como a
ponderação de interesses e a aplicação direta dos princípios jurídicos como
Žœ›Š·’ŠȱŽȱǻ–¤Ǽȱ›Žà›’ŒŠǯȱ˜›ȱę–ǰȱž–ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œ–˜ȱmalandro, que
opera, esse sim, por intermédio da dogmática, pretendendo recombinar
ꐞ›Šœȱ·Œ—’ŒŠœȱ›Š’Œ’˜—Š’œǰȱŽȱšžŽǰȱ—˜œȱŒŠœ˜œȱ‹Ž–ȬœžŒŽ’˜œǰȱŠŒŠ‹Šȱ™˜›ȱ
legalizar um estado de exceção, com possíveis benefícios criativos para a

257
MORAND. La révolte des faits contre le code; MORAND. La revolte du Droit contre le code: la
révision nécessaire des concepts juridiques.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
100 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

própria dogmática e para os cidadãos (em termos de ampliação de direitos


e liberdades individuais).
Se a incorporação do pragmatismo jurídico ao debate doutrinário
brasileiro assumiu cores próprias — o consequencialismo, em certas
leituras, pode ter virado mais um instrumento antidogmático do que
abordagem compatível com o Direito brasileiro258 —, não é menos verdade
que o tenhamos incorporado, na prática jurisprudencial, de modo intocado.
Muito ao contrário.
O pragmatismo jurídico aplicado às nossas decisões judiciais não
incide de modo explícito. Ainda assim, é comum. Salvo decisões adminis-
trativas de entidades como o CADE, em que argumentos confessadamente
consequencialistas têm passe livre, na maioria das vezes tudo o que é
possível fazer é detectar características mais ou menos pragmatistas em
sentenças, votos e acórdãos.
Em alguns casos, a decisão pragmatista decorre de dispositivos
legais que exigem argumentações da espécie; em outros, o raciocínio prag-
mático é facultativo, mas essencial para a resolução do problema — o qual
nem sempre é a solução de um caso (pode ser, como já se viu, o excessivo
número de recursos extraordinários a serem julgados por uma corte com
escasso número de juízes).
O primeiro e mais emblemático caso apreciado pelo STF, no qual
parte da doutrina viu — em especial no voto do relator, Eros Grau — o
uso de argumentos pragmatistas,259 foi a ADI nº 2.240-7, julgada pelo
Tribunal Pleno em 09 de maio de 2007. A causa versava sobre a validade
da criação do Município baiano de Luís Eduardo Guimarães, efetuada
por intermédio de lei estadual (Lei nº 7.619/00). O Município foi criado
antes da promulgação da lei complementar federal que, segundo o art. 18,
§4º, da Constituição da República, com a redação da EC nº 15/96, deverá
estabelecer o período em que isso poderá ocorrer.260 Tal lei complementar
não existia e não existe até hoje.261

258
Em 2010, ano em que a tese de doutorado da qual se originou o presente livro foi defendida,
o pragmatismo jurídico ainda se encontrava a meio caminho da popularização acadêmica. Em
2014, ano da publicação do livro, pode-se dizer que o uso da expressão “pragmatismo” e “con-
sequencialismo” aparece com alguma frequência em dissertações e teses. Também se vê as
palavras “pragmatismo” e “consequencialismo” em artigos dogmáticos — alguns fazendo uso
absolutamente fuzzy Šœȱ—˜³äŽœǯȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱŠ•ŸŽ£ȱŽ—‘ŠȱŠŒ˜—ŽŒ’˜ȱ˜ȱšžŽȱŽ’›ŒŽȱ’Ž—’ęŒŠŸŠȱ
—Šȱꕘœ˜ęŠȱǻŸǯȱ—˜ŠȱŽȱ›˜Š™·ȱ—ǯȱŘŗǼǰȱ–ŠœǰȱŠšž’ǰȱŠ’—Šȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ™›˜™˜œŠȱ™Š›Šȱ•’Ÿ›Š›ȱŠœȱ—˜³äŽœȱŽȱ
pragmatismo e de consequencialismo de seus sequestradores.
259
POGREBINSCHI. A normatividade dos fatos, as consequências políticas das decisões judiciais
e o pragmatismo do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Administrativo, p. 181-193.
260
Art. 18. [...] §4º A criação, a incorporação, a fusão e o desmembramento de Municípios, far-se-ão por
lei estadual, dentro do período determinado por Lei Complementar Federal, e dependerão de consulta
prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação dos
Estudos de Viabilidade Municipal, apresentados e publicados na forma da lei (grifos nossos).
261
O Projeto de Lei Complementar nº 98/2002, originário do Senado e aprovado no Congresso, e
que pretendia regulamentar a Constituição da República no ponto, foi vetado integralmente
pela Presidente da República em novembro de 2013.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
101

O que fazer? Declarar a inconstitucionalidade da lei criadora do


Município sete anos após sua criação, como pretendia o autor da deman-
da? Ignorar a existência de uma Câmara dos Deputados e de um Poder
Executivo legitimamente eleitos? Tornar nulas mais de duas centenas de
leis municipais e outros tantos atos de arrecadação de tributos municipais,
ŽœŠžŠ’œȱŽȱŽŽ›Š’œǵȱ—ž•Š›ȱ˜˜œȱ˜œȱŠ˜œȱŽȱŒ˜—›Š˜œȱ™ø‹•’Œ˜œȱꛖŠ˜œȱ—˜ȱ
período? Ou fazer vista grossa à lei editada antes da vigência da lei comple-
mentar federal expressamente requerida pela Constituição da República?
O voto do relator mostrou-se favorável à manutenção da lei estadual.
“O Município de Luís Eduardo Magalhães existe, de fato, como ente fede-
rativo dotado de autonomia municipal, a partir de uma decisão política”.
Tratar-se-ia de situação excepcional — excepcionalidade político-institucio-
nal — trazida pela atuação da força normativa dos fatos, no dizer de Jellinek.
A ausência de atuação do Congresso, verdadeira “moléstia institucional”,
teria gerado a circunstância que, ali, não poderia ser solucionada com a
™ž›ŠȱŽȱœ’–™•Žœȱ’—ŸŠ•’Š³¨˜ȱŠȱꐞ›Šȱ“ž›Ç’ŒŠȱ˜ȱž—’ŒÇ™’˜ǯ262 “Criado o
Município, passou a existir e agir como ente da federação. Trata-se de um
fato. Não se anulam fatos” (p. 301).
Citando Giorgio Agamben, Eros Grau delineou a relação entre
estado de normalidade, norma jurídica e exceção:
A esta Corte, sempre que necessário, incumbe decidir regulando também
essas situações de exceção. Mas esta Corte, ao fazê-lo, não se afasta do
ordenamento, eis que aplica a norma à exceção desaplicando-a, isto é,
retirando-a da exceção.263

Raciocinando de modo consequencialista, Eros Grau perguntou-se o


que menos comprometeria a força normativa futura da Constituição: vio-
lar o art. 18, §4º, da Constituição da República, ou o princípio federativo?
(p. 303). Ainda pensando nas consequências da decisão — se estimularia
a criação indiscriminada de novos Municípios (sugeriu que não seria o
caso) —, o relator estimou que o julgado serviria como apelo ao Poder
Legislativo para que suprisse a omissão.
Vemos, então, três ideias-força no voto do relator: a força normativa
dos fatos (o Município é dado da realidade, que não se muda por sentença),
a necessidade de se legalizar uma situação de exceção, e a importância da
ponderação entre as consequências da declaração de constitucionalidade

262
“Como o Legislativo omitiu-se, deixando de produzir essa lei complementar, e o ente federa-
tivo surgiu, existindo como tal, a aplicação do preceito para que se declare a inconstitucionali-
dade do ato legislativo estadual e a inconstitucionalidade institucional do Município agravará
a moléstia do sistema” (Voto do Relator Eros Grau na ADI nº 2.240-7, p. 298 dos autos do
processo judicial).
263
ADI nº 2.240-7, p. 302.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
102 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ou de inconstitucionalidade da lei baiana, incluindo-se, no cálculo, os


possíveis efeitos sistêmicos do acórdão em relação à função estatal “em
mora” (no caso, o Legislativo). Não é difícil enquadrar essas linhas de
argumentação dentro de uma lógica pragmatista.
E, de fato, é essa a proposta de Thamy Pogrebinschi. Dentro daquilo
šžŽȱŽ•Šȱ™›à™›’Šȱ‘ŠŸ’ŠȱŽę—’˜ȱŒ˜–˜ȱȃ–Š›’£ȱ™›Š–Š’œŠȄȱȯȱŒ˜—Ž¡žŠ•’œ-
mo, consequencialismo, antifundacionalismo (ver acima) —, o voto de Eros
Grau teria incorporado o contextualismo e o consequencialismo. Sobre o
contextualismo, por insistir na importância dos fatos e do contexto para
a decisão — o Ministro redige longo parágrafo (p. 288-289), detalhando a
estrutura política, econômica e social do Município; um dos leitmotive da
decisão é a força normativa dos fatos, isto é, a capacidade de normaliza-
ção de situação extralegal graças ao acolhimento, pela ordem jurídica, da
exceção. O consequencialismo aparece no adiantamento das consequên-
cias como razão para decidir, na postura forward-looking (qual das duas
decisões possíveis traria consequências que menos comprometeriam a
força normativa futura Šȱ ˜—œ’ž’³¨˜ǵǼǰȱ —Šȱ Ž¡™ŽŒŠ’ŸŠȱ Žȱ ’—ĚžŽ—Œ’Š›ȱ
outra função estatal.
Šȱ–Žœ–ŠȱŽ–Š—ŠȱŠ‹œ›ŠŠȱŽȱ꜌Š•’£Š³¨˜ȱŠȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•’ŠŽǰȱ
o voto de Gilmar Mendes também merece destaque. Não por seus aspectos
dogmáticos — trata-se de defesa da modulação de efeitos da declaração
de inconstitucionalidade —, mas por trechos de sua argumentação que se
mostram, também, pragmatistas. Adiantando a conclusão do voto, seguida
por todos os demais, salvo por Marco Aurélio (para quem a lei baiana
era inconstitucional e nada podia ser feito), Gilmar propôs a declaração
de inconstitucionalidade da lei estadual, sem a pronúncia de nulidade,
oferecendo-se prazo de vinte e quatro meses para que o legislador estadual
pudesse adaptar sua obra às condições que eventualmente surgiriam a
partir da edição da lei complementar federal. Mas não é a conclusão que
nos importa.
Até chegar lá, Gilmar Mendes argumentou que a declaração pros-
™ŽŒ’ŸŠȱŽȱ’—ŽęŒ¤Œ’ŠȱŠœȱ•Ž’œȱ’—Œ˜—œ’žŒ’˜—Š’œȱȃŽŒ˜››ŽȱŽȱž–Šȱnecessidade
práticaȱŒ˜–ž–ȱŠȱšžŠ•šžŽ›ȱ“ž›’œ’³¨˜ȱŽȱ™Ž›ę•ȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•Ȅǯ264 Mais à
›Ž—Žȱǻ™ǯȱřŗŝǼǰȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱ—Šȱ–˜ž•Š³¨˜ȱ˜œȱŽŽ’˜œȱŠœȱ•Ž’œȱ’—Œ˜—œ’žŒ’˜-
nais, assume importância a proporcionalidade em sentido estrito — teste
šžŽǰȱ Œ˜–˜ȱ ŸŽ›Ž–˜œǰȱ ·ȱ ž–Šȱ Šœȱ ‘’™àŽœŽœȱ Žœ™ŽŒÇꌊœȱ Žȱ ’—Œ’¹—Œ’Šȱ Žȱ
nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, já que se trata, em essência, de
raciocínio a respeito das consequências da manutenção de um ato ou da
tomada de uma decisão.265 Transcrevendo estudo de Joaquín Camazano,

264
ADI nº 2.240-7, p. 313, grifos nossos.
ȱ ȱŠę›–Š³¨˜ȱ·ȱ›Ž’Ž›ŠŠȱ—Šȱ™ǯȱřŘşDZȱȃŽ›¤ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŽœ™ŽŒ’Š•ȱ˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱŠȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽǰȱ
265

especialmente a proporcionalidade em sentido estrito, como instrumento de aferição da justeza

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
103

Gilmar Mendes concorda que “a raiz essencialmente pragmática de todas


essas modalidades atípicas de declarar a inconstitucionalidade faz supor
que seu uso seja praticamente inevitável”.266 Fica claro que, embora não
pragmatista à maneira de Eros Grau, Gilmar Mendes adota técnica de
decisão em controle de constitucionalidade que é, por si mesma, exercício
de consequencialismo: adiantar as possíveis consequências da decisão para
estabelecer o marco temporal do início de seus efeitos.267 A ADI nº 2.240-7 é
™›Š–Š’œŠȱ˜ȱ’—ÇŒ’˜ȱŠ˜ȱę–DZȱŠ—˜ȱœŽžȱ›Ž•Š˜›ȱž’•’£˜žȱŽȱŠ›ž–Ž—˜œȱšžŽȱ
apelavam ao contexto e às possíveis consequências da decisão, quanto o
’—’œ›˜ȱšžŽȱ•‘ŽȱŽžȱ›ŽŠ³¨˜ȱꗊ•ȱžœ˜žȱŽȱ·Œ—’ŒŠȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠȱ™Š›Šȱ
estabelecer seu dispositivo.
Embora característica, a decisão encontra precedentes históricos
–Š›ŒŠ—Žœǯȱ¨˜ȱŒ˜–ȱŽœœŽȱ—˜–Žǰȱ—¨˜ȱ“žœ’ęŒŠ˜ȱŽœœŠȱ–Š—Ž’›Šǰȱ–Šœǰȱ™˜›ȱ
vezes, a força normativa dos fatos foi a ratio decidendi de alguns impor-
tantes acórdãos. Nosso próximo exemplo é chocante (e talvez nem seja
bom exemplo, porque exceptions don’t make good rules). Vamos a ele, cujo
entendimento requer alguma contextualização histórica.
Com o suicídio de Vargas, Café Filho assumiu a presidência. Nas
eleições subsequentes, em outubro de 1955, venceu Juscelino Kubitschek,
sendo vice João Goulart. A história passa-se entre a assunção de Café Filho
e a posse de Juscelino. Durante o enterro de um general, em novembro de
1955, o coronel Bizarria Mamede proferiu discurso considerado subversivo
™Ž•˜ȱŽ—¨˜ȱ’—’œ›˜ȱŠȱ žŽ››ŠǰȱŽ—Ž›Š•ȱ˜ĴǰȱšžŽȱŽ¡’’žȱšžŽȱŠ·ȱ’•‘˜ȱ˜ȱ
punisse. Dois dias depois, Café Filho sofreu ataque cardíaco e foi internado.
Assumiu o presidente da Câmara dos Deputados, Carlos Luz, que se re-
cusou a punir o coronel Mamede, e, com isso, desautorizou publicamente
o Ministro da Guerra, que renunciou. Convencido por alguns colegas de
que se estava arquitetando um golpe para evitar a posse de Juscelino, o
Ž—Ž›Š•ȱ˜ĴȱŒ˜—Ÿ˜Œ˜žȱŠœȱ˜›³Šœȱ˜ȱ¡·›Œ’˜ȱŽȱŒŽ›Œ˜žȱŠœȱ‹ŠœŽœȱŠȱŠ›’—‘Šȱ
e da Aeronáutica. Carlos Luz refugiou-se no cruzador Tamandaré e rumou
para São Paulo, onde esperava receber apoio do Governador.
Nesse ínterim, o Congresso declarou o impedimento de Carlos
Luz e deu posse ao vice-presidente do Senado, Nereu Ramos. Como se a
œ’žŠ³¨˜ȱ—¨˜ȱ˜œœŽȱŒ˜—žœŠȱ˜ȱœžęŒ’Ž—ŽǰȱŠ·ȱ’•‘˜ȱ›Ž˜›—˜žȱŠȱ’—Ž›—Š³¨˜ǰ

da declaração de inconstitucionalidade (com efeito da nulidade), tendo em vista o confronto


entre os interesses afetados pela lei inconstitucional e aqueles que seriam eventualmente
œŠŒ›’ęŒŠ˜œȱŽ–ȱŒ˜—œŽšû¹—Œ’ŠȱŠȱŽŒ•Š›Š³¨˜ȱŽȱ’—Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•’ŠŽȄǯ
266
ADI nº 2.240-7, p. 322.
267
ȱ ŠŒ‘Ž•ȱ
Ž›¢ǰȱŽ–ȱŠ›’˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱ˜ȱ™Ž›ę•ȱȃ™›Š–Š’œŠȄȱŽȱ ’•–Š›ȱŽ—Žœǰȱ’Ž—-
’ęŒŠȱ ›¹œȱ Œ’›Œž—œ¦—Œ’Šœȱ šžŽȱ ™Ž›–’’›’Š–ȱ Ž—šžŠ›Š›ȱ ˜ȱ ’—’œ›˜ȱ —ŽœŽȱ ›àž•˜DZȱ œžŠȱ ŽŽœŠȱ Šœȱ
ȃœŽ—Ž—³ŠœȱŽȱ™Ž›ę•ȱŠ’’Ÿ˜Ȅȱ—˜ȱž™›Ž–˜Dzȱ˜ȱŠ˜ȱŽȱŽ›ȱœ’˜ȱŽ•Žȱ˜ȱ’ŽŠ•’£Š˜›ȱ˜ȱŠ—Ž™›˜“Ž˜ȱŽȱ
lei que deu origem à Lei Federal nº 9.868/99; e, mais importante, sua defesa, em casos e votos,
de um “pensamento jurídico do possível”. V. HERDY. Gilmar Ferreira Mendes e o “pensamento
jurídico do possível”: um pragmatista no Supremo Tribunal Federal?.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
104 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

pretendeu reassumir a Presidência, e foi impedido pelo Congresso, que


decretou estado de sítio por trinta dias, prorrogado uma vez. Finalmente,
em janeiro de 1956, Juscelino e Jango tomaram posse.
Quando Carlos Luz foi deposto e Café Filho quis voltar, este impe-
trou mandado de segurança junto ao STF alegando a inconstitucionalidade
de seu impedimento. O relator negou a segurança. O Ministro seguinte,
entendendo que o impedimento feriu a separação de poderes, concedeu-a.
Sampaio Dória, o terceiro a votar, denegou a segurança, alegando que,
embora fosse possível discordar da atitude tomada pelo Congresso, havia
razão que se lhe sobrepunha: tratava-se de reconhecer situação de fato,
“irremovível dentro dos quadros constitucionais ou legais, qual a criada
pelo imperativo dos canhões e metralhadoras insurrecionais que barravam
e continuam barrando o caminho do Sr. João Café Filho até o Catete”.
Tratava-se de situação de fato:
Criada e mantida pela força das armas, contra a qual seria inexeqüível
qualquer decisão do Supremo Tribunal. A insurreição é um crime político,
mas, quando vitoriosa, passa a ser um título de glória, e os insurretos esta-
rão a cavaleiro do regime legal que infringiram; sua vontade é que conta,
e mais nada. [...]
Contra uma insurreição pelas armas, coroada de êxito, somente valerá uma
contra-insurreição, com maior força. E esta, positivamente, não pode ser
feita pelo Supremo Tribunal, posto que este não cometeria a ingenuidade
de, numa inócua declaração de princípios, expedir mandado para cessar
a insurreição.268

O próximo Ministro a votar seguiu Sampaio Dória e denegou a


segurança. Os dois últimos entenderam que a apreciação do mandado
dependia da suspensão do estado de sítio, o que, na prática, tornava sem
efeito a demanda.
O importante é a argumentação central da decisão: há fatos diante
dos quais o Direito tem de ceder.269 Estamos diante de decisão pragmatista
porque, com os olhos no Ordenamento, os julgadores utilizaram, como

268
COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 130-137.
269
Defendendo-se das acusações feitas pela imprensa e pelo Congresso, Nelson Hungria disse o
seguinte: “Jamais o Supremo Tribunal desertou a sua função constitucional, que não é, positi-
vamente, a de debelar insurreições vitoriosas. O que ocorre é que o Brasil, com a implantação
da República, entrou no ciclo político da América Latina, em que as mudanças de regime e a
queda dos governos se operam, frequentemente, mediante pronunciamentos militares, contra
os quais não há de opor-se a força do direito. Bem ou mal intencionados, tais pronunciamentos
fazem calar a força das leis e dos ditames jurídicos. Contra o fatalismo histórico dos pronun-
ciamentos militares não vale o Poder Judiciário, como não vale o Poder Legislativo. Esta é que
é a verdade, que não pode ser obscurecida por aqueles que parecem supor que o Supremo
Tribunal, ao invés de um arsenal de livros de direito, disponha de um arsenal de schrapnels e
de torpedos” (COSTA. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania, p. 135).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
105

critérios para a decisão, o contexto (um golpe militar) e as prováveis


consequências do julgado (que, no caso do deferimento da ordem, seria
nenhuma, ao menos no plano concreto).
Até agora, as decisões dizem respeito a questões políticas: a incons-
titucionalidade de um Município e a posse de um presidente deposto.
Contudo, o raciocínio pragmatista não se destina apenas a decisões sobre
questões políticas. Embora essas sejam algumas das que, compreensivel-
mente, acabem ganhando destaque, o pragmatismo jurídico impregna as
linhas decisórias adotadas para uma série de assuntos diferentes.
Š›Šȱ Ž¡Ž–™•’ęŒŠ›–˜œȱ Ž—›˜ȱ ˜ȱ —˜œœ˜ȱ Ž–Šǰȱ ™Ž—œŽ–˜œȱ —Šȱ ŽŒ’-
são inicial do STF acerca da constitucionalidade da retenção de ativos
ꗊ—ŒŽ’›˜œȱ›ŽŠ•’£ŠŠȱ™Ž•˜ȱ•Š—˜ȱ˜••˜›ǯȱȱ›’‹ž—Š•ȱŽ—Ž—ŽžȱšžŽǰȱŽ–‹˜›Šȱ
inconstitucional, a medida de política econômica da União não poderia
ser invalidada naquele momento, sob pena de as consequências prováveis
da decisão serem insuportavelmente piores do que as que decorreriam da
–Š—žŽ—³¨˜ȱ˜ȱŒ˜—ęœŒ˜ǯȱ‘Š–ŽȬœŽȱŽȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠȱ˜žȱ
pragmatismo jurídico, o fato é que o STF decidiu, em matéria de Direito
Econômico, à luz das consequências.
Os argumentos do Ministro Marco Aurélio em ações diretas de
inconstitucionalidade envolvendo imposições de gratuidades a estabele-
cimentos comerciais também são tipicamente consequencialistas. Avaliam
as consequências prováveis e concluem que se está fazendo “cortesia com
o chapéu alheio”, com violação à livre-iniciativa.
Foi assim na ação direta que analisou a constitucionalidade de lei
ŽœŠžŠ•ȱ̞–’—Ž—œŽȱšžŽȱŒ˜—ŒŽ’ŠȱŽœŒ˜—˜œȱ™Š›Œ’Š’œȱŠȱ’˜œ˜œȱ—ŠȱŠšž’œ’-
ção de medicamentos. A medida cautelar foi indeferida (ainda não houve
julgamento de mérito) contra o voto de Marco Aurélio, para quem “o
legislador está cumprimentando com chapéu alheio”, e, “de duas, uma:
ou a farmácia arcará com o ônus do desconto, ou majorará os preços dos
›Ž–·’˜œǰȱꌊ—˜ȱŠ™Ž—ŠŠȱŠȱ™˜™ž•Š³¨˜Ȅǯ270 Ou seja, ou se estará violando
Šȱ•’Ÿ›ŽȬ’—’Œ’Š’ŸŠǰȱ˜žȱœŽȱŽœŠ›¤ȱŽœ™›˜–˜ŸŽ—˜ȱŠœȱꗊ•’ŠŽœȱ–Žœ–ŠœȱŠȱ
norma — ambas consequências inaceitáveis.
Na ADI nº 1.950, em que se questionava lei do Estado de São Paulo
que concedia meia-entrada a estudantes dos ensinos fundamental, médio e
superior (Lei nº 7.844/92), mais uma vez, Marco Aurélio, em voto vencido,
Šę›–˜žȱšžŽȱ‘ŠŸ’ŠȱŒ˜›Žœ’ŠȱŒ˜–ȱŒ‘Š™·žȱŠ•‘Ž’˜DZȱ
¨˜ȱŸŽ“˜ȱŒ˜–˜ȱę¡Š›ȱŽœœŽȱ◞œǰȱšžŽȱŠŒŠ‹ŠȱœŽ—˜ȱœž™˜›Š˜ǰȱŠ—ŽȱŠȱ›Š—œŽ-
rência, pela sociedade, tendo em conta a majoração da entrada para aqueles
que não gozam do benefício, mediante uma norma, repito, não razoável,

ȱ Ž’ŠȱŠžŽ•Š›ȱŠȱ ȱ—ķȱŘǯŚřśǰȱ™›˜™˜œŠȱŒ˜—›ŠȱŠȱŽ’ȱ̞–’—Ž—œŽȱ—ķȱřǯśŚŘȦŖŗǰȱ“ž•ŠŠȱŽ–ȱŗřȱ
270

de março de 2002.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
106 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

porque nela não se contém a contrapartida, ou seja, uma compensação —


‘ŠŸŽ—˜ȱž–ŠȱŽœŸŠ—ŠŽ–ȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠȱȯȱŠȱ™Ž›Šȱ™˜›ȱŠšžŽ•ŽœȱšžŽȱœŽȱ
lançam no mercado, na vida comercial, e precisam fugir à morte civil nessa
mesma vida comercial, que é a falência.

Na ADI nº 3.512, na qual se analisou a constitucionalidade de lei


estadual do Espírito Santo que concedia meia-entrada a doadores regu-
lares de sangue (Lei nº 7.734/04), Marco Aurélio “continuava entendendo
que o Estado, em si, não pode cumprimentar com o chapéu alheio”. O
raciocínio de “cumprimentar com o chapéu alheio” não é outro senão o
de repassar o ônus de alguém para outra pessoa que nada tem a ver com
o débito original — mas, associada à expressão, vem análise em que se
adiantam consequências (o próprio repasse do ônus econômico é uma
delas) para que possam ser avaliadas com base em sua compatibilidade
com a Constituição.
Podemos extrapolar a análise das decisões políticas e econômicas
e adentrar seara na qual o bem jurídico tutelado é o mais grave: o Direito
Penal. Pois mesmo aí o STF já teve oportunidade de decidir com base, essen-
cialmente, no contexto. Falamos do habeas corpus, relatado pelo Ministro
Marco Aurélio, no qual se discutiu se a presunção de violência, no crime
de estupro, é absoluta ou relativa.271 E, pelo menos nesse caso, o relativo,
o contextual, prevaleceu. No voto, o Ministro anotou:
A presunção não é absoluta, cedendo às peculiaridades do caso como são as
já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar vida dis-
soluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais com outros
rapazes como reconhecido no depoimento e era de conhecimento público.

Podemos ver, na decisão, um gérmen antifundacionalista, na medida


em que se ousou atacar a posição tradicional, na doutrina e na jurispru-
dência, acerca do caráter absoluto da presunção de violência nos crimes
sexuais. E há nela, também, aspecto experimental compatível com o ideário
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱœŽ“Šȱꕘœàꌘȱ˜žȱ“ž›Ç’Œ˜ǯȱŽœ˜•ŸŽžȬœŽȱ™ŠŠ›ȱ˜ȱ™›Ž³˜ȱŠȱ
experimentação e da atenção ao contexto ao se abalar um dogma.
Aí está: os exemplos de decisões do STF que incorporam elementos
pragmatistas não se limitam a questões políticas, mas passam por assuntos
econômicos e até penais.
É importante observar que o Supremo Tribunal Federal é a corte que
–Š’œȱ‹Ž–ȱœŽȱŽ—ŒŠ’¡ŠȱŠ˜ȱꐞ›’—˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ“ž›Ç’Œ˜. Há diversas razões
para isso. Em primeiro lugar, a corte é chamada a resolver uma série de
questões para as quais o texto da Constituição da República não oferece
nenhum auxílio direto. Além disso, não há qualquer pressão decorrente

271
STF. 2ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, HC nº 73.662/MG. Diário de Justiça, 20 set. 1996.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
107

de suas decisões poderem vir a ser revistas por outra corte.272 O tipo de
assunto que é levado ao Supremo costuma convidar à interdisciplinaridade
e ao pensamento out of the box. E, como corte política, suas decisões geram
efeitos prognósticos (no que se assemelha à instância consequencialista
por excelência — o Legislativo).
Para o bem ou para o mal, em nossa conformação institucional, o
STF pode ser o espaço próprio do pragmatismo jurídico.
Mas não apenas o Supremo pode usar tal argumento. Diversos
outros operadores institucionais do Direito deles se utilizam dia a dia.
Exemplo trivial: o argumento do “efeito multiplicador” das demandas é,
na raiz do termo, argumento consequencialista. Dia após dia, quando a
Fazenda Pública ou empresas buscam anular decisões judiciais argumen-
tando que, com base nelas, por meio de um efeito exemplo, inúmeras outras
acabariam surgindo — com risco de prejuízos —, está-se apelando a uma
das consequências prováveis do julgamento (o estímulo à litigância) como
motivação para nova decisão, agora, de cassação.273
Outro exemplo é a argumentação, por parte da Fazenda Pública,
a respeito da provável perda de arrecadação caso o tributo, que se ques-
tiona em juízo, seja declarado inconstitucional pelo Judiciário. Como o
argumento possui, na vida prática, peso considerável, observa-se que, em
geral, advogados tributaristas não se mostram favoráveis a argumentos
pragmatistas, ou propõem que eles incidam de modo restrito.274
Há casos em que a decisão judicial não tem como deixar de ser prag-
matista. É que o próprio dispositivo normativo solicita apreciação contextual e/ou
voltada às consequências. Dois exemplos: o art. 27 da Lei Federal nº 9.868/99,
que permite a modulação dos efeitos temporais das declarações de incons-
titucionalidade emitidas pelo STF em sede de controle concentrado,275 e o
art. 15 da Lei Federal nº 12.016/09, que autoriza a suspensão da execução
de liminar ou de sentença proferida em mandado de segurança nos casos
em que tais decisões gerem lesão à ordem, saúde, segurança ou economia
públicas.
Na primeira hipótese, como vimos no voto de Gilmar Mendes no
caso do Município de Luís Eduardo Magalhães,276 são preocupações de

272
V. nota de rodapé nº 127.
273
Cf. ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma com-
patibilização, p. 7.
274
Veja-se, por exemplo, Fábio Martins Andrade (O argumento pragmático ou consequencialista
e a modulação temporal dos efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria
tributária. Tese).
275
Não apenas no controle concentrado. A jurisprudência do STF aceita o uso dessas técnicas
também no controle incidental. Ver, por exemplo, RE nº 197.917/SP, Rel. Maurício Corrêa, DJ,
07 maio 2004.
276
E poderíamos encontrar em tantas outras decisões do STF. Assim, na ADI nº 1.102, em que se
discutia a constitucionalidade das expressões “empresários” e “autônomos”, da Lei Federal

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
108 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ordem prática as que orientam a modulação dos efeitos das decisões,


Š’—ŠȱšžŽȱꕝ›ŠŠœȱ™Ž•ŠȱŠ‹›Š—¹—Œ’Šȱ˜ȱŒ˜—Žø˜ȱ–Ç—’–˜ȱŠœȱŽ¡™›ŽœœäŽœȱ
“segurança jurídica” e “excepcional interesse social”, presentes no artigo
Řŝǯȱ
¤ȱšžŽ–ȱœŽȱŒ˜•˜šžŽȱŽȱ–˜˜ȱŒ˜—›¤›’˜ȱŠȱŠ•ȱŠę›–Š³¨˜ǰ277 mas, para
todos os efeitos, são razões “reais” (para se falar com Aarnio) as que apa-
recem nas discussões a respeito da incidência do dispositivo. O art. 27 é
válvula de inserção de argumentos pragmatistas no cotidiano do controle
de constitucionalidade.
O art. 15 da lei do mandado de segurança autoriza a suspensão da
liminar ou da própria sentença quando ela afetar a ordem, saúde, eco-
nomia ou segurança públicas. O dispositivo expressamente exige que o
–Š’œ›Š˜ȱ›ŽŸ’œ˜›ȱ›ŽĚ’Šȱ—¨˜ȱœ˜‹›Žȱ˜ȱŒ˜—Žø˜ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱ˜ȱ“ž•Š˜ǰȱ–Šœȱ
apenas sobre as consequências da decisão.
Na suspensão de segurança, o revisor não funciona como um juiz
“de Direito” — na medida em que se entenda que decisões pragmatistas
sejam externas ao Direito, posição com a qual na verdade não concorda-
mos —, mas como um administrador consequencialista de decisões alheias. É
o Direito positivo abraçando o pragmatismo jurídico. Claro que vai ser
sempre possível discordar da constitucionalidade do instituto,278 o que

—ķȱŞǯŘŗŘȦşŗǰȱ™Š›ŠȱꗜȱŽȱŽŽ›–’—Š³¨˜ȱ˜ȱŒžœŽ’˜ȱŠȱ™›ŽŸ’¹—Œ’Šȱ™ø‹•’ŒŠǰȱŠ›ž–Ž—˜œȱŒ˜–˜ȱ˜ȱ
estímulo ou desestímulo a que o legislador atue em determinado sentido (no voto de Marco
Aurélio) ou o impacto da declaração de inconstitucionalidade com efeitos ex tunc nas contas
públicas (no voto do relator Maurício Corrêa), de nítida índole pragmatista, podem ser
encontrados. Até a gripe suína já contou como dado da realidade para orientar a modulação dos
efeitos de declaração de inconstitucionalidade. Embora reconhecendo a inconstitucionalidade
da Lei Complementar nº 300, do Espírito Santo, que permitia a contratação temporária de
™›˜ęœœ’˜—Š’œȱ Šȱ ¤›ŽŠȱ Žȱ œŠøŽǰȱ –Šœȱ œŽ–ȱ Žœ™ŽŒ’ęŒŠ›ȱ ˜ȱ –˜’Ÿ˜ȱ Šȱ Ž¡ŒŽ™Œ’˜—Š•’ŠŽǰȱ ˜ȱ ǰȱ
Œ˜—œ’Ž›Š—˜ȱŠȱŽ™’Ž–’ŠȱŽȱ›’™ŽȱœžÇ—ŠȱŽȱ˜ȱ›’œŒ˜ȱŽȱŠȱ™˜™ž•Š³¨˜ȱ˜ȱœŠ˜ȱꌊ›ȱœŽ–ȱŠŽ—Žœȱ
de saúde durante aquele período crítico, concedeu prazo de sessenta dias até a cessação dos
ŽŽ’˜œȱŠȱ•Ž’ǰȱŽ–™˜ȱœžęŒ’Ž—Žȱ™Š›ŠȱšžŽȱ˜ȱŽ—ŽȱŽŽ›Š’Ÿ˜ȱŽ•Š‹˜›ŠœœŽȱŽȱŠ™›˜ŸŠœœŽȱ—˜Ÿ˜ȱ™›˜“Ž˜ȱ
Žȱ•Ž’ȱšžŽȱŠŽ—ŽœœŽȱŠ˜œȱ›Žšž’œ’˜œȱŠȱ˜—œ’ž’³¨˜ȱǻ’œ™˜—ÇŸŽ•ȱŽ–DZȱǀ‘Ĵ™DZȦȦ   ǯŠŽ—Œ’Š‹›Šœ’•ǯ
˜Ÿǯ‹›Ȧ—˜’Œ’ŠœȦŘŖŖşȦŖŞȦŗŘȦ–ŠŽ›’ŠǯŘŖŖşȬŖŞȬŗŘǯŖŝŚŝśŝśşśŞȦŸ’Ž ǁǯȱŒŽœœ˜ȱŽ–DZȱŗśȱŠ˜ǯȱŘŖŖşǼǯ
277
Adotando a ideia de Humberto Ávila, segundo a qual os argumentos pragmáticos são não
institucionais e devem aparecer em papel secundário na argumentação jurídica, Ana Paula
Ávila escreveu: “Aqui merecem referência o pragmatismo e o consequencialismo que podem
ser detectados na origem de uma série de argumentos que acabam sendo considerados na
interpretação jurídica. Tome-se, por exemplo, a decisão que deixa de atribuir efeitos ex tunc
à declaração de inconstitucionalidade apenas para evitar uma enxurrada de ações individuais, ou
a decisão que atribui o efeito ex tunc apenas porque, do contrário, equivaleria a incentivar o
legislador à produção de normas em desacordo com a Constituição. Ora, não é isso que deve
servir de parâmetro para a interpretação do art. 27 da Lei nº 9.868/00. O reconhecimento da
permanência dos efeitos deve decorrer justamente das normas que, acaso existentes, sustentem
ŽœœŠȱ™Ž›–Š—¹—Œ’ŠǰȱŽȱ—¨˜ȱŽȱž–ȱ›žšžŽȱŽȱ–¤’ŒŠȱšžŽȱ—¨˜ȱœŽȱ“žœ’ęšžŽȱ¥ȱ•ž£ȱ˜ȱ˜›Ž—Š–Ž—˜ȱ
jurídico” (ÁVILA. A modulação de efeitos temporais pelo STF no controle de constitucionalidade:
ponderação e regras de argumentação para a interpretação conforme à Constituição do artigo 27
da Lei nº 9.968/99, p. 119-120).
278
Assim, por todos, a opinião de Cássio Scarpinella Bueno: “Se o que o mandado de segurança
tem de mais caro é sua predisposição constitucional de surtir efeitos imediatos e favoráveis ao

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
109

não impedirá que a suspensão de segurança continue existindo, e mais:


como instituto pragmático.
Finalmente, há situações nas quais o pragmatismo aparece não no
conteúdo da decisão, tampouco decorre de comando legal. Ele vem como
estratégia de decisão. Decide-se não decidir por algum motivo prático (o
excesso de causas é o motivo mais comum). Quando falamos em “decidir
não decidir”, não estamos nos referindo a um non liquet, mas, por exemplo,
à prática de sugerir um sem-número de requisitos formais como precon-
dições à análise do mérito de um recurso extraordinário ou especial.279
Mostramos, até aqui, como o pragmatismo jurídico e os argumentos
consequencialistas foram incorporados na doutrina e na prática jurispru-
dencial brasileira. Relembremos. Na doutrina clássica, apareceram como
invectivas genéricas em favor de um respeito pelos fatos e pela realidade
social no momento de se interpretar ou julgar. Na produção doutrinária
recente, o debate estrangeiro foi incorporado, não sem alguns exageros.
Na prática, o pragmatismo jurídico aparece (i) no modo como os juízes
argumentam em favor de suas decisões — pensando nas consequências
prováveis, na realidade prática ou na interação com os outros poderes
(como estímulo ou desestímulo) —, (ii) por intermédio de comandos legais
que diretamente determinam que o julgador faça uso de argumentos prag-
máticos, e (iii) em certas estratégias, comuns ao cotidiano da adjudicação,
que permitem a incorporação de circunstâncias e dados da realidade ao
próprio ofício do julgamento.
¡Ž–™•’ęŒŠ–˜œȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱ™˜›ȱ’ŸŽ›œ˜œȱŽȱœŽžœȱ›Š³˜œȱŽȱ
em várias de suas manifestações, já tem curso na teoria e na prática jurídica
brasileira. Vamos, agora, a um contraexemplo, que está mais no nível da
percepção psicológica do que da prática consciente.
De acordo com pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados
›Šœ’•Ž’›˜œǰȱŽ–ȱŘŖŖśǰȱŠȱ–Š’˜›’Šȱ˜œȱ–Š’œ›Š˜œȱŠę›–˜žȱšžŽȱ—¨˜ȱŒ˜—œ’Ž›Šȱ

’–™Ž›Š—ŽǰȱœŽ“Šȱ•’–’—Š›–Ž—Žȱ˜žȱŠȱꗊ•ǰȱŠȱ–Ž›Šȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽȱŠȱȁœžœ™Ž—œ¨˜ȱŽȱœŽž›Š—³ŠȂȱŒ˜-
loca em dúvida a constitucionalidade do instituto. Em verdade, tudo aquilo que for criado pelo
•Ž’œ•Š˜›ȱ’—›ŠŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȱ™Š›Šȱ˜‹œŠŒž•’£Š›ǰȱ’ęŒž•Š›ȱ˜žȱŽ–™ŽŒŽ›ȱŠȱ™•Ž—’žŽȱŠȱŽęŒ¤Œ’Šȱ
do mandado de segurança agride sua previsão constitucional. Nesse sentido, não há como
admitir a constitucionalidade do instituto, independente de qual seja sua natureza jurídica. É
instituto que busca minimizar efeitos do mandado de segurança? Positiva a resposta, trata-se
Žȱꐞ›Šȱ’—Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȄȱǻǯȱMandado de segurança, p. 179). Sem pretender ingressar
em qualquer polêmica processual, a verdade é que a opinião do Professor parece-nos partir
da constitucionalização de uma maxi-abrangência do conteúdo da referência constitucional
ao mandado de segurança, até o ponto em que “tudo” que “obstaculizar” tal (enorme) abran-
gência será inconstitucional. É exemplo de raciocínio equivocado que, aplicado ao Direito
Constitucional Econômico, ainda discutiremos extensamente.
279
Observe-se que o art. 543-A do CPC, o qual exige a repercussão geral como requisito para a
admissão de recursos extraordinários, é exemplo de raciocínio consequencialista solicitado
pela legislação, mas surgiu, em grande parte, a partir da prática hiper-restritiva do Supremo
em relação à admissão de tais recursos.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
110 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

importantes as consequências econômicas das decisões (eles priorizariam


os “parâmetros legais”).280 Sem questionar o modo como a pergunta foi
˜›–ž•ŠŠȱ Žȱ œžŠȱ ™˜œœÇŸŽ•ȱ ’—Ěž¹—Œ’Šȱ —˜ȱ ›Žœž•Š˜ǰ281 isso só demonstra
que o pragmatismo jurídico e a argumentação consequencialista, mercê
Žȱ Œ˜–ž—œǰȱ Ž—Œ˜—›Š–ȱ ’ęŒž•ŠŽœȱ ™Š›Šȱ œŽ›Ž–ȱ Šœœž–’˜œǯȱ ŠÇǰȱ Œ˜–˜ȱ
mencionamos na introdução do capítulo, o surgimento do criptoconse-
quencialismo como forma de acobertar a consideração das variáveis fáticas,
contextuais e consequenciais.
Depois da apresentação do tema e da análise de exemplos, já possuí-
–˜œȱœžęŒ’Ž—ŽœȱŠ˜œȱ™Š›ŠȱŽœ›žž›Š›ȱž–ŠȱŒ˜—›’‹ž’³¨˜ȱ™›à™›’ŠȱŠ˜ȱŽ‹ŠŽǯ

1.6 “Fazendo coisas com consequências”: uma proposta


de “princípio” do pragmatismo útil ao Direito
Constitucional Econômico
O que vamos defender aqui é um pragmatismo jurídico adaptativo
à tradição jurisprudencial e doutrinária brasileira. Em toda proposta dou-
trinária que se pretenda útil, faz-se necessário certo grau de redundância
cognitiva, ainda mais numa prática tão intelectualmente conservadora
como a jurídica.282 Nossa proposta insere-se dentro de uma teoria normativa
da decisão. Nosso modelo pretende-se útil porque imediatamente operativo.
•Žȱ·ȱž–ȱž’Šȱ™Š›ŠȱŠȱŽŒ’œ¨˜ǰȱ—¨˜ȱž–Šȱ›ŽĚŽ¡¨˜ȱ–ŽŠŽà›’ŒŠǯ283
Podemos chamar a proposta de modelo cauteloso de pragmatismo jurí-
dico, ou, com Schuartz, de tipo fraco de consequencialismo. Se a questão é
rastrear precedentes, caminhamos na linha de MacCormick e de Aarnio,

280
Pesquisa AMB 2005 – Magistrados brasileiros: caracterização e opiniões. Em 2006, a mesma
pesquisa, na pergunta XXIII, constatou que os magistrados não consideram os efeitos orça-
mentários de decisões relacionadas com a área da saúde, o que também denotaria certa rejei-
ção ao pragmatismo aplicado à seara das demandas judiciais de remédios (no qual aparece
como argumento da reserva do possível fática).
281
Colocados diante de três opções, “parâmetros legais”, “consequências econômicas” e “conse-
quências sociais”, não é de se espantar que os resultados tenham sido esses. Mas quais seriam
as respostas preponderantes se a pergunta dissesse respeito, por exemplo, à “consideração do
contexto e das consequências prováveis” no momento da decisão?
282
ȱ œŠ–˜œǰȱ Šę—Š•ǰȱ Š•Š—˜ȱ Žȱ ž–Šȱ ™›¤’ŒŠȱ œ˜Œ’Š•ȱ ™Š›Šȱ Šȱ šžŠ•ȱ œ¨˜ȱ ˜Ž›ŽŒ’Šœȱ œžŽœäŽœȱ Œ˜–˜ȱ Šȱ
seguinte: “Fica bem ao magistrado aludir às teorias recentes, mostrar conhecê-las, porém só
impor em aresto a sua observância quando deixarem de ser consideradas ultra-adiantadas, semi-
revolucionárias; obtiverem o aplauso dos moderados, não misoneístas, porém prudentes, doutos e
sensatos” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito. 16. ed., p. 160, grifos no original).
283
Não concordamos com a posição de Diego Arguelhes e Fernando Leal, segundo a qual, basea-
dos na doutrina americana, a principal utilidade do pragmatismo jurídico é na condição de
metateoria. Ao menos no Brasil, ainda há espaço para a implementação de modelos de teorias
pragmatistas imediatamente normativos, desde que “sensíveis” à nossa tradição de operação
com o Direito. Cf. ARGUELHES; LEAL. Pragmatismo como (meta) teoria normativa da decisão
judicial: caracterização, estratégias e implicações, p. 1-49, passim.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
111

não na de Posner. Podemos extrair lições úteis do pragmatismo de Posner,


especialmente a respeito da importância das consequências sistêmicas e da
necessidade de se evitar excessos teóricos, mas sua proposta é inadaptável
à sensibilidade jurídica brasileira, para não falar em nosso Direito positivo.
Neste item, apresentaremos primeiramente um (i) modelo geral de ope-
ração deste “princípio” e, logo depois, (ii) três casos especiais, que apresentam
características peculiares, e que não seguem o modelo geral de operação,
para, então, sugerirmos os (iii) standards de incidência do “princípio”. Para
šžŽȱ—¨˜ȱꚞŽȱøŸ’ŠǰȱŒ˜–ȱ–˜Ž•˜ȱŽ›Š•ȱŽȱ˜™Ž›Š³¨˜ǰȱ›ŽŽ›’–˜Ȭ—˜œȱŠȱž–Šȱ
estrutura de argumentação, e, com standardsǰȱ¥œȱ›Ž›ŠœȱŽœ™ŽŒÇꌊœȱŽȱœžŠȱ
aplicação. As particularidades do Direito Constitucional Econômico estarão
presentes no conteúdo de alguns dos standards e nos exemplos.
O modelo geral de operação segue, em parte, a ideia de Aarnio —
šžŠ—˜ȱŠę›–ŠȱšžŽȱ˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œŠȱ—¨˜ȱ·ȱŒŠ™Š£ǰȱ™˜›ȱœ’ȱœàǰȱ
Žȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱŽŒ’œ¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǰȱŽ–‹˜›ŠȱŽ¡Ž›³Šȱ™Š™Ž•ȱ—Šȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ǰȱœŽ—˜ȱ
eventualmente seu último passo —, de MacCormick — na ênfase do dever
de universalização — e, principalmente, de Mengoni.
Pois bem. ž–ȱ™›’–Ž’›˜ȱ–˜–Ž—˜ǰȱ˜ȱ’—·›™›ŽŽȱŽŸŽȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŒ˜—œ’œ-
tentemente a fonte da delegação de poderes ao Judiciário (ou, quiçá, à autoridade
executiva) para que aja de modo pragmático, seja graças a referência literal
(“ao prudente arbítrio do julgador” ou remissões legais a julgamentos por
equidade),284 seja de modo circunstancial285 — e, nesse caso, o intérprete
pode fundar seu teste pragmático tanto no art. 5º da Lei de Introdução ao
à’˜ȱ’Ÿ’•ȱǻȃꗊ•’ŠŽȱœ˜Œ’Š•ȱŠȱ•Ž’ȄǰȱŽ›–˜ȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—ŽȱŠ–™•˜ȱ™Š›Šȱ
Š‹›Š—Ž›ȱšžŠœŽȱšžŽȱšžŠ•šžŽ›ȱꕒŠ³¨˜ȱŠȱŽ˜›’ŠœȱŽȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǼǰȱ
quanto no art. 37, caputǰȱŠȱȦŞŞȱǻ˜ȱŽŸŽ›ȱŽȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ·ȱŽ¡’ÇŸŽ•ȱŠ–-
bém da Administração-julgadora, e, naturalmente, também incide quanto
ao conteúdo de suas decisões). Dependendo do Ordenamento setorial
envolvido, as remissões podem variar. Assim, questões envolvendo, por
exemplo, o Direito do Petróleo podem encontrar sua fonte da delegação
de poderes para a incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico no
art. 1º, caput e incisos, da Lei do Petróleo — Lei nº 9.478/97.286

284
Assim, por exemplo, na Lei dos Juizados Especiais (Lei Federal nº 9.099/95), o art. 6º determina
que o juiz deverá adotar, em cada caso, a decisão que lhe parecer mais justa e equânime,
ŠŽ—Ž—˜ȱŠ˜œȱꗜȱœ˜Œ’Š’œȱŠȱ•Ž’ȱŽȱ¥œȱŽ¡’¹—Œ’Šœȱ˜ȱ‹Ž–ȱŒ˜–ž–ǯȱȱ“ž•Š–Ž—˜ȱ™˜›ȱŽšž’ŠŽȱ
também é expressamente autorizado ao conciliador (art. 25).
285
Em duas situações os argumentos consequencialistas assumem importância na prática jurídica:
quando a lei impõe um juízo de equidade, ou quando duas ou mais decisões são possíveis. V.
Dzȱ ǯȱŠŒ’˜—Š•’ŠȱŽȱ•Šœȱ“žœ’ęŒŠŒ’˜—ŽœȱŒ˜—œŽŒžŽ—Œ’Š•’œŠœȱŽ—ȱ•ŠœȱŽŒ’œ’˜—Žœȱ“ž’-
ciales. Isonomía, p. 156. Por outro lado, quando o texto é claro, deve-se adotar o formalismo, ou,
ao menos, não se deve adotar o pragmatismo como teoria normativa da decisão.
286
Art. 1º As políticas nacionais para o aproveitamento racional das fontes de energia visarão aos
seguintes objetivos: I - preservar o interesse nacional; II - promover o desenvolvimento, am-
pliar o mercado de trabalho e valorizar os recursos energéticos; III - proteger os interesses do

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
112 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ž—’ęŒŠŠȱŠȱ˜—Žȱ˜œȱȃ™˜Ž›Žœȱ™›Š–¤’Œ˜œȄǰȱ˜ȱmodus operandi do
“princípio” do pragmatismo jurídico informa que ele deve incidir como mais
um argumento operado dentro das regras da teoria da argumentação. Ele não deve
entrar em contradição lógica ou material com nenhum outro argumento,
œžŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŽŸŽȱŸ’›ȱŽ¡™›ŽœœŠȱŽȱ–˜˜ȱŒ•Š›˜ȱŽȱŒ˜—ŒŠŽ—Š˜ǰȱŽȱ—¨˜ȱœŽȱ
deve cometer nenhuma falácia.
Além disso, como terceiro e último passo desse modelo geral de
operação, o resultado indicado pelo “princípio” do pragmatismo deve ser uni-
versalizável. Com isso, pretende-se evitar o casuísmo, a decisão ad hoc, a
violação à impessoalidade. Ainda raciocinando com o Direito do Petróleo,
se, por hipótese, a fase de exploração do contrato de concessão foi esten-
dida para uma concessionária, em virtude do argumento prático quanto
à inexistência de sondas de exploração no mercado, tal decisão, tomada
naquele caso, deve ser capaz de ser estendida a casos semelhantes. Do
contrário, não teríamos pragmatismo jurídico, mas argumentação prática
“pura e dura”, juridicamente incontrolável e constitucionalmente agressora,
numa espécie de reversão do adágio clássico: cumpram-se os desígnios
do mundo, pereça a justiça.
Então, até aqui, temos o modo geral de operação do nosso “prin-
cípio”. Primeiro, fundamenta-se a possibilidade de seu exercício numa
atribuição legal ou constitucional de poder à autoridade julgadora. Depois,
Š£ȬœŽȱŒ˜–ȱšžŽȱœŽžȱžœ˜ȱ›Žœ™Ž’Žȱ˜ŠœȱŠœȱ›Ž›ŠœȱŠ›ž–Ž—Š’ŸŠœǯȱ˜›ȱę–ǰȱ
vê-se se o resultado priorizado pode ser estendido a casos semelhantes.
Agora, as hipóteses especiais de incidência do “princípio” do prag-
matismo jurídico. São três: a proporcionalidade em sentido estrito, as hipóteses
de autonegação da norma e a “doutrina do absurdo”.
Quando da incidência da máxima da proporcionalidade — não vamos
entrar em discussões sobre se se trata de princípio, regra ou outra coisa287 —,
o senso comum brasileiro, tanto doutrinário quanto jurisprudencial, a partir
de decisões do Tribunal Constitucional Federal alemão, estabeleceu que

consumidor quanto a preço, qualidade e oferta dos produtos; IV - proteger o meio ambiente
e promover a conservação de energia; V - garantir o fornecimento de derivados de petróleo
em todo o território nacional, nos termos do §2º do art. 177 da Constituição Federal; VI - in-
Œ›Ž–Ž—Š›ǰȱŽ–ȱ‹ŠœŽœȱŽŒ˜—â–’ŒŠœǰȱŠȱž’•’£Š³¨˜ȱ˜ȱ¤œȱ—Šž›Š•Dzȱ ȱȬȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŠœȱœ˜•ž³äŽœȱ–Š’œȱ
adequadas para o suprimento de energia elétrica nas diversas regiões do País; VIII - utilizar
fontes alternativas de energia, mediante o aproveitamento econômico dos insumos disponí-
veis e das tecnologias aplicáveis; IX - promover a livre concorrência; X - atrair investimentos
na produção de energia; XI - ampliar a competitividade do País no mercado internacional;
XII - incrementar, em bases econômicas, sociais e ambientais, a participação dos biocombustí-
veis na matriz energética nacional.
287
Para isso, ver, por todos, na doutrina brasileira, ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱŠȱŽę—’³¨˜ȱ¥ȱŠ™•’-
cação dos princípios jurídicos. 4. ed. Na doutrina estrangeira, PULIDO. El principio de proporcio-
nalidad y los derechos fundamentales.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
113

existem três “testes”288 em sua incidência: o da adequação, o da necessidade/


exigibilidade e o da proporcionalidade em sentido estrito.
›Šǰȱ Šȱ ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȱ Ž–ȱ œŽ—’˜ȱ Žœ›’˜ǰȱ šžŽȱ œ’—’ęŒŠȱ ž–Šȱ
análise de custo-benefício em relação à medida, incorpora raciocínio con-
sequencialista: há de se adiantar as consequências para que seja possível
avaliar, hoje, a constitucionalidade do ato ou norma. Há quem diga que
os dois primeiros testes são, na verdade, derivações do terceiro. “Os dois
primeiros são, apenas, claras e simples aplicações do terceiro. Testes de
adequação e de ‘necessidade’ indicam casos para os quais, com efeito,
—Ž—‘ž–Šȱ›Š£¨˜ȱ•ŽÇ’–Šȱ™˜ŽȱœŽ›ȱžœŠŠȱ™Š›Šȱ“žœ’ęŒŠ›ȱ˜ȱšžŽȱ˜’ȱŽ’˜Ȅǯ289
Se assim for, o princípio da proporcionalidade como um todo é, essencial-
mente, um teste pragmatista, que serve para analisar as consequências das
medidas, legais ou administrativas, tomadas pelo Estado.
Há outra perspectiva para se ver a relação entre a proporcionalidade
e o pragmatismo: é a dinâmica de funcionamento da máxima. A partir da
ascensão da proporcionalidade, o controle de constitucionalidade e, de
modo geral, as próprias atividades judiciária e administrativa passaram
a operar muito mais numa dinâmica de análise de ›ŠŽȬ˜ěœ, pesagem
de custos e benefícios, do que numa busca por teorias interpretativas ou
ꕘœ˜ęŠœȱ–˜›Š’œǯȱ œœ˜ȱœ’—’ęŒŠȱšžŽȱŠȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȱ–ž˜žȱ˜ȱ™›à™›’˜ȱ
estilo do mister judicial e administrativo. Juízes deixaram de ser, em boa
parte, teóricos, para se focarem em resultados e consequências, tanto das
políticas públicas quanto das próprias decisões (entendidas, elas também,
como políticas públicas). “A proporcionalidade transforma o controle
judicial de constitucionalidade, de exercício interpretativo, no qual se dá
œ’—’ęŒŠ˜œȱ¥œȱ™Š•ŠŸ›Šœȱ˜ȱŽ¡˜ȱ˜—œ’žŒ’˜—Š•ǰȱ—ž–Šȱ™Žœšž’œŠȱŠŒžŠ•ȱ
‹ŠœŠ—Žȱ˜ŒŠŠȱ—˜œȱ‹˜—œȱŽȱ–ŠžœȱŽŽ’˜œȱŽȱŠ˜œȱŽœ™ŽŒÇꌘœȱ˜ȱœŠ˜Ȅǯ290
Este é o primeiro caso especial do “princípio” do pragmatismo
jurídico: sua incidência como proporcionalidade estrita (ou, até, como
máxima da proporcionalidade tout court).
Segundo caso especial de nosso “princípio” é o da autonegação da
normaǯȱ 1ȱ šžŠ—˜ȱ Šȱ Š™•’ŒŠ³¨˜ȱ Šȱ —˜›–Šǰȱ —ŠšžŽ•Žȱ ŒŠœ˜ǰȱ œ’—’ęŒŠȱ —ŽŠ›ȱ Šȱ
ꗊ•’ŠŽȱšžŽȱ•‘Žȱœž‹“Š£ǯȱȱ—˜›–ŠȱœŽȱŠž˜Š—ž•Šȱ™˜›šžŽǰȱŠ˜ȱœŽ›ȱŠ™•’ŒŠŠǰȱ
Žœ™›˜–˜ŸŽȱœžŠȱꗊ•’ŠŽǯȱȃžŠ—˜ȱŠȱ˜›–ŠȱŠȱ—˜›–ŠȱŽ—›ŠȱŽ–ȱŒ˜—Ě’˜ȱ
com seu próprio conteúdo fundamental, diante das circunstâncias do caso,
permite-se que se decida com base em um argumento consequencialista”.
Assim, “as consequências devem ser consideradas se, no contexto do

288
Há, também aqui, debate sobre a natureza jurídica desses testes. Seriam subprincípios? Regras?
Cf. ALEXY. Teoría de los derechos fundamentales, especialmente nota de rodapé n. 84, p. 112.
289
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 163.
290
BEATTY. The Ultimate Rule of Law, p. 182-183.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
114 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

proferimento da decisão, a norma a ser aplicada conduz a um resultado


oposto àquele que busca promover”.291
A ideia da autonegação da norma é pragmática, já que, pensando
—˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱœŽȱŠȱŸŽ›ŠŽȱŽȱž–Šȱ™›˜™˜œ’³¨˜ȱŽŒ˜››ŽȱŠȱ
utilidade de suas consequências, então uma norma cujos resultados ne-
guem seu propósito não ultrapassa o teste pragmatista.292 Como exemplo,
citem-se as normas concessivas de gratuidades para ingresso em equipa-
mentos culturais (o custo da gratuidade seria repassado ao preço cheio do
’—›Žœœ˜ǰȱŽ—ŒŠ›ŽŒŽ—˜Ȭ˜ȱŽǰȱŠę—Š•ǰȱŽœ™›˜–˜ŸŽ—˜ȱŠȱŒž•ž›ŠȱȯȱŸŽ›ǰȱœ˜‹›Žȱ
isso, comentário acima),293ȱ˜žȱŽŒ’œäŽœȱ“ž’Œ’Š’œȱšžŽȱœŽȱ“žœ’ęŒŠ–ȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ
—ž–Šȱꗊ•’ŠŽȱšžŽȱŠŒŠ‹Š–ǰȱ—Šȱ™›¤’ŒŠǰȱ—ŽŠ—˜ǯȱŽ›’ŠȱŽœŽǰȱ™˜›ȱŽ¡Ž–-
plo, o caso da decisão do STF que obrigou a verticalização nas eleições
brasileiras. A promoção da coerência partidária e da democracia eleitoral,
tomadas como razões para decidir, teriam sido prejudicadas pela própria
decisão, na medida em que partidos menores e ideológicos haveriam de
se coligar com maiores para ter acesso ao fundo eleitoral e ao tempo de
propaganda gratuita, perdendo a chance de, em eleições proporcionais,
elegerem candidatos.294
Terceiro caso especial de incidência do “princípio” do pragmatismo
jurídico, talvez o mais comum na doutrina e na jurisprudência, é o da
“doutrina do absurdo” (absurdity doctrine), denominação americana que
remete à parêmia segundo a qual “a interpretação da lei não pode levar
a absurdos”.295 Normas jurídicas não podem ser interpretadas de modo
šžŽȱ•ŽŸŽ–ȱŠȱ›Žœž•Š˜œȱŠ‹œž›˜œǰȱ–Žœ–˜ȱšžŠ—˜ȱ˜ȱŽ¡˜ȱœž™Ž›ęŒ’Š•–Ž—Žȱ
determine tal exegese.296 É incidência especial do pragmatismo porque

291
RAPOZO. El pragmatismo y el consecuencialismo jurídico: estudo de las teorías en el âmbito
conceptual, normativo e interpretativo del derecho, f. 220.
292
ȱ ȃŠ›Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱŠę—Š•ǰȱž–ŠȱŸŽ£ȱšžŽȱ˜ŠœȱŠœȱ™›˜™˜œ’³äŽœȱŒ˜—¹–ȱ’—›Ç—œŽŒŠȱŽȱ—ŽŒŽœœŠ›’Š-
mente uma referência ao futuro, sua verdade ou falsidade depende do sucesso ou da derrota
ŽȱœžŠȱꗊ•’ŠŽȄȱǻ  
ǯȱPragmatismo: teoria social e política, p. 47).
293
A Lei Federal nº 12.993, de 26 de dezembro de 2013, estabeleceu que a meia-entrada está limi-
tada a quarenta por cento do total dos ingressos. Resta saber se os valores da meia-entrada e da
entrada inteira, após a lei, serão reajustados até que, por exemplo, o valor da nova meia-entrada
corresponda ao valor da antiga entrada inteira, e a entrada inteira seja duplicada. Nesse cená-
rio, haveria uma despromoção da cultura, pois o cenário antes da meia-entrada possuía valores
totais menores do que aqueles posteriores a ela.
294
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Verticalização, cláusula de barreira e pluralismo político:
uma crítica consequencialista à decisão do STF na ADIN 3685. Interesse Público – IP.
295
GOLD. Absurdity Doctrine, Scrivener’s error and Statutory Interpretation. Unniversity of
Cincinnati Law Review. Nas nossas doutrina e prática jurisprudencial, o uso de tal argumento
é difundido. Carlos Maximiliano já dizia: “O Direito deve ser interpretado inteligentemente,
não de modo que a ordem legal envolva um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a
conclusões inconsistentes ou impossíveis” (MAXIMILIANO. Hermenêutica e aplicação do direito.
19. ed., p. 136).
296
CROSS. The Theory and Practice of Statutory Interpretation, p. 108.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
115

œ’—’ęŒŠȱ šžŽȱ ˜ȱ ’—·›™›ŽŽȱ ŽŸŽȱ Š’Š—Š›ȱ Šœȱ Œ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ ™›¤’ŒŠœȱ Šȱ


norma ou do ato para, diante do absurdo, negar-lhe vigência in concreto.297
Exemplo prosaico: quando o patrão pede para que a empregada
largue tudo e venha correndo, certamente não pretende que largue o bebê
que ela, naquele momento, salvava de um afogamento.298 Em certo sentido,
a “doutrina do absurdo” é o caso geral de que a autonegação da norma
é o caso especial, porque se uma norma se autocontrariar na prática não
deixa de ser um resultado absurdo.
Observação a respeito dos dois últimos casos especiais de incidência
de nosso “princípio”: é necessária contenção em seu uso, seja por razões
democráticas (o julgador deve respeito à existência e à presunção de cons-
titucionalidade da norma), seja por questões institucionais (se estivermos
falando do Judiciário, este talvez não seja o poder tecnicamente mais apto
a efetuar juízos consequencialistas [embora eles sejam inevitáveis]).
Negar in concretoȱŠȱꗊ•’ŠŽȱšžŽȱœž‹“Š£ȱ¥ȱ—˜›–Šȱ˜žȱŒ˜—ž£’›ȱŠȱ
resultados absurdos são conceitos-limite, não argumentos do dia a dia.299
O que se quer evitar é a trivialização interesseira do pragmatismo jurídico,
Š·ȱ˜ȱ™˜—˜ȱŽ–ȱšžŽȱ˜˜œȱ˜œȱŽ–˜›ŽœȱšžŽȱ˜ȱŒŽ›ŒŠ–ȱŸŽ—‘Š–ȱŠȱœŽȱ“žœ’ęŒŠ›ǯȱ
De argumento juridicamente possível, ele poderia se transformar no mais
novo coelho a ser retirado do chapéu de juízes e administradores autocrá-
ticos e de seus contrapartes, os advogados espertos.
’˜ȱ’œœ˜ǰȱ“¤ȱ™˜Ž–˜œȱ›ŠŠ›ǰȱŠę—Š•ǰȱ˜œȱstandards de incidência de
nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, que operam de modo conjunto
e não excludente. A eles.
(i) •Žȱ’—Œ’Žȱ—˜ȱꗊ•ǰȱŒ˜–˜ȱŽœŽȱŽȱŽœŒŠ›Žȱǻ˜žȱŽȱ›Ž˜›³˜ǼȱŽȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽœȱ
interpretativas. Nosso “princípio” do pragmatismo jurídico incide como
último passo do iter interpretativo, descartando ou reforçando propostas

297
BUSTAMANTE. On the Argumentum ad Absurdum in Statutory Interpretation: its uses and
˜›–Š’ŸŽȱ ’—’ęŒŠ—ŒŽǯȱ In: FETERIS; DAHLMAN (Ed.). Legal Argumentation Theory: Cross-
disciplinary Perspectives. Springer, 2012.
298
FULLER. O caso dos exploradores de cavernas, p. 12.
299
Embora argumentos teóricos de exceção, como a ponderação de princípios ou de regras, ou
sentidos contraintuitivos de normas legais descobertos a partir de interpretações teleológicas
ou sistemáticas, apareçam de modo estranhamente comum em muitas obras jurídicas e em
pareceres. Neste último caso, como as opiniões jurídicas em relação a casos concretos não são,
Ž–ȱ™›’—ŒÇ™’˜ǰȱŸ’—Œž•Š—Žœǰȱꌊȱ–Š’œȱ¤Œ’•ȱŠ‹žœŠ›ȱ˜ȱ’œŒž›œ˜ȱŽȱ˜™Ž›Š›ȱŒ˜–˜ȱŠȱŒ˜’œŠȱ“ž•ŠŠDZȱ
fazendo do quadrado, redondo, e do preto, branco. A esse respeito, anotamos o seguinte: “A
ideia de que um parecer é uma ‘mera opinião’, embora verdadeira na essência, tem sido usada,
muitas vezes, como escudo retórico com base no qual se pretende imunizar todo e qualquer
arremedo de interpretação jurídica, inclusive e especialmente as que buscam transformar uma
ilegalidade candente num ‘caso difícil’ e, a partir daí, numa hipótese em que é aceitável ‘mais
ž–Šȱ˜™’—’¨˜ȂǰȱŠę—Š•ǰȱȁ˜ȱ’›Ž’˜ȱ·ȱž–Šȱ–˜•ž›ŠȂǯȱ¨˜ȱ·ȱŠœœ’–ǰȱ™˜’œȱ–Žœ–˜ȱ Ž•œŽ—ȱŽȱ
Š›ȱŽ-
fendiam limites para isso. O argumento dos casos difíceis é aplicável, quando muito, a um
™Ž›ŒŽ—žŠ•ȱǗꖘȱŽȱ‘’™àŽœŽœǯȱœȱŒŠžœŠœȱŽ–ȱšžŽȱœŽȱ™›ŽŒ’œŠȱ›ŽŠ•–Ž—Žȱ™˜—Ž›Š›ȱŠ•ž–ŠȱŒ˜’œŠȱ
são estatisticamente irrisórias” (MENDONÇA. A responsabilidade pessoal do parecerista pú-
blico em quatro standards. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
116 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

interpretativas já construídas a partir dos elementos tradicionais (linguístico,


sistemático, histórico, teleológico), e isso se chegar a ser necessário. Em nossa
™›˜™˜œŠǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ—¨˜ȱ·ȱŒŠ™Š£ǰȱ™˜›ȱœ’ȱœàǰȱŽȱę¡Š›ȱž–Šȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱ
jurídica.300 Isso está de acordo com uma espécie de compreensão mais con-
sensual do pragmatismo jurídico. É o que propõem, entre outros, Aulius
Aarnio e Humberto Ávila.301
No entanto, citando decisão do STF na ADI nº 1.946/DF, em que,
discutindo-se o limite da contrapartida pública ao pagamento do salário da
gestante licenciada (se estaria limitada ao teto dos benefícios da Previdência
Pública ou não), o Supremo teria decidido com base primeiramente no argu-
mento de que a limitação nesse valor funcionaria como desestímulo à
contratação de mulheres pela iniciativa privada, Diego Arguelhes acredita
ser possível entender a prioridade do argumento consequencialista de
modo diferente do usual.302 Segundo ele, considerando a incorporação ao
discurso jurídico contemporâneo dos princípios jurídicos, que apontam
para estados de coisas, as consequências poderiam vir a ser aceitas como
ȃ’—œ’žŒ’˜—Š’œȄȱǻ™›˜–˜ŸŽ›ȱŒ˜—žŠœȱšžŽȱŽ›Ž–ȱŽœŠ˜œȱŽȱŒ˜’œŠœȱ·ǰȱŠę—Š•ǰȱ
pensá-las a partir de suas consequências).303 Em termos menos técnicos, o
peso do argumento consequencialista seria igual ao dos demais: ele não
ꌊ›’Šȱ›Ž•ŽŠ˜ȱŠȱ™Š™Ž•ȱœŽŒž—¤›’˜ǯ
Em um mundo abstrato, até concordaríamos com Diego Arguelhes.
Não só os argumentos consequencialistas, e o próprio pragmatismo jurí-
dico (pelo menos em versões moderadas), são compatíveis com o Estado
de Direito, como também não merecem ser colocados em segundo plano,

300
Nesse sentido, ainda, Mengoni, citando antiga parêmia segundo a qual adducere inconveniens non
est resolvere argumentum — “aduzir inconvenientes não é resolver o argumento” (MENGONI.
Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 94).
301
ÁVILA. Argumentação jurídica e imunidade do livro eletrônico. Revista de Direito Tributário. É
particularmente instrutivo o trecho a seguir: “Os argumentos transcendentes ao ordenamento
jurídico passam a ser relevantes na interpretação no momento em que a linguagem e o sistema
“¤ȱ—¨˜ȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š–ȱž–Šȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ™Š›ŠȱŠȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ǯȱŽȱ˜ȱ’—·›™›ŽŽȱŒ˜—œŽžŽȱŒ˜—œ›ž’›ȱ
ž–ȱœ’—’ęŒŠ˜ȱŽȱŠŒ˜›˜ȱŒ˜–ȱŠ›ž–Ž—˜œȱ•’—žÇœ’Œ˜œȱŽȱœ’œŽ–¤’Œ˜œǰȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ›Š£¨˜ȱœžęŒ’Ž—Žȱ
para o recurso a outros argumentos. Não é noutro sentido que a doutrina constrói as etapas
—ŠȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠDZȱœàȱœŽȱ›ŽŒ˜››Žȱ¥ȱ™›à¡’–ŠȱŽŠ™ŠȱœŽȱŠȱŠ—Ž›’˜›ȱ˜›ȱ’—œžęŒ’Ž—Žȱ™Š›ŠȱŠȱ
“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŠȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜Ȅǯ
302
ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios para uma com-
patibilização, p. 9 et seq.
303
“Assim, não há qualquer incompatibilidade entre a ideia de obediência como promoção e o
caráter ‘deontológico’ da aplicação de normas jurídicas, que a tradição do pensamento jurídico
vê como uma exigência do ideal de Estado de Direito. Ao contrário, muitas vezes o órgão judi-
cante dependerá de uma análise das possíveis consequências de cada curso decisório para iden-
’ęŒŠ›ȱ˜ȱšžŽȱŠȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱŽ¡’Žȱ—˜ȱŒŠœ˜ȱǽǯǯǯǾǯȱ•·–ȱ’œœ˜ǰȱŽ–ȱŒŠœ˜œȱŽȱinterdependência
entre os estados de coisas deonticamente caracterizados por normas distintas, os argumentos
consequencialistas podem funcionar como argumentos sistemáticos (‘contextuais’, nos termos
de Ávila), pois tratam da combinação teleológica entre outros princípios e a norma objeto de
interpretação” (ARGUELHES. Argumentos consequencialistas e Estado de direito: subsídios
para uma compatibilização, p. 15, 17, grifos no original).

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
117

chamados de “políticos”, “não institucionais”, ou seja lá qual denominação


se invente para dizer que são argumentos de segunda mão.
žœ’ęŒŠ–˜œǰȱŒ˜—ž˜ǰȱ—˜œœŠȱ™˜œ’³¨˜ȱ™˜›ȱšžŽœ¨˜ȱŽȱ™Ž›œžŠœ’Ÿ’ŠŽȱ
de nosso “princípio”: colocá-lo como argumento de reforço ou descarte
faz parte de estratégia de persuasão que respeita a autopercepção dos jul-
Š˜›ŽœȱŒ˜–˜ȱȃŠ™•’ŒŠ˜›ŽœȱŠȱ•Ž’Ȅǯȱ•·–ȱ’œœ˜ǰȱŠę›–¤Ȭ•˜ȱŒ˜–˜ȱŠ›ž–Ž—˜ȱ
principal traria uma série de problemas relacionados a seu abuso. Ele se
torna mais aceitável e mais controlável quando funciona como argumento
de reforço ou de descarte. É isso o que, de modo geral, os juízes já pensam
a seu respeito. É, mais uma vez, a utilidade da redundância.
(ii) •Žȱ’—Œ’ŽȱŽ—›˜ȱŠȱŽ¡Ž—œ¨˜ȱŽȱœ’—’ęŒŠ˜œȱ™˜œœÇŸŽ’œȱ™Ž›–’’˜œȱ™Ž•˜ȱ
texto normativoǯȱ¡ŒŽ˜ȱšžŠ—˜ȱŠȱ—˜›–ŠȱœŽȱŠž˜Š—ž•Šȱꗊ•’œ’ŒŠ–Ž—Žȱ˜žȱ
quando gera absurdos (ver acima), a incidência do nosso princípio se faz
dentro das possibilidades permitidas pelo texto da Constituição e da lei.
Com razão está Mengoni: “O argumento consequencialista não pode ser
incompatível com a estrutura linguística do texto”.304
Não estamos, no entanto, advogando nenhuma fórmula de apego
œŽ–¦—’Œ˜ǯȱ
¤ȱœžęŒ’Ž—ŽȱŽœ™Š³˜ȱ™Š›ŠȱŠȱŒ›’Š’Ÿ’ŠŽȱ’—Ž›™›ŽŠ’ŸŠȱŽȱœ˜•žȬ
ções heterodoxas, desde que tais soluções estejam baseadas na lei e no
Direito. Uma coisa é o princípio da juricidade, que existe e vem, cada dia
mais, ganhando projeção como sinônimo de legalidade não formalista, e
que pode fundar uma proposta consequencialista de interpretação; outra
é, a pretexto de ser pragmatista, ignorar a Constituição e fazer pouco caso
de toda espécie de argumento institucional — a começar pelo desamor a
seu texto.
(iii) Ele considera apenas consequências que possam ser reconduzidas à
Constituição. Com isso, queremos dizer que as consequências devem ser
integralmente compatíveis com a Constituição.305 Aqui, portanto, rejei-
tamos a ideia de Posner. Seu pragmatismo jurídico não é adaptativo ao
nosso Direito. Nossa proposta não é compatível com qualquer espécie de
argumentação ordinária contra legem.306
O propositor de uma incidência de nosso “princípio” deverá ser,
portanto, capaz de operar com consequências que se reconduzam às regras

304
MENGONI. Ermeneutica e dogmática giuridica: saggi, p. 103. Nossa proposta de “princípio” do
pragmatismo jurídico é compatível com a maioria das versões de positivismo jurídico e, de
fato, em muitas delas, pode vir associado às clássicas “interpretação sistemática” e “interpre-
tação teleológica”.
305
“Uma abordagem orientada para resultados em relação à interpretação constitucional é
Œ˜—œ’œŽ—ŽȱŒ˜–ȱž–Šȱ’Ž’ŠȱŽȱꍎ•’ŠŽȱ¥ȱ˜—œ’ž’³¨˜ȱœŽǰȱŽȱŠ™Ž—ŠœȱœŽǰȱŠȱ˜—œ’ž’³¨˜ȱ·ȱŠȱ˜—Žȱ
dos resultados que o intérprete pretende fazer valer” (BARBER; FLEMING. Constitutional
Interpretation: the Basic Questions, p. 186).
306
Por argumentação contra legem, entendemos, citando Thomas da Rosa Bustamante, “a forma
de argumentar contrária aos œ’—’ęŒŠ˜œȱ –Ç—’–˜œȱ que possui um ou mais texto jurídico cuja
validade se mantém fora de dúvida”. V. BUSTAMENTE. Argumentação contra legem: a teoria
˜ȱ’œŒž›œ˜ȱŽȱŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠȱ—˜œȱŒŠœ˜œȱ–Š’œȱ’ÇŒŽ’œǰȱ™ǯȱŗŞŘǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
118 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ou princípios da Constituição, isto é, que sejam por elas solicitadas, ou, ao


menos, com elas não incompatíveis. Há uma sutileza em relação ao standard
anterior: uma solução pode estar dentro do sentido textual possível da
Constituição, mas lhe ser materialmente incompatível.
(iv) Ele considera as consequências certas e prováveis, mas não as apenas
plausíveis. O juízo pragmatista é juízo que olha para o futuro. Em muitos
casos, não tem como estar absolutamente certo do que prevê. Até por isso,
a argumentação deve ser feita com base em consequências certas e naquelas
em que há razoável expectativa de que ocorram, porém nunca se refere
àquelas cuja ocorrência é, tão somente, plausível.
Rejeitamos, aqui, a proposta de MacCormick quanto à restrição às
“consequências como implicações lógicas”. O que tal espécie de consequência
possui em certeza perde em utilidade, pois o pragmatismo jurídico aplicado é
visto muito mais como especulação sobre as consequências comportamentais
das decisões (e das normas) do que como análise das implicações lógicas
decorrentes dessas mesmas decisões ou normas.307
Quem vai averiguar esse grau de certeza? A autoridade que operar
o argumento; o advogado que suscitá-lo. Por isso, faz-se mister que se
ŒŽ›šžŽȱŽȱŒž’Š˜œǯȱȱŠę›–Š³¨˜ȱŽȱŽ—˜—’ȱȯȱŽȱšžŽȱœŽ›¤ȱ—ŽŒŽœœ¤›’˜ȱ
um cálculo de probabilidade tirado de regras comuns de experiência ou
Žȱ’—’ŒŠ˜›ŽœȦ–˜Ž•˜œȱŽœŠÇœ’Œ˜œǰȱŽŒ˜—â–’Œ˜œȱ˜žȱœ˜Œ’˜•à’Œ˜œȱŒ˜—ę¤ŸŽ’œȱ
— é vaga, porém é o máximo a que se pode chegar.
O juízo de certeza é o mais simples. Entre plausibilidade e probabilidade
há diferença de grau. A consequência plausível é, tão somente, uma con-
jectura razoável; a consequência provável é aquela para a qual concorrem
os dados estatísticos, as regras da experiência etc.
Alegações de prejuízo econômico são, em condições normais, con-
sequências apenas plausíveis — trata-se de infortúnio na vida de qualquer
empresa —, mas, a julgar pelo contexto e pelas provas (ver standard à frente),
pode se tornar provável ou certa. É preciso cuidado com tal consequên-
cia, porque se trata da alegação preferencial das sociedades empresárias
afetadas por ações públicas e/ou pela abrangência das leis interventivas
na economia. Se todas fossem tratadas como verdadeiras, a atuação do
Poder Público na seara econômica seria quase sempre antipragmática e,
™˜›Š—˜ǰȱŽ—Ž—Œ’Š•–Ž—ŽȱŠ—ħž›Ç’ŒŠǯȱȱ˜ȱŒž’Š˜ȱ·ȱŠ’—Šȱ–Š’˜›ȱ™˜›šžŽȱ
a economia é dinâmica e, muitas vezes, sabe se reequacionar a partir de
novo equilíbrio, que incorpore o novo dado (a lei ou o programa público).
Mal comparando, estar-se-ia profetizando sobre o futuro de um mundo
que nunca haveria de existir.

307
Dentro de nossa proposta incluem-se tanto as consequências extrajurídicas quanto as conse-
quências propriamente jurídicas (consolidação ou superação de precedentes, criação de diver-
gência de linha interpretativa etc.). É claro que há um processo complexo de inter-relação entre
elas: v. g., a reação a uma decisão impulsiona novas decisões contra ou naquele sentido.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
119

Alguns exemplos tornarão mais claro o que estamos dizendo, embora


talvez também sirvam para demonstrar a complexidade da tarefa.
Exemplo simples: a ocorrência de descoberta num bloco petrolífero
·ȱ™•ŠžœÇŸŽ•Dzȱ—¨˜ȱ·ȱ™›˜Ÿ¤ŸŽ•ȱ—Ž–ȱŒŽ›ŠǯȱŽȱ“¤ȱ‘˜žŸŽȱ™Žœšž’œŠȱœžęŒ’Ž—ŽǰȱŠȱ
descoberta pode se tornar provável e, em alguns casos, certa.
Exemplo nem tão simples: quando o Ministro Marco Aurélio, em
seu voto no caso do desconto para idosos nas farmácias do Estado do
Rio (ADI nº 2.435, ver supraǼǰȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱ˜žȱŠœȱŽ–™›ŽœŠœȱŠ›ŒŠ›¨˜ȱŒ˜–ȱ˜œȱ
prejuízos, ou os irão repassar aos preços — o que causará prejuízo a todos
—, é necessário “desempacotar” seu raciocínio em quatro consequências,
a saber: a) as empresas arcarão com o prejuízo, b) este prejuízo é tal que
œ’—’ęŒŠ›¤ȱŸ’˜•Š³¨˜ȱ¥ȱ•’Ÿ›ŽȬ’—’Œ’Š’ŸŠǰȱŒǼȱŠœȱŽ–™›ŽœŠœȱ›Ž™ŠœœŠ›¨˜ȱ˜ȱŽœŒ˜—˜ȱ
dos idosos aos preços de todos os remédios, d) este aumento no preço dos
remédios causará prejuízo a todos.
Dessas consequências, a primeira aparenta ser, de imediato, plausí-
vel, embora improvável. Contudo, uma análise crítica dos dados que acom-
panharam a causa pode alterar isso. Segundo informações da Assembleia
Legislativa do Estado do Rio, o público-alvo da lei corresponderia a, apenas,
nove por cento da população do Estado.308ȱŽ›¤ȱšžŽǰȱŽę—’’ŸŠ–Ž—ŽǰȱŠœȱ
empresas não vão arcar com o prejuízo?
A segunda consequência — “o prejuízo violará a livre-iniciativa”
— é, também de imediato, provável, considerando-se verdadeira a conse-
quência anterior. Contudo, será mesmo? Se o público-alvo for tão limitado
assim,309 as farmácias podem resolver absorver o prejuízo e isso nada
œ’—’ęŒŠ›ȱŽ–ȱŽ›–˜œȱŽȱŸ’˜•Š³¨˜ȱ¥ȱ•’Ÿ›ŽȬ’—’Œ’Š’ŸŠǯȱ
A terceira consequência, a repercussão econômica do desconto em
todos os medicamentos, é, sem dúvida, a mais provável. Ou não? Todas
as farmácias aumentariam seus preços? Não há concorrência entre elas?
•ž–Šœȱ Šž–Ž—Š›’Š–ǵȱ ˜žŒŠœǵȱ žŠœŽȱ —Ž—‘ž–Šǵȱ ˜Ž–˜œȱ Šę›–¤Ȭ•˜ȱ
com base em quê?
A última consequência — o aumento nos preços causará prejuízo
aos compradores em geral, indo contra um dos propósitos da lei (tornar o
acesso aos fármacos mais fácil, e não mais difícil) —, numa visão superꌒŠ•ǰȱ

308
Cf. trecho do voto da Ministra Relatora Ellen Gracie: “Quanto aos empresários, caso indefe-
rida a liminar mas no mérito julgada procedente a ação, terão condições de se ressarcir, pelas
regras de mercado, dos prejuízos que porventura julgarem haver sofrido, levando-se em conta,
Š–‹·–ǰȱŠȱ’—˜›–Š³¨˜ȱ™›ŽœŠŠȱ™Ž•ŠȱœœŽ–‹•Ž’ŠȱŽ’œ•Š’ŸŠȱǻĚǯȱŞŗȬŗŖŖǼȱŽȱšžŽȱ˜ȱ™ø‹•’Œ˜ȱŠ•Ÿ˜ȱ
da lei questionada corresponde a apenas 9% da população do Estado do Rio de Janeiro” (ADI
—ķȱŘǯŚřśǰȱĚǯȱŘŘŘȬŘŘřǼǯ
309
Embora também aqui exista um fator complicador. Pode ser que os idosos, por poucos que
sejam no Estado do Rio, correspondam majoritariamente ao público consumidor de remédios,
Šę›–Š³¨˜ȱ™•ŠžœÇŸŽ•ǰȱ™Š›Šȱ’£Ž›ȱ˜ȱ–Ç—’–˜ǰȱ˜ȱšžŽȱ™˜Žȱœ’—’ęŒŠ›ȱšžŽȱ˜ȱŽœŒ˜—˜ȱ’–™˜œ˜ȱ™Ž•Šȱ
lei abranja, digamos, sessenta por cento das vendas. Não importaria o percentual de idosos no
Estado do Rio, mas o percentual de idosos que, no Estado, consumissem remédios, e o quanto
’œœ˜ȱœ’—’ęŒŠ›’ŠȱŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱ¥œȱŸŽ—Šœȱ˜Š’œȱŠœȱŠ›–¤Œ’Šœǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
120 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

soa provável, porém, indo mais a fundo, talvez não seja bem assim. Quem
garante que, mesmo havendo repasse nos preços, considerando a abran-
gência da lei (apenas nove por cento dos idosos) e a própria diluição por
todos os compradores e por todos os itens, o aumento ainda assim será
ŽŒ˜—˜–’ŒŠ–Ž—Žȱœ’—’ęŒŠ’Ÿ˜ǵȱȱŠž–Ž—˜ȱ™˜Žȱ›Žœž•Š›ȱŽ–ȱŠ•ž—œȱ™˜žŒ˜œȱ
ŒŽ—ŠŸ˜œǰȱ˜ȱšžŽȱŽœ¤ȱ•˜—ŽȱŽȱŒ˜–™›˜–ŽŽ›ȱšžŠ•šžŽ›ȱꗊ•’ŠŽȱŽ—·›’ŒŠȱ
de acesso aos medicamentos.
—ę–DZȱ˜ȱ“žÇ£˜ȱŽȱ™›˜‹Š‹’•’ŠŽȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ·ȱ˜ȱ™˜—˜ȬŒ‘ŠŸŽȱ
do pragmatismo jurídico. É o diferencial entre a argumentação controlada
e a retórica ruim.
(v) Ele considera consequências imediatas e futuras, mas não as remota-
mente futuras. Há que se encontrar limite lógico-temporal razoável para
as consequências a serem apreciadas. Em tese, as consequências de uma
ø—’ŒŠȱ Š³¨˜ȱ œ¨˜ȱ ’—ę—’Šœǯȱ ˜–˜ȱ ŽœŒ›ŽŸŽȱ ‘ŠÊ–ȱ Ž›Ž•–Š—ǰȱ ȃ—ž—ŒŠȱ œŽ›’Šȱ
possível reunir o conjunto das consequências de que depende a aplicação
do argumento pragmático se cada consequência devesse, por sua vez, ser
apreciada consoante suas próprias conseqüências, pois a sequência destas
œŽ›’Šȱ’—ę—’ŠȄǯ310
O “princípio” do pragmatismo jurídico incide a partir de projeção de
consequências imediatas e de curto e médio prazo. Se estivermos falando,
como costuma acontecer, de consequências econômicas, projeções baseadas
em expectativas superiores a, digamos, dois anos não se prestam à análise.311
Tal standard vale também para limitar o número de eventos-causa
das consequências: a incidência se dá em relação a um deles, ou, quando
muito, a um grupo deles, mas desde que vinculados por uma mesma
situação fática de base.
(vi) Ele considera apenas consequências fáticas com razoável base empírica.
Esse é o standard que trata a questão da prova das alegações de fato em
que se baseiam as consequências com as quais se vai construir a incidên-
cia do “princípio”. Não deixa de ser, sob outra perspectiva, a questão da
probabilidade da ocorrência das consequências.
Se nosso “princípio” do pragmatismo jurídico se basear em qualquer
alegação, será, apenas, mais um artifício da má retórica. Tudo que se alega
deve ser provado, se não de modo cabal (as consequências prováveis não
podem ser assim comprovadas), ao menos de forma indiciária. Ainda
mais, tal standard requer que se analise crítica e institucionalmente os
dados empíricos trazidos como prova. A alegação deve ser apreciada em
œŽžȱŒ˜—Žø˜ȱȯȱœŽȱ·ȱŒ˜—œ’œŽ—Žȱ˜žȱ—¨˜ȱȯǰȱŽǰȱŠ’—ŠǰȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ—ŠȱŒ˜—ęŠ-
bilidade técnica da fonte originadora. Uma situação é a concessionária ou
a empresa trazer relatório que ela própria elaborou; outra é uma entidade

310
PERELMAN. Retóricas, p. 17.
311
Esse dado é, como se deve imaginar, especulativo. O elemento temporal varia caso a caso.

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PRIMEIRA PARTE – BASE TEÓRICA
CAPÍTULO 1 – EM DIREÇÃO A UM “PRINCÍPIO” DO PRAGMATISMO JURÍDICO ÚTIL...
121

internacional produzir nota técnica que não necessariamente foi pensada


para servir de prova num processo.
(vii) Ele desconsidera consequências fundacionais. Esse standard é tribu-
¤›’˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŽ‹’•’Š—˜ȱŠȱŽœŽȱŽȱšžŽȱ˜œȱ™›Š–Š’œ–˜œȱ
têm pouca coisa em comum. Há nele, ainda, certa proximidade com um dos
conteúdos da razão pública, tema do próximo capítulo (tanto assim que o
Š—’ž—ŠŒ’˜—Š•’œ–˜ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ·ȱŠ™˜—Š˜ȱŒ˜–˜ȱž–ȱ˜œȱ
pontos de contato entre pragmatismo e razão pública — ver debate à frente).
As consequências a serem construídas e, então, ponderadas, devem
ser consequências que não se baseiem em crenças fundacionais, isto é,
ŠŸ’—ŠœȱŽȱ™›˜ęœœäŽœȱŽȱ·ȱ’—œž‹–’œœŠœȱŠȱŒ›Ç’ŒŠœǯȱŠ›Šȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ǰȱ
tudo pode ser analisado e criticado; nada é sagrado.
No Direito Constitucional Econômico, há duas espécies de funda-
cionalismos comuns. A hiperconstitucionalização da livre-iniciativa e sua
irmã gêmea, a hiperconstitucionalização de objetivos constitucionais de
índole social. Essas “verdades” fundadoras costumam perpassar uma série
de propostas interpretativas na área, mas devem, sob bases pragmatistas,
œŽ›ȱ›ŽŒ‘Š³ŠŠœǯȱ•Šœȱ›Ž’ęŒŠ–ȱ’—Ž›™›ŽŠ³äŽœȱ–Š¡’–Š•’œŠœȱǻŽ–ȱŽ›–˜œȱŽȱ
abrangência e de conteúdo) do princípio da livre-iniciativa ou dos dispo-
sitivos constitucionais de sabor social como as únicas possíveis e, a partir
daí, declararam inconstitucional tudo o que esteja em contrariedade com
tais “superprincípios”.
Tais linhas de interpretação ideologicamente carregadas são antiprag-
matistas porque fundacionais, e, se se pretende fazer incidir tal “princípio”
na prática jurídica, não devem ser incluídas na ponderação de consequên-
Œ’Šœǯȱ˜‹›Žȱ’œœ˜ȱŽŸ˜Š›Ž–˜œȱŒŠ™Çž•˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱǻ˜ȱ™›à¡’–˜Ǽǯȱ
(viii) Ele prioriza consequências contextuaisǯȱȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ
é contextualista e, uma vez mais contra Posner, nosso “princípio” do
pragmatismo jurídico também o será. Priorizar consequências contextuais
quer dizer que as consequências a serem adiantadas e analisadas serão
consequências necessariamente relacionadas ao contexto de sua aplicação.
Não se deve raciocinar com base em dados externos ou alheios às circuns-
tâncias da discussão. Assim, por exemplo, em decisão judicial tratando de
Direito das Telecomunicações, certo magistrado preferiu invalidar, para
aquele caso, a abrangência do termo “localidade”, tal como detalhado em
™˜›Š›’ŠȱŠȱȱŽ•Š‹˜›ŠŠȱŠ™àœȱŽœž˜œȱ·Œ—’Œ˜œǰȱŠę›–Š—˜ȱšžŽȱ˜ȱ
sentido de “localidade” era o que constava no Dicionário Aurélio.312 Essa
não é decisão pragmaticamente responsável, porquanto não é contextual:
o sentido de “localidade”, no debate sobre Direito das Telecomunicações,
deve ser buscado no contexto da regulação jurídica do tema, não em um
dicionário comum.

312
Processo nº 0002176-24.2007.4.02.5105. Justiça Federal do Rio de Janeiro.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
122 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Em síntese, nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, que fun-


ciona como guia na interpretação, ou como auxílio dentro de uma teoria
normativa da decisão, na condição de argumento de reforço/descarte,
˜™Ž›Šȱ™›’–Ž’›Š–Ž—ŽȱŠȱ™Š›’›ȱŽȱž–Šȱ’Ž—’ęŒŠ³¨˜ȱ˜›–Š•ȱ˜œȱȃ™˜Ž›Žœȱ
pragmatistas” que se quer atribuir à autoridade julgadora.
Seu desenvolvimento deve seguir as regras formais e materiais da
teoria da argumentação, e o resultado tido por pragmaticamente correto
só o será quando universalizável a situações semelhantes.
Ressalvando casos especiais de incidência — a proporcionalidade em
œŽ—’˜ȱŽœ›’˜ǰȱŠȱŠž˜—ŽŠ³¨˜ȱꗊ•Çœ’ŒŠȱŠȱ—˜›–ŠȱŽȱŠȱȃ˜ž›’—Šȱ˜ȱŠ‹œž›˜Ȅȱ
—, seus standards de aplicação determinam que funcione dentro das pos-
sibilidades textuais e materiais de compatibilidade com a Constituição, e
que, a partir daí, priorize consequências não muito distantes no tempo,
ŒŽ›Šœȱ˜žȱ™›˜Ÿ¤ŸŽ’œȱŽȱ˜Œ˜››Ž›Ž–ǰȱŠ•ȱŒ˜–˜ȱŒ˜–™›˜ŸŠŠœȱ™˜›ȱœžęŒ’Ž—Žȱ
base empírica “acreditável”.
Na análise das consequências, nosso “princípio” solicita, ainda, o
descarte de visões fundacionalistas ou não contextuais, pois todas elas são,
na essência, a negação do pragmatismo.

1.7 Conclusão parcial: o pragmatismo constitucionalmente


adequado, ou: por um consequencialismo não
inconsequente
Ao anunciá-lo como incrível revolução, alguns dos defensores do
pragmatismo jurídico são seus piores inimigos. Nosso pragmatismo é
menos — é instrumento que, de forma inconsciente, muitos julgadores já
utilizam — e é mais — permite saídas para encruzilhadas colocadas pelo
formalismo, mas dentro das amarras psicológicas e institucionais próprias
ao Direito. Nos casos em que os precedentes e as normas legais são claros,
um juiz pragmatista vai atuar de modo idêntico a um não pragmatista. E
isso responde pela absoluta maioria das hipóteses.
Nosso pragmatismo jurídico não é, assim, nada tão extremo. É, tão
somente, uma forma de dizer ao julgador: nos casos em que você terá que
exercer sua discricionariedade, faça-o com olhos nas consequências de
sua decisão.
Avançando um pouco mais na proposta, esse “olhar as consequên-
cias” insere-se dentro das constrições da teoria da argumentação e busca
operar consequências contextuais, não fundacionais, próximas, prováveis e
provadasǯȱ—’—˜ǰȱŒ˜–ȱ–˜Ž›Š³¨˜ǰȱŽ˜›’Šȱȯȱ’—Œ•žœ’ŸŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘ-
œàꌘȱȯȱŽȱ™›¤’ŒŠǰȱŽ’œȱŠÇȱ˜ȱ™›’–Ž’›˜ȱ˜œȱ˜’œȱȃ™›’—ŒÇ™’˜œȄȱŒ˜–ȱšžŽȱŸŠ–˜œȱ
revisitar o Direito Constitucional Econômico.

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CAPÍTULO 2

A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS


PRAGMATISMO E RAZÃO PÚBLICA
COMO NOVÍSSIMOS LIMITES AO EXERCÍCIO
DO PODER DE POLÍCIA

2.1 Introdução
Das atividades do Estado, a única que lida quase que exclusivamente
com a restrição e a conformação de liberdades individuais é o exercício do
poder de polícia.756 Natural que seja aquela que desperte maiores atenções:
Šȱ‹’‹•’˜›ŠęŠȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱ˜ȱŒ˜—›˜•Žȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ·ȱŒ˜™’˜œŠǯ757 No
capítulo que se inicia, percorremos questões conceituais acerca do poder
de polícia, sempre à luz do pragmatismo e da razão pública, mas tais
“princípios” aparecerão em especial na condição de novíssimos critérios
de controle do exercício de tal atividade pública. Seu eixo condutor é a
análise dos limites ao exercício da polícia administrativa.
Podem-se dividir os critérios de controle em duas categorias: quanto
à cronologia e quanto à abrangência do controle.
Há limites clássicos e limites novos ao exercício do poder de polícia.
Por limites clássicos referimo-nos aos elementos758 dos atos adminis-
trativos, ao respeito ao devido processo e à circunstância de o exercício
do poder de polícia dever ser precedido de uma habilitação legal clara e

756
“Trata-se do tema que mais diretamente se insere na encruzilhada autoridade-liberdade,
Estado-indivíduo, que permeia o direito administrativo e o direito público, revelando-se, pois,
muito sensível à índole do Estado e às características históricas, políticas e econômicas dos
países” (MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 89).
757
Na dogmática brasileira recente, recomenda-se, por todos, MEDAUAR; SCHIRATO (Coord.).
Poder de polícia na atualidade.
758
ȱ
¤ȱŸŠ›’Š³¨˜ǰȱ—Šȱ˜ž›’—ŠǰȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱŽȱŒ˜–˜ȱœŽȱŽŸŠ–ȱŒ‘Š–Š›ȱŠȱŒ˜–™Ž¹—Œ’ŠǰȱŠȱ˜›–ŠǰȱŠȱꗊ-
lidade, o motivo e o objeto do ato administrativo. Alguns chamam de elementos do ato; outros,
de requisitos (por sua vez, divididos em intrínsecos e extrínsecos); outros, de pressupostos.

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 305 20/08/2014 14:30:34


JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
306 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

consistente. O poder de polícia classicamente válido é aquele materializado


num ato administrativo respeitador da competência, da forma legal, da
ꗊ•’ŠŽȱ™ø‹•’ŒŠǰȱŒ˜–ȱ–˜’Ÿ˜ȱŽ¡’œŽ—ŽȱŽȱŸ¤•’˜ȱŽȱ˜‹“Ž˜ȱidem. É o exercício
da polícia que se faz com base numa autorização legal e cuja imposição de
sanção submete-se a um processo prévio.
Novos limites são o resultado da elaboração doutrinária dos últimos
anos. Estamos falando, em primeiro lugar, do respeito à dignidade da pes-
soa humana, e, logo após, dos conceitos-chave da proporcionalidade e da
preservação do núcleo essencial dos direitos (eventualmente fundamentais)
restringidos ou condicionados pelo poder de polícia.
Há, ainda, limites formais e limites materiais incidindo sobre o exer-
cício da polícia administrativa.
Formais são alguns dos limites clássicos: a competência é o respeito
a uma norma legal autorizativa do exercício de deveres-poderes; a forma
·ǰȱ™˜›ȱŽę—’³¨˜ǰȱŽȱ™˜›ȱ–Š’œȱšžŽȱ—¨˜ȱœŽȱ›Žž£ŠȱŠ˜ȱ›Žœ™Ž’˜ȱŠ—à’—˜ȱŽȱ˜›-
malidades, o cumprimento de deveres insubtanciais (uma licitação dirigida
[e, portanto, substancialmente inválida] pode ser formalmente válida,
para isso bastando que seus atos constitutivos hajam sido publicados na
’–™›Ž—œŠȱ˜ęŒ’Š•ȱŒ˜–ȱŠȱŠ—ŽŒŽ¹—Œ’ŠȱŽŸ’ŠȱŽŒǯǼǯȱ
Materiaisȱœ¨˜ȱŠ•ž—œȱ˜œȱ˜ž›˜œȱ•’–’ŽœȱŒ•¤œœ’Œ˜œȱȯȱꗊ•’ŠŽǰȱ–˜’Ÿ˜ȱ
e objeto — e todos os limites mais recentes.759 É dizer: ao analisar se, por
Ž¡Ž–™•˜ǰȱž–ȱŠ˜ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŽ›ŽȱŠȱ’—’ŠŽȱ˜ȱ‘˜–Ž–ǰȱŽœ¤ȬœŽȱŸŽ›’ęŒŠ—˜ȱ
algo além do encaixe entre previsão normativa e realidade praticada pela
Administração. Os limites materiais são, em termos dogmáticos, os mais
férteis, mas também os mais perigosos. Boa parte dos avanços doutrinários
no Direito Público dos últimos tempos veio do “descobrimento” de novas
limitações ao conteúdo dos atos administrativos; porém, há o risco de, sob
ŠȱŒŠ™Šȱ˜ȱŒ˜—›˜•ŽǰȱŽœŠ›ȬœŽȱŽ¡Ž›ŒŽ—˜ȱŠȱŠœę¡’Šȱ˜žȱ˜ȱŽŒ’œ’˜—’œ–˜ǯ

Oȱ Ž‹ŠŽȱ Ž–ȱ œŠ‹˜›ȱ ˜ž›’—¤›’˜ǯȱ ȱ Šȱ ™˜•¹–’ŒŠȱ Œ˜—’—žŠȱ Š˜ȱ –˜–Ž—˜ȱ Šȱ ™›à™›’Šȱ ’Ž—’ęŒŠ-
ção dos elementos (ou seja lá como se chamem). Apenas registraremos a existência da polêmica,
mas adotaremos, por sua popularidade, os aspectos do ato administrativo indicados por
Hely Lopes Meirelles. E, por simplicidade, vamos chamá-los de “elementos”. V. MEIRELLES.
Direito administrativo brasileiro, p. 148-152. Para discussão sobre a variedade de nomenclatura
existente na matéria, v. OLIVEIRA. Ato administrativo, p. 73-77.
759
O respeito ao devido processo legal é critério, em princípio, formal. Diz-se em princípio porque
é comum a referência a um devido processo legal de natureza substantiva, expressão de origem
americana que possui índole material, confundindo-se com o juízo de razoabilidade e/ou de
proporcionalidade. A respeito do tema, v. CASTRO. O devido processo legal e os princípios da razoa-
bilidade e da proporcionalidade; MARTEL. Devido processo legal substantivo: razão abstrata, função e
características de aplicabilidade. Já o respeito à legalidade pode ser entendido em duas acepções,
ŸŠ›’Š—˜ǰȱŠÇǰȱ˜ȱšžŠ•’ęŒŠ’Ÿ˜DZȱšžŠ—˜ȱœŽȱŠ•Šȱ—ž–Šȱ•ŽŠ•’ŠŽȱŽ–ȱœŽ—’˜ȱ˜›–Š•ǰȱŽœ¤ȬœŽȱ™Ž—-
sando num critério insubstancial, isto é, num critério que se presta à aplicação por intermédio
de subsunções simples. Quando se fala numa legalidade em sentido material, está-se referindo
à inclusão, na aplicação ou na interpretação da lei, de juízos de conteúdo.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
307

Ora, razão pública e pragmatismo como critérios de controle do


poder de polícia são critérios mais recentes do que os mais novos dos
controles modernos — daí o “novíssimo” do título do capítulo —, e, assim
como a grande maioria, são, também, limites materiais. Pressupõem uma
análise de fundo do ato administrativo com base no qual se vai exercer a
polícia. É por isso que são, ao mesmo tempo, interessantes e perigosos.

2.2 Poder de polícia: revisão doutrinária


2.2.1 Origem e sentidos da expressão “poder de polícia”.
Base legal e constitucional. Em defesa de um “poder
de polícia” que ousa dizer o nome
1ȱŠ·ȱ’ÇŒ’•ȱ’£Ž›ȱ˜ȱšžŽȱœ’—’ęŒŠŸŠǰȱ—Šȱ˜›’Ž–ǰȱ˜ȱŽ›–˜ȱȃ™˜•ÇŒ’ŠȄǯȱ
›˜ŸŠŸŽ•–Ž—Žȱœ’—’ęŒŠŸŠȱ˜ŠȱŠȱŠ³¨˜ȱ˜ȱœŠ˜ǯȱžŠȱ˜›’Ž–ȱŽ’–˜•à’ŒŠȱ
é polis, palavra grega para cidade.760 761 No século XVIII, toda atividade
desempenhada pelo Estado era chamada de polícia — et pour cause, o
Estado então constituído chamou-se Estado de Polícia —, daí a existência
de termos como ius politiae, empregado para se referir ao Direito Público
como um todo. Nesse sentido, “polícia” aparece até em Os Lusíadas.762
Žœ–˜ȱŽ—¨˜ȱ“¤ȱœŽȱ’Ž—’ęŒŠŸŠ–ȱžŠœȱ–˜Š•’ŠŽœȱ™Š›ŠȱŽœœŠȱœž™Ž›Š‹›Š—-
gente polícia: uma polícia da ordem (cura avertendi mala futura) e uma do
bem-estar e da prosperidade (cura promovendae salutis) (v., a esse respeito,
o próximo capítulo, na distinção entre fomento e polícia). Dois conteúdos
que, grosso modo, ainda se preservam até hoje.

760
LIMA. Princípios de direito administrativo, p. 305-306.
761
ȱ ŽŽȱŽŠžŠ›ȱ›Š³Šȱž–ȱ‘’œà›’Œ˜ȱŠȱ—˜³¨˜DZȱœŽǰȱ—Šȱ—’ž’ŠŽǰȱŠȱ™Š•ŠŸ›Šȱȃ™˜•ÇŒ’ŠȄȱœ’—’ę-
cava a constituição do Estado ou da Cidade — isto é, o Ordenamento Político do Estado —,
seu uso na Idade Média acompanhou tal tendência ao menos até o século XI, quando, de seu
conteúdo, foi retirado o aspecto referente às relações internacionais. A autora informa que,
já na Idade Média, utilizava-se a noção em sentido próximo ao atual, e nesse uso medieval
estariam os antecedentes da concepção moderna, não nos regulamentos de polícia do Código
Geral da Prússia, de 1794, muitas vezes citados como precursores. V. MEDAUAR. Poder de
polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 90. Outra boa análise histórica acerca das origens
da polícia está em, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría jurídica, p. 24-46) (“La policía
Ž—ȱ•Šȱ‘’œ˜›’ŠȄǼǯȱŠ›Šȱž–Šȱ›ŽŸ’œ¨˜ȱŠȱ‘’œà›’Šȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ–Ž—Žȱ—Šȱ‘’œà›’Šȱ›Š—ŒŽœŠǰȱ
v. MINET. Droit de la police administrative, p. 8-14.
762
ȱ ˜ȱꗊ•ȱŠȱ˜‹›ŠǰȱŠ—˜ȱǰȱŽœ›˜ŽȱşŘǰȱ—ž–Šȱ™Š›ŽȱŠȱŠ™›ŽœŽ—Š³¨˜ȱŠȱ¤šž’—Šȱ˜ȱž—˜ȱȯȱ˜ȱ
funcionamento do Universo de acordo com o modelo das esferas de Ptolomeu — feita pela ninfa
Tétis a Vasco da Gama, ela lhe fala (grifos nossos): “Vês Europa Cristã, mais alta e clara/ Que as
outras em polícia e fortaleza”. O sentido do trecho é claro: a Europa cristã era superior às outras
regiões do mundo em poder (fortaleza) e na qualidade de sua administração. Há outros dois
usos da palavra ao longo do poema (no Canto VI, estrofe 2, e no Canto VII, estrofe 12), mas o
sentido relatado no corpo do texto aparece de modo mais evidente na estrofe que transcrevemos.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
308 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

˜–ȱ˜ȱŽ–™˜ǰȱ˜’ȬœŽȱŽę—’—˜ȱŽȱ–˜˜ȱ–Š’œȱ™›à¡’–˜ȱŠ˜ȱŠžŠ•ȱ˜ȱ
šžŽȱœ’—’ęŒŠ›’ŠȱŠȱŠ³¨˜ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠDZȱŠžŠ³¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱŽȱ›Žœ›’³¨˜ȱ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱ
de direitos individuais em favor da coexistência em sociedade. Ficaram,
contudo, resquícios dessa polícia como ação geral do Estado: até hoje,
police power, nos Estados Unidos, é uma atuação ampla do Estado, espe-
cialmente em sede legislativa.763 No Brasil, também há essa acepção de
polícia administrativa como edição de leis ou atos normativos, apesar de
que tal sentido, aqui, é bem menos comum.
De Camões, passando pelos Estados Unidos, até o Brasil de hoje,
fala-se num sentido amplo e num sentido estrito para a polícia administrativa.
O sentido amplo é o sentido de seu uso nos EUA, do qual, se adotamos a
expressão — “poder de polícia”, corrente no Brasil, é tradução do inglês,
e foi incorporada à nossa doutrina graças a Ruy Barbosa e Aurelino Leal
—, não adotamos o sentido: “no Brasil, poder de polícia é, sobretudo,
atividade administrativa”.764 O sentido estrito é o sentido próprio: ativi-
dade765 do Estado que consiste em limitar o exercício de direitos privados
em função do interesse coletivo. Da frase simples, temos três conteúdos
œ’—’ęŒŠ’Ÿ˜œȱȯȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱ·ȱ˜ȱœŠ˜ǰȱŽ•Šȱ•’–’Šȱ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŽȱ’›Ž’˜œȱ
privados e ela se faz em virtude do interesse coletivo.

763
É nesse sentido que aparece na obra de Ernst Freund, Professor da Universidade de Chigaco
Police PowerȱǻŗşŖśǼǯȱ’œ™˜—ÇŸŽ•ȱŽ–DZȱǀ‘Ĵ™DZȦȦ’ŠřŜŖŜŖŞǯžœǯŠ›Œ‘’ŸŽǯ˜›ȦŗȦ’Ž–œȦ™˜•’ŒŽ™˜ Ž›™ž‹•’ȱ
ŖŖ›Žžž˜ĞȦ™˜•’ŒŽ™˜ Ž›™ž‹•’ŖŖ›Žžž˜Ğǯ™ǁǯȱŒŽœœ˜ȱŽ–DZȱŗŖȱ“Š—ǯȱŘŖŗŖǯȱ˜ȱ–Žœ–˜ȱœŽ—’˜ǰȱŽ–ȱ
Ž¡˜ȱ–Š’œȱ›ŽŒŽ—ŽȱȯȱŽ–‹˜›ŠȱŠę›–Š—˜ȱšžŽȱȃ˜œȱ™˜Ž›ŽœȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ˜ȱœŠ˜ȱœ¨˜ȱŠœœž—˜ȱŒ˜—-
siderado morto e sepultado pela maior parte do século XX” —, v. REYNOLDS. The Evolving
Police Power: Some Observations for a New Century. Hastings Constitutional Law Quartely.
Caio Tácito informa-nos que a expressão police power surgiu, nos Estados Unidos, num voto
de Marshall havido em 1827 no caso Brown vs. Maryland (Temas de direito público: estudos e
pareceres, v. 1, p. 549). Ainda sobre a expressão americana, inclusive citando o trecho do voto
no qual a expressão aparece pela primeira vez (CRETELLA JÚNIOR. Tratado de direito adminis-
trativo: poder de polícia e polícia, p. 4-5).
764
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativoǰȱ™ǯȱşśǯȱŠ›ŒŽ•˜ȱŠŽŠ—˜ȱŠę›–Šȱ
šžŽȱŠȱŽ¡™›Žœœ¨˜ȱȃ•Ž’ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȄȱ—¨˜ȱŽŸŽȱŒ˜—ž—’›DZȱœ’—’ęŒŠǰȱŠ™Ž—ŠœǰȱšžŽȱŠȱ™˜•ÇŒ’Šȱ™˜ŽȱœŽ›ȱ
objeto de atividade legislativa. “Mas a actividade pela qual o Estado cria as leis de polícia não
é, em si, actividade policial, pois esta tem natureza administrativa e aquela caráter legislativo”
(Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270). Eliezer Martins investe contra a deno-
minação “poder de polícia” (veremos que isso é comum entre os que escrevem sobre o assunto),
com base na Š–™•’žŽȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠȱŠȱŽ¡™›Žœœ¨˜: “Trata-se de designativo manifestamente infeliz.
A expressão engloba, portanto, sob um único nome, coisas radicalmente distintas, submetidas
a regimes de inconciliável diversidade: leis e atos administrativos”. Ora, essa crítica aplicar-se-
ia a qualquer termo abrangente. Por exemplo: Justiça designa tanto um aparato institucional
quanto a qualidade dos atos justos. Seria a designação Justiça “manifestamente infeliz”? De
resto, a verdade é que ninguém nunca se confundiu quanto a qual polícia se esteja referindo:
em primeiro lugar, porque o uso de polícia no sentido de edição de leis é raro no Brasil; em
segundo, porque, nos casos em que é utilizado, ou o sentido é deduzido pelo contexto, ou se
usa o termo lei de polícia, que também não deixa dúvida acerca de sobre o que se está tratando
(MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO; QUEIROZ; SANTOS. Curso de
direito administrativo econômico, v. 2, p. 345).
765
“Atividade” ou “função”, e não instituição ou grupo de funcionários públicos (CHAPUS. Droit
administratif général, t. I, p. 697).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
309

Apesar de não ser mais o “toda a atividade administrativa” do século


XVIII, seu espectro de abrangência é amplo: há uma polícia dos costumes;
uma polícia sanitária; uma polícia industrial; uma polícia das construções
etc. Em relação aos conteúdos relativos à ordem econômica, nos últimos
tempos referências a uma polícia administrativa econômica caíram em
desuso, nem tanto por demérito da expressão, mais pela ascensão do termo
“regulação” (ver discussão adiante, ainda neste capítulo, sobre a distinção
entre poder de polícia e regulação). Em rigor, há mesmo impossibilidade
lógica na delimitação da abrangência, já que seu objeto será toda ativi-
dade humana com possível repercussão social e que escape à esfera da
intimidade/privacidade.766 É possível imaginar, por exemplo, uma polícia
administrativa da internet — se isso seria bom ou ruim é outra discus-
são.767 Na França, país onde, tradicionalmente, o fundamento da polícia
era apresentado como sendo a defesa da Ordem Pública, conceito-chave
no qual se incluem apenas a segurança, a saúde e a tranquilidade públi-
cas, a expansão da abrangência policial levou, inclusive, alguns autores a
colocarem o conceito “em crise”768 — coisa que não se resolve rejeitando a
noção, mas lhe expandindo os limites. Mas já retomaremos o ponto.
ȱ ’›Ž’˜ȱ ˜œ’’Ÿ˜ȱ ‹›Šœ’•Ž’›˜ȱ ™˜œœž’ȱ Žę—’³¨˜ȱ Žȱ ™˜Ž›ȱ Žȱ ™˜•ÇŒ’Šǰȱ
contida no art. 78 do Código Tributário Nacional, cuja listagem de conteúdos
·ȱŽ¡Ž–™•’ęŒŠ’ŸŠDZ
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da Administração Pública
que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prá-
tica de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à
segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do
mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão
ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à
propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.

Não é a única referência ao tema em nosso Direito Positivo. A própria


Constituição da República de 1988, em seu art. 145, inciso II, ao distribuir
a competência tributária, fala que a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios poderão instituir taxas em razão do exercício do poder de
polícia. É por essa razão que o poder de polícia também é estudado no

766
“A polícia intervém nas actividades individuais susceptíveis de fazer perigar interesses gerais.
Só aquilo que constitua perigo susceptível de projectar-se na vida pública interessa à Polícia, e
não o que afecte interesses privados ou a intimidade das existências pessoais” (CAETANO.
Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 270-271, grifos no original).
767
Falando de uma “polícia bromatológica” (higiene dos alimentos) e de uma “polícia genética”,
v. PESTANA. Direito administrativo brasileiro, p. 507.
768
LINOTTE. L’unité fondamentale de l’action administrative ou l’inexistence de la police admi-
nistrative en tant que catégorie juridique autonome. In: LINOTTE (Org.). La police administra-
tive: existe-t-elle?, p. 10-28, especialmente p. 10-19.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
310 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

’›Ž’˜ȱ›’‹ž¤›’˜ǰȱŒ˜–˜ȱšžŠ•’ęŒŠ’Ÿ˜ȱŽȱž–ŠȱŽœ™·Œ’Žȱ›’‹ž¤›’ŠDzȱ—˜ȱ’›Ž’˜ȱ
Administrativo, como modo de ação administrativa, poder jurídico ou
poder administrativo; e no Direito Constitucional, como atuação do Estado
que se limita pelos direitos fundamentais e pela proporcionalidade. Pois,
por muito estudado que seja, e talvez até por isso, não lhe cessam as con-
trovérsias. Vejamos então.
O poder de polícia, ao contrário dos serviços públicos, não vive
em crise, o que é de se estranhar, já que pouca gente parece gostar dele.
Acusa-se-lhe de ser ou inútil ou equivocado (e se trataria de equívoco perigoso).
A primeira crítica, a da inutilidade, foi verbalizada por Agustín Gordillo
Ž–ȱŗşŜŖDZȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱœŽ›’Šȱ’—Žœ™ŽŒÇꌘDzȱŒ˜—ž—’›ȬœŽȬ’ŠȱŒ˜–ȱŠȱŠ’-
vidade administrativa em geral; com a ampliação da área de atuação da
Administração, e com a pluralidade de meios para isso, haveria uma in-
distinção entre a atuação “de polícia” e a atuação geral da Administração,
ontologicamente inseparável da função de condicionar direitos. O poder
de polícia seria inútil: confundir-se-ia com a atuação administrativa do
Estado.769 770
A segunda crítica não diz respeito ao conteúdo do poder de polícia,
mas à ascendência histórica da noção e a um mau uso potencial implícito na
expressão (e que se pretenderia exorcizar pela não utilizaçao).771 Explica-se.
O poder de polícia seria atributo essencial do Estado de Polícia, não
dos atuais Estados Democráticos de Direito. Por conta disso, a expressão
teria envelhecido mal. Mais ainda, haveria uma espécie de desvio con-
ceitual intrínseco no termo, já que a palavra “poder” remeteria à época
em que Administração Pública exercia-o antes e independentemente da
lei. Sem contar que a expressão poderia fazer supor a existência de um
poder discricionário implícito e ilimitado de interferir na vida privada.772

769
ȱ ȃ¨˜ȱŽ¡’œŽȱ‘˜“ŽȱŽ–ȱ’Šȱž–Šȱȁ—˜³¨˜ȂȱŠžâ—˜–ŠȱŽȱœžęŒ’Ž—ŽȱŽȱȁ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȂDzȱ—¨˜ȱŽ¡’œŽȱ
porque essa função se distribuiu amplamente dentro de toda uma atividade estatal. A coação
estatal atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os particulares para a conse-
cução de determinados objetivos de bem comum ou de ordem pública segue sendo uma rea-
lidade no mundo jurídico, porém não é que exista uma parte dessa coação, uma parte desses
órgãos e uma parte desses objetos que se encadeiem entre si diferenciando-se do resto da ação
estatal e institucionalizando-se no mencionado ‘poder de polícia’” (GORDILLO. Tratado de
derecho administrativo, t. II, p. V, 13, 14).
770
Outros autores, sem necessariamente aceitarem as conclusões de Gordillo quanto à não utili-
£Š³¨˜ȱŠȱŽ¡™›Žœœ¨˜ǰȱŠ–‹·–ȱ–Ž—Œ’˜—Š–ȱŠȱ’ęŒž•ŠŽȱŽȱœŽȱ™›ŽŒ’œŠ›ȱž–ȱȃ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȄȱ
diferenciado da atuação executiva geral. Assim, Bartolomé A. Fiorini (Poder de policía: teoría
jurídica, p. 9-10).
771
GARCÍA DE ENTERRÍA; FERNÁNDEZ. Curso de derecho administrativo II, p. 104-106. A crítica
vem desde a doutrina germânica e tornou-se comum em setores das doutrinas espanhola,
italiana e argentina.
772
“Daí o perigo da contaminação semântica que implica utilizar o conceito de polícia para en-
globar o que não é mais do que um conjunto inorgânico de atividades administrativas de li-
mitação; um conceito que gera uma tendência a supor a existência de potestades interventoras

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
311

˜›ȱę–ǰȱtratar-se-ia de expressão metodologicamente insustentável nos


Estados modernos, na medida em que partiria da ideia do poder do
Estado como noção fundante do sistema de Direito Público, quando se
deveria partir da ideia de direitos dos indivíduos para depois se chegar à
atuação pública (questão essencialmente de ênfase, mas que diria muito).
Em suma: a polícia administrativa é acusada de ser ou um grande
nada e/ou uma noção velha, perigosa e com passado sinistro. A partir daí,
žŠœȱœ¨˜ȱŠœȱ˜™³äŽœDZȱ˜žȱœŽȱŠ‹Š—˜—Šȱ˜ȱžœ˜ȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ǰȱ˜žȱœŽȱ–˜’ęŒŠȱŠȱ
sua denominação — as sugestões são variadas: limitações administrativas
à liberdade e à propriedade,773 atividade administrativa de limitação,774
teoria dos atos de gravame,775 atividade de ordenação,776 Administração
Ordenadora.777 E muitos outros nomes ainda surgirão.
Vamos refutar as críticas partindo da segunda para a primeira.
Os críticos têm razão quando sublinham a origem autoritária da
expressão, mas exageram quando falam dos riscos de sua manutenção.
Ao tempo que se reconhece que palavras têm poder,778ȱŠ–‹·–ȱœŽȱŠę›–Šȱ
que muitos símbolos podem ser depurados. Não há nada de errado em se
utilizar expressão consagradíssima na doutrina, nacional e internacional,
desde que fazendo ressalva quanto à evolução do conteúdo.
A questão não é nem a referência constitucional, embora isso seja im-
portante.779 É o pouco ganho, em termos de acréscimo de poder explicativo,

onde não existem, que legitima a criação de poderes implícitos ou ‘naturais’ onde não podem
existir ou, quando menos, que propicia interpretações expansivas e ampliadoras das potesta-
des criadas pela lei, em prejuízo da liberdade” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho
administrativo general IIǰȱ™ǯȱŘśŖǼǯȱ1ȱŸŽ›ŠŽȱšžŽǰȱŽ–ȱžœ˜œȱ˜ž›’—¤›’˜œȱ›Ž–˜˜œǰȱŒ˜–˜ȱ—˜ȱŽȱĴ˜ȱ
Mayer, o poder de polícia estava, sim, associado a um dever geral, imposto aos administrados,
de respeitar a boa ordem social — coisa que é incompatível com o Estado de Direito, ao menos
na forma como entendido hoje, em que corretamente se postula que só existem, para os admi-
nistrados, deveres legais.
773
PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade.
774
Santi Romano trata do tema no Livro IV de seus Princípios de direito administrativo italiano, sob a
rubrica “Teoria das Limitações Administrativas à atividade privada”. Apesar da referência da
Professora Odete a essa obra do autor italiano (em seu artigo Poder de polícia, já citado), parece-
nos que Santi Romano não elaborou, aqui, proposta substitutiva da expressão “polícia”, tanto
assim que, nos subitens do capítulo, e ao longo do texto, utiliza-se largamente da palavra (o
subitem 2 se chama “Polícia de Segurança”, o 3, “Polícia Sanitária”, o 4, “Polícia dos Costumes”,
o 5, “Polícia Rural”, etc.) (ROMANO. ›’—Œ’™’’ȱ’ȱ’›’Ĵ˜ȱŠ––’—’œ›Š’Ÿ˜ȱ’Š•’Š—˜, p. 243 et seq.).
775
CASSAGNE. Derecho administrativo, v. 2, p. 319-325.
776
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 243-290.
777
SUNDFELD. Direito administrativo ordenador.
778
ȱ ȃœŠȱ™˜•’ŸŠ•¹—Œ’Šȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ™˜œœž’ȱŒŠžœŠœȱ‘’œà›’ŒŠœȱšžŽȱ·ȱ™›ŽŒ’œ˜ȱ
›ŽœŽ—‘Š›ǰȱŽȱ—¨˜ȱ™˜›ȱœ’–™•Žœȱ˜œ˜ȱ™Ž•ŠȱŽ›ž’³¨˜DZȱ—˜ȱ’›Ž’˜ǰȱŠœȱ™Š•ŠŸ›ŠœȱŽȱœŽžœȱœ’—’ęŒŠ˜œȱ
possuem habitualmente uma função prática capital; são veículos de expressão, mas também
œ¨˜ȱŠ›–Šœǰȱ˜žǰȱšžŠ—˜ȱ–Ž—˜œǰȱ’—œ›ž–Ž—˜œȱŽœŽ—‘Š˜œȱ˜žȱž’•’£Š˜œȱŒ˜–ȱ—˜à›’Šœȱꗊ•’ŠŽœȱ
pragmáticas” (SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 245).
779
CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 70.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
312 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

em contraposição ao ônus de se alterar denominação consagrada.780 Longe


de estarmos adotando raciocínio conservador, estamos, sim, procedendo
a análise pragmatista (ver capítulo 1, primeira parte): para além de qual-
quer preconceito pró ou contra o termo (não adotamos nenhuma teoria de
base, sendo, assim, antifundacionalistas),781 projetamos as consequências
prováveis da mudança (consequencialismo) a partir do contexto atual da
doutrina, da legislação e da jurisprudência (contextualismo) e concluímos
que mudar é mais difícil e menos útil do que manter e fazer as ressalvas
— ressalvas, aliás, cujo conteúdo continuaria sendo destacado mesmo que
se adotasse outra denominação. Se fôssemos rejeitar palavras por algum
péssimo passado, deveríamos começar por “democracia”, palavra em cujo
nome ascendeu o Estado Nacional-Socialista. E o Estado de Polícia, por
pior que tenha sido, não se compara ao Estado Nazista.
¨˜ȱŒ˜—›Š™˜œ˜œȱ›’œŒ˜œȱŸ’›žŠ’œǰȱŠę›–Š³äŽœȱœ’–‹à•’ŒŠœȱŠȱŒŽ—›Š•’ŠŽȱ
do ser humano e pressuposições de poderes implícitos (que, na prática,
jamais chegariam a ser exercidos, simplesmente porque o Estado de Direito
Œ˜–ȱ Ž•Žœȱ ·ȱ ’—Œ˜–™ŠÇŸŽ•Ǽȱ Šȱ ’ęŒž•ŠŽœȱ ™›¤’ŒŠœȱ šžŽǰȱ ™˜›ȱ –Ž—˜›Žœȱ šžŽȱ
possam ser tidas, são reais, no sentido mais singelo da palavra.782 Caso se

780
“Não parece adequado alterar o título de noções jurídicas consolidadas, mesmo que seu con-
Žø˜ȱœ˜›ŠȱŽŸ˜•ž³¨˜ǯȱȱ–žŠ—³Šȱ’ęŒž•ŠȱŠȱ™Žœšž’œŠȱ—Šœȱ˜‹›ŠœȱŽȱ’ęŒž•ŠȱŠȱ™Žœšž’œŠȱ“ž›’œ™›ž-
Ž—Œ’Š•ǯȱȱŠ–‹·–ȱ’–™ŽŽȱŠȱ™Ž›ŒŽ™³¨˜ȱŒ•Š›ŠȱŠȱ•’—‘ŠȱŽŸ˜•ž’ŸŠȱŠȱꐞ›ŠȄȱǻǯȱ˜Ž›ȱ
de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 93).
781
Ao contrário de certa crítica à utilização da expressão, que, sem favor, faz parte do mal cuja
cura pretende ser: ao denunciar a ideologia das construções tradicionais, ingressa numa crítica
ideológica de sinal invertido.
782
Sempre vai ser possível insistir que, mesmo fazendo as ressalvas, o uso da expressão continuará
dando azo a um não sei o quê de autoritarismo. Alguns trechos de Luis Manuel Fonseca Pires
caminham nesse sentido, verbis: “[...] Não basta dizer que o Estado contemporâneo encontra-se
sob um arquétipo democrático e juridicamente axiológico de bens caros à sociedade [...], pois
™Ž›œ’œŽȱŠȱ’—Ěž¹—Œ’Šǰȱ’Š—ŽȱŽȱŒŠœ˜œȱŽȱ’ÇŒ’•ȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱŽȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ’›Ž’˜ǰȱŽȱž–ȱŠŠŸ’œ–˜ȱšžŽȱ
externa a origem e o evolver arbitrário deste instituto. [...] fatos históricos aliados ao antigo instituto
“poder de polícia”, os quais sugestionam, equivocadamente, a interpretação do direito — normalmen-
te, em prejuízo do administrado porque dissonante da ordem jurídica estabelecida na Carta
Magna”. Se for esse o caso — coisa que não acreditamos —, será a primeira vez que o elemento
histórico da interpretação, que, entre nós, possui reduzida importância, vai prevalecer contra
as advertências uníssonas da doutrina. E não se trata do uso do elemento histórico: tratar-se-ia
de completo mau uso Ž•Žǯȱ1ȱž–Šȱ˜›³Šȱ’—·’Šȱ™Š›ŠȱŠ•˜ȱšžŽȱœŽȱŽę—ŽȱŒ˜–˜ȱŠȱȃ’—Ěž¹—Œ’ŠȱŽȱ
um atavismo”. Mas, para sermos honestos, o autor, em outro momento, traz o que considera
Ž¡Ž–™•˜œȱŠȱŠ•ȱ’—Ěž¹—Œ’ŠDZȱǻ’Ǽȱ˜œȱŠ›’˜œȱ˜ž›’—¤›’˜œȱŽȱ™›ŽŒŽŽ—Žœȱ“ž’Œ’Š’œȱšžŽȱŽ—Ž—Ž–ȱšžŽȱ
a autoexecutoriedade é ínsita à função da administração ordenadora; (ii) a ênfase no exercício
Šȱ˜›³ŠȱÇœ’ŒŠȱŠ˜ȱœŽȱŒ’›Œž—œŒ›ŽŸŽ›ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠDzȱǻ’’’ǼȱŠȱ™›Ž˜Œž™Š³¨˜ȱŽ¡ŒŽœœ’ŸŠȱ
com a coação, o que conduz “a uma maior legitimidade do uso da força pública na interpretação
e aplicação do direito”; (iv) a confusão entre o instituto do poder de polícia e a ideia de sanção
administrativa; (v) o não desenvolvimento, ao menos com a magnitude que deveria ter, do estu-
do sobre os limites do poder de polícia, já que o pressuposto é a ação coativa da Administração
Pública. Continuamos discordando. Ponto por ponto: (i) não há relação biunívoca entre defesa
de uma interpretação restritiva da autoexecutoriedade e defesa da superação da ideia de poder
de polícia, o que seria o caso se houvesse relação entre os conceitos. Odete Medauar e José dos
Santos Carvalho Filho defendem a interpretação restritiva da executoriedade — aliás, tal posição

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
313

adote “Administração Ordenadora” por “poder de polícia”, ou qualquer


˜ž›Šȱ™›˜™˜œŠǰȱŸŠ’ȬœŽȱ™›ŽŒ’œŠ›ȱ–˜’ęŒŠ›ȱž–ŠȱŠ–ŠȱŽȱŽ¡˜œȱ•ŽŠ’œǰȱŒ˜—-
teúdos ensinados em sala, indexadores de pesquisa de jurisprudência em
tribunais etc. E isso para quê? Para que algum administrador não se sinta
no Estado de Polícia do século XVIII? Para se exorcizar o risco de eventual
abuso de poder que, de qualquer jeito, já seria detectado?
Quanto à difusão da polícia por todas as outras atividades da
Administração Pública, tornando o termo indistinto, a verdade é que não
‘˜žŸŽȱ —ŽŠ³¨˜ȱ Šȱ —˜³¨˜ǰȱ œŽ—¨˜ȱ –˜’ęŒŠ³¨˜ȱ Žȱ Ž¡™Š—œ¨˜ȱ Žȱ Œ˜—Žø˜ǯȱ
Continua existindo uma atividade de limitação ou condicionamento do
exercício de direitos, assim como o reconhece o próprio Gordillo.783 De
mais a mais, se o poder estatal é uno, coisa de que ninguém duvida, fala-se
em “poder de polícia” apenas como simples agregação de atividades com
™Ž›ę•ȱ ‘˜–˜¹—Ž˜ǰȱ ȃ˜ȱ šžŽȱ ŠŒ’•’Šȱ œžŠȱ Œ˜—œ’Ž›Š³¨˜ǰȱ Žœž˜ȱ Žȱ ›Žž•Š³¨˜ȱ
normativa adequada”.784 Em muitos casos, pode até ser difícil separar
a atividade de polícia da de prestação de serviços públicos (mais a esse
respeito adiante), mas isso só demonstra que as atividades do Estado
são multifacetadas e que não admitem inteira tradução em conceitos lin-
guísticos ou em categorias doutrinárias formais. Assim, por exemplo, o
oferecimento público de serviço de interesse coletivo pela via da delegação
contratual pode envolver a imposição de restrições a direitos, e contar

é majoritária —, e, ao mesmo tempo, defendem a validade do conceito tradicional de polícia.


Diogo de Figueiredo Moreira Neto, que, nas últimas edições de seu manual, vem defendendo a
superação da ideia de polícia, sustenta a interpretação ampla de executoriedade (executoriedade
como regra, e não apenas nos casos previstos em lei ou em situações de urgência). (ii) Obras mais
›ŽŒŽ—Žœȱ—¨˜ȱ›Š£Ž–ȱŠ•ȱ¹—ŠœŽȱ—˜ȱŠœ™ŽŒ˜ȱŠȱ˜›³ŠȱÇœ’ŒŠȱŒ˜–˜ȱꗊ•’ŠŽȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šǯȱ˜ȱ
Œ˜—›¤›’˜ǰȱœ¨˜ȱŒŠžŽ•˜œŠœȱŠ˜ȱŠę›–Š›ȱšžŽȱœŽȱ›ŠŠȱŽȱž–Šȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽǰȱ–Šœȱ—¨˜ȱŠȱŽœœ¹—Œ’Šȱ˜ȱ
instituto. (iii) Também não há mais preocupação excessiva com a coação: na apresentação mais
atual do instituto, a ênfase é nas potencialidades de compatibilização de direitos e no controle ao
exercício da função administrativa de polícia. Na obra de Raquel Urbano, por exemplo, são gas-
tas duas páginas na questão conceitual, e pelo menos cinco no tratamento dos limites à polícia.
Detalhe: a autora é das que defendem a denominação tradicional. (iv) Não se confunde poder de
polícia com sanção. O tratamento doutrinário contemporâneo é claro quanto à distinção entre o
poder de polícia — competência ou poder administrativo — e a sanção de polícia, fase do “ciclo
de polícia”. Registre-se que, inclusive, a referência a um ciclo de polícia é cada vez mais comum
em livros e manuais, seja dos que defendem a polícia, seja dos que pretendem superá-la, o que
œàȱ’—Œ›Ž–Ž—ŠȱŠȱ’Ž›Ž—Œ’Š³¨˜ǯȱǻŸǼȱ˜›ȱę–ǰȱ—¨˜ȱœŽȱŸ¹ǰȱŽȱ–˜˜ȱŠ•ž–ǰȱŽœŽ—Ÿ˜•Ÿ’–Ž—˜ȱ˜ž›’-
nário ou jurisprudencial subótimo do tema dos limites ao poder de polícia. Ao contrário: para o
assunto, esse é o grande tema, seja com qual denominação for. Em suma: para nós, a questão da
troca da denominação é, no fundo, uma simples questão de estilo, que se pretende mais impor-
tante do que de fato é. Para as citações da nota, v. PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à
propriedade, p. 16 (primeiro trecho), p. 153-155 (segundo momento).
783
Basta reler parte do trecho citado em nota de rodapé anterior, aqui repetido para maior cla-
reza: “[...] A coação estatal atual ou virtual aplicada por algum de seus órgãos sobre os par-
ticulares para a consecução de determinados objetivos de bem comum ou de ordem pública
segue sendo uma realidade no mundo jurídico [...]” (GORDILLO. Tratado de derecho adminis-
trativo, t. II, p. V, 13, 14).
784
MEDAUAR. Poder de polícia. Revista de Direito Administrativo, p. 94.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
314 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

com certos benefícios, prometidos pelo Poder Público ao particular que


resolver executá-los. Estamos tratando de serviço público, do exercício de
polícia administrativa ou de ato de fomento público? E, se não for possível
a caracterização precisa da operação dentro de uma dessas categorias, isso
será motivo para rejeitá-las in totum? Respondemos: não, não será. Formular
ž–ŠȱŒŠŽ˜›’Šȱ˜ž›’—¤›’Šȱ·ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŽȱœ’–™•’ęŒŠ³¨˜ȱ™Š›ŠȱŠȱŒ˜–™›ŽŽ—œ¨˜Dzȱ
é a transcrição de uma realidade necessariamente multiforme com base
em elementos da linguagem que jamais captarão sua essência inteira. A
doutrina nunca vai capturar inteiramente a realidade, e, se ela for julgada
com base nisso, estará sempre aquém das expectativas. O que se lhe pode
exigir é a proposta de categorias compreensíveis e realistas, coisa que,
em nossa opinião, a fórmula-tipo do “poder de polícia” continua sendo:
uma noção de séculos que sobreviveu (e ousamos dizer que sobreviverá)
a tantos quantos julgam superá-la.
Ou seja: a noção de “poder de polícia” ultrapassa as críticas.785 Se
se buscar meios de torná-la aberta aos controles democráticos da teoria

785
É curiosa a opinião de Farlei Martins e Alexandra Campos, para quem a tese de Gordillo
não é aceita, na doutrina e na jurisprudência brasileira, ou por “receio de alguns autores em
empreender uma análise crítica da noção jurídica”, ou porque o termo “poder de polícia”
consta da Constituição e das leis. Não acreditamos nisso. Em primeiro lugar, não há motivos
para se temer qualquer análise crítica. Se assim fosse, não se estaria questionando a ideia de
supremacia do interesse público, muitíssimo mais fundacional do que a de poder de polícia.
Além disso, em certas circunstâncias, é até mais difícil defender um conceito tradicional do
que aderir a posição que, com ou sem razão, coloca-se como inovadora. Se alguém tivesse
de temer algo, seria quem defende o “ultrapassado” poder de polícia, e não os que o atacam.
Em terceiro lugar, e objetivamente, o tema é tratado pela doutrina brasileira, ainda que não
necessariamente fazendo-se referência à posição de Agustín Gordillo (o que não é grave, já
šžŽȱŠȱ’Ž’ŠȱŽȱœž™Ž›Š³¨˜ȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŽ–ȱœžŠȱ˜—Žȱ˜›’’—Š•ȱ—Šȱ•Ž–Š—‘ŠǰȱŽȱ›ŽĚŽ¡˜œȱ
na Itália e na Espanha). Numa rememoração rápida, tratam do assunto, entre outros, muitos
dos quais até citados por Farlei e Alexandra, os seguintes autores: Odete Medauar (rejeita a
posição), Celso Antônio Bandeira de Mello (concorda com Gordillo), José dos Santos Carvalho
Filho (rejeita o abandono da noção), Lúcia Valle (concorda e até mudou o título do capítulo
sobre poder de polícia em seu manual), Raquel Urbano de Carvalho (menciona a posição, mas
a rejeita), Carlos Ari Sundfeld (aceita, ainda que em seus termos), Luis Manuel Fonseca Pires
(concorda e baseou um livro na concordância), Alexandre Santos de Aragão (menciona). É
’—Œ˜››Ž˜ȱŠę›–Š›ȱšžŽȱȃŠȱž—Š—’–’ŠŽȱŠȱ˜ž›’—Šȱ‹›Šœ’•Ž’›Šȱ’œ™Ž—œŠȱšžŠ•šžŽ›ȱŽœ˜›³˜ȱ–Ž˜˜-
lógico de superação da noção”. O que é verdadeiro é que a doutrina brasileira, em sua maioria,
rejeita a tese da superação, cada autor com seus argumentos. O esforço metodológico existe;
o que não há é, em muitos casos, a concordância em relação à tese de Gordillo. Além disso, é
importante não supervalorizar a referência constitucional e legal a poder de polícia, já que o
que não faltam são posicionamentos doutrinários que interpretam referências legislativas de
modo “superador do texto legal”. Ou seja: a doutrina brasileira está ciente do debate e, em boa
parte, rejeita a ideia de superação da noção. É injusto chamá-la de medrosa ou de literalista.
Quanto à jurisprudência, vale o mesmo: se a tese não “pegou” na doutrina — pelo menos
com a força com que se esperava —, provavelmente também não vai ser incorporada tão
intensamente pelos tribunais (CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de
Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA. Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homena-
gem a Agustín Gordillo, p. 176-177).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
315

moderna, seu passado, por pior que seja, será purgado.786 Seu risco virtual
é compensado por sua utilidade atual.
Dito isso, já podemos avançar o assunto. Da conceituação, saber
o que a polícia é, passamos agora às distinções apontadas pela doutrina:
’Ž—’ęŒŠ›ȱ˜ȱšžŽȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱnão é.

2.2.2 Distinções com outras funções administrativas: o que o


poder de polícia não é
A primeira distinção é imediata. Embora ambas sejam exercício de
função administrativa, polícia administrativa não é polícia judiciária. Os crité-
rios de distinção variam entre os autores, e alguns doutrinadores criticam a
utilidade distintiva dos elementos de diferenciação apontados por outros,
mas, de modo geral, a lista apresentada é a seguinte.
Em primeiro lugar, a polícia administrativa se exaure em si mesma:
previne o ilícito administrativo, consente no exercício da atividade privada,
꜌Š•’£ŠȱŽǰȱœŽȱ˜›ȱ˜ȱŒŠœ˜ǰȱ›Ž™›’–Žȱ˜ȱŠ˜ȱŠ—ħž›Ç’Œ˜ǰȱ–ŠœȱœžŠȱŠžŠ³¨˜ȱ—¨˜ȱ
escapa à instância administrativa. Não extrapola até o Judiciário. Já a polí-
cia judiciária, ao contrário, prepara o exercício da jurisdição penal. Não
se esgota em si mesma, mas pode redundar na atuação de outro poder.
Outra diferença, clássica, embora cada dia com menos força: a polícia
administrativa é essencialmente preventiva,787 ao passo que a judiciária é
›Ž™›Žœœ’ŸŠǰȱŠžŠȱšžŠ—˜ȱ˜ȱ’•ÇŒ’˜ȱ“¤ȱœŽȱ™Ž›™Žž˜žȱ‹žœŒŠ—˜ȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱœžŠœȱ
circunstâncias e seu autor. Dissemos que o critério perde força porque,
cada vez mais, os órgãos responsáveis pela polícia judiciária — a Polícia
Civil e a Polícia Federal — atuam preventivamente.788 Também a polícia

786
Nesse sentido, Cosculluela Montaner e Mariano Benítez: “Não se vê a vantagem que possa
ter denominar polícia como poder de ordenação e controle, uma vez que a polícia em um
Estado constitucional e democrático perdeu sua força expansiva, como título habilitante autô-
nomo, e conecta-se totalmente à defesa do status libertatis que o mesmo consagra” (BENÍTEZ;
MONTANER. Derecho público económico, p. 212).
787
“E cá estamos em pleno domínio da polícia administrativa. Num domínio onde as duas ideias
predominantes são a prevenção e o perigo. Evitar que os perigos se convertam em danos —
eis o campo onde se desenvolve o modo de agir administrativamente que se chama Polícia”
(CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 268).
788
Talvez seja o caso de se abandonar o critério. É o que faz René Chapus, que diz que elas podem
ter caráter tanto preventivo quanto repressivo, e que isso é ponto de identidade entre as duas polí-
cias. Ou seja, justamente o contrário do que diz a maioria da doutrina brasileira (para quem
’œœ˜ȱ·ȱŒ›’·›’˜ȱŽȱ’œ’—³¨˜ǼǯȱŽ’ŠȬœŽȱ˜ȱ›ŽŒ‘˜DZȱȃ—ę–ǰȱŠ—˜ȱž–ŠȱšžŠ—˜ȱ˜ž›Šȱ™˜•ÇŒ’Šȱ™˜Ž–ȱ
assumir tanto um caráter preventivo quanto repressivo. Sem dúvida, a polícia administrativa
tende a prevenir os problemas de ordem pública. Mas [...] ela também pode ser suscitada
™Š›Šȱ™â›ȱę–ȱŠȱ™›˜‹•Ž–ŠœDZȱŠ˜ȱ’œ™Ž›œŠ›ȱž–Šȱ–Š—’ŽœŠ³¨˜ǰȱŠ˜ȱŠ£Ž›ȱŽœŠ™Š›ŽŒŽ›ȱž–Šȱœ’žŠ³¨˜ȱ
perigosa ou insalubre ou ao suprimir uma causa de problema à tranquilidade pública. Sem
dúvida, também, a polícia judiciária é geralmente repressiva. Ela costuma ser posta em ação
depois do golpe, em consequência da ocorrência efetiva de certos fatos. Mas, como se verá, ela

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
316 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

administrativa, em muitos casos, atua reprimindo ilícitos administrativos,


quando sua prevenção é falha ou a recalcitrância é muita.
Outro critério: enquanto a polícia judiciária atua tendo em vista
ŠȱŸŽ›’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱ’—›Š³äŽœȱ™Ž—Š’œȱŽŽ›–’—ŠŠœǰȱŠȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱ
previne e reprime ilícitos administrativos.
˜›ȱę–ǰȱ˜ȱø•’–˜ȱŒ›’·›’˜ȱ’œ’—’Ÿ˜DZȱŽ—šžŠ—˜ȱŠȱ™˜•ÇŒ’Šȱ“ž’Œ’¤›’ŠȱŽ–ȱ
seu exercício concentrado em poucos órgãos, basicamente a Polícia Civil e a
Polícia Federal, a polícia administrativa é exercida por um sem-número de
órgãos e de entidades administrativas: autarquias de trânsito, secretarias
de ordem pública, fundações de meio ambiente, agências reguladoras etc.
É claro que dizer que a polícia administrativa não é polícia judiciária
não quer dizer que as atribuições sejam incompatíveis, ou que uma não
possa redundar na outra ou se conjugar na prática:789 uma ação de orde-
nação do trânsito, atividade típica de polícia administrativa, pode detectar
um veículo furtado, cuja apreensão pode vir a servir a uma atuação da
polícia judiciária (desvendar e reprimir um crime).
Segunda distinção: polícia administrativa não se confunde com corpo-
ração policial-militar. Muito embora a polícia administrativa da segurança
pública seja exercida pela Polícia Militar — e a Constituição é expressa
—ŠȱŠę›–Š³¨˜790 —, polícia administrativa é mais do que isso.791 A frase é
anedótica, mas verdadeira: poder de polícia não é poder da Polícia.
Terceira distinção: poder de polícia não é prestação de serviço público.
Ou é? Vejamos o que diz René Chapus: “Exercer a polícia administrativa é
assegurar um serviço público: aquele de manutenção da ordem pública”.792
É claro que, dentro dessa acepção amplíssima, que associa serviço público
a atividade estatal prestada em regime de Direito Público,793 a imposição

também pode ser exercida para prevenir uma ocorrência” (CHAPUS. Droit administratif géné-
ral, t. I, p. 736-737). Na doutrina brasileira, crítico desse critério, v. FURTADO. Curso de direito
administrativo, p. 660.
789
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 466.
790
Art. 114, §5º: “Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública;
Š˜œȱŒ˜›™˜œȱŽȱ‹˜–‹Ž’›˜œȱ–’•’Š›ŽœǰȱŠ•·–ȱŠœȱŠ›’‹ž’³äŽœȱŽę—’ŠœȱŽ–ȱ•Ž’ǰȱ’—Œž–‹ŽȱŠȱŽ¡ŽŒž³¨˜ȱ
de atividades de defesa civil”.
791
Apesar disso, há livros cuja promessa do título não se cumpre em seu interior. Por exemplo,
o livro “Constituição e poder de polícia” é inteiramente devotado a uma análise crítica da
política de segurança pública do Estado do Rio de Janeiro nos anos oitenta. Ora, seria melhor
outro título (PINHEIRO. Constituição e poder de polícia). Há outros que cumprem o prometido:
A polícia no Estado de direito, do Professor português António Francisco de Sousa, trata tanto
do poder de polícia quanto dos aspectos mais tipicamente associados à corporação policial
propriamente dita (uso de arma de fogo, interrogatório policial etc.). A respeito do poder de
™˜•ÇŒ’Šȱ˜ȱ™˜•’Œ’Š•ȱ–’•’Š›ǰȱŸŽ›ǰȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ–Ž—Žǰȱ•Ž¡Š—›Žȱ
Ž—›’šžŽœȱŠȱ˜œŠȱǻOs limites do
poder de polícia do policial militar). Ainda, Cláudio Pereira de Souza Neto (A segurança pública
na Constituição Federal de 1988: conceituação constitucionalmente adequada, competências
federativas e órgãos de execução das políticas. Revista de Direito do Estado, p. 19-73).
792
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 700.
793
ARAGÃO. Direito dos serviços públicos, p. 144 et seq.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
317

de limites também o será. Só que não é nesse sentido que serviço público
está na Constituição, no mínimo porque seria indistinguível de poder de
polícia, e, desse modo, a distinção feita no art. 145, II, da Constituição (entre
“poder de polícia” e “serviços públicos”), não faria sentido.
A diferenciação doutrinária clássica, então, diz o seguinte: serviços
públicos possuem caráter positivo, enquanto o poder de polícia tem caráter
negativo. O caráter positivo derivaria do fato de que o serviço público é o
oferecimento de uma utilidade ou de uma comodidade aos usuários; ele
“dá” alguma coisa. Já dizer que a polícia administrativa possui conteúdo
—ŽŠ’Ÿ˜ȱœ’—’ęŒŠȱžŠœȱŒ˜’œŠœDZȱ˜žȱ’£Ž›ȱšžŽȱŽ•ŠȱŠžŠȱ›Žœ›’—’—˜ȱ˜žȱ•’–’-
tando o exercício de direitos (ela “retira” algo, em sentido aproximado),794
ou dizer que ela impõe deveres de não fazer ou de tolerar. No segundo
œŽ—’˜ǰȱŠȱŠę›–Š³¨˜ȱ·ȱ’—Œ˜–™•ŽŠǰȱ“¤ȱšžŽȱŽ¡’œŽ–ǰȱŽȱœ¨˜ȱ›ŽšžŽ—Žœǰȱ’–™˜œ’-
ções de fazer dentro do contexto do exercício de poder de polícia,795 embora
também isso possa ser polemizado pela doutrina.796 Só que a complicação
não é exatamente essa.
Na prática, muitas vezes acontece uma integração material das ativi-
dades de polícia e de prestação de serviços públicos, na medida em que as
estruturas estatais de polícia também costumam prestar serviços públicos.
O inverso também é verdade: na prestação de serviços públicos pode haver
a adoção de medidas de polícia. A explicação para isso ou decorre da

794
“Mas repare-se no contraste que formam: os serviços de utilidade pública actuam fazendo
prestações šžŽȱ‹Ž—ŽęŒ’Š–ȱ˜œȱ’—’ŸÇž˜œǰȱ–Ž•‘˜›Š—˜ȱŠȱšžŠ•’ŠŽȱŽȱŸ’ŠDzȱŽ—šžŠ—˜ȱŠȱ™˜•ÇŒ’Šȱ
é um sistema de restrições que limita a liberdade individual” (CAETANO. Princípios fundamen-
tais do direito administrativo, p. 267, grifos no original).
795
Assim, Eliezer Pereira Martins: “Caracterizar o poder de polícia, portanto, como positivo ou nega-
tivo depende apenas do ângulo através do qual se encara a questão. De um lado, o poder de
polícia tem, na quase totalidade dos casos, um sentido negativo, porém sentido de abstenção
(non facere). [...] De outro lado, no condicionamento do uso da propriedade imobiliária nos
termos do art. 5º, XXIII, c/c art. 182, §4º, da CF, temos exemplo típico de atuação de polícia
administrativa consistente num facere” (Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, v. 2, p. 349). No mesmo sentido,
citando, como exemplo de imposição de deveres de fazer dentro do poder de polícia a cons-
trução de saídas de emergência (na polícia das construções) e a adoção de providências que
impeçam a deterioração de alimentos perecíveis (na polícia sanitária) (JUSTEN FILHO. Curso
de direito administrativo, p. 464).
796
“Os exemplos apresentados pelo Professor Justen Filho devem ser entendidos como condições
ao exercício de atividades ou de direitos, e não como a imposição de obrigação de fazer, pura
e simplesmente. Se alguém decide construir prédio, somente poderá fazê-lo se forem observa-
das as normas técnicas de segurança. Se alguém decide comercializar alimentos, deve obser-
var as normas sanitárias relativas à conservação e à higiene dos produtos” (FURTADO. Curso
de direito administrativo, p. 669. Na verdade, Lucas Rocha até defende a possibilidade de que o
exercício do poder de polícia implique a imposição de obrigações de fazer, mas apenas quando
se utilize de técnicas de informação, sendo o administrado obrigado a prestar informações
sobre si ou sobre sua atividade para a Administração Pública; aqui Lucas Rocha Furtado está
se utilizando da tripartição das técnicas de polícia administrativa, proposta por Santamaría
Pastor, que fala em técnicas de condicionamento, técnicas ablatórias e técnicas de informação
(SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
318 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

’—œžęŒ’¹—Œ’ŠȱŠȱœ’–™•Žœȱ’–™˜œ’³¨˜ȱŽȱ›Žœ›’³äŽœȱ¥ȱŠžŠ³¨˜ȱ™›’ŸŠŠȱ™Š›ŠȱŠȱ
produção de condutas constitucionalmente desejáveis — não basta impor
a polícia de trânsito, é necessário investir em campanhas educativas, que
é atividade de serviço público797 —, de uma maior aproximação entre as
esferas pública e privada,798 ou, no caso da prestação de serviços públicos
em que se incrustam medidas de polícia, da própria complexidade das
necessidades a serem atendidas pela prestação desses serviços: ao forne-
ŒŽ›ȱ¤žŠȱ™˜¤ŸŽ•ǰȱ·ȱ’–™Ž›Š’Ÿ˜ȱ˜ȱ›ŽŒž›œ˜ȱ¥ȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱŠȱę–ȱŽȱ
prevenir e reprimir o desperdício.799 800
Ainda na tônica da diferenciação da polícia em relação a outras
atividades estatais: ela não se confunde com a regulação jurídica da economia.
Há, aqui, várias teorias.
Num ponto todos concordam: o poder de polícia seria o ancestral
da regulação.801 Só que a regulação pública seria mais abrangente do que
o poder de polícia — estamos falando, é claro, da polícia incidente sobre
atividades econômicas, já que ninguém nunca confundiu licença de obra
com ato de regulação econômica.
Seria mais abrangente por dois motivos: em primeiro lugar porque
o poder de polícia não incidiria sobre os serviços públicos, delegados ou
não, cuja titularidade é sempre pública (como se sabe, apenas seu exercício
·ȱ˜‹“Ž˜ȱŽȱŽ•ŽŠ³¨˜ȱŒ˜—›ŠžŠ•Ǽǯȱ›ŠǰȱŠȱ˜ž›’—ŠȱœŽ–™›ŽȱŠę›–˜žȱšžŽȱ˜ȱ
poder de polícia incide, apenas, sobre atividades privadas, ainda que tais
atividades possam ser desenvolvidas por estatais. Já a regulação pública não
teria tal restrição: incidiria, também, sobre os serviços públicos delegados.802
Segundo motivo: o poder de polícia acabaria se resumindo a técnicas
de informação, de condicionamento do exercício de direitos (autorização,

797
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 467-468.
798
FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 646.
799
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 468.
800
Há uma quarta razão pela qual as atividades podem se misturar: são as hipóteses, comuns, nas
quais a prestação de um serviço público é, por assim dizer, o exaurimento do exercício da ativi-
dade de polícia. Isso ocorre quando o consentimento público se materializa na emissão de um
documento. Por exemplo: a atividade de polícia que é o consentimento quanto à prática da direção
veicular por uma pessoa — a licença para dirigir, espécie de ato vinculado de polícia — exaure-se
numa prestação de serviço público, que é o ato da expedição da carteira de habilitação. Seja como
˜›ǰȱŠȱ‘’™àŽœŽȱ—¨˜ȱ·ȱŠœȱ–Š’œȱŽœŠęŠ˜›Šœǰȱ™˜›šžŽȱ‘¤ǰȱŒ•Š›Š–Ž—Žǰȱž–ŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱǻ™˜•ÇŒ’ŠǼȱšžŽȱ
predomina sobre outra (serviço público).
801
VENANCIO FILHO. A intervenção do Estado no domínio econômico: o Direito Público Econômico
no Brasil, p. 83.
802
“‘Regulação’, por sua vez, parece que assume sentido mais amplo do que se deu à administração
ordenadora e ao poder de polícia. A doutrina de Direito Econômico faz uso desse termo para
tratar da mecânica estatal de ordenação das atividades econômicas em geral, incluindo, por-
tanto, os serviços públicos e as atividades econômicas em sentido estrito” (MENDES. Reforma
do Estado e agências reguladoras: estabelecendo os parâmetros de discussão. In: SUNDFELD
(Coord.). Direito administrativo econômico, p. 116).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
319

licença) e de ablação (restrição, total ou parcial, de direitos).803 A regulação


incluiria as técnicas de polícia, mas também outras, como técnicas de com-
™˜œ’³¨˜ȱŽȱŒ˜—Ě’˜œǯȱ•·–ȱ’œœ˜ǰȱŽ—›˜ȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽȱ›Žž•Š³¨˜ȱŽœŠ›’Š–ȱ
abrangidas capacidades normativas e capacidades quase judicantes. A po-
•ÇŒ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱœ’—’ęŒŠ›’Šȱ‹Ž–ȱ–Ž—˜œDZȱ—˜ȱœŽ—’˜ȱŽœ›’˜ǰȱœ’—’ęŒŠ›’Šǰȱ
apenas e tão somente, limitar direitos privados.804 805
Em nossa opinião, parece que, também aqui, o subtexto disso é
uma rejeição ao poder de polícia por seus vícios de origem e de idade.
˜ȱŽ—Š—˜ǰȱ™˜žŒŠœȱŒ˜’œŠœȱŽœ¨˜ȱŽę—’’ŸŠ–Ž—Žȱ™Ž›’Šœȱ—ŠȱŸ’ŠǰȱŽȱ’œœ˜ȱ
também vale para a vida do Direito; é possível superar vícios de nascença
e remoçar conceitos.
Basta dizer: entenda-se por polícia administrativa uma função pú-
blica também incidente sobre serviços públicos delegados e cujo exercício
prático tambémȱ’—Œ˜›™˜›Žȱ·Œ—’ŒŠœȱŒ˜—œŽ—œžŠ’œȱŽȱŒ˜–™˜œ’³¨˜ȱŽȱŒ˜—Ě’˜œǯȱ

803
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 253-281.
804
A discussão adquiriu relevância quando se tratou de saber qual era a natureza jurídica das
“taxas regulatórias”, instituídas pelas leis criadoras das agências reguladoras. Se a atividade
das agências fosse exercício de poder de polícia, as taxas seriam taxas de polícia, e, portanto,
espécie tributária, submetidas a todo o estrito regime constitucional e principiológico aplicável
aos tributos. Se a atividade das agências reguladoras fosse outra coisa que não poder de polícia,
as ditas taxas seriam enquadradas noutra categoria conceitual, de índole não tributária: seriam
preços públicos, ou seja, retribuições contratuais, devidas em razão do exercício de dever de
꜌Š•’£Š³¨˜ȱǻšžŽȱ—¨˜ȱœŽ›’ŠȱȃŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȄǼǯȱ1ȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ—’œœ˜ȱšžŽȱ˜ȱ›˜Žœœ˜›ȱ•Ž¡Š—›Žȱ›Š¨˜ȱ
entende que a natureza das “taxas regulatórias” poderia ser ou de taxa propriamente dita, ou
de uma retribuição contratual, ou, ainda, de uma contribuição de intervenção no domínio eco-
nômico (nesse caso, a natureza jurídica só valeria para as agências federais, porque só a União
pode instituir CIDE). As retribuições contratuais seriam os valores cobrados por agências regu-
ladoras cuja atividade incidisse sobre serviços públicos delegados (já que o poder de polícia
não poderia incidir sobre atividades privadas). As taxas propriamente ditas seriam aquelas
cobradas por agências reguladoras cuja atividade incidisse na atividade privada em sentido
estrito (por exemplo, a taxa da ANVISA). Finalmente, as CIDES seriam as “taxas regulatórias”
que, cobradas sobre a regulação de atividades privadas, revertessem para o fomento e a pro-
moção do setor regulado (ARAGÃO. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico, p. 332-333). Ainda, SOUTO. Desestatização: privatização, concessões, terceirizações e
regulação, p. 461. Por outro lado, há autores que defendem a natureza tributária para todas as
“taxas regulatórias”, porque as agências reguladoras seriam autarquias, entes de direito público,
e, assim, jamais poderiam cobrar preços públicos pelo exercício de suas atribuições legais.
Com tal posicionamento, Marçal Justen Filho (O direito das agências reguladoras independentes,
p. 478). Ainda, CAL. As agências reguladoras no direito brasileiro, p. 128. A jurisprudência, de
modo geral, vem entendendo que as “taxas regulatórias” são tributos, e não preços.
805
Marcos Juruena relaciona os institutos da seguinte forma: a regulação atuaria dentro da polícia
administrativa, e não o contrário, como sustenta a maioria da doutrina. A “regulação de polí-
cia” — o termo é do autor — teria como propósito assegurar que “bens e serviços de interesse
geral” oferecessem duas coisas: “segurança” e “preços não abusivos”. Para fazer isso, o agente
regulador colaboraria na formulação da política setorial, e controlaria produto, fornecedor,
bens de produção e preços. Exemplo típico de regulação de polícia: a atividade da ANVISA
junto aos medicamentos. Não concordamos com tal opinião. Ou as atividades mencionadas
por Marcos Juruena se enquadram perfeitamente na noção de polícia (por exemplo, sanitária),
ou fazem parte dos deveres jurídicos gerais de defesa da concorrência (evitar preços abusivos),
ou escapam para a noção tradicional de regulação (auxiliar na formulação de políticas públi-
cas) (SOUTO. Direito administrativo regulatório, p. 76-77).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
320 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ꗊ•ǰȱ˜ŠœȱŽœœŠœȱŠę›–Š³äŽœȱœ¨˜ȱŒ˜—œ›ž³äŽœȱ˜ž›’—¤›’ŠœǯȱŽȱ—¨˜ȱœ¨˜ȱ
mais adaptativas, se incorporam “anomalias” e se exigem repostas ad hoc
para que continuem existindo, talvez seja hora de trocá-las.806
Desse modo, um novo entendimento do poder de polícia poderia
fazê-lo aplicável aos serviços públicos e aberto a técnicas mais consen-
suais (quanto a esse último ponto, já há até quem o admita desde agora).807

806
KHUN. ȱŽœ›žž›ŠȱŠœȱ›ŽŸ˜•ž³äŽœȱŒ’Ž—Çꌊœ.
807
A discussão sobre a admissibilidade de técnicas consensuais no exercício do poder de polí-
cia é ampla. Para alguns, haveria um dever constitucional da adoção de técnicas consensuais
— como se houvesse um “princípio da consensualidade” inscrito em nossa Constituição. A
maioria dos autores, no entanto, ao tratar da consensualidade, fazem-no ligando-a à propor-
cionalidade-necessidade, em especial quando da aplicação de sanções: o Estado teria dever de
optar por soluções menos gravosas ao particular, o que frequentemente recairia na obrigação
da adoção de soluções negociadas entre Poder Público e administrado. Já outros autores acre-
ditam que o exercício do poder de polícia é incompatível com acordos de vontade: a fonte
da imposição de obrigações deve ser, sempre, e de modo direto, a lei. Em nossa opinião, há
de se descartar, por absurda, a ideia de um “princípio constitucional da consensualidade”,
banalização tanto da noção de princípio constitucional quanto da de consensualidade. Além
disso, tal princípio seria inútil: ele seria, apenas, uma manifestação do dever de proporciona-
lidade. O ponto é, precisamente, a incidência do dever de proporcionalidade. E o problema
no argumento da grande maioria dos autores de Direito Econômico, no Brasil, é que ele, inte-
ressadamente, só analisa a situação à luz das “medidas menos gravosas ao particular”, mas se
esquece da segunda parte da formulação da “regra” da necessidade (ou subprincípio, ou pos-
tulado normativo aplicativo, ou máxima, ou seja lá como se queira chamá-lo): devem-se adotar
as medidas menos compressivas de direitos fundamentais do particular, na medida em que
garantam, com intensidade semelhante, a realização do objetivo. Não foram poucas as vezes em
que se vindicou a adoção de medida administrativa “menos restritiva a direito fundamental
˜ȱ’—’ŸÇž˜ȄȱœŽ–ȱšžŽȱœŽȱ•ŽŸŠœœŽȱŠȱœ·›’˜ȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠȱ˜‹Ž—³¨˜ȱ˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŠ˜ȱšžŠ•ȱŠšžŽ•Šȱ
–Ž’ŠȱœŽȱ™›˜™ž—‘Šǰȱ˜ȱšžŽȱ—¨˜ȱŽ’¡ŠȱŽȱœŽ›ȱŒž›’˜œ˜ǰȱ—˜ȱ–Ç—’–˜ȱ™˜›šžŽȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠ–’—’œ-
trativa também é princípio constitucional (art. 37, caput, CRFB/88). Não existe nada próximo a
um “dever constitucional genérico de suavidade no trato com o particular”. O dever de propor-
cionalidade-necessidade é uma exigência de minoração de efeitos lesivos diante de alternativas
que resultem em efeitos próximos. E, a par disso, muitas das propostas de “consensualização” e
Žȱȃ̎¡’‹’•’£Š³¨˜ȄȱŒŠŽ–ȱ™˜›ȱŽ››Šȱ™˜›šžŽǰȱ(i) ou não servirão para a obtenção de resultados
próximos às soluções de força, ou (ii) porque não há metodologia capaz de demonstrar que os
›Žœž•Š˜œȱ™›ŽŽ›’˜œȱ›ŽŠ•’£Š›¨˜ȱ˜ȱ˜‹“Ž’Ÿ˜ȱŽȱ–˜˜ȱ™Š›ŽŒ’˜ȱǻž˜ȱ˜ȱšžŽȱ‘¤ȱœ¨˜ȱŠę›–Š³äŽœȱ
šžŽȱŽ¡™›ŽœœŠ–ȱ–ž’ŠȱŒ˜—ꊗ³ŠǼǯȱ˜›ȱ˜ž›˜ȱ•Š˜ǰȱŽȱŒ˜–˜ȱŒ˜—›Š™˜—˜ȱŠȱ›Š—Žȱ™Š›Žȱ˜ȱšžŽȱœŽȱ
falou, em nossa opinião há, sim, espaço para a adoção de técnicas consensuais de polícia. Não
vemos nenhuma contradição entre tais técnicas e a polícia administrativa. E a explicação é sim-
ples: o exercício do poder de polícia, como qualquer ocasião de limitação de direitos, far-se-á
conforme à máxima da proporcionalidade, a qual inclui a ideia de necessidade, ideia que, por
sua vez, pode sugerir a adoção de soluções consensuais como meios menos lesivos dos direitos
fundamentais dos particulares afetados pela medida em consideração. Defendendo a ideia de
que há um princípio constitucional da consensualidade, v. PESSÔA. Os paradigmas jurídicos
e as relações entre política e direito. Revista de Direito Administrativo, p. 115-131. Sobre o tema
em geral, v. MOREIRA NETO. Novos institutos consensuais da ação administrativa. Revista
de Direito Administrativo, p. 129-156-132; ARAGÃO. A consensualidade no direito administra-
tivo: acordos regulatórios e contratos administrativos. Revista de Direito do Estado, p. 155-174;
  Dzȱ
 ǯȱȱŠ–’—’œ›Š³¨˜ȱŒ˜—œŽ—œžŠ•ȱŒ˜–˜ȱŠȱ—˜ŸŠȱŠŒŽȱŠȱ–’—’œ›Š³¨˜ȱ
Pública no séc. XXI: fundamentos dogmáticos, formas de expressão e instrumentos de ação.
In: ANAIS DO CONGRESSO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E ENSINO DE DIREITO
– CONPEDI. Para o uso do argumento da proporcionalidade no Direito Econômico, entre
tantos, v. ARAGÃO. O princípio da proporcionalidade no Direito Econômico. Revista de Direito

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
321

As características normativas tradicionalmente associadas à regulação,


e que, no início de sua introdução no Brasil, geraram debate sobre sua
•Ž’’–’ŠŽȱ Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•ǰȱ Š–‹·–ȱ ™˜Ž–ȱ œŽ›ȱ ’Ž—’ęŒŠŠœȱ Š˜ȱ ™˜Ž›ȱ
Žȱ™˜•ÇŒ’ŠȱȯȱŠę—Š•ǰȱœŽ–™›ŽȱœŽȱŠ•˜žȱŽȱž–ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŽ–ȱœŽ—’˜ȱ
amplo. Assim, caso se construa noção de poder de polícia capaz de incidir
sobre serviços públicos delegados, aberto a novas técnicas808 e includente
de funções normativas, é a regulação econômica quem acabará sendo absorvida
pelo poder de polícia, e não o contrário.809 Mas, claro, sempre vai restar o pre-
conceito. Ainda está para nascer quem recupere a dignidade da noção de
poder de polícia, defendendo-a não apenas de seus críticos, mas também,
e principalmente, dos prosélitos de conceitos que lhe sejam próximos.
·ȱšžŽȱŽœœŽȱ’ŠȱŒ‘ŽžŽǰȱꌊ›Ž–˜œȱ™›Žœ˜œȱŠ˜ȱŒ˜—‘ŽŒ’–Ž—˜ȱŒ˜—ŸŽ—Œ’˜—Š•DZȱ
polícia administrativa econômica não é regulação jurídica da economia.810
˜›ȱę–ǰȱpoder de polícia não é relação de sujeição geral. Aqui, falamos
da distinção entre sujeição geral e sujeição especial. A relação de sujei-
ção geral dos administrados em relação à Administração, cuja forma de

Administrativo, p. 199-230; MARQUES NETO. Limites à abrangência e à intensidade da regu-


lação estatal. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico – REDAE. Para o princípio
da proporcionalidade em geral, v. SILVA. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais,
p. 23-50. Contra a ideia de que se possa falar da consensualidade junto ao poder de polícia (“A
fonte que legitima a intervenção estatal na ordenação das atividades privadas, impondo limi-
tações administrativas, vedações, condicionamentos ou sanções etc., decorre sempre e neces-
sariamente de lei, e nunca de contrato ou de outro acordo de vontade”), v. FURTADO. Curso
de direito administrativo, p. 650.
808
Quando falamos em novas técnicas, não queremos nos referir, apenas, à adoção de critérios
–Š’œȱ Œ˜—œŽ—œžŠ’œȱ Žȱ ̎¡ÇŸŽ’œȱ —˜ȱ –˜–Ž—˜ȱ Šȱ Š™•’ŒŠ³¨˜ȱ Šœȱ œŠ—³äŽœȱ Žȱ ™˜•ÇŒ’Šǯȱ ·Œ—’ŒŠœȱ Žȱ
controle e de conformação dos setores econômicos incidentes sobre a entrada e a saída do
exercício da atividade ou sobre zonas de distribuição do mercado, eventuais limites de preço,
imposição de deveres de compartilhamento de infraestrutura etc., tudo aquilo que Gaspar
Ariño Ortiz chamou, para diferenciar da polícia administrativa (para ele, sinônimo de “regu-
lação externa”), de “regulação interna” poderia ser incluído nesse ampliado conceito de poder
de polícia. Regulações interna e externa virariam, então, uma única coisa: o novo poder de
polícia (ORTIZ. Principios de derecho público económico, p. 302-303).
809
“As agências reguladoras foram concebidas para o exercício precípuo do poder de polícia.
O condicionamento de liberdades e da propriedade ao interesse da coletividade está na raiz
Šȱ’Ž’ŠȱŽȱŠ¹—Œ’Šȱ›Žž•Š˜›ŠȄǯȱȃ¨˜ȱœŽ›’ŠȱŽœ™›˜™˜œ’ŠŠȱŠȱŠę›–Š³¨˜ȱŽȱšžŽȱž–ŠȱŠ¹—Œ’Šȱ
reguladora nada mais é que um plexo personalizado de poderes de polícia, organicamente
’—œ›ž–Ž—Š•’£Š˜ȱ™Š›Šȱž–ȱœŽ˜›ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŠœȱ•’‹Ž›ŠŽœȱ˜žȱ˜£˜ȱŠȱ™›˜™›’Ž-
dade” (MARTINS. Polícia administrativa econômica. In: CARDOZO, José Eduardo Martins;
QUEIROZ; SANTOS. Curso de direito administrativo econômico, p. 363, 364).
810
Mas, se for inevitável o abandono da denominação “poder de polícia”, nossa sugestão vai para
disciplina das atividades econômicas, em vez de “polícia” (por causa do suposto ar autoritário) ou
“limitação” (às vezes, a atividade administrativa não limita, no sentido técnico de “restrição”,
mas impõe um fazer ao administrado). Há, também, a vantagem de que a expressão “ativi-
dades econômicas” engloba as noções de serviços públicos e de atividade privada em sentido
estrito, tal como entende a maioria da doutrina de Direito Econômico (por exemplo, GRAU. A
Ordem Econômica na Constituição de 1988, passim). “Administração Ordenadora” é boa proposta,
mas foca no aspecto institucional — “Administração” — quando a ideia é entender para con-
trolar, e melhor executar, a atividade.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
322 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

incidência se dá pelo poder de polícia, é a possibilidade, a que todos os


administrados se sujeitam pelo fato de fazerem parte de uma comunidade
politicamente organizada, de terem o exercício de seus direitos restringido,
e, no limite, suprimido. A nomenclatura “relação de sujeição” é das poucas
que, até agora, sobreviveu relativamente incólume aos novos tempos do
Direito Administrativo, o que não deixa de ser curioso, porque não seria
muito difícil alguém sugerir que “sujeição” é palavra autoritária e pouco
adequada ao Estado Democrático de Direito.
Tirante a digressão, a sujeição geral é a razão pela qual a loja de
laticínios pode ser interditada ou a feira-livre precisa de autorização. A
sujeição geral está presente tanto nas atividades privadas comuns quanto
nas que se convencionou chamar de atividades privadas autorizadas ou
regulamentadas (ou, de modo impróprio, “serviço público virtual”): ati-
vidades privadas, exercidas pelo particular por direito próprio e em seu
nome, terreno da iniciativa privada, mas cujo exercício depende, excepcio-
nalmente, de prévia autorização pública, nos termos do art. 170, parágrafo
único, da Constituição da República.811 A razão para a autorização é seu
objeto, tido como de interesse público: são os bancos, as seguradoras, as
empresas de capitalização, as lojas de armas ou de fogos, as farmácias etc.
Nos casos de atividade privada autorizada, espera-se que o particular tolere
uma maior interferência estatal no controle de sua atividade. Mas, tanto
na atividade privada comum como na autorizada, a razão da intervenção
do Estado é a sujeição geral, e seu modo, o poder de polícia.
Já a sujeição especial é a que decorre de um estado particularíssimo
do administrado, que o excepciona dos outros administrados e o liga de
modo individual à Administração Pública: em geral, um contrato adminis-
trativo ou um vínculo estatutário.812 É evidente que, também na sujeição
especial, o administrado deverá ter respeitados seus direitos fundamentais.
Assim como, na sujeição geral, o particular autorizado sofre a incidência
de um poder de polícia mais intenso, mas, ainda assim, respeitoso de
seus direitos, também na sujeição especial a Administração Pública, já
aqui não mais tecnicamente por força de um poder de polícia, mas por
™˜Ž›ŽœȱŽœ™ŽŒÇꌘœȱŠȱ›Ž•Š³¨˜ȱŒ˜—›ŠžŠ•ȱ˜žȱŽŒ˜››Ž—ŽœȱŠȱ•Ž’ȬŽœŠž˜ǰȱ
poderá submeter o administrado a um regime mais adstringente, ainda
que sempre respeitoso de direitos e liberdades.
Para resumir: a sujeição geral nasce com a circunstância fática de o in-
divíduo pertencer ou estar em determinado país, sua fonte é a Constituição

811
Art. 170, parágrafo único: “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade eco-
nômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”
(grifos nossos). As atividades privadas autorizadas são, precisamente, os “casos previstos em
lei” nos quais se exige a prévia autorização.
812
Mas também, por exemplo, o usuário de uma biblioteca pública ou um aluno de um colégio
™ø‹•’Œ˜ǰȱŠ–‹˜œȱœž“Ž’˜œȱ¥œȱ›Ž›ŠœȱŽœ™ŽŒÇꌊœȱŽȱž—Œ’˜—Š–Ž—˜ȱ˜œȱ•˜ŒŠ’œǰȱŽǰȱšžŽǰȱ–ž’ŠœȱŸŽ£Žœǰȱ
são verdadeiros mini-estatutos.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
323

e o conjunto de leis válidas e em vigor naquele Estado, e ela incidirá em


todas as atividades privadas ali exercidas, sejam autorizadas ou comuns,
ainda que em distintas intensidades. A forma pela qual a sujeição geral se
realiza é pela incidência do poder de polícia.
A sujeição especial, por sua vez, nasce a partir da circunstância fática
de o administrado estar vinculado à Administração por força de um con-
›Š˜ȱ˜žȱ™˜›ȱ˜œŽ—Š›ȱ—Šž›Ž£Šȱ˜Œž™ŠŒ’˜—Š•ȱŽœ™ŽŒÇꌊȱǻœŽ›Ÿ’˜›ȱ™ø‹•’Œ˜ǰȱ
aluno de colégio público etc.), e sua fonte é ou o contrato administrativo
ou a lei que rege a ocupação. A sujeição especial se realiza pela incidência
˜œȱŽŸŽ›ŽœȱŒ˜—›ŠžŠ’œȱ˜žȱ•ŽŠ’œȱŽœ™ŽŒÇꌘœǯ
Há muitas outras coisas que o poder de polícia “não é”. Ele não é,
por exemplo, poder disciplinar,813 tampouco nenhum dos outros “poderes
administrativos” aos quais a doutrina se refere. Mas é hora de se avançar
na apresentação do tema, rumo às suas principais características.

ŘǯŘǯřȱŠ›ŠŒŽ›Çœ’ŒŠœȱŽȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ
Diz-se que o poder de polícia é (i) discricionário, (ii) presumivelmente
válido e verdadeiro, (iii) eventualmente autoexecutório, (iv) exigível, (v) instru-
mental à realização dos direitos fundamentais, (vi) instrumental à realização da
democracia.
ȱ˜ž›’—Šȱ›Š’Œ’˜—Š•ȱŠę›–ŠȱšžŽȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱǻ’Ǽȱ“é, em prin-
cípio, discricionário”.814 Em sentido contrário, alguns autores passaram a
Šę›–Š›ȱšžŽȱŠȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱœŽ›’ŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱŸ’—Œž•ŠŠǯȱ
Tal modo de perceber a ação administrativa peca por exagero e por
œ’–™•’ęŒŠ³¨˜ǯȱ¡ŠŽ›˜ǰȱ—Šȱ–Ž’ŠȱŽ–ȱšžŽȱŠȱŠę›–Š³¨˜ȱŠȱŸ’—Œž•Š³¨˜ȱœàȱœŽȱ
faz como reação à percepção de que, quando se fala em discricionariedade,
está-se falando em arbítrio — e não é nada disso. Não é preciso ingressar
no terreno da vinculação para que determinado ato administrativo possa
ser não arbitrário: basta o exercício correto da discricionariedade.
ȱ ™›’—Œ’™Š•ȱ ™›˜‹•Ž–Šȱ —¨˜ȱ ·ȱ ŽœœŽǯȱ 1ȱ šžŽȱ Šę›–Š›ȱ šžŽȱ ž–ȱ Š˜ȱ ȃ·Ȅȱ
’œŒ›’Œ’˜—¤›’˜ȱȃ˜žȄȱŸ’—Œž•Š˜ȱ™›Žœœž™äŽȱœ’–™•’ęŒŠ³¨˜ȱ’››ŽŠ•ȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱ
administrativa. Os atos são mais ou menos vinculados, a depender dos
termos da lei com base na qual serão praticados. Há atos que, de fato, são
bastante vinculados, ou intensamente abertos à discricionariedade, mas,
no cotidiano do Direito Público, são exceções. A maioria dos atos está
entre os extremos.
Há, então, predominância estatística de atos de polícia mais vin-
Œž•Š˜œȱ˜žȱ–Š’œȱ’œŒ›’Œ’˜—¤›’˜œȱȯȱ™Š›ŠȱšžŽȱœŽȱ™˜œœŠȱœŠ•ŸŠ›ȱŠȱŠę›–Š³¨˜ǵ

813
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 271.
814
MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134.

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 323 20/08/2014 14:30:35


JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
324 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

–‹˜›ŠȱŠž˜›Žœȱ’–™˜›Š—ŽœȱŠę›–Ž–ȱž–ŠȱŒ˜’œŠ815 e outra,816 não


ŠŒ›Ž’Š–˜œȱ—’œœ˜ǰȱœŽšžŽ›ȱŸŽ–˜œȱž’•’ŠŽȱŽ–ȱ‹žœŒŠ›ȱŠ•ȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ǯ817
Ela não adianta nenhum conhecimento nem produz nenhuma função de
descarga argumentativa.818
E há um terceiro ponto, de rigor técnico: não é o ato que é discri-
cionário ou não; não se trata de atributo dele, mas de característica das
normas com base nas quais ele vai ser exercido.819 Só se poderia falar de
poder de polícia “discricionário” se se estivesse pensando no poder de
polícia em sentido amplo820 — isto é, na faculdade de editar leis restritivas
ou conformadoras de direitos —, e, mesmo assim, tal discricionariedade
legislativa estará condicionada, no mínimo, pela Constituição.
Fala-se que o poder de polícia (ii) é, também em princípio, válido, e basea-
do em alegações verdadeiras. É a tradicional característica apontada nos atos
administrativos: a presunção relativa de validade e de veracidade, por vezes
chamada ou apresentada conjuntamente à presunção de legitimidade.
Ocasionalmente, fala-se que a legitimidade é a soma da presunção
de validade e de veracidade. Os conceitos são distintos, embora às vezes
apareçam comprimidos na presunção. Presumir que algo é legítimo sig-
—’ęŒŠȱ™›Žœœž™˜›ȱšžŽȱœŽžȱŒ˜—Žø˜ȱŒ˜››Žœ™˜—ŽȱŠȱŽ–Š—Š³¨˜ȱŽȱœ˜‹Ž›Š—’Šȱ

815
“A multiplicidade proteiforme das actividades individuais perigosas não permite que as leis
prevejam todas as oportunidades em que as autoridades policiais hajam de actuar e os modos
pelos quais devam fazê-lo. Nasce daí o caráter normalmente discricionário dos poderes de polí-
cia” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 272, grifos no original).
ꛖŠ—˜ȱšžŽȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ·ȱȃ™›Ž˜–’—Š—Ž–Ž—Žȱ’œŒ›’Œ’˜—¤›’ŠȄȱǻq ǯȱCurso
de direito administrativo, p. 992).
816
“A rigor, se nos dermos ao trabalho de examinar as situações em que o Estado exerce a ativi-
ŠŽȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠǰȱŸŽ›’ęŒŠ›Ž–˜œȱšžŽȱa quase totalidade delas se insere no âmbito vinculado da atuação
administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 653, grifos nossos).
817
Seria hipoteticamente possível elaborar um levantamento empírico que, para certos atos, em
ŒŽ›˜ȱ™Ž›Ç˜˜ǰȱŽ–ȱŒŽ›Šȱ•˜ŒŠ•’ŠŽǰȱ’Ž—’ęŒŠœœŽȱŠȱ™›Ž˜–’—¦—Œ’ŠȱŽȱŠ˜œȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ–Š’œȱŸ’—-
culados ou mais discricionários. A pesquisa, no entanto, seria metodologicamente bastante
Œ˜–™•Ž¡ŠȱǻšžŠ•ȱŠȱ–·›’ŒŠȱŒ˜››ŽŠȱ™Š›ŠȱŠȱŽœŒŠ•ŠȱŽȱŸ’—Œž•Š³¨˜ǵǼǰȱŽȱ’ęŒ’•–Ž—Žȱ™›˜ž£’›’ŠȱŒ˜-
nhecimento socialmente útil.
818
Cf. ALEXY. Teoria da argumentação jurídicaDZȱŠȱŽ˜›’Šȱ˜ȱ’œŒž›œ˜ȱ›ŠŒ’˜—Š•ȱŒ˜–˜ȱŽ˜›’ŠȱŠȱ“žœ’ę-
ŒŠ³¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠǰȱ™ǯȱŘśŚǰȱ›’˜œȱ—˜ȱ˜›’’—Š•DZȱȃ1ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱ¥ȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ˜–¤’ŒŠȱŠ˜Š›ǰȱŠ˜ȱ–Ž—˜œȱ
provisoriamente, itens que foram previamente examinados e aceitos. Isso reduz o encargo
˜ȱ ™›˜ŒŽœœ˜ȱ “žœ’ęŒŠ’Ÿ˜ǰȱ Šȱ ™˜—˜ȱ Žǰȱ —Šȱ Šžœ¹—Œ’Šȱ Žȱ Š•ž—œȱ –˜’Ÿ˜œȱ Žœ™ŽŒ’Š’œǰȱ —˜Ÿ˜ȱ Ž¡Š–Žȱ
ser desnecessário. Podemos ser isentos de discutir de novo toda a questão de valor em cada
caso. Essa função redutora de encargo não só é indispensável para o trabalho do tribunal que
˜Œ˜››Šȱœ˜‹ȱ•’–’ŽœȱŽȱŽ–™˜ǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱŽȱ’–™˜›¦—Œ’Šȱ™Š›ŠȱŠȱ’œŒžœœ¨˜ȱ“ž›Ç’ŒŠȱŒ’Ž—Çꌊǯȱ
Também nessa esfera — como em todas as esferas — é impossível discutir tudo de novo em
todos os casos”. A função de descarga da dogmática jurídica é, muito simplesmente, aquela gra-
ças à qual, segundo Atienza, “não se precisa discutir tudo a cada vez” (ATIENZA. As Razões do
Direito: teorias da argumentação jurídica). Ainda, ver ÁVILA. Teoria dos princípiosDZȱŠȱŽę—’³¨˜ȱ¥ȱ
aplicação dos princípios jurídicos. 4. ed., p. 56-57.
819
Embora se possa aceitar o uso com base numa espécie de metonímia jurídica.
820
CAMPOS; OLIVEIRA. Poder de polícia: anotações à margem de Agustín Gordillo. In: OLIVEIRA.
Direito administrativo Brasil-Argentina: estudos em homenagem a Agustín Gordillo, p. 165.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
325

™˜™ž•Š›ǯȱ›Žœž–’›ȱšžŽȱŠ•˜ȱ·ȱŸ¤•’˜ȱœ’—’ęŒŠȱ™›Žœœž™˜›ȱšžŽȱŽœŠȱŒ˜’œŠȱ·ȱ
compatível, tanto formal quanto materialmente, com o Ordenamento. A
presunção de veracidade implica assumir que determinada pressuposição
˜žȱŠę›–Š³¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱŒ˜››Žœ™˜—ŽȱŠȱž–ŠȱŒ’›Œž—œ¦—Œ’ŠǰȱŒŠ›ŠŒŽ›Çœ’ŒŠȱ˜žȱ
evento realmente existente no mundo fenomênico.
Vamos analisar a presunção de validade e de veracidade.
Há três possibilidades de se entendê-las. Na primeira delas, signi-
ꌊ›’ŠȱšžŽȱ˜œȱŠ˜œȱŠ–’—’œ›Š’Ÿ˜œȱœ¨˜ȱ’˜œȱŒ˜–˜ȱŸ¤•’˜œȱŠ·ȱ™›˜ŸŠȱŽ–ȱ
contrário: o particular deve não apenas os impugnar, mas fazer prova de
sua invalidade. Nesse sentido, tal presunção é banal, já que quem alega
tem de provar a alegação em qualquer hipótese, seja questionando ato
administrativo ou não.
No segundo sentido, a presunção de validade (aqui, muito mais
™›Žœž—³¨˜ȱŽȱŸŽ›ŠŒ’ŠŽǼȱœ’—’ęŒŠ›’ŠȱšžŽȱ˜ȱ™Š›’Œž•Š›ȱŽ›’ŠȱŽȱœŽ›ȱ˜‹›’Š˜ȱ
a fazer prova negativa em relação a fatos alegados pelo Poder Público: o
particular teria de provar a ocorrência dos fatos que alega e a não ocorrência
dos fatos alegados, em defesa, pelo Poder Público. O Poder Público pode-
›’ŠȱœŽȱ‹Ž—ŽęŒ’Š›ȱŠȱ’—·›Œ’Šǰȱ“¤ȱšžŽǰȱœŽ–ȱ™›˜ŸŠ›ȱ˜ȱšžŽȱŠ•ŽŠǰȱ˜žȱŠ•ŽŠ—˜ȱ
genericamente a presunção, a causa, em princípio, seria sua.
Nesse sentido, a presunção de veracidade é absurda e incompatível
com a ideia de publicidade, transparência, verdade material, contraditório,
ampla defesa, presunção de inocência, e, no limite do argumento, com o
próprio Estado de Direito.821 Todos devem provar o que alegam, e alegações
genéricas são, apenas, papel e tinta em vão.
No seu terceiro sentido, a presunção de validade e de veracidade sig-
—’ęŒŠ›’Šȱ’—Œ›Ž–Ž—˜ȱ—˜ȱ™Žœ˜ȱ˜œȱŠ›ž–Ž—˜œȱŠ•ŽŠ˜œȱ™Ž•Šȱ–’—’œ›Š³¨˜ȱ
Pública, de tal modo que, na dúvida, a causa deveria ser julgada de modo
favorável ao Estado. É, talvez, o sentido mais profundo, argumentativo e
“material” da presunção: na dúvida, atos públicos são válidos e verdadei-
ros. Aqui, a presunção conecta-se com a ideia de presunção de legitimidade
do Estado e de presunção de boa-fé na atuação da Administração.
Embora, em princípio, sejamos contrários a distribuições não equita-
tivas de cargas argumentativas — sem falar no quão difícil é operacionalizar
isso, sem o transformar numa blindagem dos atos públicos —, parece-nos
que tal presunção como peso no argumento deva ser mantida, à conta do
caráter transindividual dos interesses buscados pela Administração.
Tal presunção como peso no argumento deve, no entanto, ser qua-
•’ęŒŠŠȱ™Ž•ŠȱŽ¡™Ž›’¹—Œ’Šǯȱȱ™›Žœž—³¨˜ȱŽȱŸŠ•’ŠŽȱŽȱŽȱŸŽ›ŠŒ’ŠŽȱ˜ȱŠ˜ȱ
Š–’—’œ›Š’Ÿ˜ȱ —¨˜ȱ ™˜Žȱ œŽ›ȱ ˜–ŠŠȱ Œ˜–˜ȱ Šę›–Š³¨˜ȱ ž—ŠŒ’˜—Š•’œŠǰȱ

821
GUEDES. A presunção de veracidade e o Estado Democrático de Direito: uma reavaliação
que se impõe. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas,
p. 241-266, passim.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
326 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

alheia ao contexto, e, assim, antipragmática. A presunção de validade e de


veracidade dos atos administrativos é, também e especialmente, dado fático
Œ˜—œ›žÇ˜ȱ Ž¡™Ž›’–Ž—Š•–Ž—Žȱ Šȱ ™Š›’›ȱ Šȱ Œ˜—ꊋ’•’ŠŽȱ Šȱ ’—œ’ž’³¨˜ȱ
šžŽȱ™›˜–˜ŸŽȱ˜ȱŠ˜ǰȱŠȱŒ˜—ꊗ³ŠȱŽȱŠȱšžŠ•’ŠŽȱ·Œ—’ŒŠȱŠœȱ™Žœœ˜ŠœȱšžŽȱ
normalmente o executam, e da forma como ele vem sendo praticado. É
dizer: a presunção de validade e de veracidade é muito mais algo que se
conquista do que algo que se deduza da qualidade pública do ato.
Mas a verdade é que o atributo não é característico, apenas, dos
atos de polícia, mas dos atos administrativos em geral. Logo, a caracterís-
tica perde força: ela não diferencia o poder de polícia; ela só comprova a
circunstância, que ninguém duvida, de que o poder de polícia se trata de
uma atuação pública.
Também se fala que o poder de polícia (iii) é, eventualmente, autoexe-
cutórioǯȱ œœ˜ȱ œ’—’ęŒŠȱ šžŽȱ ‘¤ȱ Š˜œȱ Žȱ ™˜•ÇŒ’Šȱ šžŽȱ ™˜Ž–ȱ œŽ›ȱ ™›Š’ŒŠ˜œȱ
independentemente da anuência prévia de outros poderes822ȱǻœ’—’ęŒŠ’ŸŠ-
mente, do Judiciário).823 Mas há outros cuja prática deve passar pelo crivo
˜ȱ ž’Œ’¤›’˜ȱǻž–Šȱ–ž•Šȱ꜌Š•ȱœàȱ™˜ŽȱœŽ›ȱŒ˜‹›ŠŠȱŽ–ȱ“žÇ£˜Ǽǯȱ
Na vida privada, são raros os atos autoexecutórios: poucos são os
que já viram a hipótese de retenção de bagagem de hóspede (art. 1.467 c/c
1.470 do Código Civil), embora a legítima defesa da posse exista para além
do texto legal (art. 1.210, §1º, Código Civil). Claro que os atos de polícia,
mesmo os autoexecutórios, não estarão insubmissos à apreciação, nesse
caso posterior, do Judiciário. A questão não é aceitar que atos de polícia
possam ser autoexecutórios (eles podem ser, e isso é óbvio), tampouco
encontrar motivo para tanto (a segurança e a organização da sociedade
são explicações bem cotadas;824 quem duvidar que vá sugerir que o Corpo
de Bombeiros tenha de solicitar uma injunção judicial antes de apagar um
incêndio).
O problema está em delimitar parâmetros operacionais e compa-
tíveis com o Estado de Direito com base nos quais a autoexecutoriedade
possa ser exercida.825 Embora exista controvérsia a respeito da adoção de

822
É claro que estamos falando de “outros poderes” em prol da simplicidade do texto, já que todas
as funções estatais — e não, tecnicamente, “poderes”, já que o poder estatal é uno — praticam
atos administrativos.
823
“A auto-executoriedade, ou seja, a faculdade de Administração decidir e executar diretamente
sua decisão por seus próprios meios, sem intervenção do Judiciário, é outro atributo do poder
de polícia” (MEIRELLES. Direito administrativo brasileiro, p. 134-135, grifos no original).
824
BORGES. Supremacia do interesse público: desconstrução ou reconstrução?. Revista de Direito
do Estado, p. 137-153.
825
Boa criterização continua sendo, na doutrina brasileira, a de Celso Antônio Bandeira de Mello:
“a) Quando a lei expressamente autorizar; b) quando a adoção da medida for urgente para a
defesa do interesse público e não comportar as delongas naturais do pronunciamento judicial sem
sacrifício ou risco para a coletividade; c) quando inexistir outra via de direito capaz de assegurar a
satisfação do interesse público que a Administração está obrigada a defender em cumprimento à
medida de polícia” (BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 829).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
327

teoria “extensiva” (a executoriedade seria a regra dos atos administrati-


vos) ou “restritiva” (executoriedade só em casos urgentes ou em hipóteses
previstas em lei), acreditamos que se deva inclinar pela última, que não é,
em rigor, “restritiva” (ou só o é em comparação com a outra teoria), mas, é,
simplesmente, a única que leva a sério o conceito dos direitos fundamentais
dos particulares.
As hipóteses legais de autoexecutoriedade de polícia costumam
envolver autorizações normativas para apreensão de produtos, destruição
de ruínas, construções irregulares, medidas sanitárias e de controle de
doenças. Nos casos em que não há lei autorizativa expressa, a autoexe-
cutoriedade deve ser o resultado de ponderação em concreto entre os
interesses envolvidos, sempre sob o fundamento da urgência na adoção
do ato (e jamais com o propósito da sanção, cuja aplicação deve ser pre-
cedida do devido processo legal), e, ainda, respeitosa do núcleo essencial
do direito restringido.826 827
O poder de polícia é (iv) exigível. Aqui, não vamos gastar muita
Ž—Ž›’Šǯȱ’—’ęŒŠǰȱŠ™Ž—ŠœǰȱšžŽȱŠȱ™˜•ÇŒ’ŠȱœŽȱ›ŽŠ•’£Šȱ™Ž•Šȱ˜–ŠŠȱŽȱŽŒ’œäŽœȱ
šžŽȱ’—Ž™Ž—Ž–ȱŠȱŒ˜—Œ˜›¦—Œ’Šȱ˜ȱ™Š›’Œž•Š›ǯȱȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ǰȱ˜›’’—¤›’Šȱ
da doutrina francesa, foi adotada tanto por brasileiros quanto por autores
de outras nacionalidades, mas é de reduzido poder explicativo.
As próximas duas características do poder de polícia incorporam
Šȱ™›’—Œ’™Š•ȱ—ŽŠ³¨˜ȱŽȱŠȱ™›’—Œ’™Š•ȱŠę›–Š³¨˜ȱ˜ȱ™›ŽœŽ—ŽȱŒŠ™Çž•˜ǯȱȱŽ•Šœǯ
Hoje se fala que o poder de polícia (v) teve seu conceito instrumen-
talizado à realização dos direitos fundamentaisǯȱ Š›³Š•ȱ žœŽ—ȱ ’•‘˜ȱ Žę—Žȱ
polícia administrativa como “competência para disciplinar o exercício
da autonomia privada para a realização de direitos fundamentais e da demo-
cracia, segundo os princípios da legalidade e da proporcionalidade”.828 A
expressão em itálico pode ser entendida em dois sentidos — um sentido
forte e um fraco —, e só quando ela é entendida em sentido fraco a frase
neutraliza seu potencial de autocontradição. Explica-se.
A conceituação-padrão de direitos fundamentais é o da fundamen-
talidade material: direito fundamental é o direito que se presta a realizar,
direta e imediatamente, a dignidade da pessoa humana.829 Trata-se de crité-
rio não formal, que utiliza como indício a presença do direito no Catálogo

826
BOMFIM; FIDALGO. Releitura da auto-executoriedade como prerrogativa da Administração
Pública. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, p. 267-309,
passim.
827
Ver, à frente, análise sobre a essencial incompatibilidade entre ponderação e núcleo essencial.
˜–˜ȱŸŽ›Ž–˜œǰȱŠę›–Š›ȱšžŽȱŠ•˜ȱȃŽŸŽȱœŽ›ȱ™˜—Ž›Š˜ȄȱŽȱšžŽȱŠ•ȱ™˜—Ž›Š³¨˜ȱȃŽŸŽȱ›Žœ™Ž’Š›ȱ
˜ȱ—øŒ•Ž˜ȱŽœœŽ—Œ’Š•ȱ˜œȱ’›Ž’˜œȄȱ·ǰȱ—˜ȱž—˜ǰȱœž™·›Ěž˜ǯ
828
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 459, grifos nossos.
829
Por todos, v. SARLET. ȱŽęŒ¤Œ’Šȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œ: uma teoria geral dos direitos funda-
mentais na perspectiva constitucional, passim.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
328 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de Direitos Fundamentais da nossa Constituição. Há direitos fundamentais


que estão lá, mas há outros dispersos pelo Texto Constitucional.
Ao contrário de muitos autores, que, ao apostar numa “euforia
jusfundamental”, acabam contribuindo para a perda de relevância do
conceito, a posição restringe para valorizar: o que é direito fundamental
deve ser imediatamente sindicável, inclui-se no conteúdo protegido pelas
Œ•¤žœž•Šœȱ™·›ŽŠœȱŽȱ·ȱ˜‹“Ž˜ȱŽȱ·Œ—’ŒŠœȱŽœ™ŽŒÇꌊœȱŽȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ǯȱŠœȱ
só o que é direito fundamental de verdade, quer dizer, aquele núcleo de
direitos vinculado à dignidade humana de modo direto, e que é capaz de
ser aceito de modo amplo por todas as correntes políticas e ideológicas
da sociedade, à maneira de um consenso sobreposto entre posições parti-
culares — ou seja: só pode ser jusfundamentalizado o que ultrapassou o
ꕝ›˜ȱŠȱ›Š£¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠǯ
Assim, por exemplo, pessoas razoáveis e de boa-fé de uma sociedade
contemporânea estão de acordo a respeito de que o conteúdo “ensino
fundamental” realiza a dignidade da pessoa humana. Existe, então, um
direito fundamental ao ensino fundamental. O mesmo já não se pode
dizer sobre a ideia de ensino superior: há um bem articulado conjunto de
argumentos contra a ideia de que seja conteúdo vinculado diretamente à
dignidade humana. Não existe, por isso, um direito fundamental ao ensino
superior.830ȱȱšžŽȱ—¨˜ȱœ’—’ęŒŠȱ™›˜’‹’›ȱ˜ȱœŠ˜ȱŽȱ™›Žœ¤Ȭ•˜DzȱœŽ–ȱøŸ’Šǰȱ
é importantíssima utilidade que o Poder Público pode colocar à disposição
de seus cidadãos na qualidade de serviço público. O Estado brasileiro,
’—Œ•žœ’ŸŽǰȱ‘’œ˜›’ŒŠ–Ž—Žȱ™›ŽœŠȱ˜ȱœŽ›Ÿ’³˜ǯȱŠœȱ˜ȱ™˜—˜ȱ™ŠŒÇꌘȱŽ—›ŽȱŠœȱ
muitas ideologias é: ninguém terá seu valor intrínseco de homem violado
se não possuir uma graduação universitária, um mestrado, um doutorado.
Ao contrário, tal violação é consensualmente clara ao se deparar com um
homem adulto incapaz de ler, escrever, realizar operações matemáticas.
›ŠŠȬœŽȱŽȱœŽ›ȱ‘ž–Š—˜ȱ’—ŒŠ™Š£ȱŽȱœŽȱ’—œŽ›’›ȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠ–Ž—Žȱ—Šȱœ˜Œ’ŽŠŽȱ
e de partilhar das muitas experiências compartidas pela comunicação.
Ou seja: o conceito de direitos fundamentais é menos abrangente do
que uma longa série de propósitos legítimos que podem ser (e foram) vali-
damente perseguidos pelo Estado, na qualidade, por exemplo, de serviços
públicos. Se o Estado brasileiro resolver assumir a prestação da atividade
de fornecimento de conexão com a internet, transformando-o em serviço
público, muitos não o considerarão, pelo menos no presente momento,
conteúdo com vinculação direta com a dignidade humana.831 Repita-se: o

830
SOUZA NETO. Teoria constitucional e democracia deliberativa: um estudo sobre o papel do direito
na garantia das condições para a cooperação na deliberação democrática.
831
Defendendo que, já hoje, o acesso à internet é direito humano, v. a excelente obra digital de
Bárbara Nascimento O direito humano de acesso à internet – Fundamentos, conteúdo e exigibilidade
(Amazon Digital Services, 2014). O autor deste livro elaborou o prefácio da referida obra.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
329

conceito de direitos fundamentais é subinclusivo em relação à multitude de ati-


vidades estatais. Muitas realizam diretamente a dignidade humana; outras
importantíssimas atividades, não. Não serão inconstitucionais por isso.
O que vale para o serviço público vale para o poder de polícia, ainda
mais diante da integração material das atividades (ver acima). No mesmo
Ž¡Ž–™•˜ǰȱ˜ȱŽ—œ’—˜ȱ™ø‹•’Œ˜ȱœž™Ž›’˜›ȱ—¨˜ȱœ’—’ęŒŠȱŠȱ›ŽŠ•’£Š³¨˜ȱŽȱšžŠ•šžŽ›ȱ
direito fundamental. Portanto, a atividade de polícia administrativa inci-
dente na Faculdade de Direito da UERJ não realiza direito fundamental,
na medida em que o próprio serviço público também não o faz. Será
inconstitucional por isso?
Em sentido forte, a ideia de que a polícia contemporânea foi instru-
mentalizada à realização dos direitos fundamentais é inaceitável porque
restringe a atuação administrativa à “realização direta da dignidade humana”
que é a essência do conceito de direito fundamental. Tal restrição é anti-
democrática. Ela limita indevidamente o espectro de escolhas legislativas.
Não há nada de inválido, por inconstitucional, se a população do Estado
do Rio de Janeiro constituiu a UERJ como uma instituição autárquica de
ensino público superior. Amanhã pode achar que a escolha não foi a melhor,
revogando a lei, porém isso pertence antes ao jogo democrático do que às
categorias da doutrina.
É dizer: se se entende que a frase “o poder de polícia foi instru-
mentalizado à realização dos direitos fundamentais” quer dizer “o poder
de polícia só pode atuar para a promoção dos direitos fundamentais”, ela
ingressará em contradição com a ideia de que “o poder de polícia existe
para a realização da democracia”, na medida em que existem diversas
atividades públicas democraticamente referendadas que não promovem
direitos fundamentais.
Em sentido fraco, a ideia de “instrumentalizado à realização de
direitos fundamentais” pode ser lida como “necessidade de conformação
aos direitos fundamentais”. Esse é o sentido democraticamente possível.
ȃ˜—˜›–Š³¨˜Ȅȱœ’—’ęŒŠȱȃœŽ›ȱŒ˜—˜›–ŽȄǰȱȃ—¨˜ȱŸ’˜•Š›ȄǰȱŒ’›Œž—œ¦—Œ’ŠǰȱŠ•’¤œǰȱ
óbvia, já que nenhum exercício de atividade administrativa pode violar o
direito fundamental do particular à liberdade ou à propriedade.
Em resumo: caso se entenda que o poder de polícia só pode atuar
em relação a atividades que sejam direitos fundamentais, está-se sendo
antidemocrático e irrealista (já que a realidade da atuação estatal é mais
abrangente); caso se entenda que a polícia só pode atuar de modo respei-
toso aos direitos fundamentais eventualmente tocados por seu exercício,
a frase é verdadeira, embora óbvia.
Finalmente, característica do poder de polícia, numa acepção mo-
derna, é (vi) que seu conceito também seja instrumentalizado à realização da
democracia.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
330 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Mais uma vez, Marçal Justen Filho merece ser citado:


Trata-se de limitar o exercício de liberdades, o que propicia uma atividade
estatal dotada de grande potencial antidemocrático. [...] Não se admite que
as competências de poder de polícia administrativa sejam utilizadas de
modo antidemocrático. É indispensável condicionar a atividade de poder
de polícia à produção concreta e efetiva da realização de direitos funda-
mentais e da democracia.832

–‹˜›Šȱ Ššž’ȱ Š–‹·–ȱ Šȱ Œ›Ç’ŒŠȱ šžŽȱ ę£Ž–˜œȱ ¥ȱ ’Ž’Šȱ Žȱ œŽ›ȱ ȃ–Ž’˜ȱ
para a realização” seja aplicável — o exercício do poder de polícia não
deve ser entendido apenas como instrumento de realização da democracia,
mas como competência que se realiza em conformidade com a democracia —,
no essencial, concordamos com o jurista. E avançamos na proposta: boa
forma de operacionalizar essa conformidade democrática é submetê-la ao
limite da razão pública. A conferir.
ȱŠœœž—˜ȱꗊ•ȱŽœŠȱ’—Œž›œ¨˜ȱ˜ž›’—¤›’Šȱ·ȱŠȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ do poder
de polícia. O assunto é de origem francesa. Fala-se numa polícia geral e
numa polícia especial. A polícia geral seria aquela cujo objeto se voltasse ao
conteúdo tradicional da Ordem Pública, na acepção francesa: segurança,
tranquilidade, saúde. Já na abrangência da polícia especial estariam as
Ž–Š’œDZȱ™˜•ÇŒ’Šȱ’—žœ›’Š•ǰȱŽŒ˜—â–’ŒŠǰȱŠœȱ™›˜ęœœäŽœȱŽŒǯȱ

¤ȱž–ȱ’–™˜›Š—Žȱȃ™˜›·–Ȅȱ—ŽœœŠȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜DZȱ—˜ȱ›Šœ’•ǰȱŽ•Šȱ—¨˜ȱ
serve para nada. A ser verdadeira a lição de Ricardo Guastini segundo
ŠȱšžŠ•ȱŠœȱ’œ’—³äŽœȱœàȱœŽȱ“žœ’ęŒŠ–ȱ™Ž•ŠȱœžŠȱž’•’ŠŽǰ833ȱŠȱŒ•Šœœ’ęŒŠ³¨˜ǰȱ
no Brasil, perde sua razão de ser. Na França, o exercício da polícia geral
pode ser feito por regulamentos autônomos, já o da polícia especial, não.
No Brasil, não há essa diferenciação: ou se acredita nos regulamentos au-
tônomos, e aí eles são aceitos para o exercício da polícia como um todo,
ou não se aceita, e aí não será uma diferenciação pelo conteúdo que os
tornará admissíveis.834
Passemos ao assunto dos limites clássicos ao exercício do poder de
polícia.

2.3 Limites clássicos ao exercício da polícia administrativa:


elementos do ato administrativo, devido processo e
legalidade
O poder de polícia se exerce por atos administrativos, e, assim,
todos os critérios de controle aplicáveis a estes servirão para aquele. Sem

832
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.
833
GUASTINI. Distinguendo: estudios de teoría y metateoría del derecho.
834
BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 824-826.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
331

maiores pretensões de profundidade, o ato administrativo é composto de


cinco “elementos” (ver nota de rodapé no início do capítulo): competência,
˜›–Šǰȱꗊ•’ŠŽǰȱ–˜’Ÿ˜ȱŽȱ˜‹“Ž˜ǯ
Quanto à competência, que talvez seja a própria natureza da polícia,835
Šę›–ŠȬœŽȱšžŽȱ™˜œœž’ȱŒ˜–™Ž¹—Œ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱȯȱ—ŠȱšžŠ•ȱœŽȱ’—Œ•ž’ȱŠȱ
competência para a prática de atos de polícia — quem possui competên-
cia legislativa. Exerce a polícia quem pode regular a matéria. Há, ainda,
casos nos quais a competência administrativa foi diretamente prescrita
pela Constituição, de modo privativo para a União (art. 21 da CRFB/88)
ou concorrentemente aos demais entes (art. 23). Nas hipóteses em que a
competência legislativa é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito
Federal (art. 24), também concorrente será a competência para a polícia
Š–’—’œ›Š’ŸŠǯȱžŠ—˜ȱ—¨˜ȱ‘˜žŸŽ›ȱŠ›’‹ž’³¨˜ȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȱŽœ™ŽŒÇꌊȱ
de competência legislativa ou administrativa à União ou a algum Estado,
Município, ou ao Distrito Federal, aplica-se, de modo supletivo, a ideia
de que a competência estará vinculada ao interesse: será competente o
Município ou o Distrito Federal se o interesse for local; se o interesse for
regional, a competência para a prática de atos de polícia é do Estado; se
nacional, competente será a União.
Tudo isso é fácil de falar e difícil de fazer. Na prática, reina grande
confusão a respeito da distribuição de certas competências legislativas e
administrativas entre os entes da Federação, inclusive com radicais vaci-
lações jurisprudenciais.
ȱšžŽœ¨˜ȱŒŽ—›Š•ǰȱŽȱšžŽȱ’–™ŽŽȱŠȱ™ŠŒ’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ™˜—˜ǰȱ·ȱšžŽȱ–ž’˜œȱ
˜œȱŒ˜—Ě’˜œȱŽȱŒ˜–™Ž¹—Œ’Šȱ›Žœ˜•ŸŽ–ȬœŽȱŽ–ȱŒ˜—Ě’˜œȱŠŒŽ›ŒŠȱŠȱšžŠ•’ęŒŠ³¨˜
de conteúdos, com bons argumentos para ambos os lados. O horário de
funcionamento de agência bancária é assunto que envolve a comunidade
local, já que afeta as atividades do centro da cidade, a movimentação do
comércio próximo etc. No entanto, também se pode argumentar que é
assunto que transcende aos interesses local e regional, porque o banco
comunica-se com uma rede nacional e, por exemplo, efetua operações
nacionais de compensação de títulos. Qual tese deve prevalecer? Segundo
˜ȱ ǰȱŠȱœŽž—ŠDZȱȃø–ž•Šȱ—ķȱŗşȱȯȱȱę¡Š³¨˜ȱ˜ȱ‘˜›¤›’˜ȱ‹Š—Œ¤›’˜ǰȱ™Š›Šȱ
atendimento ao público, é da competência da União”. Mas, caso se trate de
lojas comerciais, e não de bancos, a competência passa a ser do Município
(enunciado nº 645 da Súmula da Jurisprudência Consolidada do STF).
O respeito à forma é outro limite clássico ao exercício do poder de
polícia. Já se avançou muito desde a época em que se entendia respeito à
forma como formalismo, mas o elemento ainda importa e carreia racio-
nalidade ao ato. Pensando, por exemplo, nos atos de polícia arquetípicos

835
Marçal diz que a polícia administrativa é um conjunto de competências (p. 459).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
332 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

— a licença e a autorização —, sua constituição válida pressupõe que seus


alvarás hajam sido emitidos com o cumprimento de todas as regras formais.
O controle da ꗊ•’ŠŽ do ato administrativo de polícia diz de um
limite que, nas palavras de Marcelo Caetano, é “naturalmente imposto”.836
Seria uma condição da existência da polícia. É que seu exercício deve
™›ŽŽ—Ž›ȱ ›ŽŠ•’£Š›ȱ ’—Ž›ŽœœŽœȱ ™ø‹•’Œ˜œȱ ›Š£˜ŠŸŽ•–Ž—Žȱ ’Ž—’ęŒ¤ŸŽ’œǯȱȱ
’œŒ’™•’—Šȱ™ø‹•’ŒŠȱ—¨˜ȱœŽȱ™›ŽœŠȱŠȱ›Ž˜›³Š›ȱ’—“žœ’ęŒŠŠ–Ž—Žȱ’—Ž›ŽœœŽœȱ
privados. Ela não se faz para incrementar a participação no mercado da
empresa A em desfavor da empresa B. A polícia sanitária deve revistar
todos os estabelecimentos, ou, no mínimo, os que possuam suspeita de
venderem produtos contaminados. Outras hipóteses poderiam ser co-
gitadas, embora tal limite não seja exatamente exclusividade da polícia
Š–’—’œ›Š’ŸŠDZȱ—Ž—‘ž–ŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱŽœŠŠ•ȱœŽȱ“žœ’ęŒŠȱœŽ–ȱ˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŠȱ
™Ž›œŽŒž³¨˜ȱ˜ȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜ǯȱȱŽ˜›’Šȱ˜ȱŽœŸ’˜ȱŽȱꗊ•’ŠŽǰȱŒ•¤œœ’ŒŠȱ
no Direito Administrativo, é inteiramente aplicável ao controle do poder
de polícia.837
O controle do motivo do ato de polícia — os pressupostos de fato e
Žȱ’›Ž’˜ȱŒ˜–ȱ‹ŠœŽȱ—˜ȱšžŠ•ȱ˜ȱŠ˜ȱ·ȱ™›Š’ŒŠ˜ȱȯȱŠ£ȬœŽȱ™Ž•ŠȱŸŽ›’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱ
se tais pressupostos existem e se são válidos.
Muitas vezes, um ato administrativo viciado em seu motivo é, essen-
Œ’Š•–Ž—Žǰȱž–ȱŠ˜ȱŠ–’—’œ›Š’Ÿ˜ȱ™›Š’ŒŠ˜ȱŽ–ȱŽœŸ’˜ȱŽȱꗊ•’ŠŽǰȱŽ—¨˜ȱ
é importante ter em mente que tais elementos existem mais como categorias
›ŠŒ’˜—Š’œȱŽ•Š‹˜›ŠŠœȱŒ˜–ȱ™›˜™àœ’˜œȱ’¤’Œ˜œȱŽȱŽȱœ’–™•’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱšžŽȱ
como descrições realistas e minudentes.
Curiosamente, se o controle do motivo do ato é feito pela análise
dos fatos e dos fundamentos jurídicos invocados para sua prática, não há
sentido na tese que diz que só alguns atos devem ser motivados, isto é,
que só alguns devem ter seus elementos de motivação indicados de modo
expresso. Não há ato administrativo que escape à motivação, tanto que
isso é fundamental para seu controle.838

836
CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo, p. 276. “Não está no âmbito das
suas atribuições, por exemplo, ordenar a execução de um contrato ou fazer pagar uma dívida”
(p. 277). No mesmo sentido: “O exercício do poder de polícia deve ser submetido aos limites
que decorrem da Constituição Federal e das leis. A missão da polícia é a de proteger a ordem
pública, na medida em que se fala de polícia de segurança. Logo, a polícia não poderá colocar a
força de que dispõe à disposição da proteção de interesses exclusivamente privados” (LIMA. Princípios
de direito administrativo, p. 319, grifos nossos).
837
“É, sobretudo, em relação aos atos de polícia, por sua natureza discricionária, que o controle da
•ŽŠ•’ŠŽȱ˜ȱę–ȱ˜‹“Ž’ŸŠ˜ȱ—ŠȱŠ³¨˜ȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱŠšž’›Žȱ›Ž•ŽŸ˜ȱŽœ™ŽŒ’Š•ǯȱ•ŽȱŒ˜››Žœ™˜—Žȱ
à eliminação dos processos maliciosos e sub-reptícios (e, por isso mesmo, socialmente mais
nocivos) de arbítrio administrativo acobertado pelo aparente respeito à lei” (TÁCITO. Temas
de direito público: estudos e pareceres, v. 1, p. 531).
838
Os motivos são tão importantes para o controle dos atos de polícia que, na França, há certas
condutas privadas que carreiam uma tradicionalíssima presunção (relativa) de ausência de motivo
de polícia em favor do particular: são as manifestações exteriores tradicionais de religiosidade

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
333

Assim, no decreto de expropriação, para falarmos na polícia da


propriedade,839 não basta alegar, genericamente, o interesse público na
aquisição forçada do imóvel; faz-se mister declinar as razões, de fato e de
’›Ž’˜ǰȱšžŽȱšžŠ•’ęŒŠ–ȱŠšžŽ•ŠȱŸ˜—ŠŽȱŽȱŠ˜ȱŒ˜–˜ȱŸ˜—ŠŽȱŒ˜—œ’žŒ’˜-
nalmente adequada.
É claro que uma coisa é a necessidade de motivação, outra, comple-
tamente diferente, é a abrangência do controle judicial, que, em muitos dos
atos motivados, será feita de modo deferente à separação de poderes, no
mínimo porque a prática de tais atos se faz pelo preenchimento fático de
conceitos jurídicos indeterminados pelo administrador.
O objeto ou conteúdoȱ˜ȱŠ˜ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ·ȱŠȱ–˜’ęŒŠ³¨˜ȱ—Šȱ›ŽŠ•’ŠŽȱ
causada pelo exercício da atividade de limitação administrativa. É a pos-
sibilidade de se dirigir pelas ruas do país, com a licença para conduzir
veículo automotor; é a suspensão das atividades de preparo de refeições,
Œ˜–ȱŠȱ’—Ž›’³¨˜ȱ˜ȱŽœŠ‹Ž•ŽŒ’–Ž—˜ǯȱꛖŠȬœŽȱšžŽȱŽŸŽȱœŽ›ȱ•ÇŒ’˜ȱŽȱ™˜œ-
sível. Possuiria objeto ilícito uma polícia administrativa da qualidade da
heroína; impossível, uma polícia da navegação entre galáxias. Os exemplos
não precisam ser tão extremos, mas o exagero reforça o conceito.
Além dos elementos do ato administrativo, há, ainda, como limite
clássico, a submissão do ato de polícia a um devido processo legal que respeite
o contraditório e a possibilidade de ampla defesa por parte do adminis-
trado. É no exercício da polícia que culmina com a aplicação de sanções
que tal limite aparece em sua plenitude.840
Dois exemplos envolvendo a cidade do Rio de Janeiro: na constitui-
³¨˜ȱŠœȱ›ŽŠœȱŽȱ›ŽœŽ›ŸŠ³¨˜ȱ˜ȱ–‹’Ž—Žȱž•ž›Š•ǰȱŠœȱœǰȱšžŠ•’ęŒŠ-
ções jurídicas, oriundas do exercício de polícia urbanística municipal, que
restringem alguns direitos dos proprietários de imóveis em áreas de valor
urbanístico e cultural, várias decisões judiciais entenderam que o decreto
do Prefeito, simplesmente listando os imóveis, não permitiu o exercício da
ampla defesa dos titulares dos bens atingidos pelas restrições.

(procissões, comboios fúnebres etc.). Presume-se que tais condutas não ameaçam a tranqui-
lidade pública. Se o Estado pretender limitá-las, deve não apenas motivar tal propósito, mas
Š£¹Ȭ•˜ȱ Žȱ –˜˜ȱ ‹ŠœŠ—Žȱ “žœ’ęŒŠ˜ǯȱ ǯȱ Šȱ ŽŒ’œ¨˜ȱ ˜ȱ ˜—œŽ•‘˜ȱ Žȱ œŠ˜ȱ Ž–ȱ Abbé Didier,
julgado em 1º de maio de 1914. Cf. GAUDEMET. Droit administratif, p. 313. De qualquer modo,
—˜œœŠȱŠę›–Š³¨˜ȱ—˜ȱŒž›œ˜ȱ˜ȱŽ¡˜ȱ™˜ŽȱœŽ›ȱŽ¡ŒŽ™Œ’˜—ŠŠȱž–Šȱø—’ŒŠȱ›Š£¨˜DZȱŠȱž›¹—Œ’ŠǯȱŽœœŽȱ
sentido, MINET. Droit de la police administrative, p. 233-234.
839
A doutrina discute se a desapropriação e as demais limitações à propriedade poderiam ser
Ž—šžŠ›ŠŠœȱŽ—›˜ȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šǯȱȱ–Š’˜›’Šȱ˜œȱŠž˜›Žœǰȱ˜™˜›ŠęŒŠ–Ž—ŽǰȱŒ˜•˜ŒŠȱ˜ȱ
assunto à parte, embora alguns deem a entender que a desapropriação é o exercício extremo
de uma polícia da propriedade. Não entraremos no assunto.
840
“As decisões individuais de polícia devem ser precedidas de um procedimento contraditório,
que permite a seus destinatários apresentar suas observações e fazer valer seus direitos”
(MINET. Droit de la police administrative, p. 234).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
334 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Segundo exemplo: nos primeiros dias de governo, certo prefeito do


Rio pretendeu demolir prédio construído em área irregular, o “minhocão
da Rocinha”. As escavadeiras estavam prestes a fazê-lo, quando foi defe-
rida medida liminar, posteriormente cassada, questionando a ausência do
devido processo legal precedentemente ao exercício da sanção de polícia.
Quiçá o exemplo mais trivial de necessidade de devido processo legal
antes da aplicação de sanção administrativa seja o das multas de trânsito;
™˜žŒ˜œȱŽœŒŠ™Š›Š–ȱŠȱž™•Šȱ—˜’ęŒŠ³¨˜ȱȯȱŠȱŠȱŠžžŠ³¨˜ȱŽȱŠȱŠȱŠ™•’ŒŠ³¨˜ȱŠȱ
multa propriamente dita —, e de seu rosário de instâncias administrativas
ǻŽ™˜’œȱŠȱ—˜’ęŒŠ³¨˜ǰȱŠȱ˜–’œœ¨˜ȱŽȱŽŽœŠȱ›·Ÿ’ŠDzȱŠ™àœȱŠȱ–ž•ŠǰȱŠȱ ž—Šȱ
de Recurso de Infração de Trânsito, e, em caso de insucesso, o Conselho
Estadual de Trânsito).
O último e, possivelmente, o mais óbvio limite clássico ao exercício
da polícia é o respeito à legalidade. Aqui vale a observação acaciana: trata-se
de princípio geral do Direito Público, jamais de particularidade dos atos
administrativos ou dos atos administrativos de polícia. Muitos até falam
que, de todas as atividades do Estado, a de polícia seria a que mais reque-
reria a observância à legalidade.841
Contudo, não há de se confundir respeito à legalidade com exi-
gência de pré-determinação exauriente de comportamentos públicos ou
privados; à luz da diversidade da ação estatal, isso seria impossível. A lei
pode facultar à Administração Pública a adoção de uma disciplina mais
discricionária, desde que dentro de certos parâmetros de controlabilidade
e de racionalidade. Não se admite autorização legislativa genérica, mas do
que se está tratando não é disso: respeitados certos parâmetros — inteli-
gibilidade, previsibilidade, possibilidade de controle em bases objetivas,
início de descrição —, a atribuição de discricionariedade à Administração
™Š›Šȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŒ˜—žŠœȱŽȱŠšž’•ŠŠ›ȱ™ž—’³äŽœȱ·ǰȱŽ–ȱŒŽ›˜œȱŒŠœ˜œǰȱ–Ž’Šȱ
óbvia e salutar.
Falando de “parâmetros” e usando termos como racionalidade,
inteligibilidade e previsibilidade, preparamo-nos para o item a seguir: os
novos limites.

2.4 Novos limites: dignidade humana, proporcionalidade


e preservação do conteúdo essencial dos direitos
fundamentais. A superação da teoria das limitações e
sacrifícios de direitos
A expressão “novos limites” é relacional: só faz sentido em com-
paração com os limites clássicos, já que alguns destes “novos limites”

841
“De todas as atividades desenvolvidas pelo Estado, a de polícia é a que mais requer a obser-
vância da legalidade administrativa” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 657).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
335

estão presentes há mais de cinquenta anos na doutrina e na jurispru-


dência estrangeira. Eles também são “novos” no seguinte sentido: são os
que mais recentemente foram apresentados à prática jurídica brasileira.
Verdadeiramente novos ou não, fato é que é neles que se centra a propalada
jusfundamentalização do poder de polícia.842
A dignidade humana ingressou no terreno do Direito Público justa-
mente pelo poder de polícia, embora não como limite a seu exercício, mas
como possibilidade de abrangência. E ela ingressou graças a um caso fran-
cês famoso no Brasil: o do arremesso de anões. Estabelecimento comercial
de pequena cidade francesa, Morsang-sur-Orge, resolveu trazer a atração,
a municipalidade proibiu a atividade alegando violação à dignidade hu-
mana, a decisão foi mantida pelo Conselho de Estado, sob o argumento de
que a Ordem Pública incluía o respeito à dignidade humana.843
Três observações: 1. A partir daí,844 segmentos da doutrina france-
œŠȱ™ŠœœŠ›Š–ȱŠȱŠę›–Š›ȱšžŽȱ‘˜žŸŽȱ˜ȱŠ•Š›Š–Ž—˜ȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱŽȱ›Ž–ȱ

842
A respeito da submissão geral do Direito Administrativo ao regime dos direitos fundamen-
tais, v. SANTOS NETO. O impacto dos direitos humanos fundamentais no direito administrativo.
œ™ŽŒ’ęŒŠ–Ž—Žȱœ˜‹›ŽȱŠȱœž‹–’œœ¨˜ȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱŠ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œȱŽȱŠ˜œȱ•’–’Žœȱ
mais “modernos”, além dos manuais, que hoje em dia já se referem ao assunto —, ver, por
exemplo, FREITAS, Juarez. Direito fundamental à boa Administração Pública e o reexame dos
institutos da autorização de serviço público, da convalidação e do “poder de polícia adminis-
trativa”. In: ARAGÃO; MARQUES NETO. Direito administrativo e seus novos paradigmas, espe-
cialmente p. 326-332; FREITAS. Direito fundamental à boa administração, p. 114-125; MORGADO.
Direito à boa administração: recíproca dependência entre direitos fundamentais, organização
e procedimento. Revista de Direito da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, p. 68 et seq.
843
Conséil d’État statuant au contentieux, nº 136.727, 27 de outubro de 1995. Da decisão, alguns
trechos merecem destaque: “Considerando que cabe à autoridade investida de poder de polícia
municipal tomar todas as medidas para prevenir um atentado à ordem pública; que o respeito
à dignidade da pessoa humana é um dos componentes da ordem pública; que a autoridade investida de
poder de polícia municipal pode, mesmo na ausência de circunstâncias locais particulares, interditar
uma atração que atente contra o respeito à dignidade da pessoa humana [...]; Considerando que, por seu
próprio objeto, uma tal atração atenta contra a dignidade da pessoa humana; [...] Considerando que o
respeito ao princípio da liberdade de trabalho e ao da liberdade de comércio e de indústria não
é obstáculo a que a autoridade investida de poder de polícia municipal interdite uma atividade,
mesmo lícita, se uma tal medida é a única capaz de prevenir ou fazer cessar um atentado contra
Šȱ ˜›Ž–ȱ ™ø‹•’ŒŠȄȱ ǻ›Šž³¨˜ȱ —˜œœŠǰȱ ›’˜œȱ —˜œœ˜œǼǯȱ ’œ™˜—ÇŸŽ•ȱ Ž–DZȱ ǀ‘Ĵ™DZȦȦ   ǯ•Ž’›Š—ŒŽǯ
˜žŸŽ››ȦŠĜŒ‘ ž›’–’—ǯ˜ǵ˜•Œ’˜—ƽ›ŽŒ‘ ž›’–’—ǭ’Ž¡ŽƽŖŖŖŖŖŝŞŝŝŝŘřǁǯȱ
Acesso em: 06 jan. 2010. A mesma decisão foi tomada para o caso Ville d’Aix-en-Provence, que
trata de hipótese idêntica (o prefeito desta outra cidade interditou a atração local de arremesso
de anões alguns meses depois do prefeito de Morsang-sur-Orge). No Brasil, ver o comentário
ao caso de Joaquim Barbosa Gomes (O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa
humana na jurisprudência francesa. ADV Advocacia Dinâmica – Seleções Jurídicas, p. 17 et seq.).
844
Embora tenha havido referência à dignidade humana em leis e decisões judiciais francesas
anteriores. O legislador francês, em lei de 30 de setembro de 1986 sobre liberdade de
comunicação, limitou-a “na medida requerida [...] ao respeito à pessoa humana”. No Código
Civil francês, lei de 1994 introduziu, no art. 16, dispositivo segundo o qual “a lei assegura a
primazia da pessoa, proibindo-se qualquer atentado a ela e garantido o respeito do ser humano
desde o começo de sua vida”. O Conselho Constitucional, também em 1994, com base na
primeira frase do preâmbulo da Constituição francesa de 1946, considerou que “a salvaguarda

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
336 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Pública, para eles de crucial importância no exercício da polícia, com a


inclusão de considerações de moralidade pública (mencionamos o ponto
ao tratar da razão pública como critério de controle);845 2. A prática difunde-
se pelo mundo: há arremessos de anões em estados americanos (embora
seja expressamente proibido na Flórida e em Nova Iorque); na Austrália,
projeto de lei proibindo a atração não conseguiu ser aprovado; 3. Longe
de ser unanimidade, a decisão é contestada até na doutrina francesa.846
A partir do precedente, a doutrina, brasileira e internacional, passou
ŠȱŠę›–Š›ȱšžŽȱŠȱ™˜•ÇŒ’Šȱ™˜ŽȱœŽȱ™›ŽœŠ›ȱŠȱŒ˜—’Œ’˜—Š›ǰȱ›Žœ›’—’›ȱ˜žȱœŠŒ›’ęŒŠ›ȱ
o exercício de direitos em prol da dignidade humana. O problema é saber
˜ȱšžŽȱ’œœ˜ȱœ’—’ęŒŠ.
Na maioria das vezes, apela-se à máxima kantiana segundo a qual
˜ȱ‘˜–Ž–ȱ“Š–Š’œȱ™˜ŽȱœŽ›ȱ›ŠŠ˜ȱŒ˜–˜ȱ–Ž’˜ȱ™Š›Šȱž–ȱę–ǰȱ–ŠœȱŒ˜–˜ȱž–ȱ
ę–ȱ Ž–ȱ œ’ȱ –Žœ–˜ǯȱ ˜Šœȱ Ž—Š’ŸŠœȱ ™Š›Šȱ Šȱ Ž—œ’ęŒŠ³¨˜ȱ Žȱ œŽžȱ Œ˜—Žø˜ȱ
foram formuladas, inclusive na doutrina brasileira,847 mas o assunto con-
tinua polêmico.848
ŠÇŠȱ™˜œœÇŸŽ•ȱ·ȱŽ—Š›ȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱ™˜—˜œȱŽȱŒ˜—œŽ—œ˜DZȱ˜›ž›ŠȱÇœ’ŒŠȱ
e psicológica, violência, escravidão são condutas violadoras da dignidade;
prestação de educação fundamental e de algum nível mínimo de assistência
social são condutas promotoras da dignidade humana.

da dignidade da pessoa humana contra toda forma de sevícia e de degradação é um princípio de


valor constitucional”. O próprio Conselho de Estado fez uso da expressão em dois casos anteriores:
ao falar sobre controle de salários (’—’œ›ŽȱŽœȱŠěŠ’›Žœȱœ˜Œ’Š•ŽœȱŽȱŽȱ•ȂŽ–™•˜’ȱŒǯȱ¢—’ŒŠȱ ȱŽȱ•Šȱ
˜Œ’Ž·ȱ ›’Ĝ—ŽȬŠ›·Œ‘Š•, julgado em 11 de julho de 1990), destacou a importância de “preservar a
dignidade da pessoa” e disse que “os princípios deontológicos fundamentais relativos ao respeito
à pessoa humana que se impõem ao médico em suas relações com seus pacientes não cessam
com a morte destes” (Millhaudǰȱ“ž•Š˜ȱŽ–ȱŖŘȱŽȱ“ž•‘˜ȱŽȱŗşşřǼǯȱ˜—ǰȱŽ’•ȱet al concluem que “a
Šę›–Š³¨˜ȱ˜ȱȁ›Žœ™Ž’˜ȱ¥ȱ’—’ŠŽȱŠȱ™Žœœ˜Šȱ‘ž–Š—ŠȂȱ™Ž•˜œȱ“ž•Š˜œȱCommune de Morsang-sur-
Orge e Ville d’Aix-en-Provence constitui prolongamento de soluções bem estabelecidas no Direito
Positivo” (BRAIBANT et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 733).
845
ȱ ȱŠœœž—˜ȱ·ȱ™˜•¹–’Œ˜ǰȱ™˜›šžŽȱ›ŽĚŽŽǰȱœŽž—˜ȱŠž›’ŒŽȱ
Šž›’˜žǰȱ›Ž•ž¦—Œ’ŠȱŠȱ˜ž›’—Šȱ›Š—-
cesa em estender a abrangência do poder de polícia para além da “ordem material e exterior”
ǻœžŠœȱ™Š•ŠŸ›ŠœǼǯȱŽœ–˜ȱŠœœ’–ǰȱŠž˜›ŽœȱŒ˜–˜ȱŽ—·ȱ‘Š™žœȱŠę›–Š–ȱšžŽȱŠȱ–˜›Š•’ŠŽȱ™ø‹•’ŒŠȱ
seria o quarto componente do conceito de Ordem Pública (ao lado da segurança, da saúde e
da tranquilidade). Há mesmo alguns julgados do Conselho de Estado que, na opinião de al-
guns, indicam decisões tomadas com base nesse critério (por ex., em Société “Les Films Lutetia”,
“ž•Š˜ȱŽ–ȱŗşśşǰȱ˜ȱ˜—œŽ•‘˜ȱŽ—Ž—ŽžȱšžŽȱŠȱ™›˜“Ž³¨˜ȱŽȱž–ȱꕖŽȱ™˜ŽȱœŽ›ȱ™›˜’‹’Šȱȃ¥ȱ›Š£¨˜ȱ
de seu caráter imoral e de circunstâncias locais”) (CHAPUS, René. Droit administratif général,
t. I, p. 707-711, item II - L’orde public en tant que bon ordre moral). Retomaremos o assunto
quando falarmos do critério da razão pública.
846
Destaque-se que o anão foi litisconsorte da casa de espetáculos na impugnação da decisão do
prefeito, alegando que a municipalidade o privou da possibilidade de receber remuneração
digna. Alegou, ainda, que a atividade era segura (ele usava roupa especial e capacete). Na
doutrina, de modo crítico à conclusão do Conselho de Estado, v. JEROIN. La dignité de la
™Ž›œ˜——Žȱ‘ž–Š’—ŽDZȱ˜žȱ•Šȱ’ĜŒ’•Žȱ’—œŽ›’˜—ȱȂž—Žȱ›¸•Žȱ–˜›Š•ŽȱŠ—œȱ•Žȱ›˜’ȱ™˜œ’’ǯȱRevue du
Droit Public; MOUTOUH. La dignité de l’homme et droit. Revue du Droit Public, p. 159 et seq.
847
BARCELLOS. ȱŽęŒ¤Œ’Šȱ“ž›Ç’ŒŠȱ˜œȱ™›’—ŒÇ™’˜œȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š’œ: o princípio da dignidade da pessoa
humana.
848
V. crítica em HOERSTER. En defensa del positivismo juridico.

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 336 20/08/2014 14:30:36


SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
337

Ora, se a polícia pode reprimir condutas privadas que violem a


dignidade humana, como o conceito poderia lhe servir de limite?
Simples e, ao mesmo tempo, complexo. O exercício do poder de polícia
não pode implicar a prática de atos administrativos que tratem o homem como
–Ž’˜ȱ™Š›Šȱž–ȱę–DzȱšžŽȱ•‘Žȱ’–™›’–Š–ȱ’—œž™˜›¤ŸŽ•ȱœ˜›’–Ž—˜ȱÇœ’Œ˜ȱŽȦ˜žȱ–Ž—Š•.
É claro que o critério vai se prestar a alguma utilização retórica, tanto
que, na maioria dos casos, impor restrições a direitos não é circunstância
que o particular aceite com sorrisos. Mas a violação à dignidade humana,
no ato de polícia, é muito mais do que o desconforto com a atuação da
Administração Ordenadora. Seria o caso, por exemplo, de desapropria-
ções sem prévio pagamento; do banimento de cães-guias para cegos; da
imposição da castração de animais não violentos; da imobilização integral
com o uso de algemas nos pés e mãos; de medidas de polícia das moléstias
que impedissem qualquer comunicação do doente com o mundo exterior.
O segundo limite mais recente ao exercício da polícia só perde em
celebridade para o primeiro. Claro que estamos nos referindo à proporcio-
nalidade. Falar da proporcionalidade como limite ao exercício do poder de
polícia é, simplesmente, falar do princípio da proporcionalidade, com todos
os chavões (“balas de canhão não podem matar pássaros”), discussões
teóricas, exemplos, propostas de incremento em seu grau de racionalidade
etc. que o tema vem suscitando ao longo dos últimos quinze anos, no Brasil,
e cinquenta, no mundo.
A proporcionalidade surgiu como controle ao poder executivo do
Estado. Só depois é que se passou a falar em juízo de proporcionalidade
dos atos legislativos. O que faz todo o sentido: se a atividade de polícia
administrativa é, na essência, a atividade de impor restrições a direitos, é o
juízo de proporcionalidade quem vai graduar tal atividade de compressão.
Não é necessário apelar a conhecimentos extravagantes para justi-
ꌊ›ȱŠȱŠę›–Š’ŸŠǯȱŠ‹ŽȬœŽǰȱ™Ž•Šœȱ•’³äŽœȱŽȱ•Ž¡¢ǰȱšžŽȱŠȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȱ
é decorrência natural de um sistema de direitos em que muitas de suas
normas possuem natureza principiológica. A polícia é a mão que opera a
balança cujos pratos são a proporcionalidade, mas dentro do propósito da
realização de interesses transindividuais. Autores clássicos já diziam que,
na ideia mesma de Direito, vai contida a possibilidade da limitação de seu
exercício.849 Como diz Marçal Justen, “a proporcionalidade que informa
˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ·ȱ›ŽĚŽ¡˜ȱŠȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȱšžŽȱŽœ¤ȱ—Šȱ‹ŠœŽȱ˜œȱ
direitos sujeitos à limitação”.850ȱ–ȱ›’˜›ǰȱ—Ž–ȱœŽȱ›ŠŠȱŽȱ›ŽĚŽ¡˜DZȱŽ•Šȱé a
proporcionalidade dos direitos.

849
“O que devemos, entretanto, assinalar é que, na ideia de garantia de um direito vai implícita a
possibilidade de limitação desse direito ou do respectivo exercício” (LIMA. Princípios de direito
administrativo, p. 304).
850
JUSTEN FILHO. Curso de direito administrativo, p. 461.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
338 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A única diferença entre a proporcionalidade incidente na gradação


entre dois direitos titularizados por particulares e a que incide junto ao
poder de polícia é o fundamento da limitação. No primeiro caso, os direitos
limitam-se para que possam se realizar máxima e mutuamente (nos casos
em que isso seja possível); no segundo, a limitação faz-se não em favor da
coexistência dos dois direitos, mas na da pluriexistência dos vários direitos
individuais atendidos pelo objetivo de interesse público.
Šȱ‘’™àŽœŽȱ˜ȱŒ˜—Ě’˜ȱŽ—›ŽȱŠȱ•’‹Ž›ŠŽȱŽȱŽ¡™›Žœœ¨˜ȱŽȱœž“Ž’˜ȱšžŽȱ
usa megafone na praça e o direito ao sossego dos moradores do edifício em
frente, há dois direitos individuais: o direito do protestante e os direitos
individuais dos moradores. Na circunstância de uma desapropriação para
a construção de colégio público, há o direito do titular do imóvel, e, em
paralelo, o direito à educação de um sem-número de crianças.
Sem falar na compatibilidade essencial entre a proporcionalidade e
outras teorias clássicas de controle do ato administrativo, como a teoria do
abuso de poder,851ȱŸŽ›’ęŒŠ–˜œȱšžŽǰȱŽ–ȱŽ›Š•ǰȱŠœȱ›ŽŽ›¹—Œ’Šœȱ˜ž›’—¤›’Šœȱ
nacionais à proporcionalidade na polícia administrativa centram-se em
dois aspectos: (i) na proibição do excesso nos meios pelos quais a polícia
administrativa vai atuar (proporcionalidade-necessidade) e (ii) na relevância
da intervenção pública de polícia (proporcionalidade estrita).
É no primeiro sentido que vêm as lições de Celso Antônio Bandeira
de Mello,852 Odete Medauar,853 Ruy Cirne Lima (embora sem se referir ao
termo),854 José dos Santos Carvalho Filho,855 Raquel Urbano de Carvalho,856

851
LIMA. O princípio da proporcionalidade e o abuso de poder no exercício do poder de polícia
administrativa. Revista dos Tribunais, p. 123-127, passim.
852
“Mormente no caso da utilização de meios coativos, que, bem por isso, interferem energica-
mente com a liberdade individual, é preciso que a Administração se comporte com extrema
cautela, nunca se servindo de meios mais enérgicos que os necessários à obtenção do resultado pre-
tendido por lei, sob pena de vício jurídico que acarretará responsabilidade da Administração”
(BANDEIRA DE MELLO. Curso de direito administrativo, p. 830, grifos no original). Celso
Antônio ainda menciona dois modos de excesso: mais intenso ou mais abrangente do que
deveria ser. Mais intenso: o uso de violência para dissolver reunião não autorizada, porém
™ŠŒÇꌊǯȱŠ’œȱŠ‹›Š—Ž—ŽDZȱŠȱŠ™›ŽŽ—œ¨˜ȱŽȱ˜ŠȱŠȱŽ’³¨˜ȱŽȱž–ȱ“˜›—Š•ǰȱšžŠ—˜ȱœŽ›’Šȱ™˜œœÇŸŽ•ȱ
˜‹œŠ›ȱœžŠȱŒ’›Œž•Š³¨˜ȱ—ž–Šȱ›Ž’¨˜ȱŽœ™ŽŒÇꌊȱ™Š›Šȱ™›˜ŽŽ›ȱ˜ȱ‹Ž–ȱ“ž›Ç’Œ˜ȱŽŽ—’˜ǯ
853
“[...] Proporcional à gravidade da possível perturbação — por exemplo: em locais de grande
ŠĚž¡˜ȱŽȱ™Žœœ˜Šœȱœ¨˜ȱ’–™˜œŠœȱ›Žœ›’³äŽœȱ–Š’œȱŠ–™•ŠœȱšžŽȱŽ–ȱ•˜ŒŠ’œȱœŽ–ȱ—Ž—‘ž–ȱŠĚž¡˜ȱŽȱ
pessoas” (MEDAUAR. Direito administrativo moderno, p. 339).
854
“Nenhuma restrição à liberdade individual deverá exceder jamais a medida absolutamente
necessária à preservação da ordem e da segurança públicas” (LIMA. Princípios de direito
administrativo, p. 307).
855
“O princípio da proporcionalidade deriva, de certo modo, do poder de coerção de que dispõe a
Administração ao praticar atos de polícia. Realmente, não se pode conceber que a coerção seja
utilizada indevidamente pelos agentes administrativos, o que ocorreria, por exemplo, se usada
onde não houvesse necessidade” (CARVALHO FILHO. Manual de direito administrativo, p. 83).
856
“O requisito da proporcionalidade no exercício da polícia administrativa impõe que a atua-
³¨˜ȱ Šȱ –’—’œ›Š³¨˜ȱ ꚞŽȱ ›Žœ›’Šȱ Š˜œȱ Š˜œȱ ’—’œ™Ž—œ¤ŸŽ’œȱ ¥ȱ ŽęŒ¤Œ’Šȱ Šȱ ꜌Š•’£Š³¨˜ȱ Žȱ ˜ȱ

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
339

–’›ȱŽĴ˜ȱŽȱ›Šø“˜ǯ857 No segundo sentido, a contribuição de Lucas


Rocha,858 e, na doutrina portuguesa, a de Marcelo Caetano.859 Poucos
autores falam nos três elementos da proporcionalidade — adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito — aplicados à polícia
administrativa.860 Há análise extensa, na doutrina brasileira, sobre o con-
trole de razoabilidade incidente junto ao poder de polícia: é o capítulo de
José Roberto Pimenta Oliveira.861
A doutrina estrangeira é mais vertical: embora alguns autores tra-
tem do assunto sob a ótica da vedação do excesso nos meios e sanções de
polícia,862 ou como proporcionalidade estrita,863 há obras que desenvolvem
o assunto.864 Santamaría Pastor, em visão um pouco diferente da maioria,

condicionamento voltado aos interesses da sociedade” (CARVALHO. Curso de direito adminis-


trativo: parte geral, intervenção do Estado e estrutura da administração, p. 331). Logo após, a
autora cita Celso Antônio (no trecho que citamos) e Rogério Silva, ambos analisando a propor-
cionalidade sob a ótica da proporcionalidade-necessidade.
857
ȱ ȃǽǯǯǯǾȱ ȱ šžŽȱ —˜œȱ ŸŠ•Žȱ ¥ȱ Œ˜—ꐞ›Š³¨˜ȱ Šȱ ›Ž›Šȱ Šȱ ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȱ ˜œȱ –Ž’˜œȱ Š˜œȱ ꗜ no exer-
cício da atividade de polícia administrativa. Com efeito, a autoridade não deve ir além do
necessário à satisfação do interesse público, não utilizar meios violentos, vexatórios, ilegais,
exagerados, pois o objetivo da polícia administrativa não deve ser a eliminação dos direitos
individuais, mas assegurar seu exercício, conformando-o com as exigências do bem-estar e
tranquilidade social” (ARAÚJO. Curso de direito administrativo, p. 999, grifos no original).
858
ȱ ȃŽœœŽȱœŽ—’˜ǰȱŠȱę–ȱŽȱšžŽȱ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱ˜ȱ™˜Ž›ȱŽȱ™˜•ÇŒ’Šȱ˜ȱœŠ˜ȱœŽ“Šȱ•ŽÇ’–˜ǰȱ·ȱ—ŽŒŽœ-
œ¤›’˜ǰȱŠ•·–ȱŽȱ•Ž’ȱŽœ™ŽŒÇꌊǰȱšžŽȱŠȱ›Žœ›’³¨˜ȱŠ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŠœȱ•’‹Ž›ŠŽœȱ™›’ŸŠŠœȱ™˜œœŠȱœŽ›ȱ“žœ’ęŒŠŠȱ
em face dos ganhos para a sociedade” (FURTADO. Curso de direito administrativo, p. 656).
859
“O emprego imediato de meios extremos contra ameaças hipotéticas ou mal desenhadas cons-
titui abuso de autoridade. Tem de existir proporcionalidade entre os males a evitar e os meios
a empregar para a sua prevenção” (CAETANO. Princípios fundamentais do direito administrativo,
p. 278. Em sentido próximo, Ruy Cirne Lima (Princípios de direito administrativo, p. 321).
860
Em certo sentido, Marçal Justen Filho é exceção, já que menciona dois dos três elementos, e
substitui o terceiro por uma compatibilidade geral com o Ordenamento, verbisDZȱȃ œœ˜ȱœ’—’ę-
ca que qualquer limitação, prevista em lei ou em ato administrativo, somente será válida se
a) adequada, b) necessária e c) compatível com os valores consagrados na Constituição e nas leis.
ŽšžŠ³¨˜ȱœ’—’ęŒŠȱž–ȱŸÇ—Œž•˜ȱŽȱŒŠžœŠ•’ŠŽȱ•à’ŒŠȱŽ—›ŽȱŠȱ™›˜Ÿ’¹—Œ’Šȱ•’–’Š’ŸŠȱŠ˜ŠŠȱŽȱ
˜ȱę–ȱŒ˜—Œ›Ž˜ȱšžŽȱŠȱ“žœ’ęŒŠǯȱȱ—ŽŒŽœœ’ŠŽȱ’–™äŽȱŠȱŠ˜³¨˜ȱŠȱ™›˜Ÿ’¹—Œ’ŠȱŽȱ–Ž—˜›ȱ™˜Ž—Œ’Š•ȱ
de restritividade possível dentre as diversas que se revelarem como adequadas. A compatibi-
lidade com a Constituição impede a consagração de providências restritivas que suprimam ou
ofendam valores ou direitos fundamentais, consagrados como intangíveis” (JUSTEN FILHO.
Curso de direito administrativo, p. 461). Maria Sylvia também menciona a “proporcionalidade dos
–Ž’˜œȱŠ˜œȱꗜȄȱŒ˜–˜ȱœŽ—˜ȱž–ŠȱŽœ™·Œ’ŽȱŽȱ™›˜™˜›Œ’˜—Š•’ŠŽȬ—ŽŒŽœœ’ŠŽȱŽȱž–Šȱ™›˜™˜›Œ’˜-
nalidade em sentido estrito (DI PIETRO. Direito administrativo, p. 113).
861
OLIVEIRA. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no direito administrativo brasileiro,
p. 414-513.
862
CHAPUS. Droit administratif général, t. I, p. 699; GAUDEMET. Droit administratif, p. 314.
863
Pierre-Laurent Frier e Jacques Petit elaboram procedimento analítico sobre como a propor-
cionalidade incide como limite à polícia que soa parecido com a proposta de ponderação de
Alexy, minus o dado cognitivo presente na mais recente fórmula da ponderação deste. Falam
que, de um lado, deve-se colocar a intensidade das ameaças à Ordem Pública, e, do outro, a
importância das liberdades afetadas pela polícia e o grau de oferecimento de ameaça à Ordem que
elas importam em concreto (FRIER; PETIT. Précis de droit administratif, p. 263).
864
RAMÍREZ-ESCUDERO. El control de proporcionalidad de la actividad administrativa, p. 484-575;
MINET. Droit de la police administrative, p. 249-253.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
340 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

embora mencione o favor libertatis na polícia, que não é outra coisa senão
a proporcionalidade-necessidade, fala na proporcionalidade ao momento
da atribuição de faculdades para o exercício da polícia. Isto é, não apenas na
dosagem da sanção, ou genericamente nas medidas de polícia, mas a
proporcionalidade incidiria também ao vetar “a atribuição de poderes
–ŠŽ›’Š•–Ž—ŽȱŽœ—ŽŒŽœœ¤›’˜œȱ™Š›Šȱ•˜›Š›ȱ˜œȱꗜȱŒ˜—Œ›Ž˜œȱŠȱšžŽȱ’—Ž›-
venção se propõe”.865
Desse recenseamento, vê-se que a proporcionalidade, decorrência
de sistema de direitos que assumem a estrutura, em muitos casos, de
normas-princípio, incide como graduadora da intervenção ordenadora do
Estado. É o guia da ponderação entre a necessidade de preservação dos
direitos individuais afetados e a necessidade de otimização da realização
dos interesses públicos.
˜—Œ›ŽŠ–Ž—Žǰȱœ’—’ęŒŠȱšžŽȱŠȱ–’—’œ›Š³¨˜ȱø‹•’ŒŠǰȱ—˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱ
Šȱ™˜•ÇŒ’ŠǰȱŽŸŽ›¤ȱŠ˜Š›ȱ–Ž’˜œȱ•˜’ŒŠ–Ž—ŽȱŒŠ™Š£ŽœȱŽȱ˜‹Ž›ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱ
pretendida, e, dentre esses meios, deve escolher aquele que, capaz de pro-
ž£’›ȱ˜œȱ›Žœž•Š˜œȱŒ˜–ȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱœŽ–Ž•‘Š—ŽǰȱœŽ“Šȱ˜ȱ–Ž—˜œȱ•Žœ’Ÿ˜ȱŠ˜ȱ’›Ž’˜ȱ
atingido. Duas outras exigências: o benefício atingido pelo uso da polícia
deve suplantar os gravames causados; e, ao planejar a ação de polícia, a
Administração Pública não deve se “empoderar” de mais capacidades e
atribuições do que as que realmente precisará.
O terceiro “novo” limite ao exercício da polícia costuma ser apresen-
tado em conjunção à proporcionalidade: é a necessidade de preservação do
núcleo essencial do direito que esteja sendo objeto da ação de polícia.
A razão para isso é singular: segundo uma das teorias a respeito
de tal conceito — a teoria externa, aplicável ao tema geral da restrição dos
direitos fundamentais —, o resultado de uma ponderação entre princípios
é, necessariamente, aquele que não afeta o núcleo essencial do direito que
está sendo restringido. O resultado da incidência da proporcionalidade
é o próprio núcleo dos direitos fundamentais. Fala-se, então, num núcleo
essencial relativo.
A teoria concorrente, a teoria internaǰȱ œž™äŽȱ šžŽȱ Šȱ Žę—’³¨˜ȱ ˜œȱ
limites do Direito seja algo interno a ele, quer dizer, que não se faça de
modo relativo à incidência dos demais direitos e circunstâncias. Quando
se argumenta que certa situação “por óbvio” não está incluída na área de
proteção de determinado direito — na linha “andar pelado pelas ruas não
se inclui no direito à liberdade de expressão artística” —, está-se pressu-
™˜—˜ǰȱ–Žœ–˜ȱœŽ–ȱœŠ‹Ž›ǰȱž–ŠȱŽę—’³¨˜ȱ™›·ȬŒ’›Œž—œŠ—Œ’Š•ȱ˜œȱ•’–’Žœȱ˜ȱ
direito fundamental. Daí que o núcleo essencial dos direitos fundamentais
não vai passar a depender das circunstâncias concretas e dos direitos em
jogo: tratar-se-á de núcleo essencial absoluto.

865
SANTAMARÍA PASTOR. Principios de derecho administrativo general II, p. 252.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
341

De fato: se os limites dos direitos independem de sua incidência


comparativa com a incidência dos demais nos casos concretos, isso pres-
supõe a existência de um núcleo essencial também preexistente a eles, um
núcleo essencial tirado “da essência das coisas”, da “natureza do direito”
ou de qualquer outra construção do tipo.
Diga-se, ainda, que a discussão a respeito desses conceitos — teoria
externa ou interna acerca da restrição dos direitos fundamentais, núcleo
essencial relativo ou absoluto — produz consequências práticas, em especial
no plano do exercício do ônus argumentativo. Quem aceita uma teoria interna
œ˜‹›Žȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œǰȱŽȱŠȱ’Ž’ŠȱŽȱ—øŒ•Ž˜ȱŽœœŽ—Œ’Š•ȱ™›ŽŽę—’˜ǰȱ
aceitará com mais facilidade conclusões que descartam a necessidade da
“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ™›Ž–’œœŠœǯ866ȱꗊ•ǰȱœŽȱ˜ȱ’›Ž’˜ȱȃŒŽœœŠȱ˜—Žȱ˜ȱ
abuso começa”, ele também só poderá ser restringido até seu núcleo ima-
—Ž—ŽǰȱŒž“Šȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ·ǰȱŽ–ȱ–ž’˜œȱŒŠœ˜œǰȱŠŠȱŒ˜–˜ȱ’–™•ÇŒ’Šǯ867
Estamos usando a terminologia tradicional da teoria dos direitos
fundamentais. No Direito Administrativo, não é comum falar-se desse
modo. A contraposição clássica é entre limitações e sacrifícios de direitos. As
limitações — também chamada condicionamentos ou conformação de
direitos — não incapacitam “de verdade” o exercício dos direitos e, por
isso, não são indenizáveis. O sacrifício, ao contrário, é indenizável: ele
retira do titular a possibilidade de exercício útil do direito.868 O exemplo
comum de sacrifício de direito é a desapropriação. Exemplo de limitação
é a imposição, por lei, de gabarito para a altura de imóveis.
Pois bem: embora muitos administrativistas professem a defesa de
ideias extraídas da teoria dos princípios e da teoria padrão dos direitos
fundamentais, continuam defendendo a existência de categorias conceituais
como esta — limitações e sacrifícios — as quais, em rigor, pressupõem uma
teoria interna das restrições dos direitos fundamentais e uma teoria absoluta
do núcleo essencial, coisa incompatível com a teoria-padrão dos direitos
fundamentais.
Se se aceita que direitos fundamentais são direitos prima facie, isto é,
não absolutos, ponderáveis à luz do caso concreto, deve-se aceitar que não
existem núcleos essenciais predeterminados e, assim, que não existem dife-
renciações predeterminadas entre limitações e condicionamentos de direitos.

866
Por todos, ver Jane Reis Gonçalves Pereira (Interpretação constitucional e direitos fundamentais,
p. 174-182).
867
ȱ ȃ–ȱŸŽ›ŠŽǰȱŠȱ˜ž›’—Šȱ—¨˜ȱŠ™›ŽœŽ—Šȱž–ȱ–·˜˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱ™Š›ŠȱŽŽ›–’—Š›ȱŽœœŽœȱ•’–’ŽœDzȱ
sua percepção é considerada quase intuitiva e está relacionada com a evidência desses limites
para o senso comum” (BARCELLOS. Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional, p. 61).
868
“O que importa assinalar, no entanto, é que as limitações administrativas à liberdade e à proprie-
dade, por serem simples conformação do Direito, não geram qualquer direito à indenização, ao
contrário do sacrifício do direito que consiste na ação autorizada do Estado para diretamente
combalir o próprio direito do administrado (como ocorre com a desapropriação, a servidão e o
tombamento) [...]” (PIRES. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade, p. 319).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
342 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Repita-se: a distinção clássica de Direito Administrativo entre limitações


e sacrifícios de direitos é incompatível com a teoria dos direitos fundamentais e
com a teoria dos princípios, na medida em que pressupõe a existência de um grau
™›·Ȭę¡Š˜ȱŽȱŠŒŽ’Š‹’•’ŠŽȱ™Š›ŠȱŠœȱ›Žœ›’³äŽœǰȱŠȱ™Š›’›ȱ˜ȱšžŠ•ȱ‘¤ȱ˜ȱ’—›Žœœ˜ȱ—ž–ȱ
núcleo essencial dos direitos fundamentais e, portanto, o sacrifício do direito.
Se os direitos impõem deveres prima facie, a busca por critérios
prévios de distinção entre limitações e sacrifícios é, no limite, a busca por
um núcleo essencial absoluto dos direitos fundamentais. Quando se fala
em “conformação” e em “sacrifício” de direitos, a própria terminologia
remete à noção de um núcleo essencial absoluto de direitos fundamentais,
preexistente a qualquer ponderação ou à incidência da proporcionalidade.
Exemplos da adoção da teoria interna e do núcleo absoluto são
–ž’˜œȱ—Šȱ˜ž›’—ŠǰȱŽ–‹˜›Šȱ›Š›Š–Ž—Žȱ’œœ˜ȱŽŒ˜››ŠȱŽȱ›ŽĚŽ¡¨˜ǯȱ™Ž—Šœȱ
œŽȱŠę›–ŠǰȱŽ–ȱŒŽ›˜ȱ–˜–Ž—˜ǰȱŠȱŒŽ—›Š•’ŠŽȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œȱŽȱ
a importância da proporcionalidade, e, em outro, diz-se que há “limites”
(prévios à ponderação) que não podem ser violados.869
Quais limites podem ser esses, senão os que aparecerão argumen-
tadamente após a incidência da proporcionalidade na restrição a direitos?

ȱ ˜Ž–˜œȱž’•’£Š›ǰȱŽȱ–˜˜ȱꐞ›Š˜ǰȱŠœȱ•’³äŽœȱŽȱ•Ž¡Š—›ŽȱŽȱ›Š¨˜ȱŽ–ȱœŽžȱ•’Ÿ›˜ȱœ˜‹›ŽȱœŽ›-
869

viços públicos, que adota conceitos e percepções teóricas tributárias da teoria dos direitos fun-
damentais e da teoria dos princípios, mas que, aparentemente, acredita num núcleo essencial
absoluto, tanto que adota e menciona a distinção entre limitações e violações de direitos. Ao
tratar das atividades privadas autorizadas, informa que, em tais casos, o Estado poderá impor
obrigações de fazer aos particulares autorizatários de modo mais intenso ao que poderia nas
atividades privadas propriamente ditas — mas o limite a tal imposição é “o núcleo essencial
Šȱ•’Ÿ›ŽȬ’—’Œ’Š’ŸŠȄǯȱ˜—ž˜ǰȱ—¨˜ȱŽ•’–’Šȱ˜ȱšžŽȱ’œœ˜ȱœ’—’ęŒŠ›’ŠDzȱŠę›–ŠǰȱŠ™Ž—ŠœǰȱšžŽȱȃ‘¤ȱž–ȱ
mínimo daquele direito subjetivo de iniciativa privada que deverá sempre ser resguardado”. E
dá, como exemplos de imposição de obrigações de fazer que violassem o “núcleo essencial da
livre-iniciativa”, uma empresa privada de plano de saúde que fosse obrigada a tratar pessoas
que não fossem seus clientes, uma universidade privada que fosse obrigada a custear percen-
tagem mínima de bolsistas, cinemas obrigados a realizar sessões públicas ou à divulgação de
ꕖŽœȱŽȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜DzȱŽ–™›ŽœŠȱŽȱŽ•ŽŒ˜–ž—’ŒŠ³¨˜ȱ˜‹›’ŠŠȱŠȱ˜›—ŽŒŽ›ȱ›Šž’Š–Ž—Žȱ
serviço à parcela mais pobre da população; banco obrigado a oferecer linhas de microcrédito.
Não concordamos que esses sejam, em todos os casos e circunstâncias, bons exemplos de inter-
venções públicas desproporcionais, e, por conseguinte, violadoras do núcleo essencial — sem-
pre relativo — da livre-iniciativa. As circunstâncias podem variar, os direitos em jogo podem
assumir importâncias distintas, a capacidade econômica da empresa pode comportar uma
’—Ž›ŸŽ—³¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱ–ž’˜ȱ‹Ž–ȱ“žœ’ęŒŠŠȱŽŒǯȱŽ—œŠ—˜ȱŽ–ȱŒ’—Ž–ŠǰȱœŽȱœŽȱŽ—Ž—ŽȱšžŽȱŠȱ˜‹›’-
Š³¨˜ȱŠȱŽ¡’‹’³¨˜ȱŽȱꕖŽœȱ·ȱ’—Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•ǰȱŒ˜–˜ȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱŽ¡’‹’³¨˜ȱŽȱŒž›ŠœȬ–Ž›ŠŽ—œȱ
—ŠŒ’˜—Š’œǵȱŽ—œŠ—˜ȱ—Šœȱ’—œ’ž’³äŽœȱꗊ—ŒŽ’›Šœǰȱ˜ȱšžŽȱ’£Ž›ȱšžŠ—˜ȱ¥œȱ™›˜™˜œŠœȱŽȱ’—œ’ž’-
ção de seguro popular, elaboradas, padronizadas e eventualmente impostas pela SUSEP? Será
que violaria o núcleo essencial da livre-iniciativa se o maior grupo de universidades privadas
do país, o grupo Estácio de Sá, com mais de setenta e oito unidades ao longo do país, e mais
de cento e vinte mil alunos, fosse obrigado pelo Poder Público, caso já não contasse com um
programa de bolsas (o que é o caso), a oferecer um por cento de suas vagas a pessoas carentes?
Não existem respostas fáceis a essas perguntas, ou seja, não existem respostas prontas, tudo
é relativo, e o guia de tudo é a máxima da proporcionalidade (ARAGÃO. Direito dos serviços
públicos, p. 202 et seq., os exemplos estão nas p. 209-210).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
343

O núcleo essencial é antes o resultado da aplicação da proporcionalidade


em seu tríplice aspecto — adequação, necessidade, proporcionalidade
estrita — do que um grau de restrição “além do qual não se pode ir” e de
que não se fala muita coisa senão que existe.
Ou seja: o respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais
limita o exercício da polícia por ser garantia conexa à da proporcionali-
ŠŽǰȱŽȱ—¨˜ȱ™˜›šžŽȱŽ¡’œŽ–ȱŠ˜œȱœž™›Š•ŽŠ’œȱšžŽȱ˜ȱ’Ž—’ęšžŽ–ȱ™›·Ÿ’Šȱ
e abstratamente a qualquer situação prática. Ele não é limite à proporcio-
nalidade: ele é o resultado dela.
As chamadas restrições e limitações administrativas — os sacrifícios
e conformações de direitos — não são diferenciáveis na teoria senão com
o apelo a generalidades que remetem à teoria interna e ao núcleo essen-
cial absoluto. àȱ œŽȱ ™˜Ž›¤ȱ ’Ž—’ęŒŠ›ȱ ž–Šȱ ŠžŠ³¨˜ȱ ™ø‹•’ŒŠȱ Žœ™›˜™˜›Œ’˜—Š•ǰȱ
logo, inconstitucional e indenizável, à luz das circunstâncias fáticas e jurídicas
incidentes no caso concreto.
Exemplo: em tese, o gabarito predial é limitação: é aplicável indis-
tintamente a todos, foi instituído por lei, não transfere patrimônio do par-
ticular para o Poder Público. Esses são os três critérios comumentemente
Š™˜—Š˜œȱ™Ž•Šȱ˜ž›’—Šȱ™Š›ŠȱŠȱ’Ž—’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱž–Šȱ•’–’Š³¨˜ǯȱȱœ’žŠ³¨˜ȱ
não seria indenizável. Porém, o que dizer de gabarito municipal editado
posteriormente ao início da construção de prédio cujos andares comerciais
começam a partir do terceiro (o andar que passou a ser novo limite)? O
prédio já não possui sua principal utilidade.
Na mesma situação, digamos que o prédio em construção seria
destinado à construção de hospital público longamente esperado pela
população: os três primeiros andares seriam destinados ao estacionamento
de ambulâncias, o quarto e seguintes, às instalações hospitalares. Limitação
ou sacrifício?
Pensemos no exemplo de Carlos Ari Sundfeld sobre o tombamento
Žȱž–Šȱø—’ŒŠȱ›žŠǯȱ›ŠŠȬœŽȱŽȱ•’–’Š³¨˜ȱǻ·ȱŽ›Š•ǰȱŠę—Š•ǰȱ·ȱtoda a rua) ou de
œŠŒ›’ÇŒ’˜ȱǻ·ȱŽœ™ŽŒÇꌘǰȱŠę—Š•ȱ·ȱsó uma rua)?870
As respostas não são simples e, aqui, ao contrário do que sugere
Sundfeld, pensamos que o problema não se localiza nos critérios da dis-
tinção, mas nela própria. A partir do momento em que se aceita a ideia de
que normas principiológicas de direitos fundamentais instituem direitos
prima facie, como faz a teoria padrão dos direitos fundamentais, todos os
direitos fundamentais serão restringíveis. O problema passará a ser, de
modo mais produtivo, a “žœ’ęŒŠ³¨˜ȱ™›¤’ŒŠȱŽȱ˜ŠœȱŠœȱ›Žœ›’³äŽœȱ’—Œ’Ž—Žœȱœ˜‹›Žȱ
os direitos fundamentais, não mais a distinção teórica entre atos que simples-
–Ž—ŽȱŽœŠ‹Ž•ŽŒŽ–ȱ•’–’ŽœȱŽȱ˜œȱšžŽȱŸ¨˜ȱŠ•·–ȱ’œœ˜ǰȱœŠŒ›’ęŒŠ—˜ȱ’›Ž’˜œǯ

870
SUNDFELD. Condicionamentos e sacrifícios de direitos: distinções. Revista Trimestral de Direito
Público – RTDP, p. 81.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
344 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Como é o estado atual do entendimento doutrinário, há desoneração


Š›ž–Ž—Š’ŸŠȱŠȱ™Š›’›ȱŠȱšžŠ•’ęŒŠ³¨˜ȱŠȱœ’žŠ³¨˜ȱŒ˜–˜ȱȃ•’–’Š³¨˜ȄǯȱŠȱ
proposta aqui formulada, já que nenhuma restrição a direito fundamental
™˜Ž›¤ȱœŽ›ȱšžŠ•’ęŒŠŠȱŠ™›’˜›’œ’ŒŠ–Ž—ŽȱŒ˜–˜ȱȃ•’–’Š³¨˜Ȅȱ˜žȱȃœŠŒ›’ÇŒ’˜Ȅǰȱ
nada poderá ser aceito sem bons argumentos.871
Em síntese: os novos limites ao exercício da polícia, nem tão novos
assim, são o respeito à dignidade humana — a polícia administrativa deverá
›ŠŠ›ȱ˜ȱ‘˜–Ž–ȱŒ˜–˜ȱę–ȱŽ–ȱœ’ȱ–Žœ–˜ǰȱ“Š–Š’œȱŒ˜–˜ȱ–Ž’˜ȱ™Š›ŠȱšžŠ•šžŽ›ȱ
propósito —, a máxima da proporcionalidade e, em decorrência, a garantia
do conteúdo essencial dos direitos fundamentais que estejam em questão.
Os direitos fundamentais do particular, em contraposição aos direitos
fundamentais da coletividade, implicam a instituição de direitos e deveres
prima facie, cuja resolução prática demandará a realização de ponderação
de interesses guiada pela proporcionalidade. Mas é importante lembrar
que, se direitos, mesmo fundamentais, não são absolutos, seus núcleos
essenciais também só serão delimitados para e a partir dos casos concretos.
1ȱŒ˜—›Š’à›’˜ǰȱŠœœ’–ǰȱŠę›–Š›ȱŠȱŠŽœ¨˜ȱ¥ȱŽ˜›’Šȱ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—-
damentais e, ao mesmo tempo, acreditar numa categorização entre “con-
formações” e “sacrifícios” de direitos, ou entre “restrições” e “limitações
administrativas”. Tudo isso é restrição de direito e, como tal, pode ou não
ser aceito, a depender das razões jurídicas e fáticas apresentadas.
A “teoria do poder de polícia”, se é que existe, foi, nesse ponto,
ultrapassada pela teoria dos direitos fundamentais.

2.5 Novíssimos limites: pragmatismo e razão pública


Os dois novíssimos limites são o pragmatismo e a razão pública.
Como se pode dar uma incidência do “princípio” do pragmatismo
jurídico em relação ao poder de polícia? Como ele poderia limitá-lo?
Na verdade, a ideia é que sua incidência faça-se pelo controle das
razões apresentadas para a ação de polícia, como argumento de reforço ou de
descarte de determinado plano de ação. Trata-se de controle argumentativo
— é assim que funciona nosso “princípio”.
O “princípio” do pragmatismo jurídico opera ao impor à autoridade
administrativa a obrigação da adoção de medidas de polícia fundadas na

871
As ideias dos últimos parágrafos são tributadas a Virgílio Afonso Silva (O conteúdo essencial
˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œȱŽȱŠȱŽęŒ¤Œ’ŠȱŠœȱ—˜›–ŠœȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š’œǯȱRevista de Direito do Estado,
p. 23-51, passim e Direitos fundamentaisDZȱŒ˜—Žø˜ȱŽœœŽ—Œ’Š•ǰȱ›Žœ›’³äŽœȱŽȱŽęŒ¤Œ’Šǰȱpassim). Sobre
núcleo essencial dos direitos fundamentais, v. GAVARA DE CARA. Derechos fundamentales y
desarrollo legislativo: la garantía del contenido esencial de los derechos fundamentales en la Ley
Fundamental de Bonn; LOPES. A garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais.
Revista de Informação Legislativa.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
345

›ŽŠ•’£Š³¨˜ȱŽȱ™›˜™àœ’˜œȱŽȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜ȱ“žœ’ęŒ¤ŸŽ’œȱ¥ȱ•ž£ȱŽȱ˜˜œȱ
os seus standards de incidência (ver capítulo 1, primeira parte), isto é, à luz
(1) de sua inclusão nos sentidos textuais possíveis da Constituição, (2) de
sua compatibilidade material com a Constituição, (3) de tais propósitos
œŽ›Ž–ȱ˜œȱ–Š’œȱŽęŒ’Ž—ŽœȱǻŽ—›Žȱ˜™³äŽœȱœŽ–Ž•‘Š—ŽœǼȱ™Š›ŠȱŠȱ˜‹Ž—³¨˜ȱŽȱ
maior bem-estar social geral, (4) de a produção de tais consequências mais
ŽęŒ’Ž—ŽœȱœŽ›ȱŒŽ›Šȱ˜žǰȱ—˜ȱ–Ç—’–˜ǰȱ‹ŠœŠ—Žȱ™›˜Ÿ¤ŸŽ•ȱǻ˜ȱŒ˜—›¤›’˜ȱ—¨˜ȱœŽȱ
“žœ’ęŒŠ›’ŠȱŠȱ›Žœ›’³¨˜ȱŠ˜œȱ’›Ž’˜œȱž—Š–Ž—Š’œǼǰȱǻśǼȱŽȱŠ’œȱŒ˜—œŽšž¹—-
Œ’Šœȱ™˜œ’’ŸŠœȱ“žœ’ęŒŠ˜›ŠœȱŠȱ™˜•ÇŒ’Šȱ˜Œ˜››Ž›Ž–ȱœ’–ž•Š—ŽŠ–Ž—ŽȱŠȱœŽžȱ
exercício ou, no máximo, num futuro próximo, (6) do fato de as alegadas
razões de interesse público para o exercício da polícia estarem baseadas
em razoável base empírica, (7) de tais razões de interesse público não se
basearem em alegações fundacionais (dogmas, pressuposições acríticas,
ȃŸŽ›ŠŽœȄǼǰȱǻŞǼȱŽȱŠœȱ“žœ’ęŒŠ’ŸŠœȱ™Š›Šȱ˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŠȱ™˜•ÇŒ’ŠȱœŽ›Ž–ȱŒ˜—-
textuais às circunstâncias de seu exercício.
Exemplos ilustrarão o ponto. Os números correspondem aos
standards.
(1) Não é possível pretender produzir resultados que não estejam
contidos nos sentidos textual e material da Constituição. No exercício da
polícia, não é possível, por exemplo, pretender exterminar raça de animais
por razões de conveniência estética (viola materialmente o art. 225, §1º,
VII, da CRFB/88).
(2) Não é possível a restrição de propriedades privadas com o
propósito da construção de espaçoportos (a facilitação do pouso de óvnis
não é propósito que consiga ser encaixado em qualquer dispositivo da
Constituição).872
(3) Não é possível proibir a circulação de veículos durante três
dias corridos por semana, sob o propósito da melhoria do trânsito ou da
šžŠ•’ŠŽȱ˜ȱŠ›ǰȱœŽȱ˜’œȱ’ŠœȱŽœ™ŽŒÇꌘœȱ™›˜ž£’›Ž–ȱŒ˜–™›˜ŸŠŠ–Ž—Žȱ
resultado semelhante.
(4) Seria inválido o exercício de polícia administrativa econômica
que, sem maiores estudos, a pretexto de apostar —˜ȱŒ˜—›˜•ŽȱŠȱ’—ĚŠ³¨˜ǰȱ
resolvesse tabelar os preços de bens e serviços, durante certo tempo, por
valores aleatórios. Entre tantas inconstitucionalidades de tal medida, uma
é a de que se trata de polícia antipragmática por raciocinar a partir da
produção de consequências incertas ou improváveis.
(5) Não é válida a ação de polícia de trânsito que, no início de janeiro,
œ˜‹ȱ˜ȱ™›ŽŽ¡˜ȱ˜œȱžž›˜œȱŽœę•ŽœȱŽȱ‹•˜Œ˜œȱŽȱŠ›—ŠŸŠ•ȱǻšžŽȱœàȱ˜Œ˜››Ž›¨˜ȱ
em meados de fevereiro), restringe a circulação em diversas vias públicas.

872
Embora, sob certas circunstâncias, a questão possa se reconduzir à promoção do turismo.
Exemplo: na cidade de Varginha, em Minas, seria pelo menos defensável a construção de tal
instalação.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
346 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

ǻŜǼȱ1ȱŠ—ħž›Ç’ŒŠȱŠȱŠ³¨˜ȱŽȱ™˜•ÇŒ’ŠȱšžŽǰȱŠ™˜’ŠŠȱŽ–ȱ’œŒžÇŸŽ•ȱŽ˜›’Šȱ
Œ’Ž—ÇꌊȱŸ’—Œž•Š—˜ȱŠȱ™›˜™ŠŠ³¨˜ȱŠȱŽ—žŽȱ¥ȱ–Š—žŽ—³¨˜ȱŽȱœŠ–Š–-
baias, pretenda ingressar nas residências e exterminá-las. O problema
não é a possibilidade de ingressar em residências para combater a den-
gue — exemplo clássico de polícia —, é a falta de razoável base empírica
assecuratória da produção das consequências esperadas.
(7) Interditar a realização de atividades religiosas por fundamentos
materiais como a contradição aos “bons costumes” é exercício inválido do
poder de polícia, pois se baseia numa alegação fundacional (o fato de que
possa existir um padrão de “boa sociedade” com seus costumes próprios).
(8) Bailes de Carnaval não podem ser proibidos com o propósito de
ŽŸ’Š›ȱŠȱ™›˜•’Ž›Š³¨˜ȱŽȱ˜Ž—³Šœȱ˜ȱŒ˜›Š³¨˜ǰȱ—Šȱ–Ž’ŠȱŽ–ȱšžŽȱŠœȱ“žœ’ę-
cativas não se referem às circunstâncias do exercício da polícia.
É claro que muitas incidências desses standards de nosso princípio
do pragmatismo jurídico indicam conclusões a que se chegaria por outros
argumentos. Assim, no caso (1), a simples incidência da legalidade já
resolveria o problema; em (3), a proporcionalidade-necessidade também
daria conta da solução. Mas o fato é que os argumentos se somam, não
se excluem. Em rigor, muitas das conclusões atualmente indicadas pela
incidência da máxima da proporcionalidade poderiam ser obtidas por
argumentos clássicos como a “interpretação sistemática”, a “interpretação
teleológica” e, no Direito Administrativo, a teoria dos desvios de poder.
A proposição de novos “princípios” e limites ao exercício da polícia ad-
–’—’œ›Š’ŸŠȱ—¨˜ȱœŽȱ¤ȱŒ˜–ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱŽȱœž‹œ’ž’›ȱ˜žȱ›Ž’ęŒŠ›ȱ•’–’Žœȱ
Š—’˜œǰȱŽȱœ’–ȱŒ˜–ȱŠȱŽȱœ˜–Š›ȬœŽȱ—˜ȱ’ŽŠ•ȱŽȱž–ŠȱŠžŠ³¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱŽęŒ’Ž—Žȱ
e controlada.
Falemos agora do limite consistente na razão pública. Como aplicar
a razão pública como limite ao exercício da polícia?
Também aqui, como no caso de nosso “princípio” do pragmatismo
jurídico, a razão pública funcionará como controle aos argumentos que
possam fundar o exercício da polícia. Só poderão ser aceitas razões uni-
versalizáveis, tendencialmente neutras, não polêmicas. Razões que não
pertençam, de modo exclusivo, a uma das doutrinas abrangentes. Se a
polícia é a atividade de impor condicionamentos a direitos individuais em
prol do interesse geral, é natural que se faça com argumentos capazes de
serem aceitos por todo o estrato social. Além disso, os requisitos de apelo
ŠȱŒ›Ž—³ŠœȱŽ›Š’œǰȱ˜›–ŠœȱŽȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱŠŒŽ’ŠœȱŽȱ–·˜˜œȱŒ’Ž—Çꌘœȱ—¨˜ȱ
controvertidos continuam válidos.
Observação interessante: a teoria francesa clássica do poder de
polícia sempre defendeu que a polícia só se ocupasse da “ordem material
e exterior, considerada como um estado de fato oposto ao da desordem,
o estado de paz oposto ao estado de confusão”. Hauriou escreveu que a

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 2 – A DISCIPLINA DAS ATIVIDADES PRIVADAS...
347

polícia “não persegue a ordem moral nas ideias e nos sentimentos”. Caso
isso ocorresse, aproximar-se-ia da Inquisição e da opressão de consciên-
cia.873 Embora a própria jurisprudência do Conselho de Estado francês
haja, em alguns casos, ultrapassado os limites defendidos pela lição — há
‘’™àŽœŽœȱŽ–ȱšžŽȱꕖŽœȱ˜›Š–ȱ™›˜’‹’˜œȱ™˜›ȱŒ˜—œ’Ž›Š³äŽœȱ–˜›Š’œȱȯǰȱŠ˜ȱ
menos a principal fundamentação dos acórdãos não foi a análise de con-
teúdo das obras, mas o grave comprometimento à ordem pública causado
por sua exibição.874
Ora bem: o critério da razão pública é, de certo modo, complementar
à lição de Hauriou. Em princípio, a polícia administrativa não deve se ocupar
de considerações subjetivas, íntimas, ideológicas ou morais. Não há razão de
’—Ž›ŽœœŽȱ ™ø‹•’Œ˜ȱ šžŽǰȱ —ž–ȱ ™›’–Ž’›˜ȱ –˜–Ž—˜ǰȱ “žœ’ęšžŽȱ ž–Šȱ ŠžŠ³¨˜ȱ
de polícia “moral”.
Contudo, podem existir manifestações que, à luz das circunstâncias
Œ˜—Œ›ŽŠœǰȱ Ž¡ħŠ–ȱ Š•ž–ȱ ›Šžȱ Žȱ ŒŽ›ŒŽŠ–Ž—˜ȱ ˜ȱ Ž¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱ Žȱ ’›Ž’˜œȱ
’—’Ÿ’žŠ’œȱŽ–ȱ™›˜•ȱŽȱž–ȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜ȱšžŠ•’ęŒŠ˜ȱ™˜›ȱŒ˜—œ’Ž›Š-
ções de conteúdo. Nesses casos, a polícia administrativa só poderá funcionar se
as suas razões para a ação forem razões públicas. Na excepcionalidade de ser
necessário atuar junto a um controle material, a Administração Ordenadora
só poderá se legitimar pelo apelo a argumentos neutros, universalizáveis,
capazes de serem aceitos por toda a sociedade.
¡Ž–™•˜DZȱ ™Š›ŽŒŽȬ—˜œȱ ™˜œœÇŸŽ•ȱ ˜ȱ Œ˜—ęœŒ˜ȱ Žȱ •’Ÿ›˜œȱ Žȱ ™›˜™ŠŠ—Šȱ
nazista ou fascista, porque, para além da previsão legal, as razões do
antinazismo e do antifascismo são conforme à razão pública. O mesmo
raciocínio serve para legitimar a repressão administrativa a manifestações
hiperchauvinistas, apologistas do totalitarismo e da violência. Poder de
polícia não é apenas licença para construção e repressão a barulho. A ati-
vidade é mais do que isso: é ordenar a vida em sociedade, nos limites em
que isso seja possível, sem pretender direcioná-la, mas mantendo, sempre,
˜ȱŽœ™Š³˜ȱ™Š›ŠȱŠȱŠĚž¹—Œ’ŠȱŽȱŒ˜–™˜›Š–Ž—˜œȱŽȱ–ž—’Ÿ’œäŽœǯ
Por tal motivo, a razão pública é o critério de controle que melhor
sintetiza a relação entre polícia e democracia. Se o Estado só atua com base
em razões públicas, é um Estado Democrático de Direito do século XXI; se
o Estado, ao excepcionalmente ingressar no mérito das atividades sociais,
apenas restringe as que forem radicalmente antidemocráticas, e isso com
base em razões públicas e postas a público, é um Estado Democrático de
Direito do século XXI que se preocupa em continuar sendo um.

873
HAURIOU. Précis de droit administratif et de droit public, p. 549.
874
BRAIBANT et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, p. 735. Por esse argumento,
tais decisões seriam pragmatistas.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
348 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

2.6 Conclusão parcial: limites dos limites


É preciso ser realista na propositura de limites à ação pública. A
Administração Pública brasileira é, em muitos grotões, amadora. Não
se espere que, ao lado de cada administrador público, esteja um Richard
Posner de carimbão, apto a chancelar a intervenção mais pragmaticamente
Œ˜››ŽŠȱŽ–ȱŒŠŠȱŒŠœ˜ǯȱ—›Žȱ˜ŠœȱŠœȱœž›™›ŽœŠœȱšžŽȱŠȱ‹’˜›ŠęŠȱŽȱ ˜‘—ȱ
Rawls possa nos revelar, certamente não estará a de que ele elaborou
seu argumento pensando em cidades como Santo Antônio dos Milagres,
interior do Piauí.
Uma interpretação jurídico-pragmatista das capacidades institucio-
nais de grande parte da Administração Pública brasileira será contextualista
e, em o sendo, saberá dar o desconto à grossa incapacidade que assola
muito do mato e do asfalto do nosso Brasil profundo.
Então o capítulo é, sob muitos aspectos, inútil?
De forma alguma. Ele é útil como todo princípio regulador, ele serve
como todo ideal: como guia (incompleto e sujeito a críticas) do caminho
a seguir, como ponte entre o que já temos e o que desejamos construir.

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CAPÍTULO 3

O FOMENTO PÚBLICO E O IDEAL DE UM


ESTADO DEMOCRÁTICO, EFICIENTE E NÃO
PATERNALISTA

3.1 Introdução
Como poucas atividades incluídas na expressão intervenção875 do
Estado sobre a economia, o fomento público arrisca-se a caminhar sobre o
ę˜ȱŽȱž–Šȱ—ŠŸŠ•‘ŠȱŒž“˜œȱŽ¡›Ž–˜œȱœ¨˜ȱ˜ȱŽ¡ŒŽœœ˜ȱŽȱŠȱŠ•ŠǯȱžǰȱŒ˜—’—žŠ—˜ȱ
nas expressões literárias, é atividade que arrisca tornar-se o que já se falou
da psicanálise: o mal cuja cura pretende ser.
Existem dois grandes problemas circundando o fomento público:
(i) os critérios de sua concessão e (ii) sua intensidade e duração.876 O fomento

875
Eros Roberto Grau discute, em certo ponto de A Ordem Econômica, se o designativo para referir-
œŽȱ ¥œȱ Š’Ÿ’ŠŽœȱ ŽœŠŠ’œȱ Žȱ ’—Ěž¹—Œ’Šȱ œ˜‹›Žȱ Šȱ ŽŒ˜—˜–’Šȱ ŽŸŽ›’Šȱ œŽ›ȱ ’—Ž›ŸŽ—³¨˜ȱ ˜žȱ ŠžŠ³¨˜ǯȱ
De um lado, toda atuação do Estado na economia é, de certa forma, interventiva, e, como se
trata de atuação do Estado numa área que não é sua — o mercado —, acabaria por assumir
contornos propriamente interventivos. Por outro lado, no caso da prestação ou da regulação
dos serviços públicos, área em que a titularidade é sempre estatal (art. 175, CRFB), o termo
intervenção —¨˜ȱœŽ›’Šȱ“žœ’ęŒ¤ŸŽ•ȱȯȱ–Ž•‘˜›ȱœŽ›’ŠȱŠžŠ³¨˜ǯȱŽ’œ›ŠŠȱŠȱ™˜•¹–’ŒŠǰȱ˜™Š–˜œȱ™Ž•Šȱ
utilização intercambiável das expressões, a uma porque a distinção é de reduzido potencial
explicativo, a duas, porque o uso fungível já é comum em nossa doutrina, e, pensando em ter-
mos pragmáticos — sendo quase um campo de prova de nossa tese —, não se deve pretender
–˜’ęŒŠ›ȱžœ˜œȱŒ˜—œŠ›Š˜œȱšžŠ—˜ȱ˜œȱ‹Ž—ŽÇŒ’˜œȱŽ¡™•’ŒŠ’Ÿ˜œȱœ¨˜ȱ™ŽšžŽ—˜œǯȱŽ“ŠȱŒ˜–˜ȱ˜›ǰȱ—˜ȱ
caso do fomento público, ter-se-ia precisamente uma intervenção, e não uma atuação, já que o
˜Ž›ȱø‹•’Œ˜ȱŽœ¤ȱŽ—Š—˜ȱ’—Ěž’›ǰȱ™Ž•˜ȱŒ˜—Ÿ’Žǰȱ—˜ȱ–Ž›ŒŠ˜ǯȱǯȱ ǯȱA Ordem Econômica
na Constituição de 1988, p. 93 et seq. Em sentido contrário àquele que foi aqui defendido, mas por
razões distintas, v. MOREIRA NETO. Direito regulatório, p. 129, grifos no original: “As interven-
ções estatais [...] podem ser Œ•Šœœ’ęŒŠŠœ em quatro tipos quanto a seu conteúdo: a regulatória, a
concorrencial, a monopolista e a sancionatória, não considerada como modalidade de intervenção
o fomento público, que não tem natureza impositiva”.
876
Outra questão importante circunda o fomento: a (ausência de) transparência. Por seu aspecto
difuso, deixaremos de tratá-la, neste capítulo, até porque, em certos casos, a simples adoção

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CAPÍTULO 4

A NEORREGULAÇÃO
PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES

4.1 Introdução: os problemas da regulação pública


Este capítulo trata de alguns problemas associados à regulação
pública da economia. Ele também resenha propostas apresentadas para
solucioná-los. Na maioria das vezes, são propostas de sabor pragmatista.1059
O capítulo é menos extenso do que os demais porque lida com instru-
mentos tentados no calor do momento. A palavra neorregulação é usada
para indicar o conjunto de instrumentos contemporâneos que pretendem
›Žœ˜•ŸŽ›ȱŠ’œȱŽœŠę˜œǯ1060
Os dois principais problemas da regulação pública são (i) a infor-
mação e (ii) a adesão.
(i) O Poder Público não possui domínio epistêmico total sobre a rea-
lidade. A informação é sempre mais complexa do que qualquer tentativa
de instrumentalizá-la. Hayek observava que mesmo os sistemas de preços,
šžŽȱœ¨˜ȱœ’œŽ–ŠœȱŽȱ›Š—œ–’œœ¨˜ȱŽȱ’—˜›–Š³¨˜ȱŽ–ȱ›Ž›Šȱ–Š’œȱŽęŒ’Ž—Žœȱ
do que governos — pois possuem como motivador o autointeresse das pes-
soas1061ȱȯǰȱ—¨˜ȱŒ˜—œŽžŽ–ȱ›Š—œ–’’›ȱŒŽ›˜ȱ’™˜ȱŽœ™ŽŒÇꌘȱŽȱ’—˜›–Š³¨˜ǰȱ

1059
O pressuposto operacional deste capítulo é o de que a regulação pública seja uma função
autônoma em relação ao poder de polícia. Como se sabe, esta não é, no fundo, nossa posição
(cf. capítulo 2 da segunda parte).
1060
Haverá algum benefício na função de descarga da argumentação jurídica com o uso do neolo-
gismo? Acredita-se que há algum benefício residual na utilização.
1061
Uma possível comprovação dessa alegação é o sucesso dos mercados de previsão (predicion
markets). Tratam-se de sites de previsão de eventos futuros e incertos, em que os interessados
apostam dinheiro em determinado resultado. O mais famoso deles é o Intrade (<www.intrade.
Œ˜–ǁǼǰȱšžŽǰȱŠȱŽœ™Ž’˜ȱŽȱ‘ŠŸŽ›ȱœ’˜ȱŽŒ‘Š˜ȱ™Ž•˜ȱ˜ŸŽ›—˜ȱŠ–Ž›’ŒŠ—˜ǰȱŠ™›ŽœŽ—˜žȱ›Žœž•Š˜œȱ
mais precisos a respeito do resultado da eleição presidencial americana de 2012 (Barack Obama
vsǯȱ’Ĵȱ˜–—Ž¢Ǽȱ˜ȱšžŽȱŠœȱ™Žœšž’œŠœȱŽȱ˜™’—’¨˜ȱ›Š’Œ’˜—Š’œǯȱžŠ—˜ȱ‘¤ȱ’—‘Ž’›˜ȱ™›à™›’˜ȱŽ–ȱ
“˜˜ǰȱŠœȱ™Žœœ˜Šœȱ™›˜ž£Ž–ȱ’—˜›–Š³¨˜ȱ–Š’œȱŠŒž›ŠŠȱ˜ȱšžŽȱšžŠ—˜ȱ—¨˜ȱ‘¤ȱǻȱet al.
The Promise of Prediction Markets. Science).

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 415 20/08/2014 14:30:40


JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
416 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

que é única a cada pessoa, prática e bastante dispersa.1062 Podemos chamá-la


de informação derivada do know-how. Sistemas de preços são bons para
transmitir informações como “houve safra recorde de uva no sul do Brasil”,
mas são incapazes de transmitir informações da espécie “como se produz
o tradicional vinho do vinhedo Fombrauge”.1063
De certa forma, é bom que seja assim. A inovação — tecnológica e
social — surge, também e especialmente, a partir dos espaços deixados
pelo acaso. Um regulador inteiramente informado é um regulador pode-
roso demais.
Sob a perspectiva de o regulador público, no entanto, não ter acesso
a toda a informação relevante, ou não conseguir operá-la, é problemático.
É fonte de erros, que acabam sendo repassados para toda a sociedade. Um
regulador desinformado é um regulador ruim.
O problema da (ii) adesão é parente próximo ao da informação. O
regulador deve contar com algum nível de adesão dos regulados à sua
pauta de ação. O mercado regulado aceita o regulamento proposto pela
agência, ou a norma é objeto de rejeição? É claro: críticas sempre existirão,
e faz parte do agir estratégico do mercado regulado que existam. O ponto
é outro. Trata-se de diferença de grau. Um regulamento radicalmente
contestado pelo mercado é, potencialmente, um regulamento inefetivo.1064
Grosso modo, o problema da informação é enfrentado por meio
de duas espécies de soluções. A saída é ou buscar a centralização da in-
formação, ou assumir sua dispersão. O problema da adesão é enfrentado
por meio de instrumentos que ou incluam os regulados no processo de
elaboração do ato regulatório, ou busquem ultrapassar as barreiras psico-
lógicas que podem gerar a rejeição da ação. Os próximos itens detalham
os pontos.

1062
ȱ 1ȱŒ•Š›˜ȱšžŽȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ—Šȱ›Š—œ–’œœ¨˜ȱŠȱ’—˜›–Š³¨˜ȱ—¨˜ȱ·ȱ˜ȱø—’Œ˜ȱŠ˜›ȱŠȱœŽ›ȱŒ˜—œ’Ž›Š˜ȱ
quando da adoção de um sistema de preços. Alguns sugerem, por exemplo, que uma bolsa
de apostas em relação a atividades terroristas conseguiria reunir informação de modo mais
ŽęŒ’Ž—Žȱ ˜ȱ šžŽȱ ˜œȱ œ’œŽ–Šœȱ ›Š’Œ’˜—Š’œȱ Žȱ ’—Ž•’¹—Œ’Šǯȱ ˜›ȱ ˜ž›˜ȱ •Š˜ǰȱ –ž’Šœȱ ™Žœœ˜Šœȱ
rejeitam tal ideia, considerando-a bizarra. Michael Sandel traz uma série de exemplos em que
a introdução de sistemas de mercado soa contraintuitiva, em seu livro What Money Can’t Buy
(SANDEL. What Money can´t Buy: the Moral Limits of Markets). O problema parece se inserir
num debate mais amplo a respeito dos limites morais da economia dos incentivos. Ver, quanto
Šȱ’œœ˜ǰȱž‘ȱǯȱ ›Š—ȱǻ›’—œȱĴŠŒ‘Ž: Untangling the Ethics of Incentives).
1063
HAYEK. The Use of Information in Society. The American Economic Review.
1064
Por qual motivo o Poder Público haveria de propô-lo ou de mantê-lo? Aqui, novamente, ou
por um problema de informação — o Poder Público não possui domínio sobre os pressupostos
de fato —, ou por uma determinação de vontade dos órgãos deliberativos e/ou executivos, o
Estado acredita que sua mantença produzirá um efeito social global positivo. O Poder Público
acredita que a rejeição poderá ser superada no futuro, que seus benefícios superem seus
prejuízos, ou que há alguma razão simbólica para a manutenção da regulação.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
417

4.2 Reduzindo os problemas de informação


4.2.1 Centralização da informação
A primeira e mais intuitiva estratégia para lidar com os problemas
de dispersão de informação é buscar centralizá-la num órgão ou entidade,
em regra de natureza pública. Este órgão irá recolher a informação disper-
sa entre empresas, entidades e órgãos públicos, e universidades/grupos
de pesquisa, a respeito de determinada regulação. Uma vez recolhida a
informação, ele irá tratá-la criticamente, e, provavelmente, submetê-la à
apreciação dos setores regulados e da sociedade civil.
Nesse tópico, a experiência norte-americana do ĜŒŽȱ˜ȱ —˜›–Š’˜—ȱ
Š—ȱŽž•Š˜›¢ȱ슒›œȱ— OIRA — vem a calhar. O Escritório de Informação e de
Assuntos Regulatórios, na tradução literal, faz parte do ĜŒŽȱ˜ȱŠ—ŠŽ–Ž—ȱ
and Budget, órgão de assessoramento do Presidente da República na admi-
nistração federal e na elaboração do orçamento. Cass Sunstein, responsável
pelo OIRA durante quatro anos — de 2009 a 2012 —, relata suas funções.
Em primeiro lugar, uma função epistêmica: o OIRA recolhe infor-
mações dispersas pelo Governo federal e pela sociedade. “O OIRA detém
™›’–˜›’Š•–Ž—ŽȱŠȱž—³¨˜ȱŽȱŠ“žŠ›ȱŠȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŽȱŠ›ŽŠ›ȱŸ’œäŽœȱŽȱ™Ž›œ-
pectivas saídas de uma ampla gama de fontes, tanto de dentro quanto de
fora do Governo federal. Não seria demais descrever o OIRA como, em
grande parte, um agregador de informação”.1065
O OIRA irá, por exemplo, recolher informações dispersas entre
diversos ministérios — o Ministério da Energia sabe sobre as implicações
energéticas da proposta; o Ministério dos Transportes, sobre os efeitos no
setor dos transportes, e assim por diante — e, na medida do possível, pro-
mover um consenso intergovernamental razoável entre os departamentos:
esta é, também, uma de suas funções. Muitas vezes, quando o consenso
não existe, o OIRA irá postergar a edição da norma até que seja possível.
Caso inexista, a norma não será editada.1066
Outra das funções do OIRA é garantir o bom funcionamento das
Œ˜—œž•Šœȱ Žȱ Šž’¹—Œ’Šœȱ ™ø‹•’ŒŠœǯȱ ›ŠŠȬœŽȱ Žȱ ’Ž—’ęŒŠ›ȱ ˜œȱ ™˜—˜œȱ Ž–ȱ
discussão, e assegurar que as sugestões e críticas sejam consideradas e,
ŽŸŽ—žŠ•–Ž—Žǰȱ’—Œ˜›™˜›ŠŠœȱ—ŠȱŸŽ›œ¨˜ȱꗊ•ȱŠȱ—˜›–Šȱ˜žȱŠȱŠ³¨˜ǯȱȱ ȱ
também se ocupa de proceder a análises de custo-benefício das medidas
regulatórias que se cogitam adotar, mas, de acordo com Sunstein, este não
é o aspecto dominante da atuação do órgão.

1065
ȱ  ǯȱ‘ŽȱĜŒŽȱ˜ȱ —˜›–Š’˜—ȱŠ—ȱŽž•Š˜›¢ȱ슒›œDZȱ¢‘œȱŠ—ȱŽŠ•’’Žœǰȱ™ǯȱřǯȱȱŸŽ›œ¨˜ȱ
consultada para a elaboração deste capítulo foi o primeiro rascunho. O artigo, com algumas
alterações, foi publicado, sob o mesmo título, na Harvard Law Review (v. 126, 1838, [2013]).
1066
ȱ  ǯȱ‘ŽȱĜŒŽȱ˜ȱ —˜›–Š’˜—ȱŠ—ȱŽž•Š˜›¢ȱ슒›œDZȱ¢‘œȱŠ—ȱŽŠ•’’Žœǰȱ™ǯȱŚǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
418 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

No Governo Federal brasileiro, não há nada com as mesmas caracte-


rísticas. Entre nós, inexiste órgão ou departamento governamental que, de
modo sistemático e estruturado, consolide as opiniões intragovernamentais,
’—Ž›˜ŸŽ›—Š–Ž—Š’œȱŽȱŠȱœ˜Œ’ŽŠŽǰȱŽȱ꜌Š•’£ŽȱŠȱšžŠ•’ŠŽȱŽȱ˜ȱ›Žœž•Š˜ȱ
das consultas e audiências públicas. Pode-se dizer que, residualmente, a
ŠœŠȱ’Ÿ’•ȱŠȱ›Žœ’¹—Œ’ŠȱŠȱŽ™ø‹•’ŒŠȱȯȱŽǰȱ—Ž•ŠǰȱŠȱž‹Œ‘ŽęŠȱ ž›Ç’ŒŠȱȯȱ
assuma parte destas tarefas. Ainda assim, neste último caso, o foco é jurí-
dico. Chegou-se a cogitar que o PRO-REG, o Programa de Fortalecimento
da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação, vinculado à Casa
Civil, viesse a funcionar desse modo. Tal não ocorreu. O PRO-REG é um
centro de análises e pesquisas, mas não possui capacidade executiva.
O Governo federal brasileiro não optou por reduzir o problema da
informação por meio da centralização. A estratégia é outra.

4.2.2 Assumir a dispersão da informação


Em nossa experiência, assume-se a dispersão da informação como
dado inerente à regulação, e, talvez de modo impensado, vive-se a experiên-
cia da pluralidade epistêmica. Diversos órgãos, ministérios, fundações,
autarquias e setores possuem seus próprios mecanismos de coleta de infor-
mação; as visões parciais fazem-se presentes a todo o tempo. Há trocas
pontuais de informação entre órgãos e agências. O resultado é, por vezes,
pouco coerente — ainda que, paradoxalmente, um pano de fundo de infor-
mação dispersa possa ser mais conforme a um ideal de experimentação.
ŽȱŠ˜ǰȱ˜ȱŽ¡™Ž›’–Ž—Š•’œ–˜ȱ›Žž•Šà›’˜ȱ™˜Žȱ̘›ŽœŒŽ›ȱ—˜ȱŽ››Ž—˜ȱ
minado das visões parciais e dos dados incompletos. Com a centralização,
˜ȱ›Žœž•Š˜ȱꗊ•ȱ·ȱ–Š’œȱ›ŠŒ’˜—Š•ǰȱŽȱŽ—ŽȱŠȱœŽ›ȱœ˜Œ’Š•–Ž—Žȱ–Š’œȱŽŽ’Ÿ˜ǯȱ˜ȱ
entanto, a centralização da informação pode acabar redundando, justamente
pela pluralidade de perspectivas que estarão sendo consideradas, numa situação
em que quase nenhuma norma ou ação regulatória venha a ser tomada.
žŠ—˜ȱ˜ȱ›Žž•Š˜›ȱ™˜œœž’ȱŠ–™•ŠȱŽ¡Ž—œ¨˜ȱŽȱŠ˜œȱŒ˜—ę¤ŸŽ’œȱŠȱ
considerar, ele pode acabar sofrendo de uma espécie de doença da decisão.
Como conhece extensivamente os riscos da atuação pública, não toma
decisão alguma. Caso, no entanto, ignore parte deles, poderá decidir em
favor da regulação.
Ora, faz sentido regular quando se sabe que há riscos? Depende. Os
riscos mais salientemente percebidos pelo regulador são riscos presentes,
ou extraíveis das experiências passadas mais facilmente recuperadas pela
memória (social e individual).1067 No entanto, a realidade é mais complexa

1067
Trata-se da incidência da heurística da disponibilidade na avaliação dos riscos da regulação.
Ver discussão à frente no texto principal.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
419

do que o cálculo racional: os riscos percebidos como preexistentes, ou


prováveis, antes da regulação, podem mostrar-se desimportantes após a
introdução da regulação.
E não é só isso: a realidade é dinâmica. O mercado, mercê da inova-
ção tecnológica e empresarial, frequentemente consegue se adaptar ao que
se percebia como problemas. Por vezes, descobrem-se novas oportunidades
a partir, justamente, da introdução da regulação.1068
ȱ ™›ŽœŽ—ŽÇœ–˜ȱ Šȱ Š—¤•’œŽȱ Žȱ ›’œŒ˜œȱ ˜›—ŠŠȱ –Š’œȱ ŽęŒ’Ž—Žȱ ™Ž•˜ȱ
acesso a uma ampla gama de informação de melhor qualidade pode levar
à inação regulatória — o que inibe a adoção de medidas que poderiam vir
ŠȱœŽ›ǰȱŠ˜ȱꗊ•ǰȱ‹˜Šœǯȱ1ȱŒ˜–˜ȱœŽȱž–ȱœž™Ž›Ž˜ȱ‘’™Ž›Š’Ÿ˜ȱ’—’‹’œœŽȱŽŒ’œäŽœǯȱ
Por outro lado, e aqui se retorna ao conhecimento convencional, decisões
melhores costumam resultar de análises levadas a cabo com mais infor-
mação de boa qualidade.
Em síntese: a estratégia de centralização da informação, tal como
a adotada nos Estados Unidos por meio do OIRA, parece fazer sentido.
Contudo, a estratégia brasileira de, meio que sem pensar, assumir a
dispersão radical da informação também pode fazer algum sentido para
nossa experiência.1069 É provável que alguma espécie de mistura entre as
duas perspectivas — descentralização e coordenação — viesse a produzir
resultados ótimos.1070

4.3 Buscando a adesão dos regulados


4.3.1 Audiências e consultas públicas
A primeira estratégia para minorar o problema da adesão é a reali-
zação de audiências e consultas públicas. As audiências são sessões únicas
(ou realizadas em poucos dias) em que interessados na ação regulatória
trocam informações e pontos de vista com o Poder Público. A consulta
pública é período de tempo em que o texto do regulamento se coloca à
disposição de interessados — hoje em dia, usualmente pela internet — e
em que lhe são feitas críticas e sugestões, depois apreciadas, e incorporadas
ou rejeitadas pela Administração.

1068
Essa é, em termos de racionalidade econômica, a razão pela qual não existe diferença entre
sacrifício e limitação de direitos anteriormente a uma ponderação para o caso concreto (ver
capítulo 2 da segunda parte): está-se aplicando uma lógica formal a uma realidade dinâmica. O
resultado é, quase sempre, equivocado, porque ingênuo. Uma digressão ilustrativa a respeito
do ponto foi realizada quando se analisou o caráter probabilístico das consequências a serem
assumidas para a incidência de nosso “princípio” do pragmatismo (item 1.6).
1069
ȱ ȱ‘’™àŽœŽȱŠšž’ȱ•ŽŸŠ—ŠŠǰȱŽȱšžŽȱŽ™Ž—ŽȱŽȱŸŽ›’ęŒŠ³¨˜ȱŽ–™Ç›’ŒŠǰȱ·ȱŠȱŽȱšžŽȱ–ŽŒŠ—’œ–˜œȱŽȱ
centralização de informação acabam sendo mais refratários à produção de novas regulações
do que estratégias de dispersão de informação.
1070
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
420 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Num primeiro período da regulação no Brasil, muito caso se fez


sobre a importância das audiências e consultas públicas. Falava-se que
elas serviriam para reduzir a assimetria informacional de reguladores e
Žȱ›Žž•Š˜œǰȱ™Š›Šȱ’—Œ›Ž–Ž—Š›ȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠȱ›Žž•Š³¨˜ǰȱ™Š›Šȱ–’—˜›Š›ȱ
o problema da adesão dos administrados, e, até, para resolver, em parte,
problemas de legitimidade democrática na atuação de tecnoburocracias
Žœ™ŽŒ’Š•’£ŠŠœǯȱ•ž—œȱŠę›–ŠŸŠ–ȱšžŽȱŠœȱŒ˜—œž•ŠœȱœŽ›’Š–ȱœž‹œŠ—’ŸŠ-
mente mais democráticas do que o debate parlamentar. Hoje, vê-se que
elas são úteis, mas nem tanto.
No momento atual do debate sobre a regulação no Brasil — não
estamos mais na fase conceitual e constitucional, mas na fase ŽęŒŠŒ’Š•1071 1072
—, vive-se certo desencantamento com as audiências e consultas. Por certo
que há redução na assimetria informacional de lado a lado. Claro que regu-
lamento em que os regulados foram efetivamente chamados a participar
de sua elaboração é mais legítimo, e tendencialmente mais efetivo, do que
norma baixada de cima para baixo.
Contudo, (i) audiências e consultas públicas podem levar à ˜œœ’ę-
cação do processo regulatório, especialmente no que toca à elaboração de

1071
Na fase conceitual e constitucional, discutia-se o que eram as agências reguladoras, seu encaixe
constitucional, e os limites e abrangência dos poderes que, desde então, foram-lhes atribuí-
dos. Lugares-comuns do debate eram a legitimidade democrática das agências, a discussão
sobre seu poder normativo, e a polêmica sobre a existência de mandato de seus dirigentes.
Atualmente, vive-se ŠœŽȱŽęŒŠŒ’Š•, com discussões sobre qualidade da regulação, governança
›Žž•Šà›’Šǰȱ —¤•’œŽȱ Žȱ –™ŠŒ˜ȱ Žž•Šà›’˜ǰȱ ™›˜™˜œŠœȱ Žȱ –Ž›’ęŒŠ³¨˜ȱ Šȱ ’—Ž›Š³¨˜ȱ Ž—›Žȱ
agências, Judiciário e Legislativo etc.
1072
ȱ ¨˜ȱ·ȱŒ˜››Ž˜ǰȱ—˜ȱŽ—Š—˜ǰȱŠę›–Š›ȱšžŽȱŠȱ“ž›’œ™›ž¹—Œ’Šȱ‹›Šœ’•Ž’›Šȱ‘Š“Šȱ›Žœ˜•Ÿ’˜ȱ™˜›ȱ’—Ž’›˜ȱ
o problema do poder normativo das agências. Assim que as agências reguladoras federais
surgiram, em meados dos anos 90, havia decisões judiciais que rejeitavam a validade dos re-
gulamentos normativos por elas editados. Hoje, na maioria dos casos, tais regulamentos são
ŸŠ•’Š˜œȱ™Ž•˜ȱ ž’Œ’¤›’˜ǰȱŠ’—ŠȱšžŽȱŠȱ•Ž’ȱ—˜œȱšžŠ’œȱœŽȱ‹ŠœŽ’Ž–ȱŠȱŽ•ŽœȱœŽȱ›Žę›ŠȱŽȱ–˜˜ȱ‹ŠœŠ—Žȱ
indireto. Mas veja-se a ADI nº 4.874/DF. Ela ataca resolução da ANVISA que proibiu o uso de
ingredientes nos cigarros (acidulantes, sabores etc.), alegando que a vedação deveria vir por
’—Ž›–·’˜ȱŽȱ•Ž’ǰȱŽȱ—¨˜ȱ™˜›ȱ›Žž•Š–Ž—˜ǯȱ–ȱŗřȱŽȱœŽŽ–‹›˜ȱŽȱŘŖŗřǰȱŠȱ–’—’œ›Šȱ˜œŠȱŽ‹‹Ž›ȱ
œžœ™Ž—Žžȱ ŒŠžŽ•Š›–Ž—Žȱ Šȱ ŽęŒ¤Œ’Šȱ Šȱ ™›˜’‹’³¨˜ǯȱ Š›ŽŒŽȱ šžŽȱ ˜ȱ ȱ Žœ¤ȱ Š˜Š—˜ȱ ˜ȱ šžŽȱ ˜œȱ
americanos chamam de “big deal principle”, tal como enunciado no voto condutor do justice
O’Connor no caso Food & Drug Administration v. Brown & Williamson Tobacco Corp (U.S. 120
ǽŘŖŖŖǾǼǯȱœŽȱ“ž’£ȱŠę›–ŠȱšžŽǰȱȃŽ–ȱŒŠœ˜œȱŽ¡›Š˜›’—¤›’˜œǰȱ™˜Žȱ‘ŠŸŽ›ȱ›Š£¨˜ȱ™Š›Šȱ‘Žœ’Š›ȱŠ—Žœȱ
de concluir que o Congresso pretendeu tal delegação implícita [para a agência]”. “Estamos
Œ˜—ꊗŽœȱŽȱšžŽȱ˜ȱ˜—›Žœœ˜ȱ—¨˜ȱ™˜Ž›’ŠȱŽ›ȱ™›ŽŽ—’˜ȱŽ•ŽŠ›ȱž–ŠȱŽŒ’œ¨˜ȱŽȱŠ–Š—‘˜ȱ
œ’—’ęŒŠ˜ȱŽŒ˜—â–’Œ˜ȱŽȱ™˜•Ç’Œ˜ȱ™Š›Šȱž–ŠȱŠ¹—Œ’ŠȱŽȱ˜›–Šȱ¨˜ȱŒ›Ç™’ŒŠȄǯȱžȱœŽ“ŠDZȱ˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱ
do big deal œ’—’ęŒŠȱšžŽȱ—¨˜ȱœŽȱ™›Žœž–ŽȱšžŽȱŠœœž—˜œȱ’–™˜›Š—Žœȱ‘Š“Š–ȱœ’˜ȱŽ•ŽŠ˜œǰȱ™Ž•˜ȱ
legislador, para que a agência possa deles normatizar. Tratar-se-ia de matéria que se espera
que o Congresso delibere por meio de lei. No entanto, no voto vencido do caso, os justices
›Ž¢Ž›ǰȱŽŸŽ—œǰȱ˜žŽ›ȱŽȱ ’—œ‹ž›ȱ’œŒ˜›Š–ȱ˜ȱ›ŠŒ’˜ŒÇ—’˜ǰȱŠę›–Š—˜ȱšžŽȱŠœȱŽ•Ž’³äŽœȱŽȱ™›Ž-
sidentes da República são justamente sobre isso — sobre big deals. Quando o eleitor elege
Bush ou Bill Cliton, ele também elege um programa regulatório sobre questões importantes, e,
portanto, as agências por eles compostas possuem capacidade para editar normas que sigam
tais programas. No Brasil, a questão, como se disse, ainda está em aberto.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
421

normas.1073 É dizer: à conta de tanto analisar dados, ponderar críticas, e


incorporar ou rejeitar sugestões, especula-se que a regulação pode acabar
nada fazendo, ou fazendo muito pouco e só depois de muito tempo. Sem falar que
(ii) audiências e consultas públicas podem ser instrumentalizadas, pelos
administrados, como estratégia de bloqueio.1074 (iii) O inverso também
pode ser verdadeiro: audiências e consultas públicas podem ser instru-
mentalizadas pelo Poder Público como meios de legitimação retórica de
sua atuação. As entidades administrativas não levariam verdadeiramente
Ž–ȱŒ˜—Šȱ˜œȱŒ˜–Ž—¤›’˜œǰȱ–ŠœȱŠ™Ž—Šœȱꗐ’›’Š–ȱŠ£¹Ȭ•˜ǯ1075
Há ainda outro ponto. (iv) Como os interesses de empresas e grupos
econômicos são, em regra, mais organizados e coordenados vis-à-vis os
interesses difusos de cidadãos, cogita-se que consultas e audiências seriam
dominadas por tais grupos, levando, no limite, a uma espécie de captura
epistêmica, na qual as agências atuariam com viés pró grandes interesses
econômicos, não em função de algum tipo de corrupção, mas porque
a informação que as agências obteriam em tais circunstâncias seria, ela
própria, enviesada.1076 1077
ȱ–Š’œDZȱǻŸǼȱŽ—Š—ŠȬœŽȱšžŽ–ȱŠ™˜œŠȱꌑŠœȱ—ž–ŠȱŠę›–Š³¨˜ȱŠȱšžŠ•’-
dade das audiências e consultas públicas feitas por entidades administrati-
ŸŠœǰȱŽ–ȱŒ˜—›Š™˜œ’³¨˜ȱ¥ȱœž™Ž›ęŒ’Š•’ŠŽȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱ™Š›•Š–Ž—Š›ǰȱœ˜‹›Žž˜ȱ
em questões técnicas. Sim: em muitos casos, a polarização ideológica e o
Ž—Ž›Š•’œ–˜ȱ ˜ȱ Ž‹ŠŽȱ ™Š›•Š–Ž—Š›ȱ œ’—’ęŒŠ–ȱ Œ˜—Œ˜›Š›ȱ ˜žȱ ’œŒ˜›Š›ȱ
sem conhecer o assunto. Ainda assim, há exagero na descrição: assuntos
importantes passam por análises em comissões temáticas parlamentares;
técnicos do Congresso podem realizar análises rigorosas; cortes de contas
(órgãos de apoio ao legislativo) emitem relatórios que são usados como

1073
ȱ  ȱ ǯȱž•Ž–Š”’—ȱœœ’ęŒŠ’˜—ȱ’œȱŽŠ•DZȱŠȱŽœ™˜—œŽȱ˜ȱŽœ’—ȱ‘Žȱœœ’ęŒŠ’˜—ȱ‘Žœ’œ. The
George Washington Law Review.
1074
Pode-se especular, no entanto, que as agências reguladoras brasileiras não estejam efetivamente
˜œœ’ęŒŠŠœȱ™˜›ȱ›Š£¨˜ȱœ’—Ž•ŠDZȱŽ•Šœȱ—¨˜ȱ•ŽŸŠ–ȱŠœȱŠž’¹—Œ’ŠœȱŽȱŒ˜—œž•Šœȱ™ø‹•’ŒŠœȱŠȱœ·›’˜ǯȱŽȱ’œœ˜ȱ
˜›ȱŸŽ›ŠŽȱȯȱ˜ȱšžŽȱŽ™Ž—ŽȱŽȱŸŽ›’ęŒŠ³¨˜ȱŽ–™Ç›’ŒŠȱȯǰȱŽ›ȬœŽȬ’Šȱž–ȱ™›˜‹•Ž–ŠȱǻŠȱ–¤ȱšžŠ•’ŠŽȱ
ŠœȱŒ˜—œž•ŠœȱŽȱŠž’¹—Œ’ŠœǼȱšžŽȱŠŒŠ‹ŠȱœŽ—˜ȱœ˜•ž³¨˜ȱŠȱ˜ž›˜ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱ™›˜‹•Ž–ŠȱǻŠȱ˜œœ’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱ
processo regulatório normogenético).
1075
ȱ ǯȱǯȱ•˜˜Žȱ ’‘ȱ˜––Ž—œǰȱĜŒ’Š•œȱ•žȱ‘Ž’›ȱŠ›œǯ The New York Times. Nesta maté-
›’ŠǰȱŠȱ“˜›—Š•’œŠȱŒ’Šȱ‘›’œȱ˜˜ǰȱŒ˜—œŽ•‘Ž’›˜ȱ˜ȱŽ›Ÿ’³˜ȱŽȱ•˜›ŽœŠœȱŠȱŠ–’—’œ›Š³¨˜ȱ•’—˜—ǰȱ
˜ȱšžŠ•ȱŠę›–ŠȱšžŽȱ˜ȱŒ˜–™˜›Š–Ž—˜ȱÇ™’Œ˜ȱŠœȱŠ¹—Œ’Šœȱ·ȱȃŒ›’Š›ȱž–ȱ™•Š—˜ȱŽȱŠ³¨˜ǰȱŠ—ž—Œ’Š›ȱž–ȱ
período de consulta pública, e então agir como quiser” (typical agency behaviour is to “develop the
plan you want, announce a public comment period and then do what you want to do”).
1076
VERMEULE. Local and Global Knowledge in the Administrative State. Harvard Public Law, p. 15.
1077
Uma forma institucional de resolver o dilema interesses econômicos privados organizados
versus interesses públicos/sociais desorganizados — o que pode implicar irresolúveis proble-
mas de ação coletiva destes — é evitar o modelo de agências ligadas a objetos econômicos
setoriais, e criar agências de jurisdição geral. É mais difícil capturar a agência se você torna di-
fusos os destinatários da regulação, já que isso agora lhes impõe, também, problemas de ação
coletiva (ainda que tais problemas não sejam incontornáveis: o que ocorre é que as indústrias
se organizam em associações ideológicas de ação comum).

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
422 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

–ŠŽ›’Š•ȱŽȱ’œŒžœœ¨˜ǯȱȱ‘¤ȱ˜’œȱ™˜—˜œǰȱŽœ™ŽŒÇꌘœȱŠ˜ȱŽ‹ŠŽȱ™Š›•Š–Ž—Š›ǰȱ
que são perdidos nas audiências e consultas públicas de agências.
Primeiro: o debate parlamentar pode trazer temas à opinião pública
de uma forma que os limites de divulgação de uma audiência ou consulta
jamais permitirão. Basta ver que as manifestações do meio do ano de 2013
tinham como uma das bandeiras a rejeição à PEC 37. É de se duvidar se as
massas iriam às ruas se o assunto estivesse sendo tratado numa consulta
pública.
Segundo: em muitos casos, a perspectiva generalista é boa, e pode
corrigir vieses de foco gerados por análise especializada (sobre o viés de
foco, v. discussão à frente). Os técnicos das agências conhecem profunda-
mente seus setores, mas, às vezes, a melhor regulação é produzida por
quem conhece moderadamente vários setores. O debate parlamentar, que
por vezes é caótico, é, também, multifocal e agregador de informação.
Aceitar ou rejeitar antenas de celulares pode ser visto não só como assunto
de engenharia de telecomunicações, mas também como tema urbanístico,
de saúde pública, de desenvolvimento econômico; talvez a aceitação ou
›Ž“Ž’³¨˜ȱ˜ȱ™˜—˜ȱŽŸŠȱŽ™Ž—Ž›ǰȱŠę—Š•ǰȱŠ–‹·–ȱ˜ȱŽœŒ˜™˜ǰȱŽȱ—¨˜ȱœàȱǻŽȱ
talvez nem mesmo especialmente) da profundidade da análise.1078 1079
Portanto, consultas e audiências públicas têm utilidade na obtenção
da adesão dos regulados. Mas não convém aceitá-las acriticamente.

4.3.2 Economia comportamental: empurrõezinhos e


œ’–™•’ęŒŠ³¨˜
A segunda estratégia neorregulatória que pretende promover ade-
são à regulação pública consiste em desenhar ações que estejam conforme
ao modo como os seres humanos usualmente processam informações e
tomam decisões.

1078
Este ponto também pode vir a ser corrigido por uma perspectiva mais centralizadora no que
toca ao problema da informação. Ver discussão acima.
1079
Há outro aspecto na contraposição entre agências reguladoras e Parlamento. A defesa do mo-
delo das agências se fazia por uma contraposição entre dois modelos caricaturais: o modelo
™›·ȬŠ¹—Œ’ŠœȱŽ›Šȱž–ŠȱŒŠ›’ŒŠž›ŠȱŽȱœ’œŽ–Šȱ™˜•Ç’Œ˜ǰȱŽȱ˜ȱ–˜Ž•˜ȱŠŽ—Œ’ęŒŠ˜ȱŽ›Šȱž–Šȱ’ŽŠ•’-
zação de modelo técnico. Ora, quando se comparam uma caricatura e uma idealização, é claro
que a última sai vencendo. No entanto, a verdade é que não existe uma divisão em sentido forte
entre técnica e política. Aliás, o ideal democrático é que se coordenem propósitos políticos a
uma viabilização técnica. É possível encontrar argumentos técnicos para variados propósitos
políticos (a palavra “técnica” não equivale à palavra “precisão”). Também é verdade que a
alegação de se estar agindo tecnicamente pode esconder a pretensão de impor, para além do
debate democrático, opiniões isoladas de burocracias estatais. O argumento defendia o poder
normativo das agências pressupondo que elas agiriam de modo exclusivamente técnico, ao
passo que o Congresso atuaria de forma apenas política. A realidade, no entanto, é que tais
extremos raramente se apresentam no cotidiano da produção de normas.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
423

Para entender o ponto, é preciso breve digressão.


Em meados dos anos 70, um programa de pesquisa levado a cabo
pelo psicólogo Daniel Kahneman e pelo economista Amos Tversky iden-
’ęŒ˜žȱšžŽǰȱšžŠ—˜ȱ˜–Š–˜œȱŽŒ’œäŽœǰȱžœŠ–˜œȱ–ž’ŠœȱŸŽ£Žœȱ‘Žž›Çœ’ŒŠœȱ
— atalhos mentais. Na maioria das vezes, utilizar heurísticas é estratégia
bem-sucedida.1080ȱ˜—ꊖ˜œȱ—Šȱ˜™’—’¨˜ȱŽȱexperts; seguimos as recomen-
dações de amigos sobre o que fazer em viagens; na dúvida entre dois pro-
dutos, um caro e outro barato, optamos pela terceira opção intermediária.
Mas heurísticas são traiçoeiras. Úteis em muitos casos, tais ata-
lhos, em certas circunstâncias, levam-nos a erros (eles produzem vieses
cognitivos).1081ȱ Š‘—Ž–Š—ȱŽȱŸŽ›œ”¢ǰȱŽ–ȱŽœž˜ȱœŽ–’—Š•ǰȱ’Ž—’ęŒŠ›Š–ȱ›¹œȱ
heurísticas e seus vieses: a heurística da representatividade, a heurística da
disponibilidade, e o efeito de ancoragem.
A heurística da representatividade faz com que nos desviemos da
estatística em prol de associações de ideias fundadas em estereótipos.1082 O
efeito de ancoragem sugere que o ser humano tenda a escolher respostas
próximas à dos valores ou informações sugeridos pela pergunta — ainda
quando tais valores não tenham absolutamente nada a ver com a respos-
ta.1083ȱȱ‘Žž›Çœ’ŒŠȱŠȱ’œ™˜—’‹’•’ŠŽȱŠę›–ŠȱšžŽȱŠœȱ™Žœœ˜ŠœȱŒ˜—Œ•žŽ–ȱŠȱ
respeito da probabilidade de determinado evento com base na facilidade
na qual ocorrências dele podem ser lembradas.1084
Após tais pesquisas, uma nova área do conhecimento surgiu — a eco-
nomia comportamental —, e dezenas de heurísticas e de vieses cognitivos

1080
GIGERENZER; TOOD; ABC RESEARCH GROUP. Simple Heuristics that Make us Smart.
1081
O estudo clássico é “Judgment Under Uncertainty: Heuristics and Biases” de Amos Tversky e
Daniel Kahneman (Science).
1082
Exercício clássico: imagine que João seja tímido, fechado em si mesmo, ainda que prestativo.
João é alguém que procura, antes de tudo, ordem e estrutura. É mais provável que João seja um
bibliotecário ou um fazendeiro? A resposta correta é fazendeiro — existem mais fazendeiros
do que bibliotecários no mundo. No entanto, muitos creem que João seria provavelmente um
bibliotecário apenas porque ele se pareceria com um.
1083
Num experimento de Kahneman e Tversky, perguntava-se a um grupo qual o percentual de paí-
ses africanos que participavam da ONU. Antes da resposta, rodava-se uma roda com números
que variavam entre um e cem, mas que estava “maceteada” para cair sempre ou no número 10
ou no número 65. Quando a roda parava de girar no número 10, os participantes respondiam
que, na média, vinte e cinco por cento dos países da ONU eram africanos. Quando a roda parava
em 65, a média das respostas era de que os países africanos compunham quarenta e cinco por
cento da ONU. Em outro experimento, pedia-se a dois grupos diferentes de estudantes do ensino
médio para, em cinco segundos, estimar os resultados de (8 x 7 x 6 x 5 x 4 x 3 x 2 x 1) ou de (1 x
2 x 3 x 4 x 5 x 6 x 7 x 8). O primeiro grupo chutava números maiores (estimativa média de 2.250)
do que o segundo (estimativa média de 512). A sugestão é a de que os estudantes tenham sido
guiados por uma âncora mental associada aos primeiros números de sua respectiva sequência.
1084
É por isso que, em geral, preocupa-se mais com furacões logo após haver-se passado por um; e é
por isso que riscos mais recentes ou mais espetaculares são mais combatidos do que riscos mais
triviais ou mais distantes no tempo. Piscinas domésticas são mais perigosas do que depósitos
de lixo nuclear, mas o público em geral não parece acreditar nisso (BREYER. Breaking the Vicious
CircleDZȱ˜ Š›ȱ쎌’ŸŽȱ’œ”ȱŽž•Š’˜—Ǽǯ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
424 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

foram propostos. Alguns dos mais importantes incluem o viés de status


quo (em geral, prefere-se manter opções já feitas); a aversão à perda (as
pessoas possuem mais medo de perder do que ânsia de ganhar); e os efeitos
da forma de apresentação da informação (a informação é mais persuasiva
šžŠ—˜ȱ·ȱ’›ŽŠDzȱšžŠ—˜ȱœŽȱŠę›–ŠȱšžŽȱȃ™Žœœ˜Šœȱ™Š›ŽŒ’ŠœȱŠȱŸ˜Œ¹ȄȱŽœ¨˜ȱ
fazendo o mesmo; quando há elementos visuais de auxílio [cores, formatos
etc.]; quando o conteúdo da informação é apresentado antes como um
ganho potencial que um risco potencial).1085 1086
Pois bem. Richard Thaler e Cass Sunstein escreveram artigo e livro
no qual sugerem que o Poder Público deve agir como um arquiteto de
escolhas. O Poder Público deveria elaborar estruturas de escolhas que in-
crementassem o melhor interesse dos cidadãos. Tais estruturas de escolhas
seriam baseadas em heurísticas e vieses cognitivos. Aos exemplos:
- As pessoas consomem mais o que veem primeiro. Assim, uma
estratégia para o combate à obesidade infantil poderia ser a da
colocação de frutas ao alcance do olhar das crianças.
- Considerando o viés do status quo, o Poder Público, mercê de
estimular o incremento da adesão de trabalhadores ao sistema
de previdência voluntária, poderia deixar opção pré-marcada
a favor de contribuições para um plano em todos os contratos
de trabalho. Caso o empregado não concorde com ela, bastaria
desmarcá-la.
- Ainda considerando o viés de status quo, a pré-opção em todos
os documentos seria em favor da doação de órgãos em caso de
acidente fatal.
- Campanhas públicas a favor de certa conduta utilizar-se-iam de
elementos visuais (cores e formatos), e referir-se-iam à prática de
˜ž›˜œȱŒ’Š¨˜œȱǻȃŠ—Šœȱ™Žœœ˜Šœȱę£Ž›Š–ȱ’œœ˜ȄǼǯ1087
Tais práticas seriam nudgesȱȯȱŽ–™ž››äŽ£’—‘˜œǯȱŠȱŽę—’³¨˜ȱ˜œȱ
autores: “Um ‘nudge’ é qualquer aspecto de uma arquitetura de esco-
lha que altera o comportamento das pessoas de uma forma previsível
œŽ–ȱŸŽŠ›ȱšžŠ’œšžŽ›ȱ˜™³äŽœȱ˜žȱŠ•Ž›Š›ȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠ–Ž—ŽȱœŽžȱ’—ŒŽ—’Ÿ˜ȱ
econômico”.1088 Os nudges usam, como técnicas básicas, os poderes da
apresentação da informação e a força das opções default.

1085
ȱ –ŠȱŠ¡˜—˜–’ŠȱŽȱŸ’ŽœŽœȱ™˜ŽȱœŽ›ȱŽ—Œ˜—›ŠŠȱŽ–ȱŠĴ‘Ž ȱŠ‹’—ȱǻœ¢Œ‘˜•˜¢ȱŠ—ȱŒ˜—˜–’Œœǯȱ
Journal of Economic Literature).
1086
Estudos explicam a estrutura cognitiva que gera tais desvios usando um modelo bipolar. É
como se existissem dois sistemas de pensamento dentro de nós: um responsável pela intuição
e por processos mentais automáticos; outro, responsável por processos conscientes e delibe-
rados. Cabe ao sistema automático a maioria das tarefas cotidianas. Sua domesticação, pelo
sistema consciente, leva tempo e requer esforço. As interações entre os sistemas são o que ge-
ram os vieses (GILBERT. Thinking Lightly about Others: Automatic Components of the Social
Inference Process. In: ULEMAN; BARGH. (Ed.). Unintended Thought, p. 189-211).
1087
Outros exemplos podem ser obtidos em Cass Sunstein (Simpler: the Future of Government).
1088
THALER; SUNSTEIN. NudgeDZȱ –™›˜Ÿ’—ȱŽŒ’œ’˜—œȱŠ‹˜žȱ
ŽŠ•‘ǰȱŽŠ•‘ǰȱŠ—ȱ
Š™™’—Žœœǰȱ™ǯȱŜǯ

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
425

žŠ—˜ȱ‘ŠŸŽ›’Šȱ“žœ’ęŒŠ’ŸŠȱ™Š›Šȱ˜ȱ˜Ž›ȱø‹•’Œ˜ȱŠ›šž’ŽŠ›ȱŽœŒ˜•‘Šœǵȱ
Na opinião dos autores, quando as pessoas estão diante de situações nas
quais há probabilidade de que façam escolhas ruins. Quatro são os casos.
ǻ’ǼȱžŠ—˜ȱ‘¤ȱ’Ž›Ž—³Šœȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠœȱŽȱŽ–™˜ȱŽ—›Žȱ˜œȱŒžœ˜œȱŽȱ˜œȱ‹Ž—ŽÇŒ’˜œȱ
da escolha (ir para a academia versus comer um chocolate). (ii) Quando é difícil
realizar escolha racional por ausência de informação ou de capacidade de
processamento daquele tipo de informação. Ao escolher entre dois produtos
ꗊ—ŒŽ’›˜œȱŒ˜–™•Ž¡˜œǰȱ˜ȱŒ’Š¨˜ȱ–·’˜ȱ—¨˜ȱ™˜œœž’ȱŽ–™˜ǰȱŒŠ™ŠŒ’ŠŽȱŽȱ
›ŽĚŽ¡¨˜ȱ˜žȱŠŒŽœœ˜ȱŠȱ˜ŠœȱŠœȱ’—˜›–Š³äŽœȱ›Ž•ŽŸŠ—Žœǯȱǻ’’’ǼȱžŠ—˜ȱ—¨˜ȱ‘¤ȱ
qualquer feedback a respeito das escolhas (daí não existir qualquer curva de
aprendizado). (iv) Quando há pouca possibilidade de obtenção de informação
via repetição da prática (ex.: compra de imóveis).
É diante desse pano de fundo de escolhas equivocadas e agentes
enviesados que Thaler e Sunstein teorizam sobre sua proposta. Chamam-na
de paternalismo libertário. Há nela algo de paternalista, pois a arquitetura
de escolhas visa induzir comportamentos. Mas ela também seria libertária,
pois a possibilidade de escolha estaria presente.
Há quem critique a ideia. Pode-se resumir o conteúdo da crítica em
seis blocos de conteúdo, a seguir mencionados.
1. O paternalismo libertário é oportunista. O paternalismo libertário lida
Œ˜–ȱ˜œȱ™›˜‹•Ž–ŠœȱŽȱŠž˜Œ˜—›˜•ŽȱŽȱŽȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŒ˜—’’ŸŠȱ—¨˜ȱ
com o propósito de neutralizá-los, mas para tirar proveito deles.
2. Há dúvida sobre a realidade das “escolhas” que estão sendo oferecidas.
Talvez o elemento de “escolha” do paternalismo libertário seja apenas
ž–Šȱ ’•žœ¨˜ȱ Šž˜“žœ’ęŒŠ˜›Šǯ Se noventa por cento das pessoas
escolhem a opção determinada pelo Poder Público, podemos
realmente falar em escolhas livres?
3. Há um problema moral no fato de as pessoas não saberem que estão
œŽ—˜ȱ’—ĚžŽ—Œ’ŠŠœȱŠȱŠ£Ž›ȱŠ•˜ȱ™Ž•˜ȱ ˜ŸŽ›—˜ǯȱO Poder Público estaria
abusando da boa-fé dos cidadãos quando desenha escolhas sem
deixá-los informados a respeito disso.
4. O paternalismo libertário vai contra a experimentação. Talvez fosse
melhor que as pessoas fossem livres para aprender com o resul-
tado de suas — boas ou más — práticas.
5. O paternalismo libertário troca os vieses individuais pelos vieses dos
reguladores. O paternalismo libertário não leva em consideração
a possibilidade de falha de governo.
6. O risco do terreno escorregadio: o paternalismo libertário pode começar
certo, mas fornecer base para o abuso regulatório. Existem graus para
šžŽȱœŽȱ’Ž—’ęšžŽȱž–ȱ™ŠŽ›—Š•’œ–˜ȱ•’‹Ž›¤›’˜ȱŽȱž–ȱ—¨˜ȱ•’‹Ž›¤›’˜ǵȱ
O nudge é novidade no Brasil. Ainda não há, por exemplo, teoria
brasileira da compatibilidade constitucional do empurrãozinho. Também
a abordagem que propõe — baseada em psicologia experimental — é-nos

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
426 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

estranha. Seria, entretanto, interessante replicar entre nós as pesquisas


›ŽŠ•’£ŠŠœȱ—˜ȱŽ¡Ž›’˜›ȱ—˜ȱ›Šœ’•ǰȱ™Š›ŠȱŸŽ›’ęŒŠ›ȱŠȱŽŽ’Ÿ’ŠŽȱŠœȱ·Œ—’ŒŠœȱŽȱ
’Ž—’ęŒŠ›ȱŠ•ž–Šȱ™˜œœÇŸŽ•ȱŸŠ›’¦—Œ’ŠȱŒž•ž›Š•ǯ1089
Antes disso, no plano teórico e teórico-prático, é importante analisar
se a proposta sobrevive, inócua ou adaptada, às críticas. Outra dúvida seria
se nossa realidade rejeita o paternalismo não libertário como a sociedade
americana o faz. Faz sentido falar num empurrãozinho à brasileira? Quais
os vieses a se priorizarem na nossa realidade?
Seja como for, o fato é que ações públicas baseadas em dados da
economia comportamental são instrumento que vêm sendo usado na
promoção da adesão à regulação.

4.3.3 Análise de Impacto Regulatório


A terceira estratégia destinada a resolver o problema de adesão é a
realização de análises de impacto regulatório antes, durante ou depois da
ação regulatória. Ao contrário das audiências e consultas, as análises de
impacto estão em ascensão, tanto na prática quanto na doutrina.
Elas nos interessam por sua base pragmatista e porque, em certos
momentos, realizá-las impõe operar com razões conforme à razão pública.
Surgida nos Estados Unidos nos anos 70,1090 a Análise de Impacto
Regulatório rapidamente se transportou ao Reino Unido1091 e, após, a boa
parte dos países da Europa.

1089
A hipótese da variância cultural no uso de nudges é secundada por uma série de estudos
comparativos. Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (The Good, the Bad, and the
Ugly: Assessing Nudging Initiatives From a Brazil-USA Comparative Perspective).
1090
O pioneirismo dos EUA na AIR se dá com a criação, nos anos 70, do ĜŒŽȱ˜ȱŠ—ŠŽ–Ž—ȱŠ—ȱ
Budget, e, posteriormente, do ĜŒŽȱ˜ȱ —˜›–Š’˜—ȱŠ—ȱŽž•Š˜›¢ȱ슒›œǰȱŠ–‹˜œȱ•’Š˜œȱ¥ȱŠœŠȱ
Branca. Em 1974, no governo Nixon, publica-se a Ordem Executiva nº 11.821, a qual obriga a
ŠŸŠ•’Š³¨˜ȱ˜ȱ’–™ŠŒ˜ȱ’—ĚŠŒ’˜—¤›’˜ȱŠœȱ–Ž’Šœȱ›Žž•Šà›’Šœǯȱ˜—ž˜ǰȱ˜ȱ›Š—Žȱ–Š›Œ˜ȱ—˜›-
mativo da AIR, nos EUA, é a Ordem Executiva nº 12.291, editada durante o governo Reagan, a
qual introduziu, no Ordenamento americano, o uso do método da análise de custo-benefício,
com o propósito de reduzir o fardo regulatório, aumentar a accountability das agências regu-
ladoras, estimular a supervisão presidencial do processo regulatório e diminuir as regulações
ž™•’ŒŠŠœȱ ˜žȱ Œ˜—Ě’ž˜œŠœǯȱ 1ȱ Žȱ œŽȱ ›Ž’œ›Š›ǰȱ Š’—Šǰȱ Šȱ ›Ž–ȱ ¡ŽŒž’ŸŠȱ —ķȱ ŗŘǯŚşŞǰȱ Ž’ŠŠȱ
no governo Reagan, que estabeleceu um programa anula de regulação; a Ordem Executiva
nº 12.866, de 1993, já no governo Clinton, que, revogando as Ordens anteriores, estabeleceu
™›˜ŒŽ’–Ž—˜œȱŽȱ–·˜˜œȱŠȱœŽ›Ž–ȱœŽž’˜œȱ—Šȱ ȱ—˜›ŽȬŠ–Ž›’ŒŠ—ŠDzȱŽǰȱꗊ•–Ž—ŽǰȱŠȱ›Ž–ȱ
Executiva nº 13.563, de janeiro de 2011, atualmente em vigor, e que estabeleceu novos propó-
sitos para as AIR. Sobre o tema, cf. FONTELLES. Avaliação de impacto regulatório e sua aplicação
no Brasil, f. 96-100. Ainda, MORALL III. An Assessment of US Regulatory Impact Analysis
Programme. In: DEIRGHTON-SMITH et al. Regulatory Impact Analysis: Best practices in OECD
˜ž—›’ŽœǯȱꛖŠ—˜ȱšžŽȱœàȱŠȱ™Š›’›ȱŠȱ›Ž–ȱ¡ŽŒž’ŸŠȱ—ķȱŗŘǯŘşŗȱ·ȱšžŽȱ˜œȱȱ™ŠœœŠ›Š–ȱŠȱ
se preocupar com a Análise de Impacto Regulatório com esse nome, v. HAHN et al. Assessing
Regulatory Impact Analysis: the Failure of Agencies to Comply with Executive Order 12,866.
1091
V. MIRANDA; BARTHOLOMEU; LIMA. A análise de impacto regulatório como novo instru-
mento de gestão pública no Brasil.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
427

Resumindo as ideias em termos usuais no discurso jurídico brasileiro,


numa tentativa de Žę—’³¨˜, pode-se falar que a Análise de Impacto Regulatório
é procedimento administrativo, prévio ou concomitante à eventual prática de atos
›Žž•Šà›’˜œǰȱ™˜›ȱ’—Ž›–·’˜ȱ˜ȱšžŠ•ȱ˜ȱ˜Ž›ȱø‹•’Œ˜ȱ’Ž—’ęŒŠȱŽȱŠŸŠ•’Šȱ˜œȱ™˜œœÇŸŽ’œȱ
efeitos de sua atuação, e, então, deixa de agir, age como pretendido, ou corrige o rumo
de sua atuação.
Ainda não há, no Brasil, lei geral ou ato normativo que sirva de
marco das AIRs — tudo o que temos são referências normativas esparsas e
experiências em agências reguladoras.1092 Trata-se de prática administrativa
de raiz utilitarista, empregada por economistas próximos a tal pensamento,
compatível com uma teoria padrão da análise econômica do Direito. Ela é
o que o bom senso de um economista médio recomendaria fazer: coletar
˜ȱ–¤¡’–˜ȱŽȱŠ˜œǰȱ‹žœŒŠ›ȱ–Ž’˜œȱŽȱšžŠ—’ęŒŠ›ȱŒžœ˜œȱŽȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœǰȱ
sopesá-los, optar por uma linha de ação a partir dos resultados.

1092
Mas qual seria o encaixe jurídico das análises de impacto regulatório atualmente feitas? Elas
podem se reconduzir a cinco topoi. Eis nossa proposta.
a) ȱŽęŒ¤Œ’Šȱ™˜œ’’ŸŠȱ˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠ. Tal princípio não ape-
—Šœȱ’—ŸŠ•’ŠȱŠ³äŽœȱ™ø‹•’ŒŠœȱ’—ŽęŒ’Ž—ŽœȱȯȱŽ’œȱœžŠȱŽęŒ¤Œ’Šȱ—ŽŠ’ŸŠȱȯǰȱ–ŠœȱŠ–‹·–ȱ’–™äŽȱ˜ȱ
dever de planejamento ao Estado. E tal planejamento se faz, na seara da regulação pública,
também e especialmente por intermédio de análises de impacto.
b) Ao teste da proporcionalidade em sentido estrito. O terceiro teste da proporcionalidade consiste
em ponderar os custos e benefícios da ação ou rejeição de certa linha de ação. Ou seja: trata-se
de proceder a uma análise de custo-benefício, método típico da análise de impacto.
c) Ao princípio democrático e ao dever de motivação dos atos administrativos. A análise de impacto,
em boa parte de suas etapas, requer a participação dos regulados. Embora a análise de impacto
não produza, por si só, a legitimidade democrática, ela pode auxiliar nisso, ao amenizar “silên-
cios políticos” e permitir que grupos de interesse — por exemplo, trabalhadores — contestem
˜œȱŠ˜œȱ˜ęŒ’Š’œȱŽȱ™›˜ž£Š–ȱœžŠœȱ™›à™›’ŠœȱŠŸŠ•’Š³äŽœǯȱœœŠȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽȱŽȱ™Š›’Œ’™Š³¨˜ȱ™•ž-
›Š•ȱŒ˜—Ěž’ȱ™Š›ŠȱŽŽ’ŸŠ›ȱ˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱŽ–˜Œ›¤’Œ˜ǯ
Por outro lado, a análise de impacto serve como instrumento de controle do Estado. Só é
possível controlar os rumos daquilo que é fundamentado técnica e juridicamente. A análise de
impacto é procedimento útil por fomentar a tomada de decisões com conhecimento de causa
e não com base em conjecturas ou fundamentalismos.
Além disso, atualmente todos os atos administrativos que limitem ou condicionem direitos
— como o serão boa parte dos atos regulatórios —, nos termos do art. 50, da Lei Federal
nº 9.784/99, e do art. 93, X, da Constituição da República, devem ser motivados. E o que é moti-
ŸŠ›ǵȱ1ȱŽŒ•’—Š›ȱŠœȱ›Š£äŽœȱŽȱŠ˜ȱŽȱŽȱ’›Ž’˜ȱšžŽȱ“žœ’ęŒŠ–ȱŠȱ™›¤’ŒŠȱ˜œȱŠ˜œǯȱ œ˜ȱœŽȱŒ˜—œŽžŽǰȱ
em se tratando de atos regulatórios, especialmente por intermédio das análises de impacto.
d) A uma analogia com os instrumentos de medição de impacto ambiental. Institutos análogos à
Análise de Impacto Regulatório são o Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de
Impacto Ambiental (RIMA), referidos no art. 225, §1º, IV da Constituição da República, na Lei
Federal nº 6.938 /81 e na Resolução nº 1/86 do CONAMA. O procedimento — tanto do EIA
šžŠ—˜ȱ˜ȱ ȱȯȱ‹žœŒŠȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŠœȱŽ¡Ž›—Š•’ŠŽœȱŽȱ˜ȱŒžœ˜Ȭ‹Ž—ŽÇŒ’˜ȱ˜ȱŽ–™›ŽŽ—’–Ž—˜ȱ
que se pretende levar a cabo. Ora, nada impediria a extrapolação do argumento até a admissão
de relatórios de impactos regulatórios em sentido amplo. A própria Lei nº 6.938/81, vista de
forma global, indica a necessidade de mensurar os impactos sociais e humanos do projeto.
e) A uma referência normativa. Não há lei das AIRs. O que mais próximo há é o Decreto Federal
nº 4.176, de 2002, que estabelece, em seus Anexos I e II, conjunto de questões a serem anali-
sadas ao momento da elaboração de atos normativos. Além disso, o decreto cria um passo a
passo, em forma de questionário, com vistas a auxiliar na exposição dos fatos que motivaram
o ato. Considerando que muitos atos regulatórios são, antes disso, atos administrativos nor-
mativos, o Decreto seria aplicável, por analogia, como base normativa das análises de impacto.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
428 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

A última frase adianta as cinco etapas da análise de impacto. São elas:


(i) a šžŠ•’ęŒŠ³¨˜ȱŽȱŠȱŒ˜•ŽŠȱŽȱŠ˜œ a respeito das possíveis consequências
dos atos regulatórios; (ii) a adoção de critério de valoração a respeito de tais
consequências; (iii) a avaliação delas; (iv) a adoção ou rejeição do ato, ou sua
correção de rumo; (v) seu monitoramento.1093 Analisemo-las brevemente.
(i) A šžŠ•’ęŒŠ³¨˜ȱ›ŠŠȱ˜ȱŽœŠ‹Ž•ŽŒ’–Ž—˜ȱŽȱꕝ›˜ȱ˜œȱŠ˜œȱ›Ž•ŽŸŠ—-
tes. Recomenda-se visão abrangente. É para isso que deve ser transparente:
reguladores devem declinar o que estão considerando como resultados,
e, ato seguinte, devem se abrir à contribuição dos regulados. Depois de
šžŠ•’ęŒŠ›ȱŠ˜œǰȱ·ȱ‘˜›ŠȱŽȱcoletá-los. Diversas estratégias podem ser uti-
lizadas: consulta a especialistas, entrevistas, aplicação de questionários,
uso de grupos de discussão controlada, acesso à experiência internacional,
revisão da literatura especializada, realização de painéis com empresas.
A adoção de (ii) critério de valoração dos dados coletados é a próxima
etapa. Eis o momento de estabelecer parâmetros a propósito do que será
considerado consequência positiva, e o que será visto como consequência
negativa. Etapa complexa, em que se impõe que os critérios sejam universa-
lizáveis, não mutuamente excludentes, e compatíveis com a Constituição.
ŽĚŽ¡˜ȱŠȱŽŠ™ŠȱŠ—Ž›’˜›ȱ·ȱǻ’’’ǼȱŠȱavaliação das consequências à luz
dos critérios. A partir daí, não teremos mais meras consequências, mas
consequências positivas — benefícios — e consequências negativas — custos
— associadas à adoção (ou à rejeição ou à alteração) da regulação que se
pretende implantar ou que se revisa. O resultado é (iv) a adoção, a revisão
ou a rejeição de uma linha de ação regulatória.
˜›ȱę–ǰȱǻŸǼȱ‘¤ȱ˜ȱmonitoramento dos resultados da regulação. É im-
™˜›Š—ŽȱŸŽ›’ęŒŠ›ȱœŽȱ˜ȱŒž›œ˜ȱ˜œȱŠŒ˜—ŽŒ’–Ž—˜œȱŽœ¤ȱœŽȱŠ—˜ȱŽȱŠŒ˜›˜ȱ
com o esperado, e, se for o caso, realizar ajustes.
Há dois métodos mais usuais para a Análise de Impacto Regulatório.
Trata-se da (i) análise de custo-benefício — ACB — e da (ii) análise de custo-
efetividade — ACE.
A (i) análise de custo-benefício é o método mais comum e, segundo
alguns, representa a melhor prática de AIR.1094 Suas vantagens são o custo
relativamente baixo, a facilidade do controle de resultados por agentes
externos e a relativa dispensa de expertise profunda por parte das agên-
cias.1095ȱ•Šȱ’Ž—’ęŒŠǰȱ•’œŠȱŽȱŠȱŠ›’‹ž’ȱŸŠ•˜›Žœȱȯȱ–˜—Ž¤›’˜œȱ˜žȱ—¨˜ȱȯȱ¥œȱ

1093
MENDONÇA. Análise de impacto regulatório: o novo capítulo das agências reguladoras.
Justiça e Cidadania, p. 30. Em sentido semelhante, mas mencionando três etapas — o proces-
so de tomada de decisão da política regulatória, a implementação e o monitoramento —, v.
VALENTE. A análise de impacto como mecanismo de controle do tabaco. Revista de Direito
Público da Economia – RDPE.
1094
OECD. Introductory Handbook for Undertaking Regulatory Impact Analysis (RIA), p. 10.
1095
ȱ Dzȱǯȱ –™•Ž–Ž—’—ȱ˜œȬŽ—Žęȱ—Š•¢œ’œȱ‘Ž—ȱ›ŽŽ›Ž—ŒŽœȱŠ›Žȱ’œ˜›Ž. Journal
of Legal Studies, p. 1106-1147.

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 428 20/08/2014 14:30:40


SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
429

consequências positivas e negativas da linha de atuação pretendida, e, em


œŽž’Šǰȱ‘’Ž›Š›šž’£Šȱ˜™³äŽœǯȱȱȱŽŸŽǰȱŠ’—ŠǰȱŸŽ›’ęŒŠ›ȱŽȱŽ¡™•’Œ’Š›ǰȱœŽ–-
pre que possível, quem arcará com os custos e quem receberá os benefícios.
Ž–ȱž˜ȱ™˜Žȱ˜žȱŽŸŽȱœŽ›ȱ–˜—Ž’£Š˜ǰȱ˜žǰȱœŽšžŽ›ǰȱŒ•Šœœ’ęŒŠ˜ȱ
hierarquicamente a partir de escala numérica. Nesses casos, há a possibili-
dade de se lançar mão da ACB branda (œ˜ĞȱŒ˜œȬ‹Ž—ŽęȱŠ—Š•’œ¢œ), a qual lista
consequências incomensuráveis e as apresenta à sociedade.
Segundo método é (ii) a análise de custo-efetividade. A análise de custo-
efetividade é variação da ACB que foca em hipóteses nas quais metas estão
predeterminadas. A análise se centra em qual alternativa de regulação,
daquelas capazes de obter o resultado determinado, será a menos custosa
em termos de custo social global.
Existem dois graus de profundidade nas análises de impacto regulató-
rio. Há a AIR preliminar e a AIR exaustiva. A AIR preliminar é versão simpli-
ꌊŠǰȱšžŽȱœŽȱŠ£ȱ™Š›ŠȱœŠ‹Ž›ȱœŽȱŒ˜–™Ž—œŠȱŠȱ›ŽŠ•’£Š³¨˜ȱŽȱ ȱŽ¡Šžœ’ŸŠǯ1096
Š•Š—˜ȱŽ–ȱ œȱ™›Ž•’–’—Š›ŽœȱŽȱ™›˜ž—ŠœǰȱŸŽ–ȱ¥ȱ˜—Šȱ˜ȱŠ“žœŽȱꗘȱ
que deve haver na tensão entre abrangência de dados e consistência dos resul-
tadosǯȱŽ—Œ’˜—˜žȬœŽȱšžŽȱ˜œȱŒ›’·›’˜œȱŽȱšžŠ•’ęŒŠ³¨˜ȱ˜ȱšžŽȱœŽ›¤ȱŒ˜—Š˜ȱ
como dado devem ser abrangentes e que a coleta de dados deve ser a mais
ampla possível. É hora de indagar: isso é factível?
Apenas como princípio regulador. É o caso que irá indicar a extensão
da pesquisa. Dois extremos devem ser evitados: excesso de informação
pode se prestar a manipulações, ou tornar incompreensíveis os resultados;
œ’–™•’Œ’ŠŽȱŽ–ȱŽ¡ŒŽœœ˜ǰȱŠ•·–ȱŽȱŠ–‹·–ȱ™˜Ž›ȱŒ˜—ž£’›ȱŠȱŠ•œ’ęŒŠ³äŽœǰȱ
pode ignorar aspectos cruciais. No Reino Unido, de início, as AIRs eram
complicadas; o formulário-padrão das AIR possuía sessenta e três páginas.
Os agentes públicos encarregados de realizá-las tornavam-se conferido-
res de listas. Hoje, o formulário possui duas páginas, e é construído a
partir de questões-chave. Se mais páginas forem necessárias, diz-se que
a política pública não é clara, ou que se está buscando complicações.1097
A solução não é ideal. Não há como ter certeza se um formulário de duas
páginas é excessivamente simples ou se sessenta páginas é complexo. Mas
ꌊȱŠȱ’—œ™’›Š³¨˜ȱ‹›’¦—’ŒŠDZȱŠ‹›Š—¹—Œ’ŠȱœŽ–ȱŽ¡ŒŽœœ˜œDzȱœ’–™•’Œ’ŠŽȱœŽ–ȱ
reducionismos.

1096
ȱ Šȱ˜›Ž’Šȱ˜ȱž•ǰȱ™˜›ȱŽ¡Ž–™•˜ǰȱŽ¡’ŽȬœŽȱ ȱŠ™Ž—Šœȱ™Š›Šȱ›Žž•Š³äŽœȱȃœ’—’ęŒŠ’ŸŠœȄȱȯȱŠšžŽ-
las que possuem impacto anual acima de novecentos mil dólares, impacto sobre mais de um
milhão de pessoas, restrição clara sobre a concorrência de mercado ou afastamento de padrões
internacionais. Já nos EUA, a AIR completa se faz quando os custos anuais da regulação exce-
dem cem milhões de dólares, ou quando as regras implicam acréscimo de custos para setor ou
›Ž’¨˜ǰȱ˜žȱŽ›Š–ȱœ’—’ęŒŠ’Ÿ˜ȱŽŽ’˜ȱŠŸŽ›œ˜ȱ—ŠȱŒ˜—Œ˜››¹—Œ’Šǰȱ—˜ȱŽ–™›Ž˜ǰȱ—˜ȱ’—ŸŽœ’–Ž—˜ǰȱ
na produtividade ou na inovação.
1097
MACRAE. Análise de Impacto Regulatório-AIR: a experiência do Reino Unido. In: RAMALHO
(Org.). Regulação e agências reguladoras: governança e análise de impacto regulatório, p. 255 et seq.

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 429 20/08/2014 14:30:41


JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
430 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Não há prazo ideal para a conclusão da AIR. Considerando, no


Ž—Š—˜ǰȱŠȱŒ’›Œž—œ¦—Œ’ŠȱŽȱšžŽȱ˜ȱ™˜—˜ȱ·ȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—ŽȱŒ˜–™•Ž¡˜ȱ™Š›Šȱ
“žœ’ęŒŠ›ȱ Šȱ ›ŽŠ•’£Š³¨˜ȱ Šȱ ȱ ȯȱ ˜ȱ šžŽȱ Ž›¤ȱ œ’˜ȱ Œ˜—Œ•žÇ˜ȱ Šȱ ™Š›’›ȱ ˜ȱ
resultado positivo da AIR preliminar —, estima-se que não deva ser curto
demais. Na União Europeia, considera-se razoável período superior a dozes
meses para sua conclusão, sendo o período de coleta de dados a etapa
mais demorada.
A Análise de Impacto Regulatório possui óbvias utilidades. Se bem
feita, serve para incrementar a adesão da sociedade à política regulató-
ria.1098 Além disso, há o incremento da credibilidade do regulador. Há os
benefícios de se adotar algum grau de planejamento na ação pública. Não
se pode tomar decisões baseado em convicções ou preconceitos.1099 A AIR
pode tornar explícitas premissas assumidas de forma intuitiva — o que
œ’—’ęŒŠȱ Š—‘˜ȱ Ž–ȱ Ž›–˜œȱ Žȱ accountability. Em síntese: uma AIR bem
feita é um instrumento concreto da razão pública, e uma técnica colada
no pragmatismo jurídico recomendado por este livro.
Mas a AIR também possui limites. Em primeiro lugar, ela não
substitui a decisão política. A AIR não é o último suspiro da tecnocracia:
decisões — e decisões trágicas — continuarão tendo que ser tomadas. Além
do que, está-se operando com políticas públicas, que, ao mesmo tempo
que são comandos racionais, são, também, políticos, isto é, decisões que
expressam visões de mundo.1100 É importante conter — e por isso mesmo
empoderar, ao torná-las realistas — as pretensões econométricas atuantes
junto à regulação pública.
Além disso, há variáveis inesperadas em qualquer racionalização,
razão pela qual a AIR é uma previsão racional, não uma profecia. Falando
em imponderável, observe que nem tudo pode, ou mesmo deve, ser quan-
’ęŒŠ˜Dzȱ’œœ˜ȱ·ǰȱŽ–ȱœ’ȱ–Žœ–˜ǰȱ•’–’Žȱ¥ȱ ǯȱ
A AIR também possui riscos. O primeiro deles é que seja malfeita, e
aí se vai estar dando poderes ao erro. Contra isso, a melhor coisa a se fazer
é divulgar os resultados, e abri-los, e ao próprio método da AIR realizada,
à crítica pública.
Há o risco de que as AIRs sejam contaminadas: há o risco de quali-
ꌊ›ǰȱŽœŒ˜—Ž›ȱ˜žȱŠŒ›ŽœŒŽ—Š›ȱŠ˜œȱŒ˜–ȱ˜ȱ™›˜™àœ’˜ȱŽȱ˜›³Š›ȱ›Žœž•Šdos.

1098
O Decreto Federal nº 4.176/2002 sugere, no segundo item de seu Anexo I, que um dos fatores
desfavoráveis, ao se considerar um projeto de ato normativo a ser encaminhado ao Presidente
da República, é a possibilidade de impugnações judiciais. Em outras palavras: a expectativa
ŠȱŠŽœ¨˜ȱ˜œȱŠ–’—’œ›Š˜œȱŠ˜ȱŠ˜ȱ·ȱŠ˜›ȱŽȱ’—Ěž¹—Œ’Šȱ—ŠȱŽŒ’œ¨˜ȱŽȱŽ—ŒŠ–’—‘¤Ȭ•˜ȱ˜žȱ—¨˜ǯ
1099
ȱ ǯȱ‘Žȱ’œŒ’™•’—Žȱ˜ȱ˜œȬŽ—Žęȱ—Š•¢œ’œǯȱThe Journal of Legal Studies, p. 935.
1100
ȱ ȱ—¤•’œŽȱŽȱ –™ŠŒ˜ȱŽž•Šà›’˜ȱ—¨˜ȱ·ȱŽȱ—¨˜ȱ™˜ŽȱœŽ›ȱ’ŠȱŒ˜–˜ȱ“žœ’ęŒŠ’ŸŠȱ™Š›ŠȱŠȱœž‹œ’-
diariedade da intervenção do Estado na economia. Ela é um procedimento de transparência
da ação pública que, ao torná-la mais controlável e racional, torna-a, também, mais aberta
Š˜œȱ’—Ěž¡˜œȱŽ–˜Œ›¤’Œ˜œǯȱȱ ȱŒ˜—Ÿ’ŸŽȱŒ˜–ȱž–ȱœŠ˜ȱ–Š’œȱŽȱ–Ž—˜œȱ’—Ž›ŸŽ—Œ’˜—’œŠȱ—Šȱ
economia.

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
431

Se tidas como mera burocracia preliminar à elaboração de regulações, não


chegariam a seu propósito de racionalização, e seriam, em si mesmas, mais
um custo público. As AIRs devem ser para valer.
ŽœŽȱœ’–™•Žœȱ™Š›Šȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱ˜ȱ—ÇŸŽ•ȱŽȱŠŽœ¨˜ȱ¥ȱ—˜³¨˜ȱŽȱ›Š£¨˜ȱ™ø-
blica da AIR: seu método permitiria que a entidade que a realizou deixasse
de agir da forma como pretendia inicialmente? Historicamente, a entidade
deixou de agir, ou agiu de modo diferente, com base nos resultados de
 œǵȱ–ȱšžŠ•ȱ™Ž›ŒŽ—žŠ•ǵȱœȱ–žŠ—³Šœȱ˜›Š–ȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠœǵȱ–ȱŽœŽǰȱ
pode-se cogitar, inclusive, uma regulação da regulação — à semelhança
do que faz a OIRA nos EUA: avaliação da qualidade das AIRs.1101 1102
Šœȱ œǰȱŒ˜–˜ȱ—ŠœȱŒ˜—œž•ŠœȱŽȱŠž’¹—Œ’Šœǰȱ‘¤ȱ˜ȱ›’œŒ˜ȱŠȱ˜œœ’ęŒŠ³¨˜DZȱ
Šȱ›Žž•Š³¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱŽŸŽȱœŽ›ȱŽęŒ’Ž—Žȱ—˜ȱŽ–™˜ǯȱŽ–ȱœŽ–™›Žȱ›Žž•Š›ȱ‹Ž–ȱ
é produzir mais normas ou agir mais (v. discussão no próximo item), mas
o cumprimento de procedimento prévio traz sempre o risco de se tornar,
com o tempo, excessivo. A sugestão é a adoção de limiar para a realização
das análises.

¤ǰȱ™˜›ȱę–ǰȱ–Š’œȱž–ŠȱŸŽ£ȱŒ˜–˜ȱ—ŠœȱŒ˜—œž•ŠœȱŽȱŠž’¹—Œ’Šœȱ™ø‹•’-
cas, o risco da captura epistêmica: se toda informação relevante é aquela
disponível a partir do mercado, é de se cogitar um viés, via exposição
informacional, àquela posição. E há o risco que é irmão da AIR como legi-
timação retórica: a exigência de AIRs como estratégia privada de bloqueio
da regulação pública.

4.4 Outros problemas da regulação. Um paradoxo da


regulação
Há dois problemas da regulação que, pela importância, merecem
ser mencionados. A rigor, eles não seriam problemas autônomos, mas são,
Š–‹˜œǰȱ Žœ™ŽŒ’ęŒŠ³äŽœȱ ˜ȱ ™›˜‹•Ž–Šȱ Šȱ ’—˜›–Š³¨˜ǯȱ ȱ ™›’–Ž’›˜ȱ Ž•Žœȱ ·ȱ
(i) o viés de foco.

1101
No Brasil atual, pode-se imaginar que os Tribunais de Contas venham a atuar analisando a
qualidade das análises de impacto regulatório realizadas por agências. Os Tribunais de Contas
™˜Ž–ȱŠžŠ›ȱ’Ž—’ęŒŠ—˜ȱŠ•‘ŠœȱŽȱ˜–’œœäŽœȱ›Žž•Šà›’Šœǯȱ–ȱ—˜œœŠȱ˜™’—’¨˜ǰȱŽ–ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱ’œœ˜ȱ
não impacta na autonomia dessas entidades — é claro que, no limite, há risco de que diálogos
técnicos escondam disputas de poder. Desenvolver em José Vicente Santos de Mendonça (A
propósito do controle feito pelos Tribunais de Contas sobre as agências reguladoras: em busca
de alguns standards possíveis. Revista de Direito Público da Economia – RDPE).
1102
No Direito americano, é bom observar que as independent agencies — as agências independentes,
como o Securities and Exchange Comission e o National Labor Relations Board — não subme-
tem suas propostas de normas ao OIRA. Só as executive agencies — as agências excutivas — estão
˜‹›’ŠŠœȱ Šȱ Š—˜ǯȱ –‹˜›Šȱ Šȱ Š—Š•˜’Šȱ Ž’¡Žȱ Šȱ ŽœŽ“Š›ǰȱ ·ȱ ™˜œœÇŸŽ•ȱ Šę›–Š›ȱ šžŽȱ —˜œœŠœȱ Š¹—Œ’Šœȱ
reguladoras estão mais próximas às independent agencies (embora sem gozar de toda a autonomia
destas) do que às executive agencies (que são, em muitos casos, órgãos públicos comuns). Outro
ponto interessante a se destacar é que, historicamente, os presidentes norte-americanos vêm ten-
tando submeter a atuação das agências independentes à análise do OIRA, até hoje sem sucesso.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
432 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

(i) O problema regulatório do viés de foco, na expressão da economia


Œ˜–™˜›Š–Ž—Š•ǰȱ·ȱŠȱŽ—¹—Œ’ŠȱŠȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱœ˜•ž³äŽœȱŠȱ™Š›’›ȱ˜ȱŒŠ–™˜ȱŽȱ
expertise da entidade administrativa a quem coube tratar o ponto. É espécie
de miopia seletiva, que reconhece o mundo a partir do ângulo de visada
da atribuição funcional. Figure-se exemplo.
Em hipótese de acidentes com veículos em certo ponto da estrada,
˜ȱŽ—Ž—‘Ž’›˜ȱŽȱ›¤Ž˜ȱŽ—Ž›¤ȱŠȱŽ—¡Ž›Š›ȱ˜ȱŠœœž—˜ȱŒ˜–˜ȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŽȱ
sinalização, e, assim, proporá um novo sinal de trânsito no local. O especia-
•’œŠȱŽ–ȱ™’œ˜œȱ™˜Ž›¤ȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ—ŠȱŒ˜‹Ž›ž›ŠȱŠœ¤•’ŒŠǰȱŽǰȱ™Š›Šȱ
ele, a solução será recapear o trecho. O patrulheiro rodoviário associará o
problema à imprudência ao volante — direção em alta velocidade e mo-
toristas embriagados —; para ele, a solução está em penas mais rigorosas
para tais ilícitos, melhores condições de trabalho para os patrulheiros, e
–Š’˜›ȱ—ø–Ž›˜ȱŽȱœŽ›Ÿ’˜›ŽœȱŽȱ꜌Š•’£Š³¨˜ǯȱŠŠȱž–ȱŸ¹ȱ˜ȱ™›˜‹•Ž–ŠȱŠȱ
partir de seu ponto de vista. Quem está certo?1103
Há, é claro, riscos associados a fatores multicausais, mas não é certo
que alguma dessas respostas precise estar correta. Pode ser que o problema
esteja longe de todos e de cada um deles: o problema pode ser de alguma
falha na construção dos veículos que se acidentaram. Nenhum dos espe-
cialistas consultados sequer teria capacidade de ’Ž—’ęŒŠ› o problema. A
regulação setorial, com as virtudes da especialização, traz também seus
defeitos: o mundo do especialista é um mundo epistemicamente limitado.
Em tese, uma estratégia de centralização da informação (v. supra)
funcionaria de modo a neutralizar o viés de foco. Um órgão como o OIRA
consolida as diversas perspectivas e busca encontrar a verdade na mul-
tiplicidade. No entanto, estratégias de dispersão da informação também
podem buscar neutralizar tal viés por meio da criação de equipes multi-
disciplinares, e da troca de informação com órgãos públicos e privados.
O período de consulta pública, e a audiência pública, servem como etapas
de autoexposição crítica.
(ii) O segundo viés é o de comprometimento com a missão. Toda agência
possui uma missão institucional: regular tal setor; neutralizar tais riscos;
promover tais e quais objetivos. Ora, quando elas são apresentadas a um
problema que toque com seus objetivos de criação, a resposta que racional-
mente darão a ele é, na média, regular mais. Por quê? As explicações para
o comportamento são simples. Porque é isso o que sabem fazer. Porque,
com isso, autoatribuem-se mais poder e posição de barganha institucional.
Porque, em última análise, é pela criação de mais normas e pela prática de
–Š’œȱŠ˜œȱšžŽȱŽ•Šœȱ“žœ’ęŒŠ–ȱœžŠȱŽ¡’œ¹—Œ’Šǯ1104

1103
O exemplo foi sugerido pelo Professor Mark Tushnet em sala de aula.
1104
Em nossa experiência administrativa, o viés de comprometimento de missão encontra um
estado de “tempestade perfeita” a partir de certos exemplos de atuação do Ministério Público

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
433

O viés de comprometimento com a missão é inevitável em qualquer


instituição não autorreferente. O Ministério Público vai, na média, buscar
se autoatribuir mais poderes. As polícias irão, na média, buscar mais atri-
‹ž’³äŽœǯȱœȱŠ¹—Œ’Šœȱ›Žž•Š˜›ŠœȱŽœŠ›¨˜ǰȱ—Šȱ–·’Šǰȱ’Ž—’ęŒŠ—˜ȱ—˜Ÿ˜œȱ
pontos associados à sua missão principal, e, com isso, praticando mais atos e
expedindo mais normas.1105 O viés de comprometimento com a missão pode
redundar, se não for contrabalançado por alguma instância de controle, num
estado de hiper-regulação. Regular é, em certo sentido, sempre mais regular.
Situações de desregulação e de não regulação serão, na perspectiva
das agências reguladoras, contraintuitivas e excepcionais: agência que
sistematicamente propõe estratégias de desregulação é entidade que vai
negando sua própria razão de existir, seja na prática, seja no imaginário
da administração central e, quiçá, no da sociedade.1106
O problema é que nem sempre o que é melhor para as entidades
reguladoras é o melhor para a sociedade. O viés de comprometimento com
a missão gera o que é, na essência, um desalinhamento entre os interesses
das entidades reguladoras e o interesse da sociedade. Aquelas querem,
antes de tudo, existir; a sociedade quer uma regulação democrática e
ŽęŒ’Ž—Žǯȱ˜›ȱŸŽ£ŽœǰȱŠȱ–Ž•‘˜›ȱŽœ›Š·’Šȱ›Žž•Šà›’Šȱ™˜ŽȱœŽ›ȱŠȱŽœ›Žž•Š-
ção ou a não regulação; a autorregulação privada, acompanhada ou não
de validação pública; etc. Tais estratégias são, contudo, ontologicamente
contrárias aos interesses das entidades reguladoras (ainda que, por vezes,
elas possam adotá-las de modo pontual: é-lhes estratégico, também, passar
a imagem de moderação).
O viés do comprometimento com a missão requer algum tipo de
controle público da atuação das entidades reguladoras. Os argumentos

e dos Tribunais de Contas, os quais buscam responsabilizar as agências e demais entidades


reguladoras pela chamada omissão regulatória. Como ninguém sabe ao certo do que se trata
tal omissão, o viés de comprometimento de missão se encontra com o medo de responsabili-
zação pessoal de dirigentes e servidores, e o resultado é uma regulação cada vez mais intensa,
abrangente e espetacular.
1105
O viés de comprometimento com a missão deve ser diferenciado do viés de cruzada, que é seu
paroxismo. O viés de cruzada é a assunção, pela instância reguladora, do dever moral da
extirpação de algum comportamento de risco. O viés de cruzada possui traços moralistas e
paternalistas. O grande exemplo do viés de cruzada é o comprometimento com a missão das
agências reguladoras do consumo de produtos como o tabaco e o álcool. O viés de cruzada,
além dos problemas associados ao viés de comprometimento com a missão, mostra-se contrá-
›’˜ȱ¥ȱ›Š£¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠǰȱ™˜’œȱŠ•’Ž—ŠȱŽ¡’œŽ—Œ’Š•–Ž—Žȱ™Š›ŒŽ•Šœȱœ’—’ęŒŠ’ŸŠœȱŠȱœ˜Œ’ŽŠŽȱŠȱ™Š›’›ȱ
de um dado tão singelo quanto um padrão de consumo.
1106
A explicação para isso é outro viés — o viés de saliência —, causado pela heurística da represen-
tatividade. Todos sabemos que desregular e não regular são, também, estratégias regulatórias,
considerando-se a ideia de regulação em sentido amplo. Mas tais estratégias são evidentemente
menos visíveis do que a prática de atos e a expedição de normas regulatórias. Portanto, a agên-
cia reguladora possui mais estímulos a adotar posturas comissivas do que omissivas, pois as
™›’–Ž’›ŠœȱŠ£Ž–ȱŒ˜–ȱšžŽȱœŽ“Šȱ™Ž›ŒŽ‹’Šǰȱ™Ž•˜œȱŠ˜›Žœȱ™˜•Ç’Œ˜œȱŽȱœ˜Œ’Š’œȱœ’—’ęŒŠ’Ÿ˜œȱ¥ȱœžŠȱŽ¡’œ-
tência, como “atuante”, “pró-ativa” — o que é estratégico para que receba recursos públicos,
acumule capital político-administrativo etc.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
434 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

de mérito técnico e de autonomia das agências, usuais no discurso prático-


acadêmico do Direito Regulatório brasileiro dos anos 90, podem acirrá-lo. É
importante que sejam respeitados em seu núcleo, mas não é recomendável
que a regulação se faça de modo imune aos padrões usuais de accountability
republicana. O Judiciário, os Tribunais de Contas, o Ministério Público, as
advocacias públicas, ainda que de modo deferente às decisões e normas
das agências — até pelo dado pragmático da expertise1107 —, podem e de-
vem opinar sobre e controlar a qualidade da regulação pública feita por
agências, e, como instâncias com interesses diversos daqueles das entidades
›Žž•Š˜›Šœǰȱœ¨˜ȱŠ•ž—œȱ˜œȱ–ŽŒŠ—’œ–˜œȱ™˜œœÇŸŽ’œȱ™Š›ŠȱŽ›Š›ȱœžęŒ’Ž—Žȱ
fricção institucional capaz de reduzir, preventiva ou repressivamente, o
viés de comprometimento com a missão.1108
Falando em comprometimento de missão e em tendência à hiper-
regulação, é hora de apresentar o paradoxo regulatório mencionado no
título. Ei-lo: super-regulação causa sub-regulação. Entenda-se.1109
A super-regulação — a regulação intensa recaindo sobre um único
›’œŒ˜ȱȯȱ’—Ž—œ’ęŒŠȱ˜ȱ™›˜‹•Ž–ŠȱŽȱȃŠŒŠ‹Š›ȱŒ˜–ȱ˜œȱø•’–˜œȱŽ£ȱ™˜›ȱŒŽ—˜ȱ
do risco potencial”. Ou seja, a busca pela exterminação por completo do
risco. Só que os custos da inteira redução de certo risco — quando isso é
possível, e raramente o é — são inversamente proporcionais à sua inci-
dência estatística.1110 Econômica e socialmente, isso não faz sentido: se já se
gastou novecentos milhões para reduzir noventa por cento de determinado
risco, não é racional gastar oitocentos milhões para reduzi-lo em mais cinco
por cento. Se o Poder Público insiste nisso, faltarão recursos públicos para
regular outros setores. Assim, super-regulação causa sub-regulação.
Mas há uma segunda razão para tanto: é que, se o Poder Público
concentra todas as energias numa intensa campanha regulatória sobre
certo setor, há natural contraofensiva por parte das empresas afetadas.
Questionamentos judiciais, lobbiesǰȱ Œ˜—›Š˜Ž—œ’ŸŠȱ ™˜•Ç’ŒŠȱ ꗊ—Œ’ŠŠȱ
pelo capital privado interessado. Tudo isso gera custos e desgaste para
a máquina pública; recursos que serão potencialmente desviados de seu
uso na regulação de outros setores ou riscos. Observe-se, inclusive, que é
mais fácil invalidar judicialmente uma regulação que pareça excessiva do
que uma que soe moderada. E, uma vez invalidada, passa a não existir
regulação alguma. Super-regulação gerando sub-regulação.

1107
De lege ferenda, poder-se-ia pensar num opinamento prévio da racionalidade técnica de proje-
tos legislativos a ser exercitado pelas agências reguladoras. O Congresso consultaria as agên-
cias a respeito da tecnicidade de projeto de lei, e estas emitiriam parecer não vinculante.
1108
É importante observar, no entanto, que tais instâncias também podem acirrar tal viés. V. nota
de rodapé supra.
1109
Em sentido próximo (mas não idêntico), v. SUNSTEIN, Cass. Paradoxes of the Regulatory
State. University of Chicago Law Review, p. 407 et seq.
1110
BREYER. Breaking the Vicious CircleDZȱ˜ Š›ȱ쎌’ŸŽȱ’œ”ȱŽž•Š’˜—ǯ

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 434 20/08/2014 14:30:41


SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
435

Melhor faria o Poder Público se optasse por regulação mais abran-


gente — isto é, sobre mais setores, já que neutralizaria mais riscos potenciais
—, porém menos intensa, quer dizer, que acabasse não lhe sendo tão cus-
tosa. Essa é uma estratégia possível para buscar neutralizar o paradoxo.1111

4.5 A Nova Governança e a regulação


pragmatista-experimental
Dos approachs neorregulatórios sugeridos na teoria e, em alguns casos,
adotados na prática, escolhemos descrever, para encerrar, um que se identi-
ꌊȱŒ˜–ȱž–ŠȱŠœȱ™Ž›ŠœȱŽȱ˜šžŽȱ˜ȱ•’Ÿ›˜DZȱŠȱ—˜³¨˜ȱŽȱ™›Š–Š’œ–˜ȱŒ˜–˜ȱ
abertura à experimentação. Ele adota uma estratégia de subsidiariedade, mas
numa linha compatível com a razão pública. É proposta, ainda, que incorpora
a importância da informação derivada do know-how (v. item 4.1, supra). É a
perspectiva que vem se chamando de Nova Governança.1112
A Nova Governança atribui autoridade regulatória ao menor nível
em que possa ser feita. São as empresas que devem elaborar políticas
de redução de riscos ambientais; são as organizações que devem criar
mecanismos de incremento da qualidade da prestação de serviços; são
as escolas que devem construir seus cardápios para os alunos. Processos
de baixo para cima são melhores do que os de cima para baixo, pois há
informação derivada de know-how que pode ser usada — informação que
o Poder Público desconhece (v. item 4.1).
Num primeiro momento, o Poder Público estabelece objetivos
preliminares: “queremos reduzir a obesidade infantil em dez por cento
em dois anos”. Mas o regulador público não diz como fazê-lo. “Não vamos
’£Ž›ȱŒ˜–˜ȱŠ£Ž›DzȱŒ˜—ęŽȱŽ–ȱœŽžȱknow-how para tanto”. O Poder Público
realiza monitoramento constante do desempenho na obtenção do índice.
Šœ˜ȱŽœŽȱ‘Š“ŠȱœŽȱ–˜œ›Š˜ȱ’—ŠŽšžŠ˜ȱȯȱ–ž’˜ȱŠ–‹’Œ’˜œ˜ǰȱ˜žȱ’—œžęŒ’Ž—-
Ž–Ž—ŽȱŠ–‹’Œ’˜œ˜ȱȯǰȱ˜ȱ›Žž•Š˜›ȱ™˜Žȱ–˜’ęŒ¤Ȭ•˜ǯȱȃŠ•ŸŽ£ȱŽŸ¹œœŽ–˜œȱ
reconsiderar o percentual de dez por cento em dois anos, e reduzi-lo para
Œ’—Œ˜ȱ ™˜›ȱ ŒŽ—˜Ȅǯȱ Š•ȱ –˜—’˜›Š–Ž—˜ȱ ™Ž›–’Žȱ ’Ž—’ęŒŠ›ȱ Žȱ ’œœŽ–’—Š›ȱ
práticas que estão produzindo os melhores resultados. Elas são, então,
divulgadas às entidades reguladas, mas não impostas. “Não estamos

1111
ȱ
¤ȱ ˜ž›˜œȱ ™Š›Š˜¡˜œȱ ›Žž•Šà›’˜œȱ ’Ž—’ęŒŠ˜œȱ ™Ž•Šȱ •’Ž›Šž›Šǯȱ ž›˜ȱ ‹Ž–ȱ ’—Ž›ŽœœŠ—Žȱ ·ȱ ˜ȱ
paradoxo “richer is safer”. A introdução de qualquer nova regulação possui um preço para a
sociedade. Na média, populações com mais renda livre se expõem a menos riscos. Assim, uma
regulação introduzida para reduzir certo risco pode, ao reduzir a renda disponível, agravar os
›’œŒ˜œȱŠ˜œȱšžŠ’œȱŠšžŽ•ŠȱŒ˜–ž—’ŠŽȱŽœŠ›’Šȱ’œ™˜œŠȱŠȱœŽȱŽ¡™˜›ȱǻ  ǯȱ’Œ‘Ž›ȱ’œȱœŠŽ›ǯ
The Public Interest, 1980).
1112
V., por todos, SABEL; ZEITLIN. Experimentalist Governance. In: LEVI-FAUR (Ed.). The Oxford
Hanbook of Governance.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
436 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

dizendo que você deve segui-las; estamos apenas disseminando práticas


šžŽȱŸ¹–ȱŠ—˜ȱŒŽ›˜Ȅǯȱ˜ȱꗊ•ȱ˜ȱ™Ž›Ç˜˜ǰȱŒŠœ˜ȱ‘Š“Šȱ’—˜‹Ž—³¨˜ȱŽ¡›Ž–Šȱ
do índice, e descartado o irrealismo dos objetivos, algum tipo de punição
pode ser aplicada à entidade regulada. Caso o índice seja ultrapassado,
pode-se premiá-la.
A Nova Governança permite que as entidades reguladas experimen-
tem diferentes formas de cumprir as metas propostas pelo Poder Público,
inclusive e especialmente a partir de sua expertise. Ela é recursiva: aprende
com os resultados, e os usa para corrigir rumos e propor novas metas. É
regulação focada em resultados, não em processos.
Outra forma de incidência da Nova Governança é por meio de nego-
ciações entre o Poder Público e entidades reguladas com vistas a que estas
criem mecanismos internos de redução de risco ou de incremento da quali-
dade dos bens ou serviços. A iniciativa Maine 200 é exemplo da estratégia.
Em 1990, a agência americana responsável pela segurança no trabalho
ŸŽ›’ęŒ˜žȱšžŽȱ˜ȱŠ’—Žȱ™˜œœžÇŠȱǗ’ŒŽœȱ–Š’˜›Žœȱ˜ȱšžŽȱŠȱ–·’Šȱ—ŠŒ’˜—Š•ȱŽȱ
acidentes com empregados. Propôs no ano de 1993, às duzentas empresas
do Estado com maiores índices de acidentes de trabalho, em caráter ex-
perimental, o seguinte: na primeira opção, a agência realizaria inspeções
regulares a cada seis meses. Na segunda opção, a empresa apresentaria
programa próprio de redução de acidentes, sujeito à validação pela agência,
e, em troca, as inspeções seriam anuais (ainda que as optantes tivessem
que enviar relatórios a cada quatro meses à agência, e estivessem sujeitas
a inspeções-surpresa). Caso as empresas não enviassem relatórios, seriam
movidas para a primeira lista. Quer dizer, as empresas ganhavam menos
inspeções regulares em troca de elaborar sistema interno de redução de
acidentes, com base em seu conhecimento local, que funcionasse de modo
comprovado. Ao que consta, a iniciativa produziu bons resultados.1113 1114
ȱ˜ŸŠȱ ˜ŸŽ›—Š—³Šȱ·ȱ̎¡ÇŸŽ•ȱŽȱž–ȱ–˜˜ȱšžŽȱŠȱ›Žž•Š³¨˜ȱŒ˜Ž›Œ’’ŸŠȱ
não pode ser. Aproveita a expertise interna às empresas de uma forma mais
rápida e orgânica do que o recolhimento de comentários numa consulta
pública. É subsidiária, não num sentido ideológico-econômico, mas num
sentido pragmático-experimental: prefere unidades menores para reduzir

1113
Descrição da iniciativa Maine Top 200 e indicação de seus resultados pode ser encontrada
Ž–DZȱ
ȱȱ˜›ȱŽ–˜Œ›Š’Œȱ ˜ŸŽ›—Š—ŒŽȱŠ—ȱ ——˜ŸŠ’˜—ǯȱ’œ™˜—ÇŸŽ•ȱŽ–DZȱǀ‘Ĵ™DZȦȦ   ǯ
’——˜ŸŠ’˜—œǯ‘Š›ŸŠ›ǯŽžȦŠ Š›œǯ‘–•ǵ’ƽřŜşřǁǯȱŒŽœœ˜ȱŽ–DZȱŖşȱ–Š›ǯȱŘŖŗŚǯ
1114
Apesar dos bons resultados, o legalismo adversarial da cultura jurídica norte-americana
impediu a pretendida expansão do programa para o resto do país: a Câmara de Comércio do
Estado ajuizou demanda alegando que a iniciativa era regulação tão intensa que, na prática,
equivalia a uma norma regulatória, a qual teria sido criada de forma ilegal, sem a observância
do rito da consulta pública. A Corte de Apelação do Distrito de Colúmbia invalidou o programa
em 1999. Posteriormente, a administração Bush criou programa semelhante — o “Voluntary
Compliance Program” —, mas sem nenhum benefício atrelado (LOBEL. Interlocking Regulatory
Š—ȱ —žœ›’Š•ȱŽ•Š’˜—œDZȱ‘Žȱ ˜ŸŽ—Š—ŒŽȱ˜ȱ˜›”™•ŠŒŽȱŠŽ¢ǯ Administrative Law Review).

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SEGUNDA PARTE – APLICAÇÕES
CAPÍTULO 4 – A NEORREGULAÇÃO – PROBLEMAS, INSTRUMENTOS E SUGESTÕES
437

riscos, e permitir a eclosão de diversas experiências de modo mais rápido


(“começar pequeno”).
Não se pode, entretanto, cair no erro de sempre: sugerir que modelos
regulatórios estejam constitucionalmente impostos em virtude de interpre-
Š³äŽœȱž—Š–Ž—Š•’œŠœȱ˜ȱ™›’—ŒÇ™’˜ȱŠȱ•’Ÿ›ŽȬ’—’Œ’Š’ŸŠȱ˜žȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’Šǰȱ
ou abdicar do controle coercitivo do Estado, como se este fosse algo passée.

4.6 Conclusão parcial: o futuro da regulação e a regulação


do futuro
A regulação pública do futuro é uma que trata de modo transparente
seus problemas de informação e de adesão. É a que experimenta estratégias
inovadoras; a que se abre ao aprendizado contínuo; a que trata consultas
e audiências como fonte de informação e de erro; a que não vilaniza nem
œŠ—’ęŒŠȱŠ˜›Žœȱ™›’ŸŠ˜œDzȱŠȱšžŽȱœŽȱŠ‹›Žȱ¥ȱŽ–˜Œ›ŠŒ’ŠȱŽȱŠ˜ȱŒ˜—›˜•Žȱ™ø‹•’Œ˜Dzȱ
Šȱ šžŽȱ ›ŠŠȱ œŽžœȱ Ÿ’ŽœŽœȱ Œ˜–ȱ ˜ȱ –Žœ–˜ȱ Š¨ȱ Œ˜–ȱ ˜ȱ šžŠ•ȱ ’Ž—’ęŒŠȱ Ÿ’ŽœŽœȱ
alheios; a que usa mecanismos da economia comportamental e de análises
de impacto como estratégias inteligentes de atuação; a que recolhe, trata
e troca informação o tempo inteiro; a que não é autoritária nem ingênua;
ŠȱšžŽȱ’Ž—’ęŒŠȱ˜ȱŸŠ•˜›ȱ–˜›Š•ȱŽȱŽ™’œ¹–’Œ˜ȱŠȱŽ–˜Œ›ŠŒ’ŠDzȱŠȱšžŽȱŽ—Ž—Žȱ
šžŽȱŽęŒ’¹—Œ’ŠȱŠ–’—’œ›Š’ŸŠȱŽȱ›ŠŒ’˜—Š•’ŠŽȱŽŒ˜—â–’ŒŠȱœ¨˜ȱ–Ž’˜œǰȱ—¨˜ȱ
ꗜDzȱŠȱšžŽȱ•¹ȱŠœȱŽ—›Ž•’—‘ŠœȱŠȱ’œ™žŠȱ™Ž•ŠȱŒŠ™ž›Šȱ˜ȱ’–Š’—¤›’˜ȱŽ—›Žȱ
os discursos da política e da técnica.
Numa palavra: a regulação do futuro não é subsidiária. É complexa.

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JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 438 20/08/2014 14:30:41
CONCLUSÃO GERAL

Síntese objetiva
˜ȱꗊ•ȱ˜ȱ•’Ÿ›˜ǰȱ·ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱŠ™›ŽœŽ—Š›ǰȱœ˜‹ȱŠȱ˜›–ŠȱŽȱ™›˜™˜œ’³äŽœȱ
objetivas, algumas das ideias aqui defendidas.

I - Quanto ao pragmatismo
ŗǯȱȱ™›Š–Š’œ–˜ȱœž›Žȱ—Šȱꕘœ˜ęŠȱŒ˜–ȱ‘Š›•ŽœȱŽ’›ŒŽǰȱ—ŠȱŒ˜—’-
³¨˜ȱŽȱž–ŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱœ’—’ęŒŠ³¨˜ǰȱ˜›—Š—˜ȬœŽǰȱŠȱ™Š›’›ȱŠȱ›ŽŒŽ™³¨˜ȱŠœȱ
’Ž’ŠœȱŽœŽȱ™˜›ȱ’••’Š–ȱ Š–Žœǰȱž–ŠȱŽ˜›’ŠȱŠȱŸŽ›ŠŽǰȱŽǰȱŠę—Š•ǰȱŒ˜–ȱ ˜‘—ȱ
Dewey, uma teoria social. Afora discussões clássicas sobre o assunto — se
˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱ·ȱŽȱŠ˜ȱž–Šȱꕘœ˜ęŠȱ˜žȱž–ȱ–˜˜ȱŽȱœŽȱŠ£Ž›ȱꕘœ˜ęŠDzȱ
šžŠ—˜œȱ™›Š–Š’œ–˜œȱŽ¡’œŽ–ȱȯǰȱŠȱŸŽ›ŠŽȱ·ȱšžŽȱœŽȱ™˜ŽȱŠę›–Š›ȱŠȱŽ¡’œ-
tência de uma “matriz pragmatista” consistente no antifundacionalismo,
—˜ȱŒ˜—œŽšžŽ—Œ’Š•’œ–˜ȱŽȱ—˜ȱŒ˜—Ž¡žŠ•’œ–˜ǯȱ˜›ȱ–ž’˜ȱŒ›’’ŒŠ˜ȱ—˜ȱꗊ•ȱ
do século XIX, o pragmatismo desapareceu, só vindo a ressurgir, de modo
–˜’ęŒŠ˜ǰȱŽ–ȱ–ŽŠ˜œȱ˜ȱœ·Œž•˜ȱǰȱŒ˜–ȱ’Œ‘Š›ȱ˜›¢ȱŽȱœžŠȱŠ—’ę•˜œ˜ęŠǯ
ȱšžŽœ¨˜ȱšžŽȱœŽȱŒ˜•˜ŒŠȱ·ȱŠȱŠȱž’•’ŠŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱ
para o debate sobre o pragmatismo jurídico. Embora autores como Richard
˜œ—Ž›ȱŽȱ‘˜–Šœȱ ›Ž¢ȱŠŒ›Ž’Ž–ȱšžŽȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱŽ–ȱ™˜žŒ˜ȱ
a contribuir ao mundo do Direito, pensamos que, ao contrário, é possível
aplicar a “matriz” pragmatista para examinar questões jurídicas. Além
’œœ˜ǰȱ ·ȱ ’—Ž›ŽœœŠ—Žȱ Œ˜—‘ŽŒŽ›ȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ Œ˜–˜ȱ –Ž’˜ȱ Žȱ
contextualizar as propostas das teorias do pragmatismo jurídico, que, em
–Š’˜›ȱ˜žȱ–Ž—˜›ȱ›ŠžǰȱŽ›’ŸŠ–ȱŠ•ž–ŠœȱŽȱœžŠœȱŒŠ›ŠŒŽ›Çœ’ŒŠœȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ
pragmatista. Todas as teorias do pragmatismo jurídico têm sua exposição
iniciada com explicações de por que possuem muita, alguma ou nenhuma
›Ž•Š³¨˜ȱŒ˜–ȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘǰȱŠÇȱšžŽȱŒ˜—‘ŽŒ¹Ȭ•˜ȱ·ȱø’•ȱ—˜ȱ–Ç—’–˜ȱ
nesse momento.
2. O pragmatismo jurídico de Richard Posner é a mais famosa teoria
dentro da chave semântica dos “pragmatismos jurídicos”. Ela se diz uma

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
440 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Ž˜›’Šȱ’œŠ—ŽȱŽȱ˜ŠœȱŠœȱŸŠ›’ŠŠœȱŸŽ›œäŽœȱ˜œȱ™›Š–Š’œ–˜œȱꕘœàꌘœǯȱ
Na essência, é uma teoria da decisão que sugere aos julgadores decidirem
com os olhos postos nas consequências de suas decisões. Os julgadores
devem decidir de modo a produzir as consequências mais razoáveis,
consideradas todas as variáveis relevantes para o caso — incluída a consi-
deração dos efeitos sistêmicos da decisão, isto é, os efeitos para o sistema
jurídico como um todo: a importância de se preservar a generalidade, a
previsibilidade, a segurança jurídica etc.
O pragmatismo jurídico de Posner possui seis características: é
(i) eclético — usa de diversas teorias sem maiores preocupações com
consistências —, (ii) instrumental — vê as normas jurídicas e a teoria jurí-
’ŒŠȱŒ˜–˜ȱ’—œ›ž–Ž—˜ȱ™Š›Šȱž–ȱę–ȱȯǰȱǻ’’’ǼȱŒ˜—Ž¡žŠ•ȱȯȱ¤ȱ’–™˜›¦—Œ’Šȱ
Š˜ȱŒ˜—Ž¡˜ȱȯǰȱǻ’ŸǼȱŠ—’˜›–Š•’œŠȱȯȱ—¨˜ȱŸ¹ȱŠȱ˜›–ŠȱŒ˜–˜ȱž–ȱę–ȱŽ–ȱœ’ȱ
mesmo, ainda que na maioria das vezes opte por ela graças a uma decisão
de preservação de valores socialmente percebidos como importantes ao
Direito —, (v) empírico — importa-se com a experiência e com as ciências
experimentais —, e (vi) retórico: liberta-se das amarras do discurso formal
e formalizante do Direito.
Muitas críticas foram lançadas contra a teoria de Posner. Sele-
cionamos seis: (i) o pragmatismo de Posner estimularia uma amplíssima
discricionariedade judiciária; (ii) seria desrespeitoso para com os direitos
fundamentais; (iii) seria incompleto, pois mandaria decidir da melhor
forma possível, mas não diria como se chegar a isso; (iv) seria pouco prá-
tico, uma vez que o caminho mais fácil, seguro e barato, consideradas as
características do processo judicial e a aptidão institucional do Judiciário,
seria a adoção do formalismo como teoria da decisão. Ainda, (v) o pragma-
tismo posneriano estimularia o Legislativo a produzir leis “ruins”, já que,
de todo modo, elas poderiam ser “consertadas” pelos juízes pragmatistas.
˜›ȱ ę–ǰȱ Šœȱ Ÿ’œäŽœȱ ’—œ›ž–Ž—Š•’œŠœȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ȱ ǻŽȱ šžŽȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ
posneriano seria exemplo) (vi) destruiriam a noção de bem comum,
porque estariam prontas a desconsiderar normas jurídicas em favor de
considerações utilitárias.
Diante de tais críticas, Posner provavelmente replicaria que seu
pragmatismo não concede discricionariedade aos juízes — apenas é
transparente em relação ao que efetivamente já ocorre — e não é menos
desrespeitoso para os direitos fundamentais do que um formalismo
manipulador. Ainda, diria que os juízes, ao decidirem com base no que
pensem ser o melhor para cada um, chegarão a decisões melhores do que
as determinadas pelo formalismo. Aliás, seu pragmatismo recomendaria,
por razões pragmáticas, a adoção do formalismo como teoria da decisão
na maioria dos casos. E o argumento da crítica referente às leis “ruins”
poderia ser revertido, uma vez que os legisladores, mercê das virtudes
do pragmatismo jurídico, poderiam se sentir convidados a elaborar leis
ȃ–Ž•‘˜›ŽœȄǰȱ™˜›šžŽȱŒ˜—ꊗŽœȱ—ŠȱŒ˜–™•Ž–Ž—Š³¨˜ȱŠ’ŸŠȱ˜ȱ ž’Œ’¤›’˜ǯ

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CONCLUSÃO GERAL 441

3. Além de Posner, outros autores elaboraram teorias do prag-


matismo jurídico. Dentre eles, Michael Sullivan, procurando resgatar
˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ȱ ꕘœàꌘȱ Žȱ Ž Ž¢ȱ —ž–Šȱ ’—Œ’¹—Œ’Šȱ •’‹Ž›Š•ȱ “ž—˜ȱ Š˜ȱ
Direito; o justice Stephen Breyer, reconhecendo a importância dos ele-
mentos tradicionais da interpretação jurídica, mas ressaltando o papel da
análise prospectiva das consequências, bem como de se decidir de modo
a reforçar a participação dos cidadãos nas escolhas; e Jules Coleman, com
ž–ŠȱŽ˜›’Šȱ˜ȱ™˜œ’’Ÿ’œ–˜ȱ’—Œ•žœ’Ÿ˜ȱšžŽǰȱ˜ȱ™›Š–Š’œ–˜ȱꕘœàꌘȱǻ˜žȱ
jurídico), só tem o nome.
4. O pragmatismo jurídico também pode ser estudado junto às
teorias da argumentação jurídica. Nessa seara, uma das mais célebres
é a teoria de Neil MacCormick, que, partindo de importantes decisões
judiciais na história dos EUA e da Inglaterra, acredita que, nas hipóteses
em que as normas não são claras, ou quando são omissas, haver-se-á de
apelar às consequências da decisão. Tais consequências devem ser anali-
sadas à luz dos valores constitucionais e de uma possível universalização
do julgamento. Para MacCormick, consequências são implicações lógicas
necessárias, e não resultados imediatos de uma decisão, ou probabilidades
estatísticas da ocorrência de eventos.
Já Aulius Aarnio apenas detalha como os argumentos consequen-
Œ’Š•’œŠœȱ˜™Ž›Š–ȱŽ–ȱŒ˜—Œ›Ž˜ǯȱ
¤ȱ ž–ŠȱŽœ™ŽŒ’ęŒŠ³¨˜ȱŠœȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’Šœȱ
atribuídas a cada uma das possíveis decisões em análise e, então, a colo-
cação delas numa ordem de preferência. Logo após, retoma-se o primeiro
™Šœœ˜ǰȱŒ˜—œ’Ž›Š—˜ȬœŽȱ–Š’œȱ‹Ž–ȱ“žœ’ęŒŠŠȱŠȱ˜™³¨˜ȱŽȱŽŒ’œ¨˜ȱšžŽȱŽ›Š›¤ȱ
as melhores consequências. Aarnio, tal como MacCormick, acredita que
a argumentação consequencialista é o último passo do procedimento de
“žœ’ęŒŠ³¨˜ǰȱŠ™•’Œ¤ŸŽ•ȱšžŠ—˜ȱŠœȱ•Ž’œǰȱŠȱŠ—¤•’œŽȱ˜œȱ›Š‹Š•‘˜œȱ™›Ž™Š›Šà›’˜œȱ
ŽŒǯȱ“¤ȱŽę—’›Š–ȱŠœȱ™˜œœ’‹’•’ŠŽœȱŽȱ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ȱ˜ȱ’œ™˜œ’’Ÿ˜ǯȱŠ›—’˜ȱ
não crê que a argumentação consequencialista possua valor jurídico pró-
™›’˜DZȱŠ•·–ȱŽȱœàȱ’—Œ’’›ȱŠ˜ȱꗊ•ȱŠȱ“žœ’ęŒŠ³¨˜ǰȱŽ•Šȱ·ȱŠ™Ž—Šœȱž–Šȱ˜›–ŠȱŽȱ
discurso social, sem valor jurídico, na medida em que o discurso jurídico
está vinculado a fontes de Direito dotadas de autoridade.
Luigi Mengoni, ao notar a importância da argumentação consequen-
cialista no Direito, propõe-se a estabelecer regras metodológicas para seu
uso. A primeira seria a seleção das consequências: dever-se-ia escolher
consequências prováveis, conforme a um cálculo baseado em regras de
Ž¡™Ž›’¹—Œ’Šȱ˜žȱŽ–ȱ–˜Ž•˜œȱŒ’Ž—ÇꌘœȱŒ˜—ę¤ŸŽ’œǯȱ•·–ȱ’œœ˜ǰȱ‘ŠŸŽ›ȬœŽȬ’Šȱ
de selecionar os pontos de vista com base nos quais as consequências se-
riam avaliadas: pontos de vista conciliadores, que conseguissem conjugar
perspectivas mais e menos “econômicas”, e outras ligadas à justiça social
e ao respeito à autonomia individual. Além de tais regras metodológicas,
existiriam dois vínculos normativos para a argumentação consequencia-
lista: o respeito à lei e ao precedente.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
442 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

5. Na doutrina brasileira, considerações pragmatistas e consequen-


cialistas, ainda que sem esse nome, não são novidade. Carlos Maximiliano,
em 1924, alertava para a importância de se avaliar as consequências de
ŽŽ›–’—ŠŠȱ ’—Ž›™›ŽŠ³¨˜ǯȱ
˜“Žǰȱ Œ˜–ȱ ˜ȱ ’—Ěž¡˜ȱ ˜ȱ ’›Ž’˜ȱ Œ˜–™Š›Š˜ǰȱ
o debate americano e europeu sobre o pragmatismo jurídico ingressou
formalmente na Academia nacional. Na prática judicial brasileira, salvo
Ž–ȱ œ’žŠ³äŽœȱ Žœ™ŽŒÇꌊœȱ ȯȱ Œ˜–˜ȱ —Šœȱ ŽŒ’œäŽœȱ ˜ȱ ȱ ȯǰȱ Šœȱ ›Š£äŽœȱ
consequencialistas não aparecem de modo expresso — opera-se, aqui,
uma espécie de criptoconsequencialismo —, o que não as impede de desem-
penharem papel importante. Decisões recentes e antigas do STF, e o próprio
comando de certos dispositivos legais (como o art. 27 da Lei Federal
nº 9.868/99 ou o art. 15 da Lei do Mandado de Segurança), são prova disso.
Há, ainda, ocasiões nas quais as cortes adotaram raciocínios consequen-
cialistas de modo estratégico, em geral para se desafogarem da apreciação
e do julgamento de altos volumes de causas tidas por desimportantes.
6. À luz de todas as considerações anteriores, ousamos propor nosso
próprio “princípio” de pragmatismo jurídico útil ao Direito Constitucional
Econômico. Ele é um modelo cauteloso de pragmatismo jurídico; caminha
ao lado de Aarnio e de MacCormick, e distancia-se de Posner (cuja teoria,
embora inaplicável à nossa realidade, pode ser aproveitada em alguns
pontos).
Num primeiro momento, apresentamos um modelo geral de opera-
ção de nosso “princípio” do pragmatismo jurídico, que leva aspas porque
não se trata, a rigor técnico, de princípio jurídico tal como atualmente
Žę—’˜ȱ ™Ž•Šȱ –Ž˜˜•˜’Šȱ Œ˜—œ’žŒ’˜—Š•ǯȱ ȱ –˜Ž•˜ȱ Ž›Š•ȱ Žȱ ˜™Ž›Š³¨˜ȱ
consiste no cumprimento das seguintes etapas: (i) a indicação da fonte de
delegação dos poderes pragmatistas à autoridade julgadora; (ii) o uso do
argumento segundo as regras usuais da teoria padrão da argumentação;
ǻ’’’Ǽȱ Šę—Š•ǰȱ Šȱ ˜‹œŽ›Ÿ¦—Œ’Šȱ Žȱ šžŽȱ ˜ȱ ›Žœž•Š˜ȱ ’—’ŒŠ˜ȱ ™Ž•˜ȱ ȃ™›’—ŒÇ™’˜Ȅȱ
deva ser universalizável. Além de um modelo geral, apresentamos três
hipóteses especiais de incidência do “princípio” do pragmatismo jurídico:
a) a proporcionalidade em sentido estrito — que consiste numa análise
consequencialista de custos e benefícios da adoção de decisões; b) a auto-
negação da norma — os casos em que a incidência da norma vai negar os
propósitos que ela pretende realizar; c) a “doutrina do absurdo” — quando
a incidência da norma produz consequências absurdas.
7. Além de um modelo geral de operação, e de hipóteses especiais,
apresentamos oito standards destinados a guiar a incidência de nosso
ȃ™›’—ŒÇ™’˜Ȅȱ ˜ȱ ™›Š–Š’œ–˜ǯȱ ¨˜ȱ Ž•ŽœDZȱ ǻŗǼȱ ˜ȱ ȃ™›’—ŒÇ™’˜Ȅȱ ’—Œ’Žȱ Š˜ȱ ꗊ•ȱ
da interpretação/argumentação, como teste de reforço ou de descarte
das propostas interpretativas já construídas pelos elementos tradicionais;
ǻŘǼȱ’—Œ’ŽȱŽ—›˜ȱŠȱŽ¡Ž—œ¨˜ȱŽȱœ’—’ęŒŠ˜œȱ™˜œœÇŸŽ’œȱ™Ž›–’’˜œȱ™Ž•˜ȱ
Texto Constitucional; (3) considera apenas consequências que possam ser

JoseVicenteSantosdeMendonca_PARCERIA_06 jun.indd 442 20/08/2014 14:30:41


CONCLUSÃO GERAL 443

reconduzidas materialmente à Constituição; (4) considera as consequências


certas e prováveis, mas não as apenas plausíveis; (5) considera consequên-
cias imediatas e futuras, mas não as remotamente futuras; (6) considera
apenas consequências fáticas cuja ocorrência se possa provar por razoável
base empírica; (7) desconsidera consequências fundacionais; (8) prioriza
consequências contextuais.

II - Quanto à razão pública


8. O debate sobre o conceito de razão pública insere-se no tema
da democracia deliberativa. A ideia é disputada por diversas correntes
teóricas. Destacamos, entre tantas, a proposta fundante de Joshua Cohen,
que caracterizou a democracia deliberativa como uma associação perma-
nente na qual seus membros, reconhecendo-se mutuamente capazes de
argumentar e decidir os rumos coletivos a partir de uma troca franca de
razões, escolhem agir por intermédio de deliberações públicas, tomadas
dentro de instituições que expressem claramente seu caráter deliberativo.
Outra caracterização da democracia deliberativa é como uma forma
Žȱ˜ŸŽ›—˜ȱ—ŠȱšžŠ•ȱŒ’Š¨˜œȱ•’Ÿ›ŽœȱŽȱ’žŠ’œȱ“žœ’ęŒŠ–ȱŽŒ’œäŽœȱ™˜›ȱ’—Ž›-
médio de um processo no qual se oferecem razões mutuamente aceitáveis e
ŠŒŽœœÇŸŽ’œǰȱŒ˜–ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱŽȱŒ‘ŽŠ›ȱŠȱŒ˜—Œ•žœäŽœȱŸ’—Œž•Š—Žœȱ—˜ȱ™›ŽœŽ—Žǰȱ
mas abertas a mudanças no futuro. A democracia deliberativa opõe-se a
uma ideia de democracia como competição baseada em interesses autocen-
trados e governada por barganhas. Como vantagens da democracia delibe-
›Š’ŸŠǰȱŽ–˜œȱšžŽȱŽ•Šȱǻ’ǼȱŽœŠ›’Šȱ–Š’œȱ™›˜—ŠȱŠȱ’—Œ˜›™˜›Š›ȱŠ˜œȱŒ’Ž—ÇꌘœDzȱ
(ii) que o modelo deliberativo forneceria condições ideais de imparcialidade
e de racionalidade; e que (iii) os resultados havidos a partir do processo
deliberativo seriam muito provavelmente moralmente corretos.
Claro que há críticas. Quem discorda da proposta democrático-
deliberativa alega (i) suposta irrealidade das constrições discursivas assu-
midas como necessárias à deliberação; (ii) que a democracia deliberativa
formularia exigências pouco claras; (iii) que ela imporia algum grau de
manipulação ideológica; (iv) que a democracia deliberativa desestimularia
a participação política.
Respostas a essas críticas passam pela indicação de operacionalidade
aos critérios democrático-deliberativos, pela vindicação de maturidade e
institucionalização à proposta (hoje já conta com algumas experimentações
e práticas sociais), pela rejeição da alegação de manipulação ideológica
(ela só imporia certos pressupostos básicos para a deliberação, mas os
›Žœž•Š˜œȱ ŽœŠ›’Š–ȱ Š‹Ž›˜œǼȱ Žǰȱ Šę—Š•ǰȱ ™Ž•Šȱ ŠŒŽ’Š³¨˜ȱ Žȱ Š•ž–ȱ ›Šžȱ Žȱ
debilitação no fervor político em prol de uma expansão nas bases de inclusão
de partícipes na deliberação.
9. A expressão “razão pública”, de origens políticas e literárias di-
ŸŽ›œŠœǰȱŽŸŽȱœžŠȱ™›’–Ž’›Šȱž’•’£Š³¨˜ȱŽ—›˜ȱŠȱꕘœ˜ęŠȱ™˜•Ç’ŒŠȱŽȱ–˜›Š•ȱ™˜›ȱ

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
444 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Š—ǰȱ–ŠœȱŠ—‘˜žȱ™›˜“Ž³¨˜ȱ›Š³Šœȱ¥ȱ˜‹›Šȱ˜ȱę•àœ˜˜ȱ™˜•Ç’Œ˜ȱŠ–Ž›’ŒŠ—˜ȱ
John Rawls.
Na proposta teórica de Rawls, as sociedades contemporâneas oci-
dentais, diante da existência de instituições livres, encontram-se diante
do fato do pluralismo, constituído pela coexistência de uma série de
doutrinas abrangentes razoáveis. Como tais doutrinas pronunciam-se
simultaneamente a respeito de ampla gama de assuntos — religiosos,
Œž•ž›Š’œǰȱŽŒ˜—â–’Œ˜œǰȱꕘœàꌘœȱȯǰȱŽ•Šœȱ—¨˜ȱ™˜Ž–ȱŽœŠ›ȱ˜ŠœȱŒŽ›ŠœȱŠ˜ȱ
mesmo tempo. Excluída a resolução de divergências pela força — o que não
seria razoável —, resta às sociedades apelarem a um consenso sobreposto,
Œ˜—œŽ—œ˜ȱŽœ›’Š–Ž—Žȱ™˜•Ç’Œ˜ǰȱ—¨˜ȱ›Ž•’’˜œ˜ȱ˜žȱꕘœàꌘǯȱŠŠȱ˜ž›’—Šȱ
aderirá ao consenso por suas próprias razões, que será estável e incluirá
alguns princípios procedimentais básicos e alguns direitos substantivos.
As razões públicas serão as razões que poderão orientar o debate
público numa sociedade que tenha aderido ao consenso. É um ideal cívico
dirigido a juízes, administradores, legisladores, candidatos em campanha
e eleitores (ao momento da votação) para que, quando argumentarem a
respeito de elementos constitucionais essenciais e questões básicas de
justiça, façam-no apenas com o uso de razões capazes de serem aceitas
por todas as parcelas da sociedade, e, se for o caso, baseadas em assunções
empíricas não polêmicas.
O uso das razões públicas fortaleceria dois ideais: o da estabilidade
social e o da legitimidade das decisões. Considerando que a ideia de razão
pública pode ser aplicada à doutrina jurídica, que é quase sempre norma-
tiva, e, portanto, busca guiar juízes e administradores em suas decisões,
e, ainda, que sua abrangência material pode dar-se para além dos limites
propostos por Rawls — em especial nos casos em que se trate de interpretar
um direito fundamental —, elaboramos uma proposta de razão pública
operacional e baseada na Constituição brasileira.
10. Nossa proposta de razão pública acredita em razões públicas
šžŠ—˜ȱ Ž•Šœȱ ǻ’Ǽȱ ŽœŽ“Š–ȱ ž—ŠŠœȱ Ž–ȱ ŽŸ’¹—Œ’Šȱ Œ’Ž—Çꌊȱ Š–™•Š–Ž—Žȱ
–Š“˜›’¤›’ŠǰȱŽȦ˜žȱǻ’’ǼȱœŽ“Š–ȱ›ŠœŠœȦ—¨˜ȱꕘœ˜ęŒŠ–Ž—Žȱ™›˜ž—ŠœǰȱŽǰȱŽ–ȱ˜˜ȱ
caso, (iii) sejam universalizáveis e capazes de serem aceitas por todos os
participantes do debate político-econômico como razões que os respeitem
na condição de agentes igualmente dignos de consideração.
Será, quanto à sua natureza jurídica, um critério interpretativo ba-
seado, em termos dogmáticos, no art. 1º, V, da Constituição da República
— o “princípio do pluralismo político”.
11. Como nenhuma proposta é aceita sem críticas, muitas foram
lançadas contra o ideal da razão pública formulado por Rawls. Se nossa
proposta é dela tributária, as críticas deverão ser analisadas e, na medida
do possível, respondidas.
Diz-se que a razão pública é (i) estéril, pois foge dos principais
debates de uma época e de um lugar; (ii) impossível; (iii) ampla demais,

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CONCLUSÃO GERAL 445

’—ŒŠ™Š£ȱŽȱ˜›—ŽŒŽ›ȱ›Š£äŽœȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—Žȱ–˜’ŸŠ˜›Šœȱ™Š›Šȱž–ŠȱŠ³¨˜ȱ
diante de um tema polêmico; (iv) restritiva demais; (v) incoerente, e, no
fundo, ideológica.
˜œœÇŸŽ’œȱ›Žœ™˜œŠœȱ’—Œ•žŽ–ȱŠę›–Š›ȱšžŽȱǻ’Ǽȱ˜ȱŒ˜—ŒŽ’˜ȱ—¨˜ȱ·ȱŽœ·›’•ȱ
— ele apenas exclui, e assim mesmo só para certos assuntos e pessoas,
visões ideologicamente carregadas e/ou baseadas em dados empíricos
duvidosos, deixando livre a maior parte dos conteúdos, polêmicos ou
não, em curso na sociedade —; (ii) ele não é impossível: é uma ideia
regulativa, e deve ser aproximado até o máximo possível, ainda que jamais
œŽ“ŠȱŒž–™›’˜ȱ—Šȱ™›¤’ŒŠDzȱǻ’’’Ǽȱ—¨˜ȱ‘¤ȱŒ˜–˜ȱœŽȱŠę›–Š›ȱšžŽȱŠȱ›Š£¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠȱ
œŽ“Šȱ’—œžęŒ’Ž—Ž–Ž—Žȱ–˜’ŸŠ˜›Šȱ™Š›ŠȱŠȱŠ³¨˜Dzȱ—Šȱ™’˜›ȱŠœȱ‘’™àŽœŽœǰȱŠȱ
œ’–™•ŽœȱŒ˜—œ’Ž›Š³¨˜ȱŽȱœžŠȱŽ¡’œ¹—Œ’Šȱ“¤ȱ•‘Žȱœ’—’ęŒŠ›¤ȱž–ŠȱŠ›’‹ž’³¨˜ȱ
ŽȱŽęŒ¤Œ’ŠDzȱǻ’ŸǼȱŽ•Šȱ—¨˜ȱ·ȱ›Žœ›’’ŸŠDZȱ‘¤ȱ’ŸŽ›œŠœȱ›Š£äŽœȱ™ø‹•’ŒŠœǰȱŽȱŠ •œȱ
admite mesmo o fornecimento de razões não públicas junto às razões
públicas; (v) ela não é “trapaceada”: só exige alguns requisitos mínimos,
mas permite a eclosão de diversos resultados.
A razão pública possui limites fáticos e psicológicos. Os fáticos seriam
incertezas quanto ao estado da ciência (e eventuais repercussões disso junto
à assunção da verdade ou da falsidade de ideologias). Os psicológicos
seriam a tendência a se autoconsiderar um emissor de razões públicas, e
de se perceber o esforço de acomodação das próprias razões como supe-
rior àquele despendido pelos outros participantes da deliberação. Contra
Š’œȱ•’–’Žœǰȱœàȱ›ŽœŠȱ’—ŸŽœ’›ȱ—˜ȱŠŒ›·œŒ’–˜ȱ˜ȱŒ˜—‘ŽŒ’–Ž—˜ȱŒ’Ž—ÇꌘȱŽȱ—Šȱ
boa-fé e autoconsciência dos agentes deliberativos.
12. Uma compatibilização entre o “princípio” do pragmatismo
jurídico e o critério da razão pública — cujas proximidades e distancia-
mentos centram-se no caráter fundacional ou antifundacional do libera-
lismo político de Rawls, no que seria, ou não, um ponto de contato com o
pragmatismo — faz-se pelo apelo a acordos práticos teorizados de modo
incompleto — conceito de Cass Sunstein: acordos operacionais baseados
Ž–ȱ™•Š’žŽœȱ˜žȱŽ–ȱŠœœž—³äŽœȱꕘœàꌊœȱŽȱȃ–·’ŠȄȱ™›˜ž—’ŠŽǯȱ˜ȱ
Š£¹Ȭ•˜ǰȱŽŸ’Š–˜œȱ’—ę—¤ŸŽ’œȱ’œŒžœœäŽœȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱŠȱ‘Š›–˜—’ŠȱŽ—›Žȱ˜œȱ
™›Žœœž™˜œ˜œȱꕘœàꌘœȱŽȱŒŠŠȱŒ›’·›’˜ǯ

III - Quanto à intervenção direta


13. A origem das sociedades de economia mista é a origem das so-
ciedades por ações. A origem da empresa pública é mais recente. A razão
de ser de ambas é semelhante: surgem para operar a intervenção direta do
Estado na economia e para escapar às amarras do formalismo. Sua concei-
tuação legal está no Decreto-Lei nº 200/67 (e pode vir a ser substituída por
um Anteprojeto de lei elaborado por uma comissão de juristas).
Quanto à sua constituição, ambas vêm do registro de seus atos
constitutivos no registro apropriado, após autorização legal. A respeito

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
446 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

desse ponto, houve discussão no STF sobre se poderia existir autorização


legislativa genérica para a constituição de subsidiárias, com solução positiva,
o que se mostra pragmaticamente correto, à luz das possíveis consequências
da decisão.
Diferença entre as espécies estatais há quanto ao conteúdo: empresas
públicas possuem capital e patrimônio exclusivamente estatal, ao passo que
sociedades de economia mista possuem controle acionário público, mas
capital misto. Empresas públicas podem adotar qualquer forma societária —
inclusive formas inéditas, no caso das federais —, ao passo que sociedades
de economia mista só podem ser sociedades por ações. Quanto ao objeto,
ambas só podem explorar as atividades e prestar os serviços elencados em
suas leis autorizativas — como incidência da legalidade e como garantia
do acionista (no caso das sociedades de economia mista).
Š•Š—˜ȱŽ–ȱ˜‹“Ž˜ǰȱœž›Žȱ˜ȱŽ‹ŠŽȱŠȱ›Žœ™Ž’˜ȱ˜œȱŒ˜—Ě’˜œǰȱ™˜Ž—Œ’Š’œȱ
ou reais, entre o Poder Público e os acionistas privados na sociedade de
economia mista. O ponto necessita ser desdramatizado. Talvez interesse
público e privado não estejam tão em linha de colisão. Pode-se até buscar
‘Š›–˜—’£¤Ȭ•˜œȱ™˜›ȱž–Šȱ’œ’—³¨˜ȱŽ—›Žȱ˜‹“Ž˜ȱŽȱę–ȱŠœȱŽœŠŠ’œDZȱŠ˜ȱ›ŽŠ•’£Š›ȱ
œŽžȱ˜‹“Ž˜ȱŽŒ˜—â–’Œ˜ǰȱŠœȱŽœŠŠ’œȱŒž–™›Ž–ȱœŽžȱę–ȱŽȱ’—Ž›ŽœœŽȱ™ø‹•’Œ˜ǯȱ
Seja como for, ao acionista privado é importante entender que não está
concorrendo com seu capital para empresa privada comum — tanto mais
que ele está ciente da existência de benefícios advindos da própria condição
de estatal —, e ao Poder Público é importante entender que não pode se
ŽœŸ’Š›ȱ–ž’˜ȱŠȱꗊ•’ŠŽȱ•žŒ›Š’ŸŠȱ˜žȱ’–™˜›ȱœŠŒ›’ÇŒ’˜œȱ’—œž™˜›¤ŸŽ’œȱ
ao particular.
Outra discussão reside em saber se estatais podem participar do
Novo Mercado da Bovespa. Parece-nos possível, tanto que as supostas
incompatibilidades derivam mais de preconceitos do que de óbices reais.
O regime jurídico das estatais é privado, ainda que submetido a
exceções, cuja incidência deve-se interpretar de modo contextualista,
isto é, a depender do contexto da atuação: maiores ou menores conforme
estejam prestando serviços públicos ou exercendo atividade econômica
em sentido estrito.
Os bens das estatais são, em princípio, bens privados, mas, se afeta-
dos diretamente à prestação de um serviço público, serão impenhoráveis.
œŠȱ›Ž›ŠȱŽȱ˜ž›˜ȱ·ǰȱ—˜ȱŽ—Š—˜ǰȱŽœŠęŠŠȱ™˜›ȱž–Šȱœ·›’ŽȱŽȱ™›˜‹•Ž–ŠœDZȱ
nem sempre é possível distinguir o uso do bem para uma atividade eco-
nômica e para a prestação de um serviço público; às vezes há conexão
funcional entre as duas atividades; e, de qualquer modo, já se admite a
penhora de bens públicos, em situações excepcionalíssimas.
Assumindo posição num antigo debate, defendemos que estatais
podem exercer poder de polícia, desde que só possuam capital público,
que não intervenham concorrencialmente na economia e que o exercício

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CONCLUSÃO GERAL 447

da polícia seja acidental à prestação de serviços públicos. Outro debate


importante é sobre as licitações das estatais. Defendemos que o critério
central é o da concorrencialidade da atuação (e não, por exemplo, o cri-
·›’˜ȱ–Š’œȱ›ŽšžŽ—Ž–Ž—ŽȱŒ’Š˜ȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȬ–Ž’˜ȱŽȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȬę–Ǽǰȱ
em especial porque, à parte a por vezes difícil distinção entre o que é
–Ž’˜ȱŽȱ˜ȱšžŽȱ·ȱę–ȱ—ŠȱŽ–™›ŽœŠǰȱ‘¤ȱ–ž’˜œȱŒŠœ˜œȱŽ–ȱšžŽȱ˜ȱ’Ž›Ž—Œ’Š•ȱŽȱ
ŽęŒ’¹—Œ’Šȱ—˜ȱŽ¡Ž›ŒÇŒ’˜ȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȬę–ȱŠȱŽ–™›ŽœŠȱŽœ¤ȱ—Šȱ˜›Š—’£Š³¨˜ȱ
ŽęŒ’Ž—ŽȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȬ–Ž’˜ȱǻŽęŒ’¹—Œ’ŠȱšžŽȱŠȱŽ¡’¹—Œ’ŠȱŽȱ•’Œ’Š³¨˜ȱ™˜Ž-
ria vir a neutralizar). Mais uma vez, portanto, defendemos uma visão
pragmatista-contextualista.
Ainda escrevendo sobre temas clássicos, veio o do controle das esta-
tais. No debate que causa maior espécie, o da abrangência e da intensidade
do controle dos Tribunais de Contas, sustentamos que, se é inegável o
controle (posição mais recente do STF), o problema então está no “como”,
e não no “se”.
Construímos três standards gerais e dois standards Žœ™ŽŒÇꌘœǯȱœȱ
gerais são: (i) quanto mais próxima ao exercício de uma função pública
ou da prestação de serviços públicos, maior o controle; (ii) quanto mais
Ž–˜—œ›ŠŠ–Ž—ŽȱŽęŒ’Ž—ŽȱŠȱŠžŠ³¨˜ȱ˜œȱŒ˜—›˜•Žœȱ’—Ž›—˜œȱ¥œȱ™›à™›’Šœȱ
ŽœŠŠ’œǰȱ–Ž—˜›ȱ˜ȱŒ˜—›˜•ŽDzȱ™˜›ȱę–ǰȱǻ’’’ǼȱŽŸŽȬœŽȱ›Žœ™Ž’Š›ȱ˜ȱœ’’•˜ǰȱ—˜œȱŒŠ-
œ˜œȱŽ–ȱšžŽȱ’œœ˜ȱ™˜œœŠȱœŽ›ȱ›ŽŠ•–Ž—Žȱ“žœ’ęŒŠ˜ǯȱœȱstandardsȱŽœ™ŽŒÇꌘœDZȱ
(i) atividades de gestão ordinária estão submetidas ao controle das cortes
de contas; (ii) decisões empresariais estratégicas, não.
Quanto à incidência dos princípios constitucionais da Administração
às estatais, percorremos os cinco do caput do art. 37, analisando suas pos-
œÇŸŽ’œȱŽœ™ŽŒ’ęŒ’ŠŽœǯȱ’—Š•–Ž—ŽǰȱŽŽ—Ž–˜œȱšžŽȱŠȱŽ¡’—³¨˜ȱŠœȱŽœŠŠ’œȱ
pela falência é, atualmente, inaplicável. A par a dicção expressa da lei em
vigor, o mecanismo é operacionalmente inviável — sem falar que, muito
provavelmente, isso jamais ocorreria na prática.
14. A doutrina aponta tradicionalmente três limites à intervenção
direta concorrencial na economia: o interesse público — pressuposto da
ação estatal —, a proporcionalidade e a subsidiariedade.
Falando na subsidiariedade, sua origem histórica é controversa, mas
suas incidências, com diversos conteúdos operacionais, são amplas. O que
nos interessa é a subsidiariedade da intervenção do Estado na economia.
Nessa incidência, a origem apontada são ensinamentos da Igreja
Católica lançados contra o socialismo, posteriormente deslocados até uma
crítica ao Estado de Bem-Estar Social.
žŠ›˜ȱž—Š–Ž—˜œȱœ¨˜ȱŠ™˜—Š˜œȱ™Š›Šȱ“žœ’ęŒŠ›ȱŠȱœž‹œ’’Š›’ŽŠŽDZȱ
a autonomia privada, a justiça, o pluralismo social e a dignidade da pessoa
humana.
Sua fonte constitucional formal estaria principalmente na redação
do art. 173 da Constituição da República.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
448 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

Não concordamos que a subsidiariedade seja um princípio constitu-


cional — ela é uma diretriz infraconstitucional de organização do Estado,
que pode, ou não, ser adotada pela legislação — e acreditamos, mesmo,
šžŽȱŠ•ȱŠ›ž–Ž—Š³¨˜ȱ—¨˜ȱŒ˜—ꐞ›Žȱž–Šȱ›Š£¨˜ȱ™ø‹•’ŒŠǯȱ
Tal princípio não teria base na autonomia privada, na justiça, no
pluralismo ou na dignidade humana — em alguns casos, ele iria até
Ž–ȱœŽ—’˜ȱŒ˜—›¤›’˜ȱ¥ȱŠę›–Š³¨˜ȱŽȱŠ’œȱŸŠ•˜›Žœȱȯǰȱ–ŠœȱœŽ›’Šȱ›Ž–ŠŠŠȱ
expressão de uma área não abrangida pelo consenso sobreposto de uma
˜ž›’—ŠȱŠ‹›Š—Ž—Žǰȱ›Š£˜¤ŸŽ•ǰȱŽœ™ŽŒÇꌊǯȱ
O que estaria constitucionalizado seria o Estado Democrático, não
o Estado Mínimo ou o Estado Máximo.
A questão a respeito de maior ou menor intervenção do Estado na
economia não seria, de ordinário, questão constitucional, exceto quando
se tratassse da supressão de direitos fundamentais por ação ou omissão.
A vindicação de um princípio constitucional da subsidiariedade
seria, ainda, antipragmática, na medida em que anticontextual (os con-
textos mudam) e fundacionalista.
A inexistência da subsidiariedade como princípio constitucional
estaria em consonância com a jurisprudência francesa recente, e poderia
ser extraída da lição do Direito comparado dos EUA e da Alemanha.
15. Falando de intervenção monopolística, monopólio é palavra antes
econômica que jurídica, cuja origem pode ser reconduzida a Aristóteles,
em A política.
Há monopólios naturais, monopólios derivados da conquista do
–Ž›ŒŠ˜ȱ¥ȱŒ˜—ŠȱŽȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ™›˜ž’ŸŠǰȱŽȱ–˜—˜™à•’˜ȱ•ŽŠ•ǰȱŠœœž—˜ȱšžŽȱ
nos interessa na espécie monopólio público, cuja sede constitucional é o
art. 177 da Constituição.
O Supremo, ao julgar a chamada ADI da Lei do Petróleo (ADI
nº 3.273-9/DF), estabeleceu alguns parâmetros para sua compreensão.
Monopólio é sempre de atividade, nunca de um bem. Monopólio incide
sobre atividades econômicas; a ele não se aplica a livre-iniciativa e seu
Œ˜—Žø˜ȱ˜’ȱ̎¡’‹’•’£Š˜ȱ™Ž•Šȱȱ—ķȱşȦşśǯȱ
Ao contrário da maioria da doutrina, sustentamos que seja possível
a criação de monopólios legais por lei ordinária. A uma, porque o Texto
Constitucional não permite a extração de dados com base nos quais se possa
Šę›–Š›ȱšžŽȱ‘˜žŸŽȱž–ȱœ’•¹—Œ’˜ȱŽ•˜šžŽ—ŽȱšžŠ—˜ȱŠ˜ȱ™˜—˜ȱǻŽ–ȱ›Ž•Š³¨˜ȱ¥ȱ
redação da Constituição de 67/69); a duas, porque a lição de que “exce-
ções” se “interpretam restritivamente” costuma esconder manipulações
Š›ž–Ž—Š’ŸŠœȱšžŽȱŒ˜—ꐞ›Š–ȱŽ¡ŒŽ³äŽœȱȯȱœŽ–ȱŽ¡™•’ŒŠ›ȱ˜ȱ™˜›šž¹ȱȯȱŽȱ
pressupõem graus de intensidade para tal “interpretação restritiva”.
ȱ›Š—Žȱꕝ›˜ȱ¥ȱŒ›’Š³¨˜ȱŽȱ–˜—˜™à•’˜œȱ™ø‹•’Œ˜œȱœŽ›’ŠǰȱŽ—¨˜ǰȱŠ™Ž—Šœȱ
e tão somente — no que já bastariam, se levados a sério —, os pressupostos
do “relevante interesse coletivo” e do “imperativo de segurança nacional”

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CONCLUSÃO GERAL 449

presentes no art. 173 da Constituição da República. Argumentar a favor


da vedação constitucional implícita à criação de monopólios públicos por
’—Ž›–·’˜ȱŠȱ•Ž’œ•Š³¨˜ȱ’—›ŠŒ˜—œ’žŒ’˜—Š•ȱœ’—’ęŒŠ›’ŠȱžœŠ›ȱŽȱ›Š£äŽœȱ—¨˜ȱ
públicas extraídas do constitucionalismo econômico-liberal.
Também não haveria um princípio exegético geral “restritivo” que
orientasse a interpretação da abrangência do conteúdo material dos mono-
pólios: a intervenção estatal não é um bem ou um mal em si mesma, mas
ž–Šȱž—³¨˜ȱŽœ’—ŠŠȱŠȱŒž–™›’›ȱž–Šȱꗊ•’ŠŽǯ
16. Atualmente, fala-se na adoção de uma série de técnicas menos
constritivas, se comparadas à intervenção direta do Estado. É o chamado
neointervencionismo — opção de índole infraconstitucional — operado
no uso de golden-shares, na cooperação entre estatais e empresas privadas
e na participação minoritária estratégica em empresas privadas. São boas
’Ž’Šœǰȱ Œž“˜ȱ žœ˜ȱ Ž™Ž—Ž›¤ȱ Šȱ ŽęŒ’¹—Œ’Šȱ —Šȱ ˜‹Ž—³¨˜ȱ ˜œȱ ›Žœž•Š˜œȱ Šȱ
que se proponham, e não de uma diretriz ideológica extraída de alguma
metafísica constitucional.

IV - Quanto ao poder de polícia


17. Na origem, o conceito de poder de polícia confundia-se com a
atuação estatal, mas a evolução depurou seu conteúdo.
Há um sentido amplo — disciplinar a conduta privada, inclusive
pela edição de leis — e um sentido estrito — a atuação administrativa
propriamente dita.
Em que pese o conceito possuir referência constitucional e legal,
boa parte da doutrina nacional e estrangeira sustenta que poder de polí-
cia é noção inútil — porque, hoje em dia, confundir-se-ia com uma série
’—Žœ™ŽŒÇꌊȱŽȱŠžŠ³äŽœȱ˜ȱœŠ˜ȱȯȱŽȱ™Ž›’˜œŠǰȱ™˜’œȱŽ›’Šȱž–Šȱ˜›’Ž–ȱ
pré-constitucional, no chamado Estado de Polícia, e não colocaria em relevo
aspectos importantes do Estado Constitucional de Direito, quiçá fazendo
supor um poder coercitivo genérico e pré-legal do Estado.
Não concordamos com isso. É pragmaticamente útil continuar dis-
pondo do conceito de poder de polícia; seu risco virtual é compensado
por sua utilidade atual.
18. Poder de polícia não é polícia judiciária, não se confunde com
atividade policial-militar, não é prestação de serviço público, não é regu-
lação jurídica da economia — pode até englobar tal conceito, bastando
alguns ajustes doutrinários —, não é relação de sujeição geral.
Como características, apontam-se (i) sua discricionariedade (o que é
Šę›–Š³¨˜ȱ’œŒžÇŸŽ•ǰȱ—Šȱ–Ž’ŠȱŽ–ȱšžŽȱ˜œȱŠ˜œȱ—¨˜ȱȃœ¨˜Ȅȱ’œŒ›’Œ’˜—¤›’˜œȱ
ou vinculados, são mais ou menos discricionários ou vinculados), (ii) sua
presunção de validade e de veracidade, (iii) sua autoexecutoriedade, (iv)
sua exigibilidade, (v) sua instrumentalidade em relação à realização dos
direitos fundamentais (o que se deve entender apenas como “conformação

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
450 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

aos direitos fundamentais”, nunca como “apenas para a realização de


direitos fundamentais”, na medida em que os propósitos legítimos e demo-
cráticos de atuação pública são superabrangentes em relação à noção usual
de direitos fundamentais), e (vi) sua instrumentalidade à realização da
democracia (o que, na nossa proposta, far-se-á pela incidência do critério
da razão pública).
19. Falando de limites ao exercício da polícia administrativa, os
limites clássicos são os elementos do ato administrativo — competência,
˜›–Šǰȱꗊ•’ŠŽǰȱ–˜’Ÿ˜ȱŽȱ˜‹“Ž˜ȱǻ˜žȱŒ˜—Žø˜ǼȱȯǰȱŠȱœž‹–’œœ¨˜ȱŠ˜ȱŽŸ’˜ȱ
processo e a incidência do princípio da legalidade.
Os novos limites são o respeito à dignidade humana, a incidência
da proporcionalidade e a preservação do conteúdo essencial dos direitos
fundamentais.
Quanto a esse último limite, é de se notar que a dogmática majo-
›’¤›’ŠȱŽȱ’›Ž’˜ȱ–’—’œ›Š’Ÿ˜ǰȱŽ–ȱšžŽȱ™ŽœŽȱŠę›–Š›ȱœŽž’›ȱŠȱŽ˜›’Šȱ˜œȱ
direitos fundamentais e a teoria dos princípios, acaba defendendo a exis-
tência de conceitos como o de conformações e o de restrições de direitos
(ou limites e sacrifícios de direitos), o que é compatível com a adoção de
uma teoria dos princípios, já que estabelece limites prévios — e não argu-
mentados — à ponderação. Assim, não existiria uma necessidade autô-
noma de respeito ao núcleo essencial dos direitos, nem diferenças entre
restrição e conformação: tudo dependeria da ponderação a ser realizada
nos casos concretos.
20. Os novíssimos limites ao poder de polícia seriam o “princípio” do
pragmatismo jurídico, o qual incidiria em conformidade com os standards
por nós propostos, e a razão pública.
Quanto a essa, ela impediria, em princípio, controles “substanciais”,
de conteúdo, quando no exercício da atividade de polícia — no que estaria
em conformidade com a lição clássica de Hauriou —, mas, quando isso se
mostrasse imperioso, imporia a necessidade de que as razões para a ação
fossem não polêmicas e respeitosas a todos os participantes da comuni-
dade política.

V - Quanto ao fomento público


Řŗǯȱ˜–Ž—˜ȱ™ø‹•’Œ˜ȱœ’—’ęŒŠȱŠ™˜’Š›ǰȱ™˜›ȱ–Ž’˜ȱ˜ȱœŠ˜ǰȱ˜ȱŽœŽ—-
volvimento de atividades privadas de interesse social. Não é polícia, porque
não é disciplina de atividades privadas, mas sua promoção. Não é serviço
público porque este está a cargo, direta ou indiretamente, do Estado, ao
passo que a atividade fomentada é tipicamente privada. Por essa mesma
razão, não é intervenção direta, seja monopolística ou concorrencial.
Também não é regulação — a se crer na existência de conceito autônomo
de regulação —; não se crê na existência de um fomento regulador: todas

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CONCLUSÃO GERAL 451

as potencialidades de um fomento regulador já são realizadas pelo puro


e simples fomento.
22. O fomento público possui diversas características. (i) Seu exercí-
cio se dá, num primeiro momento ao menos, sem coerção. (ii) O particular
não é obrigado a aderir a ele. (iii) Não é doação nem liberalidade pública.
(iv) É seletivo, ainda que não anti-isonômico. (v) É unilateral, na medida
em que não há um sujeito ativo que lhe reclame a execução. (vi) É, em
princípio, transitório e, ainda que possam existir atividades que demandem
ajudas públicas mais temporalmente extensas, é de bom alvitre submeter
qualquer plano ou propósito de fomento a revisões periódicas.
23. Há vários meios de atuação do fomento, bem assim instrumentos
operacionais.
œȱ–Ž’˜œȱ™˜Ž–ȱœŽ›ȱ—ŽŠ’Ÿ˜œȱ˜žȱ™˜œ’’Ÿ˜œDzȱ‘˜—˜›ÇꌘœǰȱŽŒ˜—â–’Œ˜œȱ
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dicos, e, talvez, psicológicos. Mais importantes são os meios econômicos,
em especial a subvenção.
Instrumentos comuns de fomento público são os convênios, os
editais, e os contratos (ainda que a atividade de fomento público não seja
propriamente uma atividade contratual, à qual se apliquem os princípios
clássicos da teoria dos contratos; também não há de se falar em qualquer
razão não pública orientando uma interpretação pró ou contra a concessão
da ajuda pública).
24. O fomento público carreia riscos. O principal deles é a paralisia
˜ȱŽ•¨ȱ™›’ŸŠ˜ǰȱŠȱŽęŒ’¹—Œ’Šȱ˜™Ž›ŠŒ’˜—Š•ǯȱž›˜ȱ›’œŒ˜ȱ·ȱ˜ȱŠ•œŽŠ–Ž—˜ȱŠœȱ
condições da concorrência. Risco interessante é o da administrativização
do espaço privado, o risco de “dominar ali onde ajuda”. O particular
fomentado acabaria cedendo em sua autonomia intelectual, artística,
empreendedora etc. a algum direcionamento não republicano do agente
fomentador. Para tentar evitar ou, no mínimo, reduzir a força de tais riscos,
propusemos alguns critérios.
25. Tais critérios dividem-se em duas categorias: formais e materiais.
Podem, ainda, dizer respeito à elaboração ou à concessão do fomento
público.
Os critérios de elaboração são (i) a submissão ao debate público
(desde que isso seja possível) e (ii) a compatibilidade entre os requisitos
de acesso ao fomento e o direito ou atividade que se pretenda fomentar.
Os critérios formais de concessão são: (i) transparência e procedi-
mentalização, (ii) competividade, e (iii) objetividade.
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jurídico junto à seara do tema), e c) razão pública. Quanto à razão pública, ela
veda o uso do fomento para o avanço de atividades, teses e conteúdos que
não tratem todos os cidadãos como membros dignos de igual consideração
e respeito.

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JOSÉ VICENTE SANTOS DE MENDONÇA
452 DIREITO CONSTITUCIONAL ECONÔMICO

VI - Quanto à regulação pública


26. Os principais problemas da regulação são de (i) informação e
(ii) de adesão. (i) O Poder Público não possui domínio epistêmico total sobre
a realidade, o que, se, por um lado, abre espaços de liberdade à sociedade,
por outro pode implicar erros custosos. (ii) O Poder Público deve poder
contar com um grau mínimo de adesão à sua ação.
27. Contra os problemas de informação, a primeira estratégia é a
da centralização: uma entidade pública recolhe a informação dispersa na
sociedade e no Governo a respeito de determinada ação pública. É como
ocorre nos Estados Unidos, por força da atuação do OIRA, órgão de apoio
do Presidente da República.
A segunda estratégia, adotada no Brasil, é a de assumir a disper-
são da informação. Órgãos e entidades públicas possuem seus próprios
mecanismos de coleta de informação; visões parciais fazem-se presentes
a todo tempo.
A estratégia da centralização gera, em média, regulações mais coe-
rentes. Por outro lado, pela amplitude da exposição à informação múltipla,
ela pode fazer com que os órgãos reguladores atuem menos — e isso pode
ser problemático. A estratégia da dispersão, embora produzindo, muitas
vezes, regulações incoerentes, permite mais facilmente a eclosão de regu-
lações novas. É provável que alguma mistura entre as duas perspectivas
viesse a produzir resultados ótimos.
28. Diante dos problemas de adesão, a primeira estratégia é a de
realizar audiências e consultas públicas. Muito populares até pouco tempo,
hoje, a par de suas inegáveis virtudes, já se questiona se não levariam à
˜œœ’ęŒŠ³¨˜ȱŠȱŠ’Ÿ’ŠŽȱ›Žž•Šà›’ŠǰȱœŽȱ—¨˜ȱŠŒŠ‹Š›’Š–ȱœŽ—˜ȱ’—œ›ž–Ž—Š-
lizadas como estratégia de bloqueio da ação pública, se não permitiriam a
captura epistêmica do regulador, e se, em certos casos, não seria preferível
o debate parlamentar a elas. Conviria, então, adotá-las, mas sem esperar
mais do que o que podem dar.
A segunda estratégia é investir em ações regulatórias que respeitem o
padrão como os seres humanos processam informações e realizam decisões.
Aqui, as contribuições da economia comportamental vêm-se mostrando
promissoras, o que permitiu a alguns autores sugerirem que o Poder
Público atue como um arquiteto de escolhas, guiando os invidíduos em
prol de direções socialmente úteis. A proposta, no entanto, recebe críticas,
Žǰȱ—˜ȱ›Šœ’•ǰȱŠ’—Šȱ—¨˜ȱ˜’ȱœžęŒ’Ž—Ž–Ž—ŽȱŽœžŠŠǯ
A terceira estratégia é realizar análises de impacto regulatório, o que
permite prever e monitorar os efeitos práticos da regulação. Atualmente
–ž’˜ȱ™˜™ž•Š›Žœǰȱœ¨˜ȱ™›˜ŒŽ’–Ž—˜œȱšžŽȱ™›ŽŽ—Ž–ȱ’Ž—’ęŒŠ›ȱŽȱšžŠ•’-
ꌊ›ȱŠ˜œǰȱ™›ŽŸŽ›ȱŒ˜—œŽšž¹—Œ’ŠœǰȱŽǰȱŠȱ™Š›’›ȱŠÇǰȱ›Š³Š›ȱŒž›œ˜œȱŽȱŠ³¨˜ȱ
regulatória. Podem ser úteis, mas também possuem limites — um deles é
esquecer que se tratam de racionalizações, e não de profecias — e riscos,

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CONCLUSÃO GERAL 453

muitos dos quais semelhantes àqueles que recaem sobre as audiências e


consultas públicas.
29. Há dois problemas da regulação que merecem destaque: (i) o
viés de foco e (ii) o viés de comprometimento com a missão.
O viés de foco é miopia seletiva, comum em especialistas, que
impossibilita a abordagem do problema sob perspectivas ignoradas pelo
regulador. Busca-se neutralizá-lo por meio da centralização da informação,
pela realização de audiências e consultas públicas, pela adoção de análises
de impacto, e, em ambientes em que a informação é dispersa, pela troca
local de expertises.
O viés de comprometimento com a missão é a tendência, das autorida-
des reguladoras, a sugerirem propostas que impliquem mais regulação, pois
é isso o que sabem fazer e é isso o que elas fazem. Busca-se atenuá-lo pela
existência de instâncias de controle da atuação das entidades reguladoras.
30. É possível cogitar do paradoxo segundo o qual a super-regulação
cause a sub-regulação. A busca pela extirpação do risco pode causar o
esgotamento de recursos públicos. A regulação intensa pode redundar na
rejeição intensa. Sendo assim, na média, é melhor optar por regulação mais
abrangente — cobrindo mais riscos e mais atividades —, e menos intensa.
31. Das várias propostas que, hoje, são apresentadas na seara da
regulação pública, uma das mais interessantes é a da Nova Governança.
Trata-se de indicar objetivos regulatórios preliminares, de liberar as enti-
dades reguladas para os perseguirem da forma como souberem melhor
fazê-lo, e de monitorar, revisando, os resultados alcançados. Então, é
hora de divulgar as melhores práticas adotadas para que as entidades
reguladas, querendo, venham a adotá-las. Outra forma de se praticar a
Nova Governança é negociando, junto à iniciativa privada, a adoção de
mecanismos internos de controle de riscos e de aferição de qualidade.
A Nova Governança abre-se à experimentação e incorpora o know-
how da sociedade. É regulação focada em resultados, não em processos. É
pragmatista: incorpora a inovação como dado essencial.

Encerramento
Fazer incidir o pragmatismo e a razão pública na interpretação
“ž›Ç’ŒŠȱŠȱ˜—œ’ž’³¨˜ȱŒ˜—â–’ŒŠȱœ’—’ęŒŠȱŠŒ›Ž’Š›ȱšžŽȱ·ȱ™˜œœÇŸŽ•ȱœŽ›ȱ
prático e democrático. Há nessa dupla proposta um caráter experimental
e criativo que se adapta às individualidades e coletividades plurais deste
início de século XXI. A história da Constituição Econômica está longe de
terminar: ela está sempre plena de retornos e de ciclos. Daí que, resguar-
dadas certas garantias civilizacionais, ela só se deve permitir capturar pela
vontade democrática de cidadãos livres e iguais. No mais, a História não
acabou. Na verdade é exatamente o contrário: é hoje — como em todos os
dias — que tudo começa.

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