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revista da número 15

setembro de 2006
abem

Do discurso utópico ao
deliberativo: fundamentos,
currículo e formação docente para
o ensino de música na escola
regular

Cecília Cavalieri França


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
poemasmusicais@terra.com.br

Resumo. Este ensaio discorre sobre a transposição de preceitos “utópicos” da educação musical
para as deliberações curriculares, discutindo-se os conceitos fundantes da disciplina e as
possibilidades do fazer musical na escola regular. Como partir de uma concepção de currículo
rizomática para uma proposta curricular concreta sem que se perca o sentido da flexibilidade, da
oportunidade e do encontro? O artigo pretende contribuir para o debate acerca das questões
relativas à prática da educação musical na escola regular propondo um modelo de currículo semi-
aberto, cujos conteúdos são declarados em uma matriz curricular experimental. Esta é ilustrada por
meio de relatos e está sendo testada em um programa de formação continuada para professores de
música não especialistas que atuam em escolas regulares.

Palavras-chave: currículo de música, música na escola, Projeto Maria Fumaça

Abstract. This paper argues about the transposition between “utopian” principles for music education
and curricular decisions, discussing the funding concepts of the discipline and the possibilities of
music making in schools. How to jump from a rhizomatic conception of curriculum to a concrete
curricular proposal without losing the sense of flexibility, opportunity and encounter? It aims at
contributing to the debate about questions related to the practice of music education in schools
proposing a semi-opened model of curriculum, which contents are declared in an experimental
curriculum matrix. This is illustrated by reports and is being tested in a non-specialist in-service
teacher training program.

Keywords: music curriculum, music in schools, Maria Fumaça Project.

A música enquanto disciplina curricular enfren- descompasso entre a concepção teórica dos docu-
ta cotidianamente o desafio de (re)construir sua iden- mentos oficiais e a prática da educação musical
tidade e resgatar sua credibilidade, ambas abaladas enquanto disciplina no contexto das escolas regula-
desde a Lei 5692/71. Embora a Lei de Diretrizes e res. Questões relativas à qualificação do corpo do-
Bases 9394/96 (Brasil, 1996) tenha trazido a pro- cente e aos pressupostos teóricos e metodológicos
messa da volta do ensino da Arte na educação bási- norteadores dessa prática são amplamente discuti-
ca, é improvável que algumas distorções sejam das na literatura recente (Abem, 2004; Beineke, 2004;
corrigidas em curto prazo. Observamos um sonoro Bellochio, 2003; Figueiredo, 2004; Hentschke; Del

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FRANÇA, Cecília Cavalieri. Do discurso utópico ao deliberativo: fundamentos, currículo e formação docente para o ensino de música
na escola regular. Revista da ABEM, Porto Alegre, V. 15, 67-79, set. 2006.
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Ben, 2003; Santos, 2005, entre outros). Enquanto fase prescritiva do processo, e o avaliativo e o cien-
isso, vemo-nos em longos “compassos de espera” tífico, relativos à sua fase descritiva.
por concursos e contratação de corpo docente es-
pecialista. Paralelamente, crescem, tanto em número Os níveis utópico e deliberativo, que compõem
quanto em vitalidade, as iniciativas independentes a fase prescritiva do planejamento educacional, des-
por parte de diretores e professores unidocentes com crevem a educação como ela deveria ser. O discur-
formação musical de nível médio que tomam para si so utópico define-se como idealista, pois parte da
a responsabilidade de colocar a música no contexto reflexão sobre qual modelo de educação seria prati-
escolar. cado em condições de trabalho ideais. Com o res-
paldo da filosofia, psicologia e sociologia são vis-
Em sintonia com essa realidade, concebemos lumbrados objetivos gerais que projetam o pleno de-
o Projeto Cultural Maria Fumaça,1 um programa de senvolvimento humano. Esse nível de discurso
formação continuada que tem como meta contribuir desconsidera – propositalmente – a viabilidade de
para otimizar a prática pedagógico-musical de pro- se concretizar tais objetivos, pois apenas os projeta
fessores não especialistas que atuam em progra- como desejáveis para todos os indivíduos. Um
mas musicais nas escolas regulares. O projeto é referencial assim distanciado do contexto específi-
conjugado com uma pesquisa observacional exten- co de ação permite que a prática educacional se
siva nas escolas e cujos dados deverão iluminar todo norteie por ideais mais elevados.
o programa. Nossa meta de médio prazo é delinear
um modelo semi-aberto de currículo respaldado por Ao se aproximar da prática, deve-se então
fundamentos conceituais e teóricos contemporâne- considerar a viabilidade de se atingir aqueles ideais
delineados anteriormente. Aportamos no nível
os. Ao longo do curso serão elaborados e testados
deliberativo, onde são traçadas diretrizes educacio-
estratégias, atividades e repertórios potencialmente
nais mais imediatas. Aqui é preciso adaptar aquele
capazes de promover experiências musicalmente
referencial utópico às condições reais do contexto
significativas que possam otimizar a aprendizagem
onde ocorrerá a ação educacional, perguntando-se
dos alunos. A partir da definição de princípios e fun-
“o que é (o melhor) possível (a) ser feito neste con-
damentos que subsidiem a ação educacional, os
texto específico?” Esse nível de discurso, compro-
professores serão encorajados a traçar planejamen-
metido, portanto, com a realidade da sala de aula, é
tos contextualizados e comprometidos com o de-
de caráter mais pragmático e circunstancial. O dis-
senvolvimento de seus alunos, partindo da apropria-
curso utópico agora é filtrado pelas peculiaridades
ção do seu ambiente sociocultural para a ampliação
contextuais, adquirindo tantas formas quantas práti-
dos seus horizontes musicais.
cas existam. Estas serão incorporadas nas propos-
O projeto fundamenta-se em uma triangulação tas curriculares e nos programas e planejamentos
teórica entre contribuições da filosofia da educação de ensino específicos.
(Walsh, 1993), da educação musical (Swanwick, Poder-se-ia questionar a legitimidade do dis-
1999) e da metodologia da educação musical (Fran- curso utópico, uma vez que este dificilmente será
ça, 2003a; Swanwick, 1979; Swanwick; Taylor, 1982). atingido em sua plenitude. Sabemos que, na maio-
Esse referencial, que representa a concepção ideo- ria das vezes, as condições de trabalho são bem
lógica, artística e pedagógica do projeto, é apresen- diferentes daquelas idealizadas. Entretanto, não é
tado a seguir. possível delinear um planejamento transformador no
nível deliberativo sem aquela referência utópica. Esse
O modelo de Walsh como referencial
plano idealizado deve permanecer em perspectiva,
filosófico-educacional
como um ponto de fuga para onde nossos esforços
Paddy Walsh (1993, p. 52-62), filósofo da edu- deverão ser dirigidos. Sem esse ideal claro em men-
cação, propõe uma teoria educacional que sistema- te, esvazia-se o sentido da luta pela melhoria da
tiza diferentes perspectivas a partir das quais pode- educação em todos os níveis: acostumamo-nos com
mos abordar e refletir sobre a educação. Em um a noção de menos-valia e acomodamo-nos às pre-
modelo teórico multidisciplinar, o autor distingue qua- cárias condições em que se encontra a nossa disci-
tro formas de discurso2 em torno da ação educacio- plina nas escolas. O discurso utópico não é alheio à
nal: o utópico e o deliberativo, correspondentes à realidade. Ao contrário, projeta a realidade ideal, aque-
_____________________________________________________________________________________________________________

1
Curso de Extensão “Projeto Cultural Maria Fumaça: Educação Musical na Escola Regular”, da Escola de Música da UFMG.
2
Define-se discurso como uma forma de investigação, discussão e exposição (Walsh, 1993, p. 52-53) que apresenta características
próprias e inerentes ao seu respectivo campo teórico.

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la que acreditamos ser o direito de todos e o dever discutimos os conceitos fundantes da disciplina e
dos provedores da educação. Portanto, esses dois as possibilidades do fazer musical na escola. Em
níveis prescritivos, utópico e deliberativo, são seguida apresentamos uma matriz curricular experi-
simbióticos e complementares: enquanto o primeiro mental para o ensino fundamental, ponto de partida
é mais distanciado, o segundo é mais orientado para no nosso projeto. Posteriormente, a metodologia de
a ação em contextos específicos. trabalho é exemplificada. Não pretendemos abarcar
todos os problemas conceituais ou procedimentais
A contrapartida dos níveis prescritivos é da disciplina, mas, antes, contribuir para o debate
estabelecida através de contínua reflexão e avalia- acerca de alguns questionamentos que nos cercam.
ção dos resultados alcançados, tarefa dos níveis
descritivos do discurso educacional: o avaliativo e o Rizomas e matrizes
científico. Se os níveis prescritivos descrevem a edu-
cação como ela deveria ser, os níveis descritivos a A celebrada imagem do rizoma é uma notável
apresentam como ela é. O avaliativo analisa e julga metáfora da contemporaneidade. O termo, empres-
a ação educacional dentro do seu contexto, tendo tado da botânica (um tipo de caule que cresce hori-
em vista sua aferição imediata. É conectado ao nível zontalmente passando por diferentes pontos subter-
deliberativo, no qual são traçados os objetivos a se- râneos) e ampliado pelos filósofos Deleuze e Guattari
rem alcançados; esses dois níveis interagem e se (1996), passou a integrar vários dialetos, do cinema
redefinem continuamente. Já o discurso científico é à cibernética e – por que não – à música (Borges;
comprometido com a busca de explicações para os Fontes, 2005; Kreinz, 2004, entre outros).
resultados atingidos (ou não) na transação educaci-
A metáfora do rizoma tem como fundamento
onal. Aqui têm lugar os estudos sistematicamente
a multiplicidade. Sugere uma rede de idéias com inú-
conduzidos acerca de situações de ensino problema-
meras possibilidades que podem se conectar a ou-
tizadas, em busca de respostas e (re)direcio-
tras em direções múltiplas conforme oportunidades
namentos. Essas duas formas de discurso, avaliativo
lhe apareçam. É antes um processo que um produ-
e científico, descrevem a ação educacional de ma-
to, aberto, alterável, modificável, sempre em cons-
neiras diferentes: o primeiro, vinculado ao contexto
trução. Acima de tudo, comporta diferentes entra-
da ação educacional; o segundo, de forma mais dis-
das e permite fazer conexões criativas, uma vez que
tanciada e objetiva.
um ponto pode conduzir a qualquer outro, sem obe-
Os quatro níveis de discurso sobre a educa- decer a uma direção fixa ou previsível.
ção propostos por Walsh (1993) são inter-relaciona-
Trazida para a educação, essa imagem proje-
dos e se realimentam dinamicamente. Paulatinamen-
ta um currículo flexível, apto a aceitar diversas confi-
te, contribuições filosóficas reiteram ou redefinem os
gurações pedagógicas. Ou seja, rizoma simboliza
ideais educacionais do nível utópico. Fracassos per-
uma concepção curricular aberta. Ao contrário da vi-
cebidos no nível avaliativo provocam revisões no ní-
são do ensino como uma “árvore do saber”, que
vel deliberativo. Descobertas no nível científico po-
engessa os conteúdos em listas hierárquicas e cris-
dem mudar o curso dos níveis prescritivos – e assim
talizadas, compartimentalizando-os, o pensamento
por diante. Somente a clareza quanto às diferentes
rizomático provoca ligações não lineares entre os
formas de se pensar a educação permite-nos con-
conteúdos, convidando à experimentação.
ceber um projeto educacional mais consistente e,
ao mesmo tempo, considerar contextos específicos A idéia do rizoma acabou ancorando na praia
por meio do estabelecimento de objetivos construídos da educação musical. Weichselbaum (2002) e San-
reflexiva e coletivamente. No nosso projeto de aper- tos (2001) discutem questões curriculares a partir
feiçoamento profissional, cada professor será desa- de incursões ao pensamento rizomático. A chama-
fiado a reavaliar sua prática a partir do entendimento da do XI Simpósio Paranaense de Educação Musi-
de fundamentos e princípios gerais que norteiam a cal, em 2005, intitulado “Por uma Educação Musical
educação musical contemporânea (discurso utópi- Rizomática”, propôs uma reflexão sobre um “currí-
co), procurando contextualizar tal embasamento, culo aberto, que se deixa revelar nas brechas, nas
formatando seu planejamento cotidiano (nível linhas de fuga, e que faz emergir possibilidades que
deliberativo) de forma crítica e criativa. escapam a qualquer controle”.
Este presente texto se concentra na etapa Mas se por um lado um currículo fechado
prescritiva do processo educacional, uma vez que ameaça engessar o planejamento, por outro, uma
os níveis descritivos – avaliativo e científico – cons- postura radicalmente rizomática pode esvaziar um
tituirão objeto de estudo no decorrer da pesquisa. programa educacional. Temo que a nova moda, se
Partimos de algumas reflexões sobre o currículo, não compreendida na sua essência, faça dos pro-

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fessores sujeitos errantes, nômades em um mar de des de planejamento didático, denotando que é pos-
rizomas, perdidos. Enquanto educadores musicais, sível transitar livremente – rizomaticamente – pelos
trabalhamos incansavelmente no sentido de cons- pontos de interseção entre as modalidades e os con-
truir nossa identidade epistemológica. Nossa disci- ceitos fundantes a partir de vários pontos de entrada
plina tem conteúdos, técnicas e procedimentos pró- (esse processo será ilustrado nas atividades descri-
prios, consistentes e coerentes. É preciso ter algum tas mais adiante). Através do envolvimento ativo com
norte, ou ficaremos a vagar sem propósito num ema- obras musicais próprias ou da literatura, os alunos
ranhado vale-tudo. É preferível pensar não em um desenvolvem progressivamente a sua compreensão
currículo instável, mas em um flexível, arejado. Não musical, bem como competências funcionais (técni-
um professor nômade, mas alerta o suficiente para cas) que viabilizam a participação musical ativa.
aproveitar oportunidades de aprendizado em todo
lugar. Não em controle, mas direção, para assegurar Os conceitos fundantes
a aprendizagem de conteúdos e procedimentos fun-
Materiais sonoros, caráter expressivo e forma
damentais da nossa disciplina.
constituem as dimensões primordiais e cumulativas
Dessas questões decorrem importantes im- do discurso musical (Hentschke, 1993; Swanwick,
plicações curriculares e metodológicas. Como partir 1994). Nesta presente reflexão, optamos por nos refe-
desta concepção rizomática (utópica) para uma pro- rir a esses elementos como conceitos fundantes da
posta curricular (deliberativa) sem perder o sentido disciplina. Pela centralidade que estes assumem na
da flexibilidade, da oportunidade, do encontro? Acre- literatura contemporânea, entendemos que podem ser
dito ser possível achar um ponto de equilíbrio entre considerados pilares de uma proposta curricular – ou
ambas. No nosso projeto de formação de professo- seja, os seus conceitos estruturadores. Freqüente-
res, os diversos elementos musicais são apresenta- mente observamos programas de educação musical
dos através de uma metodologia que parte da per- resumidos aos tradicionais “parâmetros” musicais (leia-
cepção corporal, sensorial e afetiva, da reação, rea- se: altura, duração, timbre, intensidade), tidos como
lização e criação, para posterior representação (grá- ponto de partida e chegada de todo um trabalho de
fica, contemporânea e tradicional) e abstração percepção, raramente musical. Dentro de programas
conceitual e teórica, legado de expoentes como assim constituídos, poucas são as oportunidades que
Dalcroze, Willems, Orff e Schafer. Às citadas contri- os alunos têm de avançar além de uma mera execu-
buições, agregamos a matriz que Swanwick (1994, ção soletrada de tais elementos.
p. 161) apresenta ao final de seu Musical Knowledge,
Uma vez dominados os ditos padrões, suas
adaptada na Figura 1, abaixo.
possibilidades expressivas devem ser vivenciadas na
apreciação de peças estrategicamente selecionadas
Figura 1: Matriz de Swanwick: “Uma estrutura para o
currículo de música”
e em propostas de criação e performance (França,
2003a). Nessas ocasiões, aqueles elementos ga-
CONCEITOS FUNDANTES

MODALIDADES DO FAZER MUSICAL nham vida através das transformações metafóricas


sugeridas por Swanwick (1999). Materiais sonoros
Composição Apreciação Performance são organizados em gestos (motivos ou frases) que
incorporam diferentes nuanças de caráter expressi-
Forma O O O vo. Este é determinado por escolhas no que tange a
Caráter
O O O
registros, intervalos, forma e tamanho das frases,
expressivo
Materiais
andamento, agógica, articulação, métrica, textura e
O O O outros (Swanwick; Taylor, 1982, p. 11). Essas esco-
sonoros
lhas implicam mudanças de clima, atmosfera, emo-
Adaptado de Swanwick (1994, p. 161).
ção ou impressão. Tais motivos são então organiza-
dos em estruturas através dos mecanismos de re-
Nessa matriz é possível visualizar as inter- petição ou contraste e seus derivados. Os gestos
seções entre as atividades de composição, apre- expressivos se encadeiam com outros gestos, esta-
ciação e performance e a aprendizagem decorrente belecendo relações de monotonia ou expectativa por
destas: “sensibilidade e controle” de materiais sono- meio de variações, contrastes, superposições e si-
ros, caráter expressivo e forma (Swanwick, 1994). multaneidades, que determinam a articulação estru-
No original, a coluna da esquerda é intitulada “produ- tural da peça (Swanwick; Taylor, 1982). Experimen-
tos da aprendizagem”, que substituímos pela termi- tando música nesse nível, os alunos poderão, fortui-
nologia conceitos fundantes, que será explicitada em tamente, compreender seu valor simbólico individual
seguida. Essa matriz inspira inúmeras possibilida- e coletivo (Swanwick, 1994).

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Composição, apreciação e performance na Transpor esses preceitos (discurso utópico)


escola para o currículo (discurso deliberativo) é um desafio.
O desenvolvimento técnico é um dos pontos
Um dos fundamentos da educação musical nevrálgicos da educação musical na escola regular.
contemporânea celebra a primazia do fazer musical Portanto, é preciso balizar conceitualmente cada uma
ativo através das modalidades de composição, apre- dessas modalidades no contexto de ensino não
ciação e performance (Fernandes, 2004; França, especialista e coletivo. Em classes numerosas, a
2003a; Gamble, 1984; Paynter, 1992; Preston, 1994, composição pode ser viabilizada em pequenos gru-
Swanwick, 1979 e outros). Cada uma delas envolve pos, dentro dos quais os alunos podem tomar deci-
procedimentos e produtos específicos, promovendo sões musicais – naturalmente, a performance e a
insights complementares em relação à música en- apreciação crítica também se fazem presentes em
quanto discurso simbólico. A natureza peculiar de tais atividades de composição. Diferentemente da
cada modalidade promove diferentes níveis de prática de natureza especialista, compor, assim
engajamento cognitivo e afetivo. Além disso, as como tocar, inclui desde a realização musical mais
modalidades envolvem os processos psicológicos do simples até a mais elaborada. Esse dimensiona-
jogo imaginativo (enfatizado na composição), imitativo mento não significa, entretanto, uma permissividade
(na apreciação) e do domínio (na performance) ou um descompromisso com a qualidade da
(Swanwick, 1983). Enquanto compõe, o indivíduo de- performance e com o produto da composição. Qua-
senvolve o pensamento abstrato, pois cria mundos lidades artísticas podem e devem ser buscadas des-
imaginários, estruturando os sons conforme sua in- de o nível mais elementar. Pois se o aluno não é
tenção expressiva. Ao ouvir música, ele é levado a capaz de realizar uma peça simples de uma manei-
acomodar-se àquelas combinações sonoras, imitan- ra musical, com fraseado, articulação e dinâmica, o
do-as internamente. Quando realiza uma performance será com peças progressivamente complexas?
musical vocal ou instrumental, coloca em ação um
conjunto de habilidades sensoriais, físicas e intelectu- Igualmente, a performance instrumental ou
ais. Integrar essas modalidades na educação musi- vocal pode promover o desenvolvimento musical atra-
cal significa equilibrar atividades de tendências vés de propostas acessíveis sobre as quais os alu-
imitativas e imaginativas, contribuindo para o desen- nos tenham a oportunidade de tomar decisões ex-
volvimento integral do aluno. Estudos científicos pressivas e criativas. Figuram no repertório canções,
apresentam mais uma razão para incluí-las e integrá- folclóricas ou não, arranjos de percussão instrumen-
las no currículo: elas constituem “janelas” que po- tal e corporal e peças diversas de fácil compreensão
dem ser indicadores singulares da compreensão e realização. Alguns contextos podem viabilizar uma
musical do indivíduo (França; Swanwick, 2002; Fran- prática instrumental diferenciada em grupos meno-
ça Silva, 1998). res, especialmente no caso da flauta doce. Experi-
ências bem sucedidas de ensino de cordas geral-
Swanwick (1994, p. 138) relata que tal abor- mente têm seu lugar como atividades extracurri-
dagem já é observada como “princípio organizador” culares. É importante que no conjunto do repertório
de inúmeros programas de ensino efetivos. Acredita- haja, ao mesmo tempo, diversidade e coerência. Por
se que as três modalidades são, de alguma forma, diversidade entenda-se pluralidade de estilos; por
interativas, podendo se enriquecer e iluminar reci-
coerência, que haja princípios artístico-culturais e
procamente e fomentar o desenvolvimento musical
pedagógicos norteando tais escolhas. Não se limi-
dos alunos (Swanwick, 1979). Compor a partir de
tar ao conhecido, nem temer o desconhecido. Não
um determinado elemento musical ou técnico, por
negar o comercial, nem mitificar o erudito. O mesmo
exemplo, pode promover uma performance mais con-
vale para a apreciação: escutar atenta, ativa e anali-
sistente e coerente (Swanwick, 1979, p. 49). Tal con-
ticamente. Nunca preconceituosamente, mas sem-
cepção apóia-se no pressuposto de que a compre-
pre criticamente. Focalizar, desvendar e, quando
ensão, dimensão conceitual ampla sobre o funcio-
possível, apropriar-se de técnicas, elementos e “arti-
namento das idéias musicais, é transferida entre
manhas” musicais que produzam resultados sono-
aquelas modalidades (França Silva, 1998;
ros interessantes e, oportunamente, procurar utilizá-
Hargreaves; Zimmerman, 1992). Essa integração é
los nas atividades de criação individuais e coletivas.
sistematizada no Modelo C(L)A(S)P de Swanwick
(1979, p. 46), que inclui, além da composição – C, Matriz curricular experimental para o ensino
apreciação – A – e performance – P, modalidades fundamental
periféricas ou de suporte (por isso entre parênteses),
os “estudos acadêmicos” ou “literatura” – (L) – e as Apoiados nos referenciais explanados e man-
habilidades técnicas – (S). tendo a matriz de Swanwick em perspectiva, conce-

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bemos uma matriz curricular experimental para o Tópico 2: Modos rítmicos básicos e noções
ensino fundamental de música (1a à 4a série). En- de compasso
quanto a primeira é sintética, econômica e de natu- Perceber e realizar o pulso.
reza procedimental, a nossa expressa um exercício
Diferenciar entre música com e sem pulso regular.
necessário no dia-a-dia da escola: explicitar, de for-
ma detalhada, habilidades cognitivas (expressas nos Identificar e realizar o acento métrico (apoio).
verbos “identificar”, “associar”, “reconhecer”, “criar”, Classificar o acento métrico como binário, ternário
etc.) e conteúdos a elas associados. Não a procla- ou quaternário.
mamos exaustiva, nem definitiva ou original. Espe- Distinguir entre músicas com e sem anacruse.
ramos, sim, provocar o diálogo, admitindo revisões e
Perceber e realizar a divisão do pulso.
eventuais mudanças de curso. A matriz representa
um mapa de possibilidades e deve ser encarada a Diferenciar entre divisão binária e ternária do pulso.
partir de uma concepção rizomática, pois permite Perceber e realizar o ritmo real.
múltiplas entradas e linhas de fuga – tanto quanto a Produzir gráficos proporcionais de ritmo real.
matriz de Swanwick. Os diversos tópicos se entrela- Identificar o ritmo real a partir da notação gráfica.
çam e se encadeiam, permitindo incursões recípro-
cas. A matriz está organizada em seis temas que se Distinguir entre os modos rítmicos básicos.
desdobram em vários tópicos. Essa organização é Reconhecer os modos rítmicos básicos no re-
meramente didática e permite, especialmente ao pertório de apreciação e de performance.
professor iniciante, visualizar o território da nossa Criar arranjos a partir dos modos rítmicos.
disciplina. Colabora para traçar percursos que visi-
tem os diversos conteúdos sem compartimentalizá-
Tópico 3: Tempo
los. Isso é especialmente favorecido mediante a ado-
ção da estratégia de projetos, que consistem em Identificar e realizar variações de andamento.
atividades que se desdobram em várias etapas que Associar andamentos variados a eventos, obje-
conectam rizomaticamente diferentes tópicos, ex- tos, fenômenos naturais, animais e outros.
plorando diversos aspectos dos conceitos fundantes. Classificar eventos e objetos do meio social e da
natureza conforme o andamento.
MATRIZ CURRICULAR PARA O ENSINO
FUNDAMENTAL DE MÚSICA (1a à 4a SÉRIE) Identificar e realizar variações de agógica.
Associar variações de andamento a mudanças
TEMA 1: DURAÇÃO de caráter e à forma.
Criar climas expressivos a partir de indicações
Tópico 1: Curto e longo de andamento.
Diferenciar entre sons curtos e longos, não pro-
porcionais e proporcionais. Tópico 4: Padrões rítmicos básicos
Realizar sons curtos, longos e silêncio sob re- Diferenciar e realizar pulsos de som e de silêncio.
gência.
Associar pulsos de som e de silêncio à repre-
Registrar graficamente seqüências de sons cur- sentação gráfica.
tos, longos e silêncio.
Identificar figuras rítmicas e suas pausas.
Realizar sons curtos, longos e silêncio a partir
Associar gráficos de som e de silêncio às se-
da notação gráfica.
qüências rítmicas.
Identificar sons curtos e longos presentes no co-
Reconhecer e realizar seqüências rítmicas com
tidiano e na natureza.
semínima e pausa de semínima.
Reconhecer padrões de sons curtos, longos e
Compreender e realizar a relação de dobro e de
silêncio e associá-los à notação gráfica.
divisão do pulso.
Reconhecer padrões de sons curtos e longos no
Reconhecer e realizar seqüências rítmicas com
repertório de apreciação e de performance.
duas colcheias, semínima, mínima e suas pausas.
Criar peças explorando sons curtos, longos e si-
Identificar o número de pulsações contido nas
lêncio.
seqüências rítmicas (base semínima).
Criar audiopartituras utilizando notação gráfica de
Reconhecer padrões rítmicos conhecidos no re-
sons curtos e longos, não proporcionais e pro-
pertório de apreciação e de performance.
porcionais.
Criar frases musicais com os padrões rítmicos
básicos.

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Tópico 5: Compasso (base semínima) social e na natureza.


Identificar compassos binários, ternários e Classificar objetos e fontes sonoras diversas con-
quaternários. forme o seu registro.
Realizar a estrutura de compassos binários, Relacionar a conformação física de objetos e ins-
ternários e quaternários com movimentos corpo- trumentos musicais com os registros grave, mé-
rais e/ou instrumentos. dio e agudo.
Associar seqüências rítmicas à fração de com- Reconhecer os registros grave, médio e agudo
passo. no repertório de apreciação e de performance.
Completar compassos. Criar peças a partir da exploração dos registros
Reconhecer métrica regular e irregular. grave, médio e agudo.
Criar audiopartituras utilizando notação gráfica dos
registros grave, médio e agudo.
TEMA 2: ALTURA

Tópico 3: Padrões melódicos básicos


Tópico 1: Direcionalidade sonora
Identificar e realizar (entoar) padrões escalares.
Distinguir entre movimento sonoro ascendente e
descendente. Identificar e realizar (entoar) arpejos.
Realizar padrões de movimento sonoro (subidas, Criar frases musicais a partir de padrões escala-
descidas, som constante, contínuos e res e arpejos.
descontínuos) sob regência. Reconhecer padrões melódicos conhecidos no
Registrar graficamente seqüências de sons as- repertório de apreciação e de performance.
cendentes, descendentes ou constantes, contí- Compreender o conceito de acorde.
nuos e descontínuos. Criar acompanhamentos explorando acordes bá-
Realizar padrões de movimento sonoro (subidas, sicos e/ou inventados.
descidas, som constante, contínuos e
descontínuos) a partir da notação gráfica.
Tópico 4: Modo
Reconhecer padrões de movimento sonoro e
Compreender a diferença entre tríade maior e
associá-los à notação gráfica.
menor.
Identificar padrões de movimento sonoro no meio
Distinguir entre tríade maior e tríade menor.
social e na natureza.
Reconhecer modo maior e modo menor no reper-
Reconhecer padrões de movimento sonoro no
tório de apreciação e de performance.
repertório de apreciação e de performance.
Criar peças utilizando padrões de movimento so-
noro. TEMA 3: TIMBRE E INTENSIDADE
Criar audiopartituras utilizando notação gráfica de
movimento sonoro. Tópico 1: Timbre
Compreender o conceito de timbre.
Tópico 2: Grave, médio e agudo Realizar diferentes timbres vocais e corporais.
Compreender os conceitos “grave” e “agudo”. Identificar timbres instrumentais variados.
Discriminar entre sons a) graves e agudos e b) Reconhecer timbres diversos da paisagem sono-
graves, médios e agudos. ra, da natureza e outros.
Realizar seqüências de sons a) graves e agudos Reconhecer auditivamente diferentes paisagens
e b) graves, médios e agudos sob regência. sonoras.
Registrar graficamente seqüências de sons gra- Associar timbres a contextos e estilos musicais
ves e agudos. específicos.
Realizar seqüências de sons a) graves e agudos Conhecer as principais famílias dos instrumen-
e b) graves, médios e agudos a partir da notação tos (cordas, sopros, percussão).
gráfica. Sonorizar fotos, quadros, histórias e/ou poemas
Reconhecer seqüências de sons graves, médios explorando timbres.
e agudos e associá-las à notação gráfica. Criar paisagens sonoras utilizando voz, corpo e
Identificar sons graves, médios e agudos no meio outras fontes sonoras.

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Tópico 2: Intensidade Reconhecer repetição de eventos e frases musi-


Discriminar entre sons fortes e piano. cais, estruturas ABA e seus derivados no reper-
tório de apreciação e de performance.
Classificar sons do meio social e da natureza
conforme a intensidade. Criar peças com repetições e seções contras-
tantes.
Realizar sons fortes, piano, crescendos e
decrescendos sob regência. Identificar e realizar o procedimento de pergunta
e resposta (antecedente e conseqüente).
Realizar sons fortes, piano, crescendos e
decrescendos a partir da notação gráfica. Identificar e realizar cânones.
Identificar variações de dinâmica e associá-las à Identificar e realizar ostinatos e pedais.
respectiva grafia. Criar peças utilizando ostinatos e pedais.
Associar gráficos de sons fortes e fracos à métri- Identificar variações de um tema.
ca binária, ternária e quaternária. Criar variações a partir de um tema.
Reconhecer variações de intensidade no repertó- Associar a articulação estrutural a mudanças de
rio de apreciação e de performance. caráter e organização do material sonoro.
Criar peças explorando variações de intensidade.
Criar audiopartituras utilizando variações de in- Tópico 2: Elementos do discurso
tensidade.
Compreender o conceito de melodia.
Reconhecer indicações de dinâmica.
Compreender o conceito de acompanhamento.
Associar melodias e acompanhamentos aos
TEMA 4: CARÁTER EXPRESSIVO E CON- parâmetros musicais.
TEXTO
Explorar e criar acompanhamentos em estilos
variados.
Tópico 1: Caráter expressivo Diferenciar entre texturas simples e complexas.
Identificar o caráter expressivo de peças do re- Compreender e explorar a relação texto-música.
pertório de apreciação e de performance.
Criar texturas instrumentais e vocais.
Associar o caráter expressivo a variações de an-
damento, intensidade e outros elementos.
TEMA 6: NOTAÇÃO MUSICAL
Criar peças a partir da indicação do caráter ex-
pressivo.
Tópico 1: Grafia contemporânea
Tópico 2: Estilo, contexto e cultura musical Identificar signos básicos da grafia contemporâ-
nea (pontos, linhas, clusters e glissandi).
Diferenciar entre música erudita, folclórica e po-
pular. Associar padrões sonoros à grafia contemporânea.
Identificar estilos musicais variados. Registrar padrões sonoros utilizando signos da
grafia contemporânea.
Associar estilos musicais a contextos, grupos
sociais e formações instrumentais. Realizar gráficos e audiopartituras com voz, cor-
po e outras fontes sonoras.
Identificar características e instrumentos de dife-
rentes estilos. Reconhecer padrões sonoros da escrita contem-
porânea no repertório de apreciação e de
Distinguir auditivamente entre música tonal e
performance.
atonal.
Criar audiopartituras temáticas e abstratas.
Nomear compositores expoentes.
Reconhecer e nomear obras musicais relevantes
do contexto escolar e do cotidiano. Tópico 2: Notas musicais
Listar, completar e ordenar seqüências de notas
vizinhas (segundas).
TEMA 5: ESTRUTURAÇÃO MUSICAL
Distinguir entre seqüências de segundas ascen-
dentes e descendentes.
Tópico 1: Forma
Associar seqüências de notas vizinhas à escrita
Perceber e delimitar frases e seções. gráfica.

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Listar e ordenar seqüências de terças. tos ou motivos que se encadeiam em estruturas mais
Distinguir entre seqüências de terças ascenden- complexas). Gradualmente, conteúdos apreendidos
tes e descendentes. vão conduzindo a novos conteúdos, as conexões se
tornam mais consistentes e as atividades mais ela-
Associar seqüências de terças à escrita gráfica.
boradas tecnicamente.

Tópico 3: Leitura relativa no pentagrama Enfim, acreditamos em um currículo semi-


aberto que se apóie em fundamentos claros, que
Associar o pentagrama a padrões de movimento
tenha conteúdos declarados e ao mesmo tempo
sonoro e planos de altura.
permita uma multiplicidade de traçados possíveis,
Compreender a estrutura do pentagrama. contextualizados e essencialmente musicais, pro-
Identificar as linhas e os espaços do pentagrama. movendo ampla vivência dos conceitos fundantes.
Associar a escrita no pentagrama a gráficos de Essa compreensão é determinante para manter a
movimento sonoro. vitalidade da matriz curricular, bem como afirmar sua
legitimidade. Para ilustrar as idéias aqui apresenta-
Nomear seqüências de segundas e terças no
das – os conceitos fundantes, a integração das moda-
pentagrama (leitura relativa, sem clave).
lidades de composição, apreciação e performance, a
matriz de Swanwick (1994) e a abordagem rizomática
Tópico 4: Leitura absoluta da nossa matriz curricular, relataremos agora dois pro-
Compreender o significado de clave. jetos transcorridos em sala de aula.
Identificar as claves de sol, dó e fá. Projeto 1: Maria Fumaça
Conhecer os números das oitavas e localizá-las
na pauta musical. Este primeiro projeto tem como eixo a can-
ção Maria Fumaça, do nosso CD e respectivo livro
Posicionar notas musicais na pauta musical a
Poemas Musicais – Ondas, Meninas, Estrelas e Bi-
partir da indicação de clave.
chos (França, 2003b). Na canção, os conceitos
Realizar leitura absoluta. fundantes podem ser vivenciados de maneira forte-
Criar trechos musicais utilizando software de no- mente integrada. A melodia é formada por um
tação musical. pentacorde maior em movimentos ascendentes e
descendentes. A harmonia é ricamente elaborada,
com empréstimos modais e modulações. A escrita
Embora essa matriz pareça extensa, muitos rítmica explora o contraste de duração entre sons
tópicos contêm itens (chamados descritores) extre- curtos (padrões de quatro semicolcheias) e longos
mamente simples e diretos como, por exemplo, “Dis- (semínimas). O ritmo também é trabalhado no seu
criminar entre sons graves e agudos”. No entanto, aspecto expressivo, com alterações de andamento
um mesmo descritor pode pressupor níveis progres- e agógica associadas à temática da canção. A
sivos de complexidade – no caso citado, desde os macroforma apresenta introdução, repetições que
extremos dos registros grave e agudo até intervalos exploram detalhes do arranjo e de textura, e coda.
melódicos bem pequenos. Tais elementos, São explorados timbres instrumentais (violoncelo,
vivenciados através da escuta, criação ou piano e percussão) e não instrumentais, incluindo o
performance, admitem conexões as mais diversas apito do trem e sino, que sinalizam a partida da es-
com outros pontos da matriz, conforme será demons- tação. O tema da canção convida a explorações
trado posteriormente. Alguns tópicos são seqüenciais interdisciplinares através da contextualização histó-
e devem ser desdobrados ao longo das séries do rico-geográfica do trem de ferro, e pode conduzir à
ensino fundamental, como é o caso de “Padrões rít- apreciação de obras como O Trenzinho do Caipira,
micos básicos”, “Padrões melódicos básicos” e “Lei- de Villa-Lobos. A Figura 2 apresenta um trecho da
tura absoluta”. Mas a maioria dos conteúdos permi- canção (França, 2003b).
te combinações múltiplas. Seqüências de sons cur-
tos e longos, por exemplo, podem ser associadas a O projeto permite abordar de uma maneira
variações de registro, andamento, intervalos, inten- extremamente musical dois temas da nossa matriz
sidade, timbre ou ataque, determinando o caráter curricular: a direcionalidade sonora e a ordenação
expressivo e a forma, conectando rizomaticamente (falada e solfejada) de segundas, os graus conjun-
diversos elementos da matriz. Insistimos na não tos ou “vizinhos”. Portanto, para que o projeto seja
linearidade de diversos temas e tópicos devido à bem aproveitado, é importante que tais conteúdos
cumulatividade dos conceitos fundantes (materiais sejam trabalhados paralelamente. O automatismo da
sonoros determinam o caráter expressivo dos ges- ordenação dos nomes das notas pode ser trabalha-

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Figura 2: Trecho da canção Maria Fumaça

do através de atividades com bola, batimentos cor- escola regular. Iniciamos o projeto Maria Fumaça com
porais, jogos com cartões e cartelas (Mares Guia; a proposta de sonorização de uma “viagem de trem
França, 2005), exercícios orais e escritos. A direcio- de ferro” a partir da visualização de uma foto. Diver-
nalidade sonora também deve ser vivenciada primei- sos timbres vocais, corporais e de outras fontes so-
ramente de forma sensorial, através de movimentos noras foram combinados em texturas variadas. Ex-
corporais conjugados com a vocalização e percep- ploramos a questão expressiva dos andamentos lento
ção de subidas e descidas, cuja grafia será desco- e rápido, do acelerando e do rallentando, conjuga-
berta pelos alunos. Em seguida, esta será trabalha- dos com a movimentação corporal. Em seguida,
da através de atividades e jogos de leitura e reco- apresentamos a canção (o arranjo original do CD) e
nhecimento (Mares Guia; França, 2005). A aprecia- passamos à aprendizagem e performance da mes-
ção de peças que exploram subidas e descidas na ma. No primeiro momento, focalizamos os aspectos
sua escrita – como Rapsody in Blue, de Gerswhin, estruturais e expressivos do arranjo: a forma (intro-
Odeon, de Nazareth, o terceiro movimento do Quin- dução, repetições, com destaque para a modulação,
teto em Mi Bemol, de Schumann, e outras – é funda- e coda), as variações de andamento, o caráter vi-
mental para a compreensão das possibilidades ex- brante e ao mesmo tempo doce da peça.
pressivas desses elementos. Da mesma forma, a
criação a partir desses elementos possibilita sua Conduzimos, então, uma apreciação mais
aplicação musical imediata. Oportunamente, os dois analítica na qual os alunos foram provocados a per-
temas – nomes de notas e alturas – são associados ceber timbres, texturas, melodia e acompanhamento
na performance de canções como O Sabiá, de e a descobrir o movimento melódico ascendente e
Carmem Mettig, e Minha Canção, de Chico Buarque, descendente de cada frase da melodia. Em segui-
que preparam o caminho para a percepção do perfil da, pedimos que registrassem no quadro o gráfico
melódico da canção Maria Fumaça. de cada frase (habilidade já trabalhada anteriormen-
te), a partir do qual realizamos atividades de leitura e
O relato que se segue é derivado da nossa reconhecimento. A etapa seguinte consistiu da en-
pesquisa observacional em uma turma de segunda toação da melodia com os nomes das notas e com
série (atualmente correspondente à terceira) de uma diferentes tônicas3 e da escrita e leitura relativas no
_____________________________________________________________________________________________________________

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Lembramos que a utilização de diferentes “chefes” (tônicas) não é possível dentro da metodologia de solfejo do “Dó Móvel”.

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pentagrama. A percepção rítmica foi trabalhada sen- unânime foi “achei chato”. Tal reação negativa dos
sorial e graficamente a partir da diferenciação entre alunos desencadeou decisões pedagógicas que pro-
os padrões de sons curtos e longos. Após essa eta- piciaram uma experiência muito mais rica do que a
pa analítica, retornamos à performance da canção, proposta inicial de apreciação, e que se desdobrou
iluminada pela compreensão dos diversos elemen- em um projeto que se estendeu por várias aulas.
tos musicais que transformaram um mero pentacorde
em uma “viagem” ricamente musical. Complementa- Coincidentemente, o motivo inicial da peça é
mos o projeto com a apreciação de outras peças formado por um familiar “fá#, ré, si, sol, mi”, terças
que tinham em comum essa temática, incluindo O descendentes correspondentes às notas nas cinco
Trenzinho do Caipira, de Villa-Lobos. linhas da clave de sol – essa foi a porta de entrada
para a obra de Brahms. Os alunos “tiraram” esse
Inúmeros temas e tópicos da nossa matriz motivo de ouvido e o escreveram no pentagrama.
curricular foram trabalhados: curto e longo, tempo, Constatada a familiaridade com o tema de Brahms,
direcionalidade sonora, timbre, caráter expressivo, passaram a trabalhar numa composição a partir da-
cultura musical, forma, textura, melodia e acompa- quelas cinco notas. Delas derivaram dois acordes:
nhamento, notação gráfica e notas musicais (inclu- si menor (“si, ré, fá#”) e mi menor (“mi, sol, si”). Uma
indo solfejo relativo). O projeto permitiu trabalhar os aluna, ao piano, encontrou dificuldade para deslocar
conceitos fundantes de forma integrada, partindo da a mão entre os dois acordes. Assim sendo,
criação (sonorização) para a apreciação e perfor- (rizomaticamente) aprenderam sobre inversão de
mance da canção. Esse processo pode ser visualizado acordes: “mi, sol, si” transformou-se em “si, mi, sol”;
na matriz de Swanwick (1994) – Figura 3, abaixo. dessa forma, a pequena pianista manteria o mesmo
baixo (si) para os dois acordes. Estes foram alterna-
dos sob a melodia das cinco notas descendentes,
Figura 3: Percurso do Projeto Maria Fumaça
repetidas duas vezes, finalizando-se com acordes
também no registro agudo. O caráter dessa peque-
CONCEITOS FUNDANTES

MODALIDADES DO FAZER MUSICAL


na criação era quase tão intimista e dramático quan-
to o Intermezzo, devido ao andamento, à tonalidade
Composição Apreciação Performance e à dinâmica piano com crescendos imponentes. Se
por um lado a percepção do caráter dá-se de forma
Forma 1 2e6 3
intuitiva, por outro são decisões objetivas no nível
Caráter
expressivo
1 2e6 3 dos materiais sonoros que determinam o clima ex-
Materiais
1 4e6 3e5
pressivo da peça. Trêmolos no xilofone (“mi-fá#”) e
sonoros shakes no pandeiro reiteravam esse caráter. O tema
aparece na Figura 4.
Adaptado de Swanwick (1994, p. 161).
Na aula seguinte, os alunos criaram duas va-
riações para esse tema. Na primeira, a direção da
Projeto 2: Homenagem a Brahms melodia foi invertida para “mi, sol, si, ré, fa#”. O cará-
ter era mais rítmico, com uma célula sincopada rea-
Para ilustrar a versatilidade da matriz curricular, lizada pelo pandeiro e alternada com a flauta doce.
relatamos agora um projeto transcorrido em uma Após algumas repetições, os dois instrumentos jun-
escola de música especializada em Belo Horizonte, tos aceleravam até um corte abrupto. A segunda va-
em uma turma de nove alunos de dez anos de idade. riação era mais sombria e mais lenta, com a melo-
Nesse contexto (quase utópico), os conteúdos fo- dia iniciando no grave e subindo uma oitava a cada
ram trabalhados em um nível tecnicamente mais re- repetição. O trêmolo do tema reaparecia nos acor-
finado do que no projeto anterior, transcorrido em des e no xilofone, no início de cada entrada da melo-
escola regular. dia. Realizamos, então, a performance completa do
tema e suas variações. Os alunos puderam vivenciar
Estávamos trabalhando terças, tríades e integralmente a transformação daquelas cinco no-
arpejos, alternando o automatismo falado, cantado tas em um motivo de caráter marcante, organizado
e auditivo com a apreciação de peças que continham em um tema pequeno, mas coerente. A proposta foi
terças caracterizando a escrita – o prelúdio La Fille estendida com a criação das variações e a organiza-
aux Cheveux de Lin, de Debussy; as Sonatas KV ção dos três trechos em uma estrutura mais longa e
545, 570 e 576, de Mozart; Águas de Março, de Tom consistente.
Jobim, entre outras. Na seqüência, levamos o
Intermezzo op. 119, n. 1, de Brahms. Para nossa Algumas semanas depois, colocamos nova-
surpresa, quando a peça terminou, o comentário mente o Intermezzo de Brahms. É impossível trans-

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Figura 4: Tema Homenagem a Brahms

mitir através do texto o vigor da experiência e o im- al das cinco notas, com o qual passamos à compo-
pacto causado em todos nós. Aquela primeira im- sição (2) com caráter expressivo semelhante ao do
pressão negativa foi transmutada pela compreensão Intermezzo. Finalizado o tema, passamos à criação
e apropriação de um dicionário expressivo intimista, das variações (3), que foram organizadas em uma
delicado, quase dramático. A experiência de compo- estrutura mais complexa, que rendeu várias experi-
sição com as mesmas notas utilizadas por Brahms, ências de performance, entre ensaios e apresenta-
não obstante a simplicidade técnica composicional ções (4). Retornamos a Brahms (5), culminando com
e instrumental empregada, construiu uma relação a poderosa experiência do (re)conhecimento, a sen-
afetiva e de empatia com aquela obra e seu criador, sação de ouvir as “nossas” terças se desdobrando
de quem os alunos quiseram aprender sobre a vida, em longas em profundas melodias.
obra e estilo. Nosso Tema e Variações foi batizado
em sua homenagem. Praticamente todos os temas e tópicos da
nossa matriz curricular foram visitados nesse proje-
Figura 5: Percurso do Projeto Homenagem a Brahms
to: modos e padrões rítmicos, tempo, compasso,
direcionalidade sonora, grave e agudo, padrões me-
CONCEITOS FUNDANTES

MODALIDADES DO FAZER MUSICAL


lódicos, modo, timbre, intensidade, caráter expres-
sivo, estilo, forma e outros descritores como melo-
Composição Apreciação Performance dia e acompanhamento, acorde e inversão, terças,
escrita e leitura absoluta. Vale lembrar que, como
Forma 3 5 4
se trata de uma escola especializada, os conteúdos
Caráter
expressivo
2e3 1e5 4 puderam ser trabalhados em um nível tecnicamente
Materiais
2 1e5 4 mais elaborado.
sonoros
Continuaremos explorando caminhos e cone-
Adaptado de Swanwick (1994, p. 161). xões, acreditando que, quando se tem um norte, é
mais fácil aventurar-se, deixar-se levar pela frutífera
Na Figura 5 pode-se visualizar o percurso des- e imprevisível interação música-sujeitos. Por isso
se projeto na matriz de Swanwick (1994). Da apreci- fundamentos são importantes, e princípios, impres-
ação da peça de Brahms (1) extraímos o tema inici- cindíveis.

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Recebido em 27/02/2006

Aprovado em 10/04/2006

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