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KARINA FREITAS
O
Paulo Henrique Saraiva Câmara
ano de 2016 marcou ascensões Os demais textos dialogam com a proposta já Vice-governador
Raul Henry
e derrocadas de projetos exposta. O de Luciana Hidalgo nos mostra como
políticos, ideológicos. Mas é possível pensar revoluções pessoais e coletivas Secretário da Casa Civil
Antonio Carlos Figueira
mesmo quem está agora numa trama criada a partir de um profundo
no poder, com a máquina sentimento político. No caso da entrevista de COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO – CEPE
favorecendo suas enunciações, Bernardo Carvalho, vemos como uma obra Presidente
não tem sossego: é alvo de constantes análises, contemporânea nasce da complexa injunção entre Ricardo Leitão
problematizações ou tretas. Resolvemos fechar o fatores particulares e “universais” com temas Diretor de Produção e Edição
ano refletindo sobre como a literatura brasileira bastante atuais (a crise de meia-idade e uma Ricardo Melo
contemporânea vem pensando essas dinâmicas. trama cosmopolita que traz à baila o terrorismo). Diretor Administrativo e Financeiro
Tramas são criadas em cima do presente e de Já o texto sobre Roberto Menezes nos expõe os Bráulio Meneses
suas complexidades. Priscilla Campos, que conflitos de um corpo confinado em uma cidade
assina a reportagem, ouviu vários escritores e e em relações opressoras, numa época que
trouxe ideias de teóricos importantes, criando guarda todas as sementes do que vivemos hoje
um painel amplo que traz a diversidade desses (os anos 1990), e das “fugas” que ela realiza.
Uma publicação da Cepe Editora
olhares literários sobre o que é ser um escritor Ainda nesta edição, Kelvin Falcão Rua Coelho Leite, 530 – Santo Amaro – Recife
hoje. Essa reflexão é levada adiante, de outra Klein analisa o 2º volume dos diários de Pernambuco – CEP: 50100-140
forma, por meio da primeira parte do ensaio que Susan Sontag; um trecho do livro recém- Redação: (81) 3183.2787 | redacao@suplementope.com.br
a crítica literária Flora Süssekind fez para esta lançado de Svetlana Aleksiévitch e outro
edição. Ela pensa os mesmo processos, mas o faz de Luis Sérgio Krausz, um dos vencedores SUPERINTENDENTE DE PRODUÇÃO EDITORIAL
mesclando com outras artes e a partir de nomes do Prêmio Cepe de Literatura 2016. Luiz Arrais
não tão conhecidos do mainstream. A 2ª parte será EDITOR
publicada em janeiro, na nossa edição de 10 anos. Uma boa leitura a todas e todos. Schneider Carpeggiani
EDITOR ASSISTENTE
Igor Gomes
BASTIDORES
HALLINA BELTRÃO
e ditadura são
Ao escrever Rio-Paris-Rio, uma ideia-base me moveu. ainda acompanhá-los na doce e difícil travessia que
Mais do que uma ideia, uma obsessão. E, obsessi- é passar de turista à imigrante: sendo que Maria é uma
va, precisava falar disso: até que ponto as decisões estrangeira oficial (estudante da Sorbonne) e Arthur
políticas de uma nação influenciam os corpos, os um clandestino (poeta e artista de rua).
afetos de seus cidadãos, e como se defendem esses De início, embriagados por tanta liberdade, só
muito violentas
indivíduos, quando tocados, violados, pela bestiali- com o tempo os dois vão se perceber forasteiros, ou
dade da História. Reflexões, pesquisas e muita ficção mesmo foragidos, meio estranhos meio intrusos,
resultaram nesse meu novo romance sobre amor e na grande festa que é Paris. E o endurecimento do
política, que traz a simplicidade e a complexidade regime militar no Brasil nunca deixará de assombrá-
RESENHA
Fugas de uma
MARIA LUÍSA FALCÃO
geração dada a
estragar finais
As idas e vindas de uma
mulher isolada na João
Pessoa dos anos 1990
Rodrigo Casarin
livro bastante
Laura não assume e eu não sou especialista – Roberto, no entanto, contorna a questão. “O alco-
longe disso, aliás – para cravar, mas acho que a olismo aparece como fuga, mas é só um elemento
situação a deixou com depressão. “Carrego uma para outras fugas que há no livro, tanto que é tratado
carne podre na boca. Não dá pra sentir um sabor
novo quando já se mastiga isso há anos. Uma carne
esquecida que não tem como engolir, não tenho
singular, retratando de uma maneira mais leve, Laura mesmo usa o álcool
como algo social. Quis evitar o maniqueísmo de que
o álcool destruiu a vida. Cada um escolhe a maneira
estômago para ela. Quando as memórias vêm, não
dá pra se atentar às partes boas, não sei separar a
parte podre da doce nesse bolo pastoso, lembro
dramas sociais de se destruir ou não, de usar as coisas como quiser.
Eu não gosto de fazer apologia às drogas, de dizer que
são as melhores coisas do mundo. Quem é usuário
tudo. Na demência, a gente deve poder dar uma
mordida daquelas, trinta e tantas mastigadas no
vazio da boca vazia”, ela escreve. “A saudade,
e depressão sabe que não é assim. Vejo muito caras dizendo que
cheiraram uma carreira de pó e fizeram o melhor
texto do mundo. Mas o foco do texto não tem que
não importa o tipo, fede à carne podre”, conti- E, ao falar de sua geração, Roberto constrói uma estar na droga, ele que precisa ser bom.”
nua. “Quem enfiou essa Somália inteira dentro do adolescência na década de 1990, quando Carolina Voltando à cena de Moisés – que ilustra um qua-
meu coração? Meu coração daria muita fotografia Dieckmann e Marcello Novaes contracenavam em dro de voinha -, a resistência é mesmo o que nos
premiada aos olhos de Sebastião Salgado. Aqueles novelas e fichas telefônicas serviam para que, de um resta. Aqui, perto de casa mesmo, conheço uma
meninos cadáveres, aqueles magrelos soldados, orelhão, se ligasse para a Jovem Pan para pedir How história parecida com a de Laura (ou de Clara em
aquele sal, sol, areia e poeira, aquele belo cenário deep is your love, do Take That. Esse universo que dá o Aquarius): um colégio gigantesco comprou todos os
de tragédia”, ainda registra. tom da trajetória que a moça repassa até o momento terrenos de um quarteirão, exceto o de uma única
Em 2014, um estudo apontou que no Brasil as cabal que escreve a carta. E tudo, de certa forma, casinha, que está lá até hoje, obrigando os muros da
mortes por depressão tinham aumentado em 705% parece confluir para uma única frase da moça: “Sou escola a fazerem um inesperado contorno – alguém
nos últimos 16 anos, ou seja, o mal cresceu junto de uma geração que é dada a estragar finais”. Roberto ali conseguiu resistir ao apelo do dinheiro. É o que
com a geração de Laura, justamente quem Roberto também se sente dessa forma? resta, repito. Deus abriu o mar para Moisés, mas não
quis retratar na obra. “Tenho 37 anos e queria trazer “Essa foi uma das primeiras frases que elaborei abriu para os filhos de voinha e nem salvou Laura.
personagens da minha geração. Há um projeto para no livro. Ela é muito forte. Cresci lendo Stephen Que cada um se vire. Mesmo se houver alguém
falar sobre ela. Criei Laura a partir das pessoas que King e ele tem fama de estragar finais. Os livros superior em algum canto – extraterreno ou não
vivem no meu entorno na universidade”, diz o autor. recentes de literatura brasileira que leio tem finais -, ele não anda abrindo mar para mais ninguém.
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
ENTREVISTA
Bernardo Carvalho
Um olhar sobre
os horrores dos
conflitos internos
Simpatia pelo demônio, um dos romances mais
importantes do ano, fala sobre desejo e frustração a partir
de uma trama que alia dimensões coletivas e individuais
RENATO PARADA/ DIVULGAÇÃO
Raimundo
Faulkner criou um estilo áspero e severo, culmi-
nando com o romance O som e a fúria, narrado por
CARRERO
um excepcional com uma linguagem incrivelmente
cruel e visceral que se aproxima da alma por ima-
gens grotescas, como o som arrancado de uma
serra na madeira, cortando o coração da tarde em
algum condado do sul dos Estados Unidos. Tudo
isso aparece também em Enquanto agonizo, marco da
literatura norte-americana no Século XX.
Em contraponto, silencioso e elegante, o ser-
gipano Antonio Carlos Viana construiu também
uma obra inquietante, em que a condição humana
é sacudida por uma linguagem precisa, humilde
e simples, mais próxima de um Stendhal do que
Antonio Carlos
de um Faulkner, com a naturalidade de água que
escorre límpida na garganta.
Isso mesmo, Viana escrevia com a humildade
que dispensa a vaidade dos adjetivos e a eloquência
dos advérbios, sobretudo dos advérbios de modo
Viana e a sua
terminados em “mente”, usados até o abuso por da casa humilde da zona, com a cafetina alegando
escritores que não confiam nas palavras, nas frases, dores porque arrancara um dente há pouco tempo.
nas orações, nas cenas. Mesmo assim, é atormen- Mesmo assim eles vão para a cama, entres dores e
tador o conto O dia em que meu pai enlouqueceu. Conta a sangramentos a mulher descobre, um tanto enver-
prosa potente
história de um homem que enlouquece aos olhos gonhada, que o menino é potencialmente belo e
do filho, mesmo em narrativa às vezes indireta, forte no ato sexual. Um ser que dará muitos prazeres
às vezes direta. Tudo porque o sergipano prefere às mulheres. Aquele menino, inexpressivo, que
colocar a tônica das histórias nos personagens, e catava moedas na feira, transforma-se em alguém
não apenas na linguagem. Falar em fúria do com- que pode causar sonhos e delírios. Assim, a fúria
portamento humano em Viana parece inadequado, do comportamento humano atravessa o sangue e a
sobretudo por esse estilo cercado de cuidados e de alma da criança, para se instalar mundo feminino
MANUAL DO ESCRITOR 1
Marco Grupo de escritores revela como vencer as dúvidas
Polo de quem se lança no campo da literatura
Escrever ficção não é bicho-papão. publicados. A intenção do livro
Este é o título do livro e audiobook não é ensinar alguém a ser um
lançado pela local Edições Geni, grande escritor ou um best-seller,
assinado pelo grupo Autoajuda mas trocar ideias e experiências
Literária, composto pelos que levem as pessoas, que
escritores Cícero Belmar (foto), querem tentar a escrita, a se
Cleyton Cabral, Gerusa Leal, libertarem das inseguranças
Lucia Moura e Raimundo de iniciais e se arriscarem na
CRITÉRIOS PARA
RECEBIMENTO E APRECIAÇÃO
DE ORIGINAIS PELO
MARIA LUÍSA FALCÃO
CONSELHO EDITORIAL
I Os originais de livros submetidos à Cepe, exceto
aqueles que a Diretoria considera projetos da própria
Editora, são analisados pelo Conselho Editorial, que
delibera a partir dos seguintes critérios:
porque o ser humano não é apenas um menino Regina, mas o escrivão esqueceu o g, que depois III Os textos devem ser entregues em duas vias, em
juntando dinheiro com os trocados da feira, mas ela ‘encontrou no escuro do corpo’”. E não faltam papel A4, conforme a nova ortografia, devidamente
justamente é essa metáfora de que o homem faz os solitários, os vazios, os que sofrem a decepção revisados, em fonte Times New Roman, tamanho
irromper a glória e a conquista através do simples do amor, e, sobretudo, as decepções do sexo. 12, páginas numeradas, espaço de uma linha e meia,
e do comum. Além do envelhecimento, vale ressaltar. Desta- sem rasuras e contendo, quando for o caso, índices
Quando comecei este artigo, lembrei a obra de que para a importância dos personagens envelhe-
e bibliografias apresentados conforme as normas
Faulkner e de Viana, que parecem distantes e in- cidos, tocados pela solidão, pelos achaques e pelas
compatíveis, mas basta aproximar a lente, num dores de toda ordem. O que faz lembrar a máxima técnicas em vigor. A Cepe não se responsabiliza
exame mais detalhado, para se verificar que estão popular brasileira, para a qual “se um homem tem por eventuais trabalhos de copidesque.
ali a inocência e os tormentos de toda a humanida- mais de sessenta nos e acorda sem dores, esteja
de. Dos dois se pode dizer o mesmo que Hermilo certo de que morreu.”É que os velhos sempre têm IV Serão rejeitados originais que atentem contra a
Borba Filho: ‘Mas acontece que, se o sofrimento algum tipo de dor.
Declaração dos Direitos Humanos e fomentem a
não passou, se justamente continuou senão para Feita uma avaliação pós-morte da obra de An-
o homem que o cantou, ao menos para aquele que tonio Carlos Viana, assim, podemos dizer que ele violência e as diversas formas de preconceito.
sabe cantar”. realizou uma obra intensamente bela através de um
Para estabelecer a força dos seus personagens – mundo de pequenas glórias, frustrações e angústias. V Os originais devem ser encaminhados à
em geral, suas personagens –, Viana dá a ele nomes Colocando-se entre os prosadores mais notáveis Presidência da Cepe, para o endereço indicado a
exóticos e insólitos, como dona Normélia, dona da literatura brasileira, de qualquer tempo ou de seguir, sob registro de correio ou protocolo,
Katucha e dona Reina - cujo nome deveria ser dona qualquer geração.
acompanhados de correspondência do autor, na
qual informará seu currículo resumido e endereço
para contato.
Obra indica as etapas no A partir do exemplo de escritores paradigmáticos da Companhia Editora de Pernambuco
processo de fazer um livro literatura, James Wood esclarece tópicos da ficção Presidência (originais para análise)
Rua Coelho Leite, 530 Santo Amaro
Esta é uma obra pragmática, Considerado um clássico do o bom uso do detalhe na CEP 50100-140
como indica o título: Guia do gênero, Como funciona a ficção, de literatura? o que é o ponto de
Recife - Pernambuco
profissional do livro – Informações James Wood (Cosac Naify), tem vista e como ele funciona? por
importantes para quem quer escrever uma abordagem diferente sobre que a literatura nos comove?
e publicar um livro, de Maria o “como escrever”. A partir de Tudo sob o argumento mais
Esther Mendes Perfetti e João trechos selecionados de autores amplo de que a literatura é
Scortecci (Scortecci Editora). como Flaubert, Tchekhov, ao mesmo tempo artifício e
Trata principalmente de Nabokov, Henry James e verossimilhança, e que não há
questões práticas e técnicas, Virgínia Woolf, todos tidos como nenhuma dificuldade real em
como direitos autorais, as grandes estilistas, o crítico inglês unir esses dois aspectos, desde
diversas etapas no processo procura responder a perguntas que se conheçam os segredos do
de produção de um livro, tipos essenciais como: o que é um ofício, a carpintaria, a técnica.
de papel e impressão etc. personagem? como reconhecer O resto é por sua conta.
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CAPA
KARINA FREITAS
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CAPA
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que você se refere, cuida de dizer o que é literatura e que, na conjuntura de resistência, é necessário também lizmente, a crise política tornou essa figura totalmente
o que não é. Como se isso fosse fácil e claro”, observa anunciar, oferecer e criar possibilidades, situações, saí- ridícula e ajudou a revelar certo vazio intelectual e a
o escritor paulista. das. “Talvez, desnorteados com essa quebra brusca das incapacidade de pensar o momento político, mesmo
Em A visita particular, seu último romance lançado bússolas que nos últimos anos começavam a entender por parte daqueles que faziam uma literatura voltada
pela Alfaguara, Lísias cria o personagem José de Arari- o que é o Sul, nós, nas quebradas e terreiros, temos para temas que, supostamente, exigiriam essa com-
boia, artista plástico cuja imagem é subvertida após a urgência de perguntas que contemplem tanto o mais preensão. Há uma demanda de posicionamento, mas
“exibição” de sua figura, nu, em vias públicas, acabar antigo modelo quanto o mais novo. Para se organizar isso não significa que o escritor fará grandes saltos
– eternizada – no Youtube. No Rio de Janeiro olímpico, e lidar com a sanha que agora arrasta multidões em apenas por substituir uma temática por outra. É preciso
o escritor coloca em pauta o caos e o espetáculo, a direção a discursos rasos ou bombásticos, precisamos conseguir pensar, simultaneamente, o político e a po-
Juíza e os gênios da lâmpada, a lei e a performance. cultivar a dúvida. Resistir, então, pede prumo coti- lítica da literatura. A ficção sempre foi um laboratório
Sobre a importância das mídias digitais no processo diano, exige que continuemos junto com a multidão, fundamental de produção de pensamento crítico e de
de formação do contemporâneo e do escritor como mesmo a que surge mais voraz ou anestesiada, e nela reflexão sobre a natureza constitutiva do poder, e a
agente social, Lísias analisa: “As redes sociais co- colocar o verbo para formigar”, reflete. literatura faz isso não tanto por adotar temas políticos,
locaram em questão os mecanismos formadores do Em um cenário bipartido, no qual a autonomia mas por ser capaz de penetrar nas contradições e na
establishment literário brasileiro, que era excludente e vigiada acaba por dialogar, até certo ponto, com as lógica perversa que nos rege e molda nossas formas
cheio de favorecimentos”. formas de combate, Natália reforça o mérito das redes de vida”, analisa.
Apesar dessa quebra de bloqueios citada por Lí- sociais como propulsora das relações entre os autores A respeito dessa construção do eu que escreve, a
sias, formas extremas de apagamentos do discurso e a sociedade, impulsionando o artista à posição de escritora pernambucana Micheliny Verunschk lem-
insistem em manifestar-se. Mulheres, negros, ho- agente social. “Nós, escritoras e escritores, somos bra Margaret Atwood e o conceito do duplo – aquele
mossexuais ainda estão nas margens de um sistema sujeitos extremamente comuns, mas continuamos monstro invisível, entidade que se destaca da figura
– predominantemente e irritantemente – patriarcal, precisando desempenhar o papel de antenas da raça. que existe para além da escrita. “Atwood diz: ‘querer
branco, heterossexual. De um sistema cujos fogos não No que tange à Literatura Negra, escrever é um po- conhecer um escritor porque gosta do seu trabalho é
queimam em harmonia. No início deste ano, Lívia deroso gesto de força e resistência, escrever é lutar como querer conhecer um pato porque gosta do seu
Natália, poeta, acadêmica baiana, foi censurada por contra as balas que nos matam, escrever é reagir aos patê’. Ora, para preparar e comer o patê do pato, diz,
deputados e pelo governo de seu estado natal – ato estupros e à exploração da mulher negra no mercado é preciso antes matá-lo. E quem o mata?, pergunta
racista e abusivo dos instrumentos de poder. O poema de trabalho. Os meios contemporâneos de comunica- ela. Muito embora ela se refira às questões de criação
quadrilha (Maria não amava João/ Apenas idolatrava seus ção reforçam o alcance de nossa voz e nos dá algo que literária e de recepção da obra, creio que é possível
pés escuros./ Quando João morreu,/ assassinado pela nossos antepassados literários nunca pensaram: eles deslocar essa questão para o arbítrio político do es-
PM,/ Maria guardou todos os sapatos.), integrante do nos tiram do catre isolado de onde escrevemos, e nos critor”, observa Verunschk.
projeto Poesias nas Ruas – aprovado pelo Fundo de devolvem ao mundo, pulsante, vivo”, conclui a baiana. Segundo a pernambucana, entre os tantos duplos,
Cultura do Estado da Bahia – foi retirado de circulação. Para Laura Erber, professora da Universidade Federal ou personas possíveis, no panorama sociopolítico o
“Nós vivemos em um contexto de liberdade ilusória, do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e crítica literária, escritor invade o território do cidadão que o habita
uma sensação errônea de que podemos falar, as redes houve uma “reconstrução da esfera agonista do deba- para validar seu discurso e defender pontos de vista,
sociais, os celulares plenamente conectados... Tudo te”. De acordo com Erber, o escritor brasileiro passou juízos, verdades relativas ou absolutas. “Penso que
o que nos pode libertar tem, em verdade, a força de muito tempo produzindo uma imagem sedutora e sempre que esses duplos se misturam, há uma certa
sobrelevar as nossas liberdades individuais em favor inofensiva de si – uma figura pública à qual não inte- promiscuidade nas relações. Mas não poderia ser de
do privilégio de certos grupos”, comenta a poeta. ressava criar tensão com as instituições e com o status outro modo. Aquele indivíduo que existe para além
O escritor Allan da Rosa – que assina a recente com- quo. “É o modelo do escritor profissional, inteligente, da escrita sofre as crises econômicas, atrasa o aluguel,
pilação de contos Reza da mãe (Editora Nós) – lembra sofisticado e, ao mesmo tempo, bem-comportado. Fe- teme pelo futuro. E se equivoca. Não existe neutra-
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
ESPECIAL
país pré/pós
mente um modelo paradigmático na constituição
da literatura brasileira - o das canções do exílio.
Trata-se de poema de Angélica Freitas, que traz
apenas uma indicação de local e data - “Berkeley,
14 de maio de 2016” - e foi publicado isoladamente,
impeachment
e sem qualquer comentário suplementar, no blog
da revista Modo de Usar.
A rigor sem título, a página em que foi divulgado
é encabeçada, no entanto, por foto de Caco Argemi
na qual se vê “Carga de Cavalaria, com espadas em
Primeira parte de ensaio punho, pelo 4º Regimento de Polícia Montada”, ação
que se sabe foi realizada na noite da sexta-feira 13
que articula arte e política de maio de 2016, na Cidade Baixa, em Porto Alegre,
durante manifestação contra o impeachment de
HALLINA BELTRÃO
importante nos
a um impeachment sem crime de responsabilida- da do romance histórico por José Luiz Passos em O
de. E entre o que se viveu no Brasil e a sucessão marechal de costas, em operação narrativa que parece
de processos de desestabilização de governos de dialogar igualmente com os cruzamentos tempo-
esforços para
esquerda ou centro-esquerda na América Latina, rais no entanto mais imprevisíveis que estruturam
desde 2002-2003, na Venezuela, mas também romances como Viagem ao México ou Em liberdade, de
no Haiti (2004), na Bolívia (2008), no Equador Silviano Santiago.
(2010), três deles (Honduras, Paraguai, Brasil) re-
sultando na deposição de chefes de estado. Os
esforços analógicos têm se voltado, igualmente,
compreender o Ao contrário do que faz Passos, é um decisivo não
historicismo que conduz tanto a apropriação do Sam-
ba de uma nota só (de Tom Jobim e Newton Mendonça)
para o exame do emprego de uma retórica políti-
ca recontextualizada pelos que ocuparam o apa-
relho do Estado e pela grande imprensa – o que
contexto atual por Nuno Ramos em O direito à preguiça quanto dos
filmes do Cinema Novo por Eryk Rocha. Ambos
os trabalhos, no entanto, supõem, a construção
gerou a percepção de curiosas reedições de capas e -Constituição de 1988 da sociedade civil (dentre de diálogos entre tempos distintos, a interferência
matérias de jornais dos anos 1960 em outras de elas o acesso mais amplo à educação e à saú- entre períodos diversos da vida brasileira. No tra-
agora, entre a vassoura janista e suas refigurações de). Uma tirinha recente de André Dahmer, da balho de Nuno, montado no primeiro semestre de
contemporâneas, entre versões quase literais de série Os malvados, sintetizou essas tensões tem- 2016 no CCBB de Belo Horizonte, uma estrutura em
trechos (em especial a multiplicação da imagem porais em três quadros, marcados pelo recuo andaime, de mais de 15 metros de altura, conectada
do mar de lama) extraídos de Carlos Lacerda, mas histórico, mas legendados por título que aponta a 106 tubos de órgão e a uma ventoinha, executava,
apagando-se o contexto original antigetulista ou para a agenda política imediata. O primeiro de- em andamento lentíssimo, e em loop, a composição
antijanguista. Um rastreamento de repetições que les é de cunho analógico: “O passado voltou ao da bossa nova, mas refigurada pelo artista e por
– tendo como ponto de fuga O 18 Brumário, de Marx Brasil”. O segundo conduz a uma discriminação Leandro Cesar e praticamente irreconhecível nessa
– aponta simultaneamente para o caráter farsesco sobre ao que de fato se permite voltar: “Trouxe versão lutuosa, repetida incessantemente por essa
dessas duplicações (que apenas imaginam ainda alguma lembrancinha do exterior?”. E o último parede sonora. Não é à toa a escolha de canção pa-
crer em si mesmas, como observa Paul Laurent deles explicita, em resposta brevíssima, o caráter radigmática da bossa nova, das mais belas, aliás, do
Assoun, e, no entanto, exigem “do mundo a mesma cruento dessa dimensão anacronizante: “Uma cancioneiro brasileiro do século XX, mas remeten-
ficção”) e, por outro lado, para a impossibilidade de chibata”. O potencial satírico da tirinha, ancorado do necessariamente ao otimismo desenvolvimen-
reedições tais quais diante de condições históricas graficamente no aspecto angelical dos seus malva- tista do período, a um movimento musical de classe
e materiais distintas. dos, e verbalmente na capacidade de síntese e no média, repleto de imagens solares, de visões de um
Se a estratégia analógica pretende expor o des- comprometimento de Dahmer com as questões do cotidiano carioca relativamente despreocupado.
compasso dessas refigurações, aponta igualmente presente, tem no título Reforma trabalhista elemento- Basta contrapor a ela, outras das paredes falantes
para a necessidade de uma tomada de consci- -chave. Pois é na sobreposição da discussão sobre da exposição, com gravações do leilão de O grito,
ência das singularidades presentes, mesmo que direitos trabalhistas à memória da escravidão que de Munch, e com o áudio de Carlos Drummond de
inevitavelmente assombradas por operações di- se dimensiona politicamente o quadrinho. Andrade lendo o poema José e sublinhando que “a
versas de restauração conservadora, dentre elas a Sobreposições temporais, imagéticas ou contex- festa acabou”, “a luz apagou”, “o povo sumiu”, “o
perspectiva de revogação de direitos individuais tuais semelhantes têm se mostrado fundamentais riso não veio”, “não veio a utopia”, “e tudo fugiu”,
e trabalhistas, assim como de conquistas pós- na constituição de processos artísticos voltados, “e tudo mofou”.
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
RESENHA
A progressão e
DIVULGAÇÃO
o acúmulo de
volume, com quase 600 páginas. A lista de assuntos,
temas e autores abordados nas anotações de Sontag é
igualmente extensa, assim como é variado o feitio de
escrita ao longo dos anos, indo das frases mais sucintas
até parágrafos densos de autoanálise psicológica. A
Susan Sontag
década de 1960 marca também o período de conso-
lidação de Sontag como figura pública. Tudo começa
com a publicação de seu primeiro romance, O benfeitor,
de 1963, um início promissor que é confirmado em
1966 com o lançamento de sua primeira coletânea
As contradições que de ensaios, Contra a interpretação. Em 1967, contudo,
ela lança um segundo romance, Death Kit, recebido
necessidade de tudo
franceses). Ao final, uma nota do organizador: “a lista sua presença pública: a ficcionista recusa a ensaísta,
continua até o número 228, onde SS a abandona”. No e as duas personalidades são postas em questão nos
ano seguinte, em agosto de 1978, surge a lista de “Uma diários, e todas essas modalidades da escrita atuam em
HALLINA BELTRÃO
sobre amar e
desamar gorby
“A época do Gorbatchóv… Multidões enormes de gente povo. Eu daria com prazer um tiro na nuca dele lá no
com rostos felizes. Li‑ber‑da‑de! Todos respiravam polígono de Bútovo.** (Bate com o punho na mesa.) Veio
isso. Os jornais passavam de mão em mão. Era uma a felicidade, né? Apareceu kolbassá, apareceu banana.
época de grandes esperanças: a qualquer momento Estamos chafurdando na merda e comendo só coisas
estaríamos no paraíso. A democracia era para nós de fora. Em vez da pátria, um grande supermercado.
um animal desconhecido. Íamos correndo para as Se o nome disso aí é liberdade, eu não preciso dessa tal
manifestações, como loucos: vamos agora descobrir liberdade. Que se dane! O povo está no fundo do poço,
toda a verdade sobre Stálin, o gulag, vamos ler Os somos escravos. Escravos! Na época dos comunistas,
filhos da rua Arbat, livro proibido de Rybakov, e outros como dizia Lênin, era a cozinheira que administrava o
bons livros, e seremos democratas. Como estávamos Estado: operárias, ordenhadeiras, tecelãs. Mas agora no
errados! Todos os radinhos gritavam essa verdade… De- parlamento só tem bandido. Milionários em dólar. Eles
pressa, depressa! Leiam! Escutem! Nem todos estavam tinham que ir para a cadeia, não para o parlamento.
prontos para isso… A maioria das pessoas não tinha Fomos tapeados com a perestroika!
posições antissoviéticas, elas só queriam uma coisa: Eu nasci na URSS e gostava dela. Meu pai era co-
viver bem. Para poder comprar jeans, videocassetes e munista, me ensinou a ler com o jornal Pravda. Todo
o limite dos sonhos: um carro! Todos queriam roupas feriado nós íamos juntos para os desfiles. Com lágrimas
bonitas, comidas gostosas. Quando eu trouxe para nos olhos… Eu era pioneiro, usava gravata vermelha.
casa O arquipélago gulag do Soljenítsin, minha mãe ficou Veio Gorbatchóv, e não tive tempo de entrar no Kom-
horrorizada: ‘Se você não der um fim nesse livro agora somol, o que eu lamento. Sou um sovok, não é? Meus
eu expulso você de casa’. O marido da vovó tinha sido pais também, meu avô e minha avó também. Meu avô
fuzilado antes da guerra, mas ela dizia: ‘Não tenho sovok morreu na defesa de Moscou, em 1941… E a minha
pena do Vaska. Fizeram certo em render. Pela língua avó sovok lutou com os partisans… Os senhores liberais
comprida’. ‘Vovó, por que você não me contou nada?’, estão trabalhando para ganhar o deles. Querem que
eu perguntei. ‘Prefiro que minha vida acabe, mas que nós passemos a ver nosso passado como um buraco
você não sofra.’ Assim viviam nossos pais e os pais negro. Eu odeio todos eles: gorbatchóv, chevarnadze,
deles. Passaram por cima de tudo isso com um rolo iákovlev. Escreva com letra minúscula, de tanto que
compressor. Quem fez a perestroika não foi o povo, eu os odeio. Não quero ir para a América, quero ir
quem fez foi um só homem: Gorbatchóv. Gorbatchóv para a URSS…”.
e um punhado de intelectuais…” “Aqueles foram anos belos, ingênuos… Nós acre-
“O Gorbatchóv é um agente secreto americano… Um ditamos no Gorbatchóv, agora já não acreditamos
maçom… Traiu o comunismo. Jogaram os comunistas tão facilmente em ninguém. Muitos russos volta-
na lata do lixo, os do Komsomol jogaram no lixão! Odeio ram da emigração para a pátria… Foi tanto ânimo!
o Gorbatchóv por ele ter roubado de mim a pátria. Pensávamos que iríamos destruir esse barracão.
Guardo meu passaporte soviético como meu bem mais Construir alguma coisa nova. Eu terminei a faculda-
precioso. Sim, nós enfrentávamos fila para pegar um de de letras da Universidade de Moscou e entrei na
franguinho passado e umas batatas podres, mas isso pos‑graduacao. Sonhava em trabalhar com ciência.
era a pátria. Eu a amava. Vocês moravam no ‘Alto Volta O ídolo daquela época era Aviérintsev, toda a camada
com mísseis’,* mas eu morava num grande país. A culta de Moscou se reunia para ver as aulas dele. Nós
Rússia sempre foi um inimigo para o Ocidente, eles têm nos encontrávamos e cultivávamos uns nos outros
medo dela. É um espinho na garganta. Ninguém quer a ilusão de que logo o país seria outro, e de que nós
uma Rússia forte, com os comunistas ou sem eles. Eles lutaríamos por isso. Quando fiquei sabendo que mi-
nos veem como um depósito de petróleo, de gás, de nha colega de curso estava indo embora para Israel,
SOBRE A OBRA
madeira e de metais não ferrosos. Nós trocamos petró- fiquei muito surpresa: ‘Mas você não fica com dó de
O trecho ao lado pertence leo por roupa de baixo. Mas havia uma civilização sem sair? Tudo aqui está só começando’.
ao livro O fim do homem essas roupinhas e sem esses trapos. Uma civilização
soviético, recentemente soviética! Alguém queria que ela deixasse de existir. * Alto Volta, antiga colônia francesa na África Oci-
lançado pela Companhia Foi uma operação da cia. Nós já somos governados dental, atual Burkina Faso. O apelido jocoso citado no
das Letras. A tradução é de pelos americanos. O Gorbatchóv foi muito bem pago texto refere‑se à própria União Soviética.
Lucas Simone. para isso… Mais cedo ou mais tarde ele vai ser julgado. ** Prisão onde, entre 1936 e 1953, mais de vinte mil
Espero que esse Judas sobreviva para ver a fúria do prisioneiros políticos foram executados.
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
Portas frias
Ali, no recém-inaugurado Aeroporto Internacional barcavam, em pequenos bandos, nas horas frias
do Galeão, poucos anos antes eu tivera o privilégio e pequenas da madrugada, de peruas Veraneio
de trabalhar, como pesquisador, num projeto da com chapas frias, cujas origens eram conhecidas
Empresa Brasileira de Turismo, órgão vinculado ao por todos e levavam, em silêncio, suas presas ao
Governo Federal, cujo objetivo secreto era detectar, recolhimento das repartições encarregadas das
afinal, quanto dinheiro dispendiam os turistas bra- investigações secretas.
sileiros em suas viagens ao Exterior uma vez que, A um destes heróis, cujo destino ignoro, e cujo
estando a venda de dólares limitada a 1.000 por nome foi esquecido pela passagem do tempo, cha-
viajante, todos, sabidamente, recorriam às mãos mavam, se não me engano, Caron, sem dúvida um
ubíquas e diligentes do mercado negro de divisas. nome falso destinado a despistar os encarregados
Eu e meus jovens companheiros de pesquisa tí- do implacável, mas talvez não tão inteligente, nem
nhamos como tarefa interrogar os passageiros que tão bem organizado, nem tão astuto, nem tão com-
chegavam nos voos internacionais e aguardavam petente, aparato de repressão, um nome que remete
sua vez nas extensas filas do controle de passaportes de maneira evidente ao barqueiro que, no reino
e, na pureza e na ingenuidade sedutora dos nossos subterrâneo das sombras do Hades, conduz a barca
dezoito ou vinte anos, deles arrancar informações que leva de uma margem do Styx à outra margem do
que pudessem levar a uma estimativa realista de rio do esquecimento, este, cuja água escura, ao ser
quantos dólares teriam comprado no mercado transposta pelos finados em sua jornada em direção
negro. Meu objetivo ao fazer aquele trabalho não ao palácio que fica além das muralhas de bronze,
era outro senão adquirir, eu mesmo, dólares no lhes oblitera o passado, o palácio cujo limiar eram
mercado negro, para poder, eu também, viajar ao também os pórticos das estações secretas onde eram
exterior. Meus amigos, inspirados pelos slogans do interrogados aqueles que, sob o sereno da madru-
movimento estudantil, viam com grande desprezo gada, em meio a um orvalho calmo como o que es-
esta minha disposição de me colocar a serviço corria das portas geladas do Aeroporto Internacional
do governo militar, com toda a multiplicidade de do Galeão, eram levados em silêncio pelos agentes
epítetos concebidos pela imaginativa retórica com- trajados com ternos de Tergal reluzente a bordo das
binatória dos discursos das chamadas lideranças, peruas Veraneio com chapas frias como a noite, e
estas figuras que, aos nossos olhos, adquiriam em seus trajetos pela escuridão eram também os
dimensões míticas por serem capazes, com seu passageiros destes novos Carontes. O que terá sido
carisma e com seu verbo, de conduzir ao êxtase feito do Caron do Movimento Liberdade e Luta, por
os participantes das assembleias juvenis, como quem suspiravam e cochichavam as meninas do
os rapsodos de um novo tempo, os iniciados de Colégio Equipe?
um culto às musas da política, cujas bíblias eram Mas não, nem nele nem nas momentosas causas
os volumes de Gramsci e de Engels que levavam por ele defendidas, alardeadas por seus companhei-
SOBRE A OBRA
a tiracolo, assim como os exemplares dos jornais ros rebeldes em busca de justiça eu pensava, e sim
O excerto pertence ao Movimento e Opinião; cujos hinos tinham sido com- nestes outros pórticos que levariam para bem longe
livro Outro lugar, vencedor postos por Violeta Parra; cujas condecorações e dos portões escuros, das ruas entupidas de automó-
do Prêmio Cepe de distinções tinham a forma de fichas nos arquivos veis escangalhados, e lá estava eu, todas as manhãs,
Literatura 2016 (romance). secretos do DOPS ou mesmo de notórias passagens bem cedo, quando aterrissavam as portentosas naves
A obra será lançada pela pelas mãos e pelas garras dos sinistros órgãos da prateadas que despejavam, no calor do Rio de Ja-
Cepe Editora em 2017. repressão, cujos representantes, invariavelmente neiro, os bem-aventurados que chegavam do outro
vestidos com ternos de Tergal fulgurantes, desem- hemisfério, portando nos braços os pesados casacos
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
de inverno que eram para mim as insígnias de uma teatro destinadas a esclarecer o proletariado acerca O dinheiro que eu conseguia poupar, não só com
outra ordem, de uma ordem certamente superior, lá das injustiças do capitalismo e das atrocidades do a aplicação dos questionários, mas também com
estava eu no limiar entre um mundo de lamentos e governo militar, que afinal nunca eram levadas ao o engenhoso aluguel do velho Chevrolet Opala à
de suspiros e aquela construção grandiosa do futuro palco e nem mesmo eram ensaiadas porque passá- Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da
que, do lado de lá, já era presente, e da qual aquele vamos aquelas tardes fumando e bebendo cerveja? Universidade de São Paulo, por um valor que, sendo
maravilhoso aeroporto, implantado em meio à deso- Ou do lado dos que construíam para si casarões inferior ao aluguel de dois automóveis de passeio
lação da Ilha do Governador e em meio ao desconsolo estupendos nos bairros novos, que eram abertos comuns, que seriam necessários para transpor-
das águas da Baía da Guanabara, era a sucursal, e a toque de caixa às margens plácidas das cidades e tar a turma de seis pesquisadores, todos os dias,
indagava, pacientemente, aos passageiros sorridentes que almejavam adquirir lindos automóveis de luxo por uma semana, do Hotel Novo Mundo, na Praia
que aguardavam na fila do passaporte quanto tempo e fazer lindas viagens à Europa e amealhar lindos do Flamengo até o Aeroporto Internacional do
tinham permanecido do outro lado, se tinham se móveis coloniais e assim tornar-se os sucessores Galeão, na Ilha do Governador, e do Aeroporto
hospedado em hotéis ou em casas de parentes, se legítimos, os verdadeiros legatários dos senhores Internacional do Galeão, na Ilha do Governador,
tinham frequentado restaurantes uma ou duas vezes de engenho que, nos séculos passados, contavam até Hotel Novo Mundo, na Praia do Flamengo, era
ao dia, se traziam presentes e se tinham feito compras com os contingentes de escravos às suas ordens? conveniente à Fundação e era conveniente para
para si e para seus familiares, para que depois pudesse Enquanto aquelas dúvidas nos dilaceravam por mim, pois somava-se ao fruto do meu trabalho e,
ser estimado quantos dólares tinham adquirido dos dentro, eu pensava em fugir para algum lugar do ou- assim, aumentava, consideravelmente, o valor em
operadores do mercado negro de divisas. tro lado, onde fosse possível viver, simplesmente, dólares que eu poderia adquirir no mercado negro,
Para garantir aos ressabiados viajantes que nós sem tantas dúvidas e sem tantos tormentos, e para com vistas àquele dia – àquele dia em que, a bordo
não éramos agentes do fisco disfarçados de estu- isto trabalhava ali, dia após dia, levantando-me do Electra II da Varig, eu me dirigiria do Aeroporto
dantes universitários sinceros e de boa vontade, antes do sol nascer, no quartinho com vista para de Congonhas ao Aeroporto Internacional do Ga-
agentes do fisco prontos a fincarem suas garras nos um poço de ventilação que fora alugado para nós, leão para embarcar no Boeing 707 da Aerolineas
pescoços dos viajantes tresnoitados que, em sua os pesquisadores vindos de São Paulo, no Hotel Argentinas para Nova York, com escala em Miami.
ingênua alegria por pisarem novamente o torrão Novo Mundo, na Praia do Flamengo, e me dirigia, Fugir tinha sido, desde sempre, para mim e para
natal e seduzidos pela pureza lisa das nossas faces acompanhado de cinco outros pesquisadores, à Ilha meus antepassados, no Egito dos seus cativeiros,
juvenis, estivessem prontos a prestar informações do Governador, a bordo de um Chevrolet Opala no Egito das suas escravidões e na Alemanha dos
que normalmente deveriam permanecer em segre- verde com estofamento xadrez que pertencera massacres medievais incitados pela Igreja, que os
do, aqueles questionários eram anônimos, o que a nosso amigo Fritz Zausmer e, depois da morte acusava de envenenarem os poços e de tirarem o
também garantia a nós, os pesquisadores, a certeza dele, a seu cunhado Otto Hoffmann, o fotógrafo, sangue das crianças cristãs para assarem seus pães
de que não estávamos colaborando inadvertida- e depois da morte dele fora comprado da viúva, ázimos, e na Eslováquia e na Morávia e nos condados
mente com os órgãos responsáveis pela coleta de D. Edith Hoffmann, por meu pai. Dirigia-me ao húngaros ao pé dos Cárpatos, que viviam à sombra do
tributos do governo militar, mas com uma autar- Aeroporto Internacional do Galeão para interro- esplendor da capital real e imperial dos Habsburgos,
quia que era vista por mim com certa simpatia, a gar os passageiros tresnoitados que desciam das e em Viena, arruinada pela guerra, a única alternativa
Embratur. Mas, afinal, de que lado estávamos? Do aeronaves vindos do outro lado, para que nossos ante inimigos poderosos demais, numerosos demais,
lado deles que, nas noites frias, cruzavam a cidade habilidosos tecnocratas pudessem calcular quan- misteriosos demais: fugir significava, simplesmente,
em todas as direções a bordo das peruas Veraneio tos dólares cada viajante adquiria, em média, no passar para o outro lado, atravessar as grandes águas,
para baterem com seus toques sinistros nas portas mercado negro de divisas, para que assim, talvez, como tinham feito aqueles que seguiam Moisés e
assinaladas? Ou do lado dos que, como o barqueiro pudesse ser determinado um novo contingente. o seu bastão, como aqueles que, conduzidos por
Caron, queriam nos conduzir ao paraíso da justiça Ou para que assim o fisco, amparado pela Polícia Caronte, atravessavam as águas frias do Styx para
social? Do lado do grupo de teatro revolucionário Federal e por seu exército de delatores, pudesse entrar num palácio cujas câmaras se sucedem até o
que, coordenado por um geólogo comunista, preco- fincar suas garras nos pescoços dos operadores do infinito, passando de uma a outra e mais outra, num
cemente falecido, reunia-se, aos sábados e domin- mercado negro de dólares e perfurar-lhes a jugular, caminho que segue em direção ao infinito. Como se
gos, num casebre do Jabaquara e tramava peças de penetrar em suas medulas? fosse possível escapar aos olhos de Deus.
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RESENHAS
DIVULGAÇÃO
profundidades
um dos melhores É justo que, no título, “realidade” porque,
livros de poesia de conste a palavra manual mesmo não sendo
2015 e finalista do - obra que nos ensina a teórico, entendo que a
da arte poética
prêmio Oceanos 2016, proceder em algo ou nos mimetizamos mesmo
Manual de flutuação para usos desse algo. Siscar quando não escolhemos
amadores (7 Letras), cumpre essa proposta ao falar dela (o que não é o
de Marcos Siscar. Na nos guiar pelos meandros caso de Siscar).
Obra finalista do Oceanos 2016 época, não demos a
atenção merecida e
da poesia; na verdade,
da impossibilidade
Talvez seja arbitrário
dizer que o trabalho de
reflete a poesia e sua construção aqui tentamos resolver
a “questão” .A obra
de alcançá-la em sua
totalidade, mas que, ainda
Siscar como artista flerta
com sua atuação como
em linguagem simples, direta articula dois elementos assim, nos joga de formas professor universitário
conhecidos dos leitores não usuais no mundo. Se e pesquisador de poesia
Igor Gomes de poesia: a ideia podemos flutuar (algo não contemporânea. Mas
dessa arte como um usual), há também versos creio ser possível pensar
vislumbre da vertigem que nos chamam ao chão, sua ação enquanto poeta POESIA
que é estar no mundo, agindo como a gravidade. e professor a partir da
transmitida em versos É entre essa possibilidade referência a Michel Manual de flutuação para amadores
de apuro formal de pairar e a presença/ Deguy, o qual Siscar já Autor - Marcos Siscar
simples e direto, sem necessidade do solo, uma traduziu e sobre quem Editora - 7 Letras
melindres estéticos. dança de forças, que se já versou em ensaios. Páginas - 107
Mas se destaca pelo encontra o eu poético e Certamente, o resultado Preço - R$ 34,00
REPRODUÇÃO
PRÊMIO CEPE
Mariza Após desbancar centenas de concorrentes,
Pontes vencedores terão obras publicadas em 2017
Com mais de 700 inscritos, paulistas Luís Sérgio Krausz,
incluindo brasileiros com Outro lugar, na categoria
residentes no Japão, Estados Romance, e Milton Morales
Unidos, Inglaterra, Portugal, Filho, com Dancing jeans –
Uruguai e Alemanha, o Baixo Augusta e outros contos, na
Prêmio Cepe Nacional de categoria Contos., e o gaúcho
Literatura se consolida Lourenço Cazarré, nacategoria
como um dos concursos Infantojuvenil, com Os filhso do
DIVULGAÇÃO DIVULGAÇÃO
PRATELEIRA
HISTÓRIA DO FUTURO: DOS
PROFETAS À PROSPECTIVA
Com base em documentos, Minois analisa
adivinhações de povos anteriores à Bíblia,
profetas, oráculos, sibilas, visões e utopias,
ficção científica, esoterismo e parapsicologia.
O autor busca contribuir para a história das
civilizações ao examinar os desdobramentos
das previsões sobre a religião, astronomia e
política, e como essa prática pode revelar a
mentalidade e a cultura de cada sociedade.
RAÍZES DA INTOLERÂNCIA
O tema da intolerância e como ela tem
Belos tiros de Ledusha Vício, lembrança perene resultado em práticas abusivas em todo o
mundo é o cerne desta obra que analisa as
razões do crescimento da violência. O autor
Feito entre 1974 e 1981, se revela no quando o eu Os livros de poesia (2012), tanto pelo teor procura entender as origens do processo de
Risco no disco, de Ledusha poético revê uma foto da também são mapas. homoerótico (o que o intolerância que se alastra entre povos, etnias,
Spinardi, foi lançado em França de 1968. Há um É uma das ideias que torna político, também) religiões, governos e até pessoas comuns que
1981 e agora ganha sua 2ª cronópio em meio ao ficam após a leitura quanto pela encenação se envolvem em brigas entre vizinhas ou no
edição pela Luna Parque. protesto, a poesia naquela de nova edição de da intimidade. O trânsito, indagando como foram construídas
A obra mistura referências foto (por nostalgia ou beleza Cigarros na cama (Luna individual alcança tais diferenças que, por vezes, são mortais.
dos clássicos a ícones pop. do protesto). Mesmo a quem Parque), de Ricardo dimensão coletiva por
Pode ser vista como um discorda dessa interpretação Domeneck. Além falar de temas comuns.
vento nostálgico de três ou cujas preocupações dos poemas lançados Assim, Cigarros na cama é
décadas atrás, que mostra passam longe de discussões em 2011, a obra vem um mapa que nos leva às
as idas e vindas de uma políticas, Risco no disco vale com mais duas partes dores de um outro que,
geração imersa numa rotina a leitura por abrigar tiros inéditas, compondo na verdade, somos nós
de classe média entre belos e certeiros. (I.G.) um livro que mostra mesmos (I.G.). Org.: João Ângelo Fantini
paixões, dilemas objetivos os caminhos de Editora: EdUFSCar
(leio ou arrumo emprego um homem cujo Páginas: 146
fixo?) e o tédio. É dele que relacionamento Preço: R$ 29,90
se tenta fugir, e essas fugas acabou. A dor é
podem estar nas mínimas transposta no cigarro: ENCLAUSURADO
coisas – aqui surge, de o vício, tomado do ex, Um feto, enclausurado na barriga da mãe,
forma revolucionária, o perdura com força e escuta os planos dela e de seu amante, tio do
famoso poema Prefiro toddy liga os poemas como bebê, para assassinar o marido. O enredo, que
ao tédio. Lembremos que a um fio de Ariadne. remete à tragédia de Hamlet, é conduzido com
obra foi escrita durante a Por vezes, vemos humor, dentro da linha de narrativa fantástica.
ditadura e é nele, o tédio, uma diva ferida O texto enxuto e divertido de McEwan, e seu
que podemos buscar uma pelo abandono do grande domínio da narrativa, mostram por que
referência política naqueles companheiro; noutras, ele é considerado um dos maiores escritores da
poemas, ao olhar como um sujeito perdido atualidade. A tradução é de Jório Dauster.
um nicho daquela geração diante da ausência
não se envolveu com a POESIA do outro – que é uma POESIA
militância direta, mas que presença às avessas,
revela certo “desprezo” Risco no disco quase insuportável. Cigarros na cama
pelo contexto político - que Autora - Ledusha Como um todo, o livro Autor - Ricardo Domeneck
pode ser visto como forma Editora - Luna Parque dialoga com outra obra Editora - Luna Parque
de protesto. Uma conexão Páginas - 64 de Domeneck, Ciclo Páginas - 72 Autor: Ian McEwan
direta com esse contexto Preço - R$ 20 do amante substituível Preço - R$ 20,00 Editora: Companhia das Letras
Páginas: 200
Preço: R$ 39,90
O ANO DA LEBRE
Insatisfeito com a vida que leva, um jornalista
finlandês passa por uma experiência
PRÊMIO CEPE 2 PRÊMIO CEPE 3 PRÊMIO CEPE 4 transformadora ao salvar uma pequena lebre
que atropelara. O acontecimento o leva a largar
Julgamento contou Comissões deram Pernambucano tem emprego e família, vender todos os seus bens
com duas comissões parecer sobre cada obra vários prêmios nacionais e partir em uma jornada pelas florestas do seu
país, em companhia do animal. O romance de
O resultado foi definido pela A categoria que contou com Walther Moreira Santos, aventura envolve jogos de guerra, sacrifícios
comissão de pré-seleção, maior número de inscrições ilustrador, poeta e escritor, pagãos, encontro com um urso assassino, além
composta pelo professor de Letras foi a de poesia, com 225 de Vitória de Santo Antão, da luta em defesa da natureza.
da UFPE, Ricardo Postal; o escritor, participantes, seguindo- acumula prêmios nacionais,
professor e tradutor Wellington de se os livros infantojuvenis como o Xérox do Brasil (2001),
Melo; o escritor, poeta, contista (209), romances (150) e com a novela Ao longo da curva do
e tradutor Everardo Norões; e contos (127). Os vencedores rio; Casa de Cultura Mário Quintana
o jornalista e escritor Homero foram elogiados pela (2003), com o romance Um certo
Fonseca; e pela comissão de qualidade literária das obras, rumor de asas; Cidade de Curitiba
premiação, formada pela escritora destacando-se o ritmo da (2009), com o romance O Autor: Arto Paasilinna
Carola Saavedra, a escritora e narrativa, a originalidade, ciclista; o Sesc de Poesia Carlos Editora: Record
jornalista Márcia Denser e o relevância dos temas, domínio Drummond de Andrade (2014), Páginas: 208
escritor Antônio Carlos Viana. da técnica, entre outros itens. com O que em nós se eterniza. Preço: R$ 39,90
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PERNAMBUCO, DEZEMBRO 2016
José
CASTELLO ARTE SOBRE FOTO DE DIVULGAÇÃO
A escrita da noite
Em uma mesma noite de novembro, estranha alivia. Diante da xícara de chá, em plena noite, o quarto sonho. Visito minha ex-psicanalista
noite, eu tive quatro sonhos, ou pelo menos concluo que a ignorância que experimentei no curitibana. Vera, ela se chama. Ela diz que
me recordo de quatro sonhos que tive. Qua- sonho não era, na verdade, um obstáculo, mas tem um presente para me dar. Traz uma caixa
tro sonhos que são a reescrita obsessiva de uma condição para uma invenção. Restava ter enorme, que abro cheio de esperança. A caixa
um mesmo tema – a ignorância. No primeiro a coragem de inventar. contém dezenas de pequenas peças de ma-
deles, sou chamado para substituir um autor Volto a me deitar. O segundo sonho é um deira, todas absolutamente iguais. Pergunto
de telenovelas que se adoentou. Tudo o que sonho que se repete, insistente, há muitos para que servem. Vera me diz: “Essas peças
tenho a fazer é escrever o último capítulo do anos. Sou ator. Preparo-me para entrar em são as idéias que trabalhamos durante os anos
programa. No penúltimo, houve um assassinato cena. Só depois que termino minha maquia- de análise. Agora, cabe a você montá-las”.
e o esperado agora é que, no fecho da história, gem, me dou conta: desconheço a peça que Não tenho a menor ideia de por onde devo
revele-se a identidade do assassino. vou encenar. Alguém me sopra o título – que começar. A ignorância me devasta mais uma
Meu problema é que isso é tudo o que sei. esqueci. É uma peça que desconheço. Toca, vez. Peço socorro a minha analista. Ela me
Não assistia à novela. Desconheço seu enredo. então, o terceiro sinal. As cortinas se abrem. adverte: “É assim mesmo, na ignorância, que
Ignoro quem são os personagens e também Estou em cena, entre outros atores, e devo você deve trabalhar”. Sei que a frase foi essa
como se deu o crime que agora preciso so- começar a recitar um texto que não sei qual é. porque, assim que voltei a acordar, eu a escrevi
lucionar. A hora da novela se aproxima – ela Ainda não é minha vez de falar, mas ela logo em um bloco de anotações que fica sempre em
não é gravada, mas encenada ao vivo. Tenho chegará. Sinto-me mal. Não suporto o peso da minha cabeceira. Aflito, me levanto. Ainda
poucas horas para entregar meu original, ainda ignorância. Desmaio – e acordo. não são cinco horas da manhã, mas desisto
há tempo para que os atores o estudem e de- Dessa vez, não vou para a cozinha, mas ve- de dormir. Volto à cozinha e agora preparo um
corem. Entro em pânico. Ninguém se oferece nho para meu escritório. Ligo o computador, café preto. Preciso despertar – preciso me livrar
para me ajudar. Busco, enfim, o socorro de acesso ao acaso alguns sites de política. Tento desses sonhos. Para, quem sabe, descobrir o
um grande amigo jornalista, mas ele é duro me distrair com as notícias e comentários que que fazer com eles.
comigo: “Isso é coisa que você deve resolver tratam de nosso sombrio mundo objetivo. Mas, Então, diante de duas fatias de torradas,
sozinho”. Em desespero, acordo. na verdade, o sonho, os dois sonhos me pres- uma ideia me volta. Uma ideia que sempre
Vou até a cozinha, esquento uma xícara de sionam. Não consigo ler. Leio, mas não entendo tenho. Talvez meio óbvia e um tanto antiga
chá. Passo a refletir sobre o peso da ignorân- o que leio. Aquilo me assusta também. Mesmo – mas, ao menos para mim, cada vez mais
cia – mas também sobre seu importante pa- acordado, ainda estou dentro de meu pesadelo. verdadeira. Os sonhos são mensagens que
pel criativo. Se nada sei, posso tudo, tento me Sem opção, volto para a cama. envio para mim mesmo. Quem os escreve,
consolar. Dias antes, li um breve texto escrito Vem, então, o terceiro sonho. Estou sentado senão eu mesmo? No entanto (ignorância),
por meu irmão Marcos a respeito da memória. em um bar, diante de um caderno de notas. eu os escrevo no escuro. Escrevo em pleno
Ou mais exatamente: a respeito da ausência Tomo notas para um romance. Ele já está bem- sono profundo, naqueles momentos em que,
da memória. Meu irmão não é médico, mas desenvolvido, tenho muitas páginas escritas. aparentemente, estou muito distante de mim.
engenheiro. Embora seja cinco anos mais novo Contudo, me esqueci completamente de tudo Talvez em nenhum outro momento, contudo,
que eu, sofre do mesmo mal que me atormenta: o que escrevi. Devo prosseguir, mas não sei eu esteja tão próximo de mim. Afinal, essa
o pavor da falta de memória. Nossa mãe fale- como prosseguir. E algo me impede de reler o escrita da noite me pertence.
ceu com Parkinson. Em seus últimos tempos, que já está escrito. Tento reler, mas – repetindo O mundo de hoje parece devastado pe-
não sabia ao certo nem mesmo quem era. Um o que me aconteceu durante a vigília diante dos las certezas férreas. Pelas convicções. Pelas
fantasma ancestral nos ronda. sites da internet –, simplesmente, não entendo presunções de verdade. Por mandamentos
Contudo, segundo meu irmão – desconheço o que leio. Uma tristeza absurda toma conta teológicos. Por “fatos” – na verdade, ficções
os caminhos que trilhou para chegar a essa de mim. Então, um amigo se aproxima. Peço muito mal-embaladas – que a imprensa re-
conclusão –, a falta de memória não é uma socorro. Ele se limita a dizer: “Se não lembra, pete obsessivamente, até que se tornem “ver-
desvantagem, mas uma vantagem. Pessoas que trate de inventar”. dadeiros”. Nesse cenário, que se agrava no
têm memória prodigiosa teriam, na verdade, Acordo com a frase a me latejar na cabe- Brasil, meus sonhos vêm me advertir: é mais
uma memória obstruída. É preciso esquecer, ça. Por algum motivo, o tema da ignorância conveniente duvidar. É mais razoável não ter
é preciso livrar-se da sobrecarga de informa- me pressiona. Também o tema da cegueira. tantas certezas. É mais sábio ignorar. Como
ções para que frestas se abram na mente e a Enfim: da impotência diante do real. Preciso no texto de meu irmão: só as frestas abertas
criatividade possa, enfim, emergir. Não ter voltar a dormir, preciso descansar. A ma- pela ignorância abrem a possibilidade de um
boa memória seria então uma condição para drugada avança. Deito-me mais uma vez. futuro. Só através dessas frestas, em que nada
uma mente criativa. A tese, evidentemente, me Acontece que, mal prego os olhos, me vem sabemos, conseguimos enfim respirar.