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(U0 HNN |LHOS DAGUA 2554703 Vi s6 lagrimas e a lagrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tan- tas lagrimas, que eu me perguntei se minha me tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E s6 entao compreendi. Minha mae trazia, serenamente em si, aguas correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mae era cor de OLHOS D’AGUA. Aguas de Mamae Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superficie. Sim, aguas de Mamae Oxum. ogbo MINISTEMO BA GUETURA ‘dt Igualdede Racial. union BIBLIOTECA NACIONAL, CONCEIGAO EVARISTO hhaseeu muma faveta da zona sul de Belo Hartonte. Teve que concitiar as esti dos com o trabaiho come empregada ‘em 1971, ica, até cancluir 0 curso Norm 0625 anos. Murdau-se entio para ¢ Riode Janeiro, onde passou num ‘concurso piiblice para.o magl esttidow Letras nia UFR, Na década de 1980, entrowem contato com o Grupo Quilonrisheje. Estreou na literatura em 1980, com obras publicadlas na série Cadernas Negros, publicada pela arganieagie E Mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, ¢ Doutora em Lites Comparada peta Universidade Fe Fluminense, Suas obras, em especial o romance Ponefa Viegncto, de 2003, abe temas como a discriminagao de género edectasse. A obra foi traduzida para o inglés e publicada nos Estados Unidos em 2007, Se OLHOS D’AGUA Conceicaio Evaristo Conceigao Evaristo DLHOS D’'AGUA cm, Copyright @2014 Gancelgdo Evarsio ae SE BRASIL Presi a pen residdocia da epbicn ra Rowan sepa de Pots Bem e ‘uate Bacal — SEPPMUPR into Ctra Mora Supity putas worvoma, Fans else rin rman ro navodawit ——suasiame rth ‘Dieter Executes Produgso wus Mim Lewin Area Bias tote Cabri cei detsinctsiongis ayo Santer Gonndomibnindetsiontt® capa dagen Manele So tna beat lec Ea Ona is Ao pe. ‘Grund irs Kool Mine ali, pare am Sent de i ve thrmagio ds le ons devel a pen S270. ‘or pe sass Ard dem gan Pens “ceo esrb Paes ene aaron spud pe ug co denen sone pea ena pea ie pa ide orm en CaPVRRASIL EATALOGACAD-RA-FONTE 1 eta mts Fata sec cna Tha FAQ) ehcicaicincemen temps peeeetoe PAULAS USSpisiamacimae Sumario freee} Introdupso, 13 Porter Were} feWrrtergrt|Monin tein) to i feria) G-cooper de Cida, 65 Pees Wrrerthe er eterno te as cal Pit oeaa eee etcst Osamores de Kimbé, 87 pate) PU amen) na fa Agente Pvpocr ee Vervgr ms caerecoesn oO prerkcto “Minha mde sempre costurou a vida com fios de ferro.” |As palavras acima, de uma personagern do conto “A Gente ‘combinames de no morter’, constituem contundente -epigrafe para um comentario sobre Othos d°dgua, esta nova colegio de contos de Conceigo Evaristo, Trata-se de fra- se-chave que enfeixa o turbilhiao de questaes sociais € exis- tenciais recorrentes na escrita da autora, a presidir sua cons- ‘rugdo ficcional e a reiterar sua unidade tematica, Como antes em sua obra ficcional, poética, ensaistica, ‘Conceigao ajusta o foco se seu interesse na populagao afto- -brasileira abordando, sem meias palavras, a pobreza e a violéneia urbana que a acometem; "Ulimamente na favela tiroteios aeanteciam com frequéncia ¢ # qualquer hora”, le mos em "Zaita esqueceu de guardat os brinquedos", Sem sentimentalismos facilitadores, mas sempre incar- porando a tessitura pottica a fixgao, 03 contes de Concti- eoyex! GAO EVARISHO do Evarlsto apresentam uma significativa galeria de mu: theres - Ana Davenga, a mendiga Duzu-Querenga, Natalina, Luamanda, Cida, a menina Zafta, Ou serio todas a mesma mulher, captada recriada no caleidoseéplo da literatura, em variados instantineos da vida? Diferem elas em idade € em conjunturas de experiéncias mas compartilham da mes- ma vida de ferro, equilibrando-se na “frdgil vara" que, lemos no conto“O Cooper de Cida", é a “corda bamba do tempo”. Na verdade, essa mulher de multas faces € emblemética de milhdes de brasileizas na sociedade de exclusOes que é a nossa, Frégil vara, corda bamba, flos de ferro, ferro de pas- sar, a danga das metéforas as enlaga e retronstrdi a vida de pessoas despossuidas a qual expressa, apesar de tudo, uma vitalidade propria que o texto de Conceigio insiste em cele- rar; “Era tudo to doce, tao gozo, tio dor!" sintetiza "Ana Davenga”. Os contos, assim, equilibram-se entre a afirma- cdo ea negacdo, entre a dentincia e a-celebragdo da vida, en- tre o nascimento e a morte: “Brevemente iria parir um filo. ‘Um filho que fora cancebido nos Frageis limites da vida e da morte." (*Quantos filhos Natalina teve2")- No livro esto presentes mies, multas mies. E também filhas, avés, amantes, homens ¢ mulheres ~ todos evoca- dos em seus vinculos ¢ dilemas soclais, sexuais, existencials, ‘numa plutalidade e vulnerabilidade que constituem a hue mana condigio, Sem qualsquer idealizacdes, sie aqui recrla- das com firmeza ¢ talento as dutas condigGes enfrentadas pela comunidade afro-brasileira. ‘A abrangéncia de tal problemdtica ultrapassa, decerto, ‘0 mundo gro, assim como transcende o dia de hoje. Os contos, sempre fincades no fugilio presente, abarcam 0 pas- sado e interrogam 0 futuro. Sintomaticamente, so muitos € diversos ¢s velhos e as ctlangas que os habitam. O pasado @ inevitavel mente implacvel, o futuro, em geral duvidoso, certas vezes inexoravelmente negado, & 0 caso, por exem- PReFAcio plo, do pivete Lumbia, ou do menino Lixo, nos contos que levam os seus nomes: “E [Lixo] fol se encolhendo, se en- roscando até ganhar a posicio de feto”. A forca simbdlica de tal regressio fisica e emocional é de uma sintese irrepardvel. Em.sew percurse, 0 livro, além de mundo de mulheres ede meninos, incorpora homens como protagonistas (Quimbé, Ardoca), cuja perspectiva, acastonalmente, passaa comandar anarragao. Ousodizerqueo fluxo narrativoatingeoseuclimax no ja citado “A gente cambinamos de néo morrer” em que, pela primeira vez, diversas: nareadores encaminham a ago. Fragmenta-se uma univocidade feminina, por mals dispersa -e miiltipla que esta {a fosse. A par disso, constata-se, mum ‘crescendo, um estihagar ficclonal que 0 texto assume ao reduplicar a precariedade de seus personagens, para quem "4s vezes a morte é Jeve como poeira, Ea vida se confunde ‘com um p6 branco qualquer". O conto implode a sua pré- ppria técnica narrativa, Em um verdadelro avesso de apoteo- se, 0 texto ficcional, paradigmatico da sociedade, também se pulveriza: “Aiguém cantou a pedra e o segrede foi rompi- do, A desgraga vaza dos poros da tetra. O mundo explode. Seres de mil mdos agarram tudo. Nada escapa.” Atencio, leitor. com voeé, é conosea, ¢ com todos, que aqui se Fala. Mas a positividade textual prevalece, apesar de tudo. Uma positividade em que escrever é, certamente, “uma maneira de sangrar’; mas também de invocar e evocar vidas costura- das “com fios de ferro” — porém aqui preservadas com a per sistente costura dos fios da ficcéo, em que também se almeja se combina, incansavelmente, no decerto a imortalidade, ‘masa tenaz vitérla humana, a cada geracéo, sobre a morte. Heloisa Toller Gomes Introdugdo ‘A mulher negra tem muitas formas de estar no mundo (to- dos tem), Mas um contexte desfavervel, um cenirio de dis- ceriminagdes, as estatisticas que demonstram pobreza, babxa escolaridade, subempregos, violagdes de direitos humanos, traduzem histérias de dot. Quem nao ve? Parcelas da sociedade estao-dizendo para woot que este 0 cenario. As leituras que se faz dele tra possibilidades em ex- ‘tremos: pode se ver tantoa mulher destituida, vivendo olimt- te do ser-quenfo-pade-ser, inferiorizada, apequenada, violen- tada. Pode-se ver também aquela que nada, buscando formas de surfar na correnteza. A que inventa jeitos de sobrevivencia, para si, para a familia, para a comunidade. Pode-se ver a que é derrotada, expurgada. Mas, se prestar um pouco maisatencéo, val ver outra, Val ver Caliban (0 escravo de Sheakespeare em A Tempestade) atualizado, vivo, pujante. Aquele que aprendea lingua do senhor e constréi a tiberdade de maldizer! EONCEIGAD EUARISTO ‘Ao subverter a lingua de Prospero — 0 homem branco —, Caliban — a mulher negra — abre caminho para a liber~ dade. Radicaliza © jogo. Expde as regras do jogo que joga: conta © segredia, Descortina o mistério. ‘Aqui, instala-se a cultura de arkié atualizada, como €x- pressou Muniz Sodré. Atesta-se a presenca ¢ o poder de uma tradigao viva. ‘Neste livro encontrei outra vez Calibas ocupado em mut- tas subversées. Era lyaledé, a que fala pelas mutheres que no podem falar, contando, dizendo, amaldigoando. Era ‘Oxum, as portas da casa de Oxala, amaldig¢oando a pobreza a injustiga que recaia sobre as mulheres. E crescende em forga e poder, transformando-se na dona de toda a riqueza. £ assim que as mulheres, nds mulheres negras, buseasttos formas de ser no mundo. De contar o munde come forma de apropriarmo-nos dele. De nomeé-lo, De nomimo, 0 axé, a palavra que movimenta a existéncia. # assim que Conceigo Evaristo inventa este mundo que existe. De Ana Davenga, Marla, Duzt-Querenga, Natalina, Salinda, Luamanda, Cida, Zaita, Malta. E desses meninos/ homens perdidos, herdeiros de mies sem nome, heransa que as mulheres deixaram e que minguém quis receber. Sao ‘histérias duras de demrota, de morte, machucados. Sao his- +érias que insistem em dizer 0 que tantos no querem dizer. 0 mundo que € dito existe, Suas regras, explicitas. © lugar de mero ouvinte & desautorizado. Nesta literatu- ra/cultura, a palavea que é dita reivindica © corpo presen- te.O que quer dizer aco. ‘ConceicHo, lyalode, canta sua cantiga. Conta, Propaga oaxé. Aqui, onvida-nos a cantar com ela. Fazer existir outro:mundo. Eu agradeco Jeena Werneck Olhos d’agua ‘Uma noite, ha anos, acordei bruscamente ¢ uma estra- mha pergunta explodiu de minha boca. De que cor eram os olhos de minha mie? Atordoada, custei reconhecer squarto-da nova casa em eu que estava morando ¢ nao con- segula me lembrar de como havia chegado até ali. E a insis- tente pergunta martelando, martelanda. De que cor eram 5 alhos de minha mae? Aquela indagasao havia surgide hha dias, ha meses, posso dizer, Entre um afazer ¢ outro, cu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha mie, E 0 que a principio tinha sida um mero pensamento interogativo, naquela noite se transformou em uma do- lorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Entiio eu no sabia de que cor eram 0s olhos de minha mie? CONCEIGAO EVARISTO Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas proprias dificuldades, crescl répido, pas: sando por uma breve adolesctncla, Sempre ao lado de mi- nha mde, aprendi a conhect-la. Decifrava o seu silencio nas horas de dificuldades, como também sabia reconhecer, em scus gestos, preniincios de possivels alegrias. Naquole mo- mento, entretante, me descobria chefa de culpa, por no recordar de que cor serlam os seus olhos. Eu achava tudo ‘muito estranho, pois me lembrava nitidamente de varios ‘detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo smin- dinhe do pé esquerdo... da verruga que se perdia no miele uma cabeleira crespa e bela... Umt dia, brincando de pentear bhoneca, alegria que a mae nos dava quando, deixando por uns momentos o lava-lava, @ passa-passa das roupagens alheias e se tomava uma grande boneca negea para as filhas, descobrlmos uma bolinha escondida bem no couro cabelu- do dela. Pensamos que fosse carrapato, A mie cochilava € uma de minhas irmas, aflita, querendo livrar a boneca-mae daquele padecer, puxou rapido o bichinho. A mae e nds ti- ‘mos ¢ rimios ¢ rimos de nosso engano. A mae riu tanto, das lagritias escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela? Fu me Jembrava também de algumas histérias da infén- de minha mie. Ela havis nascido em um lugar perdido no interior de Minas. All, as criangas andavam nuas até bem grandinhas. As meninas, assim que 0s seios comegavarit & brotar, ganhavam roupas antes dos meninos. As veees, a8 historias da Infancia de minha mie confundiam-se com as de minha propria infincia. Lembro-me de que muitas ve- zes, quando a mae cozinhava, da panela subia cheiro sl- gum. Fra como se cozinhasse, ali, apenas 0 nasso desespe- rado desejo de alimento. As labaredas, sob a agua solitaria ‘que fervia na panela chela de fame, pareciam debachar do vazio do nosso estomago, Ignorando nossas bocas infantis ‘em que as linguas brincavam a salivar sonho de comida, E tee ‘era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento {que ela mais brincava com as filhas. Nessas ocasides a brin- cadeira preferida era aquela em que a mae era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu frono, um pequeno ban- quinho de madelra. Felizes, colhfamos flores cultivadas em um pequeno pedago de terra que circundava 0 nosso barsa- co. As flores eram depois solenemente distribvuiclas por seus cabelas, beagos € colo, E diante dela faziamos reverénetas 2 Senhora. Postivamos deitadas no chia e batfamos cabega para a Rainha. Nos, princesas, em volta dela, cantévamos, dangivamos, sorriamos. A mie s6 ria de urna maneira triste © com um sortiso molhado... Mas de que cor eram 05 olhos de minha mae? Eu sabia, desde aquela época, que a-m Inventava esse e outros jogs para distrair a nossa fome. Ea nossa fome se distrafa. As veres, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do temps, ela se sentava na solelra da porta ¢, jun- tas, ficdvamos contemplando as artes das nuvens no céu Umas viravam carneitinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes adormeeidas, e havia aquelas que eram sa muvens, algodo doce. A mae, entio, espichava 0 brago, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhes e enfiava répido na boea de cada uma de nds. Tudo tinha de ser mui- to rapido, antes quea nuvem derretesse ¢ com ela 0s nassos somhos se esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mae? Lembro-me ainda do temor de minha mie nos dias de fortes chuvas. Em cima da cama, agatrada a nds, ela nos protegia com seu abrago. E com os olhos alagados de pran- tos balbuciava rezas a Santa Barbara, temendo que 0 nosso {fragil barraco desabasse sobre nds. E eu no sei se o lamen- to-pranto de minha mae, se © barulho da chuva... Sel que tudo me causava a sensagao de que a nossa casa balangava ao vento, Nesses momentos os olhos de minha mae se con cOnergAO EVARIETO fundiam com os olhos da natureza, Chevia, choraval Cho- rava, chovial Entdo, por qué eu ndo conseguia lembrar a cor sos olhos dela? E naquela noite a pergunta continuava me atormentan- do, Havia anos que eu estava fora de minha cidade natal. Saira de minha casa em busca de melhor condigdo de vida para mim e para minha familia: ela e minhas irmés tinham ficado para tras. Mas eu nunca esquecera a minha mae. Re- conhecia a importéncia dela na minha vida, nao s6 dela, mas de minhas tias ¢ de todas as mulheres de minha fa- milia, E também, ja naquela época, eu entoava cantos de Iouvor a todas nossas ancestrais, que desde 2 Africa vinham arando-a terra da vida com as suas préprias maos, palavras ¢ sangue. Nao, eu no esquego essas Senhoras, nossas Yabis, donas de tantas sabedorias. Mas de que cor eram os olhos de minha mie? £ foi entao que, tomada pelo desespero por nfo me le brar de que cor seriam os ofhos de minha mie, naquele mo- mento resolvi deixar tudo ¢, no dia seguinte, voltar a cidade em que nascl. Eu precisava buscar 0 roste de minha mae, fixar o meu olhar no dela, para nunca mais esquecer a cor ide seus olhos. Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita, Vivia a sensagio de estar cumprindo um ritual, em que a oferenda aos Orixas deveria sex descoberta da cor dos olhos de minha mae, E quando, apés longos dias de viagem para chegar 4 mi nha terra, pude contemplar extasiada os alhos de minha mie, sabem 0 que vi? Sabem @ que vi? Vis6 ligtimas ¢ ligrimas. Entretanto, ela sorria feliz, Mas cram tantas lagrimas, que eu me perguntei se minha mae tinha olhos ou los catrdalosos sobre a face. E:s6 entao com preendi. Minha mae trazia, serenamente em si, guas cor- rentezas. Por isso, prantos< prantos a enfeitar 0 seu rosto, A cor dos olhos de minha mae era cor de olhos d’agua. Aguas. ibe ‘ounos o'Kaua dle Mamie Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para quem contempla a vida apenas pela superficie, Sim, Aguas de Mamae Oxum. Abracei a mie, encostel meu rosto no dela © pedi prote- ‘slo, Senti as légrimas delas se misturarem as minhas. Hoje, quando jé alcancel a cor dos olhos de minha mae, tento descobrir a cor dos othos de minha filha. Fago a brin- cadeira em que 0s olhos de uma se tomam o espelho para ‘os olhos da outra. E um dia desses me surpreend! com um, gesto de minha menina. Quando nés duas estévamos nesse tloce jogo, ela tecou suavemente no meu rosta, me contem- plando intensamente, E, enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas téo baixinho, como se fosse uma pergunta para ela mesma, au como estivesse buscando e encontrando a revelagae de um mistério ou de um grande sepredo. Eu eseutei quando, sussurrando, minha filha falou: — Mie, qual ¢ a cor tio timida de seus olhos? Ana Davenga ‘As batidas na porta ecoaram como um prentincio de samba. © coragao de Ana Davenga naquela quase meia-noite, tao aMlito, apaziguou um pouco. Tudo era paz entao, uma relat- ‘ya paz, Deu um salto da cama ¢ abriu a porta. Todos entra- fam, menos 0 seu. Os homens cercaram Ana Davenga. As mulheres, ouvindo 0 movimento vindo do barraco de Ana, foram também. De zepente, naquele mindsculo espago cou- be o mundo, Ana Davenga reconhecera a batida. Ela mio havia confundide a senha. © toque prendincio de samba ou le macumba estava a dizer que tudo estava bem. Tudo em paz, na medida do possivel. Um toque diferente, de batidas pressadas dizia de algo mau, ruim, danoso no ar. © toque que ela owvira antes nao prenunciava desgraga alguma. Se CONcEgKO evans era assim, onde andava o seu, j4 que os das outras estavam all? Por onde andava o seu homem? Por que Davenga nao cestava all? ‘Davenga ndo estava all. Os homens rodearam Ana com suldado, € as mulheres também. Era preciso cuidado. Da- venga era bom. Tinha um coragdo de Deus, mas, invacado, era 0 proprio diabo. Todos haviam aprendido a olhar Ana Davenga. Othavam a mulher buscando nao pereeber a vida © as delicias que expladiam por tado a seu corpo. ‘© barraco de Davenga era uma espécie de quartel-gene- ral, e cle cra o chefe. Ali se decidia tudo. No principio, os companhelros de Davenga olharam Ana com cidime, cobiga € descanfianca. 0 homem morava sovinho. Ali armava e confabulava com os outros todas as proczas, E de repente, ‘Sem consultar oS companheiros, mete ali dentro uma mu- ther. Pensaram em escolher outro cheft ¢ outre lecal para ‘quartel-general, mas no tiveram coragem. Depois de certo tempo, Davenga comunicou a todos que aquela mulher fi- carla com ele e nada mudaria. Ela era cega, surda © muda mo que se referia a assuntos deles. Ele, entretanto, queria dizer mais umta coisa: qualquer um que bulisse com ela ha- veria de moner sangrando. nas maos dele feito porco capa- do, Os amigos entenderam. E quando © desejo aflorava ao vishimbrar os peitos-macas salientes da mulher, algo como uma dor profunda doia nas partes de baixo deles. O desejo abalxava entio, esvanecenda, diluindo a possibilidade de execdo do prazer. E Ana passou a ser quase uma inma que povoava 0s sonhos incestuosos dos homens comparsas dos delitos ¢ dos crimes de Davenga. © peito de Ana Davenga doia de temor, Todos estavam ali, menos o dela. Os homens rodeavam Ana. E as mulhe- es, como se estivessem formando pares para uma danga, rodeavam seus companheiros, parando atris de seu homem certo. Ana olhou todos ¢ nao percebeu tristeza alguma, © ze AMA DAVEE, quie seria aquilo? Estariam guardando uma dor profunda e apenas mascarando 0 sofrimento para que ela niio sofresse? Seria alguma brincadetra de Davenga? Ele estarla escondido por ali? Nao! Davenga nao era homem de tais modost Ele até brincava, porém, s6 com os. companhelros. Assim mes- mo deuma brincadeira bruta, Socos, pontapés, safandes, ta- pas, “seus filhos da puta’... Mais parecia briga. Onde estava Davenga? Feria se metido em alguma confusao? Sim, seu ho- mem 36 tinha tamanho, No mais era crianga em tudo. Fazia ‘coisas que ela nem gostava de pensar. As vezes, ficava dias € las, meses até, foragido, e quando ela menos esperava dava ‘com ele dentro de casa. Pois é, Davenga parecia ter mesmo ‘© poder de se tornar invisivel. Um pouco que ela saia para buscar roupas no varal ou falar uri tantinho com as amigas, quando voltava dava com ele, deitado na cama. Nuzinho. Bonito o Davenga vestido com a pele que Deus lhe deu, Uma pele negra, esticada, lisinha, brilhasa. Ela mal fechava a por- ta ese abria todinha para o seu homem. Davenga! Davengal Lai acontecia o qué ela nfo entendia, Davenga que era tio ‘grande, #80 forte, mas tio menino, tinha prazer banhado ‘em lagrimas, Chorava feito crlanga. Solugava, umedecia ela toda, Seu reste, seu conpo ficavam timidos das Lagrimas de Davenga. f todas as vezes que ela via aquele homem no go- {20-pranto, sentia uma dor intensa. Fra como se Davenga ex tivesse sofrendo mesmo, ¢ fosse ela a culpada. Depols entéo, -0s dois ainda de corpos nus, ficavam ali. Ela enxugando as ligrimas dele. Era tudo tio doce, tao gozo, to dor! Um dia pensou em se negar para nao ver Davenga chorando tanto. Mas ele pedia, cagava, buscava. Nao restava nada a fazer, a hijo ser enxugar © go20-pranto de seu hemem ‘Todos continuavam parados olhando Ana Davenga, Ela recordou que uns tempos atras nenhum deles era amigo. Eram inimigos, quase. Eles detestavam Ana. Ela nao os ama- va nem os odiava, Ela nao sabia onde eles estavam na concEIGAD vais de Davenga. & quando percebeu, viu que nfo poderia ter por eles indiferenga, Teria de amé-los au odié-los. Optou por ama-las, entao, Foi dificil, Eles nao a queriam. Nao era do agrado de nenhum deles aquela mulher dentro do quar- tel-general do chefe, sabendo de todos os segredos, Acha- ‘vam que Davenga iria se dar mal e comprometer toda.o gru- po. Mas Davenga estava mesmo apaixonado pela mulher. ‘Quando Davenga conheceu Ana em uma roda de samba, cla estava ali, faceira, dancando macio. Davenga gostou dos. movimentos do corpo da mulher, Ela fazia um movimento bonite € ligeiro de bunda, Estava tio distraida na danca que nem percebeu Davenga olhando Insistentemente para cla. Naqueles dias, ele andava com temor no peito. Era preciso cuidado. Os homens estavam atris dele Tinha havido um assalte a um banco e 0 eaixa deserevera alguém parecido com ele. A policia {4 tinha subido 0 morro ¢ entrado em seu barraco varias vezes. O pior é que ele nao estava metico naquela merda, Seria burro de assaltar um banco all mesmo no balrro, tao perto dele? Fazia os seus servigos mais longe, € além do mais nao gostava de assaltos a bancos. Ja até par- ra de alguns, mas achava o servicinho sem graca. Nao dava tempo de ver as feigées das vitimas. © que ele gostava mesmo era de ver 0 medo, otemor, o pavor nas fei¢des e mo- dos das pessoas. Quanto mais forte 0 sujeito, melhor. Ado- rava ver 05 chefdes, os mandachuvas se cagando de medo, feito aquele deputado que ele assaltou um dia, Foi a maior comédia, Ficou na ronda perto da casa do homem. Quando ‘ele chegou e saltou do carta, Davenga se aproximou, —Pols é, doutor, a vida ndo té fcil! Ainda bem que tem homem li em cima come-o senhor defendendo a gente, 05 pobres. — Era mentira, — Doutor, eu votel no senhor. — Era mentiva também. — Endo me atrependi. Veio visitar a familia? Eu também tou indo ver a minha € quets levar uns presentinhos. Quero chegar bem-vestido, camo o-senhor. 246 ‘© bomem nao deu trabalho algum, Pressentiu a arma que Davenga nem tinha sacado ainda. E quando isto acon- teceu, 0 préprio deputado jé tinha adiantado @ servico en- tregando tudo, Davenga olhou a rua, Tudo ermo, tudo escu- fo, Madrugada e fio, Mandou que o homem abrisse 0 carro ‘© pedit as ehaves, O deputado tremia, as chaves tilintavam em suas mos. Davenga mardeu o labio, contendo o riso. Olhou o politica bem no fundo das olhos, mandou entao que ele tirasse a roupae foi recolhendo tudo. — Nao, doutor, a cueca mio! Sua cueca néo! Sei li seo senhor tem alguma doenga ou se ti com o cu sujo! ‘Quando arrecadou tudo, empurtou o homem para den- tro do carro, Olhou para ele € balancou as chaves. Deu um adeusao deputado, que correspondeu ao gesto. Davenga ti- inha.o peito explodindo em gargalhadas, mas conteve 0 riso. Apertou © passo, tinha de abreviar Eram trés e quinze da madnegada, Dai a pouco passaria por ali uma patrulhinha. Dias atrds ele hnavia estuclado o ambiente, oi por aqueles dias do assalto ao deputado que Davenga conheceu Ana. A venda do relégio the havia rendido algum dinheiro, fora o que estava na cartelra, E de cabega leve re- solveu ir com os amigos para © samba. Sabla, porém, que devia ficaratento. Estava atento, sim. Estava atento 20s mo- vimentos e a danga da mulher. Ela Ihe lembrava uma baila- tina nua, tal qual a que ele vira um dia no filme da televisda. Abailarina dangava livre, solta, na festa de uma aldeia afri- cana, Sé quando a bateria parou foi que Ana também parou © se eneaminhou com as outras para o banhelro, Davenga ‘ssistia a tudo. Na volta ela passou por ele, olhou-o deu- Ihe um largo sorriso. Ele criow coragem, Era preciso coragem, pita chegar a unia mulher. Mais coragem até do que para fazer um servigo, Aproximou-s¢ ¢ convidou-a para uma cer- Veja. Ela agradeceu. Estava com sede, queria Agua ¢ deu-Ihe lum sorriso mais profundo ainda. Davenga se emocionou. 225. CONCEIRAD EVARISTO Lembrou da mie, das irmas, das tias, das primas e até da avé, a velha Isolina, Daquelas mulheres todas que ele no. vvia hé muitos ans, desde que comecara a varar 0 mundo, Setia tio bom se aquela mulher quisesse ficar com ele, mo- rarcomele, serdele na vida dele. Mas como? Ele queria uma mulher, uma s6, Estava cansade de nio ter pouso certo. Ea muther que the lemibrava a bailarina nua havia mexido com ele, com alguma coisa ld dentro dele. Ela the trouxera sauda- de de um tempo paz, um tempo crianga, um tempo Minas, Ia tentar, ia tentar... Ana, a bailarina de suas lembrangas, be- beu agua enquanto Davenga enamorado tomava a cerve sem sentir 0 gosto do liquido. Quando terminou, pegou na mio da mulher e saiu, Os amigos de Davengs viram quando ele, descuidado de qualquer perigo, atravessou o terreiro da roda de samba e caminhou feito namorado puxando amu Iher pela mao, ganhando 6 espago ld fora, quase esquecida do perigo. ‘Desde aquele dia Ana ficou para sempre no barraco e na vida de Davenga. No perguntou de que 0 homem vivia, Ele trazia sempre dinheiro e coisas. Nas tempos em que fi- cava fora de casa, eram os companheitos dele que, através das mulheres, Ihe traziam o sustento, Ela nia estranhava nada. Muitas vezes, Davenga mandava que ela fosse entr gar dinheiro ou coisas para as mulheres dos amigos dele, Elas recebiam as encomendas ¢ mandavam perguntar quan- do e se seus homens voltariam. Davenga as vezes falava do regresso, as vezes, no, Ana sabia bem qual era a atividade de seu homem. Sabia dos riscos que cortia ao lado dele. Mas achava também que qualquer vida era um risco e 0 risco maior era o de nfo tentar viver. E naquela noite primeira, no barraco de Davenga, depois de tudo, quando calmas cle jd de olhtos enxutos, — ele havia chorade copiasamente no gozo-pranto— puderam conversar, Ana resolyeu adotar onome dele, Resolveu entao que a partir daquele momento ae we ‘Ana Davengs. Ela queria 8 marca do homem dela no seu corpo e no seu nome. Davenga gostara de Ana desde o primeiro momento até © sempre. Dera sew nome para Ana e se dera também. Fora com ela que descobrira e comegara a pensar no porqué de sua vida. Fora com ela que comecara a pensar nas outras muillieses que tivera antes, E uma the trazia um gosto de re- miso, Ele havia mandado matar Maria Agonia. Conhecera a mulher ao visitar um companheiro na ca- dela, O amigo armara umae n3o se dera bem. A prisio devia ser horrivel, $6 em pensar tinha medo e desespero. Se um dia cafsse preso e nao conseguisse fugir, se mataria. E foi ‘essa dnica visita a0 amigo que conheceu Maria Agonia. Fla vivia dizendo da agonia de uma vida sem 0 olhardoSenhor. Naquele dia, quando sairam da cadela, ela velo conversan- do com Davenga. Era bonita, usava uma roupa abaixo do joetho, © eabelo amarrado para trés. Uma vor cama acom- panhada de gestos tranquilos, Davenga estava gostando de ‘ouvir as palavras de Maria Agonia, Marcaram um encontro para’ domingo seguinte na praga. Quando ele chegou, o pastor falava, € Maria Agonia estava com a Biblia aberta na Indo, Davenga observava os modos contritos da mulher. Ela, ‘40 levantar os olhos e perceber o olhar dele, pledosamente abalxou a cabeca.e voliou ao Livro. Ele salu e se encaminhou para © botequim em frente: Ao acabar a pregacio, ela saiu do meio dos outros, passou por ele e fez um sinal. Ele foi tras. Assim que todos se dispersaram, ela falou do desejo de starcom ele, Queria ir para algum: iugar, sozinhos. Foram se amaram muito. Ele chorou como sempre. Esses encon- tos aconteceram muitas e multas vezes. Primeiro a praca, 4 pregagdo, a crenga. Depols tudo no siléncio, na moita, tudo escondidinho. Um dia ele se encheu. Fropds que ela subisse o morro e ficasse com ele. Corresse com ele todos os pperigos. Deixasse a Biblia, detxasse tudo. Maria Agonia rea. cONCENGAO EvARISTO: giu. Vé 6 se ela, crente, fitha de pastor, instruida, iria deixar tudoe morarcom um marginal, com um bandido? Davenga se revoltou. Abt Entio era isso? S6 prazer? 56 0 gastas0? S6- aquilo na cama? Saiu dali era novamente a Biblia? Mandou que a mulher se vestisse. Hla ainda se negou. Estava que- rendo mais, Estava precisando do prazer que ele, s6 ele, era capaz de dat. Sairam juntos do motel, a certa altura, como: sempre, ele desceu do carro ¢ caminhou sozinho. Nao havia de ser nada. Tinha alguém que farla o servico para ele. Dias depois, a seguinte manchete aparecia nos jomnais; “Filha de pastor apareceu nua e toda perfurada de balas, Tinha ao lado do corpo uma Biblia, A maga cultivava o habito de visitar os presidios para levar a palavra de Deus". Por mais que Ana Davenga se esforcasse, nao consegutia atinar com o porgue da auséneia de seu homem. Todos es- tavam ali. Isso significava que, onde quer que Davenga es- tiveste naquele momento, ele estava 36. E no era comum ‘em tempos de guerra como aqueles, eles andarem sozinhos. Davenga devia estar em perigo, em maus lengdis, As histé= Flas e as feitas de Davenga vieram quentes ¢ vivos em sua mente. Dentre eles, um em que havia uma semelhante sua, morta. Nem no dia em que Davenga, de cabeca baixa, Ihe contara 0 crime, ela tivera medo do homem, Buscou as fe- des de suas semelhantes, ali presentes. Encontrow calma. Seria porque os homens delas estavam all? Nao, nao era. A auséneia de um deles significava sempre perigo para todas. Por que estavam tio calmas, tao alleias assim? Novas batidas ecoaram na porta ¢ jf etam prendncias de samba, Fra samba mesmo, Ana Davenga quis romper o cir- culo em volta dela ¢ se encaminhar para abrir a porta. Os homens fecharam a roda mais ainda ¢ as mulheres em volta deles comegaram a balangar @ corpo. Cadé Davenga, cade Davenga, meu Deus? O que seria aquilo? Era uma festa! Dis- tinguiu vozes pequenas e havia as crianeas. Ana Davenga 230 AN DAWENGA Allsou a barriga. La dentro estava.a sua, bem pequena, bem sonho ainda. As criancas, havia umas que de longe ou as Ye- yesde perto, acompanhavam as faganhas dos pais, Algumas heguiriam pelas mesmas trilhas. Qutras, quem sabe, traga- am caminhos diferentes. E 6 filho dela com Davenga, que faminho farla? Ab, isto pertence ao-futuro. S6 que o future All chegava ripido. © tempo de crescer era breve. O de ma- tar ou marrer chegava breve, também. E o filho dela e de Davenga? Cadé Davenga, meu Deus? Davenga entra furando 0 circulo, Alegre, zambeira, ca- begassonho, nuvens. Abraca a mulher, No abraco, além do compe de Davenga, ela senitiu a pressio da arma. —Davenga, Davenga, que festa ¢ esta? Por que isto tudo? — Muller, ta pancada? Parece que bebe? Esqueceu da vila? Esqueceu de voce? Nao, Ana Davenga nao havia esquecido, mas também ho sabia por que lembrar. Era a primeira vez na vida, uma festa de aniversario, © barraco de Ana Davenga, como © seu coragio, guar- dava gente ¢ felicidades. Alguns se encostaram pelo pouco espago do terretro, Outros se amontoaram nos barracos vie rinhos, por onde rolavam a cachaca, a cerveja e © mals © mais, Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que todos se retisassem, recomendando aos companheiros que ficasser alertas. cstava feliz. Sé Davenga mesmo para fazer aquilo, E 0 viciada na dor, fizera dos momentos que antecede- fam a alegria maler um profuncie safrimento, Davenga esta- -va ali na cama vestido com aquela pele negra, brilhante, Ilsa que Deus Ihe dera, Ela também, nua, Era tio bom ficar se tocando primeiro. Depois haveria o choro de Davenga, tio doloroso, tao profundo, que ela ficava adiando o gozo-pran- en ‘CONCENERO EUARISTO to. Jf estavam para explodir um no outro, quando a porta abriu violentamente e dois policiats entraram de armas em punho. Mandaram que Davenga se vestisse rapido e nao baneasse o engragadinho, porque o barraco estava cercado, Outro policial do lado-de fora empurrou a janela de macel- ra, Uma metralhadora apontou para dentro de casa, bem na diregio da cama, na mira de Ana Davenga, Ela se encotheu Ievando a mio na barriga, protegendo o filho, pequena se- mente, quase sonho ainda. Davenga vestiu a calga Jentamente. Ele sabia estar venel- do. E agora o que valia a vida? © que valia a morte? Ir para a prisdo, nuncal A arma estava all, debalxo da camisa que ele ia pegar agora. Poderia pegar as duas juntas. Sabla que este gesto significaria a morte. Se Ana sobrevivesse & guerra, quem sabe teria outro destino? De eabeca baixa, sem encarar os dots polictais a sua frente, Davenga pegau a.camisa e desse gesto se ouviram muitos tiros. (05 noticidrios depois lamentavam a marte de um dos po- liciais de servigo. Na favela, os companhelros de Davenga choravam a morte do chefe de Ana, que morrera ali na sama, metralhada, protegende com as mos um sonho de vida que ela trazia na barriga. ‘Em uma garrafa de cerveja cheia de agua, um botio de rosa, que Ana Davenga havia recebida de seu homem, ma festa primeira de seu aniversério, vinte e sete, se abria 300 Duzu-Querenga um lambeu os dedos gordurosos de comida, aproveitande 1s tiltimos bagos de arroz que tinham ficado presos debai- xo de suas unhas sujas. Um homem passou e olhou para a mendiga, com uma expressao de asco. Ea the devolyeu um olhar de zombatia. © homem apressou 0 passo, temenda {ue cla se levantasse ¢ viesse Ihe atrapalhar o caminho, Duizu olhou no fundo da lata, encontrando apenas o es page vazio, Insistiu ainda, Diversas veces levou a mao lé dentro € retornou com um imaginario alimento que jogava ptizerosamente a boca, Quando se fartou deste sonho, ar- folou satisfeita, abandonando a lata na escadaria da igreja ¢ caminhou até mais adiante, se afastando dos outros men digos. Agachou-se quieta. Ficou por algum tempo olhando CCONcEIGRG EvaRIstO o miundo. Sentiu um inieio de edibra nas pernas, ergueu-se pela metade, acacorando-se de novo, Estava mesmo fican- do velha, pensou, Levantou devagar. Olhou para tras, viu 0s companheiros seus estirados, depois de almoco, contem- plandoe meio-dia, Ensaiou e mudou os passos, cambalean- te ¢ insegura felto crianga que comega a andar. Sort da ler- deza e da eaibra que insistiam. E, a pera estava querendo fathat, Ela € que nfo ia ficar all assentada. Se as pernas nao andam, é preciso ter ssas para voar. Quando Duzu chegou pela primeira vez na cidade, ela era menina, bem pequena. Viera numa viagem de trem, dias € dias, Atravessara terras € rias. As pontes pareciam fragels. Ela ficava 0 tempo todo esperando o trem cair, A mae {6 estava cansada. Queria descer no melo do caminho, O pai queria caminhar para o amanha © pai de Duzu tinha nos atos a marca da esperanca. De pescador que era, sonhava um oficla novo, Era prceiso aprender outros meios de trabalhar. Era preciso também dar outra vida para a filha, Na cidade havia senhoras que em- pregavam nieninas. Ela podia trabalhar e estudar. Duzu era caprichosa e tinha cabega para leitura. Um dia sua filha se- ria pessoa de muito saber, E a menina tinha sorte. Ja vinha ino Tumo certo. Uma senhora que havia arrumado trabalho paraa filha de Zé Nogueira ia encontrar com eles na-capital. Duzu ficou com na casa da tal senhora durante muitos anos, Era uma casa grande de muitos quartos. Nos quartos. moravam mulheres que Duzu achava bonitas. Gostava de ficar othando para os rostos delas. Elas passavam muitas coi- sas no rosto e na boca, Ficavam mais bonitas ainda. Duzu trabalhava muito. Ajudava na lavagem ena passagem da roupa, Era ela também quem fazia a limpeza dos quartas. A senhora tinha explicado a Duzu que batesse nas portas sem- pte. Batesse forte ¢ esperasse o pode entrar. Um dia Duzu es queceu € fol entrando, A moga do quarto estava dormindo. uru-ouenenca in) cima dela dormia um homem, Duzu ficou confusa: por que aquele homem dormia em cima da moca? Salu devagar, mas antes ficou olhando um pouco os dois, Estava engraga- do, Estava bonito. Estava bom de olhar, Entao resolveu que ‘hem sempre ia bater nas portas dos quartos. Nem sempre ia esperar 0 pode entrar Algumas vezes ia entrarentrando, E fol no entrar-entrando que Duzu viu vérias vezes homens (ormindo em cima das mulheres. Homens acordados em ‘cima das mulheres. Homens mexendo em cima das mulhe- res, Homens trocando de lugar com as mulheres. Gostava de ver aquilo tudo. Em alguns quartos a menina era repreendi da, Em outros, era bem-aceita. Houve até aquele quarto-em que o homem the fez tem carinho no rosto ¢ foi abaixandlo 1 mo lentamente.,. A moga mandou que ele parasse, Nao estava vendo que ela éra uma menina? © homem parou. Le- vantou embrulhado no lengol. Duzu viu entéo que a moga sstava nua. Ele pegou a carteira de dinheiro e deu uma nota para uz, Els olhou timidamente para o homem. Vottow ali ho outro dia no entrar-entrando, Nao era o-mesmo. Salu de- sypontada e triste, Passados alguns dias voltou a entrar de su~ petio, Era ele. Era ohomem que the havia feito um carinho e Ihe dado um dinheiro, Era ele que estava lé, Estavam os dois ‘nuzinhos. Ele em cima, parecendo dentro da mulher. Duzu ficou olhando tudo. Teve um momento em que ¢ homem ‘¢hamou por ela. Vagarasamente ela fot se aproximando. Ele, ‘em cima da mulher, com uma das mos fazia carinho no rust € nos selos da menina. Duzu tinha gosto € medo. Era ‘estranho, mas era bom. Ganhou muito dinheito depois. Duzu voltava sempre. Vinha num entrar-entrando cheio lie medo, desejo e desespero. Um dia o homem estava dei- ado nu esozinho. Pegou a menina e jogeu na cama. Duzu nfo sabia ainda o ritmo do corpo, mas, répida ¢ instintiva- mente, aprendeu a dancar. Ganhava mais € mals dinheiro, Voltava ea moga do quarto nunca estava. en CONCEIgKO EvARISTO Um dia quem abriu a porta de supetdo foi D. Esmeralei- na, Estava brava, Se a menina quisesse deitar com homem podia. $6 uma coisa ela nao ia permitir: mulher deitando com homem, debaixo do teto dela, usando quarto e cama, € ganhando o dinheiro sozinhal Se a menina era esperta, cla era mals ainda. Queria todo o dinheiro e jé! Duzu naquele momento entendew o porqué do homem Ihe dar dinheito, Entendeu o porqué de tantas mulheres ¢ de tantos quartos ali, Entendeu 0 porqué de nunca mais ter conseguide ver a sua mie eo seu pai, e de nunca D. Esmeraldina ter cum- prido a promessa de deixé-ta estudar. E entendeu também qual seria a sua vida. f, ia ficar. laentrar-entrando sem saber quando e porque para Dona Esmeraldina arumou um quarto para Duzu, que pasiou a receber homens também. Criow fregueses e fama Duzn morou ali muitos anos e de ld partiu para outras 20- nas, Acostumou-se aos gritos das mulheres aparihando- dos homens, ao sangue das mulheres assassinadas, Acostumou-se as pancadas dos cafetdes, aos mands ¢ desmandos das eafe- tinas. Habituow-se a morte como uma forma de vida, Os filhos de Duzu foram muitos, Nove, Estavam espalha- dos pelos morros, pelas zonas ¢ pela cidade, Todos os filhos tiveram filhos, Nunca menos de dois, Dentre os seus netos rs marcavam assento maior em seu coragao. Trés netos Ihe abrandavam os dias. Angélico, que chorava porque nao gos- tava de ser homem. Queria ser guarda penitenciério para poder dar fuga ao pal. Tatico, que nao queria ser nada. E a menina Querenga que retomava sonhos e «lesejos de tantos outros que ja tinham ido... Duzu entrou em desespero ne dia em que soube da mor- te de Tatico. Ele havia sido apanhado de surpresa por um grupo inimigo, Era tao novol Treze anos. Tinha ainda voz ¢ jeito de menino. Quando ele vinha estar com ela, passava as vezes a nolteall. Disfargava. Pedia a bengao. Ela sabia po- ase OUZU-qUERERCA Hany que ele possuta uma arma e que a cor vermelho-sangue J.se derramava em sua vida, Com a morte de Tético, Duzn ganhou nova dor para yuiardar no pelto, Ficava ali, amuada, diante da porta da gro}. Olhava os santos 14 dentro, os homens cf fora, sem obter consolo algum. Era preciso descobrir uma forma de lidlibriar a dor, Pensando nisto, resolveu voltar a0 morro, Li onde durante anos ¢ anos, depois que ela havia deixado 4) zona, fora morar com os filhos. Fol retornando all que Duzu deu de brincar de faz de conta. E foi aprofundando Nas raias do delirio que ela se agarrou para viver o tempo de seus tiltimos dias. Duru olhow em volta, viu algumas roupas no varal. Le- yantou com dificuldadles e foi até 4. Com dificuldade maior ainda, ficou nas pontinhas dos pés abrindo as bragos, As toupas balanavam ao sabor da vento. Ela, ali no meio, se sentia como um pdssato que fa por cima de tudo e de todos. Sobrevoava o morro, o mat, a cidade. As pernas dofam, mas Prossisfa asas para voar, Duzu voava no alto do morte, Voava quando perambulava pela cidade. Voava quando estava all ntada a porta da igreja. Du2u estava feliz. Havia se agarra- Up) 408 delirios, entorpecendo a dor. E fol se misturando as foupas do varal que ela ganhara asas e assim viajava, voava, Uistanciando-se 0 mais possivel do real. Estava chegando uma época em que o sofrer era proibido. Mosmo com toda dignidade ultrajada, mesmo que matas- sem Os seus, mesmo-com a fome cantando no estimago de todos, com o frie rachando a pele de muitos, com a doen- (@ comendo © corpo, com o desespero diante daquele vie Vorsmorter, por maior que fosse a dor, era proibido 0 sofrer, la gostava deste tempo. Alegrava-se tantol Era o carnaval. {i |@havia até imaginado a roupa para o desfile da escola. {ila viria na ala das baianas. Estava fazendo uma fantasia linda. Catava papéis brilhantes ¢ costurava pacientemente 035 CONEEIGRD CUMRISTO em set vestido esmolambado, Um companheiro mendigo hhavia-Ihe dito que sua roupa, assim tao enfoitada de papéis recortadas em forma de estrelas, mals parecta roupa de fada do que de baiana, Duzu reagiu. Quem disse que estrela era 6 para as facas! Estrela era para ela, Duzu. Estrela era para ‘Titico, para Angélico, Estrela era para a menina Querenga, moradia nova, bendito ay, onde ancestrais e vitals sonhos hhaveriam de florescer ¢ acontecer. Duzu continuava enfeitando 4 vida € 0 vestido. © dia do desfile chegou. Era preciso inaugurar a folla, Despertou edo. Fol ¢ voltou, Levantou yoo e aterrizou, F fol escor- regando brandamente em seus famintos sonhos que Duzu visualizou Seguros plantios¢ fartas colheitas. Estrelas proxi- mase distantes existiam e insistiam. Rostos dos presentes se aproximavam. Faces dos ausentes retoravam. V6 Alafaia, ‘V6 Kilia, Tia Bambene, seu pai, sua mie, seus filhos e netos. ‘Menina Querenga adiantava-se mais e mais. Sua imagem screscia, crescia. Duzu deslizava em vistes € sonhos por um misterioso e eterno caminho... Menina Querenga, quando soube da passagem da Avo Duzu, tinha acabade de chegar da escola, Subltamente se sentiu assistida ¢ visitada por parentes que ela nem conhe- cera-e de quem $6 ouvita éontar as historias. Buscou na mé- méria os nomes de alguns. Alafaia, Kili, Bambene... Escu- tou 05 assobios do primo Titieo 14 fora chamando por ela. Sorriu pesarosa, havia uns trés meses que ele também tinha ido... Querenga descew 0 morro recordando a histéria de sua familia, de seu povo, Av Duzu havia ensinado para ela a brincadeira das asas, do voo. E agora estava ali deltada nas escadarias da igreja. E foi no delirio da av6, na forma alucinada de seus ditl- mos dias, que ela, Querenga, haveria de sempre umedecer seus somhos para que eles floresoessemn e se cumprissem vir ‘vos ¢ reais, Era preciso reinventar a vida, encontrar novos 168 puzw-ournenca cuininhos. Nao sabia ainda como. Estava estudanda, ensi- vi as eriangas menores da favela, participava do grupo de Jovens da Associagao de Moradores ¢ do Grémia da Escala. Intute que tudo era multe pouco. A uta devia ser maior Ainda, Menina Querenga tinha treze anos, como sew primo Vithco que havia ido por aquetes dias. ‘Querenga olhou novamente corpo magro e a fantasia {li av, Desviou o othare entre lagrimas contemplou a Tua. (© spl pasado de meio-tia estava colado no alto do céu, Ruslos dle lux agrediam o asfalto. Mistérios coloridos, cacos (le vidro: — fixo talvez — brilhavam no cho, Maria Marla estava parada ha mais de meia hora no ponto do éni- hus, Estava cansada de esperar. Se a distancia fosse menor, fla ilo a pé. Era preciso mesmo ir s¢ acostumando com a taminbada. O prego da passagem estava aumentando tan- fo! Além do cansago, a sacola estava pesada, No dia anterior, hho domingo, havia tido festa na casa da patroa. Ela levava pari casa 0s restos, O osso do peril e as frutas que tinham nifeltado a mesa, Ganhara as frutas ¢ uma gor|eta. © oss0, a ation ja jogar fora, Estava feliz, apesar de eansago. A gor|e- {i clivgara numa hora boa, Os dois filhos menores estavam shulto gripados, Precisava comprar xarope € aquele remedi- filo de desentupir nariz, Daria para comprar também uma ni de Toddy. As frutas estavam dtimas e havia mello, As conceigho Evanisto eriangas nunca tinham comido melo, Sends que os meni- nos irlam gostar de melo? ‘A palma de uma de suas mios doja, Tinha sofrido um cor- te, bem no meio, enquanto cortava © pernil para a patroa, ‘Que coisal Faca a laser corta até a vidal Quando o Snibus apontou 14 na esquina, Maria abaixou ‘© corpo, pegando a sacola que estava no chio entre as suas ‘pernas, O énibus nao estava cheio, havia lugares. Ela poderia ‘escansar um pouco, cochilar até a hora da descida, Ao en trar, um homem levantou la de trds, do altimo-banco, fazen- do um sinal para 0 trocador. Passou em siléneio, pagando 2 passagem dele e de Marla, Ela reconheces 0 homem. Quan- to tempa, que saudades! Como era dificil continuar a vida sem ele. Maria sentou-se na frente. © homem sentousse a seu lado. Bla se lembrou do passade. Do homem deitado com cla, Tia vida dos dois a0 barraco. Dos primeiros enjoos. Da barriga enorme que todos diziam gemeos, da alegria dele. ‘Que bom! Nasceu! Era um menino! E haverla de se tomar um hortem., Maria viu, sem olhar, que era 0 pai de seu filha. Ele continuava o mesmo. Bonito, grande, 0 olhar assustado nao s¢ fivando em nada e em ninguém. Sentiu uma magoa imensa. Por que nio podia ser de uma outra forma? Por que néo podiam ser felizes? E 0 menino, Maria? Como vai 0 me- rnino? cochichou o hemem. Sabe que sinto falta de vooés? Te- ho um buraco no pelto, tamanha a saudade! Tou sozinho! Nao arruniet, nao quis mals ninguém. Voc’ ja teve outros.. outros filhos? A mulher baixou os olhos como que pecindo perdao. £. Ela teve mais dois filhas, mas nfo tinha ninguém também. Ficava, apenas de vez em quando, cam um ou ou- tro homem. Era tao dificil ficar sazinhal E dessas deitadas repentinas, loucas, surgiram os dois flhos menores. E veja 56, homens também! Homens tambséen? Eles haveriam de ter ‘outra vida, Com eles tudo haveria de ser diferente. Maria, sno te esqueci! Ta tudo aqul no buraco do peito... CO homem falava, mas continuava estitico, preso, fixo no Ineo, Cochichava com Maria as palavras, sem entretanto ‘Vint patao lado dela. Ela sabia que o homem dizia, Ee es- lava dizendo de dor, de prazer, de alegria, de filo, de vida, lv morte, cle despedida, Do burrace-sauslade no peito dete. Vesta vez ele cochichou um pouguinho mais alto. Ela, ain- hi som ouvir direito, adivinhou a fala dele: um abraco, um Veljo; um carinhe no filo. E logo apés, levantou répico Sicindo a arma. Outro 16 atrds gritou que era um assalto. Marla estava com muito medo. Nao dos assaltantes. Nao {4 morte. Sim da vida. Tina trés filhos. © mais-velho, com nzeanos, era filho daquele homem que estava ali na frente om uma arma na mio. O de ld de tras vinha recolhendo uclo, O motorista segula a viagena. Havis 0 siléncio de to- os no 6nibus. Apenas a voz-do outro se ouvis pedindo aos pasnageiros que entregassem tudo rapidamente, O medo da Vid em Maria ia aumentando, Meu Deus, como seriaa vida lo seus filhos? Era a primeira vez que ela via um assalto no Onibus. Imaginava o terror das pessoas. O comparsa de seu bi-homem. passow por ela e nao pediu nada. Se fossem ou- ios 05 assaltantes? Ela teria para dar uma sacola de frutas, {ini 9350 de peril e uma gorjeta de mil cruzeiros. Nao tinha Felbgio algum no brago. Nas maos nenbum anel ou allanca. Alls, nas mios tinha sim! Tinha um profunda corte feito ‘cayn faca a laser que parecia cortar até a vida. (Os assaltantes desceram rapido. Maria olhou saudosa © sesperada para o primeiro. Fol quando uma vor acordou a ‘oragem dos demais. Alguém gritou que aquela puta safada IW da frente conhecia os assaltantes, Marla se assustou. Ela ilo conhecia assaltante algum. Conhecia © pai de seu pri- ineivo fitho. Conhecia o homem que tinha sido dela € que ola atnda amava tanto. Oulu uma vor: Negra safada, vat ver ie Slava de colzio com os dois. Qutra voe winda lé do fundo lo Gpibus aceescentou: Caima, gente! Se ela estivesse junto CCONCEIGRO evans com eles, teria descido também. Alguém argumentou que ela nao tinha descido $6 para disfargar. Estava mesmo com os ladroes, Foi a tinica a ndo ser assaltada, Mentira, eu ndo fit e ndo sei porqué. Maria olhou na direg3o de onde vinha a vor iu um rapazinho negro e magro, com feigoes de menino ¢ que relembravam vagamente o seu filho. A primeira voz, a que acordou a coragem de tedas, torniou-s¢ um grito: Ague- Ia puta, aguela negra safada estava com os ladrées! © dono da vor levantou e se encaminhou em diregio 8 Maria, A mu- Iher teve medo e raiva. Que merda! Nao conhecia assaltante algum. Nao devia satisfa¢3o a ninguém, Ola s6, a negra ain- da é atrevida, disse o homem, lascando um tapa no rosto da mulher. Alguém gritou: Lincha! Linclal Lincha!... Uns pas- sageiros desceram ¢ outros voaram em direcio & Maria. © motorista tinha parado 0 Onibus para defender a passageira: — Calma pessoal! Que loucura ¢ esta? Eu conhego esta mulher de vista, Todos 03 dias, mais ou menos neste hord- rio, ¢la toma 0 Snibus comigo. Esta vindo de tratmalho, da tuta para sustentar os filhos. Lincha! Lincha! Lincha! Maris punha sangue pela boca, pelo nariz e pelos ouvides, A sacola havia arrebentado € as frutas rolavam pelo chio, Sera que os meninos iriam gostar de melaa? ‘Tudo foi tio rapido, tio breve, Maria tinha saudades de seu exchomem. Por que estavam fazendo isto com ela? 0 ho- mem havia segredado um abrago, um filho. Ela precisava chegar em casa para transmitir 0 recado. Estavam todos armados com facas a laser que cortam até a vida. Quanda 0 Onibus esvaziou, quando chegou a policia, © corpo da mulher estava todo dilacerado, toda pisateado. Maria queria tanto dizer ao filo que o pat havia mandae do um abrago, um beijo, um carinho. Quantos filhos Natalina teve? Nitlina alisou carinhosarnente a barriga, 0 filho pulou 1é lle dentro respondendo.so earinho. Ela sorriu feliz. Era a sua juarta gravicez, € 0 seu primetro filha. $6 seu, De homem lguin, de pessoa alguma, Aquele fitho ela queria, os eutros ilo, Os outros eram como se tivessem morrido pelo mei ip eaminho. Foram dados logo apés e antes até do nasci mont, As eutras barrigas ela odara. Nao aguentava se ver wliilando, estufando, pesada, inchada e aquele troco, aque- WW cosa mexendo dentro dela. Ficava com 0 coracao cheio lp Olo, Enjoava e vomitava muito durante quase toda a jyovider, Na terceira, vomitou até na hora da parto. Foi a jilor gravidez para Natalina, Pior até do que a primeira, em- og fosse ainda quase uma menina quando pariu o primel- CONCEICRO EvARISTO ro filho, Brincava gostoso quase todas as noites com 0 seu namoradinho e quando deu fé, 0 jogo prazeroso brincou de pique-esconde la dentro de sua barriga, A mae desesperada perguntou se ela queria o filho e se Bilico queria também, Ela nao sabia responder por ele, Sabla, porém, que ela, Na- talina, nio queria, Que a mea perdoasse, nao batesse nela, no contasse nada para 0 pal. Que fizesse segredo até para 1 Bilico. Ela estava com Odie vergonha, Bilico Trunca mais brincarla com ela, Ele no ia querer uma menina que est vesse esperando um filho. Que a mae ficasse calada, Ela ta dar um jeito naquilo. Natalina sabia de certos chs. Varlas vezes vira a mie be- ber, Sabla também que as vezes 05 chis resolviam, outzas veres, ndo, Escutava a mde comentar com as vizinh — Ei, fllana, 0 trogo desceui! — E soltava ums gargalhada aliviada de quem conhecia o-valor da vida eo valor da morte. Natalina preparou os chés e tomou durante varios dias, Ela ficava em casa cuidando dos irmaos menores. la fazer catorze anos. Uma coisa estava 14 dentro da barriga dela ¢ ia crescer, crescer até um dia arrebentar no mundo. Nao, ela no queria, precisava se wer livre daquito. Amenina estava comegando a ficar desesperada, Tomava ‘0s chis e nao resolvia, Um dia a mae perguntou-lhe como ‘estava indo tudo. Ela no respondeu. A mie entendeu a res posta muda da filha. Agora ela mesma é quem ia preparar os ‘chas. Como haveria de criar mais uma crianga? © que fazer quando o filho da menina nascesse? Na casa {é havia tanta gente! Ela, o maride e sete eriangas. E agora teria o filho da filha? la tentar mais um pouco de beberagens, se nao dese ccerto, levaria.a menina a S4 Praxedes. A velha parteira cobra~ ria um pouco, mas ficariam livres de tudo. Natalina segurow © temor em silencio. Sa Praxedes, nol Ela morria de mede da velha, Diziam que ela comia meninos. Mulheres barrig das entravam no barraco de $4 Praxedes, algumas, quando 440 QUAN Tas FILOSavATALINA TE ‘Silt, trizlam nes bragos as suas eriangas, outras vinham ‘lo aria, de bragos © mos vazias. Onde Sé Praxedles metia W evlanigas que ficavam 1d dentro? Sa Praxedes, nfo, A mae Hy Natalina e as outras maes sabiam que era s6 dizer para feslangas que iar chamar a velha ¢ 5 filhos ficavam quis JX obedéeciam. Sa Praxedes comia crianga! Natalina sabia iliiie, Hla também muitas vezes conseguin a obediéncla dos hos menores trazendo a velha partelta até o medo deles. ‘A inte devia estar mesmo com muita mégoa dela. Estava eisndolevé-ta a $4 Praxedes. A velha la comer aquilo que istiva na barriga dela. 1a conseguir fazer o que os chs néo inham conseguido. Natalina esperou. No outro dia, quando a una a cozinha da madame, ela salu logo atras para lugar al- jim, Nao sabia para onde ia. Ao descer o morro, ert um dos heer: passou em frente ao barrace de Bilico, Era ali que os ols brincavam prazerosos, sempre, Passou rapido, pisando Jovomente com medo de ser vista. Tinha de fugir de S4 Pra. Aviles, Ganhou a avenida, ganhou outras rus, Escondeu-se 10 tnals lange possivel de casa, Ganhou outros amigas tam~ ben, Un dia, junto com outra me bem esperava um filho, tomow um trem para mais longe Winla, respirou aliviada. Sa Praxedes nao a pegaria nunca Ni terceira barriga ela sabia de tudo que ia acontecer. Na pilinelra ¢ na segunda fora apanhada de surpresa. Billco, fiiige de infineia, crescera com ela. Os dois haviam des- Gabierto juntas o compo. Fol com ele que ela descabsiu que, aposar de doer um pouco, o seu buraco abria ¢ ali dentro ‘ili 0 prazer, cabia a alegria, Quando a crlanca nasceu era () fara de Bilico. Igual, igualzinha, Ela conseguira fugir de i Praxedes. Nao queria o menino, mas também no que- 449 que ele fosse comido peta velha. Uma enfermeira quis 0 seilie, A menina-mae salu levee vaala do hospital! E era sai cedo: a-mulher que tame

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