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Sumario Preliminares 9 Literatura ¢ biografia: a rama das relacoes 24 Biografia e autobiogtafia: tradigio teérica 21 jo jogo da linguagem 42 55 Na cena do diélogo Didlogo Guimaries Rosa — Ginter Lorenz eliminares plexidade das relagdes entre o escritor e sua producio eortespondido, ao longo dos anos, a uma controvertida estudos literarios — teoria ¢ critica — que nem ‘sempre perspectiva adequada para aborda-las. Submetendo- ‘tros cientificos vigentes em cada momento de sua tas vezes os estudos literarios tiveram seu campo de ado pot pressupostos incapazes de compreender a je da obta, bem como de elucidat as suas vinculagdes é, 0 autor € 0 contexto sdécio-histérico. se refere especificamente as relagdes entre 0 escritor dos temas nucleares dos estudos literarios, existe do instrumental tedrico para se pensar a questo de ecedora, vez que existe um campo do sabet matcado wigdo com a linguagem, o sujeito, seu estatuto, suas Producio ¢ estruturagao. Este posicionamento, que la uma época e se constitui em marca da modernidade aneidade, essa consciéncia que é, em ultima instancia, ensio dos limites da realidade, porque nao se pode © ctivo da linguagem, exige uma visio de mundo ta daquela do século dezenove. x. 10 EVELINA HOISEL ‘A critica tradicional, herdeira dos pressupostos positivistas, prisioneita do principio de causalidade, da concepeao do autor como consciéncia plena, desenvolve seus estudos a partir da suposigio de que a explicagio da obra deve set buscada ma origem — autor, contexto histético etc. O empitismo e o racionalismo afirmam o prestigio pessoal do individuo, da “pessoa humana” ¢, nessa perspectiva, a pessoa do autot passa a gozar de uma autoridade ¢ valor que podem ser atestados pelos manuais de historia literéria, enttevistas, biogtafias, revelando uma imagem da literatura que Roland Barthes considera “tiranicamente centrada no autor”. ‘A consciéncia dessa tirania se processa gradativamente no panorama dos estudos literérios modernos ¢ somente em meados do século vinte é que se pensa de forma mais contundente a crise dessas relagdes. O questionamento da voz autoral — 0 seu deslocamento como autotidade que detém o “real” sentido e 0 “verdadeiro” significado do “sew” texto — provém dessa consciéncia sobre a linguagem, Na sua base, encontra-se um postulado da psicandlise, retomado pela lingiiistica, pela antropologia, pela filosofia, pela historiografia, enfim, pelos diversos discursos das Ciéneias Humanas, no inicio do século vinte, que diz respeito & nogao de que o sujeito, e nao mais a pessoa, fala ¢ € também falado pela linguages O sujeito no diz apenas o que quer dizer a articulagio da fala o te cria tenses € desvios que itrrompem na linguagem, afastando-o di intengdes do seu querer dizer. Desse modo, 0 sujeito nao simplesmente o produtor de uma linguagem, de um texto, de escritura, Ele é também produzido pela linguagem-texto-escrita q articula. GRANDE SERTAO; VEREDAS — UMA BSCRITURA BIOGRAPICA 11 cenas, onde determinadas personagens, idéias, forcas, escritas, signos, que so vestigios, marcas de uma experiencia, de uma cultura, podem atuat, Se, no final do século dezenove e inicio do século vinte, se ptenuncia um campo do saber capaz de instaurar a crise da origem, a morte do autor, gradativamente articulada pelas diversas correntes da critica literéria que passam a focalizar a obra sua imanéncia, somente a partir de 1960, a critica se empenha f executar o autor enquanto significado transcendental, principio eo. Roland Barthes, Jacques Derrida, Michel Foucault, Maurice Matcelin Pleynet, nas suas formulagoes, desvendam os os das relacdes entre o escritor e a obta, propiciando o mento do que se denomina neste estudo de eseritura almente, enquanto se afirma a morte do autor, 0 ¢ parricida do texto, pode-se delinear simulta- biografico da escritura. Antes mesmo de se um género historiograéfico ou como uma biografia é marca indissocidvel, esta presente f onde o sujeito se dramatiza, e cuja ‘idida no palco da propria linguagem, no herspectiva, biografia e drama sto detinidos literitia, 2 | CONCeItos estio na concep¢ao da forcas distintas imprimem a sua , lidas, na inscricio dos seus rlografico e drama nao se 4 literitias, mas so forgas que os na cena da escritura, 12 EVELINA HOISRL onde © sujeito se representa, dramatiza-se. A modernidade acentua esta encenacio que se produz na escritura poética, independentemente de um perfodo histdrico, Ela esta na escritura de Séfocles, de Camées, de Shakespeare, de Fernando Pessoa. Entretanto, € em Pessoa, como poeta da modernidade, que os limites do set ¢ da linguagem transbordam, delineando 0 perfil de tum ser que se dispersa e se pluraliza. Descentra-se, no descentramento dos signos que enformam seu texto. Se o esctitor é, como afirma Maurice Blanchot, “o transmissor da voz neutra que na obra se enuncia”, ele é também aquele que deixa seu tastro — o seu estilo — na cena do significante- texto. A escritura literdzia 6, entio, por exceléncia, bio-grafia, isto 6, vida grafada e expressa dramaticamente na linguagem. Expeti- mentacio agdnica ¢ até tragica dos limites do set ¢ da linguagem, a esctitura literdria se aproptia dos referenciais, reencenando-os no ato da sua producio. A esctitura reptesenta, assim, um pacto biogrdfico, ou autobiogréfic, independente de explicitar os vinculos que afirmam a identidade entre autor-narrador-personagem, como quer Philippe Lejeune. O pacto autobiogrifico, segundo Lejeune, é a afirma no texto dessa identidade, enviando, em ultima instAncia, ao nome do autor na capa. Ampliando os limites desse pacto autobiogrifico, e procurando recuperi-lo pela sua fecundidade enquanto expressio terminolégica, pode-se afirmar que 0 pacto autobiogrifico (ou biografico) sustenta a produgio da escritura literéria e da leitura poética ¢ prescinde de qualquer identidade aparente, como a do proprio nome, entre autor-narrador-personagem. Ela nao se ITURA BIOGRAFICA 13 GRANDE SERTAO: V1 REDAS — UMA ESC! estabelece a partir de um contrato explicito firmado pelo nome do autor na contracapa, mas a partir de um vinculo subjacente a produc&o dos signos que articulam a escritura ¢ autenticam uma relacio inseparavel entre o ser € a linguagem, o set a palavra: 0 set enquanto signo. Redimensionando as relages entre escritura ¢ biografia, numa perspectiva tedrica que fundamenta o pensamento da modernidade, as concepcées do poeta-critico Paul Valéry podem sintetizar a directo que se imprime a esta problematica. Ao declarar que “nao existe teoria que nao seja um fragmento cuidadosamente preparado de alguma autobiografia” e que “quem souber me ler, leré uma autobiografia na forma. O fundo pouco imposta”, Paul Valéry, ainda no final do século dezenove, elucida uma questo tedrica que se tornara crucial para a contemporaneidade tedtica, critica ¢ artistica: a do vinculo indissohivel entre produtot ¢ sua producio, seja ela cientifica ou artistica. Desse modo, a esctitura biografica independe de um contetido prévio, exterior ao texto, que revele a vida do seu produto, Os elementos factuais sio apenas indicios capazes de sda convidar © leitor a desentranhar o sentido de uma das vertent escrituta, pois nao ha sentido fora dos signos, nao ha referente que, para ser representado, nao passe pelo crivo da linguagem e niio seja incorporado pela textura signica, onde se assinalam uma ideologia, uma ética, uma estética, um drama e uma biogtafia. Ler os signos no ato da sua producio, apreendé-los enquanto tracos que negam e afirmam um sujeito, € patticipar também da produgao de sentido que reencena um sujeito e autentica uma vida, grafando-o no corpo da letra. O nivel de identidade ultrapassa uma identidade estabelecida 14 EVELINA HOISEL entre o nome do autor e o do narrador-personagem. Ela é mais visceral, esté no emaranhado do texto, na superficie dos signos, nas pausas, na pontuacio, no tom, no ritmo, nos acordes e dissonancia de cada palavra ou de cada estrutura sintatica, no dito e no nao dito, Esta enfim no estilo, E através do estilo, suplemento da origem impossivel de ser resgatada na sua referencialidade, que o escritor assinala sua ptesenca, esboca o seu gesto, contorna e delincia sua face no clato- escuro dos signos, no preto e branco da pagina. © factual, a historia vivida na linearidade dos aconteci- mentos, é apenas um fragmento de uma hist6tia mais ampla, nio aparente. E esta histéria nfo é recuperada pela biografia enquanto género historiogréfico: na ansia de apreensio do acontecido, ela registra uma parcela da histéria do sujeito, 0 nivel do acontecido. A esctitura biografica situa-se no nivel das potencialidades nao acontecidas da histéria do sujeito, confirmando 0 verso de Manuel Bandeira (1966)-que serve de epigrafe ao seu livro Estrela da vida inteira: “A vida que poderia ter sido e nao foi. Poesia, minha vida verdadeira.” Revitalizando os substratos do imaginrio, extraindo os simbolos armazenados na memoria individual ¢ coletiva, a escritura aciona 0s limites impossiveis ¢ inapreensiveis da hist6ria do sujeito — do poeta e do leitor — narrando uma aventura vivida no imaginatio e através do imaginario, fazendo aparecer um ser que se encarna no instante da corporificagio dos seus signos, A biografia do sujeito é também autobiografia da escritura poética, que se monta através daquela e simultaneamente reinscreve sua genealogia, recuperando seus antepassados textuais. Nesse sentido, nogdes como intertextualidade ¢ tradi¢io podem definir a constitui¢ao GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRATICA 5) de uma arvore genealégica mais ampla: a insercdo do texto na hist6ria, recompondo os divetsos fios que tecem sua aventura histética e seu sistema de raizes. Recortar esse momento em que 0s signos vém A luz como se fosse a primeira vez, dando origem a um ser que reencarna dispersando-se nas palavras, é vivenciat também o momento de uma situacdo trgica e conflituosa. A vivéncia dramatica na cena da escritura provém da deflagragio de um conflito sustentado por diversas forcas, focos que demarcam a tensio entre morte e nascimento, particular e universal, voz ¢ grafia. O espaco da escritura éum espaco agdnico, onde escritor e leitor se encontram na aventura conflituosa de experimentar os limites da linguagem. Os aspectos figurados na constituigao da escritura biografica do aqui estudados a partit da obra de Joio Guimariies Rosa, que pertence a linhagem dos escritores dotados de uma consciéncia critica aguda em relagio a0 ptocesso criador, Essa exacerbacio faz com que o texto poético se torne um espaco de miltiplas teflexdes, so. Vatios textos dentre as quais destaca-se a do seu proprio proce: de Guimaraes Rosa se estruturam como nartativas autobiograficas, contando a vida dos seus protagonistas, A producio da natrativa por um sujeito que, na cena textual, dramatiza sua histéria e conta uma estoria, exemplificada pelo conto “Meu tio, o Iauareté”, ou pelo Grande sertdo: veredas, é sintomatica das telagdes que o escritor Joao Guimaraes Rosa mantém com seus textos, fornecgndo pistas valiosas para a constituicao de uma teoria da narrativa literaria como biografia. Além da poética contida nos seus textos literarios, as entrevistas e depoimentos de Guimaraes Rosa revelam uma lucidez 16 EVELINA HOISEL quanto 20 questionamento da origem, da inten¢do autoral e, por outro lado, sao uma reflexio sobre os vinculos indissoliveis entre o escritor e a escritura. O tema das relagdes entre o criadot e a constitui¢o da obra como biografia nao Ihe passam despetcebidos. Essa tematica, inclusive, esta intimamente associada a sua definig¢ao da literatura, que aparece delineada em seus depoimentos, Na escritura rosiana — € aqui a palavra est empregada em seu mais amplo sentido, considerando os textos poéticos, os depoimento: entrevistas, cartas etc. —, literatura-linguagem-vida sio impensaveis sepatadamente. A esctitura rosiana é uma vida grafada, é uma bio- gryfia. Em uma entrevista concedida a Ginter Lorenz, intitulada “Diilogo com Guimaraes Rosa”, um documento ptecioso pata o entendimento dessas telacdes, observa-se o testemunho da inevita- bilidade dessas interpenetracées, fornecendo a trama das relacées pata se pensar a trama que enlaca literatura e biografia. Na escritura rosiana, o didlogo é espaco propicio a teflexio ao aprendizado. Tanto do ponto de vista da producio literatia, quanto do ponto de vista existencial, 0 didlogo ¢, pata Guimaraes Rosa, a cena onde o sujeito se representa através de uma constelacgio de signos que possibilita uma constante leitura e te-leitura de sua constituigao, Se Guimataes Rosa é uma extraordinaria fonte produtota de signos, paralelamente, ele é uma possante sina de traduzit, de decodificar os signos da escritura do mundo, da tradicio literaria, de sua propria escritura. Por isto, os tradutores de sua obra encontram nele o interlocutor ideal para auxili4-los na sua tarefa de traducio. Ao se colocar como interlocutor de seus tradutores, Rosa fornece um material precioso para a configutagio da escritura A$ — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 17 EIANDE SERTAO: VERE como biografia, pontuando constantemente 0 entrelacamento vida- linguagem-literatura. Constréi um projeto literdrio bastante organico coeso ~ ainda que plural — onde confirma seu anseio de perfecti- bilidade e de obstinado rigor, Sua produgio se constitui por um excesso de significantes e de significados que transbordam na cena da escritura, Guimaraes Rosa convida o leitor pata uma aventura lingiiistica que se alimenta de uma relagio amorosa e de uma paixéo critica. Siio estas quest6es tedrico-criticas que constituem a concep- Gio da escritura biogréfica e 0 drama da linguagem. Este estudo sera desenvolvido recortando-se inicialmente a tradi¢io tedrica do conceito de biografia e de autobiografia. Através de uma breve recuperagio do seu percurso tedrico, pretende-se pontuar de que modo a biografia ¢ a autobiografia foram definidas como género ou tipologia historiografica ¢ literéria que obedece a determinados padtées, norm: , contratos. A ttadicio desses discursos mostra que 0 conceito de bio- grafia e de autobiografia acompanha postulagées tedrico-criticas que se coadunam a um campo de saber especifico. Por esse motivo, essas configuracées nfo pressupunham uma abordagem da cons- trugiio biografica ¢ autobiografica a partir de uma vinculagio indissociével entre o ser ea linguagem. Nessa perspectiva, quando se estuda o jogo da linguagem, essas vinculacdes sio pensadas a partir de um campo do saber que nio procuta apenas descortinar os niveis de relagio entre o ser ea linguagem, porém, de maneia mais radical, declara a impossibilidade de pensar o ser fora da linguagem que ele produz, portanto, fora da constelacio de seus signos, Este trajeto sera percorrido a partir das 18 EVELINA HOISEL reflexdes de Paul Valéty, pois elas propiciam fazer convergit para este espaco tedrico postulagdes que caracterizam a contemporaneidade, situando estas problematizagdes como suposte tedrico para a consti- tuicio da escritura biografica. Na cena do diilogo, delineia-se 0 trago dialégico na produgio rosiana, como espaco de teflexio e leitura, forma de aprendizagem e conhecimento. Tanto 0 Didlogo Guimaraes Rosa — Giinter Lorenz quanto o epistolar caracterizam-se como explicitagio de uma poética que confirma 0 projeto esctitural de Guimaries Rosa, cujo cerne é “legitima literatura deve ser vida”. Nesse sentido, estes textos fornecem os pressupostos tedricos da esctitura biogrifica rosiana e do drama da linguagem, depreendidos ¢ enformados pelo crivo tedrico-critico das concepgoes ja dematcadas antetiormente. No espaco do Grande sertao, amplia-se 0 conceito de biogtafia e autobiografia a partir de sua elaboragio pelo bartanqueito Riobaldo, Esta construgio biogsffica € lida como exemplar da telacio que o escritor mantém com a escritura, da dramatizacio vivenciada na produgio dos signos. A relacio entre viver-natrar esté expressa na reconstrugio biografica de Riobaldo, cuja travessia signica enceta o processo de motte e ressurreicio que mobiliza ¢ sustenta a produgio da escritura literaria como biografia. Ao figurar-se em uma constelagio de signos, Riobaldo tece uma trama de valores existenciais, éticos, ideoldgicos e estéticos que presentificam, no emaranhado de signos, a auséncia do esctitor. Uma “presenca”, contudo, pode ser desentranhada do espago do livto a partir da tessitura signica, que ordena esses valor tessitura remete ainda para uma tradicio — literdria, filosdfica, GRANDE SERTAO: PEREDAS — UMA BSCRITURA BIOGRAFICA 1 anttopolégica, lingiiistica, religiosa, cultural etc. — através da qual se pode reconstruir a genealogia da escritura de Grande sertao: veredas, mediatizada pela fala de Riobaldo, recuperando-se arqueolo- gicamente o seu sistema de raizes. Esse movimento de recuperagao genealdgica amplia e confirma a organicidade do projeto de Joo Guimaraes Rosa no que se refere a construgio da escritura biografica. Este texto foi apresentado originalmente como tese de doutoramento na Universidade de Sao Paulo, em 1996, ¢ para a presente edicio em livro mantive a estrutura original do trabalho. No ttanscorrer desta década, divetsos trechos foram publicados em periddicos e revistas académicas, Alpuns leitotes certamente vio perceber um compasso diferenciado na leitura do primeiro capitu- lo pelo carater tedtico que nele prevalece. Nestes dez anos, muitas questdes ai emergentes j estio difundidas e estudadas, Ele man- tém-se, todavia, por uma possivel interlocucio com alguns leitores e pelas linhas tedricas delineadas na leitura do texto de Guimaraes Rosa. A todos que colaboraram, tanto para a realizagao das pes- quisas como pata preparacao editorial do livto, meu sempre re- conhecimento. Necessito fazer um agradecimento especial a Joao Alexan- dre Barbosa (orientador da tese) e a um dos meus primeiros leito- res, Roberto Ventura, grandes incentivadores deste projeto: o li- vro. Infelizmente, ambos nao est’o mais aqui para vé-lo concteti- zado. Talvez, em algum lugar do infinito, quem sabe... Agradeco 4 CAPES pela bolsa de estudo e a Assembléia Legislativa do Estado da Bahia e a Academia de Letras da Bahia pela publicacéo do livro. Literatura e biografia: a trama das relacdes Biografia ¢ autobiografia: tradigao teérica Se alguns aspectos da biografia ou da autobiografia podem ser encontrados desde a Antigitidade Classica, este género é consi- detado por divetsos autores como fenédmeno tipicamente ociden- tal, que aparece a partir da formacao plena do individualismo mo- derno. Mikhail Bakhtin (1988), a0 estudar a biografia e a autobio- grafia antigas, apresenta uma breve, mas fecunda histéria dessas tipologias discursivas. Constatando a inexisténcia de um romance biogrifico na Antigiiidade, Bakhtin localiza, nesse petiodo, uma sé- rie de formas que exerceram grande influéncia para o desenvolvi- mento da biografia e da autobiografia européias, bem como do romance, Ele detecta no classicismo grego duas modalidades auto- biogtaficas. O primeizo tipo é denominado de platdnico, pois se mani- festa primeiramente nas obras de Platio Apalagia de Sderales ¢ Fedon. Aqui, a conscientizagao autobiografica do homem esta ligada as formas de metamorfose mitoldgica, cumprindo-se 0 percurso: ig- norancia presuncosa, ceticismo autocritico, conhecimento de simes- mo e verdadeiro conhecimento. O segundo tipo apontado por Bakhtin é denominado bio- EVELINA HOISEL gtafia e autobiografia retdricas, e tem como base o discurso civil, fanebre, laudatério. Esta forma nao tinha carater livresco, estando telacionada a acontecimentos politicos sociais e conctetos, sendo atos verbais civico-politicos de glorificacio e autojustificacao publicos. Foi, assim, na pra¢a publica, que tomou forma a consciéncia autobiogra- fica e biografica do homem na Antigitidade Classica. Disso resulta, conclui Bakhtin, que a imagem do homem biografico nao tinha nada de intimo-privado, de sigiloso-pessoal. Nada de intimo, pois, pata o grego da época clissica, toda a exis- téncia era visivel e audivel, uma vez que a vida interior existia, mas se manifestava do lado de fora, de forma sonora e audivel. Ea partir do Renascimento que surgem as condicées histori- cas efetivas para que a biografia ea autobiografia possam se afir- mar como forma discursiva, que se constituia pela presenca do ew a partir de um duplo e simultineo foco: como o eu reage a0 mun- do e como o mundo expetimenta o eu. Na Idade Média, faltava esta inter-relagio, uma vez que, nesse perfodo, 0 eu ainda nao é pensado a partir de suas dimensées psicolégicas. Por este motivo, no se pode falar de uma autobiografia medieval. ‘Ao tratar dessas formas em “Jibilos ¢ misérias do pequeno eu”, Luiz Costa Lima (1986) examina os textos de Petrarca, De secreto conflict curarum mearum (1342-1343), de Getonimo Cardano (1575) e Benvenuto Cellini, De vita propria liber, no sentido de in- vestigar como se processou, no Renascimento, a seculatizacio do pensamento e da experiéncia de vida que transformou uma prati- ca de meditagio no processo de auto-exame que, por sua vez, ampliou a pratica da introspeccio. O estudo desses textos de- monstra que, mesmo se anunciando estas praticas, o homem WIANDH seRTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 23 ‘jnascentista permanece heteroditigido, nao conhecendo este peri- ln a espécie que catactetiza o individuo moderno. Essas conside- ‘sages levam Luiz Costa Lima a concluir que, ao menos no campo sla autobiografia, o individuo moderno nio se apresenta nos dois Piimeiros tetcos do século dezesseis. Ao teconstituit 0 percurso histérico da autobiografia, Costa ‘Tima encontra nas Confissies, de Jean-Jacques Rousseau (1764-1770), 0 pronto de divergéncia e de ruptura das obras anteriores a possibili- dlide de configuracio da autobiografia moderna, Em Rousseau, ob- serva-se como propésito 0 desvelamento do eu pela sondagem de as mais diversas motivacdes. Alguns tragos que constituem a auto- biogtafia moderna so assinalados no texto de Rousseau, considera- do por Costa Lima como “paradigma” da autobiografia moderna, destacando dai cinco caractetisticas principais para a constituicao des- se género na modernidade: definigao da autobiografia como docu- mento de uma vida, nartada pelo mais competente de seus narrado- tes; prazer que o cu encontra em se narrar, em se transformar em. letra; ao contrario da “biografia” renascentista, onde o eu era coman- dado por modelos externos: agora, 0 que mais importa é a relagio consigo ptoptio, o direito de se ver ¢ ver os demais sem padrdes estabelecidos; descida ao inferno da sua propria intimidade; ¢, final- mente, paixio indagadora. Estes tépicos atestam aspectos basicos que estruturario o género na modernidade, propiciando que neles se agteguem outros tracos especificos. Jean Starobinski (1991) procura refletir sobre a multiplicidade da obra autobiografica de Jean-Jacques Rousseau ¢ encontra nessa produgio os antecedentes da biografia ¢ da autobiografia modernas. ‘Ao enfrentar 0 conjunto de textos de Rousseau — Dialogos, Confissies, a4 EVELINA HOISEL Dauaneios —, Statobinski constata que, para Rousseau, 0 conhecimento de si nao tem jamais o mesmo contetido ¢ esta sempre no seu comeco, uma vez que a verdade vem & luz de maneita ptimordial. Marcado pela Ansia de se conhecer, petseguido pela indagacio “O que eu préprio sou? Bis o que me resta buscar”, Rousseau (apud STAROBINSKI, 1991, p. 187) mapeia sua cartografia interior fazendo acreditar que os movimentos afetivos so legiveis em seu rosto e que a vida subjetiva nao € oculta ou recolhida na “profundeza”, mas aflora espontanea- mente, porque é demasiadamente forte para ser reptimida, O que aci- ona a produgio autobiogrifica de Rousseau é a necessidade que ele sente de tomar sua alma transparente aos olhos do leitor e, como de- monstta a leitura de Starobinski, é a necessidade de encontrar 0 reco- ahecimento ptiblico. Se ha em Rousseau essa Ansia de se narrat, essa necessidade de se mostrar através dos seus escritos, ele construiré sua biografia a partir de parimetros proprios de sua época, Desse modo, alguns aspectos destacados pot Statobinski sao evocados aqui para que se possa, em momento posterior, assinalat as divergéncias entre o que s reflexdes e se configura como biografia e autobiografia em noss 0 discurso autobiogréfico de Rousseau, sem 0 qual seria impossivel a existéncia do género na modernidade. Além da problematica do reconhecimento, outro aspecto que se observa no discurso de Rousseau ¢ que a autobiogtafia tem acesso 4 vetdade interior, é a possibilidade de apreender a imagem do ser, de revelar seu “modelo interior”, incapaz de ser depreendido através de outras formas de expressio. Rousseau cita como exemplo o retratista que, por mais que observe aten- tamente o seu modelo, jamais podera apreender a sua “esséncia GIANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAPICA 25 interior”, sua “verdadeira” imagem. Neste ponto, delineia-se uma Outta questio biogréfica ou autobiografica, quando Rousseau (apud STAROBINSKI, 1991, p. 194) afima que “ninguém pode escrever a vida de um homem a nao ser ele proprio” pois “sua verdadeita vida é conhecida apenas por ele mesmo...”, Somente © sujeito pode oferecer aos outros um retrato completo de si, apresentando-se tal como 6. Starobinski assinala que, nesta dire- Gio, a opgio de Rousseau é a de dizer tudo. Todavia, para isto, defronta-se com uma dificuldade que esta relacionada 4 lingua- gem, colocando assim a questo: é possivel dizer tudo através da linguagem? Diante desse impasse, Rousseau pressupée uma outta lin- guagem capaz de enformar a diversidade de sentimentos, uma escrita maleével e variada para dizet a complexidade do seu eu, a multiplicidade dos instantes vividos. Rousseau exigia uma extrema fidelidade da linguagem vida, uma transparéncia entre vida esctitura, Por essa razio, adota o método “genético”, tentando provar a continuidade de uma evolugao: segue cronologicamente o desenvolvimento de sua consciéncia, revivendo pela memoria o encadeamento das causas ¢ dos efeitos que determinatam seu ca- rater. Entretanto, compreende também que, em um certo sentido, a obra autobiografica esta destinada a um fracasso, pois nio é possivel dizer tudo, Outra questo destacada por Statobinski para configurar 0 discurso autobiogrifico de Jean-Jacques Rousseau diz tespeito relagio entre o presente ¢ 0 passado, Indaga-se aqui até que ponto 0 estado em que se encontra 0 eu no presente nao oblitera o pasado, até que ponto a emogio presente nao é um prisma através do qual 26 EVELINA HOISEI a experiencia passada muda de forma e cor. Na concepcio autobio- grifica de Rousseau, 0 essencial nfo € 0 fato objetivo, mas o senti- mento; e o sentimento passado pode irromper novamente, presentificar-se. Starobinski esclarece que, se para Rousseau a “ca- deia dos acontecimentos” nao é mais acessivel 4 memoria, através da “cadeia dos sentimentos” poder-se-ia reconstituir os fatos es- quecidos, ¢ o sentimento se tornaria, assim, o “coracao indestrutivel da meméria” (p. 204), A meméria afetiva pode ser um instrumento eficiente de tecuperagio do passado, ainda que, nessa perspectiva, se dé pouca atencao 4 exatidao da reminiscéncia, levando Starobinski a considerar que: Rou: tia de sua vida; 0 que importa acima de tudo nao é a au quer pintar sua alma contando-nos a hist6- verdade histotica, é a emogao de uma consciéncia dei- xando o passado emergit ¢ representat-se nela. Se a imagem é falsa, 20 menos a emocio atual nfio o é. A verdade que Rousseau quer comunicar-nos nfo é a exata localizacio dos fatos biogtificos, mas a relagio que ele mantém com o seu passado. Ele se pintara duplamente, ja que, em vez de reconstituir simples- mente sua historia, conta-se a si mesmo tal como tevive sua histéria ao escrevé-la. Pouco importa, entio, se preenche pela imaginacio as lacunas de sua meméria; a qualidade de nossos sonhos nao exprime a nossa natureza? (STAROBINSKI, 1991, p. 204-205). Logo apés, Starobinski prossegue com importantes refle- PIMINDE SERTAO: VEREDAS — UMA ES RITURA BIOGRAFICA 27 ses do ponto de vista do discurso autobiogtifico, introduzindo {juestes que dizem respeito a diferenciacao entre histéria e fiecao, entre discurso histotiografico e discurso ficcional, contornando as fronteiras discursivas entte as quais a biografia e a autobiografia oscilam: ‘Ao deformar sua imagem, ele revela uma realidade mais essencial, que é 0 olhat que dirige a si mesmo, a impossi- bilidade em que esté de apreender-se de outra maneira que nao se deformando. Jé nao pretende dominar seu objeto (que é ele mesmo) do modo imparcial e frio que setia 0 do historiador, possuidor de uma verdade ne narietur Ele se expde em sua busca ¢ em seu erro, conjuntamente como objeto incerto que cré aprender: (STAROBINSKI, 1991, p. 205, grifos do autor). Se, neste percurso da trajetdria histérica do género autobio- grafico, efetuou-se um enfoque mais detalhado na leitura que Jean Starobinski empreende dos esctitos de Jean- acques Rousseau, é porque em seu discurso se encontram tracos importantes através dos quais pode-se repensar 0 conceito de autobiografia. Esses tra- 0s sto sintetizados pot Starobinski, ao redefinir “os problemas da autobiografia”, e dizem respeito a uma quest’o que se totna crucial para as teorias modetnas e contempotaneas: a relagio do cu com a linguagem, Observe-se que, com Rousseau, ‘A linguagem tornou-se o lugar de uma experiéncia imediata, enquanto permanece o instrumento de uma a8 VELINA HOISEL, mediacio. Ela atesta ao mesmo tempo a ineréncia do escritor 4 sua “fonte” interior e a necessidade de fazer face a um julgamento, isto é, de ser justifi- cado no universal. Essa linguagem nao tem mais nada em comum com 0 “discurso” classico. E infi- nitamente mais imperiosa, ¢ infinitamente mais pre- catia. A palavra é 0 eu auténtico, mas por outto lado revela que a perfeita autenticidade ainda falta, que a plenitude deve ainda ser conquistada, que nada esta assegurado se a testemunha tecusa o seu con- sentimento. A obra literdria j4 no pede o assenti- mento do leitor sobre uma verdade interposta como “terceita pessoa” entre o esctitor e seu publico; o escritor se mostra por sua obra e pede o assenti- mento sobre a verdade de sua experiéncia pessoal. Rousseau descobriu esses problemas; verdadeira- mente inventou a atitude nova que se tornara a da literatura moderna (para além do romantismo sen- timental pelo qual se tornou Jean-Jacques respon- sével); pode-se dizer que ele foi o primeiro a vivet de uma maneira exemplar 0 perigoso pacto do eu com a linguagem: a “nova alianga” na qual o homem se faz verbo. (STAROBINSKI, 1991, p. 206-207). A partir dessas consideracdes pode-se retomat algumas refle- xdes de Luiz Costa Lima (1986) para indagar sobte problemas susci- tados pelo género: deve a autobiografia ser tomada como verdade ou como mentira? Faz pate ou nao da literatura? A autobiografia é PRAWN (enT AO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRATICA {ito um documento, isto é, a prova de como alguém testemu- W ou viveu suas experiéncias? Sugere Costa Lima que foi preciso os modelos de ordem politica ou teligiosa deixassem de set modos \prescindiveis para o reconhecimento individual para que o eu se wie © fosse visto como individuo individualizado, transformando- , entio, em uma posigao discutsiva distinta da posicao discursiva do toriador. Com esse raciocinio, Costa Lima distingue a autobiogra- da ficcio pelo papel que concede ao eu: na ficcao, o eu empitico lo esctitor é 0 suporte da invengao; na autobiografia o eu é a fonte In experiéncia que transmite. Por outro lado, a autobiografia diferencia-se do docu- mento hist6rico, pois o historiador tem e deve ter a pretensao de oferecer a “verdade” sobre 0 seu objeto. O memorialista — jutobiografia — apresenta um documento de “boa fé” e uma versio personalizada da histéria. Em relagio ao ficcionista, o autobidgrafo tem seus direitos mais limitados, pois nao pode inventar 0 que nao se passou, e ¢ mais personalizado porque trata do que viveu na carne, A ficcio concebe a existéncia con- forme os valores ¢ 0 imaginario do ficcionista, nao aspirando, como 0 historiador, a “verdade”. Dessas indagagdes, Costa Lima conclui que, por sua posi¢io discursiva, teoricamente a autobio- gtafia sofre uma permanente ins/abilidade e tende a se inclinar ora para o discurso histérico, ora para o ficcional. Objetivando esclarecet esta instabilidade, que mobiliza o pré- prio estatuto da autobiografia e da biogtafia enquanto tipologia discursiva, pode-se recorrer a outro texto de Philippe Lejeune (1986) onde ele mapeia as diversas nuances de configuracio desses discur- sos, Todavia, em suas reflexdes, esta instabilidade permanece como 30 EVELINA HOISEL. paradexo, ou como duplo jago que 0 discurso autobiografico nao con~ segue deslindar, pois pretende ser simultaneamente um discurso veridico e uma obra de arte. Ao tratar das questdes que caracteri- zam 0 discurso biografico e autobiografico, Lejeune os define do seguinte modo: biografia: a) historia de um homem (em geral céle- bre) esctita por alguém (¢ 0 sentido mais antigo e mais fregiiente); b) histétia de um homem (em geral obscuro), contada oralmente por ele mesmo a alguém que provocou a nattacio para estudé-lo 0 método biografico das ciéncias sociais); c) hist6ria de um homem contada por ele mesmo a um outro que o auxilia pela escuta a se orientar na vida, Em seguida, Lejeune penetra no terreno da autobio- gtafia, considerando algumas definigdes ja demarcadas, para teafir- mar sua concep¢ao delineada antesiormente em Le pacte antobiographique Com efeito, empreguei a palavra autobiografia para de- signar largamente todo texto regido por um pacto auto- biogrifico, onde o autor propde a um leitor um discur- so sobre si, mas também uma telacio particular des discutso, aquela onde ele responde & questo “quem sou eu” por uma narrativa que diz “como eu me tornei 0 que sou”. (LEJEUNE, 1986, p. 19, trad. da autora).! Em Moi aussi, ao tepensar suas reflexdes contidas em Le pacte autobiographique, Lejeune esclatece que 0 que ele chama de autobio- grafia pode pertencer a dois sistemas diferentes: um sistema referencial, “real” — onde 0 engajamento autobiogrifico, mesmo passando pelo livro ou pela escritura, tem valor de ato — ¢ um 9 BRE 40) VP REDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA Iiterdtio, onde a esctita nao pretende mais a transparéncia, imitar, mobilizar as crencas do primeiro sistema. ‘Como distinguir a autobiografia do romance autobiogr’- Philippe Lejeune (1975) declara que, do ponto de vista de wnilise interna do texto, nio ha nenhuma diferenga. Por tle se volta para delimitar os aspectos que estabelecem a enga: 0 nome préprio e o contrato, ou seja, aquilo que ele wmina de pacto, O objeto da autobiografia é 0 nome pré- 9 trabalho sobre ele € a assinatura, 0 que denomina pacto biogréfico, isto 6, a afitmacio da identidade autor-narrador- sonagem, remetendo ao nome do autor na capa do livro. jeune propde uma distingao a partir de elementos externos texto: declaragao explicita do autor sobre a natureza autobio- prifica da obra, seja através do titulo, de um prdlogo etc. Em oposicio ao pacto autobiografico, define o pacto fantasmatico que é proprio da ficgio e através do qual busca uma safda, ainda ue precaria, para o parentesco entre o discurso ficcional ¢ 0 autobiografico. Explicita ainda o parentesco entre essas formas discursivas, considerando que os procedimentos que a autobio- grafia emprega pata nos convencer da autenticidade de sua nat- rativa, o romance pode imitar ¢ os tem freqitentemente imitado. Lejeune nao considera que elementos ¢ técnicas da narrativa de fico so inerentes as narrativas autobiograficas e, embora suas reflexes sejam fecundas para o estudo da biografia e autobiogra~ fia, ele niio se descola de uma concepgio tipoldgica dessas produ- ces discursivas. Elisabeth Bruss (1974) também procura conceituat a autobio- grafia a partir de determinadas regras que se estabelecem entre autor EVELINA HO e leitor, para que 0 ato autobingrafico se realize. Em seu ensaio “Liantobiographie considerte comme acte litterdire”, Blisabeth Brass enu- mera as seguintes regras que definem a autobiografia: a) autor, narrador e personagem devem ser idénticos; b) as informagées e acontecimentos da autobiografia devem ser verdadeiros, sendo passiveis de verificacio publica; c) espera-se que 0 autobidgrafo tenha certeza a respeito das suas informagées, que podem ou nio ser reformuladas, Bruss chama a atencao para as relaces de seme- Thanga e diferenca que a autobiografia mantém com outtos tipos de discurso, como 0 romance, o didtio, o auto-retrato, as memédrias, considerando, todavia, como “centro” imutvel do ato autobiogra- fico a identidade autor-narrador-personagem. Nas teotizagdes de Elisabeth Bruss, a autobiografia se cons- ticui como parte de instituigdes sociais ¢ literétias, podendo ser afe- tada tanto por mudangas sociais como por mudangas literarias. Em seu desenvolvimento, a autobiografia apropriou-se de diversos pto- cedimentos formais de outros discursos, muitas vezes dificultando a distingao entre autobiografia ¢ ficco, como quando 0 tomance realista introduziu o narrador-personagem em primeita pessoa, di- luindo os limites entre essas duas formas. Jean Starobinski (1970), nas reflexdes desenvolvidas sobre 0 estilo autobiografico, define também a autobiografia como natra- cio veridica de uma vida, apresentando as seguintes caractetisticas: identidade narrador-her6i; predominancia da natracio sobre a des- crigio; seqiiéncia temporal suficiente para tracar uma vida, Ao qua- lificar a autobiografia como narracio veridica, Statobinski exclui os textos autobiogrificos do espaco ficcional. Em outta ditecio, faz coincidir os conceitos de biografia ¢ autobiografia, caracterizando 33 PAE fo: VUREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 9 a partir da identidade narrador-herdi. E no estilo que | encontra a marca individual, embora considere que na mifia vatiados estilos patticulares possam constituir o seu ma vez que nao hé estilo ou forma especifica da autobio- estilo é 0 elemento agenciadot de suas teorizagées, é a marca sal onde transparece o sujeito natrador, tornado aqui o prd- Jbjeto da natragéo. O estilo relaciona-se ao ptdprio ato de 1 seu valor referencial temete ao eu atual, ao momento da ituicao da escrita. Ao tecuperar essa tradicio tedtica que define 0 estatuto dos sos biogrifico ¢ autobiogritfico, interessa destacar alguns pon- através dos quais se pode repensar e rever as telacdes do sujeito sua escrita, e definir 0 estatuto biografico e autobiogrifico da critura poética, independente de uma tipologia especifica. Em diversas teotias apresentadas, a autobiografia é estabele- la através de um contrato/pacto explicito e dependente de insti- ices sociais e literdtias, firmado pelo autot com o leitor. Trata-se, ortanto, de uma relacio que se efetua muito mais no nivel dos componentes extetiores ao discurso do que através de uma telagao entranhada na linguagem que reconstitui a vida. O espaco que anuncia estas relacées é a leitura que Starobinski empreende dos textos de Jean-Jacques Rousseau, os quais j4 prenunciam ques- tées a serem elaboradas pela modernidade: ao afirmar que Rousseau foi “o primeiro a viver de uma maneira exemplar 0 perigoso pacto do eu com a linguagem, a nova alianga na qual o homem se faz verbo”, Starobinski coloca uma questio ‘crucial para a definicio da escritura bio-gréfica. A sua leitura coloca-se sob 0 ctivo da contemporaneidade, lendo biograficamente os a4 EVELINA HOISEL, deslizes © traigdes encontrados no texto do filésofo, 20 tragar seu perfil literatio, Além desse aspecto externo, exibido através do pacto/con- trato nas diversas teorias, autobiografia e biografia sio pensadas como um género de discurso historingréfico ow literdrio que tio possui fronteiras rigidas. Esta instabilidade coloca estas formas em uma linha teorica bastante ténue, vez que os limites conceituais sao rom- Pidos pela constituigio hibtida dessas tipologias que, como todo género, submete-se a pressdes hist6ricas, sociais ¢ literatias, Por esta razdo, alguns tedticos como Bruss e Lejeune estabelecem a identi- dade autor-natrador-personagem como o centro imutivel do pac- to/ato autobiografico, Nas diversas teorias, pressupde-se como conceituagio da bio- grafia e da autobiografia a reconstituicio escrita ou oral do passado, vez que consiste numa interpretagio ou auto-interpretacio. O contar a si mesmo requer 0 sentimento de transformacio, que justifica o desejo confessional. O eu anterior ¢ 0 eu atual nao sio idénticos, e 0 ev autobi- optafico nutre-se de sua narureza ambigua e plural. O estilo autobiografico, que recebe um especial tratamento nas consideragdes de Starobinski, compromete-se com a tealidade presente, a atualidade do esctitor, mas relaciona-se com o passado, fazendo-o reaparecer no ato da elocugio, de modo a teunit a elocucio hist6rica ~ a narragio dos acontecimentos passados ~ e 0 discurso, a enunciacao ligada ao locutor que afitma 0 ex, Definindo o estilo como “um sistema de metéforas orginicas” no qual se delineiam tracos de uma vida passada, Starobinski pressupde deturpagdes e desvios na recuperacio, suscitados pelo estilo. Ora, € por esse aspecto que a autobiografia corte o risco permanente de deslizar para o ficcional PR AND! seRTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 33 ile revestit-se da mais livre invencao. Esse transito da autobiogra- para a ficgio pode no ser percebido, pois nenhuma marca deci- aysinala essa passagem. Ao enfatizar a qualidade particular do estilo, privilegiando o ) de escrever, Starobinski inclina-se a favorecer mais o carater hittitio da narracio do que a fidelidade a reminiscéncia ou 0 iter documental do narrado. Talvez implicitamente aqui ja se \incie uma caracterfstica basica da escritura biografica, prenuncia- |, por Rousseau e explicitada por Starobinski na leitura de suas wifissdes, e que assinala o petigoso pacto do eu com a linguagem, pmo constituinte do ato lingiifstico ¢ da escritura, A critica positivista do século dezenove recorrera a todos s mecanismos biogrificos ¢ autobiograficos — cartas, depoi- inentos, biografias e autobiografias de escritores — através dos quais estabelecera a voz autoral como uma consciéncia plena, a iinica capaz de revelar o “real” e “verdadeiro” sentido do seu .xto, Pressupde uma transparéncia (aquela mesma que Rousseau imaginava registrar em sua autobiografia) entre aquilo que o autor declara como tendo sido a sua intencao, ou o seu projeto esctitural, e aquilo que efetivamente se inscreve no espaco litera- tio. Se o autor é a causa primeira da obra, é nele que reside 0 seu significado. Por outro lado, se o autor é uma personagem mo- detna, produzida pelo empirismo inglés e pelo racionalismo fran- cés, é com 0 positivismo, que resume a ideologia capitalista, que havera a firanizagao do autor, conforme atesta Roland Barthes (1987) em seu ensaio “A morte do autor”. No século dezenove, a imagem publica do autor foi paleo de miltiplas cenas e a institucionalizacao da literatura acelerou 0 w EVELINA HOI Processo de difusio da imagem ptiblica do homem de letras, Crit am-se, no dizer de Jean-Claude Bonnet (1985), ritos de autenticagéio & /oéticas do clegio que se manifestam a partir da exigéncia de testemunhas, enttevistas, encontros considerados como momentos excepcionais de emosio e de iluminacio pelo efeito magico e precioso da presenca do Grande Homem, A institucionalizacao do meio literdrio e a expansao da Republica das Letras tomam possivel a difusio de uma imagem Piiblica do homem de letras através da imprensa, das academias, dos concursos e das correspondéncias literirias, Pode-se conceber, entio, que a historia da biogeafia é a hist- tia das priticas centradas na existéncia do autor como elemento que da unidade a pluralidade de miascaras, narradores, enunciados, Se o autor moderno nasceu no século dezoito, quando o campo literitio se institucionalizava, é nesse momento que aparece o mito do poe- ta, fazendo-o participar de uma dupla vida: real e imaginéria. Como afirma Jean-Benoit Puech (1985, p. 280) em seu ensaio “Du vivant de Pautenr”, a critica fez do autor uma nogio nao apenas juridica ou moral, mas literaria: ele se tona principio de explicagio estética das obras, Sao ctiados entio alguns procedimentos que sustentam 0 jet che institucional da biografia, como dialogos, entrevistas — importincia da voz, da palavra como ideal da presenga viva — manifestacdes institucionais, encontro com leitores, depoimentos através do ridio, Como suas palavras, 0 corpo do escritor, ou melhor, suas mAscatas, costumes, sio objeto de reprodugio selecionada, retocada, difundi- da. As descrigdes biograficas salientam a importancia dos cendrios e Paisagens que tém ligacio com aspectos da producio literaria. A ima- gem ¢ a vida do autor tornam-se, assim, meios para promover seus $28 E fo) VeeDas— UMA ESCRITURA BIOGRAFICA, a7 4 Condigio mesma para a explicacio do seu texto. O sentido oti fora da sua linguagem, é anterior e exterior 4 sua estrutu- ua terminologia de Jacques Derrida (1971), um significado lal ow um principio tekolégico (0 sentido esta fora do texto € © texto). A biografia enquanto género adquite plena vigéncia nos estu- varios ¢ na literatura do final do século dezenove, como um. historiografico (biogtafia dos poetas no sentido jé conside- © torna-se também um género literatio, na medida em que se luz nas formas literdtias a narrativa em primeira pessoa, dan- btigem ao romance biografico ou autobiografico. Do ponto de vista da historia da critica moderna, até mea- » do século vinte, a explicacio da obra é procutada no Indo de m a ptoduz, é sempre iluminada pelo querer dizer autoral. B =e do denunciar essa situagao que Barthes afirma, em seu ensaio “A jorte do autor”, de 1968: O autor reina ainda nos manuais da historia literaria, stas das revis- nas biografias de escritores, nas entrevis tas, e na propria consciéncia dos literatos, preocupa- dos em juntar, gracas ao seu diario intimo, a sua pes- soa ea sua obra; a imagem da literatura que podemos encontrar na cultura corrente é tiranicamente centrada no autor, na sua pessoa, na sua histdria, nos seus gos- tos, nas suas paixdes; [..] a explicagio da obra é sem- pte procurada do lado de quem a produziu, como se, através da alegoria mais ou menos transparente da fic- cdo, fosse sempre afinal a voz de uma s6 ¢ mesma PEAS = O19 ESCRITURA BlOGRATICS EVELINA HOM r? 6 um autor? fs - 7 lo norteia as formulagées de Michel Foucault ind 4 cultura tem dado ao autot. Como Rola p >a, O autor, que nos entregasse a sua “confidén- cia”. (BARTHES, 1987, p. 49-50), © que Roland Barthes define como “morte do autor” pod Set considerado como a concepgio predominante a pattir das tag a problemética esta e divetsos tedricos, e assinala uma das questdes mais problematizad i es e é€um autor” yeflexdes desenvolvidas em “O qui pelos estudos literatios da apresentada na Sovieté Frangaise de Philosophie, em (1992) procuza compreender o que ele deno- ficio da Histéria da loncura de “monarquia do segunda metade do século vinte: a tel S40 do produtor com sua produgio, do autor com a obra. Aquil que Roland Barthes preconiza como morte do autor é 0 desloed imento do sujeito criador, considerado como proptietitio do ‘aga individuo que precede a obra e a tealiza de acordo com suas inten GGes. Barthes fara uma distincio entre autor aquele que alimentag Hivro, quer dizer que existe antes dele [..] tem com ele a mesma) relacio de antecedéncia que um pai mantém com o seu flho” — seriptor — a reget 0 leitor nos labirintos textuais. do preende assim, nesse texto, um outro aspecto ie © seu texto; nao arqueolégico, desvi lo os mecanismos que a arqueolégico, desvelando os mecanismos q q ‘ce AO Mesmo tempo que c a ire inando os uma “ética da autenticidade” e examinand estd de modo algum provido de um ser que precedetia ou excede- BF cs qusis o amor foi individualizado na moder- tia a sua escrita” (p, 51), F Tas, POIs O que se ocidental, enquanto portador de uma biografia onde im agenci lee r se 'm um agenciador de escritas, poi nel h os fios da vida e os fios da obra. declara ou apreende na contem oraneidade é a capacidade que tem las objetivando esta ar- ip io coloca um texto de agregar em seu espaco escritas variadas ¢ multiplas, Como pontua Barthe algumas questdes s: E tse do saber autoral, como por exemplo: como 0 ua s E + atribuide’ ou em nossa cultura? Que estatuto lhe foi atribul “um texto € feito de escritas muiltiplas, sai ele vatianvel g . ” 4 alot aA ia “o-homem-e- das de varias culturas e que entram umas com as outras em dialogo, que se instalou na critica literarta a categoria “o-ho' em parédia, em contestacio; mas hé um lugar em que essa ‘ir uma © que constitui a obra de um autor? Como defini multiplicidade se retine, e esse lugar nao é 0 autor, como se tem dito sos vestigios deixados por alguém — cartas, do- até aqui, 60 leitor” (p. 53), ire os dive: , anotagdes etc.? 3 Flies i j io do au- E, pata Barthes, 0 nascimento do leitor tem que se pagar Foucault aponta diversos problemas sobre a questo de com @ motte do autor, REIT a TE EVELINA HOI tot, Do ponto de vista histérico, como se afirmou anteriormente, ele surge no final do século dezoito, inicio do século dezenoye, quando se instaurou um segime de propriedade para textos e quan- do se estabeleceram normas estritas sobre o direito do autor, En- tretanto, a funcdo do autor nfo se exerce de forma constante sobre todos os discursos. Houve periodos em que textos que hoje sio considerados “literérios” eram postos em circulagio sem que se estabelecesse a questéo da autoria. Mas, para a critica literaria mo- dena, Foucault afirma que: O autor é aquilo que permite explicar tanto a presenca de certos acontecimentos numa obra como as suas transformacées, as suas deformagées, as suas modifi- cages diversas (e isto através da biografia do autor, da delimitagao da sua perspectiva individual, da andli- se da sua otigem social ou da sua posicao de classe, da revelagio do seu projeto fundamental). (EOUCAULT, 1992, p. 53). © que se propée, entao, é se retirar do sujeito, ou de seu substituto, o papel de fundamento originario e analis4-lo como uma fungao varidvel ¢ complexa do discurso. Nessa perspectiva, “a mar- ca do esctitot no é mais do que a singularidade da sua auséncia”, (P. 36). E assim que se introduz no texto de Foucault o tema da relacao entre a esctita ea morte. Ao se libertar do tema da expres- so, a escrita passa a se refetir apenas a si propria, e “a obra, que tinha o dever de conferir a imortalidade, passou a ter o diteito de matat, de set a assassina do seu autor.” (p. 36). O tema do sactificio CRITURA BIOGRAFICA 41 GIANDE SERTAO: VEREDAS — UMA E e da morte se torna presente pata o autor, conferindo-se um outro pstatuto tedrico e histérico aquele que regeu, desde o final do século dezenove, 0 dominio do sentido de sua obra. Para se entender a complexidade daquilo que tem sido denominado a morte do autor € necessdtio recortet ao campo do suber que propiciou o deslocamento do autor enquanto “sujeito Ompirico”, “pessoa real”, “consciéncia plena”, isto é, enquanto Wutotidade mais abalizada para falar de sua produgao. E, nesta flexao, este percurso sera tragado tomando com fio condutot ensaios de Paul Valéty, que prenunciam estas questdes de ma- ira bastante incisiva, fornecendo diversos aspectos tedricos e {ticos capazes de possibilitar uma revisio da sua poética e uma trodugao a esta linha tedrica que advoga a clausura do autor, im “A morte do autor”, Roland Barthes chama atencao pata a ética de Mallarmé, que suprimiu o autor em proveito da es- ta; a de Valéty, que nfo cessou de questionar a figura do au- , acentuando o cardter lingtiistico da atividade poética. uicault atesta que, desde Mallarmé e Valéry, o autor encontra- Submetido a clausura transcendental. Jacques Derrida (1991) configura também uma nocio de critura que pressupde a sua natureza parriciden a possibilidade que de assassinat 0 pai-autor que, nas consideracdes deste pensa- i francés, € considerado como um prine{pio sleoligien (origem e da escritura) ou como um significado transcendental, elemento ex- ao texto, a comandar e direcionar o olhar do leitor na supet- textual. O que interessa frisar desde logo é que, nesta linha de tefle- que prope a morte do autor, pode-se também pensar a rela- 42 VELINA HOISE! cio indissociavel entre 0 produtor e sua producio, os vinculos indissoltiveis entre 0 sujeito e a linguagem. O deslocamento do autor implica assim num duplo movi- mento, cujas polaridades nio sio excludentes, mas se constitui mes- mo a partir de um movimento circular: enquanto ausente — € Foucault confirma que é necessatio ao escritor “tepresentar papel do morto no jogo da esctita” (FOUCAULT, 1992, p. 37) — ele € figuta que se presentifica na insercio de seus signos. Trata-se, desse modo, de localizar 0 espaco vazio deixado pelo desapatecimento da pessoa do autor, Na trama pés-estruturalista, ele foi substitufdo pelo sujeito, espago aberto na estrutura da linguagem, a ser preen- chido num contexto particular, Ja foi assinalado anteriormente como Roland Barthes (1987, p. 52), ao deslocar a pessoa do autor, coloca-o como ponto de confluéncia do “jé esctito”. Para 0 seripior, “a vida nunca faz mais livro nao é ele prdprio seniio um tecido do que imitar o livro, ¢ ess de signos, imitacio perdida, infinitamente recuada.” F como este sujeito se dramatiza no jogo da linguagem que se considera a partir de agora, configurando-se também uma teoria da escritura biografica. No jogo da linguagem Nos diversos textos te6ricos de Paul Valéry perpassa um questionamento que conduz a uma sistematizacio capaz de fornecer os ptessupostos para uma teoria da escritura biogrifica. Como poe- ta-ctitico situado cronologicamente no final do século dezenove ¢ inicio do século vinte, Paul Valéry pertence a uma situagio limiat, em SIAINDE SeRTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRATICA jue ocorre um fechamento de determinada visio de mundo e um Oyo entendimento dos processos culturais comega a se anunciar, Milretanto, a ruptura ainda no se efetivou. Assim é que, como pre- fursor da modernidade artistica, tedrica ¢ critica, ele percebe clara- Mente as limitacdes da critica positivista e causalista, denunciando a wecessidade de ser reformulada, pois: “a verdadeira vida de um ho- jem, sempre mal definida, mesmo para seu vizinho, mesmo para ele esmo, nao pode ser utilizada na explicacao de suas obras.” (VALERY,. 957, v. 1, p. 1231, trad, da autora)? Em “Leonardo e os filésofos”, ensaio escrito em 1929, aléry aponta como as nogdes de realidade e de causalidade pare- em muito grosseiras e, em carta dirigida a Georges Duhamel, ambém de 1929, ao fazer algumas consideracdes sobre seu poe- ma “A jovem parca”, referindo-se ao contexto sécio-politico da poca em que escreveu o texto, destaca a diferenca entre a sereni- lade da obra ¢ as perturbacdes que the atormentavam naquele eriodo, esclarecendo: Este poema (que se chamou A Joven Parca) tem todas as aparéncias dos poemas que se podetia ter escrito tanto em 1868 como em 1890. “Tudo se passa” como se a guerra de 1914-1918, durante a qual ele foi feito, nio tivesse existido. E no entanto eu, que o fiz, sei muito bem que o fiz sub signo Martis, Eu nfo © sei explicat a mim mesmo, mas niio posso conceber que eu o tenha feito sen’io em fun- Gao da guerra. [..] Nao havia nenhuma serenidade em mim. Penso pot- RA BIOGRAFICA 45 A ESCRI EVELINA HOISEL. BIND seRTo: VEREDAS— 44 tanto que a serenidade da obra naio demonstra a sere- idaclosamente preparado de alguma autobiografia.” nidade do set. [...] Todavia, em “Acerca do Cemitério marinko”, um pequeno Sobre essas questées, toda a critica literaria me parece dever ser reformulada. (VALERY, tradugio da cita- cio apud CAMPOS, 1987, p. 30-31). wuio escrito apds ouvir um comentario de Gustave Cohen re seu famoso poema, Valéry (1991) fornece uma espécie de fese das quest6es dispersas em suas reflexdes, estabelecendo Postura diante do tema da biografia, quando levanta inda- Se Valéry pertence a vigéncia de uma critica que enfatiza o es acerca da complexidade da nogio de autor que, como principio soberano do autor como causa para o aparecimento da declara, nao é simples. “Acerca do Cemitério marinho” drama- obra e como explicagio do seu significado, ele empreende também, um gesto desconstrutor, procurando compreender essas relagoes fi sensacdo de estranhamento de um sujeito, de um ev que alguém explicar seu texto, elucida-lo, dissec4-lo “diante do em outros niveis de maior complexidade. A reflexio constante so- rO-negto, exatamente como um autor morto” (p. 170). A Acio singular de estranheza de Valéry resulta da percepcio bre 0 seu proprio processo criador possibilita pensar as concep- la que passa a ter da autonomia do filho-texto, capaz de Ges estabelecidas. A busca incessante de um método, sustentada pela perseguicio de um obstinado rigor, nem sempte atingido nos por ele mesmo, a ponto de leva-lo a constatat “no saber, seus escritos, permite-lhe, a partir do estabelecimento do carter lesmo, qual sou eu ou de quem se fala” (p. 170). Para, em linglifstico da literatura, pressupor uma outra forma de encarat as ida, complementar: “a nogio do Autor nao é simples: ela ligagdes do autor com o texto, na opinido de terceiros.” (p. 171, grifo do autor). Se, por um lado, as reflexdes de Valéry se encaminham para prenunciar aquilo que Roland Barthes denomina “a morte do autor” enquanto sujeito empirico, pessoa humana, e Jacques Derrida, “a natureza parricida de toda escritura”, por outto lado, etigem postulados que permitem conceber vinculos indissoliiveis Apesar dessa percepgao, a relacio do autot-pai com o filho- que o assassina ¢ se dissemina longe do seu olhar, conforme ssGes de Jacques Derrida (1991), ao definir o carter parricida ritura, é ambigua. Essa ambigitidade, que nao se refere apenas ide de Paul Valéry, e pode ser tomada como caracteristica da entte o escritor e a obra, entre o produtor e sua producao, afir- nidade artistica, resulta do fato do poeta moderno, pela cons- mando o carater eminentemente biografico de qualquer objeto aguda que tem de sua atividade, assumir a sua morte, isto é, de conhecimento artistico ou cientifico produzido pelo ho- mem, Em “Poesia e pensamento abstrato”, Valéry (1991, p. sciéncia de que o texto fala pot si. O texto se auto-explica ira seu prdptio pai, fazendo aparecer uma figura que lhe é iha, porque é simultaneamente o seu Mesmo € 0 seu Ouro. Diz 204) dimensiona a amplitude de suas reflexdes, observando: (1991, p. 171, gtifo do autor) que, “nfo mais que a nogio de “Na verdade, nio existe teoria que nfo seja um fragmento CRITURA BIOGRAPICA 47 EVELINA HOISE 46 PW veKv-40: veREDas— UMA x Autor, aquela do Eu nio é simples: um grau de consciéncia a mais hilo existe outro tempo para além do da enunciagio, ¢ opde um novo Mevmo a um novo Ontre.” Ei por isso que, mesmo sob aptesenca do olhar paterno, como o de Valéry, a contemplar Gustave Cohen explicando “O cemitétio marinho”, a sua presenca € uma au- todo texto é escrito eternamente aqui ¢ agora. (BARTHES, 1987, p. 51, grifo do autor). séncia, porque seu olhar é apenas um dentre tantos outros capazes de Hmergindo incessantemente aqui e agora, o seripior, aquele Ihe dat significagio. jcula uma linguagem e 6 por ela articulado, encontta naquilo O outro polo dessa ambigitidade refere-se ao gesto des- «luz a oportunidade de conhecet-se, transformar-se. Valéry se mesmo autor que, consciente do seu assassinato, procura acet- Wa nesse poder de transformacio que tem a literatura como le iniciacdo e de revitalizacao. Ainda em “Acerca do Cemitério 4 car-se constantemente do filho, falar sobre ele, acerca dele, nao o abandonat. Esta atitude esta expressa na modernidade artisti- cae literaria pelo aspecto do poeta exescer, paralelamente fungio de poeta, a fungio de tedrico ¢ critico, e até de historia~ ratifica uma afirmagio recorrente em seus esctitos: A Literatura, portanto, ‘medida em que cultiva o espirito em certas transforma- ‘6 me interessa profiundamente na dor da literatura. E, como tedrico-critico, nio é 9 detentor do significado pleno do seu texto; é apenas um /ei/or, uma voz que bes — aquelas nas quais as propriedades excitantes da linguagem desempenham um papel fundamental. JALERY, 1991, p. 172, grifo do autor). atticula um ematranhado de fios tecidos que desenham uma fi- gura que se cria e emerge na malha textual, assistindo a seu nas- cimento através da linguagem. Inverte-se, portanto, a metifora ¢, de pai, ele se converte em filho, conforme expresso por Roland Bsc concebe a literatura como espago onde se grafam atra- Batthes em citagao que aqui se retoma: linguagem as mais diversas performances do sujeito que a fazendo-o emergit ¢ renascer nos mais variados modos de Supée-se que o Autor alimenta o livro, quer dizer que to, pode-se entio defini-la como uma escritura biogrifica. existe antes dele, pensa, softe, vive com ele; tem com fonsciéncia da literatura como biografia, vida grafada, que ele a mesma relacao de antecedéncia que um pai man- esse olhar constante do poeta a se autocontemplar nos labi- tém com 0 seu filho. Exactamente ao contratio, 0 saipior linguagem, onde itrompem as feigées mais inesperadas, moderno nasce a0 mesmo tempo que © seu texto; cidas, impondetiveis de sua fisionomia. nfo esté de modo algum provido de um ser que pre- cederia ou excederia a sua escrita, nao é de modo al- aitividade poética, 0 gesto de inscrever-se na letra do livro, ieat-se no signo lingiiistico, é a experiéncia mais dramatica, gum 0 sujeito de que o seu livro setia o predicado; © cruel vivenciada pelo sujeito ¢ também a mais plena e de 4 EVELINA HOISEL PP INPH SreIo: VerEDas— uma maior brilho. Esta questo fascinava a Paul Valéry, que a transformou no ideal ético ¢ estético de seu projeto artistico e existencial. A tarefa (1991, p. 173, grifos do autor) se indaga sobre o que ele gis fom tal poema, respondendo que “nao guis dizer, e sim quis P que foi a intengao de fazer que qui o que eu disse.” E logo wida confirma: de fabticacio, de construcio, expressa numa ética da forma, conduz 20 trabalho infinito, afastando-se das concepces “naturais” ou “ingénu- as” da literatura, que fazem confundir a obra com a pessoa, com 0 factual, com a vida de quem a produz. Valéry conhecia 0 seu officio e por isso se dedicava Nato ha sentido verdadeiro de um texto. Nio ha autoridade dlo autor. Seja o que for que tenha pretendido dizer, es- ritualisticamente a reelaborar, repensar seu processo, tetomar a obra reveu 0 que escreveu. Uma vez publicado, um texto inacabada, numa tentativa de aperfeigoar-se nessas transformagdes @ como uma maquina que qualquer um pode usar 4 sua _yontade e de acordo com seus meios... (VALERY, 1991, p. 176, grifos do autor). que se dio incessantemente no jogo da linguagem. Na sua superfi- cie apatentemente neutta e inerte, em que se projeta Narciso, exis~ tem camadas, niveis distintos, zonas desconhecidas, fantasmas, rui- nas de uma hist6ria que s6 podem ser decifradas no proceso cons- Rista passagem, considerada como antologica sobre essas tante de se ler, reler, construir, desconstruir e reconstruir, até atingit um modelo ideal de set ¢ de linguagem. Nessa perspectiva, é im- ies disseminadas nos escritos de Paul Valéry, toca em um as- tapital retomado pelas teorias contemporaneas que pensam a possivel separar o ser da linguagem, pois o escritor se define por itticidade dessas nogGes. Subjacente a traicao da intencio “uma relacio entre um certo ‘espitito’ e a Linguagem...” (1991 p. 174), Em outta reflexao de “Poesia e pensamento abstrato”, Valéry (1991, p. 203, grifo do autor) declara: “consultem sua experiéncia; e constatario que sé compreendemos os outros, ¢ que so com- ‘expressa pela dentincia do querer dizer, esti a nocio de in- nite € a concepgio lingiiistica do discurso como articulado ila camada, a manifesta e a latente, o dito e o nao dito, Nessa ensio da linguagem, o sentido sé pode ser atingido pela preendemos a nds mesmos, gracas A velocidade de nossa passagem Iso € construcéo de suas diversas camadas, vez que cada las pode negar, trair ou confirmar a outra, Jacques Derrida (4.), em seu artigo intitulado “Qual Quelle: es de Valéry”, originalmente uma conferéncia pronunciada pelas palavras.” Heidegger (1973), inscrevendo-se nessa linhagem, define a linguagem como morada do ser. E, se 0 set habita a linguagem, para se conhecer, ele tera que estabelecer sua topografia, mapeat seus territ6rios, A literatura diz de uma travessia, de um jogo entre iiésimo aniversatio de nascimento do poeta francés, estabele- 80s pontos de contato entre os esctitos de Valéty ¢ a teoria motte e nascimento. E vislumbrando esse jogo que se instala na id no que se refere a redefinicaio do eu e da consciéncia como relagio entre o ser ¢ a linguagem durante a atividade ctiadora que Ws cle um sistema, 0 desenvolvimento de um natcisismo prima- BE RTO: VEREDAS — EVELINA HOISEL \ ESCRITURA BIOGRAFICA 51 50 tio em relaco a pulsio de morte, o interesse sistematico por tudo Além da critica freudiana da presenga em sie da desteuicio que extrapola ou escapa ao controle da vigilia. Apesar da tejei¢io que Valéry manifesta a psicanilise freudiana, conforme obsetyagao de Derrida, rejeigio constatada principalmente a partir da leitura dos Cahiers, 0 fato € que as fontes sobre as reflexdes acerca do autor, da concepeio da obra ¢ do proceso ctiador podem ser encontradas na wrlana da determinagao do ser como presenga, é a ctitica hiana do conceito de set e de verdade, substituidos pelos Os de jogo, interpretacao e signo sem verdade presente, que i a Jacques Dertida e aos demais pés-estruturalistas empre- in a desconstragéo da metafisica ocidental. psicandlise e na filosofia nictzschiana. A desconstrugao implica na dentincia de pressupostos ideo- Através do querer dizer, esté prefigurada uma critica ao sujeito apresentados como “verdades”, que sustentaram o edificio como consciéncia, que se anuncia como presenga a si. Esse tema & hura ocidental desde 0 aparecimento do platonismo. Derrida, assumido por Jacques Derrida, que 0 transforma em elemento im- ae wanda a série de centramentos da metafisica, empteendem portante para pensar a problematica da presenga na metafis dental e abalat o privilégio concedido a consciéncia como 0 querer titica 4 prdpria linguagem, onde a auséncia de centro € tam- dizer na presenga asi, O descentramento do sujeito como consciéncia fuséncia de autor, de origem como consciéncia plena, verda- plena — uma das feridas do homem moderno, no dizer de Michel Foucault (1987) — configura uma linguagem que excede em signifi- cacao, que ultrapassa os limites do consciente, irrompendo em um transbordar de significantes que atravessam todas as margens € li mites impostos por um centro — 0 felas gerador e controlador do sentido. Derrida (1972b, p. 36, trad. da autora)’, ao estudar a ex- pressio em Hussetl, assim define o querer dizer: “O que “quet dizet” esta reservado vos orientadot de leitura. Define-se entio a linguagem como um jogo de substituigdes las, onde 0 signo nio remete pata nada fora dele mesmo, vez 10 ha um sensfvel ¢ um inteligivel apreendidos separadamente, como nao ha um fundo sepatado de uma forma, postura por léncia caracterizadora da metafisica que é demolida. Todas as Womias que marcaram a cultura ocidental sio denunciadas por Proceso que, arqueologicamente, abala seus fundamentos, des- (veut diré) aguilo que o querer dizer quet dizer [, Aquele que fala, enquanto diz 0 que quer dizer: exptessamente, expli- citamente e conscientemente.” Como no pensamento ocidental o privilégio concedido a ido as diversas forcas, decisdes que se efetuaram na linguagem ¢ imentaram determinados conceitos como verdades. As concepgdes de Paul Valéry prenunciam esse campo consciéncia significa o privilégio conferido ao presente, ¢ é ao pre- Construtor que caracteriza as Ciéncias Humanas no século vinte. sente vivo que se reserva 0 poder de reuniao incessante dos tacos, tleiro do pensamento de Mallarmé de que a literatura nio se faz isto 6, dos signos, é entao a partir do conceito de signo que se abala ldGias, mas de palavras, ele abre uma tradicao de linguagem lite- Sete la em que forma e contetido, sensivel ¢ inteligivel no esto di- L BANDN SeRIA0: VEREDAS— UMA ESCRITURA BIOGRATI 52 EVELINA HOISE vorciados, porém, mantém entre si uma relacio indissociavel. Valéry Para tetificar essa idéia do apagamento do modelo, aspecto ¢ Mallarmé deixam perceber essa ruptura relacionada aos mecanis- lear da poética de Valéry, destaca-se o interesse que ele revelava mos do pensamento ocidental, que operou através de binarismos. musica pela arquitetura, apresentadas como modelo de cons- As teorias estéticas tradicionais, herdeiras do platonismo, utilizam as vio artistica, como ideal de linguagem, citando a obra de Bach formas sensiveis para revelar as esséncias, distinguindo forma e con- © “constrdi um sentimento sem modelo”. Esta deve set a ditecio tetido. Assim, compreende-se claramente uma afirmacio de Valéry (traducio apud CAMPOS, 1987, p. 30) elucidativa do estatuto da escritura biografica: “Quem souber me ler, lera uma autobiografia na forma. Q fundo importa pouco.” Ainda perseguindo essa linha de reflexao, explicara a existéncia de obras sem autor, que mesmo #1 tomada pela poesia pura, ideal de linguagem que opera o mento dos teferentes reais, para ser apenas linguagem. O des- mento dos modelos prévios, dos refetentes como geradores ¢ inadores do sentido, esta anotado em diversos textos de Valéty, le cle manifesta 0 pouco interesse pelos dados factuais da exis- assim se constituem em grandes obras que criam seu “autor”, citan= ja de um homem, como nascimento, amores, misérias, aciden- do como exemplo Shakespeare, cuja biografia do sujeito empirico, da pessoa humana, é bastante controvertida, e, para alguns historia~ iograficos. O que lhe interessa sfio as operagées da mente que Hocessam na cria¢lo e que podem ser recuperadas pelo leitor- dotes, é até inexistente, mas uma figura, um seripior, pode set desen- ptor tranhado da linguagem, onde se imprime seu perfil. Percebe-se que o tratamento dessas questdes é bastante ambi- Para se entender essas reflexdes, € necessatio compreendet Nos escritos de Paul Valéry. Embora esteja constantemente em- ado na elaboracio de um método capaz de instrumenté-lo na que o significado ou o sentido do texto nao esta fora da linguag: que 0 constrdi, mas s6 pode ser retirado da constelagio de seus clo das operacGes logicas da mente, da consciéncia puta, do signos, no jogo infinito das permutagdes da linguagem, no espaco samento abstrato, é aos elementos factuais, aos estados de alma, é do livro, O signo no é apenas algo a espelhar os referentes exter- nos, 0 modelo imitado. S6 se pode possuit o “real” — a pessoa do autor, as paisagens natutais — pela mediac&o do signo. Assim, o fora ja é um dentro, vez que se encorpa na propria textura signica, Os modelos externos, “reais”, transformam-se também em signos, po isso “a impossibilidade de viver fora do texto infinito”, que é 0 campo da linguagem, segundo formulacao de Roland Barthe (1974, p. 77). juas memérias, lembrangas e reminiscéncias que recorre na icitacao do método. Considerando a atividade critica como o go de uma subjetividade — a sua — com a obra, recolhe de suas ervagdes as impress6es que mais Ihe marcatam a sensibilidade, jonstrando a incapacidade de ver objetivamente a realidade, como iejava o seu obstisiado rigor. Diante desse aspecto, define a critica como atividade subjetiva llobiogrifica, pois o critico, a partir das obras observadas, revela 84 EVELINA HOISEL também seus estados interiores. E. desse modo que ele procede ao falar de Mallarmé ou de Degas, reforgando a idéia desse entrelacamen- to entre o ser e a linguagem, entre o produtor e sua producio. Pot isso, seus esctitos tedricos se apresentam como a confirmagio daquele tre- Na cena do didlogo cho citado anteriormente: “Nao existe teoria que nao seja um fragmen- to cuidadosamente preparado de alguma autobiografia.” (1991, p. 204). A estrututa de uma obra, seja cla artistica ou cientifica, corresponde a estrutura de quem concebe. E sempre, portanto, bio-grafia, vida grafada. E 0 delineamento desse campo tedrico que permite a depreensio do carater biografico da escritura. Didlogo Guimaraes Rosa — Ginter Lorenz Ao participar do Congtesso de Escritores Latino-Ameri- em Génova, em jancito de 1965, dois anos antes da sua say © quase dez anos depois da publicacio de Grande sertdo: , Joio Guimaraes Rosa deixa um de seus depoimentos mais 1 J'ai en effet employé le mot autobiographie pour désigner largement tout texte régi par un pacte autobiographique, 03 un auteur propose au lecteur un discours sur soi, mais aussi [...] une réalization particuliére de ce discours, celle ot il est répondu la question “qui suis je”? par un récit qui dit “comment je le suis devenu”?. 2La véritable vie d'un homme, toujours mal définie, méme pour son voisin, méme par lui-méme, ne peut pas étze utilisée dans une explication de ses oeuvres. 3 Ce qui “veut dire”, ce que le vouloi-dire veut dire, la Bedentumg, est réservé a ce qui parle et qui parle en tant quiil dit ce quill vex dre: expressément, explicitement et consciemment. em uma entrevista concedida a Giinter Lorenz. Guimaries nao utilizar o nome entrevista para o longo didlogo travado ctitico alemao, pot considerar uma entrevista como algo ial e estabelecido previamente. Assim, sugere 0 nome de a, que ser4 um longo didlogo, no qual elabora licidas con- Ges sobre 0 seu processo criador, sua relacio com a lin- , a relacio que se estabelece entre literatura e vida, os as- biograficos da escritura. Ti, portanto, em tempo de posterioridade que Guimaries pode lit seu ptocesso criador, deixando um matetial valioso, além iS outros que podem ser encontrados em seus miltiplos s, alguns deles constituindo os acervos do Arquivo Guima- sa, incorporado ao Instituto de Estudos Brasileiros da Uni- ile de Sio Paulo. Esse tempo de posterioridade é importan- | ponto de vista da esctitura rosiana, pois é 0 tempo-espaco No espaco do Grande sertao Viver-narrar Grande sertio: veredas se constt6i didaticamente como uma tobiografia, Na sua escritura encontra-se dramatizada a comple- idade das relagdes entre a vida vivida ¢ a vida contada em fempo de Yerioridade, Riobaldo, a0 narrat a sua histéria — trata-se de uma utobiografia oral, to freqiiente em determinadas tradigdes ou gru- os sociais — constitui-se como um sujeito que se presentifica na na do seu diélogo-mondlogo, procurando reatat os diversos fios we entrelagam sua memoria. Sob o aparente pretexto de informar a seu visitante — 0 nhor instrufdo ¢ culto que vem conhecer a regiio — sobre a sua ‘ografia fisica ¢ social, Riobaldo se pe a mapear a cartografia isica do sertao, com preciso e mimicia de quem efetivamente ‘onhece o objeto de sua narrago, como também a delinear sua artografia interior, mapear as diversas zonas e tertitétios de sua ibjetividade. No di se entrelacam, ganham uma unidade lingiiistica, pois é impossi- el para Riobaldo falar do sertio sem falar da sua travessia pelo ert’io, estabelecer os limites fisicos e culturais da regio sem deli- iscurso de Grande sertdo: veredas, sujcito © obje- itar as zonas do seu eu. 102 EVELINA HOISEL i na cena da linguagem que sujeito ¢ objeto se encontram. Através dos signos retidos na meméria, Riobaldo pode recuperar o seu passado, contar sua histéria como exemplar dos acontecimentos que caracterizam o sertao. O que ele narra é, portanto, fruto de uma experiéncia vivida tragicamente pelos campos gerais, recuperada agonicamente no tertitério dos signos que presentificam e atualizam a experiéncia, E, decifrando os signos da meméria que Riobaldo en- contra sentido para sua experiéncia. Por isso, mais do que informar ao senhor sobre os acontecimentos ¢ os limites dos campos gerais, ele quer entender 0 que nao é entendivel: a vida, Quer conhecer e dar sentido 4 sua expetiéncia, “porque aprender-a-viver € que é 0 viver, mesmo.” (ROSA, 1967, p. 443). A dificuldade que Riobaldo encontra para narrar, explicitada em diversos momentos do didlogo com o interlocutor, relaciona-se com © desenrolar da propria existéncia. A complexidade da vida vivida transborda pata a vida passada a limpo, em tempo de decifra- io e busca de sentido. Se o tema maior de Grande sertio: veredas & a travessia pelo sertiio-mundo da experiéncia pessoal e coletiva, ela nao ocia da travessia signica que a sustenta e a mobiliza. se di Fissa travessia signica, que é a transformagio do ser em sig- no, resulta de uma compreensiio de que entender o que niio é sig: a essa tela entendivel implica em uma leitura, em uma decodificagao dos nos que compéem a sua trama, Riobaldo assim expr que enforma sua experiencia: ‘A lembranga da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo ¢ sentimento, uns com os outros acho que nem nao misturam. Contar 7 GRANDE SERTAO: V1 DAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA aoe seguido, alinhavado, s6 mesmo sendo as coisas de rasa importincia, De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje Velo que eu era como se fosse diferente pessoa. Sucedido desgovernado. Assim eu acho, assim € que €U conto. (ROSA, 1967, p. 77-78). Compreender, entender, aprender, decifrar, contar. Tudo isso implica para Riobaldo em uma relagéo com a mem tia, que é tam- bém sua telagio com os signos, com a linguagem. Nesse sentido, cle cumpre aquele gesto eferuado por Jean-Jacques Rousseau e per- cebido por Starobinski como o antincio da modetnidade: 0 do perigoso pacto do eu com a linguagem, a “nova alian¢a” na qual 0 homem se faz vetbo. Se Riobaldo é um ser pactario, S¢ ele vive até 08 iiltimos extremos 0 conflito de ser ou nao set pactario, esse conflito fundamenta seu processo de conheciment© € autoconhe- cimento: a busca da identidade que se processa através desse peti- goso pacto do eu com os signos. As dificuldades que Riobaldo enfrenta para en Contato modo de se narrat é proveniente do contetido da sua exp eriéncia, BS apreendido, pois 0 “vivido” nao est4 no contetido exPteSso, Mas na maneira através da qual ele é reconstruido ¢ expre $80. O suceder desgovernado implica em uma ordem lingiiistica Besgovernada — que no segue os parimetros estabelecidos, princig2almente os da causalidade positivista. Nesse sentido, 0 método autcobiografico de Riobaldo difere daquele que se inscreve no inicio des te género, con forme encontrado nos esctitos de Rousseau. Se acfui se presume uma ttansparéncia entre a interioridade do eu e o& Signos, se se ina EVELINA HOI pode reviver pela meméria o encadeamento das causas e dos fel tos que determinam seu destino, 0 método “desgovernado’ Hobaldiano € nio linear, associativo, seguindo a ordem da impor tincia das impresses registradas na meméria. Pot isso, ele podk afirmar que “tem horas antigas que ficaram muito mais perto d. gente do que outras, de recente data.” (p. 78). Neste sentido, Riobaldo coloca-se como pertencente a campo do saber que desloca a nogio de um sujeito com pleno do- minio do seu discurso, O seu longo didlogo nao pode ser comprcen= dido através dos pressupostos positivistas que nortearam a autobio- grafia do século dezenove. A sua fala é uma fala paradoxal, esta fo: da doxa, do ordindtio, porque congrega em seu espaco elementos antag6nicos, dramatizando-os de maneira exemplar. Ela no é uma fala plena, no sentido de sex peoduzida por um sujeito que tem pleno dominio do que diz, Aqui, o sujeito transcendental, 0 principio teleolégico do século dezenove, ¢ deslocado em funcio de um sue to que se atticula e nasce, que é produzido enquanto enuncia sua falax texto. No entanto, a fala de Riobaldo é enunciada no sentido de encontrar uma plenitude que, paradoxalmente, s6 pode ser atin- gida pela travessia da linguagem, pela encenacio dos signos: so- mente a busca de sentido torna os signos plenos, Todavia, no. nivel desta busca de sentido, Riobaldo sabe que entte 0 vivido, o efetivamente experimentado, ¢ aquilo que € movimentado pelos signos, existe sempre um impasse: a natureza ambivalente dos signos. Eles dizem simultaneamente mais ¢ menos do que deveti- am dizer. A travessia tragica e conflituosa de Riobaldo pelo set= Yio-mundo correlaciona-se, no presente de sua enunciagio, a essa agonica travessia pelos labirintos da linguagem que aciona simul- pois a vida vivida desloca-se pata se tornar vida impr ilu lotta. A vida vivida, alias, s6 ¢ vivida enquanto deixa seu tastro no corpo do mundo, na escritura do mundo. Por outro lado, a morte d ido, de ido. P tro lado, t contador de estérias, ele tem um dominio dos recursos que utiliz: 105 [INDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAPICA juneamente a caréncia e a plenitude dos signos Entre o viver ¢ 0 nartar subjaz um conflito e um didlogo. Autobiografar-se, corporificar-se em signo escrito é 0 dilema mai- or vivenciado por um eu. Duplo movimento de morte e de vida, a NO COLpO fiz fulgurar a vida apreendida pelos signos. Esse dilema, essa (luplicidade, esse perigoso pacto do eu com a linguagem, é o fun jamento da escritura autobiografica ¢ biografica. Riobaldo, como ctatio, assume 0 pacto autobiografico, pois, autobiografando-se, pode decifrar aquilo que nao é entendivel. Mas, em outra diregao, a fala de Riobaldo é plena. Como 1a interlocutor, Ento Riobaldo narra “desgovernado” para seduzir porque viveu “sucedido, desgovernado” ou porque, através desta forma de narrar, ele da mais énfase aos acontecimentos experi- enciados? Que tipo de narrador € Riobaldo? Como natrador, ele nao apresenta certezas, O objeto de sua narracao é miltiplo, pois diversos fios se entrelagam formando nao apenas uma hist6ria —a de um eu que encontra prazer em se natrar, pot mais que seja dificultoso descer ao inferno de sua propria inti- midade — mas, através da histéria desse cu, diversas histérias se encaixam, se espelham, se afitmam, se ilustram, Como narrador autobiografico, Riobaldo busca, por mais “torta”” que seja sua nar- racho, organizar a sua expetiéncia. Mas, como os fatos de sua expe- riéncia estio misturados com a experincia dos outros, Riobaldo, ao tempo em que organiza os acontecimentos que dizem tespeito a 106 EVELINA HOISH 107 IDI) SERT-40: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIC sua subjetividade, ele também reordena a expetiéncia do outro Hi se fosse apenas um espectador, e a transmite posterior- reotdena a geografia fisica e social do sertao. Desse modo, ui Hie como se fosse uma informacao jornalistica, O narrador multiplicidade de episédios € trazida a cena. A rememoragio livional, entretanto, quer conservar o que foi narrado, ¢ 0 ou- diversificada, diz simultaneamente do individual ¢ do coletivo, do € € dominado pelo interesse de assegurar a possibilidade de e do outro, Assim, o pacto autobiogrifico de Riobaldo é muito luzir — fundar a cadeia de uma tradicao — 0 que ele ouviu. plo, pois na experiéncia do outro — a que nao é a dele, mas di isso, ressalta Benjamin, é importante o papel da memoria, diversas outras personagens do romance ~ esta também represent iderada por ele como “a mais épica de todas as faculdades” da a experiéncia do leitor e de qualquer sujeito. O senhor é este sign 10), vez que “ela tece a rede que em tltima instancia todas as que introduz no cenario da natrativa a possibilidade do leitor rept wins constituem entre si.” (p. 211). Para Benjamin, a memétia sentar-se na historia, que nao é apenas a do protagonista: é a desk nyente do narrador épico pode aproptiar-se do curso dos Prazerosa ao seu prdprio eu, recuperando também sua biografia Walter Benjamin (1987, p. 198), em seu ensaio “O narrad consideracées sobre a obra de Nikolai Leskov’, estuda a posicio fecimentos e testituir-lhe a experiéncia. Ora, Riobaldo pode set caracterizado como possuindo tracos parrador tradicional. O que ele conta é frato de sua experiéncia, nartador tradicional, salientando que € a expetiéncia que constitu errincia pelo settio, O neologisno erringa, usado muito apro- arte do narrar, Todavia, Benjamin assinala que sao cada vez mais mente por Kathrin Holzermayr Rosenfield (1993) no sentido as pessoas que sabem natrat, pois “as acdes da experiéncia est&o' jo” e de “vagar”, busca sinuosa, sintetiza a fala de Riobaldo, baixa”, O narrador, ao passar uma experiéncia, o faz com o int ilo simultaneamente 0 contetido e a forma do que é narrado: de revelar uma verdade — um conselho — extraida da substanci Hfalso”, “etrado”, ou por “palavras tortas”, “desgovernado”, sua vida, Pot isso, Benjamin encontra neste tipo de narrador lo assim significante e significado, sujeito ¢ linguagem. A erranca, bio: 0 que ele narra, subtraido da sua experiéncia ou do que um out ja no espaco fisico do sertio ou na cena do didlogo com 0 Ihe conta, traz um ensinamento, tem um valor moral e serve de ef ator — sua errnca signica c literdria — é exemplar da travessia selho para 0 ouvinte. Mas, 0 que considera Benjamin, é que “aa ial e, nesse sentido, pode servir de conselho para o interlocutor- nartar esta definhando porque a sabedotia —o lado épico da verd — esta em extingao.” (p. 200-201). O narrador classico é assim -leitor. E uma acio modelar do dificultoso ato de vives, pro- das reverberagdes maléficas ou benéficas que 0 eu sofre em zado porque a sua funcio é falar para seu ouvinte de forma ex yessia, em sua jornada para o infinito. plat. O nartador do romance, ao conttatio, j4 no possui A expetiéncia de Riobaldo é tecida com a substancia da ex- dade de falar exemplarmente; ele nao é mais atuante da agéo iin do outro — toda a galeria de personagens que juntamente conta: transmite uma informagio extetior 4 vida que ele as} ip Atravessou 0 sertao-mundo — ou simplesmente dos “causos” UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 109 im mais ampla, no sentido de que ele € capaz de iltiplas situagoes vivenciadas, ¢ n@0 pode ser também consi- que ele ouve H Se contar ¢ reproduz na sua fala, porque ontém uma licio ° I moral: voc! F be orientaga moral: provocam a perplexidade - S40 para o interlocutor-ouvinte. Desse mod ado cas ‘obaldo faz i + esse a © papel de guia, norteando a travessia do int ot pelas veredas do serta vi lo sertao. Através de s oe barrangui i s de suas reminis eito Riobaldo, ia, mas , que se inventou “ , mas bia”? ‘neste gosto, de idéia” ¢ vive de “ 5 gosto, de Beis 4 de “range rede”, assume uma das feicheat nde sertdo: veredas € comp: a 10. valorizado por Benjamin, figurando entre os mesttes B } ig a mém sang religides, Por isso, ele Jiestze, pois na sua concepgao, “mestre nio 6 quem quem de repente aprende.” (p. 235). adre meu Quelemém que exerce © de Riobaldo. B atra- simultinea, de mestre € conselheixe que Riobaldo conhece a dourrina da reencarnacio, produz pata o interlocutor como situ- o aprendizado do viver. os “causos” que re] plares, imprescindiveis para texplicita que “Compadre meu Quelemé » (p. 366). Durante 0 desenrolar da narrativa, ¢ ensinamentos e conselhos de conselheiros, E ; s. Ele pode dar conselho porque, como sint reflexdes do filé a : 1 mm = flésofo alemio, ele “pode recorrer a0 ac uma vi « ‘ida (uma vida que nao inclui apenas a prépti éncia, mas em ‘ — a grande parte a experiéncia alheia, O narrad or mila a sua substancia i mais intima aquilo eet quilo que sabe pot ouvir He nodes i = poder contar sua vida; sua dignidade é conté-l a. 7 (BENJAMIN, 1987, p. 221). Nao éat : a que se pode extrair uma teoria do qu selho © 0 papel do conselheito em Grande sertai 4 inqjiilidade. Juin pata o interlocutor 0 como ouvinte de uma tradi¢io, em, situando-se, portanto, propria az A medida que tece o que ouviu com sua bardo Riobaldo passa a dispor de uma ontat, porque no € apenas teptod cia, E, desse modo, 0 sgotivel de conhecimento para c suas reminiscéncias auditivas. lo de sua memoria, das [Alem disso, grande parte da experiéncia contada est marcada le sua wa orucis: tem experiénci ia que pode se tornar e WA eae pode se rornar exemplar, ¢ um conselho p: 7 a a ; qualquer circunstancia da vida, desde #Oprio corpo, nas cicatrizes redisposto a , que se est predisposto ao aprendizado. Por isso, “até de um gole d s gole de cachy ga” Riobaldo diz tirar um conselho. P O senhor escute meu coracio, pegue no meu pulso. os brancos... Viver — nao € — e sabe. Porque apren- produ, senhor avista meus cabelo muito petigoso, Porque ainda nfo s viver é que € 0 viver, mesmo. O sertio me depois me cuspiu do quente da boca 967, p. 443). de Riobaldo ‘or outto lado, ele sugere qi det-a- depois me enguliu, © senhor cxé minha nattagio? (ROSA, 1 ‘Ag marcas fixadas no corpo € na memoria No inicio da sua fal ioba firma que, materia) : s lacao, Riobaldo ai q ma que, em étii de religiZo, bebe “agua de todo tio.’ (p. 15), Esta disposicao, con- . 15). Es siCAo, co! EVELINA HOIS sdo sintomas visiveis e invisiveis dos acontecimentos imponderaveis da travessia pelos gerais, Essas cicatri- zes o forcam a manter com seu interlocutot-ouvinte um pacto de audiéncia (UTEZA, 1994) de trés dias, nos quais pode reordenar e compreender sua experiéncia e fornecer um ensino sobre o viver. Nesse sentido, a fala-escritura de Riobaldo emprenha-se de vida, pul- sa, dramatiza: — “o senhor escute meu coracio, pegue no meu pulso” — contamina-se com todos os elemen- tos fisiolégicos, psiquicos, que se manifestam na cena do didlogo, onde se presentifica o pasado, com suas dotes, softimentos, tristezas, belezas e alegrias, Mas, do ponto de vista da experiencia vivida, da vida vivida, € © Menino-Reinaldo-Diadorim que assume 0 lugar do mestre e do conselheito, Aliis, ¢ interessante notar que a palavra conselho faz parte etimologicamente do nome préprio Reinaldo, que provém do alemao — Ragin: conselho e Hard: duto, forte —, e que a palavta rejesti inserida no nome Reinaldo. (UTEZA, 1994, p. 279). A travessia pelo sertio se da entio sob o signo desse conse- Iheiro forte, duro, porque ¢ através dele que Riobaldo atravessa sua via crucis. A experiéncia de Riobaldo é assim desentranhada do seu corpo, da sua subjetividade, do mesmo modo como vivenciou © amor por Diadorim, que lhe penetrou em todo o corpo e se tornou para ele elemento essencial, natural, fisiolégico, vital, como 0 ar que se respira: Era, era que eu gostava dele. Gostava dele quando eu He WK ANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRATICA an fechava os olhos, Um bem-querer que vinhha do ar de meu natiz ¢ do sonho de minhas noites. O senhor enten- deri, agora ainda nao me entende. (ROSA, 1967, p- 116). Biografar-se detona esses batimentos cardfacos, essas vibra- s das pala- ges que latejam nos signos, nos tons e nas reverbera¢! ‘Yias, nas pausas, pontuacées, siléncios. Em todos os acotdes sonantes e dissonantes pulsa a vida. E com Reinaldo-Diadorim que Riobaldo vonhece simultaneamente a tristeza e a dor, anagramaticamente con- fida no nome de Diadorim, bem como as belezas € alegtias da atureza e da vida, pelo ato da contemplacio: “Aré aquela ocasiao, i nunca tinha ouvido dizer de se patar apteciando, por prazer de enfeite, a vida mera deles passaros, em seu comecar € descomegar dos véos e pousagao. Aquilo era para se pegar a espingatda e cagar. Mas 0 Reinaldo gostava: — now.” (p. 111). ‘A gtande aprendizagem de Riobaldo com Diadorim resulta er ambiguo de Diadorim, amor impossivel, simulta- > _ ele me ensi- 15 formoso pr6prio, do modo de s neamente demonfaco e divino, Demoniaco, porque interdito den- tto do cédigo moral do jagungo Riobaldo, ¢ porque © encontro com o Menino-Reinaldo-Diadorim é também 0 encontfo com seu ouiro, com o inominavel, é a confrontacao com as zonas Obscuras € sombrias de sua subjetividade, com seu lado hermogéno.’ Nesse sentido, Diadorim e Hermégenes se identificam e projetam o lado maligno e cruel da condicio humana do jagun¢o Riobaldo. Divino, porque vital como o sopto da vida que penetta pelas nati- nas, faz vibrar todas as cordas do coracio e se inadia pelo sangue, palpita e se derrama na fala-texto de Riobaldo, deixando o senhor- 4 113 2 BYE WWHh \eRT-IO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIC leitor no mesmo titmo pulsante, nidade, do ddio, do amor, é uma acio exemplar que adere a A fala de Riobaldo faz deflagrar as aceleracGes pulsantes éncias vivenciadas pelo senhor, ¢ com a qual cle pode interlocutor, ¢ ele mesmo traduz, através de uma encenagao ges hem se identificar e aprender. e de uma teatralidade mimica, as reagdes do senhor, acompanhat [im diversas passagens assinala-se a necessidade que tem Riobaldo do a sua narracao: o senhor ri; levanta-se para partir; toma nota wnfirmar o pacto de audiéncia com o senhor € de estabelecer com caderno} confirma que 0 diabo nfo existe; gesticula afirmando hia interagio comunicativa pot meio da expetiéncia telatada, As- tle indaga ao seu interlocutor: “Ao que, digo ao senhor, pergunto: ‘iu vida é assim? Na minha, agora é que vejo, as coisas importantes, sem caso curto de acaso foi que se conseguitam” (p. 98). E, mais nhecer algumas personagens citadas, como o alemio Wupes. O pacto de andiéncia que se estabelece entre eles 6 marca por um duplo gesto: por um lado, a importneia da presenca seahot nos campos gerais para a nartacio de Riobaldo; por ou te questiona: “Pata que conto isto ao senhor? Vou longe. Se 0 lado, a desconfianga constante sobre o ato de narrar para ior ja viu disso, sabe; se no sabe, como vai saber? Sao coisas que cabem em fazer idéia.” (p. 162). Ja em outro trecho, reconhece a importancia que tem 0 se- estranho, Em dltima instincia, essa desconfianca que perpassa fala de Riobaldo diz respeito a indaga por que natrar e p: que pitrar uma experiéncia que 0 outro nio vivenciou? Come srinterlocutor para acionar sua imaginagao, seu pensamento, para pode 0 senhor encontrar sentido para uma acio que nao foi sen: encher de sentido 0 que ouve, provavelmente nio pode tida visceralmente, que nao faz parte da sua propria via orudis d odificar ou decifrar a partir de sua propria vivéncia. Assim, ele corpo, que ele assiste como a um espeticulo? Este dilema é iwidera: “O senhor imaginalmente percebe?” (p. 40) para, logo em. dos diversos conflitos dramaticos que sustenta a cena do didlog rida, acentuar a importincla da experiéncia vivida: de Riobaldo com seu interlocutor. Entretanto, por mais que 0 conflito seja explicitado em di Como vou achar ordem para dizer ao senhor a conti- versas passagens, 0 que subjaz & fala de Riobaldo é a afitmacio, ¢ ators dlomemtite, ain dhrto ain en tirenn epee atémesmo a conviccao, de que através da sua narrativa o interlocutor: ram, no seguinte, na brumalva daquele falecido ama- pode empreender também uma travessia. Sua fala tem um caratet nhecet, sem esperanca em uma, sem 0 simples de pas- pedagézico, pois na sua experiéncia inscteve-se também a experi- satinhos faltantes? [...] Do sol ¢ tudo, o senhor pode éncia do outro, Do mesmo modo que ele conheceu e aprendeu conipletan espinado onquerseypodetenmlorees sobre a malignidade do “homem humano” nos diversos causos: nhor, é ter sido, vivido. S6 saiba: 0 Liso do Sussuarao que owin— causo do Aleiso, de Pedro Pindé e o menino Voltei, de concebia siléncio, e produzia uma maldade ~ feito pes- Firmino ¢ Jazevedao —a historia de sua travessia pelos labirintos da soal (ROSA, 1967, p. 41-42). PE ANDr sERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 115 4 EVELINA HOI Riobaldo, nessas referéncias que faz ao seu interlocutor] je também recuperar a biografia do senhor-interlocutor — “na tor, introduz uma das questdes centrais da tematica do Gr i vida é assim?” — e, através dele, a biografia do leitor. Este sertao: a distingAo entre a experiéncia vivida ¢ a teflexao filos6fi todo de construcéo autobiografica de Riobaldo se torna exem- © especular idéia. Este aspecto tem sido, inclusive, objeto de es jay da metodologia operada pela literatura configurada como do da critica rosiana, que distingue um saber formal, livres vilura biogréfica, metaforizado pela presenga do senhor-doutor nos campos ger: O método tiobaldino de construir a escritura biografica a eum saber extraido da experiéncia. Riobaldo declara em divers passagens da sua conversa que inveja a instruco do senhor, wrtir de um movimento pendular que oscila entre a m4xima ihjetivacao e a maxima objetividade dos acontecimentos, elemen- quetia ter a instrugio do senhor, homem culto vindo da cid pendula que se inscreve na produgio literésia, é percebido tam- Bntretanto, procede de maneita diversa, assumindo 0 toa m como uma das formas do pacto de audiéncia com o semptdrio ¢ prepotente, didético, de que efetivamente é cle dil erlocutor-leitor. Nesse sentido, Riobaldo, como bom narrador — erie ealactelaatrentnerqe © o/eeiuido:/delumarexpena is mesmo no seu método de contar torto, ertado, desgovernado Unpaid airseen ded porque oy seuleon ode |cspecular iden iste uma metodologia — ele se utiliza de acontecimentos lingiiisticos, claborar ¢ reelaborat a experiéncia vivida, coloca-o em co: ymo a fungio fatica da linguagem, através da qual testa a possibi- d de secumin diante do eeu interlocutor ioloapell de lade de uma comunicabilidade entre ele e 0 ouvinte. E nestes 66 ieidentes da comunicagao que introduz suas consideragdes gene- tre-protagonista na cena do didlogo. Riobaldo, como habitante do sertio, é a personagem so no “Didlogo Guimaraes Ros acdes sobre o viver, procurando extrair do interlocutor um into de colaboracan, no sentido de entendet o que muitas vezes decla- encorpa aquele sentido expr no ser inteligivel. Assim, cle procede: Giinter Lorenz”, afirmando a concepgao rosiana do sertio € settanejo como signos da intemporalidade, enquanto o sen eA. é _ ad Esta vida é de cabe¢a-para-bait é - parece assumir as caracteristicas citadinas da circunstancialid: cabega-para-baixo, ninguém pode me : : : cad a dir suas perdas e colheitas. Mas conto. C i Assim, 0 que Riobaldo talvez saiba e 0 senhot nao saiba é tt ie s conto, Conto para mim, conto para o s de te. yee a mon i ‘nhor. Ao mn eI a pe formar uma experiéncia individual em uma experiéncia coleti quando bem nfo me enten: } : ; det, me espere. possivel e passivel de acontecer no cenario do sertio-mundo, por isso que Riobaldo faz acompanhar o relato dos acontecim tos mais particulares e subjetivos de generalizagoes sobre a vid Esta vida esta cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; nao sabendo, nao me entendera, Que is ( ee f E : so merece que se conte? Mitido ¢ mit = o viver, de consideracées gerais sobre histérias que ouviu con < itido, caso 0 se isha ea nhor quiser, dou descti¢io, Mas nf oedee ndo-as com sua propria historia, Biografando-se, Riob: t ice, May ogo cenusco a entrel: 116 Vida, e guenra, é 0 que é: esses tontos movimentos [..] senhor nao sabe; Conto ao senhor é 0 que eu sei e 0 mas principal quero contar é 0 que cu nao sei se sei, e que pode ser que o senhor saiba. (ROSA, 1967, p. 112, 119 e 175). A medida que Riobaldo tece a teia das relagdes entre a vivida e a vida narrada, exp6e didaticamente no diélogo com § ouvinte-leitor a complexa trama entre 0 viver e o aprender a vi como sendo 0 proprio viver. Aqui a palavra diélogo ganha out reverberacdes seminticas, no se referindo apenas ao didlogo d mitico, mas acentuando a qualidade polifdnica ¢ plural de Riob se constituir, encenando-se e tepresentando-se plurissignifi tivamente no espaco de sua autobiografia. O pacto de colaboragao dramatiza na cena dialégica — teia de signos que precisa decifrar, E. aqui, uma outta ligio autobiografica é dada por bartangueito do Sao Francisco, licio aprendida com o compa meu Quelemém, contraparente do velho Cara-de-Bronze, que © menino Grivo para fazer uma viagem para conhecer e decifi “quem das coisas”. Riobaldo conta mitido, detalhado, para extr cada acontecimento de sua existéncia, a “sobre-coisa”, a “outta sa”, Os § io apenas pretextos para compreend forgas que mobilizam o existit em cada circunstancia vivida. ‘ignos aparentes s O senhor tolere minhas més devassas no contar. F.ig- noriincia, Eu nfio converso com ningném de fora, qua- 9 senhor fia”, “o senhor tece” “senhor poe ponto” — é no intuito de compartilhar com o senh VAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 117 Pi iNpn sertao: VERE se, Nao sei contar dircito. Aprendi um pouco foi com © compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer no é 0 caso inteirado em si, mas a sobre- coisa, a outra-coisa. Agora, neste dia nosso, com o se- nhor mesmo — me escutando com devogio assim — é que aos poucos vou indo aprendendo a contar cottigi- do. E para o dito volto. ROSA, 1967, p. 152). Além de revelat uma metodologia no processo de jvelamento das forcas que atuam, desenham e inscrevem na tela mundo a escritura da vida — forcas invisiveis, misteriosas, anta- Inicas, misturadas — 0 que Riobaldo necessita é de discernimento Ini reconhecer em cada situagao as forcas que o impulsionaram, endo-o esbarrar em situagdes as mais improvaveis e paadoxais. ligaio de Riobaldo, no que se refere a este aspecto, é, como a de les Deleuze (1976), de origem nietzschiana, quando afirma que fenémeno, um acontecimento, um signo, tem tantas interpreta- 8 quantas forem as forcas que dele se apoderarem em um deter- ado momento. A busca do conhecimento de si passa pela decifracao da tra- dessas forcas que atuaram nos diversos momentos da hist6ria ida, e pelo desvelamento dos signos que escreveram a vida, recu- sando-os através da memoria. E: para isso que Riobaldo estabe- © com o interlocutor-leitor um paclo de audiéncia e wm pacto de boracdo @ pode com ele intercambiar experiéncias, Dentro da spectiva dialégica e plural do discurso de Riobaldo — “mestre jo € quem sempre ensina, mas quem de repente aprende” —, a ha dialégica é simultaneamente o lugar em que sua histéria é 48 — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 119 GANDE SERTAO: VEI 118 EVELINA HOISEH) exemplar para 0 outso, e 0 outro é a condigio para ele se des Devassar esse mar de terzitérios” é, em primeira instincia, side migeaco am Aliavessar o tettitério dos signos, tarefa que Riobaldo empreendera velar, Como um herdi de mil faces, a trav settio-mundo é apenas uma etapa de sua jotnada. No present com a pasticipacio e colaboracio do senhor, no intuito de decifrar 0 que cle necessita é de encontrar “a sobre-coisa”, a “outt jjuem foi o jagungo Riobaldo e que forgas o impulsionaram, para coisa” de cada caso expetienciado; uma tarefa, portant {jue esbarrasse no meio dos hermédgenes: interpretativa. E para isso ele situa ¢ situa o interlocutor no ¢ nario das aventuras épicas do jagunco Riobaldo, teatralizam De tudo niio falo. Nao tenciono relatar ao senhor minha uma aco, presentificando-a aqui e agora, no momento da s vida em dobrados passos; servia para que? Quero é ar- falacio: “E pata o dito volto. Como eu estava, com o senh mat 0 ponto dum fato, para depois Ihe pedir um conse- no meio dos Hermégenes.” (p. 152). lho. Por dai, entao, catego de que o senhor escute bem e ssas passagens: da vida de Riobaldo, o jagunco. Narrei Atecaialetenies mitido, desse dia, dessa noite, que dela nunca posso achat © esquecimento. O jagungo Riobaldo, Fui eu? Fui e no fui, Nao fuil — porque niio sou, no quero set. Deus este- ja! ROSA, 1967, p. 166). Estar no meio dos herméenes é, para Riobaldo, uma chaves para interpretar a sua vida.. Como um dos signos que te trama da aventuta do jagunco Rioknaldo, ele € a encarnacio das fo: do mal que impulsionaram a traviessia pelo sertio. Assim, es Esta citagio clucida uma questiio basica da autobiogratia explicitada meio dos hermégenes € estar no meio de uma encruzilhada si ir divetsos tedricos, principalmente por Starobinski. O discutso auto- onde se efetua um outro pacto que: é de decifracdo de si mesmo. yrifico estd sujeito a aco niveladora do tempo, as implicagdes do pacto de decifragiio, sustentado no pactio de atdiéncia ¢ no pacto de colabo faz parte de uma busca de ideratidade que se opera atray itanciamento dos eventos, aos desgastes do esquecimento, as distorgGes meméria. Se a autobiografia é uma auto-interpretagio, 0 contar a sf alteridade, do outto — este estramho senhor silencioso — ¢ di PressupSe uma mudanca, uma transmutacio que justifique o im- pria linguagem, espaco no qual Riobaldo se exibe. Por iss io confessional. Entre o eu anterior ¢ 0 atual existe uma diferenca, € 0 indaga ao seu interlocutor: “Mas,, 0 senhot sério tenciona di mobiliza este desejo confessional é a decifracio dessa diferenca. a vaso este mar de territérios, para sortimento de conferir aldo se pergunta: “O jagunco Riobaldo. Fui eu? Fui e nao fui. Nao existe?” (p. 23). A metifora do “mat de tertitérios” supe = porque nao sou, nao quero set. 4 do settio, promovendo-uma maiios densidade e espessura& te Por outro lado, Riobaldo procura intercambiar com o se- Ete a na jor a posigiio assumida em outtos momentos: aqui o senhor é 120 EVELINA HOISH solicitado a dar conselhos. O que Riobaldo quer é “armat o pont de um fato” isto é, armar uma teia de signos através da qual el possa, juntamente com o senhor-leitor, encontrar a “sobte-coisa, outta-coisa”. Essa caracteristica da escritura autobiogréfica foi percebida p Consuelo Albergaria, ao estudar os elementos do “ocultismo” pr sentes no texto rosiano, tomando como tema nuclear para o dese: volvimento de sua abordagem a problematica do aprendizado d ponto de vista esotético. Nessa perspectiva de anilise, ela mostra con a meta final perseguida por Riobaldo configura-se numa perspecti de tealizagio metafisi que, do ponto de vista adotado para a abordagem, passa por uma iniciacio esotética, Nao cabe aqui discu essa petspectiva, entretanto, as consideragdes da autora de Bruxo Jinguagem no Grande sortio sintetizam esta trajetbria, reconhecida préptio Riobaldo, ¢ considerada como condicio pata a emergén da escritura autobiogrifica: © primero Riobalty, isto 6, 0 que viveu os fatos do tempo do narrado, sofre um processo de modificagées no seu modo de ser ¢ de se relacionar com o mundo. A mudanca decortida implica que, ao tempo da narrativa, a sua visio seja conformada a partir de novos dados extraidos da sua experincia ¢ retocados pela teflexiio. Narrando, Riobaldo re-vive os fatos jé agora filtrados pela meméria e, na me- dida em que narra, organiza-os, dando a sua vida e 4 sua nartativa um novo valor. Isso confere & nartativa do ex- jagungo uma dupla constituic&o: ao lado da estoria dos fatos hist6ricos, surge uma glosa eivada de ponderagées MANDE SERTAO: VEREDAS = UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 124 de cunho ético. [.] © segundo Riobaldo, ou seja, © barranqueiro-narradox, en- contra-se no tiltimo estigio da escala percorrida da de- manda do conhecimento. (ALBERGARIA, 1977, p. 145). O aptendizado de Riobaldo é um aprendizado que atravessa » universo dos signos, ¢ ele s6 chegard a uma compreensio da sua oxisténcia se puder decifrar os signos que tecem a escritura de sua Vida, por mais incessante que seja o processo interpretativo — sua lravessia para o infinito. Enquanto declarar que para “muita coisa importante falta nome” (ROSA, 1967, p. 86), ele se submeter’ a sucessivas travessias signicas, que correspondem a capacidade que fem © sujeito de se nomear através da linguagem, no sentido de encontrar, para cada percepgao, sensacio ou reminiscéncia do vivi- sam corpotifica-las e traduzi-las, fornecendo- do, os signos que pos as para as indagagdes que ele no foi capaz de com- Ihe as respos reender no passado. Como enfatiza Riobaldo: “vivendo, se apren- de; mas 0 que se aprende, mais, é s6 a fazer outras maiores pergun- ei meus fantas- tas.” (p. 312). Atravessar seus fantasmas — “atrav« mas?” (p. 365) — implica nessa acfo incessante de materializar signicamente os seus desejos e pulsdes, de corporificar as forgas que atuaram, mobilizando as agGes experienciadas: tarefa infinita da inter- ptetagio de sie do cuidar de si, através da esctita de si, Foi por nfo conhecer essas forcas que 0 jagungo Riobaldo sen- tia-se como que lancado pelo acaso, emputrado para as ages mais imponderiveis, Explica-se assim a freqiiéncia com que aparece na sua fala 0 verbo esharnar e seus detivados. Por nfio saber pensar com poder -“Ao que, naquele tempo, eu nao sabia pensar com poder. Aprenden- 122 EVELINA HOISEL: do eu estava? Nao sabia pensar com poder — por isso matava” (p. 262) — isto é, por nao saber traduzir em signos a trama das forcas que conduzitam ao encontro com Diadorim e a vida de jagunco — “de sei sempre jagungo nio gostava” (p. 53), “Diadorim eta um impossivel” (p.371)—é que, em tempo de posterioridade, Riobaldo tera que devas: esse mat de tetrit6rio — 0 territorio da linguagem — para afastar a nebli na que turva sua visio. Se ele diz que “Diadotim é a minha neblina” (p. 22), & portanto, o signo mais obscuro e esttanho de sua vida; justamente Diadorim que mais Ihe propiciar4 a travessia na bus de si mesmo, attavés da exteriotizacio ou corpotificacio dos signo! que ele emite. Diadotim € 0 signo mais enigmatico para Riobaldo, por nele se encorpam signos diversos, antagénicos, F um signo polissémict imprevisivel, ambiguo. Desde 0 corpo fisico de Diadotim, mulh travestida em homem, até as suas acdes, sentimentos, tudo é plural paradoxalmente, singular, A teia de signos que enttelacam a travessi pelo sertio do jagunco Riobaldo converge pata a figura de Diado: e é a partir dela que ele ter que devassar um mar de tertitérios p: mapeat as zonas obscutas onde as forgas se acumulam, exalando seu sentido, Os rastros deixados por Diadorim esto simultancam« te no corpo fisico de Riobaldo, na sua meméria e na topografia d sertio — “Diadorim me pés o rastro dele para sempre em todas ess quisquilhas da natuteza.” (p. 25). Desse modo, é em diversos niveis cadeia significante que Riobaldo tera que destecer os fios p interptetar e entender o seu encontro com o Menino-Reinald Diadorim ¢ com o sistema da jaguncagem, Sua travessia signica ‘uma busca de resposta para sua indagacio: “Por que foi que eu c nheci aquele Menino?... O senhor pense outra ver, repense o b CRANDE SERTAO: 4$ — UMA BSCRITURA BIOGRAFICA 123 pensado: para que foi que eu tive de atravessar o rio, defronte com 0 Menino?” (p. 86). Gilles Deleuze (1987, p. 4), em Prouste os signos, considera. la recherche du temps perdue como 6 livro de um aptendizado, de uma busca da verdade, definindo aprender como “considetat ura ma- {éria, um objeto, um ser, como se emitissem signos a setem decifta- dos, interpretados.” Nessa perspectiva, assinala que a obra de Matcel Proust nao esta baseada na exposigao da meméria, mas no apren- dizado dos signos, que é uma atividade de decifracio, ja que tudo que ensina emite signos e todo aprendizado é uma interpretagio. Porisso é que, no dizer de Deleuze, todo aprendiz é um “egiptélogo”. Se existe uma pluralidade de formas de aprendizagem, de qualquer forma que se aprenda, é sempre por intermédio dos signos. E é ainda © signo que forca a pensat. Deleuze define 0 ato de pensat nao como decorréncia “de uma simples possibilidade natural”, mas como telacionada 4 atividade interpretativa: Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvol- ver, deciftar, traduzir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver so a forma da ctiacio pura. Nem exis- tem significagdes explicitas nem idéias claras, s6 exis- tem sentidos implicados nos signos; ¢ se 0 pensamento tem o poder de explicar 0 signo, de desenvolvé-lo em uma Idéia, é porque a Idéia jé estava presente no signo, em estado envolvido e enrolado, no estado obscuro da- quilo que forca a pensar. (DELEUZE, 1987, p. 96). Sem algo que force a pensar, sem algo que violente 0 pensa- REDAS — UMA PSCRITURA BIOGRAFICS 125 124 mento, este nada significa, pois mais importante que o pensament \iupcio de impresses e reminiscéncias que o fazem pensar, deci- € 0 que “da o que pensar”, Por isso, conclui Deleuze, “o Liimtiv d (hur, aprender, conhecer, ‘Tempo redescoberto é a palavra forrar: impressOes que nos forca O gosto de especular idéia corresponde a essa travessia signica a olhar, encontros que nos forgam a interpreta, expressdes que no ) que cada personagem, cada lugar, cada acontecimento, detona e forcam a pensar.” (p. 95, grifo do autor). somnpe através de impressdes, expressdes, enconttos, olhates, vozes, E assim que se introduz nas reflexdes deleuzianas a relaca¢ patos, tostos, reminiscéncias, que sio metaforas do vivido em busca entre lembrar e aprendes, pois, os signos sensiveis da meméti rntido, encenando e dramatizando uma autobiografia. sao os tragos da vida. Os signos proustianos estabelecem citcul: Em Grande sertao: veredas, como em A fa recherche, 0 senhot- mente essa interacio: “aprender é relembtar, mas relembtat nadi lor tera que passar também por esta travessia, e 0 encontro com mais é do que aprender.” (p. 65). E, novamente, essas colocac6e la personagem, cada lugar, cada acontecimento é uma prodigiosa contornam outro /eitmotiv da Recherche, que jf foi assinalado ante i de signos imbricados uns nos outros, emaranhados como jerdglifos a serem decifrados, Nesse processo de identificacio, jobaldo, © senhor ¢ o leitor se tornam egiptélogos a penetrar em otmente como cerne da problematica autobiografica: “eu aind nao sabia; eu compreenderia mais tarde.” (p. 90). A recordacio entio a faculdade capaz de fazer interpretar os signos: a lembran iptas, forcados a uma travessia interpretativa, que se configura como ca, quer seja voluntétia ou involuntétia, intervém em momento na expetiéncia biografica ou autobiografica, Como em todo pro- decisivos do aprendizado. sso de dramatizac’o, conflitos, tensdes, deslocamentos e identida- Os signos mobilizam a procura da verdade nestas zona s se estabelecem na alteridade dos signos, pois como eu posso me obscuras em que se penetra “como em ctiptas, pata af deci icenar na experiencia do outro? Como eu posso me representar na hierdglifos ¢ linguagens secretas.” (p. 91). Pot isso, pata Deleuze, didura das reminiscéncias alheias sem atravessar meu proprio terti- figura do aprendiz, daquele que faz uma iniciacio, é a do egiptiloge brio de signos, sem mobilizat 0s corpos nos quais 5 Na leitura deleuzeana da Recherche as personagens adquirem impo ver ¢ que invadem 0 espago da esctitura do outro, que é também tancia 4 medida que emitem signos a serem decifrados, mas of eu, porque nele me encontro? signos tém um sentido sempre implicito, implicado, que deve se Como posso me encontrar na experiéncia de Riobaldo? desentranhado dos seus corpos. ‘© encontro e na relagéo de Riobaldo e Diadorim? Que olhos, Sao essas consideragdes que propiciam situar a aprendizat jie maos, que voz, que corpo encoberto, travestido, que acdes, gem de Riobaldo como um processo que atravessa 0 universo do luc atitudes contemplativas, que amor impossivel escritura mi- signos insctitos na meméria, acionados pela presenga do senhor tha vida? E esses signos sao, para mim-leitora, reminiscéncias de mas fotcados a uma circulagio, a uma mobilizacio, pela violent uc? Da vida vivida factualmente? Imaginariamente? De desejos 126 EVELINA HOSEL encobertos? Reprimidos? Desyelados? Para que experimentagao agOnica dos limites do ser me langa este encontro? Para que set Vo me transporta? Que revelagdes me faz? Quem é Diadorim? Diadorim € 0 mais prodigioso emissor de signos. Signos cobertos, encobertos, velados, desvelados. Por isso, como a nebli- na, ele tutva o olhar de Riobaldo. E, por exceléncia, um signo ambiguo, que encorpa em si as qualidades mais paradoxais, anta- gonicas, plurais e singulares, Corpo de mulher travestido de ho- mem, é ele que propicia a dramatizagao biografica de Riobaldo e a encenagio dos demais signos. Se é a chegada do senhor que deflagra a cena do didlogo-mondlogo, é Diadorim que a sustenta a movimenta. Riobaldo nio pode falar sobre o sertio sem atra- vessar este corpo polimorfo e polissémico, pois seus rasttos estto insctitos para sempre na geografia fisica, social, cultural ¢ mitica do sertao, recuperados pelas reminiscéncias de Riobaldo, Desde a pluralidade de significantes que se instala no proceso de nomea- cho dessa personagem inominavel —O Menino, O Moco, Reinaldo, Diadorim, Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins — até a entrada e saida dos demais personagens do cenatio lingiiistico, todos os signos sio recortados ¢ contornados pelo feixe de pala~ vras que entrelacam situagoes, acontecimentos, conflitos, paixdes e sentimentos por Diadotim. Cada um dos nomes desta petsonagem evoca 0 momento Zona to- preciso, uma regio particular, um detalhamento de uma pogtifica, um acidente geografico, capturados através da interligagio do objeto do desejo que se detrama, se espalha, invade o espaco do sertio — fisico, geografico, subjetivo e intimo do narrador. B Diadorim quem mobiliza 0 processo de destertitorializacio ¢ SCRITURA BIOGRAFICA 127 RANDE SERTAO! VEREDAS — UMA tettitorializagao geografica ¢ subjetiva de Riobaldo. Eo signo que forca de maneira mais poderosa 0 processo de decifragio, e que exige Riobaldo se inventar no “gosto de especular idéia” (ROSA, 1967, p. 11). Em cada momento, situacio, acontecimento, os signos emitidos por Diadorim — yoz, olhar, rosto, mios, gestos, aces, sussurtos, siléncios — imprimem na fala-texto de Riobaldo modula- cdes distintas, pulsagées lentas e aceleradas, ritmos sonantes e dissonantes, opacidades e fulgores, ecos do passado que itrompem e invadem a fala-escritura, receptaculo que se insemina e dissemina as pulsdes erdticas do narrador. “BE ainda hoje, o suceder deste meu coragio copia é 0 eco daquele tempo; e qualquer fio de meu cabelo branco que o senhot artanque, declara o real daquilo, daquilo — sem. traslado...” (p. 351). Desde 0 primeito encontro com o Menino, no porto do Rio de Janeiro, que a biografia de Riobaldo é tracada pelo imponderavel, pelo imprevisivel, e atravessada por uma trama signica que o fora a decifrar, a conhecer, pela marca da estranheza e da diferenca que permeia seu olhar. Ai pois, de repente, vi um menino, encostado numa frvore, pitando cigarro. Menino mocinho, pouco menos do que cu, ou devia de regular minha idade. ‘Ali estava, com um chapéu-de-couro, de sujigola bai- xada, e se ria para mim. Nao se mexeu. Antes fui eu que vim para perto dele, Entio ele foi me dizendo, com voz muito natural, que aquele comprador era 0 tio dele, ¢ que moravam num lugar chamado Os- Porcos, meio-mundo diverso, onde nao tinha nasci- PIANDE seRr. 128 i EDAS — UMA ESCRITURA BIOGRARICA 129 do, Aquilo ia dizendo, e eta um menino bonito, cla- » clo infinito, a lemniscata, antecedido da palavra travessia, sugere a ro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes, siociacdo deste processo de aprendizagem como correlato ao pto- Mas eu olhava esse menino, com um prazer de compa- sso incessante de decifracio signica que se efetua no tempo e no ahia, como nunca por ninguém eu nio tinha sentido. sspaco, que € infinito. Por isso, os signos emitidos por Diadorim ‘Achava que ele eta muito diferente, gostei daquelas fi- jertencem tio singularmente a ele, constituem sua diferenca, e rees- nas feigdes, a voz mesma, muito leve, muito aprazivel. vevem biograficamente qualquer ser na sua aventura existencial. Porque ele falava sem mudanga, nem intengZo, sem so- Se Diadorim é percebido pela diferenga, se este é 0 seu pon- bejo de esforco, fazia de conversar uma conversinha mobilizador e agenciador dos demais signos, é esta também a adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de aura que o identifica a Riobaldo. A diferenca é 0 ponto onde estas que ele nao fosse mais embora, mas ficasse, sobre as juas fisionomias se tocam, onde elas se ptojetam. Durante 0 desen- horas, ¢ assim como estava sendo, sem parolagem miti- Jar de sua falagio, Riobaldo pontua este traco que o caracteriza e da, sem brincadeira — s6 meu companheiro amigo empre foi evidente na sua relacio com os demais jagungos: “O desconhecido, (ROSA, 1967, p. 80-81). enhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo o mundo... Tin quase que nada nao sei. Mas desconfio de muita coisa” (p. 15). "Eu era diferente de todos? Era.” (p. 430). ‘A sua diferenga esta definida principalmente pelo seu pendor Desde a primeira aparigao, a primeira petcepgio, a image do menino se da sob 0 signo da diferenca, do desconhecido, do’ esttanho, Esta marca que lhe foi confirmada pelo pai quando aind: era crianga — “Sou diferente de todo mundo. Meu pai disse que ew para pensar, traduzir, decifrar, e seu olhar, enquanto elemento nu- carego de ser diferente, muito diferente...” (p. 86), confirmada pot clear da atividade perceptiva, ¢ 0 olhar aberto para a diferenca, 0 Riobaldo: “Ele, 0 menino, era dessemelhante, j4 disse, nio dava estranho, o outro. Assim, ele pode captar pelo olhar, pela audicao € mindicia de pessoa outra nenhuma” (p. 82) — constituiré o principal pelos demais sentidos, a dessemelhanga do Menino-Reinaldo- traco de Diadorim e é 0 niicleo prismitico de onde se irradiam os Diadotim desde 0 ptimeito instante que o conheceu. Por outto demais signos, e € também 0 ponto virtual pata onde eles conver- lado, é 0 encontro com o estranho — o senhor-interlocutor — que gem, Esse movimento espiralado ¢ labitintico de produgio e circu- propicia a constituigio do longo didlogo que se trava na cena da lagio dos signos em Grande sertio: veredas & © elemento que mais escritura, esttanho didlogo no qual o leitor se reconhece na sua tra- forca o movimento de deciftacao ¢ interpretacio, rornando-o ines- vessia signica: “falar com o estranho assim, que bem ouve ¢ logo gotavel. Esse processo é, inclusive, explicitado graficamente no final longe se vai embora, é um segundo proveito: faz do jeito que eu da fala-texto de Riobaldo, na sua travessia para 0 infinito. O simbo- falasse mais mesmo comigo.” (p. 33). 130 EVELINA HOTS! GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAPICA 131 Se Diadorim é 0 mais poderoso emissor de signos na exp por Eres, pelo principio de vida, Autografar-se, biografar-se no riéncia de Riobaldo, este é 0 mais poderoso tradutor e decodificad espago da escritura poética corresponde ao esplendor da vida no dessa teia-neblina que turva sua visio, pela superabundancia di fulgurar dos signos. significantes ¢ de sipnificados com que se entrelaca. Mas a sua capa: Tia fala-esctitura amorosa de Riobaldo que vivifica Diadorim, cidade de decodificar, de destecer 0 ematanhado de fios urdido! que o glotifica. Por isso, o softimento de Riobaldo, sua via awa, pela ttama de suas telagdes com Diadorim, corresponde & sua ca drama experienciado no Grande sertio, & petpassado de jibilo e de pacidade de organizat, reordenar esses fios na sua fala-escritur slegria, Se a matéria vertente que compée a tessitura de sua fala-escri- tornando-se, conseqiientemente, o mais extraordinirio gerador di tura esta miticamente tepresentada pelo tema da queda (da motte) € signos, a mais possante usina produtora de sentido. Nesse aspect da tessurreigao, é 0 desejo de ressurteigdo que forga, aciona e sustenta pode-se estabelecer analogicamente uma telagio entre Diadorim 4 produgio dos signos. Diadorim morre, mas a fala de Riobaldo, 20 Riobaldo, lendo-os como metéforas suplementares de uma mes travesti-lo em palavras, vivifica-o e ressuscita-o. H, neste momento, atividade, que é 0 processo artistico, 0 ato criador enquanto possi Diadotim nao é mais tio somente 0 Menino-Mogo-Reinaldo- bilidade de autografar-se. Diadorim-Maria Deodorina. E um signo artistico que revive indefi- nidamente, incessantemente, no jogo da linguagem, no espago da leitura, onde cada leitor, a partir de sua relacio com a linguagem, ‘A natureza polimorfa e ambivalente dos signos ptoduzido pot Diadotim cortesponde @ natureza polissémica do signo litera: encena-o, teencena-se, dramatiza-se. E a acko de Riobaldo que brota de sua contemplagio — tio e artistico. Ao congregar em seu significante as polaridades mais antagOnicas do ponto de vista do saber e do pensamentos constitu: idos, a imagem de Diadorim remete para esse signo plurivoco, q destecer, tecer, tetecet a trama de sua vida a partir dos registzos da acolhe em seu espago os aspectos mais inconciliéveis, Por outt memiéria — torna-se andloga ao ato criador, de onde emerge a es- lado, no papel de decodificador ¢ produtor de signos, Riobaldo, critura poética, cenirio no qual o escritor agoniza, morte e ressusci- como sujeito poético (aquele que nasce no emaranhado de signo: ta, Vive o que Ihe faltava: a perenidade, pois, no espago da esctitura que produz) é cortelato a figura do escritor, na sua relagio amoros biogrifica, como quer Joio Guimaries Rosa, “as aventuras no com a linguagem, com 0 texto que produz e que, inevitavelmente, tém inicio nem fim”, levando Riobaldo a confirmar: “comigo as 56 se constitui enquanto texto ou escritura a partir de uma travessia coisas nfo tém hoje e ant’ontem amanha: é sempre.” signica. Atravessar é transmutar 0 corpo fisico em corpo escrito, ‘Ao acenat com a possibilidade de ler, através de Diadorim e Riobaldo, os possiveis signos de uma metéfora que traduz a relagio do escritor com a linguagem, pode-se definir a escritura biogrifica corporificar-se graficamente na escritura, metamorfo...tosear-se & letra, som, ritmo, pausas, tons, timbres, modulagées, é um percutso pontuado pela presenca de Thanatos, que s6 se efetiva impulsionado como espaco da diferenca ¢ do suplemento. O que Riobaldo declara GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA BSCRITURA BIOGRAFICA 133 132 EVELINA HOISH obre esta questo é que ele vive o que lhe faltava, desconstruit e reconstruit a trama do vivido para seduzir seu exemplarmente s\ seja, a cena do didlogo com o interlocutor no espaco do livro é repeticao na diferenga de sua vida passada, capaz de torné-la int interlocutor-leitor. Riobaldo utiliza-se de uma pluralidade de recursos cénicos € vel. O presente, onde se desenrola 0 diilogo com o senhor, é a po dramaticos como dicgio, entoagio, mimica, pantomima; ctia tensio, sibilidade de decifrar 0 passado, de presentificé-lo; e presentificat revives, isto 6, viver na diferenca, em tempo-espaco diferidos. Nao trata de reproduzir a mesma experiéncia, de encenila (trazer Ac da linguagem) e emolduct-la tal qual foi vivenciada, Trata-se de p\ duzit sentido, B, portanto, uma outra experiéncia, uma experiéns suspense e constrdi peripécias para atrair a atengio do seu ouvinte, entrelacando sua fala-esctitura com uma diversidade de recursos capa- ges de torna-lo um habilidoso encenador-natrador-escritor, O senhor ja que me ouviu até aqui, v4 ouvindo. Por- suplementar: “Tudo isto, para o senhor, meussenhor, niio faz razi que esta chegando hora d’eu ter que lhe contar as coi- sas muito estranhas. nem adianta, Mas eu estou repetindo muito miudamente, vivend .] Sobre assim, ai corria no meio que me faltava.” (p. 401). Os tragos que se embaralham na meiméria, como tegis dos nossos um conchavo de animagao, fato que ao senhot retardei: devido que mesmo um contador ha- bilidoso nao ajeita de relatar as peripécias todas de uma vez, (ROSA, 1967, p. 288-289 ¢ 315). do acontecido, irrompem de maneira entrelagada, fazendo e que cada experiéncia apareca traduzida pelo feixe de outzas exp ancias que a clas se superpdem, Desse modo, o método autol grafico de Riobaldo no segue a licio metodolégica de Jean-Jac Rousseau, que opta pela cronologia ¢ linearidade na tecupera Com um olhar sensivel pata captar o estranho, Riobaldo delineia, no espago da escritura, esta marca da diferenga que o iden- dos fatos, Exemplarmente, 0 método constituido por Riobalde Aifica a0 senior. Como significante literatio, € nele que se corpotificam, faz a partir de rupturas que sio significativas de como a experié contracenados por Diadotim, os tracos do escritor que se dissemi- se processa na meméria, isto é como se atravessam 0s signos jam na esctitura biogrifica, inseminando os seus signos. Além de memétia, de como estes signos se corporificam no espago do li ser habilidoso natrador-escritor, em diversas passagens do Grande Enfim, dizem da identidade e alteridade entre os signos da vida da esctitura biogrifica. Assim, como signo que sugere no espag esctitura essa relagao que o produtor mantém com sua produc Riobaldo aparece como 0 agenciador e encenador dos demais nos. Bele quem comanda a entrada ea saida dos diversos signific na cena textual, Como bom narrador-encenador, ele sabe col sertao se estabelece uma cottelagao entre Riobaldo e a atividade do ‘escritor: ele faz versos, gosta de poetar, escreve bilhetes ou cartas ara Zé Bebelo, acentuando este traco biografica que inscreve Gui- aries Rosa no seu texto. Por outro lado, a prodigiosa meméria de Riobaldo, que de tudo se recorda minuciosamente, é um elemento jue trai a sua constituigo de mero narrador personagem, e desvela SHANDE SERTAO: VEREDAS = UMA TB! 134 TURA BIOGRAFIC 135 postura descentrada que enforma a linguagem de Grande sertao: © set que, por detrés dos bastidores da cena textual, é 0 produt judas, constituindo-se fora das polaridades dicotémicas do pensa- encenador de todos os signos, inclusive do proptio Riobaldo: J mento estabelecido. ‘A mobilidade dos significantes e dos significados compée uma ‘onstelagio de signos que se entrelacam, promovendo um transbor- tlamento de simbolos, imagens, valores histricos, sociais, religiosos, filoséficos, éticos, acionados pelos valores estéticos que escrituram a biografia de Riobaldo enquanto tessitura de representagdes simbéli- cas. Observa-se, entretanto, a necessidade que tem o autor de encon- {rar a palavra precisa para desvelar o significado das acdes, dos seres, as coisas, O excesso de significantes através dos quais se nomeia um. Guimaraes Rosa. Outros biografemas*instalam-se na escritura do Grande s quando saia pelo sertio fazendo entrevistas, anotando as infor g6es colhidas dos vaqueitos, e que se tornaram matetial literdtio diversos textos, inclusive do Grande sertao: veredas. A constelagao dos signos mesmo objeto ou um mesmo set — como, por exemplo, o demo — provém da necessidade de se depreender 0 sentido que se embaralha Ao comport sua biografia, o batranqueito Riobaldo enco se emaranhado de signos. E como se os signos fossem insuficien- tra-se envolto em uma tessitura de signos que ele tera de descos n tes pata aprender a coisa, os seres, os objetos, ¢ a pluralidade de pata compreendet os percursos labitinticos que impulsionaram bilidade de capturi-los na sua acdes do jagungo Riobaldo, A dificuldade que cle encontra p: nattar, isto é, para biografar-se, provém da multiplicidade dos si fos que encorpam esse tecido e da mobilidade que eles tém a palavras para nomeé-los fosse a poss multiplicidade dinamica, A essa superabundancia de significantes e de significados, alia- se um outro veio lingiifstico, que apela para a capacidade de sintese que adete a estrututa do signo, tornando uma ‘nica palavra capaz de nomear o inominével, como a palavra nonada, que faz. explodit oscilar entre sentidos de polaridades distintas, Muitas vezes, mesmo signo € possuido por forcas contrarias, ficando assim du- plamente marcado, dificultando a sua decifracio. Por outro lado, observa-se uma superabundancia d do nada 0 universo poético de Grande sertao: veredas enquanto cons- telacio de signos. significantes, ¢ um mesmo objeto ou um mesmo ser é nomeado a B assim pensando no gesto de Riobaldo como anélogo ao pattit de uma pluralidade de nomes, dando uma espessura & lingua: gem que exige um intérptete astucioso para desbastar as diversas do crindor, que instaura 2 escritura do mundo, que se pode com- pteender a presenga do vento no Grande sertao e 0 seu papel camadas superpostas de significagio, Esta capacidade de flutuagio amalgamadot. Os signos se mobilizam, as constelacdes se tefazem, dos signos esti sintetizada na afitmagio de Riobaldo de que “tudo Eenio ” e que “este mundo é muito misturado”, Delineia-se aqui as personagens se encontram e se desenconttam, as ages ganham ee EVELINA HG Ui ANbE SERTAO: VEREDAS — UMA RSCRITURA BIOGRAFICA 137 uo do sertio-mundo — Riobaldo citcunscreve suas aventuras a ala de teatro” — é a indiciada pela pluralidade de nomes que consisténcia ou se desfazem, pelo movimento desse sopro que, enttetanto, é também desagregador, Além de ser um elem: que se repete no universo do Grande sertao, pela tecorténcia do substituem uns aos outros, e cada um encorpa uma face, uma fivio “o diabo na tua, no meio do redemunho”, 0 vento é qué Jiucara que, por seu intermédio, leva-se ao palco da linguagem a cenacao de determinados valores, signos que constituem o perfil soral, existencial e filos6fico da galetia de personagens, e que defi- om principalmente a estrutura moral de quem os produz, a sua jio de mundo, 0 seu universo teligioso, histérico, ético e estético. Na sua travessia pelo sertio, diversos nomes agregam-se ou bsticuem 0 nome de Riobaldo. A carga semintica e simbdlica anuncia os acontecimentos, impulsiona a acao das personagens, api sentando-se como uma fotca a comandar o destino das pessoi como 0 encontro de Riobaldo com 0 Menino, quando 0 vento confunde com o seu destino. carater amalgamador do vento manifesta-se pela manei como Riobaldo expressa a existéncia do elemento imponderivel qu © remete pata as ages mais paradoxais. A freqiiéncia com que lesse nome ja foi objeto de diversas leituras, que estudaram o papel fala apela para o verbo esharrar e seus detivados, dando idéia de s lo nome préprio nos textos rosianos.? O que interessa, do ponto lancado, set jogado ou set induzido a fazer alguma coisa sem le vista da constituicio da escritura biografica, é invocar este aspec- pleno dominio do seu querer, define essa forca geradora que permit para compreendé-lo como recutso de encenagio do sujeito e, a fala, 0 signo, a possibilidade da histéria do jagunco Riobaldo, portanto, da linguagem que o dramatiza, e como a mobilidade dos contemplacio do barranqueizo Riobaldo a recordar sua hist6tia, bio Jgnos se torna procedimento cénico ¢ teatral para representar gtafando-se, autografando-se, biografando-nos. lescentramento do sujeito no sentido de afirmar uma identidade. Por outro lado, retomando-se a metifora de Diadorim como O processo de conhecimento de si e do outro passa por este su- signo da literatura, pode-se compreender como ele se ctia desse ‘porte fisico, tangivel, que representa o sujeito, que o presentifica na signo, é amalgamado pela fala de Riobaldo, que lhe da forma e guséncia, que o imprime na cena da esctitura, desvelando-o ao nivel ilo vivido e do vivivel. Se Riobaldo, conforme M, Cavalcanti Proenca (1973), € esse Rio-Baldo, frustrado, e também caudaloso na sua fala que corte in- cessante, ele é o significante que resume biograficamente a origem desse protagonista, Filho bastardo, recebe da mie Bigri alguns signos que, posteriormente, constituirdo a sua identidade: alegria, justica, amor, bondade: “A bondade especial de minha mie tinha sido a de amor constando com a justica, que eu menino precisava. Ea de, mesmo no vida. Do nonada nasce Diadorim, forca propulsora das agdes d Riobaldo ¢ de sua biografia. Se se pode eleger um ponto constelar através do qual se irrae diam os signos que entrecruzam a malha de valores que esctituram a vida do jagunco Riobaldo como metifora grifica da vida, essa clei¢io recai na aco das personagens principais de Grande sertao, nos. seus caracteres plurissignificativos ¢ nos significantes que os nomei am. Pois, a pluralidade de mdscaras que cada um assume no grande CRITURA BIOGRAFICA 139 138 RY. W INDE SERTAO: VEREDAS — UMA E punir meus demascios, querer-bem as minhas alegtias. A lembra lo de Zé Bebelo: “Tu é tudo, Riobaldo Tataranal Cobra voadeira...” dela me fantasiou, fraseou — s6 face dum momento — feito gran 256). As ramificagdes onomésticas de Riobaldo ainda perpassam antavel, feito entre madrugat e manhecer.” (ROSA, 1967, p. 34). diversos momentos, a importincia da imagem da mie aparect ilo Urutu-Branco, signo que reafirma a sua qualidade de chefe dos gungos: “Ao pois, quem eta que ordenava, se prazia e mandava? Eu, muitas vezes, ela se confunde com a de Diadorim, sugetindo nhor, cu: por meu renome, o Urutu-Branco...” (p. 335). amor incestuoso, desmesurado, que traz a cena do Grande se Cada nome diz, assim, de uma forca, de uma qualidade, de figura de Edipo, ele também bastardo, 4m valor que se impGe ao protagonista-narrador, em uma determi- O nome Riobaldo é 0 significante com o qual ele sinteth vida circunstincia existencial, Por isso, quando cle sente, na batalha do ign J sua origem, o seu nao pertencer, nao se filiar: “Riobaldo, homem, 40, que nao esta na forca que o qualifica como chefe, ele sem pai, sem mie, sem apego nenhum, sem pertencéncias.” (p. =# questiona sobre o nome Urutu-Branco ¢, logo apés, confirma: “E No desenrolar de sua histéria, entretanto, outros significantes Urutu Brancol... Urutu Brancol... Urutu Brancol... Cujo era incorporando A constelagao dos signos que produzem esta pers mesmo, Eu sabia, eu quetia.” (p. 419), gem, fornecendo um significado suplementar, capaz de mapeat fi 4 no final da narragio, antes de introduzir na cena da escritu- gem, gnu 6es imprevisiveis de seu ser. Assim, quando crianga, era conhel 4 descricao da batalha final do Paredao, ele restabelece a sua traje- como Baldo, Para Zé Bebelo, ele é Professor, signo que o dis Oria de jagunco, sintetizando-a a partir dos nomes: “Mas, no dutava los demais jaguncos, porque ele sabe ler e esctever e, por este M menosmente, eu esquentava outra vez meus altos planos, mais Jagungos, por > sy vo, torna-se sectetatio de Zé Bebelo. nite; eu tefervesse. Eu era assim, Sou? Nao creia o senhot. Fui o Na travessia pelo sertio, todavia, nenhum nome se fixa hefe Urutu-Branco— depois de set Tatatana e de ter sido 0 Jagun- protagonista, O sentido de travessia é sustentado por essa mol ) Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidio. dade dos significantes, que dizem de uma transformagio ou Hoje eu queto é a fé, mais a bondade.” (p. 412). uma diferente etapa na sua jornada. Por set bom atitador, receb Este movimento constelar, em que se define a busca de uma nome de Tatarana: “E pois, conforme dizia, por meu tito me ilentidade através dos signos que nomeiam o sujeito, traz, para a peitavam, quiseram pér apelido em mim: primeiro, Corzidor, de writura de Grande sertéo, um traco que permite tefletir sobre o Talarana, lagarta-de-fogo. Mas firme nao pegou. Em mim, apd Matuto do signo, segundo a concepgao siobaldo-rosiana. Ence- quase que nfo pegava. Seré: eu nunca esbarro pelo quieto, feitio?” (p. 126, grifo do autor). Mas ‘Tatarana é também cobra-voadeita, outro sentido ¢ indo o descentramento do sujeito, € como se um tnico nome, gno que o representa € 0 presentifica, nao fosse suficiente para efinir a multiplicidade de faces que constitui um eu, explicitando jue se nomeia a bravura de Riobaldo na luta, conforme denomilj sincla um aspecto da aventura autobiografica: o carater intermind- q 140 vel e primordial da interpretagio de si Essa pluralidade de nomes, esta heteronimia que, aparen mente, revela um percurso linear da histétia de Riobaldo, superpi ‘os signos no acontecer da travessia pelo sertao e é somente momento de teflexio e leitura que ele pode reconstruir a trajeté ordenando-a como se houvesse um desenvolvimento cronol6git em que um signo substitui o outro. Essa heteronimia, que demon tra o estado e a consciéncia de uma alteridade, é um dos mei através do qual a escritura rosiana desempenha um papi desconstrutor em relacio ao estabelecimento de um sujeito uni racional e eficiente, que legitima o pensamento constituido e as idt ologias que comandam e sustentam o poder estabelecido, Este ge to, que pode ser assinalado como uma das marcas do pensament contemporinco, é © taco constitutive do signo artistico, que acentua, todavia, a partir da modetnidade. E este é também trago que afirma 0 carater transgressor do signo literdtio que, a0 s configurar como biografia, dramatiza exemplarmente o sujeito hi terogénco, plural, instavel, que existe no corpo social ¢ histérico d sertao-mundo. Riobaldo é 0 signo que define a capacidade que tem o soripial de estilhacar-se na constelacao de seus signos, no esgatcamento d sua escritura, Se essa dissolucio subjetiva pode se tornar um risco pata o sujeito, quer seja o produtor, quer seja o receptor, vez que 0 discurso literétio fica margeado pela psicose, a dramatizacio dessa fragmentagio através da linguagem é uma via para se expetienciar e conhecer a multiplicidade do cu. Nesse sentido, a travessia biografica ¢ signico-literaria se apresenta como um ato de crueldade, no sentido concebido por Antonin Artaud: uma dat RITURA BIOGRAFICS RANDE SERTAO: VEREDAS — yucessidade implacavel, uma consciénoia licida, ama espécie de conscién- tia aplicada, apetite de vida e vigor césmico5 1 € por isso que se pode entio compreender a escritura literatia nao como doenca e morte, mas como satide e vida grafada: bio-grafia. Esta é a direcao assu- mida por Artaud € todos aqueles que encontraram no signo urtistico o jabilo da vida: vivida e vivivel. E por isso que Diadorim é, também, um signo constelar, plutissignificativo em sua fisicalidade e cozporeidade, que irradia uum feixe de reverberagdes semanticas. Nomeia uma das mascaras da personagem que se fragmenta signicamente em O Menino, O Moco, O Menino-Mogo, Reinaldo, Diadorim, Maria Deodotina da Fé Bettancourt Marins. Diadorim é 0 nome que diz de uma realida- de vivida subjetivamente por Riobaldo, realidade sentimental, amo- rosa, ambivalente, conflituosa e imponderavel. Diadorim encena e contracena com Reinaldo, signo mas- culino que reveste a feminilidade expressa ambiguamente pelo significante Diadorim: “O Reinaldo era Diadorim — mas Diadorim era um sentimento meu.” (p. 236). Se o Menino e o Moco mapeiam a tegiao de uma historia que se anuncia e j4 prenuncia uma ambivaléncia, que attavessara todas as aventuras do jagun¢o Riobaldo, Diadorim e Reinaldo afirmam uma dualidade vivida conflituosamente no nivel da realidade subjetiva e objetiva. E por causa de Diadorim que Riobaldo entra pata a vida de jagungo e essa circunstincia histética e objetiva tem repetcussdes importantes do ponto de vista da sua constituicio como sujeito histérico. A travessia tiobaldiana traspassa, simultaneamente, 0 corpo signico de Reinaldo-Diadorim, em torno do qual gita a constelagao dos signos da vida. Signos que dizem de Deus, do demo, do bem, SST 143 142 BYBLINA HOI SR ANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIO do mal, do pacto, do sertio, do medo, do petigo, da coragem, lilhagada, de um eu plural, e nenhum deles é suficiente para ex- dio, do crime, da traig&o, da raiva, da violéncia, da lei, do destin essar a plenitude da dor e do sentimento amoroso do jagun¢o da crueldade, da malignidade, do inimigo, do amor, da amizade, baldo, Diante do inerte corpo feminino, somente uma excla- moral, da justica, da vinganga, inia, pucio revela plenamente o inominavel: da seducao, do incesto, da guerra, da paz, da fidelidade, da prud cia, da obediéncia, da cegueira, da visto, da bondade, da religiio, Eu estendi as maos para tocar naquele corpo, e estre- meci, retirando as miios para trés, incendiavel: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo culpa, do sofrimento, da dos, da tristeza, da paixio, da transgressil da desordem, da ordem, do profano, do sagrado, da honra, poder, do saber, da saudade, da utopia, da alegria, da morte, as partes, Mas aqueles olhos eu beijed, ¢ as faces, a boca. Adivinhava os cabelos, Cabelos que cortou com tesou- ta de prata... Cabelos que, no s6 ser, haviam de dar vida, da natureza, da flora, da fauna, do inferno, do paraiso, vit6tia, da gléria. Mas no nome de Diadorim transbordam os signos de para baixo da cintura... E eu nfo sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo: — “Meu amotl...” (ROSA, 1967, p. 454). tealidade que, além de ser vivida subjetivamente no plano do int dito, também deixa seu rastro no desempenho do jagungo Riobaldi B através de Diadorim que Riobaldo descobre seu lad A revelacio do corpo feminino projeta-se no cendtio de Grande fio: veredas teconstituindo a dimensio mitica da personagem, con- agrando-a, No batistétio que registra o nome de Maria Deodorina da contemplativo, apreciador das belezas da natuteza, pot puro delei € ptazer, como também esbarra na malignidade humana. O significante Diadorim recobre, pot sua vez, a feminilid 6 signo que encobre, ¢ também des- de de Maria Deodorina, nome no qual se inscreve 0 vivivel e qu Be -Hirncolpe Mining Asneenns cela e aponta para uma histéria miildipla: a que foi e a que nao foi. A motte é 0 momento em que uma revelagio se realiza, pois quando Riobaldo pode compreender a natureza de seu sentimen- to amoroso, dando sentido ao passado. Entretanto, este ¢ também ttaz para o espaco de Grande sertao uma outea cena da hist6 vivida subjetivamente por Riobaldo. Com a morte, 0 mome de desvelamento do corpo feminino de Diadorim-Mati Deodorina langa o protagonista, bem como o leitor, em realidade imaginaria onde as muinas da histéria vivida se misturat ) momento de uma supressao, de uma auséncia: a perda de com as possibilidades da historia vivivel, do que poderia ter sid iadorim. Nessa perda, a pulsio amorosa de Riobaldo e no foi, Nesta superposicao de realidades e potencialidades pek {tansubstancia-se e, através da palavra pottica, ele consagra 0 passa- didas, todos os nomes se totnam insuficientes e precétios pa do ¢ promove a tevivificagao da historia, tornando-a infinitamente chamar Diadotim, Todos expressam fragmentos de uma hist6t presente no signo verbal perenizado na letra grafada. Mais uma vez 5 RA BIOGRAFICA 14 144 EVELINA HO Se ip SERTAO: VEREDAS — UMA BSCRI al lene signos, sendo cot entos rate Jnalar pela ambivaléncia dos signos, s ndo constantemente element i : a i im. A rela- Rea? au atelacao dos jensiio dramatica nas relagdes entre Riobaldo ¢ Diadorim. ee ee La ERE Eo amorosa de Riobaldo e Otacilia é, para Diadorim, forea gerado- o de querer confirma-se 0 carater interminavel da aventura biografica: em ) dle citime, de saiva, de violéncia, chegando ao pont Fee > 0, tar Riobaldo com um punhal. Se Otacilia é “remanso” do 1 rio bravo”, correnteza do destino te, no qual o leitor se presentifica, autobiografando-se, Na sua ambivaléncia constitutiva, Diadorim faz parte da c telacao dos signos do amor de Riobaldo, contracenando jadorim identifica-se com “um ‘ « lanca Riobaldo na guerta: “Por que era que eu precisava de it pot ante, com Diadorim e os companheitos, atras de sorte Nhorinhé e Otactlia, etapas diferentes de um mesmo impulso etoti Se Diadotim se reveste com o signo do amor demoniaco, inte ates stes Gerais meus? Destino preso.” (p. 152). Nhorinhé é 0 signo do amor sensual, carnal, contudo, i- rente do de Diadorim, A sedugio de Nhorinha, ainda que que © impossivel, Otacilia, moga encontrada na Fazenda Santa Catatina, amor petmitido, a noiva com quem Riobaldo se casa quando dei vida de jagungo. A imagem idealizada de Otactlia, recuperada di ‘9 atravessa o lado obscuro, demoniaco, m seu estudo “O amor na obra de fa- sas vezes pelas recordagées de Riobaldo, evoca um outro nivel Juptuosa, na ome de Diadorim evoca. E: ‘i Suimaries Rosa”, Benedito Nunes aborda esta pluralidade de es na vida amorosa de Riobaldo, assinalando: realidade, que atravessa o conflito do nartador no que diz respeit set ou nao ser jagun¢o. Para Riobaldo, a figura de Otacilia ap: constantemente associada a calma, a paz, que se espalha inclusive p natureza, cujos signos geograficos incorporam tracos biogtificos d O jagungo Riobaldo, de Grande sertdo: veredas, conhece trés espécies diferentes de amor: o enlevo por Otacilia, trada na fazenda Santa Catatina, a flame- diversas personagens: Otacilia sendo forte como a paz, feito aqueles largos remansos do Urucuia. [...] Mas eu cacei melhor cotagem, e pedi meu destino a Otacilia. E ela, por alegria minha, disse que havia de gostar era s6 de mim, e que o tempo que carecesse me esperava, até que, para o trato de nosso casamento, eu pudesse vir com jas. Sai de 14 aos grandes cantos, tem- po-do-verde no coracio. (ROSA, 1967, p. 236 ¢ 151). Na travessia amorosa de Riobaldo, Otacilia se deixa também. moga encon jante e dibia paixio pelo amigo Diadorim, ¢ a recor dagio voluptuosa de Nhorinbé, prostituta, filha a quela Ana Duzuza, versada em artes magicas. Sto tres amotes, ttés paixdes qualitativamente diversas, que chegam pot vezes a interpenettar-se. [..] A telagao on essas trés espécies de amor, diferentes formas ou esta- gios de um mesmo impulso exético, que € primitivo € caético em Diadorim, sensual em Nhorinha e espiti- tual em Oracilia, traduz um escalonamento semelhan- * momento em que se 28 0 passado, ritual de insercao autobiografi ca na constela- dos signos, amor carnal conserva-se no espititual e, em| diferentes, bora qualitati interpenetram-se, harmonizam-se, como 6s ¢ rentemente antagdnicos de Otacilia ¢ Nhorinha. Ao Diadotim como esse amor cadtico © ptimitivo, Benedi encontit nessa personagem o trago metifora do signo artistico, Signo a $40 amorosa com a lingua, ele reine 4 potéacia de um devie que explode as diferenciacdes, que aqui se identifie imor0so, nascido de un 0s elementos indiferene ‘no nada: caos gerador ptodutora de signos: olhos, as feigbes, as mios, o cheit, 1 maneiza de andat, a a cada um executa, os Sentimentos, a geografi nos dinamizadotes das relagies de Riobaldo, reconhecé-los ¢ decifté-log na Produzido, cada timbre de vo. ia que habitam, ¢ € por isso, ele te Sua tavessin biografica. Cada 148 EVE dentro da propedéutica biografica de Riobaldo, Cada personagem aptesentada na sua ambivaléncia construtiva. Nessa muttiplicida cada uma tem uma matca que a distingue das demais, e é através di que citculam determinados valores do ponto de vista filos6fico, mo: e estético de Riobaldo. Mesmo quando ele enumera para 0 interlocutt o nome dos componentes do bando de jaguncos de Zé Bebelo, do seu proprio bando, cada um é apresentado com uma caracteris| ca que o distingue dos demais. E Riobaldo € o olhar que pode cap essa singulatidade que individualiza cada um no bando. pot is que, quando termina de desctever todos os componentes de s bando, ele exclama: “Meus filhos.” (ROSA, 1967, p. 412). Nes episédios, Riobaldo apela para um procedimento sintético de co truco biogrifica, demonstrando o valor de uma economia descr va capaz de captat o traco singular que presentifica cada jagunco, No cenatio do Grande sertdo, as forcas que impulsionam’ historia, sintetizadas na fala de Riobaldo “O resto, foi ondas” 381), podem set localizadas em determinadas personagens. E é1 produgio desses signos que compéem a constelagio social do sertl que Riobaldo declara sua aventura religiosa, moral, social e també politica, no sentido mais amplo desta palavra: sua telagao com a po a comunidade a que pertence. Nas aventuras pelo sertio havia desgovetno, a desordem interminavel — um “fundo sem fundo” que se revela na afirmagio: “o mundo nas juntas se desgoverna (p. 225). A cena com 0 interlocutor é uma oportunidade de conhe interpretar, isto é, otdenar a constelagio dos signos no espago lite! tio. E, neste cenatio em que se encenam as forcas embaralhadas circulam pelo sertio, Riobaldo se situa em um ponto da sua traves que The petmite discernir essas ondas e afirmar valores que devem s GRANDE SERTAO: VE RITURA BIOGRAFICA 149 buscados do ponto de vista individual e coletivo. Se no passado “a desordem da vida podia sempre mais” (p. 268), no presente ele en- contra um ponto de saida: “Como nao ter Deus?! Com Deus existin- do, tudo dé esperanca: sempre um milagre é possfvel, 0 mundo se resolve, Mas, se nfio tem Deus, ha-de a gente perdidos no vai-vem, ¢ a vida é burra.” (p. 48) ‘A maneira como Riobaldo recorta e encorpa o signo que dra- matiza cada personagem e acontecimento, posiciona-o como um tefle- tor que os ilumina, e em cada entrada e saida de cena, reflete sobre elas c através delas os valores que prioriza como constitutivos da biogtafia do individuo ¢ da historiografia social. Nesse refletir, projetam-se os valores humanisticos de Riobaldo, que delineiam também a construgio de uma utopia existencial e poética. Assim é que Hermégenes é 0 signo constelar onde circulam a desordem, a crueldade, a maldade, a traigao, o crime, a violéncia, © inimigo, a morte, o poder maléfico. No bando de jagungos, Hermégenes ¢ Ricardo representam a desordem intermindvel, corporificam as ondas maléficas: “Mas os hermégenes ¢ os cardées roubavam, defloravam demais, determinavam sebaca em qualquer povoal at6a, retiniam feito peste.” (p. 46). Ser pactitio, “esquipatico”, Riobaldo o caractetiza pela voz: “tinha voz que nio era fanhosa hem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que se safava. Assim — fantasia de dizer — 0 ser de uma irara, com seu cheito fedorento” (p. 93). Associado as forcas demonfacas, seu nome su- gere o de Hermes, filho da troca, do comércio. Como Kathrin Rosenfield (1993) as transparente familia mitica dos hermogéneos: silenos, satiros, pas, inala em sua leitura, Hermégenes é uma alusio pettencentes ao cortejo de Dioniso, correspondente romano de 150 EVELINA HO Februus ou Faunus. O sactificio a Dioniso é um cio ou uma cal animais que Rosenfield associa, pela sua carga metaforie: jaguncagem dos valentes “cabras”, considetando que: “Cao € cal sio simbolos de uma lubricidade impulsiva ¢ contriria as regras. civilizagio, de uma violéncia e perversidade naturais reinantes acampamento de Hermégenes” (p. 70). Contracenando com a figura de Hermégenes, estio J Ramiro e Medeiro Vaz, através dos quais se exibem os signos justica, da ordem, da autoridade, da obediéncia, da gloria, da zade, da prudéncia, da bondade, da honta, do poder benéfico. A figura mitica de Joca Ramiro configuta-se pelos signos constréem a personagem como “chefe cursado”, “dono de gl6 “as coisas todas regradas”, “Porque Joca Ramiro eta mesmo as sobre os homens, ele tinha uma luz, rei da natuteza”, “ Joca Rami feito fosse Cristo Nosso Senhor, 0 exato?!” (p. 32). Kathrin Rosen! (1993) 0 associa a imagem dos teis miticos da Idade Média — 0 Artur ou 0 rei Matcos — concebidos como garantia do bem, ordem e da redenc&o. Cavalcanti Proenca (1973) 0 decodifica atray da figura de Rolando, montado em seu cavalo branco como Jorge. Os tragos emblematicos de uma figura messifnica catact zam Joca Ramiro: “largos ombros”, “cara de grande e corada”, “aq les olhos”, “cabelos ptetos, anelados”, Ao contririo de Hermégem sua voz era “uma voz sem pingo de davida, nem tristeza. Uma que continuava.” (ROSA, 1967, p. 190). E interessante como Riobal apela constantemente para a voz como forma de caracterizacio sujeito. Ao continuar descrevendo a voz de Joca Ramiro, ele preci “B, quando ele saia, 0 que ficava mais, na gente, como agrado lembranga, era a voz.” (p. 190). GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 161 A voz é uma metonimia para a linguagem, enquanto es- paco de encenacio do sujeito. Anteriormente, observou-se como, para Paul Valéry, o timbre da voz ¢ 0 estilo sio marcas (jue presentificam o sujeito na linguagem e dizem mais do que a forma e o contetido dos signos. O timbre e o estilo, no descentramento do sujeito, sao tracos de uma presenga que nio pode ser captada enquanto presenca a-s Esse apelo constante de Riobaldo caracterizar as personagens pela voz, pelo timbre entonagao, revela o desejo de captar o trago mais peculiar de cada sujeito, numa Ansia de conhecer 0 outro, estabelecer sua identidade, os tragos que o instituem. Medeiro Vaz, por sua vez, inscreve-se constelarmente entre 8 signos que a luz de Joca Ramiro irradia, sendo conhecido como o “Rei dos Gerais”. Ele impunha obediéncia e confianca pela sua postura e prudéncia na sua relagio com as palavras: Medeiro Vaz “nao gastava as palavras, Nunca telatava antes 0 projeto que tivesse, que marchas se ia amanhecet para dat. ‘Também, tudo nele decidia a confianga de obediéncia.” (p. 26). Como Joca Ramiro, é um dos signos da justica — “saiu por este samo em roda, pata import a justica” —e pertence a uma nobreza em extingio: “Medeito Vaz era duma raca de homem que o senhor mais nao vé; eu ainda vi. Ele tinha conspeito tio forte, que perto dele até o doutor, o padre e 0 rico, se compunham.” (p. 37). Cavalcanti Proenca (1973) encontra na caracterizacio dess chefe sertanejo tracos medievais que o filiam a figura de Carlos Magno “em gibio de couro.” O que de alguma forma separa esses dois chefes é a geogtafia fisica: cada um se situa em uma margem do tio Sao Francisco. Cada uma dessas personagens tem importancia para a constitui¢ao da iden- 154 caractetiza os dois grandes chefes: Joca Ramito ¢ Medeizo Entretanto, € através dele que Riobaldo compreende o signifi da guerra sem fim e perversa do sertio, pois Zé Bebelo nao interesses definidos, a nao ser a propria guerra, Ana Maria Ma do (1991) chama atengio para a etimologia do nome Bebelo: Rebelo: retbellun, isto 6, estar sempre em guetta, inseri anagramatica que denuncia e reforca as ages desse chefe jagunt O estudo dos diversos pontos constelates do Grande serl uma tarefa impossivel de ser realizada numa so leitura, ti multiplicidade de signos que envolvem o leitor no seu pete labirintico pelo universo da linguagem. No tecorte aqui efetua clegeram-se alguns poucos signos, no sentido de mostrar como, constituicao da escritura biogrifica, 0 ovr é primordial para o jeito se representar simbolicamente. Fazer petceber a identidade pela diferenca, pelo desvio outto, pela cena dialégica, é uma das caracteristicas do projeto apteende a literatura como escritura biogtafica. E através do out que, na esctitura biografica, se dramatiza um eu neutro, impesso. indefinido, significante vazio, no qual posso me inscrever biografie mente, No movimento de citcunsctever em um eu uma diversidas de cus, Riobaldo tecorre a outros signos que alcam sua biografia plano intemporal ¢ trans-hist6rico, fazendo-a vivivel por qualqu pessoa. Tais signos so retirados das diversas tradigGes (literdria, fil séfica, religiosa, popular etc.), ampliando sua irradiacdo constelar, pro movendo um espessamento que faz da esctitura de Grande serfda, veredas um palimpsesto a set interminavelmente decifrado, tal a ampli tude dos seus desdobramentos, Este movimento escreve a genealogia da escritura, sendo objeto de reflexao posterior que er ya uma constelacio de signos, A AINDE SERTA0: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA ‘Ao tracar sua biografia, reescrevendo tracos ja inscritos na wradicao, Riobaldo procede, mais uma vez, de forma exemplar no refere & maneira pela qual a literatura se constitui como bio- fia: mobilizando a linguagem do inconsciente, encena e dramati- ignificantes vazios que podem set preenchidos pelo leitor. Nesse sentido, a literatura possui um componente mitico, 0 significante vazio, elemento subjacente a sua estrutura, detectado por Lévi-Strauss (1967) em telacio as mitologias. O significante vazio que estrutura 6 inconsciente, apreendido no discurso do mito, pode ser preenchido de maneiras distintas, em épocas ¢ locais também distin- tos. Entretanto, apesar da diversidade de personagens, situagdes € locais, as diversas variantes miticas, no seu diélogo interminavel, afir- mam aspectos universais do psiquismo humano’ Ao se etigirem como escritura biografica, os signos literatios empreendem esse movimento do particular pata o universal, do local pata o global, recorrendo a todos os processos conscientes € inconscientes, intencionais ¢ nfo intencionais, que inserem o set na sua travessia pelo settio-mundo, Pois, essa constelagao nao enlaga apenas a vida de Riobaldo e Diadorim. Ela circunscreve o homem na vida, que a linguagem poética captura ¢ consagra. No encaminhamento conceitual com que se tem definido a es- critura biogréfica, na constelacao de seus signos, no se inscreve apenas 0 vivido, mas um outro nivel de realidade experienciada no nivel do imaginatio, nas potencialidades nao acontecidas da histéria individual oucoletiva, Assim, pode-se compreender as reflexdes de Gilles Deleuze sobre “A literatura ¢ a vida”, considetando a literatura como um dei, uum processo que atravessa 0 rivive/ e 0 vivid eter rt 156 EVELINA HOM Escrever nfo é certamente impor uma forma (de ex- ptessfio) a uma matéria vivida. A literatura esta antes do lado do informe, ou do inacabamento. [..] Escrever é um caso de devit, sempte inacabado, sempre em via de fazet-se, e que extravasa qualquer matéria vivivel ou vivi- da. E um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa 0 vivivel ¢ 0 vivido. A esctita é inseparivel do devir: ao escrever, estamos num devit-mulher, num devir- animal ou vegetal, num devir-molécula, até num devir- imperceptivel. (DELEUZE, 1997, p. 11). Ao estudar a obra de Proust, Kafka, Virginia Woolf, Artaut citados como esctitotes que transformaram a literatura nesse devi pois descobtiram, sob as aparentes pessoas, a “poténcia de impessoal”, que niio é uma generalidade, mas uma singularidade n mais alto grau: um homem, uma mulher, uma crianga, Deleuze s lienta que, ainda que as personagens literérias sejam individuad: seus tragos individuais as conduzem para um indefinido, fazend hascer uma tetceira pessoa, um neutro, impessoal e imprevisto, n qual nos tornamos. A partir dessas reflexes, Deleuze define a lite= ratura como um empreendimento de satide, ¢ 0 escritor como médico, médico de si préprio ¢ do mundo, esclarecendo: “A satide como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo qué falta, Compete & fungio fabuladora inventar um povo. Nao se es- creve com suas proprias lembrangas, a menos que delas se faga a otigem ou a destinacio coletivas de um povo por vir ainda enterra~ do em suas traicdes ¢ renegades.” (p. 14). Esta funcio fabuladora de inventar um povo, de instalar um. GRANDE SERTAO: VI ITURA BIOGRAFICA 157 REDAS — UMA ESC devis, definida por Deleuze como um empteendimento de satide que faz do esctitor um clinico da sociedade, pode ser associada a concepgao riobaldo-rosiana da literatura como utopia. E 0 espaco lirerario como constru¢ao utépica torna-se possivel na medida em que se concebe vida, linguagem e literatura como inseparaveis. O que delineia a peculiaridade da utopia literaria, que se depreende na esctitura biogrifica, é que o ideal que a alicerca nao permanece no nivel da idealidade vazia, mas se consubstancia nas relagdes signicas, onde se anuncia o aparecimento de uma outra ordem no universo da linguagem. Essa otdem, no plano linguiistico, cortobota e sustenta o ideal de uma outra ordem em nivel histéri- co, politico, social, teligioso, moral. Em diversos trechos do Grande sertio, os signos da utopia se instalam, permeando 0 espaco literétio como construcio de uma outta ordem de representacées simbélicas, Riobaldo atravessa o sistema da jaguncagem, e, no momento da contemplagio, vislum- bra um tempo prospectivo, no qual se tera expiado a ctueldade e a malignidade do mundo: “Ah, vai vir um tempo, em que nao se usa mais matat gente...” (ROSA, 1967, p. 20). Este tempo prospectivo que a escritura literaria anuncia ptesentifica-se no instante da produgao da fala-texto de Riobaldo, atu- alizando-se e reatualizando-se em cada leitura. Através da leitura, 0 lei- tor coabita esse espaco, porém, vivenciando uma experimentagao agonica dos limites do ser e da linguagem, Como realizacio literaria, Grande sertéo: veredas é um manifesto do desejo de uma sociedade justa, de uma otdem social e politica onde as caréncias podem ser suptidas e onde reina a harmonia, Este é 0 sonho do Riobaldo que impulsiona sua travessia na constelacio dos signos literatios: 1a EVELINA HOM) ‘Mas somente prezar que eu eta Riobaldo, com meus homens, trazendo gloria e justica em tertitétio dos Gerais de todos esses grandes rios que do poente para © nascente vio, desde que o mundo mundo 6, en- quanto Deus dural [...] Pois os proprios antigos nao sabiam que um dia vira, quando a gente pode perma- necer deitada em rede ou cama, e as enxadas saindo sozinhas para capinar roga, ¢ as foices, para colherem por si, ¢ 0 carro indo por sua lei buscar a colheita, € tmdo, 0 que nao é o homem, é sua, dele, obediéncia? (ROSA, 1967, p. 334 ¢ 383). © movimento que impulsiona a busca da palavra postica 8etado por um momento de caréncia das acées cotidianas. D Ponto de vista do escritor Jodo Guimaraes Rosa, é a falta de sent do pleno, ou da repeticdo do sentido — da cinza-poeira que envol cada palavra — que se delineia 0 gesto ctiador da linguagem. Ponto de vista do barranqueiro Riobaldo, a produgio da sua fal te: é © Contorna também uma falta: o recalcamento de uma paixi a : Pata a qual precisa encontrar sentido, desfazendo a névoa qu Corporifica os signos do desejo e do amor por Diadorim, Ei da linguagem é também o momento em que o leitor se confronta co se espago em que um cosmos se otdena e se encotpa attavé © C208 © a desordem que engendram a constelagio de signos. O espaci literati toma-se entio ambivalente, porque tensiona esses instantes d Ca08 © Cosmos, desordem e ordem, caxéncia ¢ plenitude. O leitor atua liza essas tensdes no ato da leitura attavessando autobiograficament este Universo, A literatura é, assim, uma possibilidade de tealizacao bio- 159 VEREDAS — UMA BSCRITURA BIOGRAFIC KANDE SERTAC grifica que se reatualiza através da leitura, acontecendo no aqui e agora onde se situa cada leitor, € acontecendo sempre na diferenca e como forma difetida, Cada leitura é uma travessia signica que possibilita uma teencenagio autobiogrifica, lugar onde o leitor se destertitorializa ¢ retertitorializa-se. Genealogias da escritura Riobaldo se caracteriza como um grande leitor. Hste bardo decifta os signos da sua histéria, intercalando-os com os da histétia coletiva — a vida dos jaguncos, a errincia pelo sertio, os causos ouvidos, que ele cita como aco exemplar pata ilustrar, dat verossi- milhanca ao particular. Mas, na leitura que Riobaldo faz. da sua vivéncia, os signos que ele mobiliza para decifiar a sua neblina, sio projetados pot outros signos, oriundos das mais variadas procedéncias. Lingnagem mesclada que dissemina ao nivel dos significantes um dos motivos teméticos das reflexes do narrador: “ao que este 2 veredas se mundo € muito misturado”, os signos de Grande seri tornam espessos, assumindo uma pedagogia propria ao texto lite- ratio no que se refere a seu caréter anagramético ¢ palimpsesto, agregando ao seu corpo uma multiplicidade de vozes, através das quais a esctitura explicita o seu sistema de raizes, a sua genealogia. Este anagrama que alicerca a esctitura de Grande sertéo: veredas est muito bem sintetizado na afitmacio de Pedro Xisto, quando assi nala esse entrecruzamento do seguinte modo: A linguagem de Joao Guimaraes Rosa proviré, por- tanto, dos “Gerais”, em boa parte. Mas nas serranias 160 INA HOISET, ecoam vozes de toda parte. Vozes arcaicas, desde aque- las com que “vocavit Adam animae viventis”. Vozes ex6ticas. Vozes ecuménicas. Vozes eruditas. Vozes re- quintadas. De citcunstancias. De esséncias. De quintes- séncias. (XISTO, 1983, p. 124-125). Desde a problematica nuclear do pacto com o deménio, até a caracterizagio das petsonagens, a fala de Riobaldo aciona uma pluralidade de vozes que se interpenetram como vasos comunicantes. F através da recorréncia a esse repertério de signos da tradigao (literatia, filosdfica, religiosa, antropologica, sociolé- gica, histdtica, geografica) que Riobaldo se posiciona em um es- paco diferente daquele que diz ocupar em oposigao ao interlocutor, quando se refere 4 cultura do senhor, homem instruido, contra- pondo ao seu pouco conhecimento. Esse bardo nao ¢ somente 0 intérprete de sua experiéncia, ou de uma tradicio oral a que ele da continuidade; como biogtafema de Jodo Guimaries Rosa, ele é também transmissor de um conhecimento livresco, culto, do qual nao pode prescindir ao reorganizar suas reminiscéncias. Se o mundo de Grande sertao 6 encorpado pela fala de Riobaldo, se ele se identifica e se confunde com seu proprio discurso, quem modela Riobaldo e sua fala é Guimaraes Rosa, e, nesse sentido, ele é 0 signo que mais inscreve biograficamente Guimaraes Rosa na escritura, imprimindo em seu espaco o perfil de um leitor voraz, atento, inventivo, capaz de revitalizar uma tradi¢io, desenforma-la para enformé-la em outro contexto dialégico, onde declara sua genealogia, constituindo parentes e contrapatentes. Os files genealégicos que atravessam a escritura de Grande GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 161 sertéo constituem um material vastissimo que sua ctitica tem se dedi: cado a recortar através de estudos comparativos. A exploracio desses fildes é inesgoravel, pelas ramificacdes que se espalham nas diversas areas do saber, penetrando e revigorando as mais variadas tradi- des. Os bastidores desta cena, o espaco onde se situa 0 leitor Joao Guimariies Rosa pode, em parte, ser encontrado nos livros que leu ~ material ja levantado ¢ catalogado por Suzi Frankl Sperber (1976) e publicado em Caos cosmos: leituras de Guimaraes Rosa. E se situa, também, na multiplicidade dos arquivos a que tecorre, na variedade de pastas contendo notas, figuras de animais, de plantas, de pessoas, recortes de jornais, cadernos de anotacées, que constitui acetvo do IEB/USP, hist6tias diversas que o seu olhat colhia e a folha do papel acolhia para documenta esse leitor voraz, essa possante usina decodificadora que se transforma em uma vigotosa maquina pro- dutora de signos. Os rastros dessa atividade leitora esto inscritos na escritura rosiana, desenhando o gesto precipuo desse leitor que nao esconde sua pulsiio para dialogar com 0 outro, conhecé-lo através dos mais sinuosos meandros, derramar-se e espalhar-se na folha em branco do papel, deixar seus vestigios, doar-se, constituir uma numerosa familia, uma estirpe, desterritorializar-se ¢ retertitorializar-se, ser lo- cal e universal, A pulsio amorosa de Guimaries Rosa é 0 que sustenta ¢ alicetga a sua pilsdo falante e dialégica, pois 0 encontro com o outro, 0 desvelamento do outro, é a possibilidade pata conhecer 0 seu passa do e projetat-se prospectivamente pata o futuro. Essa pulsio amo- rosa revela-se, em primeira instincia, pela relacio amorosa com a lingua, formando “um casal de amantes que juntos proctiam apaixo- 162 EVELINA HOISE GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAPICA 163 nadamente.” A telagio amorosa com a lingua tealiza-se como es sua histéria no Ocidente. A Aybris, que faz. explodir o substrato ¢o de transgressio, de desmedida, rompendo com os padres es lingitistico da esctitura, espalha-se na constelagio de signos, onde se belecidos pata inaugurar um outro universo signico. observa um excesso de significantes e de significados, transborda- © que se procura reconstituis aqui sto os fildes genealégic mento que instala a transgressio, forca dionisiaca geradora do trégi- que atravessam a fala de Riobaldo ¢ que tém ramificacées distin co, no proprio corpo da linguagem. na constituigo do tecido textual, trazendo para seu espaco det A exploragio dessa estirpe genealdgica através da qual Riobaldo minadas matcas que vinculam a escritura de Grande sertdo: vereda registra seu sistema de raizes, seus patentes ¢ conttaparentes, abre tradi¢io do drama. Nao se tetoma, nesta reflexfo, uma pluralida também uma possibilidade de se definir a utopia rosiana, que oferece de fildes ja reconhecidos pela critica de Guimaries Rosa, que es como modelo a consttucio de um cosmos, de uma ordem, a partir dou comparativamente, ¢ as vezes até de forma exaustiva, suas da tecriacao do universo dos signos. Todavia, essa agao é de natureza prospectiva, porque aciona possibilidades perceptivas inédit lagdes com outras tradigdes ou autores.” O que interessa mos que, no que se refere ao projeto biogrifico da escritura, existe ctetiza-se com o olhar voltado pata o passado, em um movimento tracado claramente delineado que afirma a postura de Guim: de afitmagio ¢ deslocamento. Rosa como leitot atento ¢ inventivo. E que, no entrelacamento di Desse modo, no desenvolvimento do percurso genealégico, sa constelacao de signos, existe uma coesdo que se pode desent procuta-se tecortar diversos fios entrelacados que reconstituem nhar, percorrendo os diversos cortedotes labirinticos através di biograficamente a constelagio dos signos de Grande sertao: veredas. quais se atualiza 0 passado, reencenando-se personagens, mel Assim € que, num primeito movimento, esboca-se 0 patentesco foras, imagens, simbolos e temas da literatura dramatica e entte a escritura de Grande sertdo: veredas ¢ a de Ubsses e Finnegans teatro. O processo de dramatizacao da linguagem, que se inst Wake, de James Joyce, pois, do ponto de vista estritamente a partir da encenacio de forcas diferenciadas espalhadas em s lingiiistico, eles se irmanam por terem deflagrado a Aybris, a des- espago, mobilizadas pela pulsio amorosa transgressora e de medida, que atinge diretamente 0 corpo fisico da linguagem, atra- medida — “um casal de amantes que juntos procriam apaixon vés do estilhagamento e fragmentacao dos significantes e signifi- damente” — faz detonar no cendrio de Grande sertao: veredas es cados. Nesse sentido, tanto Guimaries Rosa como James Joyce diversidade de marcas que atualizam ¢ revigoram a vertente dei submetem a lingua a uma agonica encenagio ¢ dramatizagio que mitica da literatura ¢ do teatro, se baseia nesse elemento dionisiaco e tragico. A escritura biogtifica de Grande sertio: veredas, a0 teconstit Em um segundo andamento, procura-se compreender como na desmedida instauradora di sua linhagem, alicerga-se na hybris, esse elemento transgressor no plano dos valores estético-linguis trigico, elemento constitutive do drama desde os primérdios di ticos tepercute ao nivel dos valores hist6ricos, sociais, teligiosos € 164 EVELINA HOTS GRANDE SERT40: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRATICA 165 éticos. Esse elemento insere no espago do Grande sertio fil picaz, capaz de captar, ainda que parcialmente, as multiplas ressoniincias genealdgicos do drama, principalmente a tragédia grega sugetidas, Subvertendo os padrdes conhecidos de forma exacerbada, a shakespeariana que, por sua vez, instala um outro veio que se 1 escritura transforma-se em um palco onde se encena o trigico conflito fica na literatura, a partir da teatralizacdo da crueldade e da ms entre o-codificado e 0 nao-codificado, morte e nascimento. Essa Aybris dade, Assim, pontua-se a presenga do tema do Fausto no Gi \ransgressora traz 0 traco dionisiaco pata a cena da linguagem, que se rertio, aspecto este ja considerado pela critica Guimaraes Rosa corporifica, em primeira instancia, em cada palavra ¢ no substrato davia, 0 recorte que aqui se efetua, asticulado pelas vozes qt lingtifstico que dramatiza aces e personagens. relacdes genealogicas, procede no sentid O elemento fecundante, que insemina ¢ dissemina palavtas, é fizeram ecoar essa conduzir as reflexes para mostrar como esta caracteristica dionis marca de Dioniso inserindo-se na esctitura tosiana no sentido de transgressora e cruel, apresenta-se como possibilidade de cos revitalizar 0 idioma. Simbolo da libertagio, da fecundidade e da mento de si, estando, pottanto, motivada pela petspectiva exist exuberincia da vida, Dioniso encorpa-se na escritura de Grande ser- al-biografica de Riobaldo afirmar a sua identidade. Nessa direc fio: veredas, dando origem a uma linguagem onde os signos fulgu- crueldade ¢ a malignidade tem uma fungio putificado: sam pelo ineditismo de suas constelages, onde a vida pulsa e vibra revigoradora, catartica, no sentido aplicado por Antonin em cada som, em cada timbre, em cada ritmo, em cada assondncia, em cada que recupera a veia dionisiaca da tragédia grega pelo crivo dal trutura sintitica, em cada imagem. O grifico da letra filos6fica de Nietzsche. enxerta-se da vida: biografa-se, O espaco do livro, na exuberincia Ao tefletit sobre 0 elemento transgressor da escrit los signos, distribui alegria em profusto: paradoxalmente, a expe- Grande sertao: veredas como deflagrador do processo de dramai timentacio agonica da linguagem, pela intromissio do dionisiaco, é da linguagem, pensa-se, inicialmente, no material lingiiistico qi firmacio da alegria e do jibilo da vida. submete a vatiados nfveis de desconsteugao, O abalo do signifi Nesse movimento revigorador da lingua(gem), pode-se se processa visando recupetar cada um dos seus tragos const orrclacionar a atitude poética de Guimaries Rosa a de James Joyce. vos, explorando sua forca sugestiva, plutissignificante. Pot que ha de mais afim entre os projetos rosiano e o joyceano é 0 mesmo afirmat que cada signo é uma constelagio em si, abalho que elaboram no nivel do significante. Para ambos, a ativi- miltiplas irradiagdes que projeta de sua tealidade fisica, Cad jade criadora ¢ concebida como uma travessia sfgnica, que tem ra se submete a uma ag6nica travessia no nivel da sua corpor ‘pmo antecedentes Mallarmé, Valéry e aqueles que se estabeleceram A manipulacio de cada significante, considerado isoladament pmo precursores da modernidade, relacionando-se com a lingua- exibindo sua inter-telagio com 0 todo, revela um trabalho art “ma partir de uma valorizacio do significante, do estabelecimen- que pressupée um estranhamento lingiiistico, solicitando um leit de uma l6gica do significante, = 166 Na apresentacio dos onze fragmentos do Finnegans Wa que traduziram para o portugués, Augusto e Haroldo de Campi definem a ac&o revigoradora de James Joyce, salientando aspect que podem elucidar também a compreensio da construcao rosian} O titmo dessa prosapoesia — riverrun/riocorrente — é algo como um fluxo envolyente continuo. “Elan-vital”. [..J Ninguém, como Joyce, levou a tal extremo a miniicia artesanal da linguagem. Seu macrocosmo — seu ro- mance-rio — traz, em quase cada uma das unidades verbais que o tecem, implicito um microcosmo. A palavra-metafora. A palavra-montagem. A palavra- ideograma [...] Cada entidade “verbivocovisual” que ele cria é uma espécie de espelho instante da obra toda, cujo estilo se baseia no “principio do palimpsesto”: “um significado, um conjunto de imagens, é superposto a outros.” (CAMPOS;. CAMPOS, 1962, p. 9 ¢ 7). Desse modo, 0 trabalho de Guimaries Rosa, como 0 James Joyce, no sentido de rectiagao do idioma, atinge o nivel nimo da Iingua(gem), esfacelando estruturas sintiticas convend nais ¢ estilhacando sons, fonemas, palavras, Essa atividade, que al la, em primeira instancia, a fisicalidade dos signos, submetendo-0 uma escavagio arqueolégica de onde desentranham etimolo, arcaismos, palavras de outras linguas, é a oportunidade de fun um idioma que traz a marca da diferenga, que imprime seu lugar tradicio por um excesso de diferenca. Augusto de Campos, no artigo “Um lance de ‘Dés’ do Gri GRANDE SERTAO! VEREDAS — UMA ESCRITURS BIOGRAFICS 107 de sertio”, publicado originalmente na Revista do Livro, em 1959, amplia essas interrelagdes, a0 tempo em que traz outros fil6es para revelar a composicao desse tecido textual. Naquela época, Augusto dle Campos ja salientava a importincia de estudos compatativos, explicitando sua televancia pata o estabelecimento de “nexos de relagao estética, que nos permitam discerniz, no campo geral da literatura e das artes, uma evolucao de formas”, sem contudo privi- legiar a problemitica das “influéncias, para efeito de biografia ou de genealogia literaria” (CAMPOS, 1983, p. 322). ‘Ao enunciar tal declaracio, Augusto de Campos ainda con- sideta uma tradigio teérico-critica que pressupunha a nogao de influéncia ou genealogia literaria nos limites da critica que priorizava s concep¢des de imitagao, fonte, continuidade, semelhanga, repe- tigao, sem vislumbrar a situagao dialégica que acontece entre os textos a partir da diferenca e da ruptura. Uma critica que, conceitualmente, ainda nao assimilara a nocao do escritor como leitor e, conseqiientemente, da escritura como leitura. B toda leitura, sabe-se hoje, inverte, subverte, reverte 0 texto lido. Nesse movi- mento, contudo, escava o seu sistema de raizes, tragando uma genealogia que nio diz mais de uma continuidade, ou que apenas pressupde uma repetisaio como fonte ou influéncia: a reprodusao do mesmo. Instala-se, entio, uma diferenca: os signos artisticos e lite- ratios so acionados para afirmat a diferenga que, todavia, no anu- la as relacées dialégicas. O conceito de genealogia que se propde nos limites da refle- xo sobre a escrituta biografica diz, respeito & encenacdo ¢ dramatizacho de tracos literatios mobilizados no ato da escritura. Forgas que, de modo intencional ou nio, exibem 0 aspecto voraz da acio literaria siseatgcemrct sae 168 EVELINA TE GRANDE SERTAO! VERRAN = UMA ESCRITURS HLOGKAHIEN 169 também que, numa sede vampiresca, fertiliza-se e enxerta-se com 0 sani “sem pertencéncias” — na escrituta literaria registra-s seus antepassados, revivificando-os na cena do presente pela mi desejo de construgio biogratica, de territorializagio, que pode gem de temas, personagens, imagens, ritmos, procedimentos ¢ ¢ depreendido através dos tracos inscritos em seu espaco. A teali- vras. Acio simultinea de deslocamento ¢ afirmagio, através di ule do texto desfiliado, superpe-se a imagem do sujcito forastei- se revitalizam a literatura ¢ a linguagem. . oxilado, expatriado, no entanto, “grévido de si mesmo”, a cons- A nogio de genealogia, que se estabelece considerando 1 “o tronco de uma sé pessoa”, “a grande familia de uma sé forcas que pulsam na linguagem literatia e nfo literéria e se matt ssoa”, “stimula em si do universo”, conforme declaracio de zam na constelagio de seus signos, pressupde um movimento nurilis, protagonista de Cantos delituosos: romance, de Judith volta pata 0 pasado, revitalizando os antecessores, e projetam yossmann (1985),° que se afitma genealogicamente descendente também para o futuro, proctiando sucessores, gerando herd Riobaldo. Nesse romance, encontra-se um material rico e relacio dialogica promove intimeras insctigdes e reinscrigdes, Leif ueidativo para se pensar a esctitura biografica. Como herdeira de e releituras e, nesta perspectiva, compreende-se de maneira obaldo, a fala soberana e mondrqnica de Amaxilis permite observat pla a afirmacio de Guimaries Rosa de que “a lingua e eu somot processo prospectivo da escritura biografica, onde a cena textual casal de amantes que juntos proctiam apaixonadamente.” Pro © amplia como palco de encenagio ¢ de teflexto do seu proprio apaixonadamente define a relagio que o esctitor mantém dire! jovimento genealdgico. te com a lingua, produzindo universos constelates que pod Considerando estas teflexdes, pode-se entio compreender a delimitados pelo seu conjunto de textos, Procriar apaixonadame jio efetivamente ttansgressora de James Joyce ¢ Joio Guimaraes sa, situando-os no panorama da literatura como produtores dle uma linguagem na qual os signos vivenciam vertiginosamen- os fazem eclodir outros universos, amorosamente, apaixonad: Je o drama da linguagem, encenando o conflito entre 0 codifi- te, interminavelmente. ado e 6 nao codificado, a ordem e a desordem de forma mais ‘A medida que se concebe a natureza parricida da eserit wadical, Pois é a palavta tadical que define a agio transgressora poética, que assassina seu prprio pai, o autor enquanto suf Ue Joyce ¢ Guimaraes em relagio & linguagem, onde cada signo empitico, procura-se também compreender 0 movimento pelo eatraliza o resplendor do seu nascimento, a partir da expeti- um texto estabelece o seu sistema de raizes, explicitando suas ran mmentacio agOnica do sistema estabelecido. Cada configuragao ficagdes genealdgicas. Se o sujeito poético é destertitorializaday Jéxica, cada estrutura fonica, cada conexio sintatica é estilhacada aqucle que impertence, palavra que define a sua desfiliacio — jé pata criar um idioma inaudito. observado anteriormente como 0 nome de Riobaldo expsessa Ao iniciar seu artigo, Augusto de Campos recorta fildes que EVELINA HOISH wedem a esctitura rosiana na literatura brasileira, restabelecendt ‘bs com a tradicao modernista: Macunaima, de Mario de Andrad iim Ponte Grande e Memérias sentimentais de Jodo Miramar, de Os Andrade. Guimaraes Rosa redimensiona essa tradicio qu ‘asto de Campos (1983, p. 321) considera “j4 quase comple ve sotetrada, na prosa brasileira”, configurando uma escritu wompe mallarmaicamente as fronteiras da prosa e se torna tam: tpoesia. H nesse sentido que Augusto de Campos chama aten ‘para duas produgées que, a primeira vista, parece ismelhantes ou distantes entre si: Un coup de dés, de Mallarmé, um Jaa espacial em onze paginas, ¢ o Finnegans Wake, de James Joyce, mmance com 628 paginas. Entretanto, essa abordagem mostra » existem processos semelhantes entre os dois textos, princi- uente os processos de montagem, através dos quais se estabele- que ele denomina de albtropia estilistica: “obras que se apresen- rom ptoptiedades externas diversas mas que possuem a mes- sstrucura interna.” (p. 322). Ao estudar os procedimentos lingiiisticos ¢ estruturais de Grande veredas, Finnegans ¢ Uhsses, Augusto de Campos amplia uma ivacdo ja feita anteriormente pelo ctitico Oswaldino Marques, vue se refere a utilizacdo de determinados recursos de linguagem, a justaposicao vocabular (palavras porte-mantean), matca privile- ado que ele denomina “atitude expetimentalista perante a lingua- (p. 324), Em seguida, na comparacao dessas duas esctituras, ica a tematizagao musical da narragao, salientando que foi lismé o primeiro escritor a dar uma configuracio musical a lin- um literdria, fazendo com que se superasse 0 fluxo linear pela nelacio tematica. Na escritura do Grande sertéo, conforme detecta — GRANDE SERTAO: VEREDAS — UMA ESCRITURA BIOGRAFICA 171 Augusto de Campos, 0s motivos musicais se elaboram a partir de uma frase — “o diabo na tua, no meio do redemunho”, “viver é muito perigoso”, ou mesmo de uma palavta como “nonada”, “ser- to” ou “travessia”. Outra caracteristica pontuada no estudo em questao € a femdtica de timbres, onde se assinalam, na multiplicidade de timbres do Grande sertio, como em Finnegans Ubysses, cextas gamas que gitam em torno de fonemas privilegiados. Augusto tecorta 0 fonema D, buscando estabelecer as relacdes isomorficas entre significante e significado, mostrando como a davida hamletiana do ser ou nao ser esta eqnacionada no romance como Deus ou 0 demo, ¢ como “o fonema D é a gerattiz a partir da qual se estrutura a projecio, na linguagem, desse dilema — que nfio foge de ser um lance de dados” (p. 334). Dessa itradiacao prismatica projeta-se 0 nome de Diadorim, aspecto este estudado minuciosamente por Augusto de Campos. Nessa petspectiva de abordagem, “Um lance de ‘Dés’ do Grande sertio” recorta uma vertente geneal6gica da escritura rosiana, situando-a no que hé de mais radical do ponto de vista da dramatizacdo dos limites da linguagem. Posteriormente, Mary Daniel (1968), em Jodo Guimanies Rosa: travessia literéria, amplia estas compara- ces ratificando as afirmagées de Augusto de Campos que situam Guimaries Rosa na linhagem de Mario de Andrade e James Joyce. Mary Daniel estuda os aspectos do léxico, da gramatica-sintaxe, da poética e da tet6tica nos diversos textos tosianos, propondo-se, den- tro da linha da estilistica, levantar os principais procedimentos lingiiisticos desses textos, pontuando outros files da tradicao literaria que tecem a esctitura tosiana como linguagem battoca? Guimaries Rosa, como James Joyce, considera cada signo

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