Professional Documents
Culture Documents
Reitor: Lourisvaldo Valentim da Silva; Vice-Reitora: Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO - CAMPUS I
Diretora: Ângela Maria Camargo Rodrigues;
Programa de Pós-Graduação em Educação e Contemporaneidade – PPGEduC – Coordenadora: Nadia Hage Fialho
Editora Geral: Yara Dulce Bandeira de Ataide
Editor Executivo: Jacques Jules Sonneville
Grupo Gestor: Ângela Maria Camargo Rodrigues, Elizeu Clementino de Souza, Jumara Novaes Sotto Maior
(coordenadora), Luciene Maria da Silva, Nadia Hage Fialho.
CONSELHO EDITORIAL
Conselheiros nacionais Raquel Salek Fiad
Adélia Luiza Portela Universidade de Campinas
Universidade Federal da Bahia Robert Evan Verhine
Cipriano Carlos Luckesi Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal da Bahia Walter Esteves Garcia
Edivaldo Machado Boaventura Associação Brasileira de Tecnologia Educacional /
Universidade Federal da Bahia Instituto Paulo Freire
Jaci Maria Ferraz de Menezes Yara Dulce Bandeira de Ataíde
Universidade do Estado da Bahia Universidade do Estado da Bahia
Jacques Jules Sonneville Conselheiros internacionais
Universidade do Estado da Bahia Adeline Becker
João Wanderley Geraldi Brown University, Providence, USA
Universidade de Campinas Antônio Gomes Ferreira
Jonas de Araújo Romualdo Universidade de Coimbra, Portugal
Universidade de Campinas Edmundo Anibal Heredia
José Carlos Sebe Bom Meihy Universidade Nacional de Córdoba, Argentina
Universidade de São Paulo Ellen Bigler
José Crisóstomo de Souza Rhode Island College, USA
Universidade Federal da Bahia Francisco Antonio Loiola
Kátia Siqueira de Freitas Université Laval, Québec, Canada
Universidade Católica de Salvador Giuseppe Milan
Marcos Silva Palácios Universitá di Padova – Itália
Universidade Federal da Bahia Julio César Díaz Argueta
Maria José Palmeira Universidad de San Carlos de Guatemala
Universidade do Estado da Bahia e Luís Reis Torgal
Universidade Católica de Salvador Universidade de Coimbra, Portugal
Maria Luiza Marcílio Marcel Lavallée
Universidade de São Paulo Université du Québec à Montréal, Canada
Nadia Hage Fialho Mercedes Vilanova
Universidade do Estado da Bahia Universidade de Barcelona, España
Paulo Batista Machado Paolo Orefice
Universidade do Estado da Bahia Universitá di Firenze - Italia
Revista da FAEEBA
Educação
e Contemporaneidade
9 Editorial
10 Temas e prazos dos próximos números da Revista da FAEEBA – Educação e
Contemporaneidade
13 Educação Especial: apresentação
Luciene Maria da Silva
EDUCAÇÃO ESPECIAL
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007
143 Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais
Isa Regina Santos dos Anjos
149 Pode-se falar em um ‘movimento de deficientes’ no Brasil ?
Alessandra Santana Soares e Barros
159 O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
Roberto Sanches Rabello
169 No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
183 Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com
dificuldades de aprendizagem
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
203 Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de Asperger: estratégias para
trabalhar as habilidades narrativo-discursivas e a produção verbal
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
223 Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos
com deficiência visual, em situação de avaliação assistida e tradicional
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio
Pedroza Canal
239 Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades
educacionais especiais
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini
Martins
RESENHAS
251 BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em tempos modernos. São
Paulo: Contexto, 2006. 172 p.
Yara Dulce Bandeira de Ataide
253 OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias
Pereira. Conselhos Municipais de Educação: um estudo da região metropolitana de
Campinas. Campinas/SP. Editora Alínea, 2006. 300 p.
Desimary Ferreira Lima de Miranda
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007
CONTENTS
11 Editorial
12 Themes and Time Limit to Submit Manuscript for the Next Volumes of Revista da
FAEEBA – Education and Contemporaneity
13 Education and Disability: an introduction
Luciene Maria da Silva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007
143 Professional Education: A Challenge for People with Special Educational Needs
Isa Regina Santos dos Anjos
149 Is it Possible to Speak of a “Movement of People with Disabilities” in Brazil?
Alessandra Santana Soares e Barros
159 Theater in Education of Visually Impaired Persons and the Brecht’s Theory of Didactic
Play
Roberto Sanches Rabello
169 In the Silence of the Sounds: Music and Deafness: Constructing Ways
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
183 Proposal of Analysis of Emergent Literacy Abilities in Children with Learning Disabilities
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
203 Strategies to Work with Narrative-Discoursive Abilities and Verbal Production in Children
with High-Funcioning Autism and Asperger Syndrome
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
223 Mother Conceptions about Child Development and Cognitive Performance of Visually
Impairment Children in Dynamic and Static Assessment
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio
Pedroza Canal
239 Knowing the Necessities and Potentialities of Mothers of Children with Disabilities
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini
Martins
BOOK REVIEWS
251 BOM MEIHY, J.C.S. Augusto and Lea: a case of (un)love in modern times. São Paulo:
Contexto, 2006. 172 p.
Yara Dulce Bandeira de Ataide
253 OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias Pereira. Cities’
Education Counsels: a study of the metropolitan area of Campinas (São Paulo, Brazil). Campinas/
SP: Editora Alínea, 2006. 300 p.
Desimary Ferreira Lima de Miranda
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 1-258, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
EDITORIAL
EDUCAÇÃO ESPECIAL é o tema do número 27 da Revista da FAEEBA
– EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE. Para sua elaboração rece-
bemos a valiosa colaboração da professora Luciene Maria da Silva, da Linha
de Pesquisa 3 do Programa de Pós-Graduação Educação e Contemporaneida-
de – PPGEduC, da UNEB, e membro do Grupo Gestor da Revista. Como
coordenadora deste número, ela fez uma ampla divulgação da temática e con-
seguiu reunir uma equipe de 20 pareceristas ad hoc, a fim de avaliar os 48
textos recebidos para fins de publicação.
Educação inclusiva é o conceito-chave que define o conjunto dos textos,
propondo uma reforma radical no sistema educacional, que deve reestruturar
os seus sistemas curriculares, avaliativos, pedagógicos e métodos de ensino, a
fim de respeitar a diversidade de desenvolvimento educacional e as necessida-
des especiais, garantindo que todos os alunos tenham acesso ao ensino regular
e impedindo qualquer forma de segregação e isolamento.
Ficou claro que se trata de um processo dinâmico, não se limitando apenas
a uma reformulação administrativa, mas a um processo contínuo de reestrutu-
ração educacional em construção e transformação permanente. A inclusão
não pode se restringir à mera inserção de alunos com necessidades educacio-
nais especiais nas escolas regulares. Significa a proposta de uma escola de
qualidade para todos os alunos.
Além dessa abordagem, esse número traz vários artigos que tratam de
conteúdos específicos que dizem respeito à questão das necessidades educa-
cionais especiais.
Os Editores
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 9
Educação Especial: apresentação
10 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
EDITORIAL
Education and disability is the theme of the volume 27 of the Revista da
FAEEBA – EDUCAÇÃO E CONTEMPORANEIDADE. This volume be-
nefited from the valorous help of Luciene Maria da Silva, from a research
group of the master program in Education at UNEB, who is also a member of
the Editorial Committee of this journal. As a coordinator, not only did she publi-
cize the theme but she succeeded in enrolling not less than 20 manuscript
evaluators to analyze the 48 texts received for publication.
Inclusive education is the keyword which define the set of texts which
proposes a radical reform of the educational system which must restructure its
curriculum, its ways of evaluating, its pedagogies and teaching methods, so as
to respect the diversity of educational development and the special needs,
granting to everyone the access to regular school and prohibiting all ways of
segregation and isolation.
It is clear that we speak about a dynamic process, not limited only to an
administrative reform but to a continuous process of restructuring and trans-
forming education. Inclusion may not be restricted to the simple inclusion of
pupils with special needs in regular schools. It means the proposal of quality
school for all.
Beyond these approaches, this volume contains papers which discuss spe-
cific contents related to special educational needs.
The editors
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 11
Educação Especial: apresentação
12 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
* Doutora em Educação pela PUC/SP. Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço para
correspondência: Departamento de Educação I – UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/
BA. E-mail: luciene@portfolium.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 13
Educação Especial: apresentação
14 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007 15
Educação Especial: apresentação
16 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 13-16, jan./jun., 2007
EDUCAÇÃO
ESPECIAL
José Leon Crochík
NORMALIZAÇÃO E DIFERENCIAÇÃO
DO INDIVÍDUO COM DEFICIÊNCIA MENTAL:
uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
RESUMO
ABSTRACT
Este ensaio tem como objetivo discutir as diferenciação são apresentados em conjunto
tendências de normalização e de diferencia- com algumas de suas implicações, tendo em
ção do indivíduo com deficiência mental em vista a sociedade atual; além disso, discute-se
nossa sociedade. A tendência de normaliza- o anacronismo de uma educação voltada para
ção busca tornar o indivíduo com deficiência as competências destinadas ao mundo do tra-
mental o mais próximo possível dos que não a balho, que não deixa de se pautar em normas
têm, e a tendência de diferenciação defende para a adaptação deste momento histórico. Na
que os indivíduos devem ser aceitos com os segunda parte, a partir de análise do filme “Os
seus limites, não sendo nem melhores nem pi- dois mundos de Charly”, a discussão acerca
ores que os outros, mas diferentes. Para essa da normalização e diferenciação é retomada,
discussão, o texto é dividido em três partes. e na última parte são expostas as considera-
Na primeira, os conceitos de normalização e ções finais.
* Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo. Professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Bolsista de produtividade em pesquisa
pelo CNPq. Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Av. Prof. Mello de
Morais, 1721, Bloco A, sala 196, Cidade Universitária – 05508-030, São Paulo/SP. E-mail: jlchna@usp.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 19
Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
20 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007
José Leon Crochík
que essas são significadas socialmente, e que, ... quando a utopia baconiana de ‘imperar na prá-
independentemente da deficiência, todos devem tica sobre a natureza’ se realizou numa escala
incorporar a cultura para poder melhor expres- telúrica, tornou-se manifesta a essência da coa-
ção que ele atribuía à natureza não dominada.
sar essa diferença como universal, expressan-
Era a própria dominação. É à sua dissolução que
do também a diversidade humana, que é pode proceder o saber em que Bacon vê a ‘supe-
essência da humanidade. Segundo Adorno rioridade dos homens’. Mas, em face dessa pos-
(1991), “...lo esencial no es lo abstractamente sibilidade, o esclarecimento se converte, a
repetido, sino lo general en tanto que diferenci- serviço do presente, na total mistificação das
ado. Lo humano se forma como sensibilidad massas. (HORKHEIMER; ADORNO, 1986, p. 52)
para la diferencia sobre todo en su experiencia Mesmo com condições objetivas suficien-
más poderosa, la de los sexos.” (p. 203). tes, a libertação dos homens ainda se encontra
Kant, ao se referir à natureza humana como subjugada ao desejo de dominação, cuja supe-
sendo a da sociabilidade insociável, defende a ração implica liberdade. Frente a essa possibili-
formação que deve ‘domar’ os impulsos mas dade, nas palavras dos autores, o esclarecimento
ao mesmo tempo preservar a natureza do avan- se torna regressivo como mistificação das mas-
ço da civilização (ver ADORNO, 1971). Se- sas. Nessa mistificação, a liberdade que seria
gundo Adorno (1971), a diferenciação individu- possível é delimitada pela existente, que ainda
al ocorre pela incorporação da cultura: “...la é dependente das formas de produção, quando
formación no es otra cosa que la cultura por el não mais precisaria ser. Um dos elementos des-
lado de su apropiación subjetiva” (p. 234). As- sa liberdade seria a autodeterminação, a dife-
sim, a diferenciação parte da natureza, mas se renciação segundo os próprios interesses
constitui pela cultura que a permite se desen- substanciais conjugados com o reconhecimen-
volver: “En tanto que se cancelan los momen- to de e em uma outra autoconsciência. A dife-
tos de diferenciación – originariamente sociales renciação individual preservaria a diferenciação
– en que residía la formación, pues formación de nossa espécie tornando-a distinta da vida
cultural y estar diferenciado son propiamente puramente natural, para a qual a regra é a re-
lo mismo, en lugar suyo prospera un sucedá- produção; o indivíduo, isto é a diferenciação,
neo.” (p. 251). Se a formação cultural se modi- seria um resultado e não existente a priori:
fica historicamente, suas normas, valores, prin-
É inverossímil que no princípio tenha surgido,
cípios – que estão associados às necessidades
primeiro, arquetipicamente, um homem individu-
e conflitos sociais – são imanentes ao desen- al qualquer. A crença nisso projeta miticamente
volvimento do indivíduo, isto é, à sua diferenci- para o passado, ou para o mundo eterno das
ação. Com o desenvolvimento da cultura, e a idéias, o ‘principium individuationis’ já plena-
conseqüente geração de novas formas de ex- mente constituído na história. A espécie talvez
pressão, a possibilidade de diferenciação indi- se tenha individuado por mutação para, logo,
vidual aumenta. Essas novas formas de expres- através de individuação, reproduzir-se em indi-
são não são independentes do desenvolvimento víduos, apoiando-se no biologicamente singu-
lar. (ADORNO, 1995, p. 200)
de novas técnicas, que por sua vez são atrela-
das ao desenvolvimento social. Pela mediação social o indivíduo se consti-
No progresso social estão envolvidos quer a tui, e ele se define como diferenciação dos de-
melhoria das condições objetivas de vida – ali- mais; assim, as regras, as normas, os princípios
mento, moradia, remédios, meios de locomoção são fundamentais, e a objetividade do indivíduo
– quer o estabelecimento de relações sociais é sua subjetividade. Quanto mais sujeito for,
justas. O progresso, contudo, não é linear, con- mais objetivo e capaz de exterioridade será.
tém a contradição social entre aqueles dois ob- Claro, se a normalização se refere às necessi-
jetivos, de forma que a libertação dos grilhões dades sociais, e se esta sociedade tem o traba-
da natureza é contida pelos grilhões da nature- lho como base, real ou ideológica, as normas
za humana sob a forma de dominação, e assim: devem também se referir às questões das rela-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 21
Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
ções de produção. Não se pode esquecer que tes como os que não a têm. Mas na sociedade
em uma sociedade de classes a formação é dis- de abundância de produção, real ou potencial,
tinta para os proprietários dos meios de produ- em que vivemos, há que se perguntar se a vida
ção e para os trabalhadores, ainda que, com a ainda precisa ser centrada no trabalho voltado
homogeneização sociopsicológica, todos tendem à produção, e se o valor dos homens deve ain-
a ter uma formação semelhante e, mais do que da ser aferido pela sua capacidade de ser efici-
isso, com a redução da cultura à civilização, esta ente.
tende a ser técnica e instrumental (ver ADOR- Com o avanço da tecnologia e da ciência,
NO, 1971). Tal formação instrumenta os indiví- há muito a miséria poderia ser eliminada da face
duos, não os forma. Nesse sentido, a educação da Terra, se não o é, isso se deve a motivos
predominantemente técnica não forma, mas políticos e não propriamente econômicos2 (ver
adestra, não permitindo a diferenciação indivi- HORKHEIMER; ADORNO, 1985, e MARI-
dual. Assim, o avanço objetivo não tem possibi- NI, 1997). Os economistas constatam, já há al-
litado a diferenciação individual, mas a sua gum tempo, que o desemprego que temos é
regressão; ao invés do avanço técnico garantir estrutural e que, assim, a lei da compensação,
a base da sustentação individual e permitir ao descrita também por Marx (1978), pela qual se
indivíduo se diferenciar por suas experiências, a tecnologia suprimia alguns empregos num
a técnica se torna o modelo da não diferencia- setor gerava outros em novos setores, quase
ção. Na análise de Benjamin (1989), o modelo não vige mais. Com a automação cada vez mais
de produção em série, no qual cada movimento desenvolvida, a necessidade do trabalho dimi-
não se associa ao anterior, é independente dele, nui (ver MARCUSE, 1981). Se é assim, o que
expressa a experiência restrita dos homens a significa a escola propor, entre os seus objeti-
partir do século XIX nas cidades mais desen- vos, a preparação para o trabalho? Significa a
volvidas. Pela ação técnica que finda em seu possibilidade de que com a escolarização os in-
resultado, deixa de haver continuidade entre as divíduos tenham mais chances de encontrar um
ações do homem. Isso ocorre também devido trabalho, numa competição acirrada. A pesqui-
ao predomínio das informações sobre a forma- sa de Lessa et al. (1997) mostra, no entanto,
ção, que são destacadas dessa, impedindo a que nos anos 1990 o deslocamento da mão-de-
continuidade, a experiência, o tempo: obra empregável da indústria para o setor de
La experiencia, la continuidad de la conciencia serviços3 foi acompanhado da escolha, por parte
en que perdura lo no presente y en que el ejerci- dos empregadores, de pessoas com maior es-
cio y la asociación fundan una tradición en el colaridade para cargos em que conhecimentos
individuo singular del caso, queda sustituida por básicos seriam suficientes.
un estado informativo puntual, deslavazado, in- A escola, para desenvolver habilidades e
tercambiable y efímero, al que hay que anotar competências, como hoje é fortemente defen-
que quedará borrado en el próximo instante por
dido, encontra-se algo ultrapassada se conside-
otras informaciones; ... (ADORNO, 1971, p. 260)
radas as necessidades sociais. Quando essas
Assim, não só em relação aos indivíduos com habilidades e competências não se referem ao
deficiência, a diferenciação individual tem sido convívio social e à incorporação da cultura, pela
obstada pela tendência regressiva do progres-
so, que torna a formação aquém do que pode- 2
Se a sociedade analisada por Marx (1978), constituída por
ria ser, posto que ela tende a ocorrer externa- classes sociais, tinha na economia um forte alicerce na sua
mente ao indivíduo, sem uma relação imanente estrutura, isso indicava a passagem de uma sociedade de
carência de produção para uma outra de produção abundan-
com os conteúdos que são apreendidos. te. Como a atual sociedade resolveu economicamente essa
Se as normas da modernidade se associam questão, resta o problema político: o usufruto dos bens por
todos; se os motivos econômicos continuam preponderan-
ao trabalho e à técnica, os indivíduos com defi- tes em nossos dias, os são em função da dominação política.
ciência são diferentes também devido a elas, e 3
Área que também está sendo automatizada, podendo pres-
têm, em geral, dificuldades de ser tão eficien- cindir de empregos.
22 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007
José Leon Crochík
qual a subjetividade se constitui, conforme foi dem se valer para expressar os seus desejos,
assinalado, mas ao preparo para o trabalho, as suas preocupações e medos, e essa expres-
devemos considerar que esse último já não é são é parte da possibilidade da diferenciação.
imprescindível, mesmo sob a forma de empre- Assim, o patrimônio da cultura deve estar dis-
go, para a produção dos bens necessários para ponível a todos para que seja apropriado, ainda
todos, como o era em outros tempos. Se a quan- que isso não implique métodos iguais para to-
tidade de trabalho necessário para a produção dos. Claro que se a escola mudasse seus obje-
diminuiu e se a exigência para o trabalho é ob- tivos, no sentido indicado, a necessidade da
jetivamente menor, volta a pergunta: que signi- avaliação deveria ser repensada. Já são visí-
fica educar para o trabalho? Este é um objetivo veis, na atualidade, algumas propostas escola-
anacrônico, e se ele se mantém é como crença, res que se contrapõem ao modelo tradicional,
como ilusão. Poderíamos já, tendo em vista as mas para que se disseminem é necessário com-
condições objetivas, ter uma educação que se bater os limites da sociedade atual, ainda cal-
volte para a vida. Algo disso está presente nas cada na relação capital-trabalho e em suas
proposições dos parâmetros curriculares, como ilusões.
o combate à discriminação, por exemplo, mas Há aproximadamente meio século Adorno
não parece suficiente. (1995) enfatizou que a educação só faz sentido
Assim, a luta pela modificação dos objeti- se for para a auto-reflexão, para o combate à
vos escolares e, portanto, da escola não se res- barbárie. Se a escola não se modificou subs-
tringe às crianças que têm dificuldades em tancialmente no intento de cumprir esses obje-
aprender, como às que têm deficiência mental, tivos, implica que continua a reproduzir, sem ter
por exemplo. Vale para todos os indivíduos. Se consciência disso, o que socialmente produz a
a questão da deficiência é contraditória à efici- violência: a necessidade da sobrevivência alia-
ência necessária para o trabalho, e se esse já da à competição. Isto é, a escola contemporâ-
não encontra sustentação objetiva para conti- nea tem uma limitada contribuição para
nuar a ser exigido de todos nós como outrora, formação de indivíduos que transcenda a luta
isso não significa que a escola não deva mais pela existência, ao mesmo tempo que incremen-
existir; ela é uma das principais instituições res- ta os impulsos necessários à competição e, por-
ponsáveis pela transmissão da cultura e, como tanto, à dominação. O objetivo da escola de
dito antes, sem a incorporação da cultura o in- formar para a eficiência, ainda que importante,
divíduo não tem como se diferençar; assim ela reproduz uma diferenciação, tida como natural,
deveria alterar os seus objetivos e, em conse- mas que é socialmente gerada: a hierarquia dos
qüência, seus métodos. mais e menos aptos; o indivíduo com deficiên-
Os indivíduos com deficiência mental são cia está na base dessa hierarquia. A escola para
diferençados pela discriminação, que os coloca a qual queremos atribuir o objetivo da inclusão
em um lugar desprezado socialmente. Mas não já se mostrava problemática antes desse movi-
é dessa diferenciação que tratamos até aqui, mento social; mais do que isso, como visto, ela
mas daquela que permite aos indivíduos se de- se tornou anacrônica, tendo em vista as mu-
senvolverem e se diferenciarem uns dos outros danças sociais que tornam prescindíveis boa
para além de suas condições materiais, corpó- parte do trabalho (alienado) humano.
reas etc. Isto é, uma diferenciação que vá além Antes de passarmos para a próxima parte
da discriminação por categorias. Ela pode ser deste texto, sublinhamos a título de síntese que:
pensada superando-se a dicotomia expressa no 1 - a contraposição entre as tendências para
início deste texto entre normalização e diferen- a normalização e para a diferenciação individu-
ciação, posto que implica a incorporação tam- al é falsa, posto que a normalização, se essa é
bém das normas culturais para que ocorra. entendida como a aquisição e o desenvolvimento
Quanto mais diversificada uma cultura, mais dos universais humanos, tais como a linguagem
instrumentos existem de que os indivíduos po- e o pensamento, deve servir de meio para a
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 23
Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
diferenciação, sem a qual ela não é possível. intelecção envolve não só a separação do es-
Isto também diz respeito aos indivíduos com pectador do filme, mas também o envolvimento
deficiência, posto que sem a cultura não se di- com os personagens e com a trama. O duplo
ferenciam para além da deficiência, que é sig- movimento se dá com a multiplicidade possível
nificada culturalmente; e apresentada na sensibilidade que o diretor trans-
2 - a inclusão social deve ser pensada se- mite para a sensibilidade do espectador. Um fil-
gundo novas formas de convivência que não me não retrata diretamente a realidade, mas a
somente as requeridas pelo mundo do trabalho, visão da realidade do diretor, que apresenta um
tendo em vista que o avanço social já permite mosaico. Segundo Benjamin (1989), o filme é
que seja dedicado um mínimo de esforço de adequado à sensibilidade moderna habituada a
todos para a reprodução de bens necessários choques contínuos sem relação entre si, à vi-
para a sobrevivência da humanidade. Trata-se vência, mas é tarefa do esclarecimento, por meio
de uma luta política que, considerando o desen- do pensamento e da linguagem, relacionar o que
volvimento econômico, já pode reivindicar di- se encontra separado. No caso do filme em
reitos iguais para todos. questão, a relação entre os diversos momentos
diz respeito também à construção do tempo no
tempo da obra. Tempo da transformação de
2. “Os dois mundos de Charly” Charly, daquilo que era – alguém com deficiên-
cia mental – para aquilo que passou a ser, por
O filme “Os dois mundos de Charly” foi re- meio de uma operação – alguém dotado de in-
alizado em 1968 por Ralph Nelson, e traz a dis- teligência acima da média. Tempo que ele e
cussão da normalização da deficiência mental Algernon – o rato cobaia que se submeteu à
ou da resignação a ela4 . Charly tem deficiên- operação antes de Charly e que também au-
cia mental e após se submeter a uma neuroci- mentou a sua inteligência – gastam para des-
rurgia passa a ter uma inteligência acima da cobrir o caminho no labirinto5 ; tempo que Charly
média, sendo que, antes dele, alguns ratos tam- levou para aprender o conteúdo escolar; tempo
bém se submeteram a essa cirurgia com bons que ele levou para operar a máquina de fazer
resultados. Com o tempo – a fase 5 após a ope- pães6 ; tempo defasado em que Charly amadu-
ração, o rato Algernon morre, indicando a to- receu cognitivamente em comparação com o
dos que o êxito da cirurgia era temporário e tempo de seu desenvolvimento afetivo7 ; tempo
que, portanto, Charly voltaria a ser como antes, que Charly levou para buscar a solução de seu
o que acabou acontecendo. problema8 . São tempos de comparação, tem-
Ao longo do filme são mostradas as ativida- pos de separação, tempos de descoberta, tem-
des de Charly na padaria onde trabalhava, lim- pos de reconhecimento, perenidade e aflição
pando o chão; as aulas no curso noturno que presentes nas visões distintas do amanhã da
freqüentava para melhorar sua alfabetização;
4
o quarto que alugava; a balança na qual se di- Deve-se sublinhar que nesse filme, datado da década de
1960, de movimentos sociais expressivos que lutavam por
vertia; e suas relações – antes e após a cirurgia modificações sociais e culturais, a discussão sobre a diversi-
– com a professora, com os seus colegas de dade em relação às pessoas com deficiência ainda não se
apresentava com a força de hoje.
trabalho e com a locadora de seu quarto. Esse 5
Charly competia com Algernon quanto ao tempo que
é um resumo do filme que certamente não lhe necessitariam para chegar ao fim de um labirinto. O labirin-
faz justiça, mas penso que suficiente para a to de Algernon era percorrido com o corpo, e o labirinto
desenhado para Charly, pela mão.
análise que se segue. 6
Após a cirurgia, um colega o desafiou a operar a sua máqui-
Analisar um filme envolve necessariamente na, algo que levou tempo para aprender, e Charly, de imedi-
a intelecção do que o diretor quis apresentar, ato, consegue operá-la.
7
além da interpretação daquilo que é mostrado O afetivo nesse caso se refere especialmente aos seus
desejos sexuais.
como conteúdo manifesto. O conteúdo e a sua 8
Ao saber que voltaria a ser como antes, Charly tenta
forma de transmissão são inseparáveis. Essa encontrar uma saída para que isso não ocorra.
24 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007
José Leon Crochík
professora e de Charly. Charly prevê as bodas o tempo dos objetos e não mais convivemos com
de ouro, no casamento com a professora; essa eles. Segundo Benjamin (1989), os objetos na
prevê o café da manhã seguinte. O tempo é de modernidade tendem a perder a sua aura, já
superação do tempo e da impossibilidade des- não suscitam mais o nosso olhar que, assim
sa. O tempo que leva da não diferenciação para como as palavras, quanto mais permite proxi-
a diferenciação e dessa para a não diferencia- midade, mais longe nos leva. O olhar para o
ção. Não é o tempo que aperfeiçoa os homens indivíduo que têm deficiência mental – para a
e as coisas, como propõe Joubert, citado por sua lerdeza de movimento – , o olhar do indiví-
Benjamin (1989), nem o tempo da recordação, duo com deficiência para os seus objetos pe-
como busca Proust. O passado – Charly com dem pela proximidade que nos leva longe, sem
deficiência mental – é negado e só aparece precisar voar.
como desespero, quando Charly procura reagir Charly sem deficiência perde os amigos que
a ele, buscando, pela ciência, não retornar a ter nunca teve9 : “É igual a lei da gravidade, diz ele,
deficiência. mais inteligência significa a perda de amigos”.
Ora, a luta de Charly para não se tornar o Charly está sozinho, nós estamos sozinhos.
que era é compreensível para nós. Implica, no Esse, contudo, é o resultado do movimento do
entanto, algo de universal: a negação da fragili- progresso da civilização. Horkheimer e Ador-
dade de nossa infância individual e coletiva, que no (1985) nos lembram: “... a socialização uni-
é correlata ao desejo de regressão à natureza versal, esboçada na história de Ulisses, o
que, segundo Horkheimer e Adorno (1985), gera navegante do mundo, e na de Robinson, o fa-
a crueldade: “Extirpar inteiramente a odiosa, bricante solitário, já implica desde a origem a
irresistível tentação de recair na natureza, eis solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim
aí a crueldade que nasce na civilização malo- da era burguesa. Socialização radical significa
grada, a barbárie, o outro lado da cultura” (p. alienação radical.” (p. 66)
106). Se o regresso ao passado significa fragi- O desenvolvimento da inteligência, possível
lidade a ser negada, o tempo deve ser negado. com a socialização radical, nos põe a distância
O tempo do que é significativo para nós deve daqueles que superamos. Assim, como quere-
ceder lugar ao tempo dos relógios. Para os que mos negar o passado como algo já superado,
se movem sob a égide dos ponteiros do relógio, aqueles que superamos por nossa inteligência
a lentidão dos que têm deficiência mental gera se separam de nós. Charly, ao se tornar mais
irritação, pois, assim como negam o passado, inteligente do que seus colegas de trabalho, é
desaprenderam a se voltar ao amanhã, a um abandonado por eles. Por ter deficiência men-
projeto, uma vez que a rapidez é resposta de- tal não pertencia propriamente ao grupo de co-
sesperada a poder morrer no segundo seguin- legas (era humilhado por esses); já como
te; é o medo de não ter tempo para concluir a inteligente não pode mais pertencer (os cole-
tarefa. Na luta de Charly para negar o passa- gas se sentem humilhados por ele). Somente a
do, esse é igualado à morte. Segundo a frase inteligência medíocre, isto é, a que está no limi-
de Bernard Shaw, citada no filme, a transfor- te das tarefas cotidianas não é alvo nem de des-
mação dada pelo conhecimento gera a sensa- prezo e nem de medo. A amizade para Charly
ção de algo que perdemos, mas que o filme não é possível com a sua deficiência e nem como
mostra que não perdemos. alguém que se destaca pela inteligência. O so-
A impaciência que temos com a lentidão dos litário não quer solidão, como ocorre com a per-
que têm deficiência revela a repulsa do domí- sonagem de Proust na busca do tempo perdido,
nio do tempo dos objetos sobre nós. Marx (1978) que para escrever sobre a vida mundana afas-
indica que com o desenvolvimento da maquina-
ria o homem se torna apêndice da máquina; 9
Após operar a máquina de fazer pães, algo que seria supos-
deve, assim, obedecer ao seu ritmo. Mas, com tamente impossível para Charly, seus colegas pedem para
a construção do tempo dos relógios, destruímos que ele seja demitido.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 25
Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
ta-se dela. No caso de Charly, a lembrança do com dificuldades, busca a possibilidade daquilo
passado, ao qual resiste a retornar, é forte e o que não é: ser inteligente, ver o mundo. Essa
leva a tentar conseguir o que não tinha antes: a comparação, de outro lado, faz sentido, se lem-
amizade. Das reações dos colegas de Charly brarmos que o homem da civilização industrial
depreende-se que ninguém deve se diferençar ‘perdeu’ o olfato com a predominância da vi-
para pior ou para melhor, e que ninguém deve são. O cheiro nos aproxima ou nos distancia de
ser diferente do que é. imediato do objeto, o qual, por sua vez, para
“A neurose resulta da perda de contato com continuar a ser visto, pede pela distância. Mais
o universal”, expressa o universitário, ao início um elemento da solidão radical. Não que a vi-
do filme, citando Jung. O universal contém as são não seja importante, mas seu desenvolvi-
idéias de eternidade, perenidade e perfeição que mento não deveria nos mutilar outros sentidos.
se contrapõem à limitação e às imperfeições No labirinto exibido no filme, e também repre-
das contingências mundanas. O imperfeito – sentado pela saída cirúrgica, não se procura a
todos nós – tem o lugar do excluído-incluído no saída, mas o seu fim: para Algernon, o rato, a
universo perfeito, apontando para aquilo que morte, para Charly, o retorno, o sempre igual10 ;
somos e não queremos ser. Dessa forma, o efê- será a morte?
mero, o particular, não tem importância frente Charly, antes da operação, queria ser mais
ao eterno; a idéia do universal tolhe qualquer esperto, tinha a percepção de que era diferente
particular, como se ele não fosse constituído de pois não percebia o que os outros diziam, falta-
particulares. Além disso, a tentativa do concei- va-lhe algo para compreender o que é ‘prema-
to – representando o universal – coincidir com turamente científico’. As respostas que deu à
o objeto obsta a percepção particular desse úl- platéia de cientistas11 mostram o retorno à bar-
timo, algo próprio do preconceito. Isso não sig- bárie dado pela padronização da cultura; assim,
nifica que o conceito não seja importante para a ciência não deu conta de seus objetivos. A
que possamos superar as dificuldades existen- impotência da cultura e da ciência frente a Char-
tes e sobrevivermos, mas quando ele tenta co- ly é a impotência frente ao homem. Esse che-
incidir com o objeto, não deixando restos, gou a um estágio da cultura no qual a razão
aniquila as possibilidades de liberdade desse úl- onipotente é irracional. A idiotização da cultura
timo. A palavra, o conceito, pode aprisionar ou refletida nas guerras, na padronização da edu-
libertar; quando não guarda distinção do objeto, cação pelos meios de comunicação, é fruto de
o aprisiona: sua sofisticação, alheia aos interesses de proxi-
Antes, o juízo passava pela etapa de pondera- midade entre os homens. Ela – a cultura – não
ção, que proporcionava certa proteção ao sujei- é irracional por tentar fazer os homens melho-
to do juízo contra uma identificação brutal com o res do que são, mas por tentar anular neles o
predicado. Na sociedade industrial avançada, que os difere dos animais: a própria compreen-
ocorre uma regressão a um modo de efetuação são dos limites.
do juízo que se pode dizer desprovido de juízo, Charly é considerado inferior, e na sua fala,
do poder de discriminação. (HORKHEIMER;
quando despedido da padaria, a pedido dos co-
ADORNO, 1985, p. 188)
legas, mostra o significado dessa inferiorização:
A comparação apresentada entre a inteli- “Ninguém ri de um cego, de um deficiente físi-
gência do rato e a do homem, se centrada na co, mas ri daqueles que têm deficiência men-
inteligência, na compreensão do problema, é tal”. Quem tem deficiência é o semelhante-di-
insustentável, dado o instrumental e o objetivo ferente, consegue compreender que lhe falta
que cada um deles – Algernon e Charly – têm.
Algernon, principalmente, pelo olfato, sem ter a 10
O desespero de Charly operado aparece num labirinto, no
qual em cada cruzamento encontra seu outro eu.
‘visão’ do todo (o labirinto), busca aquilo de que 11
Com o resultado da operação, os cientistas responsáveis
foi privado – o alimento. Charly, utilizando a vi- por ela reuniram cientistas do mundo todo, para fazer ques-
são como instrumento de uma mente que ‘vê’ tões a Charly, isto é, para confirmar o êxito obtido.
26 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007
José Leon Crochík
algo para ser igual aos outros, o que o torna ça bruta, mas enquanto força bruta e não no
semelhante aos demais. É um ‘incluído-excluí- seu sentido social, que a obrigaria a se voltar
do’ da cultura, é aceito para fazer determina- para o bem comum e à compreensão da possi-
dos trabalhos, mas é ridicularizado. Quando bilidade de pessoas diferentes conviverem. As
Charly mostrou, na padaria, ser mais inteligen- respostas de Charly à platéia de cientistas mos-
te do que os outros, continuou a ser diferente, tram isso. O que é questionável, então, não é só
pois, então, os outros é que passaram a se sen- o ato do cientista, mas o que move a ciência e a
tir ridicularizados. O encontro do Charly inteli- sua separação da moral e do mundo. A ques-
gente com o Charly ridicularizado, vivido pelo tão é: por que tornar Charly inteligente, no sen-
garçom desastrado12 , cessa o riso. Da solidari- tido em que o filme denota inteligência? Por que
edade, movida pela identificação, e não pela julgá-lo deficiente? Charly responde à platéia
compaixão, o homem pode se reconciliar com de cientistas: para ver o mundo, e ele vê guer-
o seu outro ‘eu’, mas isso só ocorre após Char- ras, tristeza, destruição.
ly saber que voltará a ser o que era, e foge da Mas vê também o prazer, o amor. O amor
lembrança, no labirinto, no qual em todos os que via antes da operação quase que aparece
cruzamentos se reencontra. na lembrança da mãe, que não era a mãe, e sim
O diferente-semelhante gera o ódio pelo di- a mulher da instituição que punha a mão em
ferente por lembrar o quão próximos estamos sua cabeça. Não era só a ausência de inteli-
dele, e o quanto nos esforçamos por dele nos gência que lhe negava o amor, o abandono tam-
afastar. Queremos modelar o diferente, tal qual bém. O despertar da sexualidade, expressado
modelamos a massa do pão. O direito de Char- nos quadros de Charly, levaram à dupla inter-
ly se tornar mais semelhante aos outros, pela pretação: o cientista defendia que o pensamen-
experiência científica, e o dever dos cientistas to abstrato se expunha na tela; a cientista que o
de conseguir isso perpassa o filme. Será que desenvolvimento emocional não acompanhara
Charly tinha condições de optar pela operação? o intelectual; num caso e no outro, a sexualida-
Será que o médico deveria ser responsabiliza- de de Charly é negada. É negada também pela
do eticamente por fazer experiências com se- professora, quando ele a beija e abraça à força,
res humanos, sem antes ter experimentado o e a sua resposta é chamá-lo de ‘retardado’. É
suficiente com animais? necessário que Charly viaje, namore, tome dro-
A primeira questão nos coloca frente a um gas, para voltar e ser aceito como homem por
paradoxo. Trata da autonomia da razão para ela.
poder escolher, de alguém que supostamente O cientista sabia que o êxito da operação
não tem essa capacidade, mas compreende que poderia ser temporário, mas tudo é temporário,
com a operação, no caso, pode ser mais igual e esse é o sentido que se extrai da frase de
aos outros. A segunda questão envolve, além Einstein dita no filme e da recusa da professora
do aspecto ético, algo que lhe é inseparável, que em se casar com Charly. O que é permanente
é a epistemologia. Impossível não associar os é a deficiência à qual ele está condenado. O
ratos da fase cinco com a idéia de computado- balançar do personagem repete sempre o mes-
res de última geração. A inteligência é associa- mo movimento: se move para voltar ao mesmo
da à capacidade de trabalhar com variáveis lugar; do vôo às alturas retorna à proximidade
abstratas, com o pensamento formal, e é esse da terra.
que é utilizado pelos cientistas para tornarem O sorriso estúpido de Charly frente aos co-
possível a operação de Charly, e que é requisi- legas ilude a impotência frente aos zombetei-
tado dele para resolver o seu problema. O per- ros, que lembra a impotência desses frente à
correr o labirinto para Charly não tem sentido,
assim como o culto à inteligência humana que, 12
Em um bar, Charly, que já sabe que retornará ao que era,
vê um garçom derrubar a sua bandeja com copos; enquanto
dissociada de seu aspecto ético, leva à regres- todos riem, Charly o ajuda. Nesse ato, faz todos cessarem o
são, à barbárie. A inteligência substituiu a for- riso.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 27
Normalização e diferenciação do indivíduo com deficiência mental: uma análise do filme ‘Os dois mundos de Charly’
obediência à Carta Magna, que desconhecem rar a cultura da natureza é infrutífera. No seu
mas a qual se submetem. Contrasta com o olhar texto, Mal-estar na civilização, Freud (1986)
sério e triste de Charly frente à impotência que argumenta que o sentido da vida para os ho-
tem: quando de posse do universal da razão, mens é sua felicidade e que o progresso, ape-
tem de se submeter aos limites dessa. O que sar de sua inegável importância, não tem
Charly deseja com a operação é compreender contribuído com esse objetivo. Segundo
o que os amigos dizem para ser mais amigo Horkheimer e Adorno, o progresso ainda está
deles, e não para ver as coisas como são. Charly envolvido com a necessidade de dominação, que
e os cientistas se enganaram. Charly perdeu Freud não deixou de relacionar com a onipo-
seus amigos, e os cientistas perderam a razão tência infantil. O avanço da sociedade racional
de Charly. trouxe consigo a regressão infantil. Os desejos
A solidão parece ser a marca do filme. Char- não só não se desenvolvem na sua possível bus-
ly, a professora, a locadora. O animal domésti- ca de objetos, como regridem à sua expressão
co preenche o espaço da comunicação mais primitiva.
impossível com o outro. Cuidamos do animal No que tange aos que têm deficiência men-
de estimação para que ele nos dê algo em tro- tal, a cultura atual tenta lhes proporcionar a
ca. Mas ele precisa ser domesticado. Quando possibilidade de sua incorporação e assim a
obtém a inteligência, Charly não é mais domes- possibilidade de expressão e elaboração dos seus
ticável, não precisa mais de cuidados, para, em desejos. As possibilidades da busca de objetos
troca, ter de abarcar a manifestação dos senti- consoantes a esses desejos, contudo, ainda são
mentos dos outros. Mas ele busca a domesti- em boa parte obstadas: amizade, amor, escola-
cação de seus sentimentos na procura do rização e trabalho (mesmo com os limites ex-
casamento. Quer se casar com a professora- plicitados no início deste texto).
mãe-mulher, criadora e castradora; no casa- Até que ponto os que têm deficiência men-
mento, vê a perenidade. Mas ele precisa viajar, tal conseguirão ir é difícil dizer, ainda que as
se separar da criadora, para que ela veja nele perspectivas sejam promissoras. Mas da dis-
um outro, que não a sua criação, aceitando-o cussão que contrapõe normalização à diferen-
como amante, e não como marido. O casamento ciação, podemos dizer que ambas são
só é aceito pela professora quando ela tem a importantes: não dizem respeito unicamente aos
garantia de que ele irá acabar. Frente à possibi- que têm deficiência, mas a todos nós. Todos
lidade da ilusão, o personagem prefere ficar só. passamos pelo processo de socialização para
Limite de Charly, limite dos homens. podermos viver uma vida humana, isto é, em
civilização. A socialização, por meio de suas
normas e transmissão da cultura, deveria nos
3. Considerações finais diferençar. Quanto mais incorporarmos da cul-
tura, mais poderemos elaborar, expressar e bus-
A questão discutida neste texto envolve uma car os objetos e objetivos importantes para nós.
dialética: a dos limites. Os homens têm, histori- Essa interpretação também pode ser feita do
camente, superado limites e, ao mesmo tempo, filme analisado, a crítica de Charly à nossa cul-
buscado negá-los. Somos natureza e mais do tura envolve a sua padronização e tendência
que natureza. Se desconhecermos os limites de destrutiva. Qualquer alteração na socialização
nossa natureza, perdemos qualquer objetivo, toda só é possível com alterações profundas na so-
finalidade que dela emana. Os desejos, segun- ciedade. Se essa é uma sociedade que enfatiza
do a psicanálise, levam à busca de objetos que a eficiência e a competição, dificilmente os
tentam satisfazê-los. Para essa busca precisa- menos competitivos terão um lugar que não seja
se da imaginação, dos símbolos, da inteligência, o de menosprezo. Se por outro lado nos dermos
mas eles remetem ao corpo. A definição de conta de que a eficiência pode, em boa parte,
desejos ilustra que a discussão que tenta sepa- ficar a cargo das máquinas e que a competição
28 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007
José Leon Crochík
não é necessária para a sobrevivência dos ho- nhum de nós – incluindo os que têm deficiência
mens e entre os homens, poderemos ter uma – precise sofrer a ameaça do abandono devido
sociedade efetivamente humana, na qual ne- aos seus limites.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICS, Anete. Educação inclusiva. In: SANTOS, Gislene A.; SILVA, Divino José da (Org.). Estu-
dos sobre a ética: a construção de valores na sociedade e na educação. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2002.
p. 299-311.
ADORNO, Theodor W. Teoria de la pseudocultura. In: HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W.
Sociologica. Tradução de Victor Sánchez de Zavala. Madri: Taurus ediciones, 1971. p.233-267.
_____. De la relación entre sociología y psicología. In: ADORNO, Theodor W. Actualidad de la filosofia.
Tradução de José Luís Arantegui Tamayo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica. 1991. p.135-204.
_____. Sobre sujeito e objeto. In: _____. Palavras e sinais. Tradução de Maria Helena Ruschel. Petrópolis:
Vozes, 1995. p.181-201.
HORKHEIMER, Max; ADORNO, Theodor W. Dialética do esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de
Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: _____. Charles Baudeleire: um lírico no auge
do capitalismo. Tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Brasiliense, 1989.
FREUD, Sigmund. El mal estar em la cultura. In: BRAUSTEIN, Nestor, A. (Org.). A medio siglo de el mal estar
en la cultura de Sigmund Freud. México: Siglo Veintiuno, 1986. p. 13-116.
LESSA, Carlos et al. Pobreza e política social: a exclusão nos anos 90. Praga: Hucitec, 1997. n.3, p.63-87.
(Estudos marxistas)
MARCUSE, Herbert. Eros e civilização. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de janeiro: Zahar, 1981.
MARINI, Ruy Mauro. Proceso y tendencias de la globalización capitalista. Praga: Hucitec, n. 3, p. 89-107,
1997. (Estudos marxistas)
MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 9. ed. Tradução de Reginaldo Sant’Anna. São Paulo:
Difel, 1984. (Livro primeiro, v. 1)
MITTLER, Peter. Educação inclusiva: contextos sociais. Tradução de Windiz Brazão Ferreira. Porto Alegre:
Artmed, 2003.
Recebido em 30.10.06
Aprovado em 30.10.06
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 19-29, jan./jun., 2007 29
Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari
RESUMO
ABSTRACT
* Psicóloga formada pela Universidade Estadual de Londrina, atua no Ambulatório de Saúde Mental da Prefeitura de
Cândido Mota-SP. Mestre em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Univer-
sidade Federal de São Carlos. Endereço para correspondência: Rua Coronel Siqueira Reis, 45, Jardim Estoril – 17514-
320 Marília-SP. E-mail: camilamugnai@gmail.com
** Mestre em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Especial e Doutora em Educação, área
de Metodologia de Ensino, pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Carlos.
Professora adjunta do Depto. de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Universidade
Federal de São Carlos. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Educação Especial da Univer-
sidade Federal de São Carlos. Rodovia Washington Luis, Km 235 – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail:
fadenari@terra.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007 31
O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica
reveals lack of information about disabilities. and that some disabilities seem to
be perceived more easily than others. Some studies indicate that the children
reproduce social conceptions about people with disabilities, as they see them
as incapable and dependent. The data collected about education of children
with disabilities, their social acceptance and attitudes toward inclusion are very
diverse. Although the results are still varied and sometimes contradictory, the
majority of the studies indicates that contact with people with disabilities and
access to information about the subject can contribute to the construction of
more appropriate conceptions and positive attitudes. The results also indicate
the necessity to develop more research and intervention about this subject.
Keywords: Social attitudes – Conceptions – Children – Disabilities – Inclusion
32 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007
Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007 33
O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica
afirmar também que, independentemente dos e emocionais das deficiências, indicando ver as
mecanismos que geram tais reações, de um pessoas com deficiência como indivíduos tris-
modo geral elas criam “barreiras atitudinas”. tes, sem amigos, incapazes de brincar. Quanto
Essas barreiras são ações ou comportamentos ao futuro, também foram apresentadas visões
discriminatórios dirigidos a algo ou alguém, que pessimistas de que as pessoas com deficiência
se concretizam nas relações interpessoais ba- não poderão trabalhar nem manter relaciona-
seadas em estereótipos e que funcionam como mentos afetivos mais íntimos.
“entrepostos” entre as pessoas. São baseadas Ferreira (1998) realizou um estudo com 192
no desconhecimento vivencial e intelectual e têm crianças de cinco a oito anos, alunas da pré-
como componentes ambivalentes emoções e escola e da primeira série das redes munici-
opiniões ambíguas (AMARAL, 1996). pal, estadual e particular da cidade de
Segundo Coll e Miras (1995), em um estudo Londrina-PR, com o objetivo de investigar as
específico da interação entre alunos e profes- suas concepções acerca da deficiência men-
sores, as pessoas constroem representações tal. Os resultados revelaram uma ausência de
umas das outras em suas interações, baseadas informações sobre deficiência por parte das
na história pessoal, nos valores e na cultura de crianças participantes. A partir disso, a autora
cada um. Isso ocorre mediante diferentes me- desenvolveu um programa informativo sobre
canismos: por informações prévias cedidas por o tema por meio da realização de diversas ati-
terceiros, pela observação mútua direta de suas vidades educacionais e lúdicas, cujos dados,
características e seus comportamentos, marca- de modo geral, indicaram transformações con-
da pela impressão inicial, e por uma observa- sideráveis nas concepções, atitudes e senti-
ção continuada. mentos das crianças a ele submetidas,
indicando uma assimilação dos conteúdos tra-
balhados. Participaram do programa 148 cri-
Concepções e atitudes infantis em anças da pré-escola e primeira série, sendo
relação à deficiência: o que di- que esse trabalho representa uma das raras
zem as pesquisas intervenções acerca do tema no Brasil.
Marques, Moreira, Maria e Passos (1997),
Magiati, Dockrell e Logotheti (2002) reali- em uma pesquisa realizada com crianças da
zaram um estudo na Grécia com 83 crianças rede pública municipal de Juiz de Fora-MG so-
de oito a onze anos sobre a variedade de defici- bre suas concepções a respeito da deficiência,
ências, sua natureza e causas. As crianças fo- observaram que as crianças relacionam a defi-
ram entrevistadas e avaliadas por uma escala, ciência à falta, ausência e especificamente a
e muitas delas apresentaram respostas inapro- um corpo imperfeito. Assim, aspectos de maior
priadas ou não souberam responder às ques- visibilidade foram mais citados entre as crian-
tões. Com relação aos tipos de deficiências aos ças na definição de deficiência. Muitas delas
quais as crianças se referiram, 70% foram de- apresentaram uma visão do deficiente como
ficiências físicas e apenas 18% problemas cog- extremamente dependente, inclusive para rea-
nitivos ou mentais. Segundo os autores, além lizar atividades básicas. Com relação ao futuro,
de as crianças perceberem mais rapidamente as crianças entrevistadas também disseram que
as deficiências com características mais visí- as pessoas com deficiência não podiam traba-
veis, as identificam porque geralmente estas lhar, partindo da idéia de déficit social. Algu-
exigem mais técnicas e equipamentos diferen- mas sugeriram adaptações e possibilidades de
ciados, possíveis de serem observados, como trabalho, segundo determinadas condições,
por exemplo cadeira de rodas, máquina de es- como a escolha de atividades adequadas e a
crita Braile, linguagem de sinais, próteses, en- utilização de equipamentos.
tre outros. As crianças apresentaram concep- Algumas diferenças quanto às idades pude-
ções estereotipadas sobre as implicações sociais ram ser observadas. As crianças de sete anos
34 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007
Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari
ressaltaram a falta, a ausência de membros ou ses especiais para deficientes e a outra metade
funções; as de oito anos citaram a necessidade de escolas sem alunos deficientes. Muitas cri-
de cura para a convivência social; as de nove anças apresentaram dificuldades em responder
anos mostraram-se dispostas a ajudar; e as se conheciam uma pessoa com deficiência e
mais velhas apresentaram discursos de carida- de caracterizar a pessoa conhecida, mesmo
de e demonstraram ter piedade pelas pessoas aquelas que estudavam em escolas com clas-
com deficiência, devido à sua impossibilidade ses especiais. Assim, a autora concluiu que,
de viver uma vida normal. A maioria das crian- apesar de freqüentarem o mesmo espaço es-
ças não acredita na escolarização de todos de- colar, as crianças pareciam não estar interagin-
ficientes, em função de alguns tipos de do. Alguns alunos deram a impressão de não
deficiência que impossibilitam a realização de ter conseguido caracterizar as pessoas com
algumas atividades escolares. Elas falaram das deficiência que conheciam pela invisibilidade da
necessidades de ajuda às pessoas com defici- deficiência. E várias crianças (43,9%) descre-
ência e de sua disponibilidade em ajudá-las. Os veram os deficientes pelas características ne-
pesquisadores interpretaram esses relatos como gativas observadas, como anomalias e limita-
uma combinação de sentimentos de solidarie- ções. No mesmo estudo, o deficiente foi descrito
dade e piedade. como incapaz e improdutivo, dependendo de
Lewis (1995) desenvolveu várias pesquisas ajuda não apenas nas questões acadêmicas, mas
com crianças acerca do tema, na Inglaterra. Entre também no atendimento a necessidades bási-
algumas de suas descobertas pode-se destacar cas. Quanto à possibilidade de as crianças com
que, quando as crianças são questionadas para deficiência estudarem, a grande maioria (48 de
descrever pessoas com deficiência, geralmente 64 no total) respondeu positivamente, enquanto
citam a deficiência física, por ser a mais facil- treze responderam negativamente e três colo-
mente reconhecida e compreendida. As crian- caram restrições. Todavia, 65,4% responderam
ças de até cinco anos percebem a deficiência que as crianças deveriam estudar em escolas
física e as deficiências sensoriais, enquanto os ou classes de ensino especial, enquanto 28,8%
problemas emocionais só são percebidos a partir responderam que deveriam estudar em escolas
dos oito anos. Segundo Lewis (1995), se a crian- e classes comuns. Entre os motivos apresenta-
ça tem familiaridade com uma deficiência, pode dos pelos alunos para não estudarem com cri-
generalizar características desta para outras de- anças com deficiência foram citadas as dificul-
ficiências que não conhece. dades acadêmicas e o possível aumento de
Diamond e Kensinger (2002), nos Estados trabalho para os professores e todos os cole-
Unidos, entrevistaram 21 crianças pré-escola- gas. Nenhum aluno citou a possibilidade de o
res após estas assistirem a vídeos sobre crian- professor de ensino especial participar da in-
ças com deficiência física e outras com clusão ou trabalhar conjuntamente com o pro-
Síndrome de Down. A deficiência física foi mais fessor do ensino comum.
percebida e compreendida que a deficiência Batista e Enumo (2004) estudaram a intera-
mental. Nesse estudo, algumas crianças ver- ção entre alunos com deficiência mental e seus
balizaram que as crianças com Síndrome de colegas de sala, em escolas de Vitória-ES, por
Down teriam conseguido realizar as atividades meio de testes sociométricos e filmagens das
no vídeo se tivessem se esforçado mais, evi- interações. A pesquisa indicou que as crianças
denciando uma incompreensão da deficiência com deficiência mental foram menos aceitas,
mental. mais rejeitadas e permaneceram isoladas dos
Martins (1999) entrevistou 64 crianças do demais alunos da sala.
ciclo I do ensino fundamental de escolas de Resultados semelhantes foram encontrados
Marília-SP sobre diferentes aspectos da inclu- na Austrália por Roberts e Zubrick (1993), em
são de alunos com deficiência, sendo metade cujo estudo foram levantados apontamentos
dos alunos entrevistados de escolas com clas- negativos sobre alunos com deficiência por parte
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007 35
O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica
de alunos sem deficiência, que relacionaram podem precisar de ajuda em alguns momentos.
comportamentos inadequados e problemas aca- Isso pode cansar ou irritar algumas das outras
dêmicos percebidos à sua aceitação do defici- crianças, que não estão acostumadas a espe-
ente. Ray (1985) também evidenciou concep- rar, ter paciência ou tolerância.
ções negativas dos alunos sem deficiência com Bussab (1997), de São Paulo, discute estu-
relação aos deficientes. dos experimentais sobre comportamentos pró-
Roberts, Pratt e Leach (1991) observaram sociais em crianças. A empatia é vista em
a interação de crianças com deficiência, inte- muitos estudos como mediadora de comporta-
gradas a uma escola comum. Os dados indica- mentos pró-sociais e de ajuda. Porém, altos ní-
ram que as crianças com deficiência não veis de angústia diante do sofrimento do outro
interagiram diferentemente das outras na sala revelaram-se prejudiciais aos comportamentos
de aula e com seus professores. Porém, nos de ajuda, tendo as crianças a tendência de fo-
recreios, essas crianças não eram tão solicita- calizar-se em seus próprios sentimentos em
das quanto as outras e mostravam-se isoladas detrimento do outro nestas situações. No en-
ou interagindo com adultos. tanto, outras pesquisas descritas pela autora
Glat (1995), no Rio de Janeiro, coletou rela- mostram resultados contrários e relacionam a
tos de crianças que temiam a contaminação pela ansiedade diante do sofrimento do outro a uma
criança com deficiência. Além desses dados, preocupação com ele e um aumento do com-
pais de crianças sem deficiência disseram sen- portamento de ajuda. Alguns estudos citados
tir-se temerosos com a interação de seus filhos pela autora mostram diferenças quanto ao gê-
com crianças com deficiência na sala de aula, nero, sendo que na pré-escola as meninas de-
supondo que seus filhos poderiam imitar com- monstram mais comportamentos sociais que os
portamentos inadequados ou ter seu desenvol- meninos.
vimento comprometido. Lee, Yoo e Bak (2003) realizaram, na Co-
Mulderij (1996), na Holanda, apresenta re- réia, observações de pares formados por cri-
sultados semelhantes aos de Roberts et al. anças sem deficiência e crianças com
(1991), nos quais crianças já indicam “barrei- deficiência, comparando-os com pares forma-
ras atitudinais” pelo desconhecimento ou não dos apenas por crianças sem deficiência. Os
compreensão da deficiência, excluindo os cole- autores levantaram, como principais tipos de
gas com deficiência de situações de jogos. As interação social relatados por crianças sem de-
atividades comuns da infância, como brincar, ficiência com relação a crianças com defici-
são essenciais para socialização. As crianças ência, o “brincar juntos” e “ajudar o outro”, o
com deficiência geralmente não participam de que revela a possibilidade de relacionamentos
tais atividades, apenas interagem com familia- de troca nas amizades e de interações basea-
res e profissionais. Em instituições especiais e das na ajuda prestada pela criança sem defi-
ambientes restritos, as crianças com deficiên- ciência à deficiente.
cia diminuem suas possibilidades de aprendiza- York et al. (1992) entrevistaram crianças do
do de iniciação e manutenção de amizades com ensino comum que estudavam em classes com
crianças não-deficientes. Mulderij (1996) rela- alunos deficientes integrados, nos Estados Uni-
tou que algumas limitações do corpo impossibi- dos. As crianças mostraram reconhecer atri-
litam a participação de crianças com deficiência butos positivos dos deficientes, ter respeito por
em algumas brincadeiras, mas a não aceitação eles enquanto indivíduos e estar dispostas a
delas nas brincadeiras não ocorre apenas por auxiliá-los. A grande maioria das crianças
esse motivo, mas também apenas com a justifi- (89,5%) mostrou-se a favor da integração, em
cativa de serem deficientes. Segundo a pesqui- função da importância para os deficientes de
sadora, as crianças com deficiência podem estar entre os normais e para os alunos sem
necessitar de um tempo maior para aprender deficiência aprenderem mais sobre seus cole-
as brincadeiras ou para se adaptar a elas, e gas com deficiência. Apesar de a maioria ser a
36 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007
Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari
favor da integração, muitos (78,4%) restringi- de desenhos e figuras para serem avaliados por
ram a participação dos deficientes a algumas elas. Os participantes indicaram atitudes positi-
aulas. vas, visão das habilidades dos deficientes, dis-
Krajewski, Hyde e O’keeffe (2002) estuda- ponibilidade para brincar e ajudar, diferente-
ram as mudanças ocorridas nas concepções de mente de alguns estudos que mostram
jovens estudantes americanos de 1987 a 1998, isolamento e rejeição (BATISTA e ENUMO,
referentes às deficiências, utilizando um inven- 2004, RAY, 1985, ROBERTS e ZUBRICK,
tário multidimensional, com escalas que avalia- 1993). Segundo Tamm e Prelliwitz (2001), pode
ram questões sobre integração, direitos, crenças ser que isso tenha ocorrido por essa ser uma
e proximidade social. Os resultados indicaram situação hipotética e não real. As crianças, de
distinções quanto ao gênero, tendo as mulheres modo geral, perceberam os obstáculos que as
apresentado atitudes mais positivas que os ho- crianças com deficiência física enfrentam. Hou-
mens. Uma importante diferença encontrada no ve diferenças de gênero quanto às sugestões
período foi um aumento nas atitudes positivas de feitas, sendo que os meninos referiram-se mais
todos, mas especialmente nas dos homens. Os à necessidade de equipamentos e as meninas à
autores atribuem essas mudanças às transfor- ajuda e serviços humanos. Também foi obser-
mações nas escolas e ao crescimento dos ambi- vada uma diferença entre as crianças de seis e
entes inclusivos de 1987 a 1998. oito anos quanto ao caráter permanente da de-
Vayer e Roncin (1989) realizaram um estu- ficiência, tendo as mais novas certa dificuldade
do com crianças de quarta e quinta séries de de compreendê-lo, imaginando que as deficiên-
classes com deficientes integrados, na França. cias pudessem ser curadas ou fossem passa-
Em seus relatos, as crianças participantes dis- geiras. As crianças já podem falar de aspectos
seram que as crianças deficientes precisam ser mais abstratos, segundo o autor, mas quando
ajudadas, e apresentaram certa culpabilidade questionadas, e não voluntariamente.
nas respostas, algumas se sentindo capazes de
ajudar e outras não. Outro tema comum foi o
medo, especialmente relacionado à reação da Síntese dos resultados e considera-
sociedade à deficiência. As crianças não se ções finais
sentiam superiores aos deficientes, recusavam-
se a fazer um julgamento negativo sobre o com- De modo geral, as pesquisas indicam um
portamento deles, e a deficiência era vista como grande desconhecimento das deficiências por
injustiça. Ainda no estudo de Vayer e Roncin parte das crianças. Os dados indicam assimila-
(1989), a maioria das crianças disse que os de- ções de informações equivocadas ou falta de
ficientes deviam ficar entre os normais, e que a acesso às mesmas, possibilitando, assim, a cri-
integração era benéfica também para os pais. ação de explicações fantasiosas e carregadas
A tendência à zombaria foi reconhecida, mas muitas vezes de estereótipos e preconceitos. A
passageira. As crianças falaram da necessida- falta de conhecimento sobre o tema é apresen-
de de os adultos, especialmente os professores, tada mesmo por crianças em ambientes inclu-
darem mais atenção a tais alunos e apresenta- sivos, o que indica a escassez de trabalhos
ram as mesmas atitudes de procura, aceitação educacionais sobre a temática, voltados à po-
e tolerância com relação aos deficientes quan- pulação infantil (FERREIRA, 1998; MAGIATI
do comparados com outras crianças sem defi- et al., 2002; MARTINS, 1999).
ciência. Os autores apontam o recreio como Alguns tipos de deficiência parecem ser
um momento fundamental, no qual a interação percebidos mais facilmente pelas crianças, ain-
pode ser enriquecida. da na pré-escola, enquanto outros passam sem
Tamm e Prelliwitz (2001) realizaram um ser percebidos até o primário. As crianças mais
estudo na Suécia com quarenta e oito crianças novas reagem a aspectos visíveis das outras
pré-escolares e do primário, com a utilização pessoas. No caso da deficiência, aspectos físi-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007 37
O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica
38 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007
Camila Mugnai Vieira; Fátima Elisabeth Denari
REFERÊNCIAS
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007 39
O que pensam e sentem crianças não deficientes em relação às deficiências e à inclusão: revisão bibliográfica
ROBERTS, C.; PRATT, C.; LEACH, D. Classroomand playgrond interaction of students with and without
disabilities. Excepcional Children, New York, v. 57, n. 3, p. 212-224, 1991.
ROBERTS, C.; ZUBRICK, S. Factors influencing the social status of children with mild academic disabilities
in regular classrooms. Exceptional Children, New York, v. 59, n.3, p. 192-202, Dec./Jan. 1993.
SIGELMAN, C. K.; SINGLETON, C. Stigmatization in childhood: a survey of development trends and issues.
In: AINLAY, S. C.; BECKER, G.; COLEMAN, L. M. (Orgs.). The Dilemma of Difference: a multidisciplinary
view of stigma. New York: Plenumm Press, 1986. p. 185-208.
STAINBACK, S.; STAINBACK,W. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.
TAMM, M.; PRELLWITZ, M. If I had a friend in a wheelchair: children’s thougths on disabilities. Child:
Care, Health and Development, v. 27, n. 3, p. 223-240, 2001.
VAYER, P.; RONCIN, C. A integração a criança deficiente na classe. São Paulo: Manole, 1989.
VIEIRA, C. M. Programa informativo sobre deficiência mental e inclusão: efeitos nas atitudes e concep-
ções de crianças não-deficientes. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2006.
YORK, J. et al. Feedback about integrating middle-school students with severe disabilities in general education
classes. Exceptional Children, New York, v. 58, n. 3, p. 244-258, Dec./Jan. 1992.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 23.01.07
40 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 31-40, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
DOCÊNCIA E INCLUSÃO:
reflexões sobre a experiência de ser professor
no contexto da escola inclusiva
RESUMO
ABSTRACT
* Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Mestre
em Educação e especialista em Educação Especial pelo Programa de Pós-Graduação em Educação - CE/UFSM. Espe-
cialista em Educação Infantil pela UNIFRA. Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Av. Salgado Filho, s/n, Departamento de Educação, Sala 14, Campus
Universitário, Lagoa Nova – 59078-970 Natal/RN. E-mail: vividuek@hotmail.com
** Doutora em Psicologia Social - USP/SP. Professora do Departamento de Educação Especial, credenciada no Progra-
ma de Pós-Graduação em Educação - CE/UFSM. Endereço para correspondência: Universidade Federal de Santa
Maria, Centro De Educação, Av. Roraima, Campus Universitário, Camobi – 97105-900 Santa Maria/RS. E-mail:
minau@terra.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 41
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
42 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 43
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
Tais idéias, quando pensadas no contexto valores alheios como se fossem seus, os quais,
deste estudo, nos levam a inferir que, embora por sua vez, vão formando parte do seu campo
os professores desenvolvam sua prática peda- perceptual. Isso pode gerar uma certa “distor-
gógica em condições ambientais e materiais ção” entre os sentimentos e sua devida repre-
semelhantes, a experiência de trabalhar com sentação, resultando na alienação em relação à
alunos com necessidades educacionais especi- experiência vivida, chegando a comprometer,
ais no ensino regular é considerada conforme inclusive, a tendência à atualização. A isso Ro-
as percepções de cada um, traduzidas no modo gers denominou de incongruência que, segun-
como esses professores a vivenciam e como do Rezola (1975), ocorre mediante a instalação
se comportam nesse contexto. de um conflito psíquico em virtude da discre-
A Abordagem Centrada na Pessoa parte da pância entre o que acontece em termos orga-
premissa de que o homem possui uma tendên- nísmicos e as percepções conscientes de si
cia auto-realizadora ou atualizante para o mesmo.
crescimento, a qual pode ser compreendida como A incongruência ou inautenticidade é tida
a capacidade interna que todo indivíduo possui como o estado em que o sujeito não consegue
de realização, impelindo o organismo no sentido estar em sintonia com os próprios afetos, nem
da unidade e da autonomia. Nas palavras de expressá-los de modo adequado, ou seja, é a
Rogers e Kinget (1975, p. 159), esse pressupos- representação insatisfatória ou a negação do
to obedece à seguinte proposição: “todo organis- que se pensa ou se sente realmente, compro-
mo é movido por uma tendência inerente para metendo a tendência atualizante (DUTRA,
desenvolver todas as suas potencialidades e para 2000).
desenvolvê-las de maneira a favorecer sua con- A Terapia Centrada no Cliente, dessa for-
servação e seu enriquecimento”. ma, intenta colocar o homem em contato com
Esse movimento natural do organismo é pos- sua experiência organísmica (funcionamento do
sibilitado pelo self, ou seja, pelo conceito que cada corpo e mente de forma indissociável), em sin-
um tem de si mesmo, entendido como aquele que tonia com suas percepções/imagens sobre o
impulsiona o ser para o crescimento e atualiza- próprio eu. Para tanto, Rogers (1961) enfatiza
ção de suas potencialidades. Rogers e Kinget a necessidade de se criar um ambiente favorá-
(1975, p. 167) explicitam que o self é “o critério vel, uma atmosfera em que o cliente se sinta
que ajuda o organismo a selecionar experiênci- seguro e acolhido pelo terapeuta, a fim de que
as: os elementos da experiência que concordam consiga apreender os significados de suas ex-
com a imagem do eu tornam-se disponíveis à periências. O autor acredita que a criação de
consciência, enquanto que os que não concor- um ambiente com tais condições está atrelada
dam com essa imagem são interceptados”. a algumas atitudes facilitadoras por parte da
O self, tal como apreendido na teoria roge- pessoa do terapeuta, quais sejam: a congruên-
riana, refere-se ao conjunto de percepções ou cia do terapeuta, a aceitação positiva incon-
imagens relativas ao “eu”. Seu desenvolvimen- dicional do terapeuta pela pessoa do cliente,
to é de natureza relacional, isto é, envolve as e a compreensão empática do terapeuta para
relações do sujeito consigo mesmo, com os ou- com o outro.
tros que lhe são significativos e com o mundo Criada no contexto da clínica, essa aborda-
circundante, sendo, portanto, um constructo gem veio, mais tarde, influenciar outras áreas
passível de mudanças à medida que o homem do conhecimento, dentre elas a educação. As
avança pela vida e se depara com novas situa- atitudes facilitadoras referentes ao terapeuta são
ções (ROGERS; KINGET, 1975). consideradas, também, como qualidades funda-
Ao longo de sua existência, no entanto, a mentais do professor, cujo papel passa a ser o
fim de preservar a própria estima, o sujeito, de facilitador da aprendizagem.
motivado por essa necessidade básica de con- Vista por esse ângulo, a criação de um am-
servação do conceito de si mesmo, assimila biente favorável está atrelada a três atitudes
44 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
que Rogers (1961, 1971) considera essenciais O pensamento de Rogers sofreu algumas
ao professor (facilitador), quais sejam: a con- atualizações, tais como aquelas propostas por
gruência, pois, para que o ensino resulte efici- Eugene Gendlin, ao introduzir o termo experi-
ente, o professor precisa atuar de maneira encing1 . As contribuições de Gendlin auxilia-
unificada e integrada, sendo autêntico em sua ram na consolidação de alguns pressupostos
vivência junto ao aluno; a aceitação positiva introduzidos por Rogers, ao mesmo tempo em
incondicional do professor em relação ao que o levaram a revisar e reformular outros,
educando, que consiste numa postura de acei- como o próprio conceito de autenticidade ou
tação irrestrita e de respeito à pessoa do aluno, congruência, concebido não mais como uma
no sentido de acolher sua alteridade, respeitan- equação entre o organismo e a consciência, mas
do-o em sua singularidade; e a compreensão como um modo de experienciar a si mesmo num
empática do professor para com o aluno, a dado instante (DUTRA, 2000).
fim de captar seu mundo “como se” fosse o Para Gendlin, a autenticidade representa a
seu próprio mundo. abertura ao mundo, a abertura às experiências,
Compreende-se, assim, que essa abordagem ao vivido, e não mais a simbolização de proces-
está centrada na pessoa, tanto do professor sos conscientes. É um modo de viver a realida-
quando do aluno, e ao fazê-lo, Rogers lança uma de de maneira plena e imediata, tal como ela
nova possibilidade de se pensar o saber-fazer flui no momento, possibilitando que os valores
pedagógico, uma vez que se volta para o relaci- da pessoa procedam de seu organismo, sem que
onamento professor-aluno em detrimento da isso implique uma renúncia dos valores e signi-
aplicação de técnicas. Rogers (1961) argumen- ficados sociais (REZOLA, 1975). Sob essa
ta, aqui, que a eficácia do processo educacio- perspectiva, estar em congruência pressupõe
nal reside na aprendizagem resultante desse uma abertura ao fluxo de experiências, e não
encontro entre pessoas, sem se restringir à ca- mais a simples concordância entre experiência
pacidade intelectual do professor. e consciência.
Nesse entorno, compreendemos que Rogers Nesse contexto, Dutra (2000) nos lembra
atribuiu papel importante aos sentimentos e à que o conceito de self foi revisto pelo próprio
experiência como fator de crescimento pessoal Rogers, a partir das influências do pensamento
(auto-realização). Enquanto a experiência pode de Eugene Gendlin. Tal revisão denota que o
ser compreendida como sinônimo de vivência e conceito de self deixa de ser uma mera per-
de sentimento corporalmente sentido, o termo cepção de si, e passa a priorizar a dimensão
sentimento serve para designar “a significação subjetiva, ao mesmo tempo em que parece con-
pessoal da experiência com um acento afetivo templar o estar no mundo do indivíduo.
ou emocional” (ROGERS; KINGET, 1975, p. Assim sendo, podemos afirmar que, longe
162), abrangendo, ao mesmo tempo, a experi- de ser uma estrutura rígida e imutável, o self é
ência afetiva e a significação cognitiva para o uma entidade passível de novas configurações
indivíduo, tal como é experimentada no contex- mediante as experiências com as quais o sujei-
to vivido, isto é, no momento em que ocorre. to /vai se deparando ao longo de sua existên-
Rezola (1975) nos lembra que a teoria roge- cia. Conforme postula Rogers, a conduta do
riana concebe a adaptação psicológica em ter- indivíduo se encontra ancorada num processo
mos de uma congruência ou coerência entre o perceptivo mutável na relação com o mundo.
organismo e o self. Nesse sentido, entende-se Desse modo, ao ocorrerem mudanças no cam-
que a congruência representa uma espécie de po perceptual ou fenomenal, o comportamento
ajuste interior entre o conceito que a pessoa
tem de si mesma e a sua experiência, isto é, o 1
Rogers & Rosemberg (1977) comentam que Gendlin utili-
indivíduo está familiarizado com todos os senti- za o termo experienciação para se referir a um fluxo
vivencial ao qual o indivíduo pode se voltar repetidas vezes,
mentos e experiências que estão em contínua usando-o como ponto de referência para descobrir o signi-
mudança. ficado de sua existência.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 45
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
46 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
conduz, necessariamente, a uma nova constru- existentes, maior a probabilidade de tal com-
ção subjetiva acerca desse paradigma. portamento repercutir de maneira negativa so-
A segunda temática refere-se às percep- bre os ritmos de aprendizagem. Em outras
ções sobre o aluno com necessidades edu- palavras, a rigidez nas expectativas acarreta
cacionais especiais, abordando a imagem e dificuldades quanto ao cambiamento de certas
os sentidos que essas professoras atribuem à concepções e práticas em relação ao aluno com
presença deste educando em sala de aula. O necessidades educacionais especiais, ficando
conteúdo das entrevistas elucida que, no uni- ele impedido de avançar na sua aprendizagem,
verso escolar, a diferença tende a se apresen- e assumir, de fato, o seu lugar de aluno.
tar como uma incógnita, sobretudo em se Sobre isso Mantoan (2003a, p. 76) destaca
tratando do outro deficiente que, por suas difi- que “a maioria dos professores tem uma visão
culdades de aprendizagem, destitui a imagem funcional do ensino e tudo que ameaça romper
do que viria a ser um “bom aluno” ou um “alu- o esquema de trabalho prático que aprenderam
no regular”. a aplicar em suas salas de aula é inicialmente
Logo, visões diversas sobre o fenômeno da rejeitado”. Acredita-se, portanto, que a inclu-
deficiência parecem se sobrepor no imaginário são tem a ver com a postura que o professor
das professoras participantes do estudo, deli- assume frente ao que lhe é estranho, desco-
neando um quadro de pouca clareza conceitual nhecido. No caso da deficiência, isso irá de-
por parte delas, traduzido na dificuldade em iden- pender de como o educador percebe a diferença
tificar quem é o aluno com necessidades edu- do outro.
cacionais especiais, que necessidades são essas, Sob esse viés, algumas professoras buscam
se elas existem ou não, e em que casos o aten- traçar uma divisão entre o que é “patológico” e
dimento especializado se faz pertinente. o que é “normal”. A diferença, estabelecida
A imagem de que o aluno com necessida- com base num padrão de referência, faz com
des educacionais especiais é aquele que apre- que as palavras “igual” e “diferente” surjam car-
senta “problemas” ou “dificuldades” de regadas de sentido, cuja ênfase maior parece
aprendizagem vem atrelada aos aspectos clíni- recair sobre a necessidade de determinar o rol
co-patológicos que envolvem o fenômeno da dos “escolarizáveis” e dos “não escolarizáveis”,
deficiência, ainda muito presentes no discurso isto é, dos que conseguem e dos que não con-
dessas professoras e que constituem uma vi- seguem aprender.
são das dificuldades de aprendizagem como algo Nesse ínterim, o diagnóstico, apontado como
inerente ao aluno, subestimando as condições fundamental para que se possam traçar estra-
do meio ao qual estão circunscritas. tégias de ensino com fins de que o aluno “apren-
Percebemos, com essas falas, que para além da”, pode servir, ainda, para avalizar e reiterar
dos conteúdos e recursos metodológicos o en- as antecipações docentes em relação às condi-
contro pedagógico abrange elementos atitudi- ções de aprendizagem desse aluno. Em outras
nais e comportamentais dos professores, os palavras, o diagnóstico – ou a falta de – pode
quais são transpostos para a relação pedagógi- estar contribuindo para situar o lugar ocupado
ca. Segundo Coll, Marchesi e Palacios (1995, pelo educando no contexto da classe regular,
p. 20): “os professores que valorizam, sobretu- equivalendo, não obstante, a um “não lugar”.
do, o desenvolvimento dos conhecimentos e os Em contraposição a essa imagem de inca-
progressos acadêmicos têm mais dificuldades pacidade e impossibilidade, imputada ao aluno
em aceitar os alunos que não vão progredir com com necessidades educacionais especiais, for-
um ritmo normal nesta dimensão”. ma-se outra, em que o educando é tido como
O olhar do professor é que guiará o desen- símbolo de lição de vida e exemplo de força e
volvimento da criança incluída, e quanto maior humanidade. Sob essa ótica, vimos que, a partir
a rigidez de suas expectativas e a tendência de da estranheza gerada no encontro com a dife-
querer enquadrar esse aluno em padrões pré- rença, essas professoras têm conseguido aden-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 47
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
trar num movimento de busca que envolve a Com a proposta inclusiva, o sentimento de
(auto)descoberta, de si e do outro, como seres impotência é renovado no professor que, ao
inacabados e incompletos, com limitações e deparar-se com o seu “não saber”, anseia por
possibilidades. “receitas”, por uma “solução definitiva” que
A convivência vem representando a pos- venha dirimir seu mal-estar. Esse movimento
sibilidade de uma compreensão maior sobre pode estar sendo motivado pela necessidade do
a realidade e as necessidades dos alunos. A professor de manter sua estrutura de self, o que
experiência de trabalhar com alunos com ne- poderá se desdobrar na perpetuação de práti-
cessidades educacionais especiais parece cas cristalizadas que se constituem em verda-
estar contribuindo para que o professor re- deiras barreiras para a construção de uma
veja seus conceitos e posturas, auxiliando na escola inclusiva. Segundo Mantoan (2003b),
formação de atitudes positivas, de reconhe- face à angústia e ao mal-estar, muitos profes-
cimento e valorização das diferenças, bem sores ficam paralisados, impedidos de ver e re-
como na ressignificação da própria experi- conhecer as diferenças e a riqueza que essas
ência de co-existência. trazem para o desenvolvimento de todos.
O desafio de ensinar todos os alunos na es- A sensação de “não saber o que esperar”
cola, que se quer inclusiva, exige o compromis- ou “não poder contar” com a aprendizagem do
so com indagações, a fim de que o ideal de aluno com necessidades educacionais especi-
turmas homogêneas possa ser revisto, dando ais e, até mesmo, de não estar sendo útil, de
lugar a uma nova postura, de aceitação e de não estar contribuindo para o seu desenvolvi-
abertura ao outro como ser incompleto, dotado mento surgem como desdobramentos da angús-
de sentimentos e potencialidades, o que pode tia dessas professoras. De acordo com Carvalho
servir de elemento facilitador da sua aprendi- (2004a), o receio de muitos professores em tra-
zagem. balhar com o aluno com necessidades educaci-
Os sentimentos que emergem da práti- onais especiais pode ser interpretado como
ca inclusiva, retratados na terceira temática, má-vontade, medo, pouca colaboração ou, ain-
evidenciam que a inclusão mobiliza elementos da, como a tradução do desejo de contribuir para
diversos numa mesma pessoa, não represen- o sucesso na aprendizagem do aluno, para o
tando um consenso entre as professoras do es- qual se sentem desqualificados e, segundo seu
tudo, que se questionam sobre a validade desse autoconceito, incapazes.
processo e os rumos da educação das pessoas Um aspecto emergente nas falas é quanto à
com deficiência, pois estão incertas e insegu- proximidade com o aluno com necessidades edu-
ras de que é possível ensinar TODOS num con- cacionais especiais, que leva o professor a ques-
texto que, por longa data, esteve destinado só tionar ele mesmo, o seu “jeito de ser”, a repensar
para ALGUNS. sua postura profissional e (re)examinar sua pró-
Ao relatarem a sua experiência, esta surge pria vida. Sob esse viés, a angústia pode repre-
perpassada por sentimentos ambíguos, em que sentar o “motor” para um movimento reflexivo,
o paradoxo satisfação-frustração desponta oportunizando um “vir a ser” gerador de novas
como sinalizador da angústia do professor que, concepções e atitudes em relação à pessoa com
ao se deparar com o “não aprender” do aluno deficiência, contribuindo para uma maior eficá-
com deficiência, conflita com o seu saber-fa- cia e autenticidade da ação docente.
zer, que pode ser pensado, ainda, como da or- A imagem de um aluno “perfeito”, “ideal”,
dem do “não saber o que fazer”. Logo, fruto da formação proporcionada por essas pro-
entende-se que a inclusão destitui o “chão de fissionais, também contribui para o aumento da
certezas” do professor, que ao se deparar com angústia e do mal-estar sentidos no momento
o incerto e o insólito, vê-se diante do vazio de em que se deparam com o aluno com deficiên-
“não saber lidar com aquilo que está aconte- cia, o que se traduz na “fissura” de um ideal de
cendo”, angustiando-se. professor que “tudo sabe” e “tudo pode”. Nes-
48 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 49
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
o autor, as pessoas que desejarem aprender te- Esse autor entende que toda aprendizagem
rão que “sentar juntas”, terão que se reunir, se que nos obrigue a rever a nossa estrutura de
encontrar. Pensar-se-ia que, no concernente à “eu” surge como ameaçadora: “a aprendizagem
realidade inclusiva, essa prerrogativa faz-se le- que envolve mudanças na organização de cada
gítima no momento em que concebemos que a um na percepção de si mesmo – é ameaçadora
inclusão requer um trabalho conjunto e integra- e tende a suscitar reações” (ROGERS, 1971,
do entre todos os envolvidos nesse processo. p. 155). Pensar-se-ia, no contexto dessa pes-
Uma ressalva a ser feita é que a incapaci- quisa, que será tão ou mais difícil, senão impos-
dade carece ser pensada como uma suposta sível, avançar na trilha da inclusão quão maiores
característica, em que essas professoras encer- e mais fixadas as barreiras que impedem o pro-
ram uma condição de paralisia e estagnação fessor de adentrar um movimento crítico-refle-
que as mantém imobilizadas, e sucumbindo, por xivo que o mantém nesse lugar estéril, antes
vezes, a um saber que julgam não possuir. talvez, um “não lugar”.
Voltemo-nos, aqui, ao paradoxo que se ins- Daí inferirmos a necessidade dos professo-
tala. Ainda que o discurso em prol de uma mai- res do ensino regular não estarem sozinhos no
or integração e colaboração entre a equipe de trabalho com a inclusão, fazendo-se urgente, ao
trabalho encontre sua legitimidade em meio ao nosso ver, a criação e a manutenção de um es-
mote inclusivo, convém mencionar que, elemen- paço onde possam entrar em contato com os
tos circunscritos ao percurso histórico da edu- colegas da equipe de trabalho, dentre eles, as
cação especial, têm amargado a construção do educadoras especiais. Um espaço onde possam
ideário inclusivo, pois nutridos, fundamentalmen- dar vazão aos seus sentimentos e possam falar
te, pela emissão de laudos ou pareceres, que das suas angústias e inquietações em relação
segundo os professores, cabe a um “especialis- ao processo inclusivo, compartilhando e signifi-
ta” fornecer-lhes. cando a sua experiência, sem que isso implique
Logo, o professor, sob a presença de uma no apaziguamento da dúvida, às expensas de
dada peculiaridade tida, antes de tudo, como supostas “receitas” para os problemas impos-
destoante do que acredita poder estar em sala tos pela prática.
de aula, dirige-se ao profissional “especialista”, Ligada às temáticas anteriores, nos debru-
nesse caso a educadora especial, com vistas a çamos agora sobre a que aborda as percep-
obter as respostas pelas quais tanto anseia, na ções acerca da formação docente, por meio
crença de que, a partir delas, far-se-á possível da avaliação feita pelas participantes do estudo
a tão preconizada inclusão. Essa visão é refor- quanto às suas repercussões, no seu cotidiano
çada por Mantoan (2003a, p. 28), quando diz de trabalho junto ao aluno com necessidades
que: “estamos habituados a repassar nossos educacionais especiais. As professoras, ao ava-
problemas para outros colegas, os ‘especializa- liarem essa dimensão, traçam apontamentos
dos’ e, assim, não recai sobre nossos ombros o referentes às lacunas presentes na sua forma-
peso de nossas limitações”. ção inicial e sugerem avanços no tocante à for-
Em face de tal conjectura, nos parece certo mação continuada ou em serviço.
que incluir exige que o professor, além da con- Ao relatarem sua experiência as professo-
dição de quem ensina, se ponha no lugar de quem ras referem-se à formação recebida em seus
aprende. Para Rogers (1971), a aprendizagem cursos de licenciatura como insuficiente e re-
que realmente importa é aquela tida como sig- pleta de lacunas, sobretudo no que concerne à
nificativa. Essa, por sua vez, é auto-iniciada e inclusão escolar. A queixa maior destina-se à
envolve o sujeito como um todo, afetiva e cog- ausência de um currículo que contemple ques-
nitivamente. Dela resultam mudanças nas ati- tões referentes à educação especial e às tipo-
tudes e comportamentos do indivíduo, logias da deficiência. Elas deixam transparecer,
extrapolando, assim, a mera fixação de um de- em suas falas, a idéia de que estar preparado
terminado saber. para trabalhar com esses alunos é uma condi-
50 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
ção alcançada a partir de uma formação pro- Além disso, é imprescindível que haja o
fissional, que, vinda de “fonte externa”, lhes dará reconhecimento de um “não-saber absolu-
condições e autonomia de atuação. to” como forma de tornar o aprendizado con-
Arriscamo-nos a supor, nesse sentido, que tínuo e dar sentido ao trabalho desenvolvido.
mesmo que a formação inicial destinada aos É preciso pensar nesse espaço-tempo tam-
professores pudesse ser “completa”, ainda as- bém como um recurso que possibilite atenu-
sim produziria “respostas” parciais para os pro- ar a angústia que perpassa o cotidiano de
blemas pedagógicos, visto ser a docência uma trabalho junto ao educando com necessida-
atividade feita às expensas do inusitado e do des educacionais especiais, constituindo-se,
efêmero, não cabendo, portanto, a instauração ainda, em elemento indispensável para a res-
de receitas ou modelos pedagógicos prévios. significação e desenvolvimento de um saber-
Na vertente desse pensamento, uma das fazer pedagógico mais comprometido e
professoras aponta que não basta ao professor eficaz.
que trabalha com a inclusão uma formação Pensar a formação de professores para
“conteudista”, um título apenas, e enfatiza a atuarem com a diversidade é um fato que, à
necessidade de um compromisso ético-político revelia dos alunos em questão, demanda uma
desse profissional, o que extrapola a formação mudança de postura dos professores. Nes-
“especializada”. se contexto, a formação deixa de represen-
A formação de professores poderia ser pen- tar a possibilidade de atualização ou
sada como uma questão de natureza complexa, reciclagem de saberes e conhecimentos pe-
pois não versa apenas sobre a construção de dagógicos, para se transformar num movi-
habilidades e competências profissionais, reque- mento de criação de espaços onde as
rendo, ainda, o seu deslocamento para outros pessoas possam vir a aprender a conviver
formatos em que prevaleça o gosto pelo novo e com a mudança e a incerteza. Colocar-se
o direito de “não saber”, enquanto elemento no lugar de quem aprende ao ensinar nos
basilar do poder criador. parece fundamental para aqueles que têm
Nesse ínterim, surge a formação contínua em suas mãos o desafio de incluir alunos an-
ou em serviço, cuja efetivação esbarra, princi- tes excluídos do âmbito da escola.
palmente, nas questões da ordem estrutural e Nesse sentido Rogers (1971) pontua que:
organizacional da escola. Nesse sentido, nos
reportarmos a Rogers (1971) quando diz que O único homem que se educa é aquele que apren-
deu como aprender; que aprendeu como se adap-
as pessoas, para aprenderem, terão que “sen-
tar e mudar; que se capacitou de que nenhum
tar juntas”, terão que se encontrar, comparti- conhecimento é seguro, que nenhum processo
lhando experiências. Nessa perspectiva, o autor de buscar conhecimento oferece uma base de
defende que não caberiam mais exames, notas segurança. Mutabilidade, dependência de um
e créditos. Abolir-se-iam os diplomas, dados processo, antes de um conhecimento estático,
como títulos de competência, contraponto, se- eis a única coisa que tem certo sentido como
gundo ele, de uma aprendizagem crescente e objetivo da educação, no mundo moderno (RO-
GERS, 1971, p. 105).
continuada.
Convém refletirmos, portanto, sobre a ne- Para tanto, é necessário que haja uma re-
cessidade da criação de um “espaço de escu- flexão da prática inclusiva, a fim de que o
ta”, enquanto momento de circulação da palavra, professor seja capaz de assumir um compro-
à medida que os professores, ao expressarem misso ético-político com as demandas emer-
seus sentimentos, consigam ouvir a própria voz, gentes do contexto profissional, em que seu
significando a sua experiência. Este lugar, ao saber-fazer seja sinônimo de ressignificação,
nosso ver, pode representar uma estratégia de em detrimento de práticas cristalizadas, fun-
formação continuada ou em serviço para esses damentadas no mero “achismo” ou em espe-
professores. culações empíricas.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 51
Docência e inclusão: reflexões sobre a experiência de ser professor no contexto da escola inclusiva
52 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007
Viviane Preichardt Duek; Maria Inês Naujorks
REFERÊNCIAS
CARVALHO, R. E. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. Porto Alegre: Mediação, 2004a.
COLL, C.; MARCHESI, A.; PALACIOS, J. (Org.). Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades
educativas especiais e aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artmed, 1995. v.3.
DUTRA, E. M. S. Compreensão das tentativas de suicídio de jovens sob o enfoque da abordagem centrada na
pessoa. Tese (Doutorado em Psicologia) – Instituto de Psicologia,Universidade de São Paulo, São Paulo,
2000.
LÜDKE, M.; ANDRÉ, M. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MANTOAN, M. T. E. Inclusão escolar: o que é? porque é? como fazer?. São Paulo: Moderna, 2003a.
_____. Uma escola para todos e com todos: o mote da inclusão. In: MOSQUERA, J. J. M.; STÖBAUS, C. D.
(Org.). Educação especial: em direção à educação inclusiva. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003b. p. 27-40.
MINAYO, M. C. S. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. Petrópolis: Vozes, 2002.
MÜLLER, T. M. P.; GLAT, R. Uma professora muito especial: questões atuais em educação especial. Rio de
Janeiro: Viveiros de Castro, 1999.
REZOLA, J. M. G. La psicoterapia de Carl R. Rogers: sus origenes, evolucion y relacion con la psicologia
cientifica. Bilbao: Desclée de Brouwer, 1975.
ROGERS, C. R. A terapia centrada no paciente. São Paulo: Martins Fontes, 1975.
_____. Liberdade para aprender. Belo Horizonte: Interlivros, 1971.
_____. Tornar-se pessoa. São Paulo: Martins Fontes, 1961.
_____ ; KINGET, G. Psicoterapia e relações humanas. Belo Horizonte: Interlivros, 1975.
_____ ; ROSEMBERG, R. L. A pessoa como centro. São Paulo: EPU, 1977.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 27.11.06
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 41-53, jan./jun., 2007 53
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
RESUMO
ABSTRACT
SCHOOL INCLUSION OF THE DEAF PERSON: Some Reflections
About Daily Life
This paper aims to discuss the conditions and possibilities of the deaf apprentices
in the regular schools, trough a panorama of the educational questions related to
deafness in the Brazilian context and a study about the inclusion of deaf students
in a municipal public school of Uberlândia/MG. The present article is a result of
fragments of two researches realized between 1998 and 2004, at Uberlândia, by
the main authoress. In this period, various educational experiences happened :
the inclusion of deaf students in regular classroom, mixing deaf students and
listeners, and, later, regular classrooms for the deaf pupil are created. This paper
approaches these experiences from the different perceptions of the people
involved: professionals of education, deaf students and their parents.
Keywords: Inclusive education – Deafness – School inclusion
* Doutoranda em Educação pela UFU e mestre em Educação pela UnB. Professora Assistente III da Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para correspondência: Av. João Naves de Ávila, 2121,
Campus Santa Mônica, Bloco G, Universidade Federal de Uberlândia – 38.408-100 Uberlândia/MG. E-mail:
lazara@ufu.br
** Doutora em Educação. Professora Adjunta III da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia.
Professora dos cursos de mestrado e doutorado do Programa de Pós-Graduação em Educação. Endereço para corres-
pondência: Av. João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G, Universidade Federal de Uberlândia –
38.408-100 Uberlândia/MG. E-mail: silmalusa@yahoo.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 55
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
56 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
projeto sofreu mudanças superficiais, e conti- na escola para ensiná-la. No entanto, na primei-
nua funcionando em treze escolas municipais. ra fase do ensino fundamental, nas escolas em
O trabalho desenvolvido contempla o ideal que se trabalha com salas mistas, o uso da LI-
da filosofia integracionista7 para crianças com BRAS se torna mais presente no atendimento
deficiência física e/ou sensorial em condição no Programa Ensino Alternativo, pois o profes-
para freqüentar o ensino regular. A existência sor regente e os demais alunos nem sempre a
de condição para se freqüentar o ensino regu- dominam para manter uma comunicação efeti-
lar é definida na fase de diagnóstico psicope- va entre eles. Nestes casos, é garantida a pre-
dagógico realizado durante o processo de sença do intérprete em LIBRAS, embora nem
matrícula destas crianças. No caso dos apren- todas as salas o possuam. A presença deste pro-
dizes surdos, o Programa Básico Legal Ensi- fissional é uma realidade a partir da primeira sé-
no Alternativo os insere em turmas de surdos rie da segunda fase do ensino fundamental.
e ouvintes do ensino regular8 , ou em salas re- Diante da situação apresentada, salientamos
gulares de surdos das escolas–pólo para sur- que os professores regentes de classes regula-
dos, criadas em 2002. No primeiro caso, no res que recebem alunos surdos necessitam do-
extra-turno, eles recebem apoio pedagógico de minar a LIBRAS para garantir condições
profissionais “qualificados”9 , visando atender mínimas ao aprendizado. Como ensinar sem
as especificidades de cada um, além do apren- comunicação? Há, inicialmente, um bloqueio
dizado da Língua Brasileira de Sinais (LI- entre locutor e interlocutor.
BRAS), que sempre foi valorizada pelos O contexto atual apresenta uma iminente
profissionais do referido programa. No caso necessidade de se propor uma reflexão sobre
das escola-pólo, o atendimento no extra-turno as características do surdo e suas necessida-
acontece esporadicamente de acordo com os des educacionais. A criança surda precisa ser
projetos de cada unidade de ensino. incluída na escola regular, mas com qualidade,
Os documentos legais sobre esta questão no que se refere ao respeito à sua língua do
abrem a possibilidade de existência de traba- surdo e a procedimentos metodológicos com
lhos com salas mistas e salas específicas/regu- características próprias, que viabilizem uma
lares; neste sentido, a Declaração de Salaman- aprendizagem significativa.
ca10 , documento referencial para os demais11 ,
7
No paradigma da integração a pessoa com deficiência
pontua que: precisa se adequar ao projeto educativo da escola. Ela é
preparada para se integrar à escola e à sociedade. Cabe a ela
Deve ser levada em consideração, por exemplo, adaptar-se às exigências do espaço no qual está sendo inserida.
a importância da linguagem dos sinais como meio A escola, no caso da inclusão escolar, não precisa se adaptar
de comunicação para os surdos, e ser assegura- para recebê-la, basta garantir as suas condições de acesso.
do a todos os surdos acesso ao ensino da lin- 8
A composição das salas é realizada de forma que fiquem no
guagem de sinais de seu país. Face às necessi- máximo dois alunos surdos em cada turma.
9
dades específicas de comunicação de surdos e Os profissionais do Programa Básico Legal Ensino Alter-
nativo, a princípio, não possuíam qualificação específica
de surdos-cegos, seria mais conveniente que a para os atendimentos especializados; porém, no momento
educação lhes fosse ministrada em escolas es- em que ingressam iniciam um processo permanente de for-
peciais ou em classes ou unidades especiais nas mação continuada, que visa qualificá-los para atender as
múltiplas necessidades dos alunos do referido programa.
escolas comuns. (Declaração de Salamanca, 1994, 10
Documento internacional firmado em Salamanca,
p.30 - grifos nossos.) Espanha, no ano de 1994, com o objetivo de traçar políti-
cas, princípios e metas visando orientar a educação especial
Assim, a proposta de trabalho para pessoas no mundo.
surdas desenvolvida pela rede municipal de 11
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, lei
Uberlândia atendia plenamente a recomenda- 9394/96, possui uma diretriz inclusiva apontando para o
atendimento de todos aqueles com necessidades educativas
ção inicial do documento, no que diz respeito ao especiais, preferencialmente no ensino regular. Considerar:
aprendizado da LIBRAS, sendo que as crian- Cap. V, art. 58º, parágrafo 2º. No estado de Minas, a Lei Nº
10.379/91, de 10 de janeiro de 1991, reconhece oficial-
ças surdas sempre foram estimuladas a utilizá- mente a LIBRAS como meio de comunicação objetiva e de
la. Para tal, sempre existiu um profissional surdo uso corrente entre os surdos.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 57
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
Diante deste quadro, no início de 2002 foi Desta forma, trabalhar com salas regulares
proposta uma pesquisa em que se buscava de surdos não infringe o seu caráter inclusivista
ampliar as condições de sucesso escolar deste nem as recomendações legais, como alguns
grupo de pessoas. Para tal, foram organizados educadores pensam. O fato de se atenderem
os atendimentos de alunos surdos em três es- as características peculiares aos surdos (língua
colas-pólo12 , para melhor servir a essa cliente- e cultura) lhes garante as condições de acesso
la. Duas escolas trabalhavam com salas e permanência na escola, pois neste espaço eles
regulares para surdos13 , com professores em aprendem e são respeitados, de fato, em suas
formação continuada e envolvidos na pesquisa, condições. Esta prática demonstra que este gru-
e uma outra escola com salas mistas (compos- po de pessoas possui condições de aprendiza-
tas por alunos surdos e ouvintes), com dois pro- gem e desenvolvimento escolar em tempo
fessores – o regente e o de apoio, este usuário equivalente ao dos ouvintes, o que revela al-
da LIBRAS, também envolvidos no estudo. guns conceitos equivocados mantidos pelo gru-
Essas escolas passaram a assumir a respon- po de profissionais que trabalham em instituições
sabilidade de realizar um trabalho coletivo, jun- com vistas à integração e à inclusão, e presen-
tamente com a equipe multidisciplinar do Núcleo tes até mesmo entre aqueles da educação es-
do Programa Básico Legal Ensino Alternativo14 , pecial, que defendem que as pessoas surdas
visando a preparação dos profissionais, propi- levam um tempo maior para aprender e cursar
ciando-lhes condições para o aprendizado da as fases educacionais.
Língua de Sinais, e, também, a busca de for- Seguindo os mesmos princípios, a Lei de
mas adequadas de atuação com as salas regu- Diretrizes e Bases da Educação Brasileira, lei
lares para alunos surdos. Esses professores 9394/96, influenciada pela Declaração de Sala-
atuaram na sala regular e na sala do Programa manca, possui uma diretriz inclusiva apontando
Ensino Alternativo. para a inserção de todos os educandos em con-
dição de deficiência física e/ou sensorial prefe-
2. Aspectos legais: algumas leitu- rencialmente no ensino regular. Esta situação
ras sobre a inclusão educacional tem sido motivo de preocupação para os pro-
do surdo fissionais da educação15 , principalmente para
12
A tentativa de realizar um trabalho com escolas-pólo vi-
Desde o início da década de 90, o cenário sava facilitar os trabalhos de acompanhamento, orientação
educacional brasileiro deparou-se com a utopia e avaliação do projeto, uma vez que aproximava os profis-
sionais e os alunos, buscando encontrar uma melhor forma
da escola para todos, inclusiva, capaz de atender de atender as dificuldades e necessidades do sujeito surdo.
aprendizes independentemente de suas condições Durante o estudo, duas escolas abandonaram a proposta de
pesquisa, mas não a forma de trabalho. Todas as referências
físicas, intelectuais, sociais, emocionais, lingüísti- e análises são apenas da escola que permaneceu até o final
cas e outras. A conferência mundial sobre ne- do estudo trabalhando com salas regulares para surdos na
primeira fase do ensino fundamental.
cessidades educativas especiais, organizada pelo 13
Considera-se sala regular para surdos e/ou sala específica
governo da Espanha e realizada em Salamanca, para surdos aquela composta apenas por alunos surdos e/ou
em 1994, teve o objetivo de definir princípios surdos e ouvintes, cuja língua básica utilizada para as ativi-
dades de ensino e aprendizagem é a Língua Brasileira de
políticos e práticos para as necessidades educa- Sinais (LIBRAS).
tivas especiais. No que diz respeito à política e à 14
O Núcleo do Programa Básico Legal Ensino Alternativo
organização, essa conferência chama atenção foi criado com o objetivo de realizar pesquisa e dar assesso-
ria a pessoas com necessidades educativas especiais em
para as garantias específicas de trabalho con- Uberlândia. Mas desde a sua fundação, em 1992, o núcleo
forme cada diferença. No que tange à surdez, não realizou pesquisa por falta de profissionais qualificados,
permanecendo apenas com a assessoria.
entre outras questões, assegura-se à pessoa o 15
O sentimento de desconforto em receber algum aluno em
acesso, a utilização da língua de sinais e o aten- condição de deficiência física e/ou sensorial por parte dos
dimento em escolas especiais ou classes e/ou professores da rede regular de ensino é geral, sendo, portan-
to, uma realidade conhecida pelos pesquisadores da área.
unidades especiais, no interior de escolas comuns, Este texto, entretanto, abordará apenas as questões relati-
durante a sua escolarização. vas à pessoa surda.
58 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
aqueles que trabalham diretamente com cri- de aprendizes surdos também servem para ilus-
anças surdas, pois eles se sentem vulneráveis trar a dicotomia entre o reconhecimento da ne-
quanto às condições didáticas e lingüísticas cessidade de uma “política da diferença” e sua
apropriadas ao ensino e a aprendizagem des- efetivação nos espaços escolares.
tes alunos. Uma leitura superficial e ideológica do fe-
O papel social da escola nesta realidade é nômeno da inclusão escolar e social pode ser
fundamental; entretanto, observa-se que as cri- percebida no constrangimento existente por
anças surdas, ao serem inseridas em classes parte de grande parcela dos profissionais que
regulares com professores ouvintes, sem for- trabalham na rede municipal de educação de
mação adequada, acabam não se desenvolven- Uberlândia em questionar essa política inclusi-
do a contento. Em nome de uma pseudo-so- va. De forma geral, todos aprovam os argu-
cialização, elas ficam restritas apenas ao mentos apontados para que se proceda à
universo ouvinte, sem uma identificação com inclusão dos aprendizes em condição de defici-
seus pares, além de não se desenvolverem sa- ência na escola regular. A análise desta situa-
tisfatoriamente nos campos afetivos, cogniti- ção e o posicionamento de resistência frente a
vos e sociais. Conseqüentemente acumulam ela encontram ressonância no fato de não se
fracassos, rebaixam sua auto-estima e, com ter conhecimento, no Brasil, de experiências
baixa resistência a frustrações, tornam-se ner- verdadeiramente inclusivistas capazes de apre-
vosas e agressivas. Essas crianças não têm sentar resultados inquestionáveis com relação
em quem se espelhar para perspectivas de su- à surdez.
cessos futuros. Existem muitas iniciativas, mas que ainda
Segundo a história, quando a educação acon- não estão amplamente consolidadas, de se ofe-
tecia nas escolas especiais para surdos, com recer um respaldo necessário a este campo.
todas as ressalvas que possam ser feitas, pos- Outro elemento a ser destacado é o fato de a
sibilitava-se no mínimo o convívio da criança inclusão ser um tema relativamente recente. É
com seus pares, o que contribuía com o seu comum encontrar experiências com integração.
desenvolvimento geral. Atualmente a convivên- Isto limita um pouco o universo de questiona-
cia com a comunidade surda se restringe a al- mentos, uma vez que sempre que se discute o
guns alunos que, na adolescência, influenciados assunto, muitos se preocupam com a integra-
pelos instrutores de LIBRAS (pessoas surdas), ção, com os seus resultados e conseqüências,
procuram a associação de surdos, que desen- confundindo muitas vezes as duas situações.
volve atividades de cunho esportivo e de lazer.16 Dentro desse quadro, o que se percebe é
Questionar a inclusão neste momento histó- uma grande indefinição de como realizar esta
rico, em que esta é apontada como a solução inclusão no ensino fundamental.
para os problemas apresentados pela educação
especial, gera certo constrangimento. Entretan-
to, essa crítica se faz necessária na medida em 3. A inclusão sobre a perspectiva
que a escola regular passa por uma profunda da escola e da família uberlandense
crise estrutural que tem sido desvelada, de cer-
ta forma, pela inserção das crianças em condi- Alguns educadores e pais argumentam ser
ção de deficiência física e/ou sensorial no seu positiva a inclusão de seu aluno(a) / filho(a)
contexto. Ainda, a inserção deste grupo de surdo(a), pelo fato de neste processo todos se
aprendizes no ensino regular, como vem acon-
16
tecendo em nossas escolas, pode colaborar para A Associação de Surdos de Uberlândia não possui um tra-
balho bem estruturado, de cunho educativo e
aprofundar mais esta crise, pois na prática esse profissionalizante, de seus associados. Existe um anseio para
processo tem sido excludente na medida em que que isto comece a acontecer nos próximos anos, embora
não haja recursos financeiros para a sua efetivação. A Pre-
não se viabilizam condições específicas de feitura Municipal de Uberlândia ainda não incluiu a ASUL
aprendizagem. Estas experiências de inclusão em suas propostas orçamentárias de subvenções.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 59
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
ajudarem enquanto seres humanos solidários: Assim, no campo do discurso, há uma acei-
“Afinal todos os colegas o ajudam muito, são tação generalizada da situação. Neste sentido,
solidários com ele” (relato de uma professora). se pergunta: como questionar um programa do
Uma fala carregada de humanismo igualitário, o qual a escola faz parte, se o profissional não
que reforça o constrangimento naqueles que ques- possui conhecimentos sobre a temática da in-
tionam o movimento de inclusão escolar, como clusão?
vem ocorrendo. Na realidade, em Uberlândia, Assim os alunos estão na escola, freqüen-
nas práticas observadas, existe muito mais uma tam a sala de aula, mas seu desempenho esco-
experiência integracionista que inclusivista. lar não é satisfatório. Na realidade os profes-
A fundamentação do discurso da escola in- sores não sabem o que fazer com estes alunos.
clusiva tem como base o respeito às diferen- O relato da professora abaixo, analisado a par-
ças, a democratização do ensino e a igualdade tir das observações de como suas aulas eram
de oportunidade para todos. Esta perspectiva conduzidas, dos materiais didáticos utilizados,
inclusivista defende a necessidade dos “defici- da sua postura diante dos alunos surdos, e das
entes” de conviver com os colegas “normais” formas de comunicação utilizadas com eles, ilus-
e vice-versa, constituindo a possibilidade mais tra esta questão, uma vez que demonstra uma
indicada de integração desses grupos historica- fragilidade muito grande com relação aos co-
mente segregados. (SKLIAR, 1999 e 2000; nhecimentos mínimos necessários para se tra-
SASSAKI, 1999; BOTELHO, 2002; PALHA- balhar diariamente com uma criança surda.
RES, 2002; GOUVÊA, 2005; SILVA & VIZIM;
Eu acho interessante ter o surdo como aluno,
2001, QUADROS, 2003). que a gente aprende com ele. Ele é um cidadão
Contudo, esse discurso gera uma série de comum como os demais, irão viver as mesmas
questionamentos, como por exemplo: O que sig- dificuldades. Assim têm os mesmos direitos de
nifica aceitar as diferenças? É a prática de estar na escola junto com os demais. Acho difí-
convivência e de tolerância? Como o surdo cil porque eu não sou bem preparada para tra-
tem sido conduzido à sala de aula do ensino balhar com eles. Só comecei o curso de
regular? Os pais optaram pela inserção do LIBRAS. É a primeira vez que tenho aluno
DA17 (relato de professor Ensino Regular – grifo
seu filho nessa escola? Como os professo-
nosso).
res lidam com aprendizes surdos? Estes pro-
fessores recebem alguma formação especí- VYGOTSKY, em seus trabalhos, defende
fica para lidar com estes alunos surdos que o aprendizado acontece, sobretudo, pela
incluídos? Como as escolas estão receben- interação social. Logo, como pode haver apren-
do estas crianças surdas? dizado, se a comunicação entre a criança surda
Diante destas questões, o contexto discursi- e sua professora está bloqueada? Se não há
vo presente nas entrevistas dos profissionais das comunicação, em geral o desenvolvimento de
escolas da rede municipal de Uberlândia que todo o processo educativo no interior da sala de
possuem o Programa Básico Legal Ensino Al- aula, com essa criança, fica comprometido.
ternativo revelou a existência de uma atitude Quanto à argumentação da professora de que
passiva diante da diferença, uma “aceitação” os surdos terão as mesmas dificuldades que os
do fato da integração ser uma realidade. ouvintes na vida diária, e de que eles possuem
Eu acho que não teria que ser feito agora, teria direitos iguais como cidadãos, é uma fala cons-
que acontecer, mas a pessoa precisa estar pre- truída a partir do discurso dos profissionais do
parada para trabalhar com a criança surda, Programa Básico Legal Ensino Alternativo, uti-
senão ela não tem condições de passar para o
surdo a realidade, os conteúdos, em qualquer 17
A sigla DA utilizada pela professora equivale a deficiente
área. Não tem jeito. Se a pessoa não tiver pre- auditivo, termo ainda utilizado pelos profissionais da esco-
la. Esse termo é próprio da abordagem clínico-terapêutica,
parada para começar a trabalhar com esse sur- em que se enxerga o surdo como um deficiente, um doente
do não vai ter resultado (relato de uma professora que precisa superar a perda da audição para se ajustar à
de Educação Física). sociedade.
60 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 61
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
não, porém estes não souberam justificar suas dade surda e de sua cultura24 , para criar condi-
respostas. ções reais para a inclusão. Neste sentido, ainda
As justificativas listadas pelos pais referem- que a proposta inclusiva vise contemplar a ne-
se ao fato dos professores possuírem uma quan- cessidade de um olhar para as diferenças, sabe-
tidade menor de alunos, de todos os alunos do se que as representações e a construção de
grupo serem surdos20 e todos os professores uti- significados são determinadas por uma cultura
lizarem a LIBRAS, estando estes, portanto, se- dominante (a dos ouvintes). Isso significa dizer
gundo os pais, preparados para atender as que a construção de significados de uma cultu-
necessidades específicas dos alunos e possibili- ra ouvinte não pode ser enquadrada no que tem
tar melhores condições para o seu aprendizado. de específico na cultura existente entre os sur-
Os elementos destacados pelos pais não dos (SKLIAR, 2000).
acontecem nas escolas regulares com salas Desta forma, mesmo que o surdo viva en-
mistas, compostas por alunos surdos e ouvin- tre os ouvintes e partilhe de sua cultura, há
tes, já que a maioria dos professores21 desco- traços culturais próprios de seu grupo que são
nhece a criança surda, o seu processo chamados de cultura surda (SKLIAR, 1998).
cognitivo22 , sua língua, sua história... Como pode
ser possível incluir assim? 20
Não se defende a separação entre surdos e ouvintes, pelo
contrário, valoriza-se a condição humana independente de
No cotidiano de sala de aula observado, o suas características particulares. Entretanto, não se pode
que se encontra são professores angustiados, negar a importância da convivência com pares surdos para
a aprendizagem e desenvolvimento lingüístico e cognitivo
tensos com a diversidade de problemas que têm dos alunos surdos. O espaço de socialização e convivência
de enfrentar e, para complicar mais a situação, entre surdos e ouvintes precisa ser cultivado. No entanto,
depara-se com problemas de ordem comunica- não é possível compactuar com as crenças de que, em nome
da boa convivência e socialização, os aprendizes surdos fi-
tiva, já que eles não dominam a língua de sinais quem privados de todas as condições necessárias à sua apren-
para se comunicar com seus alunos surdos, e dizagem escolar e desenvolvimento humano. Assim, não se
pretende estimular a cisão entre surdos e ouvintes, mas
estes, não raras às vezes, ainda não possuem garantir um desenvolvimento saudável dos primeiros para
nenhuma língua estruturada. A realidade das que seja possível a existência de uma sociedade para todos.
21
escolas de Uberlândia tem sido essa: professo- A formação continuada destinada ao atendimento de cri-
anças surdas na rede municipal de Uberlândia, têm sido his-
res sem formação específica para receber cri- toricamente priorizada aos professores de atendimento es-
anças surdas, que não usam a LIBRAS, e cuja pecializado. Os professores da sala regular de ensino que
possuem uma carga horária maior de trabalho com os alu-
única recomendação recebida é a de falar de- nos e a responsabilidade por sua escolarização ficam à mar-
vagar, olhando diretamente para os alunos sur- gem deste processo.
22
dos. O desconhecimento é tão profundo que O desenvolvimento cognitivo de uma criança surda se
estrutura tendo por base informações visuais. A imagem e a
muitos profissionais da escola, inclusive profes- experiência são fundamentais para que haja aprendizagem
sores, pensam que todos os surdos sabem ler e, consequentemente, evolução e desenvolvimento. Assim,
não se defende que crianças surdas possuem naturalmente
os lábios, ou ainda, que se comunicam com a um déficit cognitivo em relação às ouvintes; o déficit é
leitura do alfabeto manual (datilologia23 ). A co- provocado pela ausência de linguagem e de informação, não
sendo, portanto, naturais, mas circunstanciais.
municação originária de recursos como mími- 23
Datilologia: uso de alfabeto manual para soletrar as pala-
ca, datilologia de forma generalizada, e mesmo vras na língua oficial do país. A datilologia é um recurso
leitura labial, de maneira geral tem se mostrado utilizado pela comunidade surda para a apresentação de no-
mes próprios de pessoas e/ou locais que não possuem sinais
insuficiente, não respondendo, portanto, às ne- convencionais, sendo utilizada, também, para a introdução
cessidades comunicativas inerentes ao proces- de novos vocábulos e conceitos. Entretanto, só possui sen-
tido ao ser utilizada por pessoas surdas alfabetizadas.
so de escolarização. 24
Entende-se por cultura a expressão máxima de um grupo
Esta realidade demonstra a necessidade de e/ou povo, a sua forma de enxergar e se relacionar com o
compreensão por parte da sociedade em geral mundo, suas crenças e seus valores. A cultura surda, no caso
origina-se da língua de sinais, da experiência de mundo pró-
e, neste caso, por parte da escola, do que vem pria das pessoas surdas, e seu principal canal é visuo-gestual.
ser a surdez, as diferentes concepções de sur- Não se pode negar a existência, por parte das pessoas sur-
das, de uma forma muito peculiar de se relacionar com o
dez, e suas repercussões nestes contextos. É mundo. Por ser peculiar a este grupo, é denominada por
preciso compreender a existência da comuni- muitos de cultura surda.
62 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
Isto não quer dizer que os surdos tenham uma no momento em que ela os inclui na sala de
cultura totalmente distinta da chamada cultu- aula regular mista, composta de alunos surdos
ra ouvinte, mas a própria natureza visuo-ges- e ouvintes, com o professorado sem formação,
tual deste grupo o faz dar prioridade a faces e sem o mínimo de estrutura, inviabiliza o pro-
da cultura de seu país que, muitas vezes, não cesso de apropriação lingüística destes apren-
são percebidas e valorizadas pelos ouvintes. dizes; aceita-se a língua de sinais, sem
O que propicia aos surdos construírem uma viabilizá-la.
cultura própria é a significação e/ou ressigni- Este fato pode ser ilustrado pelo relato de
ficação que eles dão a tudo que existe na cul- uma professora do ensino regular que possuía
tura ouvinte, criando assim costumes próprios, em sua sala de aula crianças surdas, mas, que
formas de ver e interpretar o mundo peculia- ao iniciar seu trabalho com estes alunos, não
res à sua natureza visuo-gestual. É salutar sabia a LIBRAS e nem possuía conhecimentos
compreender que “a riqueza da diversidade cul- preliminares sobre a surdez:
tural habita nas diferenças, na possibilidade de Antes de fazer o curso de LIBRAS, eu ficava meio
existência de diferentes sujeitos culturais” perdida, porque eu tentava passar alguma coi-
(CANDAU, 2002, p. 74). sa e eles não entendiam, ficava uma comunica-
Assim, não é possível incluí-los sem respei- ção bloqueada. Eu escrevia, mas como eu
tar sua cultura em toda sua diversidade. Não trabalhava com alfabetização, as crianças não
basta buscar garantir a condição bilíngüe25 , mas conseguiam ler. Então, não tinha comunicação.
(relato de uma professora regente).
entender que o universo bilíngüe dos surdos, que
opera entre a língua de sinais e a língua portu- O desconhecimento da língua de sinais - sua
guesa, é um espaço que necessita de interven- estrutura gramatical e lexical, sua abrangência
ções didáticas. Neste processo é preciso, ainda, e complexidade - torna deficitária a relação do
se garantir a presença de profissionais surdos. professor regente com a língua, gera precon-
Pois, como se efetivar de fato uma inclusão, se ceitos e dificulta as condições de ensino e apren-
os principais interessados são excluídos do pro- dizagem. Assim, a língua de sinais passa a ser
cesso de organização do trabalho pedagógico utilizada no cotidiano da sala como uma mímica
que os atenderá? para traduzir grosseiramente algumas palavras
Acreditamos numa escola com salas de au- do português, como sinais soltos sem contextu-
las regulares para surdos, que trabalhe a partir alização. Esta situação foi amplamente obser-
de uma perspectiva bilíngüe, respeitando os as- vada durante as fases de coleta de dados das
pectos específicos do processo cultural, social duas pesquisas de referência deste artigo.
e cognitivo desses aprendizes. Skliar (2002) Assim, as observações realizadas em sala
destaca dois aspectos fundamentais para a es- de aula apontaram para uma falta de conheci-
colarização dos surdos: a língua e a identidade. mento generalizado sobre a língua de sinais, pois
Conhecer o papel e a importância da língua muitas vezes o professor utiliza sinais relativos
na constituição do sujeito é fundamental para a um objeto/palavra e pensa que faz uso da lín-
se pensar numa proposta curricular diferencia- gua, ou ainda utiliza o tempo todo a datilologia
da para os surdos. Saber que a língua de sinais também pensando que está se comunicando e/
imprime uma identidade surda é uma questão ou mesmo fazendo uso da língua de sinais. Ele
preponderante neste movimento. Assim, ao des- não compreende que esta língua, no caso a LI-
considerá-la, nega-se ao surdo o direito de cons- BRAS, possui estrutura e gramática próprias, é
truir seu saber, sua identidade, sua cultura complexa como todas as línguas, etc; e que usar
(PENIN, 1998).
Neste aspecto, a realidade investigada em 25
Bilingüismo no caso da educação de pessoas surdas não se
Uberlândia ilustra um paradoxo. A escola tem reduz ao uso e/ou domínio de duas línguas, a portuguesa e a
de sinais; trata-se de uma filosofia de educação que inclui
a intenção de valorizar e de estimular o uso da uma perspectiva histórica, identitária e cultural da comuni-
LIBRAS entre seus alunos surdos; entretanto, dade surda. Representa, também, uma opção política.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 63
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
sinais isolados não significa fazer uso da LI- do homogêneo, sem diferenças, com direitos
BRAS. Mesmo quando se usam esses sinais iguais para todos, cabendo aos surdos se adap-
na estrutura da língua portuguesa, não é LI- tarem da melhor forma possível aos processos
BRAS, mas português sinalizado, muitas vezes de trabalho pensados para eles. Estas práticas,
não compreendido pelos surdos. discutidas por Quadros (2003), refletem uma
Esta prática contraria as disposições legais inclusão visando atender a interesses políticos
sobre este tema, pois atualmente a criança sur- baseados no princípio da homogeneidade. Des-
da brasileira possui o direito legal de ter acesso considerar as diferenças, no caso dos surdos, é
à LIBRAS como primeira língua, assim como o no mínimo discriminar, pois o fato de não ouvir
de ser escolarizada tendo-a como base. É o é uma diferença sensorial considerável, que
aprendizado e a fluência nesta língua que lhe requer formas distintas de comunicação e, por
garante as condições básicas de desenvolvimen- conseguinte, de ensino.
to afetivo, cognitivo e social. Assim, a criança Em decorrência da concepção de uma es-
conseguirá relacionar-se com o mundo de re- cola para todos, as crianças surdas estão sendo
presentações, garantindo o estabelecimento de aceitas nas escolas regulares, tendo oportuni-
bases mais sólidas para a aquisição de uma se- dade de se socializar com os outros, e de adqui-
gunda língua – o português e, por conseguinte, rir, com grande dificuldade e sofrimento, alguns
para a alfabetização. conhecimentos elementares para sua sobrevi-
Ainda foi possível perceber que, no cotidia- vência em sociedade. As experiências investi-
no escolar investigado, existem muitas situações gadas em Uberlândia demonstram o pouco
que desconsideram a presença dessas crian- preparo dos profissionais da escola para traba-
ças surdas no interior da sala de aula do ensino lhar com estes alunos, pois nenhum aluno ou-
regular. Pode-se ilustrar esta situação com o vinte fica tanto tempo na escola apenas para se
seguinte fato: numa aula de artes, a atividade socializar; ele está lá para aprender os conhe-
proposta pela professora foi a de se ouvir uma cimentos socialmente acumulados.
fita, identificar o som produzido pelos objetos e Esta prática ainda revela a questão da baixa
animais e finalizar com um desenho do objeto expectativa pedagógica dos profissionais ouvin-
e/ou animal que emite o som ouvido. A propos- tes com relação à aprendizagem dos educan-
ta foi inadequada, a professora demonstrou não dos surdos26 . Como os ouvintes, estes possuem
ter conhecimento para trabalhar com crianças o direito de estar na escola, e de aprender e se
surdas, e não se preocupou com a aprendiza- desenvolver com dignidade. Assim, é preciso
gem e a participação delas neste processo. Isto garantir aos profissionais que atuam nestas es-
não quer dizer que não se possa trabalhar com colas uma formação adequada, para que reali-
música na sala de aula onde haja crianças sur- zem um trabalho capaz de promover a
das e ouvintes, mas este trabalho exige uma aprendizagem de todos, inclusive daqueles que
metodologia própria que propicie a toda a tur- se encontram em condição de deficiência físi-
ma o envolvimento e o aproveitamento da aula. ca e/ou sensorial. Logo, não se trata apenas de
recebê-los nem de incorporar o discurso pater-
nalista e superprotetor, para o qual apenas o
4. Algumas reflexões finais fato de se garantir a oportunidade de convivên-
cia e socialização já representa uma grande
Na realidade, as crianças surdas estão sen- evolução. Não se trata de construir uma socie-
do incluídas apenas fisicamente em classes re- dade melhor a partir do sofrimento e da exclu-
gulares, e o fracasso escolar é atribuído a elas.
Na escola integracionista para surdos, tudo é 26
A presença da baixa expectativa pedagógica em relação à
pensado, organizado e gerido pelos ouvintes, aprendizagem de pessoas em condição de deficiência física
e/ou sensorial é uma realidade comum nas escolas regulares,
profissionais que, possuindo consciência ou não, que precisa ser superada como condição básica para que se
representam e reproduzem a idéia de um mun- processe uma prática real de educação inclusiva.
64 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
são velada de um grupo. É preciso que os pro- no seu processo de aprendizagem, pois, mesmo
fissionais tenham consciência deste fato. A quando possuem professores bilíngües, estes sem-
melhoria das relações é construída a partir do pre oferecem explicações e/ou explorações dos
conhecimento sobre a deficiência e suas impli- temas trabalhados em sala de aula primeiro para
cações na vida de cada pessoa, do reconheci- os ouvintes e, posteriormente, com inúmeras in-
mento da condição do outro, do respeito e da terrupções, para os surdos. Assim, a prática do-
oportunidade de aprendizagem e desenvolvimen- cente desempenhada em um ambiente em que o
to que são oferecidas às novas gerações. professor precisa realizar a mesma tarefa por
No caso dos pais e educadores de Uberlân- no mínimo duas vezes, utilizando estratégias de
dia que participaram dos estudos citados neste ensino distintas e sendo interrompido pela dinâ-
texto, a grande maioria demonstrou não possuir mica da aula por diversas vezes, é muito esta-
conhecimentos específicos e pedagógicos so- fante. Ele fica sobrecarregado e o aluno surdo
bre a surdez, a língua de sinais, a cultura surda, sempre perde, por ser minoria dentro da sala de
etc. Ainda existe fortemente, nos relatos dos aula. O que ocorre nestas situações é que, du-
pais e educadores, a crença de que, através da rante a explicação do professor, os alunos sur-
oralização, os surdos se tornarão “ouvintes”, ou dos acabam não recebendo um atendimento
seja, terão um desenvolvimento cognitivo, soci- completo com informações com início, meio e
al e lingüístico “normal” como as outras pesso- fim, o que prejudica o seu aprendizado.
as. Isto é possível. Porém não será através da A partir desta situação, construiu-se, no seio
oralização27 que a criança surda poderá se de- dos profissionais que trabalham com escolas
senvolver naturalmente como uma criança sem inclusivas, na educação de pessoas em condi-
seqüelas cognitivas, sociais e afetivas. ção de deficiência física e/ou sensorial em Uber-
Este desenvolvimento ocorre através da in- lândia, o discurso de que este grupo de crianças,
serção sócio-cultural e educacional das crian- e aqui no caso, as crianças surdas, aprende e
ças surdas, desde a primeira infância, em possui potencial escolar. Entretanto, para estes
projetos educacionais que lhes garantam o aces- alunos, é necessário um tempo escolar distinto
so à língua de sinais e à convivência com ou- dos demais, já que eles não conseguem cursar
tros pares surdos, e a oportunidade de interagir uma série escolar em um ano, como ocorre com
com os conhecimentos socialmente acumula- as demais crianças. Sendo assim, é necessário,
dos pela humanidade, como ocorre com as cri- para este grupo, de dois a três anos para se
anças ouvintes. cursar uma série.
A comunidade surda da cidade assume, nes- Este pensamento naturaliza o fracasso es-
te processo, um papel muito importante: o de colar das crianças em condição de deficiência,
realizar a ponte entre ela e a família da criança e ainda centraliza nelas a responsabilidade pelo
surda, além de desmistificar as representações
de surdez como fardo social e familiar, e de 27
Se isto fosse possível, provavelmente hoje a realidade das
apresentar aos envolvidos outra face da expe- pessoas surdas seria outra, considerando que o Oralismo
imperou no mundo por quase um século.
riência de ser surdo. É seu papel divulgar a Lei 28
Existe uma grande polêmica nesta questão, pois levam-se
n. 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe muitos anos para se formar um professor. Esta formação
sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS, exige aquisição de conhecimentos específicos da área de
atuação e de conhecimentos pedagógicos para atuar na pro-
e ainda trata do direito de os alunos surdos se- fissão. Além disso, são necessários muitos outros saberes
rem educados através dela, o que reforça a que são construídos durante a docência, os quais os intérpre-
tes não possuem. Assim, sempre se pergunta a quem cabe a
necessidade de salas regulares para surdos, uma tarefa de ensinar os alunos surdos. Ao professor ou ao intér-
vez que cabe ao professor ensinar, e não aos prete? Esta tarefa é sem dúvida do professor. Então, como
fazê-lo se não há comunicação entre professor e aluno?
intérpretes de LIBRAS28 . Como o professor pode ter a garantia de que o intérprete
As experiências com salas mistas de Uber- está interpretando corretamente os conceitos ensinados?
Estes são desafios que precisam ser superados. Cada profis-
lândia têm evidenciado que os alunos surdos, sional poderá encontrar um caminho. Porém, o ideal é o
por serem minoria, ficam sempre prejudicados professor ser bilíngüe.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 65
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
seu desenvolvimento escolar. Esta postura ainda Esta questão também não pode ser entendi-
inibe a busca por conhecimentos específicos e da sem se levarem em consideração a seletivi-
pedagógicos capazes de ampliar as condições dade e a exclusão presentes no sistema
de ensino e de aprendizagem das pessoas em educacional brasileiro. Assim, discute-se a in-
condição de deficiência no meio escolar. As cri- clusão, mas, na prática, exercita-se a exclusão.
anças surdas têm potencial de se desenvolver Isto porque não se pode negar o fato de que
em tempo escolar igual ou semelhante ao de cri- historicamente a escola regular brasileira tem
anças ouvintes. É necessária, entretanto, a pre- sido altamente excludente e seletiva em suas
sença de conhecimentos específicos e pedagó- práticas educativas.
gicos adequados ao processo de ensino e Todavia, não se pode desconsiderar que sig-
aprendizagem destinado a este grupo. nifica um modo de inclusão social os alunos
Neste sentido, existe um grande trabalho a surdos se encontrarem em uma escola regular
ser desenvolvido nas escolas da rede municipal de ensino, possuindo a possibilidade real de se
de educação de Uberlândia, a fim de se supe- relacionar com todos da escola, independente
rar a integração e se chegar à inclusão. Porém, das suas condições físicas e sensoriais. Entre-
pensar a inclusão com o modelo de escola que tanto, acreditamos que esta inclusão social acon-
tem sido desenhada atualmente parece-nos uma tece também via inclusão real das possibilidades
proposta fadada ao fracasso. de aprendizagem e desenvolvimento. Não bas-
Nesta perspectiva, as salas regulares para ta colocá-los em classes mistas para dizer que
surdos, com professores realmente capacitados, esta é uma ação inclusiva.
bilíngües e, portanto, aptos para interagirem de A experiência tem mostrado que o trabalho
forma dinâmica e eficaz no processo educativo em salas mistas não tem oferecido condições
desses alunos, têm se mostrado um caminho de desenvolvimento escolar satisfatórias a este
que, se bem estruturado, poderá ser capaz de grupo de alunos 29 . Em Uberlândia, atualmen-
ampliar e respeitar o seu potencial de aprendi- te, após mais de treze anos de experiência es-
zagem. colar com salas mistas, os alunos surdos
É preciso romper com as amarras do medo apresentam altos índices de reprovação esco-
e a falácia de que só existe inclusão quando lar. E mesmo aqueles que alcançaram alguns
estão surdos e ouvintes juntos em uma mesma índices de sucesso escolar não conseguem ler
sala de aula. Urge a presença de um conceito e escrever em língua portuguesa, mesmo es-
de inclusão que ultrapasse as questões físicas. tando em séries avançadas da segunda fase do
Não se trata de inserir o aluno surdo em salas ensino fundamental (7ª e/ou 8ª séries), bem
regulares e heterogêneas, contendo pessoas como do ensino médio. O que limita as suas
surdas e ouvintes, mas em garantir condições condições de inserção no ensino superior e no
reais de aprendizagem e de desenvolvimento mercado de trabalho.
humano para ele. Desta forma, a existência de Não se pretende, no entanto, dizer que em
salas regulares para surdos não sinaliza para a salas regulares para surdos não há dificuldades
segregação e nem para a “exclusão”. Segre- de aprendizagem e de desenvolvimento esco-
gar e excluir significa colocar o surdo em uma lar. Existem muitas dificuldades, já que a sala
sala de aula em que este permanece sempre regular para surdo também não homogeneíza,
isolado dos demais nas questões relativas à como muitos pensam. Cada surdo é um sujeito
aprendizagem e desenvolvimento escolar. Esta diferente; mesmo que os déficits sensoriais pos-
é uma forma velada de segregação e exclusão. sam ser semelhantes e/ou idênticos, os fatores
Em que melhora as condições de vida reais das biológicos, sociais e culturais acabam constitu-
pessoas surdas a sua inclusão física na escola? indo pessoas diversas. Existem dificuldades,
O que faria essa diferença seria uma inclusão
de fato, em que se garantissem condições de 29
Esta análise e discussão se restringem ao grupo de aprendi-
ensino e de aprendizagem a estes aprendizes. zes surdos, em decorrência das especificidades lingüísticas.
66 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Lázara Cristina da Silva; Silvana Malusá Baraúna
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007 67
A inclusão escolar do surdo: algumas reflexões sobre um cotidiano investigado
REFERÊNCIAS
BOTELHO, Paula. Linguagem e letramento na educação dos surdos: ideologias e práticas pedagógicas.
Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
CANDAU,V.M. Multiculturalismo e educação: a construção de uma perspectiva. In: CANDAU, V. M. (Org.)
Sociedade, educação e cultura(s): questões e propostas. Petrópolis: Vozes, 2002. p. 52-80.
BRASIL. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. 2. ed. Brasília,
DF: CORDE,1997.
GOUVÊA. Joyldson. Educação inclusiva é desafio. Jornal Estado de Minas Gerais, terça-feira, 8 mar. 2005.
(Palestra).
PALHARES, M.S. Escola inclusiva. São Carlos: EDUFSCar, 2002.
PERLIN, Gladis. Identidade e cultura surda. In: SKLIAR, Carlos.A surdez: um olhar sobre as diferenças.
Porto Alegre: Dimensão, 1998. p. 51-74.
QUADROS, R. M. Situando as diferenças implicadas na educação de surdos: inclusão/exclusão. Revista
Ponto de Vista, Florianópolis, n. 5, p. 81-112, 2003.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997.
_____. Inclusão dá trabalho. Belo Horizonte: Armazém de Idéias, 2000.
SILVA, Shirley; VIZIM, Marli (Org.). Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campi-
nas: Mercado de letras, 2001.
SKLIAR, Carlos (Org.). A surdez: um olhar sobre a diferença. Porto Alegre: Mediação, 1998.
_____. Educação e exclusão: abordagens sócio-antropológicas em educação. Porto Alegre: Mediação,
1997.
_____. Perspectivas políticas e pedagógicas da educação bilíngüe para surdos. In: SILVA S.; VIZIM, M.
(Org) Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campinas: Mercado de Letras, 2001. p.
85-109.
VIGOTSKY, L.S. Linguagem e pensamento. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 07.12.06
68 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 55-68, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
RESUMO 1
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 69
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
ABSTRACT
70 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
entendido como desviante do padrão de nor- De acordo com Sassaki (1997, p. 35):
malidade, estabelecido em tal momento como ... no modelo integrativo, a sociedade, pratica-
único e absoluto. Já no cenário do mundo atu- mente de braços cruzados, aceita receber porta-
al 2 o discurso se funda na consideração da dores de deficiência desde que estes sejam
diversidade. Pressupõe-se que todas as pes- capazes de: moldar-se aos requisitos dos servi-
soas são iguais no que se refere ao valor ços especiais separados (classe especial, escola
máximo da existência: a humanidade. Assim, especial, etc.); acompanhar os procedimentos
tradicionais (de trabalho, escolarização, convi-
considera-se que ser negro ou branco, ser alto
vência social, etc.); contornar os obstáculos exis-
ou baixo, ser deficiente ou não-deficiente, ser tentes no meio físico (espaço urbano, edifícios,
homem ou mulher, ser rico ou pobre são ape- transportes, etc.) (...) desempenhar papéis soci-
nas algumas das inúmeras probabilidades de ais individuais (aluno, trabalhador, usuário, pai,
ser humano. mãe, consumidor, etc.) com autonomia, mas não
A exclusão social, porém, se constituiu como necessariamente com independência.
ideologia dominante na relação da sociedade Embora imbuída dos princípios de equipara-
com as pessoas com deficiência, estabelecen- ção de oportunidades, de respeito às diferen-
do uma relação marcada pela dicotomia do cer- ças e inserção plena das pessoas com
to e errado, bom e ruim, normal e anormal. deficiência em todas as atividades sociais, a in-
Dentro desse contexto, a deficiência é remeti- tegração não conseguiu propiciar a verdadeira
da à idéia de incapacidade e ineficiência. Me- igualdade de oportunidades. Somente alguns,
diante a situação de inferioridade existencial da considerados mais capazes de superar e adap-
pessoa com deficiência, esta é isolada em insti- tar-se às barreiras físicas e atitudinais da soci-
tuições de natureza segregadora. edade conseguiram integrar-se. E a exclusão
De acordo com Marques e Marques (2003, ainda se fez presente para aqueles não capa-
p. 227): zes de se adaptar ao sistema produzido na
... observa-se uma forte tendência em se avaliar Modernidade. Ou seja, não houve mudança
a deficiência do outro sobre o prisma biológico, no contexto social, político e ideológico para que
passando seu portador a ser tratado como um a integração ocorresse efetivamente. Neste
doente, ou seja, uma pessoa fragilizada, sempre sentido, na tentativa de resgatar o sentido origi-
necessitada de assistência, por isso, digna de
nal de integração é assumido, no contexto da
pena. Assim procedendo, as pessoas ditas nor-
mais reduzem os significados da normalidade e atualidade, o paradigma da inclusão.
da adaptação para os padrões estéticos e de pro- Nas palavras de Sassaki (1997, p. 41), a in-
dutividade do corpo. clusão é “o processo pelo qual a sociedade se
adapta para poder incluir, em seus sistemas so-
Sob esta ótica se fundamenta a manuten-
ciais gerais, pessoas com necessidades especi-
ção dos asilos, hospitais e internatos para isola-
ais e, simultaneamente, estas se preparam para
mento de pessoas que se encontrem fora dos
assumir seus papéis na sociedade. A inclusão
padrões estabelecidos como normais. Camu-
social se constitui, então, em um processo bila-
flando a ideologia preconceituosa e discrimina-
teral.”
tória da sociedade, estas instituições se
Segundo Marques e Marques (2003), sendo
mantiveram sob a justificativa de proteção e
a escola parte constitutiva do todo social, ela
preparação das pessoas com deficiência para
refletirá os desdobramentos de todas as mu-
uma futura integração no ambiente social.
danças ocorridas nas concepções que signifi-
Para combater a prática de segregação a
cam a vida, e a passagem de uma concepção
que eram submetidas as pessoas com deficiên-
excludente de escola para outra fundada na di-
cia, surgiu a idéia de integração, que na década
versidade humana, o que deve significar uma
de 1960, procurou inserir estas pessoas nos sis-
temas sociais gerais, seja na educação, no tra- 2
Foram empregados os termos Atual e Atualidade para
balho ou no lazer. designar o momento histórico que estamos vivendo.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 71
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
profunda mudança em toda a dinâmica educaci- Diante disso, acredita-se, assim como Silva
onal. (1999, p. 20-21), que
Para estes autores (2003, p. 236): ... embora o currículo não coincida com a cultu-
... a escola inclusiva constitui uma proposta den- ra, embora o currículo esteja submetido a regras,
tro de um paradigma capaz de ressignificar as prá- a restrições, a convenções e a regulamentos pró-
ticas desenvolvidas no cotidiano da escola, como prios da instituição educacional, também ele pode
exigência da reorganização do trabalho escolar. A ser visto como um texto e analisado como dis-
escola inclusiva contribui para uma significativa curso (...) O currículo, tal como a cultura, é uma
mudança na postura do professor e para a cons- zona de produtividade. Essa produtividade, en-
trução de um novo perfil de escola que, a partir de tretanto, não pode ser desvinculada do caráter
então, objetiva contemplar e valorizar a singulari- social e das práticas de significação. Cultura e
dade de cada um dos sujeitos, trabalhando para currículo são, sobretudo, relações sociais.
uma visão de conjunto e parceria na busca da A formação dos psicólogos implica não so-
transposição do ideal para o real. mente na constituição de sua identidade profis-
O contexto da educação é marcado por su- sional, como também na sua identidade pessoal.
cessivos fracassos. Entre as causas apontadas Esta identidade deve estar alicerçada nos sa-
por alguns autores, destaca-se a má e precária beres curriculares, nos saberes da experiência
formação que os profissionais que atuam nesta e nos saberes sobre o processo pedagógico
área recebem nos cursos secundários, ou mes- (PEREIRA; MARTINS, 2002).
mo nos cursos superiores. Nesta perspectiva, Segundo Santos (2002, p. 158):
os psicólogos têm apresentado uma visão res- ... os documentos oficiais, emanados do poder
trita dos alunos, desconsiderando a realidade em central, têm destacado não apenas a necessida-
que eles se inserem e, na maioria das vezes, de de os docentes possuírem uma cultura geral
apenas realizam avaliações, rotulando os que que os situe no mundo contemporâneo, como
se encontram “fora do padrão”. Fica evidente também conhecimentos que lhes forneçam uma
visão ampla sobre o papel econômico, político e
portanto que não basta apenas adotar medidas
social da educação. Além disso, (...) falam tam-
legais através de promulgações de leis, sem que bém em uma educação de qualidade, educação
haja uma discussão envolvendo todos estes pro- inclusiva, educação para a cidadania, com base
fissionais, no que se refere a uma visão crítica em análises sobre a diversidade cultural e as
da prática escolar. desigualdades educacionais e sociais.
A escola que temos hoje no Brasil está apa- Demasiadamente amplas são as discussões
rentemente preparada para receber e trabalhar que podem ser suscitadas das determinações
com alunos de boa capacidade cognitiva, que legais postas para a formação e atuação do
podem caminhar com êxito com o apoio da es- psicólogo escolar, mas ressaltamos como ponto
cola, sem o apoio da escola, ou apesar do apoio de nosso estudo a formação para uma educa-
da escola. Entretanto, no Brasil, nos depara- ção comprometida com a inclusão, especifica-
mos com um alunado marcado por diferenças mente quando tal processo se refere às pessoas
sociais, físicas, intelectuais, étnicas, religiosas, com deficiência.
emocionais, entre outras. Sob este contexto se Muito se tem discutido sobre a matrícula do
faz cada vez mais necessária a discussão so- aluno com deficiência no ensino regular. A
bre a atual formação de nossos profissionais da Constituição Federal de 1988 e a Lei de Dire-
educação. trizes de Bases da Educação Nacional, Lei n.
Os psicólogos devem ter asseguradas as 9.394, de 20 de dezembro de 1996, recomen-
condições materiais concretas que possibilitem dam que a educação de crianças com deficiên-
processos de mudança e acesso ao conheci- cia seja realizada, preferencialmente, na rede
mento produzido na área da educação e da cul- regular de ensino e, conseqüentemente, que tal
tura em geral, que auxiliem a constituição do discussão seja levada para a formação dos pro-
currículo no espaço escolar onde atua. fissionais que irão trabalhar com este alunado.
72 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
A atual LDB traz em seu artigo 59, inciso outros e viver a cidadania. Assim, o desejo de
III, ao tratar especificamente sobre a forma- aprender deve superar o currículo proposto, res-
ção do professor, que “os sistemas de ensino peitando a cultura de cada aluno.
assegurarão professores com especialização Não se trata de formar um psicólogo para
adequada em nível médio ou superior, para aten- suprir as necessidades clínicas e terapêuticas
dimento especializado, bem como professores dos alunos, mas para auxiliá-los na compreen-
do ensino regular capacitados para a integra- são de seu desenvolvimento e de sua aprendi-
ção desses educandos nas classes comuns”. zagem, visando eliminar as barreiras próprias
Nesse sentido, devemos ressaltar a importân- de suas relações na escola.
cia de uma formação mais ampla, que favore- Conforme Almeida (2001, p. 65):
ça o reconhecimento das especificidades de ... quanto à formação de professores para a in-
cada aluno, e ao mesmo tempo contemple a clusão escolar, entendemos que inicialmente se
coletividade presente na sala de aula. faz necessário desconstruir algumas concep-
No que se refere à formação tanto do pro- ções, tais como a idéia de que a escola inclusiva
fessor quanto do psicólogo, em 27 de dezem- requer muito treinamento e só é possível con-
bro de 1994, segundo Marques e Marques cretizá-la com experts ou com especialistas em
educação especial; a idéia de que só turmas ho-
(2004), o então Ministro da Educação e do
mogêneas de alunos garantem o desenvolvimen-
Desporto, Murilo de Avellar Hingel, baixou a to de um bom trabalho, como se todos os alunos
Portaria n° 1.793, que recomenda a inclusão assimilassem da mesma forma e numa mesma
de disciplina específica e conteúdos sobre os proporção o que lhes foi repassado; e finalmen-
portadores de necessidades especiais em cur- te, a idéia de que o domínio da teoria precede a
sos de terceiro grau, prioritariamente nos Cur- prática (visão precedente de formação) como se
sos de Pedagogia, Psicologia e nas demais a formação a priori, sem conhecer o aluno con-
licenciaturas, tornando estes profissionais ca- creto e real, assegurasse ao professor facilida-
des para o trabalho.
pacitados para atuar junto a esses educandos
e suas escolas. As atitudes de resistência são respostas de
Tais determinações causam polêmica entre insegurança diante da exigência de mudanças,
os profissionais da educação, por estes terem da necessidade de substituir o conhecido e se-
assimilado uma concepção equivocada sobre guro pelo novo e desconhecido. Desta forma,
como atender os alunos com deficiência. Tal- para que se efetive de fato a inclusão é preciso
vez resida nesse fato o grande impasse da/na mais que garantia de vagas impostas por lei,
formação dos profissionais da educação, uma sendo necessário que a escola reveja suas con-
vez que esta questão não implica somente na cepções, reflita e reestruture sua prática peda-
aquisição do domínio de técnicas e regras, sen- gógica e sua organização.
do essencial que eles criem uma perspectiva Ao contrário do paradigma da inclusão, o
crítica em relação à escola, permitindo uma atu- nascimento da psicologia escolar teve como
ação para além do contexto da sala de aula. objeto de estudo os problemas de aprendiza-
A formação dos psicólogos deve levar em gem, transformando o ambiente de trabalho do
consideração a diversidade cultural, não se res- psicólogo, de acordo com Kupfer (1997, p. 52),
tringindo à cultura dominante. Pressupondo a in- em “uma sala de atendimento, um espaço em
clusão como a possibilidade dada aos alunos de que se podia aplicar testes”, constituindo-se,
desenvolver plenamente suas potencialidades, portanto, num modelo clínico. A forte influên-
entende-se que os psicólogos devem contemplar cia de uma visão médico-hospitalar deixou raí-
e ampliar a visão sociocultural dos alunos, dan- zes profundas na formação dos psicólogos e na
do-lhes oportunidade de vivenciar experiências maneira de compreender a atuação destes no
multissociais, de acordo com uma concepção que processo educacional.
aceite a diversidade, gerando na escola um es- Esta visão imprimiu na ação dos psicólogos
paço onde todos possam aprender uns com os uma linha nitidamente clínica, norteada, sobre-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 73
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
tudo, por atuações diagnósticas e curativas, nas se ainda a importância de uma reformulação
quais predominam um atendimento psicotera- crítica do papel do psicólogo escolar, enquanto
pêutico individualizado. O trabalho desenvolvi- uma especialidade profissional que pode auxili-
do pelo psicólogo escolar centra-se no aluno, ar as escolas no equacionamento das suas difi-
ficando em segundo plano a atuação junto à culdades.
escola, aos professores e aos pais, já que ele se
isenta do processo de ensino-aprendizagem na
escola e na política pedagógica adotada, enfo- Objetivo e metodologia
cando apenas, as deficiências e os possíveis
atrasos cognitivos dos alunos. Observa-se, en- Considerando como fundamental o papel do
tão, a necessidade de reconstrução da identi- psicólogo na constituição desta nova prática
dade do psicólogo no contexto educacional, a educacional, buscou-se desvelar os sentidos do
partir da revisão das suas concepções e práti- termo inclusão nos Cursos de Psicologia das
cas profissionais, de modo que elas possam dar Instituições Federais de Ensino Superior de
conta da complexidade da realidade. Minas Gerais (IFES Mineiras).
Nesse sentido, a psicologia é historicamen- Na análise desses discursos considerou-se
te responsável, tanto no saber como na prática, o tratamento dado à questão da deficiência, por
pelas produções excludentes de concepções serem mais visíveis os processos de exclusão e
normalizadoras, que desestabilizam os divergen- marginalização na escolaridade das pessoas
tes das curvas normais. São inúmeras as influ- com deficiência do que de outras categorias
ências geradas pelas idéias psicológicas nos historicamente excluídas.
processos de naturalização da separação das Como referência teórica para a análise pro-
diferenças, na sua administração institucional, posta utilizou-se o trabalho de Orlandi (1993,
na criação dos grupos segregados e na produ- 1996), que se orienta pela Escola Francesa de
ção dos instrumentos técnicos e concepções que Análise de Discurso (AD). Tendo iniciado na
fundamentam a sua seleção e apartação. Há década de 1970, com Michel Pêcheux, a AD
uma cumplicidade da psicologia com os proje- situa-se, nesta perspectiva, como uma discipli-
tos eficientizadores, de racionalização da Edu- na de entremeio, no domínio de três campos de
cação, que somente encontram seu descanso conhecimento: a Lingüística, o Marxismo e a
na produção da ordem, da disciplina estéril e da Psicanálise, adquirindo seu sentido pleno ao
serialização dos sujeitos. conceber a própria língua dentro de um proces-
Ao se restringir o trabalho do psicólogo nas so histórico-social que coloca o sujeito e o sen-
escolas à elaboração de diagnósticos, fortale- tido como partes desse processo. O discurso,
ce-se uma atuação avaliativa do desempenho então, é a conjugação necessária da língua com
da criança, de forma a acentuar uma imagem a história, produzindo a impressão da realidade;
reducionista do aluno, valorizando a avaliação e essa noção vai tornar possível na análise da
psicométrica, para a qual o aluno-problema é linguagem, independente do seu domínio, as re-
aquele que foge à média, que não é capaz de flexões sobre o sujeito e a situação em que ele
aprender e que está fora da norma estabeleci- está inserido, sendo o discurso uma noção fun-
da pelo rendimento escolar, valores, atitudes e dadora.
expectativa daqueles que se constituem como Assim, de acordo com Orlandi (1996, p. 56),
a classe dominante. Nossa proposta consiste “o objetivo da AD é compreender como um tex-
na ampliação da concepção de queixa escolar to funciona, como ele produz sentidos, sendo
que focalize não só a criança, mas também iden- ele concebido enquanto objeto lingüístico-histó-
tifique os fatores intra e extra-escolares asso- rico”. Dessa maneira, compreender, para a au-
ciados a estas queixas, tornando possível uma tora (1993, 1996), é explicitar o modo como o
intervenção mais adequada às necessidades da discurso produz sentidos, ou seja, considerar o
escola, dos professores e dos alunos. Destaca- funcionamento do discurso na produção de sen-
74 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
tidos, ressaltando o mecanismo ideológico que 2003 nas IFES que na época ofereciam o Cur-
o sustenta. O caminho para a compreensão do so de Psicologia. Estas foram a Universidade
texto é relacioná-lo com os diferentes proces- Federal de Belo Horizonte (UFMG), Universi-
sos de significação que nele ocorrem, estando dade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universi-
estes em função da historicidade, ou seja, da dade Federal de São João Del Rei (UFSJ) e
história do sujeito e do sentido. Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
Além disso, Orlandi (1993, 1996) afirma que Dentre estas somente a UFMG tinha Mestra-
a heterogeneidade do discurso é caracterizada do em Psicologia com dissertações já defendi-
pela dispersão dos textos e do sujeito, este afe- das. Os sujeitos entrevistados foram referenci-
tado pela ideologia. O texto, atravessado por ados por pseudônimos a fim de preservar sua
diferentes posições do sujeito, corresponde a identidade.
várias formações discursivas, que se caracteri-
zam pelas diferentes relações estabelecidas com
a ideologia. Análise dos currículos
Conforme Orlandi (1993, p. 58), “a forma-
ção discursiva se define como aquilo que numa Em todas as instituições investigadas, a gra-
formação ideológica dada (isto é, a partir de de curricular do curso de psicologia apresenta-
uma posição dada em uma conjuntura sócio- va disciplinas relacionadas ao processo de
histórica dada) determina o que pode e o que inclusão de pessoas com deficiência. Porém, a
deve ser dito”. Já as formações ideológicas se disciplina Psicologia do Excepcional era com-
referem ao conjunto de atitudes e representa- ponente comum das grades curriculares pes-
ções das posições de classes em conflito umas quisadas, variando somente no seu critério de
com as outras. Neste sentido, cumpre ressaltar oferta, sendo de caráter obrigatório em três
que o sujeito se apropria da linguagem no inte- cursos e optativa em outro.
rior de um movimento social, no qual está refle- O Curso de Psicologia da UFJF tinha dura-
tida sua interpelação feita pela ideologia. Como ção de cinco anos ou dez períodos. Ele oferecia
conseqüência, uma formação discursiva divide duas terminalidades: Formação do Psicólogo e
o espaço discursivo com outras formações dis- Bacharelado. As áreas de atuação eram as ins-
cursivas, numa constante interpenetração de tituições privadas e públicas, com a Psicologia
sentidos oriundos de formações ideológicas di- do Trabalho; as escolas do 1º grau (sic), lidando
ferentes. Ela representa, pois, o lugar de cons- com problemas de aprendizagem; e a Psicologia
tituição do sentido e da identificação do sujeito. Clínica e Hospitalar em consultórios, ambulató-
Nela o sujeito adquire identidade e o sentido rios e hospitais gerais e psiquiátricos.
adquire unidade. A disciplina Psicologia do Excepcional apa-
O procedimento adotado foi o de compre- receu em caráter obrigatório e, de acordo com
ender tudo que compõe o corpus discursivo, sua ementa, trabalhava com “a classificação e
constituído das produções acadêmicas (disser- etiologia dos deficientes mentais. Técnicas de
tações) sobre inclusão dos programas de mes- avaliação da deficiência mental em crianças.
trado em psicologia das IFES Mineiras; da grade Psicologia do gênio: técnicas de avaliação. Ti-
curricular dos cursos de psicologia destas insti- pos de deficiências auditivas e visuais. Psicolo-
tuições, com a(s) respectiva(s) ementa(s) gia da paralisia cerebral e DCM (Disfunção
relacionada(s) à(s) temática(s); e de uma en- Cerebral Mínima). Psicologia dos acidentes fí-
trevista realizada com três alunos(as) do último sicos. Técnicas de exame e ação do psicólogo
ano, o(a) professor(a) responsável pela área da na reabilitação”. Nas entrevistas foram citadas
Educação Especial, e o(a) coordenador(a) des- outras disciplinas que também trabalhavam com
tes cursos. a questão da deficiência: Psicologia Escolar e
A pesquisa realizou-se no período corres- Problemas de Aprendizagem, Tópicos Especi-
pondente ao segundo semestre letivo do ano de ais em Psicologia Escolar I, Tópicos Especiais
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 75
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
76 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
cando com necessidades especiais” em substi- acho, né? Que não é uma coisa que, que você tá
tuição à expressão “aluno excepcional”, que daí atuando, de repente você vai trabalhar com isso,
por diante foi praticamente abolida dos textos vê formas de tá integrando as pessoas. É... eu
acho que fica meio falho, que é uma disciplina
oficiais (MAZZOTTA, 1996).
que você estuda isso e...não tem, parece que
Pela análise das entrevistas foi possível per- não tem aplicação nenhuma aquilo que você
ceber que desafios existem, já que apenas dois tá estudando. Cê viu de forma limitada e de-
entrevistados apontaram o equívoco com rela- pois, não sei.
ção à nomenclatura da disciplina:
Ao contrário do enfoque adotado por esta
Professora Leandra: Então, em tudo que eu vou pesquisa, os Cursos de Psicologia das IFES
falar, de um jeito ou de outro, eu acabo tocan- Mineiras ainda utilizavam currículos homoge-
do nessa questão, né? Mas, oficialmente é a neizadores que não permitiam aos estudantes,
Psicologia do Excepcional, nós estamos acei-
tando sugestões pra outros nomes, porque esse
aos professores e às instituições promoverem
nome é horrível, démodé, ultrapassado. um debate crítico acerca da diversidade huma-
na, permanecendo a lógica econômica. A res-
Coordenador Maurício: É, eu poderia dizer que trição do tema inclusão em uma única disciplina
é... especificamente, vamos dizer assim, restri- – Psicologia do Excepcional – mantinha a for-
tamente, é a disciplina ainda com esse nome mação dos psicólogos repousada em tradições
tradicional de Psicologia do Excepcional, né? de valorização do sujeito padrão, reconhecen-
Alguns recortes das falas dos entrevistados do a estratificação da sociedade através da clas-
sobre a situação em que se encontra a temáti- sificação dos indivíduos, desde os “mais aptos”
ca da inclusão, dentro do curso, mostra uma até os “incapazes”.
manifestação de insatisfação que se refere, prin- De acordo com Macedo (1999, p. 57),
cipalmente, à dificuldade das demais discipli- ... as disciplinas curriculares, como já aborda-
nas em tratar o assunto por resistência dos mos, não representam necessariamente campos
professores, seja por não compartilharem des- de saber cientificamente estabelecidos. São es-
te ponto de vista, seja por se restringirem ao paços curriculares criados com critérios especí-
estudo de sua área específica de trabalho, não ficos, alguns deles reproduzem esses campos
considerando ser este um assunto que atinge o de saber cientificamente estabelecidos, outros
buscam tematizar questões julgadas relevantes
sistema educacional como um todo:
em um dado momento histórico.
Coordenador Marcos: É... eu não pensei muito
sobre isso, esse assunto. A gente não trabalha
Como as discussões acerca da diferença e
isso muito bem porque a gente, não é assunto da diversidade, em geral, não perpassavam toda
que é muito trabalhado, a gente tem dificulda- a grade curricular dos cursos, silenciava-se a
de até num nível é... aceitando colegas que são possibilidade de uma formação crítica dos alu-
de outra linha de... de... de aceitar pessoas dife- nos em relação aos movimentos histórico-soci-
rentes, necessariamente isso é um ponto forte ais, principalmente no que diz respeito ao
no momento.
tratamento dado à deficiência. De acordo com
Professora Jéssica: Pra gente falar que existe Orlandi (1995), o silenciamento significa “pôr
uma preocupação da instituição é porque a em silêncio”, caracterizando processos de pro-
instituição, entre outras coisas, se preocupa em dução de sentidos que são silenciados: “o fun-
tá é... formando pessoas assim, né? Então, eu, cionamento do silêncio atesta o movimento do
objetivamente, não percebo isso. Agora, em ter- discurso que se faz na contradição entre o ‘um’
mos práticos, tipo em relação aos alunos, não e o ‘múltiplo’, o mesmo e o diferente, entre pa-
só a formação específica, também não percebo
grande movimento nessa área.
ráfrase e polissemia” (p. 17). Na pesquisa esse
movimento fica ainda mais claro quando se con-
Aluna Bruna: Olha, na verdade, esse tipo de... sideram os relatos de que, muitas vezes, os pro-
essa discussão ela é muito limitada, né? Eu, eu fessores que lecionavam a disciplina Psicologia
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 77
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
78 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
até porque eram crianças de zero, né? (...) en- fazendo com que o discurso em direção à di-
tão o núcleo é um núcleo voluntário aqui (...) versidade fique restrito a algumas pessoas.
De uma entidade religiosa que dá medicamen-
tos, que tem outros profissionais também, as- Professora Jéssica: Às vezes, um ou outro pro-
sim, exercendo essa função. fissional que se envolve nisso, né? Me questio-
no muito nesse sentido, porque eu acho que
Marques (2000, p. 38) explica esse movi- não existe uma transformação, principalmente
mento ao afirmar: quando a gente pensa em inclusão, num con-
... os portadores de necessidades especiais, e texto mais amplo: que sociedade é essa que a
em particular os portadores de deficiência, cons- gente vai transformar, se a gente não se preo-
tituem uma categoria historicamente discrimina- cupa em começar a transformar aqui?
da. Vítimas da rejeição ou da compaixão social,
tais pessoas estiveram sempre à margem do con-
vívio com os cidadãos considerados normais. Análise das dissertações
Tal fato não pode ser desvinculado da concep-
ção vigente de sociedade. Ao ser concebida Procedeu-se também à análise de disserta-
como um corpo estruturado com órgãos e onde
ções do Programa de Pós-Graduação em Psi-
cada órgão tem uma função social muito precisa,
a sociedade estabelece as funções de cada um cologia da UFMG, contemplando-se trabalhos
dos seus membros e determina quem deve e já finalizados e entregues à Instituição, e que
quem não deve desempenhar os respectivos estivessem voltados para a temática da defici-
papéis sociais. ência, com o objetivo de analisar o sentido do
Para Orlandi (2002), a linguagem vai se discurso neles explicitado. Ressalta-se que as
constituindo entre dois processos: a paráfrase IFES Mineiras não oferecem o curso de Dou-
e a polissemia: “os processos parafrásticos são torado em Psicologia, sendo que na época da
aqueles pelos quais em todo dizer há sempre pesquisa as únicas faculdades que possuíam
algo que se mantém, isto é, o dizível, a memó- Mestrado nesta área eram a Universidade Fe-
ria” (p.36); já “na polissemia, o que temos é o deral de Uberlândia, a Universidade Federal de
deslocamento, ruptura de processo de signifi- Minas Gerais, e a UFU, sendo que esta, por ter
cação” (p.36). Esse movimento parafrástico começado o curso em 2003, não possuía ne-
ocorre no discurso da Professora Leandra quan- nhuma dissertação concluída.
do, ao falar da sua concepção de deficiência, O Mestrado em Psicologia da UFMG foi cri-
faz uma citação de Vitor da Fonseca, porém, ado em 1988 e, tendo admitido a sua primeira
logo em seguida se contradiz, mantendo o sen- turma em março de 1989, objetivava estudar as
tido de restrição da deficiência à limitação. condutas sociais dos indivíduos e os fatores que
as influenciam, e analisar situações concretas da
Professora Leandra: A deficiência, plagiando
atualidade à luz da teoria psicanalítica. Dividido
Vitor da Fonseca, é uma das muitas formas do
ser, do ser humano, ser humano, né? Então, a em duas áreas de concentração: Psicologia So-
deficiência é uma condição oriunda de uma cial e Estudos Psicanalíticos, o curso possuía nove
característica deficitária, né? Que provoca a linhas de pesquisa: construção da identidade na
necessidade de um recurso adicional, recurso interação social; processos grupais nas institui-
esse que, que ele não é conseguido de uma for- ções; processos coletivos e comunitários; pro-
ma natural. cessos psicossociais e saúde; cultura e subjetivi-
Os sentidos produzidos nas IFES Mineiras dade; aspectos psicolingüísticos e psicossociais
estão calcados na paráfrase uma vez que estas da aquisição da linguagem oral e escrita; história
reproduzem os discursos de exclusão presen- da psicologia e contexto sócio-cultural; concei-
tes na sociedade. Não ocorre um rompimento tos fundamentais em psicanálise; e investigações
a nível institucional que caracterize uma polis- clínicas em psicanálise.
semia, ou quando isto ocorre é através de pe- Foram encontradas neste Mestrado cinco
quenos movimentos dentro das Universidades, dissertações sobre a temática em questão, de-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 79
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
fendidas entre 1996 e 2001, sendo que apenas se que as chamadas ‘deficiências’ nada mais são
uma discute o processo de inclusão. do que reflexos dos valores sociais, fazendo parte
Em 20 de novembro de 1996, Juliana Gonti- portanto das relações e não propriamente de um
determinado indivíduo. (p. 161).
jo Aun defendeu a dissertação intitulada “O
processo de ‘co-construção’ como um con- O objetivo do trabalho foi pesquisar sobre a
texto de autonomia: uma abordagem às po- profissionalização de pessoas com deficiência
líticas de assistência às pessoas portadoras mental dentro das instituições especializadas.
de deficiência”. Sua pesquisa, através de uma Para isso, a autora procurou conhecer como as
metodologia participante, buscou investigar um instituições conceituavam a deficiência mental
método de “co-construção” e estudar possibili- e, conseqüentemente, quais as possibilidades de
dades de sua utilização na elaboração de um desenvolvimento destes indivíduos na percep-
convênio entre um órgão do governo e entida- ção institucional, utilizando como recurso me-
des particulares, que prestavam assistência a todológico a Análise de Discurso.
pessoas portadoras de deficiência. A autora concluiu que a representação do-
Envolvendo, no período de maio de 1994 a minante que as instituições tinham dos indivídu-
junho de 1995, os membros do Departamento os portadores de deficiência mental estabeleci-
de apoio ao Portador de Deficiência da Secre- am-se de acordo com cada grupo. Para o grupo
taria Municipal de Desenvolvimento Social da de não profissionalização, eles eram indivíduos
Prefeitura de Belo Horizonte, usuários, técni- deficientes, doentes, incapazes; para os de
cos e administradores de vinte entidades de pré-profissionalização eram desadaptados, pos-
assistência e/ou atendimento aos portadores de suíam problemas emocionais e cognitivos, e ti-
deficiência conveniadas, a pesquisadora, Julia- nham capacidade para aprender; e para o gru-
na Aun (1996) chegou à conclusão de que se po de profissionalização eles eram portadores
deve procurar “encontrar o que existe em co- de deficiência, podendo desenvolver qualquer
mum em todas as crianças, no ato de aprender outro aspecto que não estivesse relacionado com
a ler e escrever” (p. 103). Enfatiza-se o fato da o conceito de deficiente.
autora conceituar a deficiência como: Objetivando estudar o conceito de liberdade
dentro da obra de Helena Antipoff, Luciana
...o termo portadoras de deficiência refere-se
àquelas pessoas que são socialmente definidas Santoro Campanário defendeu, em 17 de de-
como necessitando de cuidados especiais, in- zembro de 1999, a dissertação intitulada “O
clusive de políticas públicas especiais, para atin- estado próprio de todo ser vivo: a liberdade
girem seu desenvolvimento pleno. Estas pessoas em Helena Antipoff”.
assim definidas têm sido as com deficiência físi- A autora procurou mostrar como Helena
ca, visual, auditiva e mental que englobam os Antipoff trabalhou o conceito de liberdade re-
portadores de deficiência intelectual, seja de grau lacionado-o a vários aspectos. Um desses as-
profundo ou leve, de origem definida como or- pectos foi a liberdade como ambiente, quando
gânica, psíquica ou social. (p. 45).
a partir da criação da Fazendo do Rosário ela
Em sua dissertação de mestrado, intitulada percebeu que as crianças tinham um desempe-
“Representações das instituições especiali- nho melhor em um ambiente de liberdade e as-
zadas sobre a profissionalização dos porta- sistência: “fica subentendida no texto também
dores de deficiência mental”, defendida no a idéia de que a natureza, os ‘espaços abertos’,
dia 01 de novembro de 1996, Maria de Fátima propiciam além de liberdade, regras, normas e
Pio Cassemiro argumentou que, ao se conside- limites” (p. 98).
rarem: Conclui, então, seu trabalho dizendo que a:
... os indivíduos portadores de deficiência men- ... liberdade é o excepcional e próprio, inato, do
tal a partir da perspectiva da diferença, ou seja, ser humano, sendo assim a liberdade o que tor-
que não existe uma ruptura entre estes indivídu- na a ‘pessoa humana’, termo também abstrato e
os e aqueles considerados normais, evidencia- democraticamente destituído de personalidade,
80 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
em um ser totalmente individual e particular, úni- dos para o ensino especial, numa escola espe-
co e inigualável, ao mesmo tempo em que a liber- cializada de Belo Horizonte.
dade é também o que todos possuímos, e o que Percebeu-se que a autora enfatizou o para-
nos ‘irmana’, o que nos garante direitos pesso-
digma da inclusão, mesmo tendo utilizado o ter-
ais iguais inalienáveis. (p.190).
mo integração:
Érika Lourenço defendeu a dissertação inti-
Se coube à escola o papel de transformar os alu-
tulada “A Psicologia da Educação na obra
nos em ‘incapazes’, agrupando-os em classes
de Helena Antipoff: uma contribuição para ou escolas especiais, fica agora o desafio de que
a historiografia da Psicologia”, em 07 de ela desenvolva maneiras de ensinar que estejam
agosto de 2001. Neste seu trabalho ela utilizou adequadas à heterogeneidade dos alunos. E,
a abordagem biográfica proposta por Sokal para para isso, faz-se necessário que a escola se tor-
a historiografia da psicologia e, com objetivo de ne aberta ao debate sobre a Integração Escolar
investigar as propostas de Helena Antipoff, bus- dos ‘alunos especiais’. (p. 65).
cou identificar aspectos de sua originalidade em
relação a outras propostas desenvolvidas na
área, na mesma época. A autora deixou claro Análise das entrevistas
que não pretendia fazer nenhuma análise da
obra, no sentido de contextualizá-la dentro do Percebeu-se a existência de uma confusão
tratamento histórico dado à deficiência. conceitual sobre a deficiência, sendo incluídas
Durante toda a sua pesquisa, Lourenço con- dentro desta categoria as altas habilidades, as
siderou o trabalho de Helena Antipoff atual e condutas típicas, a hiperatividade e até a indisci-
defendeu a sua continuidade ainda hoje, como plina. Porém, a Política Nacional de Educação
se pode observar no seguinte trecho: “na vasta Especial (1994, p.13) definiu que os “portadores
obra escrita de Helena Antipoff sobre a educa- de necessidades educativas especiais classifi-
ção do excepcional não há referência direta à cam-se em: portadores de deficiência (mental,
psicologia da educação. O que, pode-se dizer, visual, auditiva, física, múltipla), portadores de
não se faz necessário, pois a psicologia da edu- condutas típicas (problemas de conduta) e por-
cação emerge das próprias propostas práticas tadores de altas habilidades (superdotados)”.
que apresenta para educar os excepcionais”
Professor Fernando, ao ser questionado sobre
(p.148). quais disciplinas leciona no curso que envol-
Das dissertações investigadas, a única que vem a questão da deficiência: É Psicopatologia
contextualizou o tratamento histórico dado à Geral I, né? Que trata dos transtornos mentais,
deficiência, abordando os paradigmas de exclu- né? Infância e adolescência, que é mais especi-
são, integração e inclusão, foi a intitulada “Se- ficamente com o retardo, com o retardo mental
gregação, Integração, Inclusão: trajetórias e transtornos globais do desenvolvimento, como
escolares do ´Aluno Especial´”, de Dilma o caso do autismo, né? A gente também trata a
questão das deficiências também.
Fróes Vieira, aprovada em 20 de outubro de
2000. Aluno Carlos: Uns dos primeiros casos que eu
A autora objetivou construir uma reflexão peguei foi uma criança que tinha é... hiperati-
sobre o processo de escolarização de crianças vidade, transtornos de hiperatividade mesmo,
com deficiências físicas, sensoriais, cognitivas a gente, juntamente com a pedagoga e as coor-
e sociais com a intenção de “trazer um outro denadoras, nós fazíamos como oficina, né?
‘olhar’ sobre as dificuldades encontradas na
Aluno Alex: Doenças mentais mesmo? Então
proposta de integração” (p.07). Utilizando uma
tem psicopatologia, tem psicofarmacologia, é...
abordagem qualitativa, baseada no referencial bom... Ah, a minha mãe já teve... já teve proble-
teórico da psicossociologia, Dilma Vieira (2000) mas assim com esquizofrenia, sim. Tem, na ver-
dedicou uma parte de seu trabalho a um estudo dade, ela toma remédio, tal. E a minha vó tem
de caso envolvendo cinco alunos encaminha- Alzheimer.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 81
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
Nos discursos analisados apareceu, freqüen- ra da APAE e tudo e... ela falou que uma escola
temente, a idéia da escola enquanto uma insti- aí que ela foi, que alunos dela estavam prepa-
tuição seletiva, que tem como função classificar rados para entrar nessas escolas.
e selecionar os sujeitos:
Aluna Paula: A inclusão hoje no Brasil, ela pre-
Coordenadora Beatriz: Eu acho que de um modo cisa ser muito bem tratada, muito bem revista,
geral, né? A gente deve facilitar, né? O máximo assim, porque tem muito problema é... Mesmo
que a gente puder para que o deficiente possa nesse sentido, é, coloca uma criança numa sala
ter, é, uma... uma vida mais normal possível, é... é, sem nenhum, preparo, uma professora é,
né? que não tem preparo é, específico pra tratar
daquilo. (...) Como, é... como deficiente, ela deve
Aluna Paula, quando questionada sobre quais é, existir sim, mas deve haver um, um preparo,
disciplinas cursou que envolvem a questão da um programa mais concreto sobre inclusão, que
deficiência: A gente teve, mais no início, Pro- não existe, hoje em dia, assim, a, no, no, na mi-
blemas de Aprendizagem, a disciplina Proble- nha opinião.
mas de Aprendizagem, que era PEPA, que
tratava mais da questão disciplinar da escola. Essas ideologias acabam construindo a de-
finição de que as deficiências causam dificul-
Aluna Taís: Então assim, o processo era desco- dades de aprendizagem ou defasagem nas
brir, assim, o quê que reforçava, o quê que era crianças com relação ao currículo que lhes cor-
um reforço, pra aqueles, pra aquelas pessoas responde à idade.
pra tá usando isso. Então trabalhava assim, é,
comportamentos inadequados tinha punição, Coordenadora Sandra: Nós temos o (...) onde
é reforço e punição basicamente. Então era pra integra as, as crianças e jovens mais compro-
eliminar comportamentos inadequados. metidos. São aqueles que não conseguem mui-
to alfabetizar-se, então, eles ficam ou ficam o
Coerente com a idéia de que a escola é uma período todo lá ou então fica meio período lá e
instituição seletiva, veio a crença de que é ne- outro meio período fica na escola formal, né?
cessário se esperar que a sociedade se torne
mais inclusiva para que, posteriormente, come- Aluna Amanda: Eu costumo falar assim: uma
ce-se a construir uma educação inclusiva. analogia pra vocês entenderem, se tem a idade
cronológica, se tem a idade mental, se tem a
Professor Fernando: Agora assim, concordo com idade do corpo e a idade da alma; às vezes, isso
todo esse processo, de inclusão, né? Por exem- é um pouco mais atrasado, mas não significa
plo, você ter, é... salas especiais, as escolas tam- que você não vai tá desenvolvendo, não vai
bém receberem essas crianças também, mas, tá... como é que eu posso falar para vocês en-
pelo que eu vi na disciplina, né? Pelo contato tenderem? Não vai tá trabalhando isso, para
com os profissionais também, né? Que tem que
poder alcançar ou chegar mais ou menos perto
ter um preparo das escolas pra isso. Acho que
do que uma pessoa normal tenha.
todo esse processo de inclusão é muito interes-
sante, né? De, de, é... as crianças participarem Blanco (2002, n. p.) contrapõe essas idéias
disso, com outras crianças também no proces- à sua argumentação sobre os objetivos da es-
so de ensino e aprendizagem e tal, né? Mas eu cola, a qual:
acho que nada adianta se, se as próprias esco-
las, né? E os professores não forem capacita- ... tem como importante finalidade promover, de
dos e treinados pra isso. forma intencional, o desenvolvimento de certas
capacidades, a apropriação de certos conteúdos
Aluna Taís: Que a pessoa, é a questão dos pro- da cultura que são fundamentais para que as
fessores, aí, trabalha muito com esse professor pessoas depois se tornem membros ativos des-
na escola, vamos supor, é a preparação da es- sa cultura, o que se chama, no Brasil, Constru-
cola pra tá recebendo esse tipo de... de traba- ção da Cidadania. (...) A escola não é reprodutora
lho, pra tá fazendo esse tipo de trabalho, né? do sistema social estabelecido. Obviamente a
(...) eu acho que a questão da preparação da educação escolar tem a missão de socializar as
escola, dos professores ainda não tá, por exem- futuras gerações para que se insiram na socie-
plo, a gente teve palestra aqui de, com a direto- dade, mas numa perspectiva de transformar a
82 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
sociedade. (...) se continuarmos falando de difi- deveríamos fazer não necessariamente precisa
culdades de aprendizagem, estamos centrando de ser com uma deficiência tão aparente, né?
o foco na criança e a idéia é ver como modifica- Nós temos a, a inclusão ela tem que ser feita
mos o sistema educativo e a resposta educativa diariamente no nosso cotidiano, né? Porque o
para daí acolher toda essa diversidade que te- diferente tá sempre presente. Então, pra mim, a
mos nas salas de aula. inclusão é isso, a, a possibilidade de você tra-
balhar com um conjunto, né? Mas com o dife-
De acordo com Marques (2000), é possível rente, com a possibilidade de cada um se
identificar a existência de três formações ideo- perceber, conhecer as suas diferenças, mas am-
lógicas no tratamento da diferença imposta pela pliar, né?
deficiência. A formação discursiva que coloca o
sujeito com deficiência como “desviante”, tendo Professora Jéssica: Eu acredito que a inclusão
como referencial a dicotomia normalidade x anor- é você criar condições para que todas as pes-
soas tenham a possibilidade de ter atendimen-
malidade, constitui a formação discursiva da se-
to à saúde, aprendizado, trabalho. Você criar
gregação, que se filia à formação ideológica da as condições num contexto macro social. Isso
exclusão. A outra, que pode ser identificada como pra mim é inclusão. Em contrapartida existe a
a da integração, torna visível a “diferença”, onde inclusão, termo burocrático, né? Que acho que
são valorizados os considerados capazes e man- a gente precisa diferenciar. Onde a gente vê,
tidos isolados os ditos incapazes. A formação dis- até em alguns casos, como a exigência de que
cursiva inclusiva, que faz parte da formação algo seja feito, às vezes as coisas partem daí
ideológica da inclusão, pressupõe pensar os su- mesmo, de uma exigência, de obrigar que as
adaptações sejam feitas a ferro e fogo. Mas, eu
jeitos na sua diversidade. acredito em inclusão num contexto mais amplo
Alguns sujeitos se posicionam dentro de uma e não só voltado ao portador de necessidades
perspectiva histórica da deficiência, fazendo especiais, inclusão voltada pra qualquer po-
uma diferenciação entre os conceitos de inte- pulação: é pra criança, é pro idoso, é pra mu-
gração e inclusão. lher grávida, é pro trabalhador que se aposenta
antes do tempo, onde você cria condição pra
Professora Leandra: A diferença básica, a inte- que as pessoas encontrem uma realização, uma
gração você se preocupa, você parte do pres- satisfação, um aprendizado, alcancem níveis
suposto de que existe um modelo normal, ideal, mais altos em todos os aspectos.
né? Aonde a maioria das pessoas vive esse mo-
delo e que o deficiente é alguém é desajustado, Por considerar normalidade como padrão
é... defeituoso, incapacitado, que deve ser cu- estabelecido pela sociedade, alguns sujeitos
rado, reparado, reajustado pra, se não ficar expuseram uma posição de segregação
“norma”, pelo menos se aproximar dessa nor- quando limitaram a possibilidade de realiza-
malidade. Então a integração, ela é uma cisão ção de tarefas para a pessoa com deficiên-
entre o grupo nós somos normais e você que é o
cia. Percebe-se que os discursos sobre
deficiente, então nós vamo, você pode vim, a
gente te aceita desde que você se adeque a nós.
deficiência estão calcados na dicotomia nor-
A inclusão não, a inclusão parte do pressupos- mal x anormal, demarcando a existência de
to que somos todos diferentes, diferenças parti- fronteiras entre aqueles que se encontram
culares nisso ou naquilo, alguns vão ter essa dentro da média e os que estão fora desta.
necessidade, outros, outras necessidades, e que, Junto a esta concepção forma-se o discurso
na interação, pra gente viver bem, todo mundo do sujeito padrão, onde as pessoas com de-
tem que fazer a sua parte, todo mundo tem que ficiência encontram-se fora deste padrão
é... se transformar na interação com o outro. estabelecido pela sociedade, ou seja, fogem
à curva normal.
Coordenadora Sandra: Bom, a inclusão, pra mim,
é a possibilidade de lidar com a diversidade, Coordenadora Sandra: Bom, um deficiente pra
lidar com o diferente, né? Então, incluir, né? mim seria aquele que apresente um déficit em
Seria você trabalhar no dia-a-dia a possibili- alguma área, né? Aquele que apresente um dé-
dade de aceitar, compreender, né? As diferen- ficit, que pode ser tanto na área motora, ex-
ças no dia-a-dia que não necessita é, isso nós pressiva, intelectual, social ou afetiva. Então,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 83
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
pra mim, a deficiência seria uma pessoa que Aluna Paula: Como uma pessoa que precisa de,
aprende de forma ou aprende e apreende os de outra estratégia, mas que ela vai conseguir
conhecimentos de forma diferenciada do ou- do mesmo jeito que as outras crianças, mas isso
tro, aquele que não entra na curva normal de precisa de treino.
um desenvolvimento, como a maioria, né?
Aluna Taís: Porque assim, claro que, por exem-
Coordenador Marcos: Eu não gosto da palavra plo, nesse trabalho de habilidades sociais, e
deficiência... de... de uma perspectiva e todas todo trabalho que era feito lá, era no sentido
as características e, é... acredito estar distribu- de que, tem cura, então tá melhorado a quali-
ído na população e sempre tem pessoas que... dade de vida daquelas pessoas.
são mais no nível da norma, tem pessoas nesses
extremos, de uma área na outra. Evidencia-se, assim, que tais discursos es-
tão inscritos na formação ideológica da exclu-
Professora Jéssica: Atualmente, minha concep- são, marcando a existência do Outro, que
ção de deficiência é um, um mau ajustamento, pertence a um outro grupo, que possui uma ou-
um mau funcionamento que exija uma estimu- tra identidade vista como negativa, não ocor-
lação adicional, onde as coisas não aconte- rendo um movimento no sentido de entender a
cem num ritmo ou num momento esperado, nada diversidade humana.
além disso, tá? Outros sujeitos filiaram-se a uma posição
Dentro deste discurso de normalidade justi- integracionista ao impor condições para que as
fica-se a existência de instituições especializa- pessoas com deficiência pudessem estar na
das uma vez que as crianças com deficiência escola regular, limitando as possibilidades de
não seriam capazes de acompanhar o desen- inserção na mesma para alguns casos.
volvimento das crianças sem deficiência. Aluno Alex: Mas eu acho que é, que ocorre
Aluna Taís: Então, nessa visão, sim, mas, por muito um... uma coisa meio forçada assim, eu
exemplo, como não tem cura o trabalho era acho que, considerando como inclusão, vamos
assim, nas melhores, nas pequenas coisas da relevar a criança que tem uma deficiência men-
qualidade de vida dele, tá sabendo arrumar a tal muito forte, ah, põe na sala com todos os
cama, escovar o dente, as chamadas AVD (ativi- outros. Acho que isso é meio pra inglês ver, sabe,
que é tapar o sol com a peneira e não, não...
dades da vida diária), né? Que a gente fazia, pra
eles tarem é... se tornando dentro do possível, Alguns sujeitos se colocaram num movimento
independentes, pra ter essa ressocialização. (...) da posição integracionista para a da inclusão,
É claro que todo trabalho visava isso, no fun- pois embora situassem que uma escola inclusi-
do, no fundo era depois tá, a pessoa não ia va deve oferecer condições para o aluno com
ficar ali pra sempre, era um período que ela
deficiência, admitiram a possibilidade do trata-
tinha pra ficar internada, na verdade eles fica-
mento diferenciado dos outros alunos, demons-
vam internados lá.
trando ainda não ter rompido completamente
De acordo com Silva (2000, p. 83), “norma- com uma posição integracionista.
lizar significa eleger – arbitrariamente – uma
Aluna Taís: Tinha até uma... como é que se diz,
identidade específica como o parâmetro em não é oficina, mas tinha uma... um trabalho que
relação ao qual as outras identidades são avali- a gente fazia de habilidades sociais que até no
adas e hierarquizadas”. Percebe-se assim, que final parou, que era sair com eles de ônibus,
o objetivo da psicologia aparece como o de nor- passeava, assim, com dois ou três, dependendo
malizar a vida das pessoas com deficiência, atra- do número de estagiários, né? Pra fazer habili-
vés da busca do diagnóstico, do tratamento e dades sociais.
da cura, e sendo a deficiência vista como algo Percebeu-se também que, muitas vezes, o
limitante. único fator apontado pelas pessoas para que
Aluna Roberta: E agora, eu trabalho com o pro- ocorra a inclusão é o que se refere à remoção
cesso de psicodiagnóstico, com crianças com das barreiras naturais ou arquitetônicas, ou seja,
Síndrome de Down. a falta de acessibilidade. As barreiras atitudi-
84 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
nais, como o preconceito, foram deixadas de fato destes passarem a atuar como um agente
lado. social, trabalhando com a diversidade cultural,
Aluno Alex: Eu acho que tem uma estrutura le- em detrimento de uma construção calcada num
gal pra isso. Claro que eu tô falando de quem tá sistema onde “saber é poder” e no qual a di-
de fora e quem tá meio distante. Mas parece-me mensão social está associada à dicotomia “de-
que tem uma estrutura boa assim, tipo os eleva- sejável-indesejável”. O que se propõe, com isso,
dores aqui, tem o sistema de biblioteca, enfim. é que o processo de escolarização passe por
uma redefinição de sentidos e de propósitos.
Coordenadora Beatriz: A queixa dele eu acho
Dentro desse contexto, pode ser que se encon-
que era outra, falta de rampas, né? Falta de
uma estrutura dessa coisa de tá lendo o materi- tre o maior impasse da formação de psicólo-
al pra ele, né? Tá ajudando ele, né? Devia ter gos, uma vez que se passa a exigir, nas palavras
uma estrutura pra fazer isso. de Pereira (1983, p.429), a “realização de uma
nova aprendizagem: de valores, atitudes vitais,
simbologia e linguagem”.
Considerações finais Nessa concepção propõe-se um discurso
que vá além de uma igualdade educacional,
Os Cursos de Psicologia ainda estão calcados em que o sujeito seja aceito e compreendido
na perspectiva da normalidade considerando o dentro de uma pluralidade etnocultural. Para
educando padrão, uma vez que as temáticas do tanto, a escola e seus recursos humanos de-
sujeito com deficiência, o sujeito na diversidade, o verão adotar uma prática reflexiva e cultural-
paradigma da inclusão ficam restritas a basica- mente comprometida, defendendo a constru-
mente uma disciplina e que nem sempre é obriga- ção de um currículo que desafie os discursos
tória. A produção acadêmica pouco discute a evidenciadores das diferenças e dos precon-
questão e, principalmente, evidencia-se a cristali- ceitos, promovendo uma sensibilidade à diver-
zação dos professores, coordenadores e alunos sidade cultural.
em um ideário médico, de tratamento e cura. Defende-se, portanto, na mesma perspecti-
O que se percebe é que além da dificuldade va de Moreira e Macedo (1999), a formação
em reconhecer a relevância do tema para a de um “psicólogo cosmopolita”, que se relacio-
formação do profissional, que deve estar en- ne com sujeitos plurais e não mais homogenei-
volvido no trabalho com a diversidade, a situa- zados; ou seja, um psicólogo que tenha uma
ção se agrava pela maneira como se encontra posição intelectual de abertura para trabalhar
organizada a estrutura curricular dos cursos. com sujeitos diversos, que não mais tenham que
Desvelando os sentidos de inclusão nos/dos obedecer a um padrão de normalidade. O sa-
Cursos de Psicologia das IFES Mineiras pude- ber cosmopolita, “ainda que especializado, pode
mos verificar os impasses e as perspectivas ser melhor caracterizado por uma orientação
presentes na formação de psicólogos, dando geral para as estruturas de significados impli-
base para que se possa deslocar os discursos cadas na noção de discurso crítico” (p.23).
construídos nos Cursos de Psicologia, possibili- Assim sendo, o “psicólogo cosmopolita” pode-
tando a constituição de uma escola e de uma rá ter um estudo histórico, social, educacional e
sociedade inclusivas. clínico dos indivíduos, visto que a perspectiva
Considera-se, portanto, que uma das pers- do intelectual cosmopolita sugere a apreciação
pectivas da formação de psicólogos engloba o estética da diversidade cultural.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Dulce Barros de. Formação de Professores para a escola inclusiva. In: LISITA, V. M. S. S. (Org.).
Formação de professores: políticas, concepções e perspectivas. Goiânia: Alternativa, 2001. p. 59-68.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 85
Analisando os discursos sobre inclusão nos cursos de psicologia das ifes mineiras
AUN, Juliana Gontijo. O processo de “co-construção” como um contexto de autonomia: uma abordagem às
políticas de assistência às pessoas portadoras de deficiência. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filo-
sofia e Ciências Humanas , Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
BLANCO, Rosa. Aprendendo na diversidade: implicações educativas. 2002. Disponível em: http://
www.entreamigos.com.br/textos/educa/aprendendodiversi.htm. Acesso em: 04 maio. 2002.
BRASIL. Constituição da República Federativa de Brasil de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da
República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 05 out. 1988.
_____. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial do Ministério da Educação.
Política nacional de educação especial. Brasília: MEC/SEESP, 1994.
_____. Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília,
DF, 23 dez. 1996.
CAMPANÁRIO, Luciana Santoro. O estado próprio de todo ser vivo: a liberdade em Helena Antipoff.
Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 1999.
CASSEMIRO, Maria de Fátima Pio. Representações das instituições especializadas sobre a
profissionalização dos portadores de deficiência mental. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia
e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro:
Guanabara Koogan, 1988.
KUPFER, Maria Cristina Machado. O que toca à/a Psicologia Escolar. In: MACHADO, A M., SOUZA, M. P.
R. (Orgs.). Psicologia escolar em busca de novos rumos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997. p. 51-61.
LOURENÇO, Érika. A Psicologia da educação na obra de Helena Antipoff: uma contribuição para a
historiografia da psicologia. Dissertação (Mestrado) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Univer-
sidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2001.
MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Parâmetros curriculares nacionais: a falácia de seus temas transversais.
In: MOREIRA, A F. Currículo: políticas e práticas. Campinas: Papirus, 1999. p. 43-58.
MARQUES, Carlos Alberto. As universidades na formação de professores para o ensino inclusivo. In:
CONGRESSO BRASILEIRO SOBRE SÍNDROME DE DOWN, 3., 2000, Curitiba. Anais... Brasília: Federação
Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 2000, v. 1. p. 34-44.
MARQUES, Carlos Alberto; MARQUES, Luciana Pacheco. Do universal ao múltiplo: os caminhos da inclu-
são. In: LISITA, V. M. S. S.; SOUSA, L. F. E. C. P. (Orgs.). Políticas educacionais, práticas escolares e
alternativas de inclusão escolar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 223-239.
_____. O conhecimento no mundo atual: os rumos da educação especial. In: MENDES, E. G., ALMEIDA, M. A;
WILLIAMS, L. C. A. Temas em educação especial: avanços recentes. São Paulo: EdUFSCar, 2004. p. 143-147.
MAZZOTTA, Marcos José Silveira. Educação especial no Brasil: história e políticas públicas. São Paulo:
Cortez, 1996.
MOREIRA, Antônio Flávio Barbosa, MACEDO, Elizabeth Fernandes de. Faz Sentido ainda o conceito de
transferência educacional? In: MOREIRA, A. F. Currículo: políticas e práticas. Campinas: Papirus, 1999. p.
11-28.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. Discurso e leitura. 2. ed. São Paulo: Cortez, 1993.
_____. As formas do silêncio. 3. ed. Campinas: UNICAMP, 1995.
_____. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes, 1996.
_____. Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas: Pontes, 2002.
PEREIRA, Liliana Patrícia Lemos Sepúlveda; MARTINS, Zildete Inácio de Oliveira. A identidade e a crise do
profissional docente. In: BRZEZINSKI, I. Profissão professor: identidade e profissionalização docente.
Brasília: Plano, 2002. p. 113-131.
86 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007
Luciana Pacheco Marques; Cristina Toledo; Frederika de Assis Burnier; Gabriela Silveira Meireles
PEREIRA, Sílvia Leser de Melo. A formação profissional dos psicólogos: apontamentos para um estudo. In:
PATTO, M. H. S. (Org.). Introdução à psicologia escolar. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983. p. 424-430.
SANTOS, Lucíola Licínio de Castro Paixão. Identidade docente em tempos de educação inclusiva. In:
VEIGA, I. P. A, AMARAL, A L. (Orgs.). Formação de professores: políticas e debates. Campinas: Papirus,
2002. p. 155-174.
SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
_____. A produção social da identidade e da diferença. In: _____ (Org.). Identidade e diferença: a perspec-
tiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p.73-102.
VIEIRA, Dilma.Fróes. Segregação, integração, inclusão: trajetórias escolares do “aluno especial”. Disserta-
ção (Mestrado) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo
Horizonte, 2000.
Recebido em 15.09.06
Aprovado em 20.11.06
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 69-87, jan./jun., 2007 87
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes
RESUMO
A educação inclusiva é tida como uma educação de qualidade que deve ser
oferecida pelo sistema educacional. Teria como objetivo, além de oferecer os
saberes sistematizados, acumulados ao longo da história da humanidade, também
atender as diversificadas esferas sociais. A partir dessa perspectiva, o presente
trabalho pretendeu fazer um levantamento sobre o que os alunos do primeiro
semestre do curso de pedagogia de uma faculdade em Dracena estariam
entendendo por educação inclusiva. Para atingir tal objetivo, procurou-se:
(1) elaborar um questionário sobre a temática; (2) aplicar o questionário; (3)
tabular o levantamento; e (4) discutir e refletir sobre os resultados. A partir
dos resultados pode-se inferir que os alunos pesquisados não estão entendendo
a educação inclusiva como uma educação de qualidade que atenda a todos
os cidadãos, independentemente de suas particularidades, como é discutido na
literatura; mas, como a inserção de pessoas com necessidades especiais na
sala de aula regular. Desta forma, devemos preparar os futuros profissionais
da educação para esse grande desafio do sistema educacional.1
Palavras-chave: Educação básica – Inclusão – Formação
ABSTRACT
* Pedagoga com habilitação em Educação Especial, doutoranda em Educação, área de concentração Educação Especial
no Brasil, pela Universidade Estadual Paulista – UNESP, Faculdade de Filosofia e Ciência – FFC/Campus de Marília.
Professora de História da Educação Geral e Brasileira da União das Faculdades de Dracena – UNIFADRA/FUNDEC.
Membro do Grupo de pesquisa Cátedra do Oprimido da FFC/UNESP/Campus de Marília e membro da Associação
Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEES. Endereço para correspondência: Avenida Alcides Chacon
Couto, 395, Bairro Metrópole, Dracena. E-mail: crisrefonseca@fundec.edu.br
1
Este trabalho faz parte de um projeto amplo que foi desmembrado em três partes, até o presente momento. Para maiores
informações sobre o projeto central, entrar em contato com a autora por e-mail.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007 89
A percepção dos estudantes do curso de pedagogia sobre educação inclusiva
(2) it was sent out to the students to be completed and returned; (3) data were
tabulated; and (4) results were discussed and reflected on. From the results
we can infer that the students questioned do not understand inclusive education
as a quality education that deals with all citizens regardless of their particularities,
as the subject is discussed in the literature; otherwise, they think of it as the
inclusion of people with special necessities in the ordinary classrooms.
Therefore we must prepare future professionals for this great challenge of the
educational system.
Keywords: Basic education – Inclusion – Training
90 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes
sistema educacional fortalecido e eficiente, ao nidade. Entretanto, por volta dos anos 90, a so-
qual todas crianças teriam acesso. Diferente- ciedade inclusiva transformou-se “em um im-
mente dessa posição, os seus opositores argu- perativo moral” (p. 299), intensificado pelos
mentam que o ensino regular não está prepara- defensores dos direitos humanos. Para esse
do para receber os alunos com necessidades autor, ao se pensar em uma comunidade esco-
educativas especiais. Ora, se a educação in- lar inclusiva, reflexo de tal imperativo, deve-se
clusiva é percebida como uma mudança de contar não apenas com soluções didático-pe-
mentalidade visando uma sociedade mais hu- dagógicas, mas também com:
mana e justa, então ser uma pessoa com defici- ... outras medidas e arranjos, cientificamente fun-
ência seria uma das inúmeras diversidades. A damentados, que possibilitem o convívio e a co-
meu ver, o que está em questão não seria ser ação, por parte das pessoas com as mais variadas
uma pessoa com deficiência ou não, mas o com- diferenças, em principais situações e atividades
promisso de todo educador que busca a cons- da vida diária, de modo que favoreçam a realiza-
trução de uma sociedade democrática e, con- ção e o desenvolvimento de todos que delas
participam (OMOTE, 2004b, p. 302).
seqüentemente, de um sistema educacional
democrático. Sistema educacional que prime Dessa forma, pensar a educação inclusiva
por uma educação de qualidade e acessível a seria pensá-la não de maneira fragmentada e
todos os estratos sociais. Com essa perspecti- descontextualizada, mas na sua construção his-
va, a rede regular pública de ensino responsá- tórica, social, psicológica e biológica.
vel pela educação básica – infantil, fundamen- A educação inclusiva, para Omote, implica
tal e média – deveria oferecer qualidade de numa mudança de mentalidade que perpasse
ensino em equivalência com a rede particular mudanças nas concepções educacionais pau-
que se destaca nesta área. Assim, o êxito para tadas na padronização “de capacidades indivi-
tal educação: duais de realização” (OMOTE, 2005, p. 35), ou
... é nossa disposição para visualizar, trabalhar e seja, do ensino verbalista ou bancário (FREI-
conseguir uma rede regular que se adapte e dê RE, 1982, 1987), para as abordagens que res-
apoio a todos. Todos os alunos, incluindo os peitem as diversificadas diferenças, “reconhe-
rotulados como alunos com deficiência [pobres, cendo nelas a oportunidade de aprendizagem
ricos, negros, dentre outros], querem estar em de todos” (OMOTE, 2005, p. 35). Entretanto,
uma rede regular que satisfaça às suas necessi- para conseguirmos essa educação não deve-
dades e na qual se sintam bem-vindos e segu- mos partir de decretos e vontade de uma mino-
ros” (STAINBACK; STAINBACK, 1999, p. 434 ria; a educação inclusiva só será possível a partir
– palavras entre colchetes são minhas)
de uma sociedade inclusiva, sociedade essa que
Omote (2005), baseado em Stainback; muito tem a trilhar.
Stainback, e analisando o processo histórico Saliente-se que a história e a filosofia da
e pragmático da educação inclusiva, aponta educação brasileira (ABREU, 2000; COTRIM,
que o sistema educacional brasileiro está pro- 1989; FARIA FILHO, 2000; GADOTTI, 1994;
curando incorporar estratégias para uma edu- GHIRALDELLI-JÚNIOR, 2003; LOPES &
cação que atenda a todos alunos. Ainda GALVÃO, 2001; NAGLE, 1977; PAIVA, 2000;
segundo o autor, a educação inclusiva visa, XAVIER; RIBEIRO; NORONHA, 1994;
antes de tudo, um trabalho educacional vol- WEREBE, 1971) têm mostrado que a educa-
tado para a diversidade. Para Omote, os de- ção já foi muito mais excludente. Hoje ainda
fensores da educação inclusiva apontam temos diversas formas de exclusão social e es-
inúmeros benefícios para a comunidade es- colar, mas, como aponta Omote, precisamos de
colar como um todo que possivelmente irão um novo homem, e esse homem novo pode ser
se estender à sociedade. construído e formado na escola, preferencial-
Omote (2004b) argumenta que a busca pela mente numa escola que saiba conviver com as
inclusão sempre fez parte da história da huma- diversidades.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007 91
A percepção dos estudantes do curso de pedagogia sobre educação inclusiva
De acordo com o mesmo autor, essa escola O critério de seleção da sala foi a possibilidade
já está começando a ser construída e, como tal, de acesso da pesquisadora – docente da insti-
alguns casos de inclusão têm sido relatados. tuição –, e interesse dos alunos em participar
Entretanto, sugere-se que sejam criadas medi- da pesquisa.
das avaliativas científicas para a verificação dos Após a seleção da sala elaborou-se um
processos de educação inclusiva, uma vez que questionário-piloto semi-aberto com identifica-
na análise de algumas práticas pedagógicas ção e quatro questões sobre a temática. De-
sobre a inclusão percebeu-se a ocorrência de: pois de elaborado, o questionário foi aplicado
“(1) uma mera inserção do aluno deficiente em pela própria pesquisadora aos alunos, que leva-
classes comuns a título de inclusão, (2) a mi- ram em média quinze minutos para respondê-
gração de deficientes no sentido inverso do que lo. Todos os questionários foram respondidos e
ocorria no passado recente, (3) a institucionali- entregues.
zação da normificação e (4) o desvirtuamento Mediante a coleta de dados os questionári-
de objetivos precípuos da educação escolar” os foram tabulados, refletidos e discutidos. A
(OMOTE, 2004a, p. 05). tabulação e discussão podem ser conferidas no
Diante dessas discussões teóricas fica-nos, tópico a seguir.
ainda, uma dúvida: como os futuros profissio-
nais da educação, que irão lidar com inúmeras TABULAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RE-
divergências em sala de aula, estão perceben- SULTADOS
do a educação inclusiva? Assim, este trabalho
de pesquisa teve como objetivo detectar e en- Na tabela 1 verificou-se que todos os ques-
tender a percepção e compreensão de 36 estu- tionários aplicados foram respondidos e entre-
dantes do primeiro semestre do curso de gues, o que parece demonstrar o interesse
pedagogia da região de Dracena em relação desses estudantes com relação à temática.
aos fundamentos da educação inclusiva. Para Apenas 3% dos estudantes possuem outra gra-
atingi-lo, aplicou-se um questionário que foi ta- duação e 47% possuem cursos voltados à área
bulado e discutido, e seus resultados estão nos educacional, como CEFAM ou Magistério, per-
tópicos que virão a seguir. fazendo um total de 50% dos alunos. Pode-se
inferir que esses estudantes possuem subsídios
teóricos e pedagógicos para atuarem em salas
DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO de aula. Ainda pode-se verificar que, do total
dos participantes, 25% já estão trabalhando na
A partir dos pressupostos teóricos e das in- sala de aula, o que demonstra que de forma
dagações feitas foi escolhida uma sala do pri- direta ou indireta já podem estar trabalhando
meiro semestre do curso de Pedagogia de uma com a inclusão de alunos com necessidades
faculdade da região de Dracena no ano de 2006. educativas especiais.
92 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes
Na tabela 2 verifica-se que apenas 36% dade de, ao longo do curso, essa lacuna ser
dos participantes que responderam os questi- sanada, uma vez que na grade curricular do
onários afirmam ter tido informações sobre o curso de pedagogia existem disciplinas sobre
que seria educação inclusiva, sendo que 64% os fundamentos da educação inclusiva. Por
desconhecem tais informações. Esses levan- outro lado, se 25% dos estudantes já estão atu-
tamentos demonstram que a temática não está ando como profissionais, é de extrema urgên-
fazendo parte do cotidiano dos participantes cia a atuação na formação dos professores em
da pesquisa até o momento; mas há possibili- exercício.
Na tabela 3 foi possível verificar como es- porar cursos qualitativos à formação dos edu-
ses estudantes adquiriram informação sobre cadores em exercício.
educação inclusiva. Dos 36% que responderam Já na tabela 4 procurou-se verificar se o
na tabela 2 ter conhecimento sobre a temática, conhecimento sobre a educação inclusiva
46% assinalaram que esse foi adquirido em sala adquirido por esses estudantes está em
de aula e 23% no local de trabalho (escola). consonância com a literatura pesquisada. Para
Podemos inferir que a sala de aula é um dos isso, procurou-se colocar nos questionários
maiores responsáveis pela transmissão dos co- alternativas com visões do senso comum e
nhecimentos, reforçando assim o papel dos do- deixar uma questão aberta para verificar se
centes que ministram aulas no ensino superior, algum estudante levantaria hipótese diferente
para que estejam preparados para discutir e das propostas. Essas alternativas, com as
ampliar o debate sobre educação inclusiva. Por respectivas freqüências, seriam: 1) colocar
outro lado, a inserção do local de trabalho dos todos os deficientes em idade escolar na sala
participantes como um “outro” local de forma- de aula regular (53%); 2) colocar somente os
ção de conhecimento indica que se deve incor- surdos em idade escolar na sala de aula regular
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007 93
A percepção dos estudantes do curso de pedagogia sobre educação inclusiva
Ressalte-se que 2,64% dos estudantes pes- pação dos órgãos públicos em criar estratégias
quisados afirmam não ter tido informações an- para ampliar o debate. Ficam-nos algumas dú-
teriores sobre o que seria educação inclusiva. vidas. Onde o processo de inclusão está falhan-
Este dado nos parece preocupante, uma vez que do? Na transmissão de conhecimento ou no
os meios de comunicação já estão explorando interesse dos alunos de se apropriarem dessa
a temática, assim como tem havido a preocu- área específica?
Tabela 5 - A opinião dos discentes sobre a preparação dos professores da rede regular
de ensino com relação à educação inclusiva
Na tabela 5 verificou-se que 92 % dos clusiva. Salienta-se que 82% dos participan-
estudantes pesquisados não acreditam que os tes da pesquisa estão entendendo a educa-
professores do ensino regular estejam pre- ção inclusiva como a colocação de
parados para trabalhar com a educação in- deficientes no ensino regular.
94 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007
Cristiane Regina Xavier Fonseca-Janes
Tabela 6 - A opinião dos discentes sobre sua preparação para trabalhar com a educação
inclusiva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007 95
A percepção dos estudantes do curso de pedagogia sobre educação inclusiva
REFERÊNCIAS
ABREU, C. Capítulos de história colonial, 1500-1800. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. (Grandes nomes
do pensamento brasileiro).
COTRIM, G. Educação para uma escola democrática. São Paulo: Saraiva, 1989.
FARIA FILHO, L. M. Instrução elementar no século XIX. In: LOPES, E. M. e outros. 500 anos de educação
no Brasil. Belo Horizonte: Autentica, 2000. p. 135-150.
FONSECA-JANES. C. R. X. Educação Inclusiva: a visão de futuros profissionais da educação. In: JORNA-
DA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL: INCLUSÃO E ACESSIBILIDADE,8., 2006. Marilia. Anais.... Marília:
FUNDEP/ABPEE, 2006. p. 187-193.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. 13. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1982.
_____. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
GADOTTI, M. História das idéias pedagógicas. 2. ed. São Paulo: Ática, 1994.
GHIRALDELLI-JÚNIOR, P. Filosofia e história da educação brasileira. Barueri: Manole, 2003.
LOPES, E. M. T.; GALVÃO, A. M. O. História da educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
MANTOAN, T. E. In: OMOTE, S. (Org.) Inclusão: intenção e realidade. Marília: FUNDEP, 2004a. 211p.
MITTLER, P. Educação inclusiva: contextos sociais. Tradução de Windyz Brazão Ferreira. Porto Alegre:
Artmed, 2003.
NAGLE, J. A educação na primeira república. In: FAUSTO, Boris (Org.). História da civilização brasileira:
o Brasil republicano, sociedade e instituições, 1889-1930. São Paulo: Difel, 1977. t.3, v. 2, p. 261-291.
OMOTE, S. (Org.) Inclusão: intenção e realidade. Marília: FUNDEP, 2004a. 211p.
_____. Estigma no tempo da inclusão. Revista Brasileira de Educação Especial. Marília, v. 10, n. 3, p. 287-
308, jul./set., 2004b.
_____. A construção de uma escala de atitudes sociais em relação à inclusão: notas preliminares. In: Revista
Brasileira de Educação Especial. Marília, v. 11, n. 1, p.33-47, jan./mar. 2005.
PAIVA, J. M. Educação jesuítica no Brasil colonial. In: LOPES, E. M. e outros. 500 anos de educação no
Brasil. Belo Horizonte: Autentica, 2000. p. 43 - 59.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, Marília, v. 08, n. 1, jan./mar. 2002.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, Marília, v. 10, n. 1, jan./mar. 2004.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, Marília, v. 10, n. 2, abr./jun. 2004.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, Marília, v. 10, n. 3, jul./set., 2004.
REVISTA BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO ESPECIAL, Marília, v. 11, n. 1, jan./mar. 2005.
STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Inclusão um guia para educadores. Tradução de Magda França Lopes,
Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1999.
UNESCO. Declaração de Salamanca e linha de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília:
CORDE, 1994.
WEREBE, M. J. G. A educação. In: BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. (Dir.) História geral da civilização
brasileira: o Brasil monárquico. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1971. t .2. p.366-383.
XAVIER, M. E.; RIBEIRO, M. L.; NORONHA, O. M. História da educação: a escola no Brasil. São Paulo:
FTD, 1994.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 03.04.07
96 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 89-96, jan./jun., 2007
Graciela Fagundes Rodrigues
RESUMO
ABSTRACT
* Especialista em Educação Inclusiva pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Educadora
especial da Fundação de Articulação e Desenvolvimento de Políticas Públicas para pessoas com deficiência e altas
habilidades no Rio Grande no Sul (FADERS). Endereço para correspondência: Rua Pedro Werlang, 1011, Bairro
Intercap – 91630-110, Porto Alegre/RS. E-mail: graciela2281@yahoo.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007 97
A inclusão e suas relações no cotidiano escolar
it has been possible to go ahead in order to reflect about some data which has
been obtained from a former investigation. Having as a goal to problematize
about representations, it was perceived how these representations (dis)construct
point of views and ways of co-existing within the educational field as well as
the social and familiar fields. Starting from a historical review about differences
until reaching a possible re-conceptualization of views and actions, we could
construct some practices that could be attempts for demystifying the past,
where the “difference” should be eliminated and “corrected”. In this way,
“listening” to students who are part of this ample inclusion movement,
understanding in which way they represent the “other”, make possible to
understand inclusion as one of the elements in favor for (dis)constructing short-
minded points of view.
Keywords: School Inclusion – Representations – Differences
98 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007
Graciela Fagundes Rodrigues
Projetando um olhar através da his- ordem mais objetiva nos quais a “cura” foi o
tória principal objetivo a ser alcançado. Contudo, ao
ser a diferença considerada uma doença, os
As representações da deficiência na anti- indivíduos passaram a sofrer isolamentos em
güidade e no presente determinaram e ainda asilos e hospitais, já que o perigo de transmis-
determinam as formas de olhar para a diferen- são e contágio assusta a população. No século
ça significativa2 . Para melhor entendermos o XVIII, na Europa, a internação dessas pessoas
contexto atual, é importante ressaltar alguns representou um grande movimento, um período
aspectos históricos buscando compreender os de segregação e categorização dos indivíduos,
caminhos através dos quais olhar para a dife- internando a loucura pela mesma razão que a
rença significativa foi sendo manifestado, na devassidão e a libertinagem. Os indivíduos ex-
tentativa de podermos, na atualidade, reconcei- cluídos eram alienados, separados em grupos,
tualizá-los. entre os quais havia indigentes, vagabundos e
Consideramos que a sociedade constrói for- mendigos; prisioneiros e «pessoas ordinárias»;
mas de viver, assim como constrói valores para «mulheres caducas», «velhas senis ou enfer-
que seja possível esta vivência. Segundo Fou- mas»; «velhas infantis», pessoas epiléticas, «ino-
cault, mais importante que buscar explicar a centes” malformados e disformes; pobres bons
cultura, a ciência, as idéias de uma época ou e “moças incorrigíveis” (FOUCAULT, 2002).
determinada sociedade, é “buscar o que em uma No século XIX, na França, Jean Itard ela-
sociedade é rejeitado e excluído. Quais as idéi- borou o primeiro programa sistemático de edu-
as ou os comportamentos, quais as condutas ou cação especial, sendo assim considerado o pai
os princípios jurídicos ou morais que não são da Educação Especial (FONSECA, 1995). A
aceitos?” (1999, p.75 - tradução minha), sendo primeira experiência realizada por ele foi em
para ele o louco e o prisioneiro os principais 1800, quando investiu na tentativa de recupera-
modelos de exclusão. ção e educabilidade de Victor de Aveyron, “o
As imagens de deficiência alimentadas pe- menino selvagem”. De acordo com Baptista &
las sociedades ao longo de seu desenvolvimen- Oliveira (2002, p.100), na época considerava-
to nada mais são que o produto de suas formas se Victor deficiente, porém Itard argumentou
de organização. A história nos mostra a polari- que esse estado poderia estar relacionado ao
zação eficiência/deficiência a que as diferen- seu modo de vida anterior, em que viveu numa
ças significativas estiveram sempre atreladas, floresta junto apenas de animais, sem qualquer
sendo dadas a partir desta polarização as justi- contato com seres humanos. Esse tipo de vida
ficativas para as diferentes práticas de exclu- teria provocado um estado completo de ‘priva-
são, inclusive o extermínio nas sociedades grega ção social’.
e romana, principalmente. Podemos considerar Nesse esforço de Itard em oportunizar a
que tanto as diferenças quanto as exclusões não Victor uma educabilidade, nasce, poderíamos
são temas apenas atuais, já que sempre estive- dizer, uma das primeiras tentativas de educar e
ram presentes no contexto histórico da huma- modificar o potencial cognitivo de uma criança
nidade. Assim, concordamos com Albrecht “diferente”. Outros nomes também importan-
(apud BARNES, 1998, p.65) quando afirma tes, que perduraram ao longo do século XIX,
que: “A insuficiencia es tan antigua como el como representantes que “alimentavam” as idéi-
cuerpo humano y las primeras sociedades co- as de Itard, são: Pinel, John Locke e Rousseau.
nocidas: es una constante humana”. Através desse breve panorama histórico pode-
Com o desenvolvimento da ciência o con-
junto de saberes simplificadores, como crendi- 2
Termo utilizado por Amaral (1998), designado para os
ces, bruxarias e misticismos, que caracterizava sujeitos, ou um grupo, por suas características físicas, men-
tais, sensoriais, psíquicas, não correspondendo a um tipo
os deficientes na Idade Média, foi aos poucos “ideal” de sujeito. A diferença significativa desdobra-se em
sendo desconstruído, dando lugar a estudos de três subconceitos: deficiência, incapacidade e desvantagem.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007 99
A inclusão e suas relações no cotidiano escolar
mos dar uma caminhada pelos percursos que a sala de aula onde se encontra o aluno com ne-
deficiência passou, ora como algo a ser exter- cessidades educativas especiais, o ir além se
minado e ora como de possível educabilidade. torna: “ficar em....” Esse “ficar em” é na in-
Podemos pensar no presente, no qual urge a completude, na falta, no vazio. Relacionamos
necessidade de olharmos para as diferenças esse aspecto com o olhar. De que maneira olha-
significativas centradas nas possibilidades e não mos para nossos alunos? E de que maneira os
mais nas impossibilidades. Nas sábias palavras próprios alunos olham para seus colegas? Um
de Amaral (2001, p.150), “um dos caminhos é olhar do que lhes falta ou um olhar para possi-
percebermos o que está se passando para que bilidades? É preciso considerar, e esta é a pers-
possamos não eliminar preconceitos (objetivo pectiva dessa reflexão, que os olhares, assim
impossível de ser atingido), mas reconhecê-los como as representações, formam-se nas rela-
em nós e, então, elaborá-los para que não se ções sociais, no contato do Eu e o Outro. Com
interpolam em nossas relações vivas e pulsan- relação ao olhar para além da superfície, Omo-
tes de cada dia”. te (apud CARNEIRO, 1998, p.19) afirma que
“...é preciso olhar para a coletividade que o iden-
tifica como deficiente, encaixando-o em uma
A inclusão como possibilidade de categoria de desviante e tratando-o distintamen-
(des)contruções de representações te. Ninguém é deficiente por si só. Alguém é
deficiente perante uma audiência e dentro de
A inclusão, entendida como um processo em determinadas circunstâncias”.
permanente construção, vem aos poucos dimi- As relações em sala de aula estão imersas
nuindo as fronteiras entre a educação e a edu- em diferentes olhares. E, a partir da inclusão,
cação especial, e entre escola regular e escola de que forma os educadores podem possibilitar
especial. Ambas iniciam, dessa forma, um pro- a construção de olhares acerca da diferença?
cesso de ressignificação de padrões conceptu- Temos que tomar cuidado para que este aluno
ais e organizacionais, planejamentos, formação não se restrinja ao disléxico, ao surdo, ao defi-
de turmas, currículo, avaliação, e gestão de pro- ciente, ao Down, dentre outras tantas maneiras
cesso educativo em sua totalidade. Podemos
simplificadoras de chamá-lo. O processo de in-
afirmar que a inclusão escolar sugere a instabi-
clusão, enquanto proposta educacional, envol-
lidade, a busca constante de alternativas peda-
ve diferentes âmbitos da escola, e um dos
gógicas diferenciadas, que não estão postas
principais é a própria sala de aula. Este espaço
como guias. Ensinar e aprender não podem ser
precisa ser investigado a fim de possibilitar a
mais atribuídos ao professor e ao aluno respec-
desmitificação de idéias pré-concebidas acer-
tivamente, mas à rede que o processo educati-
ca da diferença, da “estranheza”, já que é nes-
vo incita.
te lugar que ocorre, basicamente, o aprender,
... a criança que nos chega, em cada turma, a mas que também é uma estrutura social em que
criança com deficiência, com dificuldades, o alu- a convivência e as trocas sócio-afetivas ocor-
no inteligente, o menino de rua, o aluno do Su-
rem constantemente – sendo essenciais ao cres-
pletivo e, ao mesmo tempo, são os alunos que
nos fazem profissionais apaixonados, inquietos, cimento de cada ser humano. Eizirik (2003, p.
que precisam decifrar esses misteriosos seres, 07) refere-se a este espaço como contendo
que nos provocam o encontro com um Outro “...um mundo de significados, potencialidades,
desconhecido, que nos colocam em perigo, que descobertas e aprendizagens, mas que também
nos mostram os nossos limites, mas que nos fa- pode ser a própria representação do vazio, da
zem ir além de nós mesmos (MANTOAN, 2004, perda de tempo, da repetição, dos exercícios
p.81).
de poder e de violência, que ocorrem em múlti-
E o que é ir além de nós mesmos em uma plas vias, fazendo vítimas e algozes, entre alu-
sala de aula? Observa-se que muitas vezes, na nos e professores”.
100 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007
Graciela Fagundes Rodrigues
Não esqueçamos que incluir não é acabar ser criança quanto do que é ser deficiente, as-
com as diferenças, na medida em que integra- sim como inúmeras outras que não necessitam
mos os alunos com diferenças significativas aos ser apontadas, são construídas nas relações
“iguais”, mas, pelo contrário, é enfraquecer a sociais, na convivência em grupos sociais nos
idéia de “padronização” e “normalização”. A quais se convencionam determinadas represen-
escola não é – e acreditamos que nunca foi – o tações, como as anteriormente citadas, sendo a
espaço próprio de iguais. Assim, o questiona- partir delas que iremos constituir outras ou rea-
mento feito pela escritora Virginia Woolf (apud firmar as mesmas.
EIZIRIK, 2003, p. 02): “Não deveria a educa-
ção fortalecer as diferenças, e não as similari-
dades?” permanece vivo no cenário atual, As representações no cotidiano es-
apesar dela o ter escrito em 1928, ou seja, há colar
quase oitenta anos.
Ao se apresentar o panorama da sala de aula Para iniciarmos a descrição de aspectos re-
inclusiva, observa-se que os sujeitos geralmen- lacionados às representações, uma situação
te são julgados sob diferentes imagens, tais relevante ocorrida no primeiro dia da pesquisa
como “doentes”, “loucos” ou “coitados”, con- merece ser destacada. Enquanto eu procurava
tribuindo para que estas representações sejam pela sala de aula alvo do estudo, uma aluna pas-
confirmadas tanto por adultos como por crian- sava pelo corredor. Como não estava conse-
ças. E, provavelmente, é deste representar que guindo encontrar o local, resolvi lhe perguntar:
são antecipadas as expectativas sobre o aluno, – Você sabe qual é a sala da 3ª série?
conferindo-lhe seu respectivo espaço e seu res- Ela respondeu:
pectivo lugar no ambiente em que se insere, já – A 3ª dos “normais” ou a dos surdos?
que, conforme Omote (1994, p. 70): “Na medi- Com curiosidade a contestei:
da em que a pessoa é percebida como se per- – Como assim, eu não entendi. O que são
tencesse a essa categoria e, conseqüentemente, “normais”?
portasse as características previstas nos mem- Ela imediatamente me disse:
bros dessa categoria, criam-se expectativas para –“Normal” é que nem a gente.
o desempenho dessa pessoa”. Como gostaria de ouvi-la ainda mais, lhe
Apesar de estarmos vivenciando um con- perguntei novamente:
texto educacional onde, na medida do possível, – Então quem é surdo não é “normal”, é
se abrem as portas das escolas para a diversi- “anormal”?
dade de culturas, sendo estas reconhecidas e A menina ficou completamente sem graça
respeitadas, por outro lado presenciamos a e saiu correndo, não querendo continuar a con-
grande desinformação acerca desta diversida- versa comigo. Percebemos nessa situação, cla-
de que, em conseqüência, se apóia em um con- ramente, a dicotomia: normal/anormal. O normal
junto de representações. Por essas atitudes se como o que está padronizado, poderíamos dizer
obtêm os pré-conceitos, as opiniões já forma- os “sem deficiência”, e o anormal como o que
das a respeito de um determinado assunto, ob- é significativamente diferente de mim, ou os
jeto ou pessoa, como, por exemplo, a represen- “com deficiência”. De acordo com Oliveira
tação da criança como um ser “puro”, “frágil”, (2004, p. 162), “...temos que ter um olhar críti-
“ingênuo”, ou as representações sobre a defi- co para esses discursos dualistas que viabili-
ciência, que as associam a “anormalidade”, “ine- zam a construção do imaginário de discriminação
ficiência” ou “doença”. Com base nesses este- social e buscar fundamentos teóricos que vi-
reótipos, a observação de um deficiente, por sem a “desconstrução” deste imaginário”.
exemplo, nas ruas, na escola ou até mesmo no Uma outra fala significativa, remetida a alu-
mercado de trabalho, nos causa surpresa ou nos surdos desta escola, ocorreu durante o re-
espanto. Essas idéias, portanto, tanto do que é creio quando me dirigi a uma das alunas
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007 101
A inclusão e suas relações no cotidiano escolar
102 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007
Graciela Fagundes Rodrigues
“muros”, dialogando, questionando e conhecen- Devemos sempre pensar, portanto, que os ca-
do a diferença. Segundo Abramowicz (2001, p. minhos são feitos ao caminhar, pouco a pouco,
8), devemos “...nem aceitar, muito menos tole- deixando para trás aquilo que irá ser “pesado”, e
rar as diferenças, mas sim produzir diferenças. ir o mais leve possível para que, no percurso,
Há uma incessante forma de vida que é produ- possamos nos alimentar de idéias e desafios, a
zida pelos diferentes; que é preciso estar aten- fim de conseguirmos cumprir nosso objetivo, que
to para aproveitar. (...) a educação só será é a chegada. Porém, não uma única chegada,
inclusiva se se prestar à exterioridade, ou seja, tendo a impressão de que finalizamos nosso ca-
se ‘estes novos alunos’ envergarem a escola minhar. Pelo contrário, ao chegarmos podemos
com suas diferenças, e a modificarem”. Pois o recomeçar, mas com um novo jeito de caminhar
desejo de querermos tornar “natural” uma sala e para uma nova chegada, onde até nós já não
de aula em que a presença da diferença chama somos mais o que éramos ao iniciar. E, finalizan-
a atenção é dar margem à produção de atitu- do para recomeçar, compartilho dessa significa-
des ancoradas no desconhecimento, na pieda- tiva passagem de Baptista (2003, p.30), quando
de e na patologia. Consideramos que o nos diz que: “O futuro não é apenas a conquista
silenciamento não é produtivo, uma vez que as de metas estabelecidas a priori, mas, principal-
crianças “falam”, “ecoam vozes” às diferentes mente, a possibilidade de novas respostas a no-
situações vividas no cotidiano – seja ele famili- vas perguntas que escapam a todo e qualquer
ar ou escolar. critério de previsibilidade”.
REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, Anete. Educação inclusiva: incluir para quê? Revista Brasileira de Educação Especial,
Marília, v.7, n. 2, p. 01-09, jul./dez., 2001.
AMARAL, Lígia. Sobre crocodilos e avestruzes: falando de diferenças físicas, preconceitos e sua supera-
ção. In: AQUINO, Julio Groppa (Coord.). Diferenças e preconceitos na escola: alternativas teóricas e
práticas. São Paulo: Summus, 1998. p. 11-30,
_____. A diferença corporal na literatura: um convite a “segundas leituras”. In: SILVA, Shirley; VIZIM,
Marli (Org.). Educação especial: múltiplas leituras e diferentes significados. Campinas: Mercado das Letras,
2001. p. 131-161.
BARNES, Colin. Las teorias de la discapacidad y los orígenes de la opresión de las personas discapacitadas
en la sociedad occidental. In: BARNES, Colin. Discapacidad y sociedad. Madrid: Morata, 1998. p. 59-76.
BAPTISTA, Cláudio Roberto. Diálogo e contratação na ação educativa: algumas reflexões sobre uma peda-
gogia das diferenças. Revista de Educação: inclusão, Porto Alegre: Projeto, v. 5, n. 7, p. 25-30, out. 2003.
_____; OLIVEIRA, Aniê. Lobos e médicos: primórdios da educação dos “diferentes”. In: BAPTISTA,
Cláudio Roberto; BOSA, Cleonice et al. Autismo e educação: reflexões e propostas de intervenção. Porto
Alegre: Artmed, 2002. p. 93-109.
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria de Educação Especial. Relatório de avaliação: políti-
cas e programas governamentais em educação especial: EFA 2000. Disponível em: http://http://
www.inep.gov.br/download/cibec/1999/titulos_avulsos/efa2000.doc. Acesso em: 25 abr. 2004.
CARNEIRO. Maria Sylvia. Tentativas de integração escolar de alunos considerados portadores de deficiên-
cia. Revista Integração, Brasília, a. 8, n. 20, p. 18-21, 1998.
DORNELES, Beatriz Vargas. Laboratórios de aprendizagem: funções, limites e possibilidades. In: MOLL,
Jaqueline (Org.). Ciclos na escola, tempos na vida: criando possibilidades. Porto Alegre: Artmed, 2004.
p.209-217.
EIZIRIK, Marisa. Educação e construção de mundos: por onde passa a inclusão na escola regular? Revista
de Educação: inclusão. Porto Alegre: Projeto, v. 5, n. 7, p. 02-08, out. 2003.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007 103
A inclusão e suas relações no cotidiano escolar
FONSECA, Victor da. Educação especial. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
FOUCAULT, Michel. História da loucura. São Paulo: Perspectiva, 2002.
_____. Estética, ética y hermenêutica. Obras essenciales. Buenos Aires: Paidós, 1999. v. 3.
MANTOAN, Maria Tereza Eglér. Caminhos pedagógicos da educação inclusiva. In: GAIO, Roberta;
MENEGHETTI, Rosa Gitana Krob et al. Caminhos pedagógicos da educação especial. Petrópolis: Vozes,
2004. p. 79-94.
OLIVEIRA, Ivanilde. Apoliceno. de. Saberes, imaginários e representações na educação especial: a pro-
blemática da ética da “diferença” e da exclusão social. Petrópolis: Vozes, 2004.
OMOTE, Sadao. Deficiência e não deficiência: recortes do mesmo tecido. Revista Brasileira de Educação
Especial, Marília, n. 2, p. 65-73, jan./jun., 1994.
Recebido em 29.09.06
Aprovado em 30.11.06
104 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 97-104, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
RESUMO
ABSTRACT
*
Mestre em Educação (UFMA). Especialista em Saúde Pública, Magistério Superior e Psicomotricidade. Psicóloga
(UFRJ). Professora do Centro Universitário do Maranhão – UNICEUMA. Endereço para correspondência: Rua
Professor Luis Pinho Rodrigues, n. 16, Condomínio Costa Azul, Bloco II, apt. 201. Renascença II – 65.075-740, São
Luís/MA. E-mail: zinoleleite@ceuma.com.br
**
Doutora em Educação Motora (UNICAMP); mestre em Educação Especial (UFSCar). Professora Adjunta IV do
Deptº de Educação Física da Universidade Federal do Maranhão. Professora e orientadora do Mestrado em Educação/
UFMA. Endereço para correspondência: Rua dos Portugueses, S/N, Núcleo de Esportes, Campus Bacanga – 65085-
580, São Luís/MA. E-mail: smmourasilva@bol.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 105
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
the so called “Escolas-Pólo” which include such kind of students. The tools
which were used for the collecting of data were structered interviews with
5(five) principals from those “Escolas-Pólo” situated in the urban zone in São
Luís, from the neighborhood Centro, Cohab, Pão-de-Açúcar, Cidade Operária
and Alemanha. The results point to the implantation of the inclusion while keeping
the modalities of special education. The students with mental impairment are
prepared in special classes and, later, taken to the regular classroom. This
procedure however does not correspond to the paradigm of inclusion but to the
one of integration. We conclude expressing that the Municipal net of schooling
in São Luís seems to work in integrated education and not in inclusive education
as student with mental impairment seems not to show himself apt of attending
the regular classroom.
Keywords: School inclusion – Mental impairment – Basic education
106 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
ção de inclusão escolar, os obstáculos que se de suas condições. Saliente-se que esta é a
interpõem à sua efetivação, as medidas adota- abordagem defendida por Mantoan (2003a).
das para a sua execução, assim como os bene- A inclusão com a manutenção das modali-
fícios advindos desse processo. dades de atendimento em educação especial é
Do ponto de vista filosófico, a inclusão es- a proposta defendida por Carvalho (2004) e
colar fundamenta-se na Conferência mundial Correia e Cabral (1999). Prevê-se nesta abor-
sobre educação para todos: satisfação das dagem a inserção tanto em salas regulares
necessidades básicas de aprendizagem, de como nas diferentes modalidades de atendimen-
1990 (UNESCO, 1990), e na Declaração de to em educação especial, dependendo das ca-
Salamanca e linhas de ação sobre as neces- racterísticas dos educandos.
sidades educativas especiais, de 1994 (UNES- No âmbito internacional, o direito à educa-
CO, 1994). Esses documentos internacionais ção já vem sendo assegurado desde a Declara-
asseguram indistintamente a todos os indivídu- ção Universal dos Direitos Humanos
os com necessidades especiais ou não o direito (UNESCO, 1948). Entretanto, a adesão ao pa-
à educação de qualidade na rede regular de radigma da inclusão teve início com a Declara-
ensino. Conclama-se o respeito à dignidade ção Mundial sobre Educação para Todos:
humana e enaltece-se a diversidade como ele- Satisfação das Necessidades Básicas de Apren-
mento indispensável na aprendizagem. dizagem, de 1990, que, também, preconiza ser
A inclusão escolar representa um novo pa- a educação um direito fundamental de todos,
radigma no âmbito educacional, ao propor que começando desde o nascimento e prolongan-
a diversidade seja aceita como elemento cons- do-se por toda a vida. Tratando-se especifica-
tituinte do processo ensino-aprendizagem. Para mente de pessoas com necessidades especiais,
Carvalho (2004, p. 27) “o paradigma da inclu- a Declaração de Salamanca de 1994 (UNES-
são representa um resgate histórico do igual CO, 1994) pressupõe que a Educação Inclusi-
direito à educação de qualidade”. va é imprescindível para a construção de uma
Segundo Mantoan (2003b, p. 57) sociedade justa, democrática e igualitária.
A inclusão é uma inovação que implica um es- No plano nacional, a Constituição Federal
forço de modernização e de reestruturação das (BRASIL, 1988) assegura que a educação é
condições da maioria de nossas escolas (espe- um direito de todos e um dever do Estado. O
cialmente as de nível básico), ao assumirem que documento também prescreve que o atendimen-
as dificuldades de alguns alunos não são ape- to educacional a pessoas portadoras de defici-
nas deles, mas resultam, em grande parte, do ência (terminologia à época) deve ocorrer
modo como o ensino é ministrado e de como a preferencialmente na rede regular de ensino.
aprendizagem é concebida e avaliada.
Semelhante determinação é encontrada na Lei
No contexto da inclusão a escola deve adap- de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
tar-se às necessidades educacionais dos alu- (BRASIL, 1996). Embora anterior a esta lei, a
nos, com deficiência ou não. A inclusão Política Nacional de Educação Especial (BRA-
preconiza, também, o respeito à dignidade hu- SIL, 1994) já previa a expansão do atendimen-
mana no contexto educacional, visto que se to àqueles com necessidades especiais na rede
apóia no modelo social da deficiência, minimiza regular de ensino.
a responsabilidade do educando em relação ao Em nível estadual, a Constituição do Estado
fracasso escolar. Convém salientar que, no âm- do Maranhão (MARANHÂO, 1989) assegura
bito da inclusão escolar, persistem duas tendên- o direito à Educação, e a Resolução nº 291/2002
cias: a da inclusão total e a da inclusão com a do Conselho Estadual de Educação (MARA-
manutenção das modalidades de atendimento NHÃO, 2002) estabelece normas para a Edu-
em educação especial. Na primeira perspecti- cação Especial na educação básica do sistema
va está prevista a inserção radical e sistemáti- de ensino do Estado do Maranhão, e prevê ou-
ca do aluno no contexto escolar independente tras providências. O documento em questão
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 107
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
adverte que o atendimento educacional a alu- ram por um modelo de exclusão e segregação
nos com necessidades especiais deve aconte- escolar dessa clientela, que representa uma
cer no sistema regular de ensino em qualquer grande parte da sua população. Segundo Ribei-
etapa ou modalidade da educação básica. ro (1991), desde os primórdios da colonização
Tratando-se do município de São Luís do do Brasil a educação esteve voltada para uma
Maranhão, convém destacar dois documentos: elite, fundamentou-se num modelo ideal de alu-
a Resolução nº 10/2004 do Conselho Municipal no, produziu repetências, analfabetismo, evasões
de Educação (SÃO LUÍS, 2004a) e o Plano e excluiu do contexto escolar aqueles que dife-
Decenal Municipal de Educação de São Luís – riam desse modelo, como o são as pessoas com
2004/2013 (SÃO LUÍS, 2004b). A Resolução deficiência mental.
nº 10/2004 assegura em âmbito municipal as Uma análise dos dados apresentados pelo
prescrições contidas na Resolução nº 291/2002 Censo Escolar de 2005 e pela Secretaria Muni-
do Conselho Estadual de Educação. Por sua cipal de Educação (SÃO LUÍS, 2005) sugere
vez, o Plano Decenal Municipal de Educação que, dado o percentual elevado de pessoas com
de São Luís apresenta as diretrizes norteado- deficiência mental no Estado do Maranhão,
ras da Política de Educação Inclusiva da rede persistem ainda atitudes de segregação no
municipal de ensino, dando destaque à escola contexto educacional em relação às pessoas
inclusiva como espaço para a construção de com deficiência mental. Esses dados suscitam
uma sociedade justa e democrática que aceite questionamentos diversos, dentre eles: como
e respeite a diversidade humana. está ocorrendo o processo de inclusão escolar
Embora existam determinações de âmbito de alunos com deficiência mental no ensino fun-
internacional, nacional, estadual e municipal, damental da rede municipal em São Luís-MA?
tratando-se da sociedade brasileira pode-se ve- A perspectiva que tem sido adotada na inclu-
rificar, no que se refere ao cumprimento das são escolar de pessoas com deficiência mental
prescrições desses documentos, que ainda se é a da inclusão total ou a da inclusão com a
vive num estado de barbárie. A situação é tão manutenção de modalidades de atendimento em
alarmante que, segundo dados do Instituto Bra- educação especial? Analisar como está ocor-
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2000), rendo o processo de inclusão escolar de alunos
24.965.200 (vinte e quatro milhões novecen- com deficiência mental no ensino fundamental
tos e sessenta e cinco mil e duzentos) habitan- na rede municipal em São Luís - MA constitui
tes no Brasil apresentam deficiência! Desse o objeto deste trabalho.
total, 8,3% apresentam deficiência mental e, Para operacionalizar essa pesquisa delimi-
em 2003, apenas 251.506 recebiam atendimen- taram-se os seguintes objetivos específicos:
to educacional.
a) especificar as principais barreiras enfren-
No Estado do Maranhão, segundo o Censo
tadas no processo de inclusão escolar de pes-
Demográfico de 2000, 99.307 pessoas apresen-
soas com deficiência mental;
tam deficiência mental. Desse total, apenas 601
b) enumerar as medidas adotadas para a in-
alunos com deficiência mental encontram-se
clusão escolar de pessoas com deficiência men-
matriculados em salas regulares da rede muni-
tal;
cipal de São Luís, segundo a Secretaria Muni-
c) caracterizar os benefícios decorrentes da
cipal de Educação (2005), incluindo-se os níveis
inclusão escolar de pessoas com deficiência
de Educação Infantil, Ensino Fundamental e
mental para a comunidade escolar e para a so-
Educação de Jovens e Adultos. Além disso,
ciedade em geral.
apenas 198 alunos com deficiência mental en-
contram-se matriculados em classes especiais A escolha da rede municipal de ensino, como
na rede municipal de ensino. centro deste estudo, deve-se ao fato de estar
Do exposto, verifica-se que a sociedade bra- prescrita, no Inciso I do Artigo 208 do Capítulo
sileira e, especificamente, a maranhense opta- III (Da Educação, da Cultura e do Desporto)
108 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 109
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
110 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
... a escola se entupiu do formalismo da raciona- contando-se, para esse fim, com um apoio apro-
lidade e cindiu-se em modalidades de ensino, priado às suas características e necessidades.
tipos de serviço, grades curriculares, burocra- Para esses autores, a inclusão deve também
cia. Uma ruptura de base em sua estrutura orga-
admitir um contínuo educacional em que a mo-
nizacional, como propõe a inclusão, é uma saída
para que a escola possa fluir, novamente, espa- dalidade de atendimento mais adequada para o
lhando sua ação formadora por todos os que aluno com necessidades educacionais especi-
dela participam. ais deverá ser determinada pelo Plano Educati-
vo Individualizado (PEI). A proposta de Correia
Outros aspectos relacionados à inclusão, ci-
e Cabral (1999) é de inclusão com a manuten-
tados pela autora (2003b, p. 55), são os seguin-
ção do continuum de serviços educativos como
tes: “A inclusão implica em acesso, permanên-
resposta às necessidades da criança. A seguinte
cia e prosseguimento da escolaridade até o nível
citação ilustra essa idéia defendida por Correia
que cada aluno for capaz de atingir. (...) não há
e Cabral (1999, p.38).
inclusão, quando a inserção de um aluno é con-
dicionada à matricula em uma escola ou classe Há casos em que as características, as capacida-
especial.” des e as necessidades de aprendizagem de de-
A inclusão, ainda, envolve basicamente “uma terminada criança podem requerer modalidades
de atendimento diversificadas. Acreditamos, as-
mudança de atitude face ao Outro: (...) o outro sim, como muitos dos defensores do princípio
é alguém que é essencial para a nossa consti- da inclusão, que devem ser consideradas op-
tuição como pessoa e dessa Alteridade é que ções e providenciados serviços adequados para
subsistimos, e é dela que emana a Justiça, a as crianças com necessidades educacionais es-
garantia da vida compartilhada.” (MANTOAN, peciais severas, sempre que possível, na classe
2004, p. 55). regular, mas não excluímos a hipótese da res-
Para Mantoan (2003b, p. 8), “As escolas posta não estar sempre, o tempo inteiro, nessa
mesma classe regular.
inclusivas são instituições abertas incondicional-
mente a todos os alunos”. Nelas atende-se às Correia e Cabral (1999) sugerem um mode-
diferenças sem qualquer discriminação, traba- lo de inclusão progressivo, que permita a for-
lhando-se conjuntamente com todos os alunos. mação de níveis de inclusão – de limitado a total,
De maneira geral, para a autora, a inclusão afe- dependendo de uma série de fatores: natureza
ta várias categoriais: profissionais da área de e severidade da problemática da criança com
Saúde e Educação (geral e especial), associa- necessidades educacionais especiais; os recur-
ção de pais, pais de crianças normais e grupos sos humanos e materiais existentes; o relacio-
de pesquisa das universidades. namento entre o professor de ensino regular e
Segundo Marques e Marques (2003), como o da Educação Especial; a participação paren-
princípio alicerçado no dado atual da diversidade tal; os apoios prestados por outros serviços; e a
a inclusão contempla necessariamente todas as formação do professor e de outros agentes edu-
formas possíveis da existência humana. Para cativos.
esses autores a diversidade pressupõe dois as- Dessa forma, Correia e Cabral (1999) pro-
pectos: “o reconhecimento e o respeito pelo que põem três níveis de inclusão que devem ter por
faz uma pessoa um ser diferente de todos os base as atividades acadêmicas e sociais desen-
demais e a preservação do dado de que todas as volvidas na escola regular. Segundo esses au-
pessoas são iguais no que se refere ao valor tores, a maioria dos alunos com necessidades
máximo da existência: a humanidade do homem.” educacionais especiais (situações ligeiras e
(MARQUES; MARQUES, 2003, p. 233). moderadas) deve ser inserida no nível I – inclu-
Correia e Cabral (1999) entendem que a in- são total. Só um pequeno número de alunos (si-
clusão implica na inserção do aluno na classe tuações moderadas e severas que requeiram
regular, onde, sempre que possível, deve rece- práticas excepcionais) deve ser considerado no
ber todos os serviços educativos adequados, nível II – inclusão moderada. E só um número
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 111
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
reduzido de alunos (situações severas que o tem alimentado a idéia de que tais pessoas ne-
exijam) é que deve ser mantido no nível III – cessitam de espaços próprios e específicos para
inclusão limitada. serem trabalhadas, assim como de tratamento
Mantoan (2004), por sua vez, mostra-se e profissionais especializados, o que reforça a
radical em sua perspectiva, admitindo que a insegurança, o medo e a resistência dos pro-
inclusão escolar pressupõe a inserção do alu- fessores das classes regulares em trabalharem
no com ou sem deficiência na classe regu- com alunos com deficiência, justificando-se a
lar. A autora admite que o atendimento sua queixa de despreparo profissional. Desfa-
segregado, seja provisório ou definitivo, de- zer esse núcleo de representações sociais, se-
riva do paradigma que se fundamenta na gundo Carvalho (2004), constitui-se numa das
Educação Especial, promovendo a exclusão tarefas iniciais para a implementação da inclu-
parcial ou total. são, levando os educadores, em geral, a enten-
No que tange às barreiras ou dificuldades derem que a proposta de educação inclusiva
enfrentadas na concretização da Educação In- diz respeito a todos os que, por diversas razões,
clusiva, a opinião dos autores é ampla. Carva- têm sido excluídos, abandonando precocemen-
lho (2004) afirma ser indispensável, para que te a educação escolar.
a Educação Inclusiva se concretize, a remo- Quanto à queixa de despreparo dos pro-
ção de barreiras conceituais, atitudinais e polí- fessores para trabalharem com alunos com de-
tico-administrativas, cujas origens são múlti- ficiências, Carvalho (2004) é enfática,
plas e complexas, não havendo, no entanto, afirmando que os professores consideram-se
necessidade de hierarquizá-las, na medida em despreparados para a tarefa, porque a forma-
que se relacionam. Essa autora identifica como ção habilitou-os a trabalhar sob a hegemonia
principais barreiras à implantação da proposta da normalidade. Segundo a autora, é preciso
inclusiva os seguintes aspectos: formação dos ultrapassar a qualidade da formação inicial e
professores; as necessidades educacionais dos continuada dos educadores, levando-os a con-
alunos; a freqüência das reuniões nas esco- siderar a diversidade e a heterogeneidade
las; as atitudes negativas frente à diferença e como elementos significativos no processo
à deficiência; os modelos classificatórios de
ensino-aprendizagem.
avaliação educacional; as injustiças sociais e
Mantoan (2004) afirma como resistências
econômicas produtoras da desigualdade soci-
ou barreiras à inclusão as atitudes familiares,
al; a concepção que se tem da sociedade e
as dos professores da educação especial e do
das funções da escola.
ensino regular, e as atitudes dos próprios alu-
Uma atenção especial é dada ao diagnósti-
nos. Para essa autora a reação dos professo-
co que, segundo Carvalho (2004), se configura
res à inclusão, justificando a sua falta de preparo
como mais uma dificuldade na implementação
para lidar com a diversidade dos alunos, mas-
da proposta inclusiva. A cultura de diagnosti-
cara na verdade o medo de enfrentar o novo,
car, seja com a finalidade de triagem, seja para
uma das principais barreiras à inclusão.
escolher o melhor procedimento, ainda está
Outra barreira que precisa ser transposta,
muito arraigada, segundo a autora. Além do
para a efetivação do ensino inclusivo, segundo
resquício em relação ao modelo médico, esse
Mantoan (2004, p. 84), é a:
aspecto é considerado um dos maiores obstá-
culos à inclusão, na medida em que reforça os ... inadequação de métodos e técnicas de ensino
estigmas. tradicional, baseados na transmissão de conhe-
cimentos e na individualização das tarefas de
Um outro aspecto significativo ressaltado por
aprendizagem. Nessas condições organizacio-
Carvalho (2004), como empecilho à proposta nais de trabalho pedagógico é impossível criar
inclusiva, diz respeito ao mito de que as pesso- situações, a partir das quais cada aluno possa
as com deficiência apresentam diferenças, en- aprender e perceber-se como sujeito ativo na
tendidas como qualidades negativas. Este mito conquista do conhecimento.
112 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
Para Mantoan (2004), nas condições tradi- las dos alunos com necessidades especiais, con-
cionais de ensinar, reforçam-se a competição e siderando-se sua idade cronológica; e combate
a homogeneização entre os alunos. Isto impede à prioridade de aprendizagem de conteúdos em
os professores de contemplarem as diferenças detrimento da aprendizagem da vida.
e reconhecerem o valor e a riqueza que elas Além desses aspectos, Ramos (2005, p. 15-
representam para o desenvolvimento dos pro- 16) acrescenta que, para a inclusão efetivar-
cessos educativos, dentro e fora das escolas. se, faz-se necessária a desmistificação de que:
Uma outra barreira à inclusão, destacada por ... portadores de necessidades especiais
Mantoan (2004), é a presença de professores necessitam de cuidados especiais (...); aqueles
especialmente destacados para acompanharem que lidam com portadores de necessidades
o aluno com deficiência nas atividades de sala especiais, principalmente os professores
de aula, servindo como apoio ou mesmo res- precisam ser especialistas (...); portadores de
pondendo diretamente pela inserção desse alu- necessidades especiais têm de estar em escolas
no no meio escolar. Segundo a autora, essa especiais; (...) de que eles atrapalham a
atitude exclui e segrega o aluno, além de des- aprendizagem de outras crianças.
qualificar o professor responsável pela turma, Ramos (2005) ainda se refere à necessida-
que não modificará a sua maneira de atuar na de de mudanças no processo avaliativo, que
sala de aula, visto que as necessidades educati- deve considerar o potencial do aluno e não as
vas do aluno com deficiência estão sendo su- exigências do sistema escolar, e respeitar o rit-
pridas pelo educador especializado. mo de aprendizagem de cada um como aspec-
Infelizmente, segundo essa pesquisadora tos a serem contemplados na inclusão escolar.
(2004), muitos sistemas educacionais entendem Segundo Mantoan (2004), os princípios edu-
que essa solução é válida em fases intermediá- cacionais humanistas norteiam a escola inclusi-
rias de implantação do sistema inclusivo, consi- va e os professores devem ter um perfil
derando-se a presença dos professores de apoio compatível com esses princípios. A sua forma-
e até mesmo das classes especiais sediadas em ção necessita ultrapassar a graduação e os cur-
escolas regulares como degraus necessários sos de pós-graduação, constituindo-se mesmo
para se chegar à inclusão. numa autoformação, na medida em que acon-
Convém destacar, também, a contribuição de tece no interior das escolas a partir do interes-
Oliveira (2003, p.37), para quem a maior dificul- se docente em melhorar a sua prática escolar.
dade à inclusão é “lidar com as diferenças de Outro aspecto salientado por Mantoan
forma diferente, garantindo o princípio de igual- (2004), no que tange à consecução de projetos
dade de oportunidades a todos os educandos”. educacionais inclusivos, diz respeito à partici-
Uma vez analisadas as principais barreiras pação de toda a comunidade escolar (pais, pro-
para a efetivação da educação inclusiva têm-se fessores, diretor, alunos e todos os interessados
as principais medidas a serem adotadas nos sis- em Educação) na organização curricular, que
temas educacionais para que eles se tornem in- deve considerar as condições físicas e sócio-
clusivos. Infere-se de Ramos (2005) que os prin- culturais do meio em que se insere a escola.
cipais requisitos para a efetivação da inclusão Salienta Mantoan (2004, p. 91) que:
são os seguintes: filosofia educacional de base
Nas escolas inclusivas, a progressão no ensino
construtivista, pois considera as diferenças na
não é serial, linear, mas sincrônica e organizada
aprendizagem dos indivíduos; de consciência da em ciclos de formação/desenvolvimento que
comunidade (alunos, pais) de que os educandos cobrem as faixas etárias de 6 a 11 anos, de 11 a 14
com necessidades especiais não vão atrapalhar anos para o caso do ensino fundamental.
o processo de ensino-aprendizagem mas, sim, Esses tempos permitem que o aluno transite num
ajudar, construindo sentimentos de solidariedade dado nível sem reprovações, sem desvios para o
e respeito às diferenças; presença de uma equi- ensino especial, pois não estabelecem quando
pe preparada para o novo, o inusitado; matrícu- uma criança ou jovem deve mudar de série esco-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 113
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
lar ou se estão ou não preparados num certo professores especializados em cada escola e
momento para uma ou outra de suas passagens. reestruturação do sistema educacional escolar.
Referindo-se à formação dos professores, A mesma autora (2004) salienta, também,
uma outra medida relativa à consecução da in- que as condições sócio-econômicas do Brasil
clusão escolar, Mantoan (2003a) sugere que seja devem ser revistas, principalmente no que diz
feita a fusão entre a educação especial e a edu- respeito às suas implicações na desvalorização
cação regular nos sistemas escolares, e a im- do magistério, a fim de que as escolas se tor-
plantação da formação única para todos os nem espaços inclusivos.
educadores. A formação inicial dos educado- Por sua vez, Oliveira (2003) propõe uma
res eliminaria, em grande parte, as reações ne- série de modificações à escola quando da im-
gativas dos professores do ensino regular diante plantação do paradigma da inclusão, para aten-
dos alunos com deficiência. Quanto à forma- der às necessidades do educando. Essas
ção continuada, os professores teriam garanti- mudanças refletem-se em vários aspectos da
do um tempo de estudo nas escolas e em seus escola como organização, e dizem respeito a
horários de trabalho. ofertas de apoios específicos para professores
Mantoan (2003a) discorda do caráter espe- e alunos; utilização de recursos da comunidade
cial e da validade de métodos de ensino escolar (de ordem clínica, pedagógica, material ou físi-
para pessoas com deficiências, pois tais proce- ca); intercâmbio entre escolas, classes e co-
dimentos levam a um rebaixamento do nível de munidade; treinamento de funcionários;
expectativa do professor em relação às poten- alterações arquitetônicas e estruturais; e capa-
cialidades do aluno, à sua capacidade de cons- citação do pessoal técnico-administrativo.
truir conhecimentos. Segundo a autora, os Infere-se de Fonseca (2003) que, para a
procedimentos de adaptar currículos, facilitar implantação de escolas inclusivas, são neces-
tarefas e diminuir o alcance dos objetivos edu- sárias as seguintes providências: modificações
cacionais devem ser substituídos pela crença na gestão, na organização, no equipamento, nos
nas potencialidades do educando e pela valori- suplementos multiterapêuticos e, sobretudo, nas
zação do que foi produzido por ele. atitudes e atuação de uma equipe multidiscipli-
A extinção das habilitações dos cursos de nar. Além desses aspectos, salienta o autor, caso
Pedagogia para formação de professores de se queira promover uma educação inclusiva,
alunos com deficiência é sugerida por Mantoan visando os efeitos benéficos de longo prazo,
(2004, p.93) quando afirma: devem-se criar serviços de suporte, realizar
... os cursos de especialização não deveriam se modificações psicopedagógicas, curriculares, e
dedicar a especializar os educadores em algum do processo avaliativo (que deve ser dinâmico
tipo de incapacidade, em uma categoria de alu- e longitudinal), reestruturar a cultura, as políti-
nos, mas estar voltados para o aprofundamento cas e as práticas escolares, de forma a respon-
pedagógico desse profissional, de modo que der à diversidade.
pudesse entender melhor as crianças em geral, Embora as escolas possam desenvolver inú-
em seu desenvolvimento.
meras ações em prol da inclusão, também é
Carvalho (2004) propõe, como medidas para verdade que elas enfrentam inúmeros limites
a efetivação da inclusão: projeto político-peda- que só poderão ser superados com mudanças
gógico da escola compatível com o paradigma sistemáticas nas políticas nacionais, com ênfa-
da inclusão; revisão da metodologia didática se para aquelas diretamente relacionadas à edu-
atualmente adotada; intensificação da relação cação. Além disso, a política educacional deve
família/escola; oferta de mais cursos para os articular-se com as políticas públicas responsá-
professores; redução do numero de alunos por veis pela distribuição de recursos financeiros
turma; presença de outra professora em sala- para programas de saúde, nutrição, bem-estar
de-aula; trabalho, separadamente, com os alu- familiar, trabalho, emprego, ciência e tecnolo-
nos com deficiência; aumento do número de gia, transportes, desporto e lazer.
114 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
De tudo que foi exposto, convém salientar Para Carvalho (2004, p. 133), os professo-
que a inclusão implica, em primeiro lugar, na acei- res “reconhecem vantagens na inclusão de de-
tação de todas as crianças como pessoas, como ficientes, nos aspectos sociais (54%) e nos
seres humanos únicos e diferentes entre si, o que cognitivos (15%) na medida em que preconcei-
acontecerá realmente quando todas as escolas tos serão eliminados, facilitar-se-à a integração
se modificarem. A modificação não é somente social desses alunos, gerando solidariedade en-
nas instalações físicas, mas em todas as propos- tre os colegas que se estimularão para ajudar
tas pedagógicas, metodológicas e administrati- na aprendizagem”.
vas. Sassaki (2003) e Mantoan (1997) afirmam No que tange especificamente aos benefí-
que é a escola que deve se adaptar às crianças, cios para os professores, salientam Karagian-
de modo a atender todos os alunos e não o con- nis, Stainback e Stainback (1999) que o ensino
trário. A inclusão necessita de professores es- inclusivo requer destes novas habilidades para
pecializados para todos os alunos. Tais trabalharem com alunos acadêmica e social-
professores deverão voltar a estudar, a refletir mente deficientes. Há apoio cooperativo e me-
sobre suas práticas e a buscar metodologias ino- lhoria das habilidades profissionais, e a
vadoras de ensino para esse fim. O maior desa- oportunidade de planejarem e conduzirem a
fio para implantar-se a inclusão diz respeito ao educação como parte de uma equipe, manten-
fator humano, segundo Mantoan (2003b). do-se a cooperação entre professores e técni-
Depreende-se das contribuições de Sassaki cos (apoio psicológico), e consultas a outros
(2003) e de Stainback e Stainback (1999), que colegas. Essa atitude leva os professores a
alguns benefícios da inclusão compreendem os melhorarem suas habilidades profissionais.
seguintes aspectos: desenvolvimento da apre- Os mesmos autores asseveram que a razão
ciação da diversidade individual; aquisição de mais importante para o ensino inclusivo é o va-
experiência direta com a variação natural das lor social da igualdade. Em contraste com as
capacidades humanas; acesso a uma gama experiências passadas de segregação, a inclu-
ampla de modelos de papel social; atividades são reforça a prática de que as diferenças são
de aprendizagem de redes sociais; demonstra- aceitas e respeitadas. Quando as escolas inclu-
ção crescente de responsabilidade e melhorias em todos os alunos, a igualdade é respeitada e
na aprendizagem através do ensino entre alu- promovida como um valor na sociedade. Para
nos; ganhos nas habilidades sociais e acadêmi- Karagiannis, Stainback e Stainback, (1999), em
cas e preparação para a vida na comunidade, uma sociedade cada vez mais diversificada o
assim como atitudes positivas. ensino inclusivo ensina os alunos a aceitarem
Além desses aspectos, Karagiannis, Stain- as pessoas que são diferentes.
back e Stainback (1999) destacam que progra-
mas adequados de inclusão tanto para alunos
com deficiência como para os sem deficiência 3. METODOLOGIA
promovem ganhos nas habilidades sociais e
acadêmicas, preparando-os para a vida na co- Para abordar o tema sobre a inclusão esco-
munidade e para atitudes positivas. Madden e lar de alunos com deficiência mental no ensino
Silva (apud STAINBACK; STAINBACK, fundamental, optou-se pelo método dialético, por
1999) corroboram esta perspectiva e acrescen- ele possibilitar a análise do fenômeno da inclu-
tam que há ganhos, também, nas habilidades da são escolar em seu contexto mais amplo, con-
vida diária. Prosseguem os autores, afirmando siderando-se as contradições internas deste
que, em casos de graves deficiências cogniti- fenômeno social.
vas, é importante não se preocupar com habili- Optou-se pela pesquisa descritiva tendo em
dades acadêmicas. Para esses alunos o que vista que, segundo Gil (1999), busca-se a des-
importa é a oportunidade de adquirir habilida- crição do fenômeno, a inclusão escolar de alu-
des sociais através da sua inclusão. nos com deficiência mental na rede regular de
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 115
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
ensino, além da relação entre os fatores deter- b)localização na zona urbana de São Luís,
minantes desse processo, considerando-se a sua devidamente delimitada, segundo documento da
inerente contradição. Por sua vez, as informa- SEMED.
ções para a realização do referido estudo fo- Optou-se pelas escolas da zona urbana por
ram buscadas em documentos internacionais, apresentarem percentual maior de escolas-pólo,
nacionais, estaduais e municipais, na própria segundo dados da SEMED, além de maior fa-
bibliografia sobre o assunto e no campo, confi- cilidade de acesso.
gurando-se, assim, respectivamente, um estu- A pesquisa foi realizada portanto em cinco
do de caráter documental, bibliográfico e de escolas-pólo da rede municipal de ensino de São
campo, segundo Gonsalves (2003). Luís. Estas, segundo a SEMED, são escolas
Quanto à natureza dos dados, a pesquisa em que apresentam classes especiais, salas de re-
questão é qualitativa, pois preocupa-se com a cursos e alunos inclusos. As cinco situam-se
compreensão e a interpretação do fenômeno. nos bairros da Alemanha, Anil, Centro, Pão-
Entretanto, fez-se uso de medidas objetivas, de de-Açúcar, Cidade Operária e Cohab.
base estatística, o que também caracteriza o O instrumento de coleta de dados utilizado
estudo como quantitativo, segundo Gonsalves foi a entrevista estruturada, feita com os dire-
(2003). Embora a ênfase tenha sido dada à pes- tores. Após a sua elaboração, realizou-se uma
quisa qualitativa, procurou-se nesse estudo su- pré-testagem com diretores de uma Instituição
perar a dualidade existente entre os modelos Filantrópica em São Luís-MA.
qualitativos e quantitativos de pesquisa, anali- O passo seguinte na coleta e análise de da-
sando-se os dados objetivos a fim de oferecer dos foi a realização de um contato junto à SE-
uma melhor compreensão do fenômeno a ser MED, a fim de se realizar um levantamento de
estudado. quantas e quais escolas-pólo, situadas na zona
Foram sujeitos deste estudo cinco diretores urbana de São Luís do Maranhão, apresenta-
de escolas-pólo da rede municipal de ensino de vam alunos com deficiência mental matricula-
São Luís-MA, que incluem em salas regulares dos em sala regular. Num segundo momento,
alunos com deficiência mental. Os diretores ti- foram contatados os diretores de cada uma
nham, na época da pesquisa, respectivamente dessas escolas, devidamente enumeradas pela
56, 52, 51, 48 e 45 anos, sendo quatro do sexo SEMED, para verificar se nelas havia alunos
feminino e um do sexo masculino. Quanto à na mesma situação. Após se certificar de que
formação profissional, um era formado em His- as escolas-pólo apresentavam alunos com de-
tória, outro em Matemática, e os demais em ficiência mental matriculados, um novo contato
Pedagogia, sendo que um deles com habilita- foi feito com as escolas para agendar entrevis-
ção em Administração e Magistério de 1º e 2º tas com os diretores. Estas foram realizadas
graus e outro com habilitação em Orientação individualmente no ambiente da escola, com a
Educacional e Magistério. Três diretores pos- autorização dos entrevistados, sendo gravadas
suíam especialização, um (D1) em Administra- e, posteriormente, transcritas.
ção Escolar, outro (D3) em Educação Especial, As entrevistas com os diretores das esco-
enquanto um terceiro (D5) tinha três especiali- las-pólo foram inicialmente transcritas na ínte-
zações: Coordenação Pedagógica, Psicopeda- gra, preservando-se os conteúdos originais das
gogia e Gestão Pública. falas. Inicialmente ouviu-se o começo dessas
Do total de dez escolas-pólo elencadas pela entrevistas; quando necessário se voltou ao iní-
Secretaria Municipal de Educação (SEMED) cio das gravações, sendo estas ouvidas nova-
apenas cinco corresponderam aos critérios de mente. A transcrição ocorreu de forma paulatina
seleção adotados pela pesquisa. Estes incluí- e progressiva, voltando-se várias vezes às fa-
ram os seguintes aspectos: las até que se conseguisse a transcrição por
a)presença de alunos com deficiência men- completo, em termos impressionistas, confor-
tal na sala regular; me entendido.
116 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
Na transcrição dos conteúdos das gravações res em efetivarem a inclusão escolar dessas
considerou-se a perspectiva teórica de Queiroz pessoas também constitui um empecilho. Res-
(1983, p. 90), de modo a “... buscar os princípi- ta salientar que para os outros dois diretores
os que presidiram a construção do texto e des- não existem dificuldades desta ordem no ensi-
vendar a origem do mesmo, pela compreensão no fundamental, da rede municipal de ensino de
em profundidade daquilo que ele contém.” Após São Luís-MA.
ter transcrito as entrevistas, deu-se prossegui- O aspecto salientado nos depoimentos, re-
mento à análise dos depoimentos, identifican- ferente à resistência dos professores em efeti-
do-se “... trechos que aparecem no discurso e varem a inclusão, lembra Carvalho (2004),
que se relacionam com o objetivo da pesquisa, quando esta autora destaca que os professores
pinçando-se ou ressaltando-os para uma discus- se consideram despreparados, porque a forma-
são do conteúdo.” (MANZINI, 1991, p. 81). ção habilitou-os a trabalhar sob a hegemonia
Após a transcrição das entrevistas e análise da normalidade. Além disso, parece que a re-
dos conteúdos, os dados foram agrupados em sistência dos professores passa pela dificulda-
categorias, conforme cada pergunta realizada. de em aceitar a diversidade humana, como
salienta Oliveira (2003). Convém ressaltar que,
para Mantoan (2004), o “discurso do desprepa-
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO ro profissional” na verdade mascara o medo de
enfrentar o novo, representado pela inclusão.
Seguem-se as perguntas das entrevistas com
3ª Quais medidas têm sido adotadas na
as respectivas respostas:
escola para facilitar a inclusão de alunos
com deficiência mental na rede municipal
4.1. Entrevistas com os Diretores
de ensino?
1ª O que é inclusão escolar para o Sr.(a)? Os quatro diretores ressaltaram que a for-
Ao referir-se à inclusão escolar observou- mação de professores tem sido a medida mais
se que três diretores a associam ao atendimen- comumente adotada nas escolas para facilitar
to educacional voltado para a diversidade, a inclusão de pessoas com deficiência mental.
enquanto os outros dois diretores interpretam a Entretanto, um diretor apontou a sensibilização
inclusão escolar com sendo a inserção de alu- da comunidade escolar como medida para a
implantação da inclusão escolar de pessoas com
nos com necessidades especiais na escola re-
deficiência mental.
gular, o que constitui um equívoco.
O despreparo dos professores para trabalha-
Depreende-se dos depoimentos dos direto-
rem com alunos com deficiências é apontada por
res que ainda persistem entre eles equívocos
diversos autores. Carvalho (2004) explica esse
em relação ao entendimento do que venha a
despreparo, justificando que a formação habili-
ser inclusão escolar, associando-a apenas à in-
tou-os a trabalhar sob a hegemonia da normali-
serção de alunos com necessidades educacio-
dade. É necessário considerar a diversidade e a
nais especiais no contexto escolar, apesar de
heterogeneidade como elementos significativos
três dos entrevistados considerá-la um proces-
no processo de ensino-aprendizagem.
so mais amplo que diz respeito a todo aluno.
A preocupação com a sensibilização da co-
2ª Quais as dificuldades enfrentadas para munidade escolar serve para dirimir preconcei-
a inclusão escolar de alunos com deficiência tos em relação à pessoa com deficiência mental,
mental na rede municipal de ensino? fazendo surgir atitudes adequadas e favoráveis
Segundo dois diretores, as atitudes familia- à aceitação das diferenças. Proporcionam-se,
res constituem a principal barreira à inclusão dessa forma, elementos para minimizar uma das
escolar de pessoas com deficiência mental. maiores dificuldades de inclusão, conforme Oli-
Segundo um diretor, a resistência dos professo- veira (2003), que é lidar com as diferenças,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 117
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
aceitando-se a diversidade humana, evitando- dos os diretores declararam que, para eles, o
se rótulos e comparações entre alunos com principal benefício da inclusão escolar é o de-
deficiência mental e os “normais”. senvolvimento de suas condições psicológicas,
tais como auto-estima, potencialidades, talen-
4ª Que benefícios traz a inclusão escolar
tos, capacidades, relacionamento interpessoal
de alunos com deficiência mental para a
e socialização.
escola, os professores, alunos em geral, para
Para o pessoal administrativo o principal
os próprios alunos com deficiência mental,
benefício destacado por todos os diretores foi
pessoal administrativo e para a sociedade
aprender a lidar e a conviver com os especiais,
em geral?
aprender a conviver com as diferenças, ou di-
Todos os diretores afirmaram que a inclu-
minuir o preconceito.
são escolar de pessoas com deficiência mental
Em relação aos benefícios da inclusão es-
traz benefícios. Tratando-se especificamente da
colar de alunos com deficiência mental para a
escola, três diretores admitiram que o grande
sociedade, as diminuições do preconceito e da
benefício para ela é a mudança de olhar e atitu-
discriminação, levando a uma visão mais positi-
de em relação à pessoa com deficiência men-
va destes sujeitos, foram descritas por quatro
tal, decorrente da diminuição de preconceitos e
diretores. Essa visão mais positiva leva à dimi-
discriminações. Por sua vez, um diretor admitiu
nuição dos preconceitos em relação a eles que,
como benefício para a escola o fato dela tor-
conseqüentemente, passam a acreditar mais nas
nar-se um espaço de referência para a comu-
suas potencialidades. Para um diretor, os alu-
nidade. Apenas um diretor acredita que a
nos deixam de representar um perigo para a
socialização da pessoa com deficiência mental
sociedade.
é um benefício para a escola, decorrente da in-
A visão de que pessoas com deficiência
clusão deste tipo de aluno.
mental são um risco para a sociedade repre-
As mudanças que se processaram no mun-
senta um resquício da teoria da degenerescên-
do, a partir da década de 80, com a internaciona-
cia de Morel, destacada por Pessotti (1984), para
lização da economia, levou ao estreitamento das
a qual a deficiência mental representa o último
relações entre as culturas e os povos. Essas pres-
grau de degradação humana, constituindo-se em
cindem de espaços, onde se possa aprender a
um risco à sociedade, na medida em que pode
conviver com as diversidades e aceitar as dife-
ser transmitida geneticamente.
renças, como as escolas inclusivas. Assim sen-
Os benefícios citados pelos diretores em
do, tornar-se uma referência como escola aberta
relação à inclusão corroboram as contribuições
a todos, corresponde a uma das exigências para
de Sassaki (2003), Stainback e Stainback (1999),
a construção de uma sociedade, que também
já que envolvem ganhos nas habilidades soci-
aceite a diversidade e se torne inclusiva.
ais, preparação para a vida na comunidade, as-
Três diretores destacaram que aprender a
sim como atitudes positivas.
lidar e conviver com as diferenças é o principal
ganho para os professores. Por sua vez, de acor- 5ª Qual a sua opinião sobre a política de
do com dois diretores, os docentes tendem a educação inclusiva da rede municipal de
melhorar suas habilidades profissionais quando ensino?
há inclusão de pessoas com deficiência mental Todos os diretores foram favoráveis à polí-
no contexto escolar. tica de educação inclusiva da rede municipal
No que tange aos benefícios para os alunos de ensino. Entretanto, um diretor advertiu para
em geral, todos os diretores destacaram que há a necessidade de melhorias na política de edu-
melhora no relacionamento e na aceitação das cação inclusiva da rede municipal de ensino, com
diferenças. a adoção de investimentos na formação de pro-
Em relação ao benefícios da inclusão para fessores e a reestruturação do contexto esco-
os próprios alunos com deficiência mental, to- lar. Dessa forma, a inclusão escolar exige
118 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
mudanças estruturais na escola para que ela se reia e Cabral (1999), a qual prevê a inserção
adapte às necessidades dos educandos, como desses alunos tanto em salas regulares como
preconiza a Declaração de Salamanca de 1994 nas diferentes modalidades de atendimento em
(UNESCO, 1994). A inserção de alunos com educação especial, dependendo das caracterís-
deficiência mental sem as devidas modificações ticas dos educandos.
de ordem atitudinal, conceitual, arquitetônica e
7ªQuanto à inclusão escolar de alunos
pedagógica no âmbito da escola, como salien-
com deficiência mental na rede municipal
tam Oliveira (2003) e Ribeiro (2003), conduzi-
de ensino, o(a) Sr.(a) é favorável à inclusão
ria não à inclusão, mas sim à integração, baseada
total ou considera necessária a inclusão com
no modelo médico.
a manutenção das modalidades de atendi-
6ª Na sua opinião, como está ocorrendo mento em educação especial? Justifique a
o processo de inclusão escolar de alunos com sua resposta.
deficiência mental na rede municipal de en- Todos os diretores são favoráveis à inclu-
sino? são com a manutenção das modalidades de
Quatro diretores demonstraram ter apenas atendimento em educação especial. As justifi-
conhecimento parcial sobre o processo, com ex- cativas dos diretores consideram que, depen-
ceção de um diretor, que demonstrou saber como dendo do grau de deficiência mental, o aluno
este está ocorrendo, destacando que os alunos não consegue resultados acadêmicos satisfató-
são encaminhados para as escolas pela SEMED, rios em classes consideradas heterogêneas e
após serem submetidos a uma avaliação diag- normais. Outros motivos relatados consistem em
nóstica, realizada por técnicos da secretaria. que nem todos os professores estão prepara-
A partir dos dados coletados junto aos direto- dos para a inclusão e os alunos com deficiência
res, depreende-se que o processo de inclusão mental deveriam ser trabalhados em salas es-
escolar de pessoas com deficiência mental está peciais, com professores especializados.
ocorrendo com a manutenção das modalidades Saliente-se que os autores favoráveis à in-
de atendimento em educação especial, na medi- clusão com a manutenção das modalidades de
da em que as escolas-pólo apresentam classes atendimento em educação especial, como Cor-
especiais e alunos com deficiência mental nelas reia e Cabral (1999) e Carvalho (2004), não
matriculados, assim como professor itinerante. destacam que o aluno deva ser preparado para
Dos resultados deste estudo depreende-se a classe regular nessas modalidades de atendi-
que o processo de inclusão escolar de pessoas mento, pois isso seria contra o paradigma da
com deficiência mental na rede municipal de inclusão. O que eles observam é que as moda-
ensino está ocorrendo da seguinte forma: os lidades de atendimento em Educação Especial
alunos com deficiência mental são submetidos devam atender às necessidades educacionais
a um processo de diagnóstico e, dependendo dos alunos, e que as escolas se reestruturem, o
do resultado, são encaminhados para a sala re- que é compatível com o paradigma da inclusão.
gular ou classe especial. Nas classes especiais A idéia de que o aluno deva ser preparado para
são preparados para o ingresso no ensino regu- a sala regular parece situar-se no âmbito da in-
lar, sendo acompanhados na escola por um pro- tegração, e não da inclusão.
fessor itinerante, funcionário da SEMED, a fim
de observar se estão aptos ou não para o ensi-
no regular. Por sua vez, conforme os dados 5. CONCLUSÃO
obtidos com os diretores, sujeitos da pesquisa,
o processo de inclusão escolar está ocorrendo Não restam dúvidas de que a inclusão esco-
com a manutenção das modalidades de atendi- lar de alunos com deficiência mental no ensino
mento em educação especial, correspondendo fundamental apresenta-se como um desafio a
à proposta defendida por Carvalho (2004), Cor- ser cumprido pelas redes municipais de ensino,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 119
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
como a de São Luís do Maranhão, dada à obri- Tratando-se das condições favoráveis à in-
gatoriedade de sua oferta, principalmente por clusão escolar de pessoas com deficiência men-
essa instância administrativa. Verificou-se com tal na rede regular de ensino, ressalta-se que,
esse estudo que, no segmento do ensino funda- embora os documentos internacionais, nacionais,
mental, há um atendimento educacional reduzi- estaduais e municipais sugiram a formação con-
do a alunos com deficiência mental, dada a tinuada e em serviço para professores, esses
escassez de escolas que o fazem, sugerindo que ainda mantêm o mito de que estão desprepara-
as determinações legais não estão sendo cum- dos para trabalhar com alunos com deficiência
pridas pela rede municipal de ensino. Assim, mental. Talvez o motivo desse despreparo seja
parece que a inclusão escolar de alunos com a presença de preconceitos em relação a essas
deficiência mental ainda é descumprida, levan- pessoas, mascarados pelo discurso da necessi-
do a crer que existe um descaso do Estado para dade de cuidados especiais. Os professores
com as prescrições que norteiam o processo parecem não perceber que há necessidade de
educacional tanto em âmbito internacional, aceitar o aluno com deficiência mental como
como estadual e municipal. um ser único, capaz, com características e po-
Os dados apresentados sugerem que a rede tencialidades que podem ser trabalhadas. É esta
municipal de ensino tem realizado a inclusão visão que se deve ter de qualquer aprendiz, pois
escolar com a manutenção das modalidades de a diferença é que deve ser normal, e não a ho-
atendimento em educação especial. No entan- mogeneidade.
to, tais modalidades, como a classe especial, para O discurso do despreparo dos professores,
onde é encaminhada a maioria dos alunos que embora a rede municipal de ensino esteja inves-
não freqüenta as salas regulares, servem de tindo na sua formação, conforme relato dos di-
preparo para a inserção no ensino regular. Ob- retores, demonstra a sua inabilidade para traba-
serva-se, pois, que o modelo adotado aproxi- lhar com a diversidade humana em sua prática
ma-se mais do da educação integradora do que pedagógica. Os professores foram preparados
da educação inclusiva. para conviver com uma suposta homogeneida-
Em vez de buscar a reestruturação tanto de, que durante séculos tem excluído e segrega-
pedagógica como arquitetônica das escolas, o do do contexto escolar pessoas com deficiência
que é condição para a inclusão, a SEMED pre- mental.
fere encaminhar os alunos com deficiência As barreiras que dificultam a efetivação da
mental para modalidades de atendimento, como inclusão situam-se mais no âmbito atitudinal. O
a classe especial, que os mantêm segregados investimento na formação de professores como
do convívio escolar, ainda que essas se situem medida principal parece não sanar as dificulda-
no âmbito da escola regular. Além disso, o uso des enfrentadas, pois a formação pode ser ape-
de uma avaliação psicopedagógica, como pré- nas teórica, não levando a mudanças de atitudes
requisito para a inserção nas classes regulares nem à compreensão maior das necessidades,
ou nas classes especiais, sugere que ainda pre- limitações e potencialidades do aluno com defi-
valecem na rede municipal de ensino resquíci- ciência mental. Certamente, o trabalho de cons-
os do modelo médico, condicionando a matrícula cientização da comunidade escolar alcançaria
de alunos com deficiência mental na classe re- melhores objetivos e poderia ser utilizado para
gular conforme o resultado de tal avaliação. explicitar que alunos com deficiência mental são
Embora a inclusão esteja associada à aten- pessoas diferentes como as demais, desmistifi-
ção educacional, à diversidade, persistem equí- cando preconceitos e estereótipos em relação
vocos sobre ela na medida em que alguns a eles.
entrevistados a associaram à inserção de alu- No que concerne aos obstáculos à inclusão
nos com necessidades especiais na escola re- escolar de alunos com deficiência mental na
gular, e não a relacionaram à inclusão de todas rede municipal de ensino, o grande “vilão da
as pessoas excluídas. história” parece ser a formação de professo-
120 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
res. No entanto, parece contraditório tal discur- uma sociedade mais eqüitativa, justa e menos
so, porque os entrevistados enfatizaram que a preconceituosa.
rede municipal tem realizado investimentos na Quanto aos alunos com deficiência mental,
área. Resta perguntar: onde estão os professo- esses tendem a desenvolver suas condições
res que dizem não estar preparados para atuar psicológicas, como auto-estima, potencialidades,
com alunos com deficiência mental, apesar dos talentos, capacidades e respeito, quando inclu-
investimentos? Não restam dúvidas de que a sos no ensino regular.
implantação da inclusão passa pelo compromisso Conforme o que já foi dito, é dever do Esta-
social de cada um com a construção de uma do oferecer educação à população. No entan-
educação de qualidade para todos, não somen- to, o que se observa é a sua omissão no
te alunos com deficiência mental, como sugere cumprimento de determinações neste sentido,
este trabalho, mas também para todos os ex- relegando a um segundo plano os investimen-
cluídos dos diferentes sistemas sociais. tos na área educacional. Mais do que de leis,
Outras medidas detectadas nesse trabalho, um país, um estado ou município necessita de
como a sensibilização da comunidade escolar, atitudes que concretizem as prescrições das leis,
apontam para a necessidade de se efetivarem garantindo à população (mesmo aos alunos com
mudanças no âmbito atitudinal em relação aos deficiência mental), dentre outros, o direito à
alunos com deficiência mental. Essas mudan- educação.
ças devem acontecer inicialmente em relação Frente às dificuldades enfrentadas pela rede
aos próprios professores, na medida em que municipal de ensino no que se refere à inclusão
estes alimentam, ainda, idéias preconceituosas escolar de alunos com deficiência mental, já enu-
em relação a este alunos. É oportuno salientar meradas nesse trabalho, sugere-se que mais in-
que essas atitudes constituem um entrave à in- vestimentos sejam aplicados na capacitação de
clusão escolar, considerando-se que podem con- recursos humanos que garanta a adoção de uma
duzir à idéia errônea de que pessoas com postura inclusiva com relação a alunos com de-
deficiência mental não são capazes de acom- ficiência mental. Cursos eminentemente teóricos
panhar o curso normal de salas regulares, ne- contribuem para o enriquecimento profissional do
cessitando de espaços segregados para que professor; entretanto, não sensibilizam para a
sejam educadas. questão da aceitação das diferenças humanas
Foi dito pela maioria dos entrevistados que como condição natural e peculiar a todos.
o grande benefício da inclusão escolar de pes- Os professores precisam entender que ne-
soas com deficiência mental, na rede municipal cessitam rever a sua postura em relação aos
de ensino, é a aprendizagem da convivência aprendizes, sejam eles pessoas com deficiên-
com a diferença, dada a diminuição de precon- cia mental ou consideradas “normais”. Isto só
ceito em relação a essas pessoas. Certamente, se consegue com práticas vivenciadas, com
se o benefício fosse estendido à sociedade sensibilizações, em que cada um possa se colo-
como um todo, contribuiria para uma mudança car no lugar do outro e, numa verdadeira em-
de olhar em relação a elas, o que a levaria a ser patia, se compatibilizar com a sua realidade.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, v. 143, n. 248, 23 dez. 1996.
_____. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política nacional de educação especial.
Brasília, DF: MEC/SEESP. 1994. livro 1.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 121
Percepções dos diretores de escolas-pólo sobre a inclusão escolar de alunos com deficiência mental no ensino fundamental ...
122 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007
Zinole Helena Martins Leite; Silvana Maria Moura da Silva
RIBEIRO, M. L. S. História da educação brasileira: a organização escolar. 11. ed. São Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1991.
RIBEIRO, M. L. S. Perspectivas da escola inclusiva: algumas reflexões. In: RIBEIRO, M. L. S.; BAUMEL, R.
C. (Org.). Educação especial: do querer ao fazer. São Paulo: Avercamp, 2003. p. 41-51.
SANTOS, M. P. A prática da educação para a inclusão. In: MARQUEZINE, M. C. et. al. (Org.). Inclusão.
Londrina: EDUEL, 2003.
SÃO LUÍS. Conselho Municipal de Educação. Resolução nº 10/2004. São Luís: CME, 2004a.
_____. Secretaria Municipal de Educação. Plano decenal municipal de educação de São Luís: 2004/2013.
São Luís: SME, 2004b.
_____. Secretaria Municipal de Educação. Quadro demonstrativo de alunos atendidos pela Superintendên-
cia da Área de Educação Especial. São Luis: SME, 2005.
SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 2003.
STAINBACK, S.; STAINBACK, W. Inclusão: um guia para educadores. Porto Alegre: Artes Médicas Sul,
1999.
UNESCO. Declaração de Salamanca e linhas de ação sobre necessidades educativas especiais. Brasília, DF:
CORDE, 1994.
_____. Declaração mundial sobre educação para todos: satisfação das necessidades básicas de aprendiza-
gem. 1990. Disponível em: <http://www.unesco.org.br/publicacoes/copy_of_pdf/decjomtien>. Acesso em:
11 ago.2005.
_____. Assembléia Geral das Nações Unidas. Declaração universal dos direitos humanos. 1948. Disponível
em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 11 ago. 2005.
VOIVODIC, M. A. Inclusão escolar de crianças com Síndrome de Down. Petrópolis: Vozes, 2004.
WISE, L. Trabalhando com Hannah: uma criança especial em uma escola comum. Porto Alegre: Artmed,
2003.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 03.11.06
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 105-123, jan./jun., 2007 123
Luciene Maria da Silva
DO HORROR À DIFERENÇA:
uma aproximação com o conto ‘O alienista’
de Machado de Assis
RESUMO
O artigo trata de uma discussão sobre diferenças a partir do entendimento de
ciência por parte de Simão Bacamarte, personagem do conto ‘O Alienista’,
escrito por Machado de Assis e publicado pela primeira vez entre 1881 e 1882.
A discussão dá-se em torno das concepções científicas de então a respeito de
razão e sanidade, que evidencia uma anormalidade historicamente construída,
tendo como base a referência biológica e as respostas dadas nas relações com
o meio. Esse é o mote para uma reflexão sobre diferenças, deficiência e a
proposta de Educação Inclusiva.
Palavras-chave: Deficiência – Diferença – Preconceito – Inclusão –Educação
Inclusiva
ABSTRACT
A negação da diferença na sociedade é uma p.15) relata em O Alienista, uma trama que
discussão que tem na literatura de ficção uma tem Simão Bacamarte como personagem prin-
rica fonte para reflexões, dada sua possibilida- cipal: homem de ciência, casado com uma mu-
de de instaurar realidades ancoradas no cotidi- lher que “reunia todas as condições fisiológicas
ano e na imaginação. Machado de Assis (1999, e anatômicas de primeira ordem, digeria com
* Doutora em Educação pela PUC/SP. Professora adjunta da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Endereço para
correspondência: Departamento de Educação I – UNEB, Rua Silveira Martins, 2555, Cabula – 41150-000 Salvador/
BA. E-mail: luciene@portfolium.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007 125
Do horror à diferença: uma aproximação com o conto ‘O alienista’ de Machado de Assis
facilidade, dormia regularmente, tinha bom pul- ordens conceituais e dispô-los de tal forma que
so e excelente vista; estava assim apta para ele mesmo e todos que devem utilizá-los pos-
dar-lhes filhos robustos sãos e inteligentes”. sam dominar os fatos o mais amplamente pos-
Bacamarte, tendo direcionado suas ativida- sível”. A partir dessa apropriação dos fatos é
des de pesquisador para o recanto psíquico, que a teoria tradicional vai justificar suas pro-
entendeu que deveria construir a Casa Verde, postas, assim como Bacamarte, com sua ciên-
asilo que recolheria os deserdados do espíri- cia organicista e higienista que tinha um objetivo:
to, os doidos e dementes da cidade, que seri- “O principal nesta minha obra da Casa Verde é
am o objeto de análise metódica sobre seus estudar profundamente a loucura, os diversos
hábitos, palavras e gestos. Segundo ele, a insâ- graus, classificar-lhes os casos, descobrir en-
nia abrangia vasta superfície de cérebros e já fim a causa do fenômeno e o remédio univer-
havia corrompido personalidades históricas sal” (ASSIS, 1999, p.19). Esta abordagem é
como Sócrates, porque possuía um demônio marcada pelo entendimento de que no plano
familiar, Pascal, que via um abismo à esquer- empírico configura-se uma relação do objeto
da, entre outros. Desde então, passou a encar- com seu meio, que para ser investigado deve
cerar em seu prédio para alucinados todos os ser separado do contexto. E é assim que o mo-
que se distanciavam do seu padrão de sanida- delo hierárquico de conhecimento para essa
de: os que emprestavam dinheiro sem juros, os teoria tradicional tem uma disciplina subjacente
doidos de amor, os que tinham vocação para as ou ciência básica que fornece os pressupostos
cortesias, os mentirosos, os cultores de enig- para a prática.
mas, os fabricantes de charadas, os maldizen- Nesse ponto é que gostaria de iniciar algu-
tes, os curiosos da vida alheia, os gesticuladores mas reflexões sobre a questão do preconceito
e a própria esposa tida como demente. em relação aos alunos com deficiência na es-
Longe de querer empreender qualquer tipo cola. Um aspecto importante para essa refle-
de análise literária deste brilhante conto macha- xão diz respeito aos mecanismos de discrimi-
diano, é quase irresistível, após lê-lo, realçar al- nação social. Sabe-se, pelos estudos realizados
guns aspectos narrados pelo autor para pensar por diversas ciências (paleontologia, arqueolo-
sobre as práticas segregacionistas que ainda hoje gia, sociologia, história etc), que as atitudes pre-
se fazem presentes na sociedade e na escola, dominantes no decorrer da história da civiliza-
no que tange às pessoas com deficiência. ção em relação a esses indivíduos têm sido as
Essas atitudes são perceptíveis no conto, po- de abandono, exclusão, rejeição, discriminação
rém, mais concentradas no olhar fixo do especi- ou preconceito.
alista em que se tornou Simão Bacamarte. Sua Nos primórdios, o critério de sobrevivência
volúpia científica, cuja meta era alargar as bases às rudes condições de vida era a plena capaci-
da psicologia, tornava-o infatigável: “se alguma dade física. Na antigüidade, o corpo guerreiro
coisa o preocupava naquela ocasião, se ele dei- era um ideal legitimado por leis de Estado. Nos
xava correr pela multidão um olhar inquieto e tempos de emergência do Cristianismo incor-
policial, não era outra coisa mais que a idéia de porou-se alma ao corpo deficiente, impedindo
que algum demente podia achar-se lá misturado sua eliminação, porém instaurando a dúvida cris-
com a gente de juízo” (ASSIS, 1999, p.25). tã: “Se idiota, está livre do pecado? Tem mes-
Sua fé inabalável na racionalidade científi- mo alma, já que não possui virtudes? Qual a
ca, coerente com o contexto histórico de então, culpa pela deficiência e a quem atribuí-la?”
reverenciava o fato sob o disfarce da neutrali- (PAIXÃO, 1996, p.22). Pensadores e médicos
dade na busca da correção. E o experimento passaram a se interessar pela questão a partir
puro, como esclarece Horkheimer (1983, p.163), do século XV, com variadas explicações que
é a atividade teórica do cientista tradicional: resultaram no surgimento dos primeiros estu-
“Dentro da divisão social do trabalho, o cientis- dos sobre a escolarização de pessoas com de-
ta tem que conceber e classificar os fatos em ficiência.
126 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
Esse caldo de cultura exerce influência até A discussão sobre a escola inclusiva no Bra-
os dias atuais, sendo que, agora, a demarcação sil tem gerado polêmicas que se reportam a
das fronteiras da normalidade se constitui mais aspectos legais, metodológicos e organizacio-
nitidamente pela segregação das pessoas con- nais da escola para a efetivação da proposta.
sideradas fora dos padrões funcionais de pro- Consideramos, todavia, que essas são questões
dução. Mesmo com os avanços tecnológicos fundamentais para a educação de todos os alu-
que já poderiam ter eliminado o trabalho repeti- nos, posto que são diferentes, não cabendo for-
tivo e o esforço físico, é o ideal do corpo e da mulações e políticas educacionais diferenciadas,
mente úteis que predomina, demandando um no que se refere às condições para sua imple-
corpo rígido e funcional. Rejeita-se uma outra mentação. Sendo assim, a que pode se atribuir
referência de corpo que admita a flexibilidade, a resistência à inclusão de alunos com defici-
a possibilidade e as particularidades. Além do ência nas escolas comuns?
corpo útil para o trabalho, valoriza-se também Muitos dos que se posicionam contrários à
o corpo falsamente belo, porque padronizado proposta receiam que as crianças com defici-
em limites estéticos de peso, altura, cor e for- ência sejam mais marginalizadas nos ambien-
ma que favorecem a negação dos diferentes tes de escolas comuns, principalmente pelos
corpos fora dessas especificações. colegas de classe. Outros consideram que as
A educação das pessoas com deficiência crianças sem deficiência podem ter o desen-
tem uma trajetória marcadamente segregacio- volvimento retardado, causado pela convivên-
nista. O conhecimento teórico que lhe dá sus- cia e influência dos colegas que têm diferenças
tentação tem origem na perspectiva clínica da física, mental ou sensorial.
medicina que classifica as patologias, e na psi- No entanto, pesquisas empíricas desmistifi-
cologia cognitivista que concentra sua preocu- cam crenças sobre as interações desses alunos
pação no desenvolvimento da inteligência e da na escola. À guisa de exemplificação, podemos
cognição. Disso resultou o ensino segregado, citar a pesquisa de Odom, Deklyen e Jenkins
também chamado de especial, que separa os (1984), que investigou os efeitos da inserção de
considerados deficientes, denominados alunos alunos sem deficiência em classes de pré-es-
especiais, dos ambientes comuns de escolari- cola, formadas por crianças com deficiência,
zação. Esse ensino especial é também siste- concluindo que o ambiente assim constituído,
matizado em diversas subclassificações, com por tornar-se mais complexo, estimula as inte-
variadas metodologias e recursos, segundo o tipo rações, influenciando o desenvolvimento cog-
de deficiência, tal como Simão Bacamarte pro- nitivo e a socialização das crianças. Segundo
cedia com os habitantes da cidade de Itaguaí os autores, o potencial de efeitos negativos da
há mais de cem anos. Para cada tipo, uma es- imitação dos comportamentos singulares das
cola como a Casa Verde. Ocorre que grande crianças com deficiência pelas crianças sem
parte dos supostamente deficientes não apre- deficiência não se realiza.
senta distúrbios que demandem serviços espe- O estudo de Klinger e Vaughn (1999), que
cializados para sua escolarização. E, mesmo analisou a percepção de estudantes em classes
para os que deles necessitam, nada os impede integradas sobre os processos de ensino e
de se beneficiarem da socialização possibilita- aprendizagem, mostrou que os alunos não per-
da pelas atividades escolares com suporte de cebem as adaptações instrucionais para respon-
recursos adicionais. der às necessidades especiais como algo
A partir da década de noventa um novo refe- problemático. Essas e outras pesquisas descons-
rencial é posto: a escola inclusiva, cuja proposta troem concepções estanques nas quais a dife-
se insere na dinâmica da sociedade atual, no sen- rença é individualizada e percebida como inata,
tido de afirmação dos direitos sociais, entenden- sem as marcas sócio-culturais. Nessas concep-
do que pessoas com deficiência são sujeitos ções, as diferenças não são vistas como produ-
inteiros, independentemente de seus atributos. zidas socialmente, envolvendo relações de poder.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007 127
Do horror à diferença: uma aproximação com o conto ‘O alienista’ de Machado de Assis
128 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007
Luciene Maria da Silva
dos fracos são um obstáculo para a produção. suas necessidades, e possibilidades de aprendi-
Os considerados fortes se sentem ameaçados zagem na escola regular, entre outras.
pela lembrança da fragilidade, factível, conquan- Este pode ser um instrumento questionador
to se é humano. Por isso é que “a violência con- dos preconceitos que, por dificultar o contato
tra os fracos se dirige, principalmente, contra com pessoas diferentes, não possibilitam a ex-
os que são considerados fracos” (ADORNO, periência. E o pensamento que prescinde dela
1995, p.122). A agressão é encaminhada para é puramente formal. É ela que permite a identi-
o alvo errado, por não terem consciência de que ficação com o outro a partir da idéia de ser igual
são os princípios da sociedade impregnados nas na diferença. A experiência desafia os medos
relações sociais e nas formas de trabalho que do contato com o diferente, medo de ser discri-
devem ser combatidos, e não suas vítimas. O minado, de experimentar algo não habitual,
preconceito é, portanto, contrário às diferenças, medo de arriscar-se ao erro. E é o medo que
levando o preconceituoso a uma outra identifi- impede o confronto com o sofrimento, que se
cação, como esclarecem Horkheimer e Ador- torna mais resistente se não nos colocamos fren-
no (1973, p.179): “Para que se sintam alguém, te a ele. A identificação só é possível por meio
essas pessoas têm necessidade de se identifi- da convivência, na medida em que enfatiza o
car com a ordem estabelecida e essa identifi- que não é igual e, ao mesmo tempo, ressalta a
cação faz-se com tanto mais agrado quanto idéia de ser igual na diferença, desafiando os
mais inflexível e poderosa for essa ordem”. É receios do estranhamento e do medo. A desva-
dessa forma que as particularidades são des- lorização e distanciamento da experiência po-
troçadas em função da totalidade. dem se explicar, também, porque queremos ver
Impedir a escolarização dos alunos com defi- os resultados, subtraindo-a, tal como demandam
ciência em ambientes comuns é não permitir a as relações contemporâneas baseadas no ime-
experiência. A proposta de inclusão no contexto diatismo e automatismo.
da democracia formal traz acoplada as idéias li- Como nossa sociedade cultua o útil e apa-
berais, porém, defendê-la é tornar possível o rentemente saudável, aqueles que portam uma
avanço das reflexões sobre a formação que ad- deficiência lembram a fragilidade que se quer
mita a diferenciação. A política inclusivista, por- negar. Não os aceitamos porque não queremos
tanto, nada tem de revolucionária, é uma proposta que eles sejam como nós, pois assim nos igua-
liberal para a educação, como o são as demais laríamos. É como se eles nos remetessem a uma
políticas compensatórias. Os princípios univer- situação de inferioridade. Tê-los em nosso con-
sais formulados pelo liberalismo põem ênfase nos vívio funcionaria como um espelho que nos lem-
direitos do homem e têm a educação como um bra que também poderíamos ser como eles.
meio para o indivíduo fazer-se indivíduo social. Esse potencial que é real, dadas as trágicas
Essa orientação ainda está para ser cumprida, mudanças que nos podem ocorrer, é que nos
mesmo que a sociedade já tenha conseguido faz frágeis, uma vez que queremos ser sempre
avançar em outros aspectos. completos e constantes.
A proposta de colocar alunos com deficiên- O que também parece perturbar nos conta-
cia na escola regular pode favorecer a identifi- tos com pessoas com deficiência é o fato de não
cação, base para uma educação mais humana sabermos como lidar com elas, posto que a pre-
que admita a aproximação com o outro. Sua abor- visibilidade é uma forte característica das rela-
dagem se fará de diversas formas, enfatizando ções sociais da contemporaneidade. O estigma,
vários aspectos, considerando que a orientação por ser uma marca, um rótulo, é o que mais se
inclusivista segue um sentido de olhar a escola evidencia, possibilitando a identificação. Quan-
como um todo: formação dos professores, apa- do passamos a reconhecer alguém pelo rótulo, o
relhamento das escolas e implantação de servi- relacionamento passa a ser com ele, não com o
ços de apoio, flexibilização e adaptação indivíduo. E assim, idealizamos uma vida parti-
metodológica, definição do perfil de aluno e de cular dos cegos, por exemplo, que passa a expli-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007 129
Do horror à diferença: uma aproximação com o conto ‘O alienista’ de Machado de Assis
car todos os seus comportamentos de uma for- mens, torna-se irracional. Como foi a atividade
ma inflexível: ele age assim porque é cego. do personagem de Machado de Assis, cujo pen-
Nesse processo de rotulação o indivíduo samento objetivador o impeliu a encerrar quase
estigmatizado incorpora determinadas represen- toda a população da cidade na sua Casa Verde.
tações, passa a se identificar com uma tipifica- Após aplicar seu racional sistema terapêutico,
ção que o nega como indivíduo. Essas pessoas pôde concluir que havia estabelecido em Itaguaí
passam a ser percebidas, a princípio, por essa “o reinado da razão (...) não havia loucos em
diferença negativa, o que irá indicar fortemen- Itaguaí, em Itaguaí não havia um só mentecap-
te como elas irão se comportar. to” (ASSIS, 1999, p.69). Foi quando ele mesmo
A ideologia induz os indivíduos a comporta- questionou seu absoluto. Lampejo de humildade
mentos “normais”e “naturais” tornando o mun- científica? Ou ainda a busca da perfeição? Tran-
do cada vez mais uniforme e homogêneo. Nesse cou-se na Casa Verde para entregar-se ao estu-
processo a ciência tem servido mais à domina- do e cura de si próprio, num gesto obstinado, pois,
ção do que à perspectiva de seu abrandamento, achava ele, que em si próprio reuniam-se “teoria
na medida em que abstrai o sujeito e prioriza as e prática”. Fez-se assim sujeito-objeto da sua ci-
classificações, renunciando ao seu potencial de ência como se admitindo ter sido sua teoria im-
emancipação em função da apreensão de fatos potente e sua práxis arbitrária.
isolados. Desta forma a ciência, como atividade Dizem os cronistas que ele morreu dali a dezes-
racional que busca superar as limitações postas sete meses no mesmo estado em que entrou, sem
pela natureza para reduzir o sofrimento dos ho- ter podido alcançar nada. (ASSIS, 1999, p.69).
REFERÊNCIAS
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. O Alienista. São Paulo: LPM, 1999.
ADORNO, T. Opinión, locura e sociedad. In: ADORNO, T. Intervenciones. Caracas: Monte Ávila, 1969. p.
137-161.
_____. Educação: para que? In: ADORNO, T. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.
p.139-154.
_____. O que significa elaborar o passado. In: ADORNO, T. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e
Terra., 1995. p.29-49.
CROCHIK, Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Robe, 1995.
HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica. In: BENJAMIN, W.; HORKEIMER, M.; ADORNO T.
W. E; HABERMASS, J. Textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, 1983. p. 117-154. (Os pensadores).
HORKHEIMER, M.; ADORNO, Theodor W. Preconceito. In: _____; _____. Noções básicas de sociologia.
São Paulo: Cultrix, 1973. p.172-183.
_____; _____. Elementos do antisemitismo. In: _____; _____. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1985. p.157-194.
KLINGER, Janett; VAUGHN, Sharon. Students Perceptions of Instructions Inclusion Classroom: Implications
for students with learning disabilities. Exceptional Children, Arlington/VA,v. 66, n. 1, p. 23-37, 1999.
ODOM, Samuel; DEKLYEN, Michell; JENKINS, Joseph. Integrated Handicapped and Nonhandicapped
Preschoolers: developmental impact on nonhandicapped children. Exceptional Children, Arlington/VA, v.
51, n. 1, p.41-48, 1984.
PAIXÃO, Adriana Gomes. As representações sociais e a deficiência: entre o estigma e a transcendência.
Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 1996.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 20.03.07
130 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 125-130, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
REFLEXÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
ACERCA DAS POLÍTICAS PARA A EDUCAÇÃO ESPECIAL
NO CONTEXTO EDUCACIONAL BRASILEIRO
RESUMO
ABSTRACT
THEORETICAL-METHODOLOGICAL REFLECTIONS ABOUT
THE POLICIES FOR SPECIAL EDUCATION IN THE BRAZILIAN
EDUCATIONAL CONTEXT
The objective of the paper is to present some theoretical-methodological
elements used to understand the educational policies and the subsidies employed
for the development of researches which offer advantages for the analysis of
those engaged in special education. Reflections about the possibilities of an
approach which seeks to analyze the policy propositions in the educational
field will be highlighted, without loosing sight of their links and role of significance
in the implementation of educational actions. In this case, one underlines the
procedure of a documental analysis in view of the political propositions in the
educational field, observing some elements which constitute them, like the specific
speeches which give life to thoughts of a political nature and the support of
* Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Professora da Universidade Federal de Santa
Catarina – Centro de Ciências da Educação, Departamento de Estudos Especializados em Educação – Campus Univer-
sitário, Trindade – 88040-900, Florianópolis/SC. E-mail: rosalba@ced.ufsc.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 131
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
these speeches within the concepts they convey. The importance of exposing
the political conception, which sustains our studies, is highlighted. The work
culminates with a focus on the policies for special education and some references
for research in this field.
Keywords: Educational Policy – Special Education – Documental Analysis
– Research
132 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
Após a segunda guerra mundial, vimos surgir subordinação (GRAMSCI, 1978). Portanto,
estruturas que aos poucos foram ganhando es- estamos falando da relação da política e da lin-
paço político no cenário internacional, apreen- guagem da política com a produção das consci-
dendo a vontade coletiva e transformando-a em ências.
diretrizes, metas e propostas de ações para o Com isso, estamos afirmando uma compre-
mundo todo, com estratégias organizadas para ensão segundo a qual as políticas educacionais
cada continente. Estamos falando dos organis- se constituem em meio a processos cujos con-
mos internacionais.1 tornos são dados pelos discursos, pelas teorias,
Os organismos internacionais têm exercido pelas ações e estratégias, pelos recursos finan-
o papel de condutores das ações no campo da ceiros, pelos compromissos e interesses pesso-
política econômica e também das políticas rela- ais e institucionais, enfim, por uma trama de
cionadas à distribuição dos direitos sociais, pro- relações e significados que podem ser apreen-
movendo aí ressignificações importantes a partir didos, analisados e discutidos.
de fundamentos neoliberais e neoconservado- Dentre os autores contemporâneos que têm
res. Tais mudanças no campo dos sentidos e contribuído para o desenvolvimento das análi-
das práticas marcam as políticas sociais, onde ses que estamos desenvolvendo sobre políticas
se localizam as políticas educacionais, objeto de educacionais, destacaremos os que seguem
nossas reflexões. abaixo, procurando apresentar algumas de suas
Podemos apoiar nossas ponderações acerca idéias.
das transformações nos significados que acom- Michael Apple (2000) tem explicitado a con-
panham as bases de sustentação das políticas dição de “modernização conservadora” presen-
educacionais no pensamento de Gramsci (1978), te nas políticas educacionais recentes propostas
também quando o autor tece considerações so- pelos organismos internacionais.
bre a relação entre linguagem e política, e refe- Roger Dale (2004) chama nossa atenção
re-se ao conceito de “transformismo”. Segundo para a “agenda globalmente estruturada para a
ele, no processo histórico-político da Itália, cam- educação”: a produção de uma reforma edu-
po empírico de sua análise, foi possível observar cacional em diferentes regiões do mundo com
um tipo de inteliggentzia que concebia a si mes- elementos em comum, com um discurso uni-
ma como “continuação ininterrupta na história” forme, mas que conduz a resultados diferentes
e independente da luta dos grupos sociais. Tais em países distintos, mediados pela divisão in-
intelectuais, representantes de uma corrente po- ternacional do trabalho. Esse autor destaca a
lítica e defensores de uma concepção de mundo, importância de se analisar o vocabulário da po-
estariam a divulgar a existência de uma realida- lítica como estratégia para perceber suas mu-
de que se instalava pela força de suas concep- danças, a partir dos significados que ganha em
ções, o que não significa, na compreensão gra- diferentes contextos. Nesse caso, joga luz so-
msciana, transformações sociais, mas sim o que bre o poder dos discursos políticos e, por con-
o autor denomina de “revolução passiva”, ou seguinte, sobre a importância atribuída aos
“conservadorismo-reformista”. conceitos: as palavras fazem diferença.
É importante ressaltar, portanto, que o es- Stephen Ball (1999) indica que, embora as
paço de disputa no campo da política está per- políticas educacionais sejam produzidas em con-
meado por uma intelectualidade que disputa textos particulares e de forma datada, não de-
terreno, nesse caso, no campo teórico. Assim
sendo, o processo de desenvolvimento político 1
Destacamos aqueles que consideramos serem os principais
está ligado a uma dialética intelectuais-massa organismos internacionais e as respectivas datas de funda-
ção: Organização das Nações Unidas para a Educação, a
(GRAMSCI, 1978), qualquer que seja o projeto Ciência e a Cultura - UNESCO (1945); Banco Mundial - BM
social em questão. Grupos sociais pouco arti- (1944); Comissão Econômica para a América Latina -
CEPAL (1948); Organização para a Cooperação e Desen-
culados tomam para si uma concepção de mundo volvimento Econômico - OCDE (1960); Organização das
estranha, por meio de relações de submissão e Nações Unidas (1945).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 133
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
vemos esquecer que há sempre uma interação tos e grupos envolvidos. Há uma relação de
com as políticas de outros campos. Com base sentidos uma vez que cada sujeito ou grupo
nessa percepção, podemos concluir que os dis- ocupa um lugar que também constitui aquilo que
cursos políticos devem ser confrontados. ele diz e compreende do que é dito.
Jenny Ozga (2000) aprofunda a discussão Deste modo, a análise de proposições políti-
numa abordagem mesoanalítica, compreenden- cas não se circunscreve a uma visão que oponha
do que o processo de apropriação da política é discurso e prática, uma vez que estes são dois
também de formulação, uma vez que os sujei- elementos constitutivos da realidade social e que
tos da educação operam uma contestação ou se formam mutuamente. Além disso, compreen-
negociação em relação aos textos e discursos demos que o discurso é prática política, é expres-
à medida que refletem sobre manter ou modifi- são e constituição da realidade social, não o único,
car suas práticas. As diretrizes políticas che- mas um elemento fundamental no conjunto de
gam aos sistemas de ensino e às escolas pelas relações sociais (FAIRCLOUGH, 2001).
mais diversas vias de divulgação. Cada diretriz Nesse caso, a máxima de que o discurso
sofre um processo de interpretação por parte político não se materializa na prática está sen-
dos profissionais, e muitas compreensões dis- do considerada aqui como superada pela com-
tintas são elaboradas. Todavia, alguns temas são preensão de que os discursos políticos já são
mais enfatizados, com o intuito de que sejam práticas (FAIRCLOUGH, 2001), que se põem
incorporados pelos professores. Estes, por sua sob suas próprias concepções.
vez, estabelecem uma relação ativa e direta com Contudo, pensar a importância dos discursos
a política, concordam com alguns pontos do e dos conceitos que os constituem no processo
debate, discordam de outros, num processo de de significações não implica considerar a reali-
reelaboração de sentidos que tem repercussões dade social e educacional apenas como textos.
sobre seus discursos e práticas. Além disso, as
diferentes compreensões presentes na escola
também entram em negociação ou confronto, O estudo das proposições políticas:
no conjunto de relações de poder que ali estão uma abordagem de pesquisa edu-
estabelecidas. Aquilo que já está presente nas cacional
escolas, que são suas práticas e as formas de
realizar o trabalho pedagógico, constituem as Ao investigar a política educacional por
políticas educacionais, e acabam também im- meio da análise da documentação oficial, é im-
primindo suas marcas nos textos documentais. portante ter como referência a compreensão
Ao desenvolver uma análise das políticas de que as escolas nem ficam inertes nem ado-
educacionais no âmbito de sua proposição, é tam absolutamente todas as suas prescrições.
importante que se diga qual a compreensão que Diferentes movimentos das e nas escolas, em
norteia esta abordagem. Neste caso, a política relação às proposições políticas, remetem no-
não está sendo considerada como um pacote vamente à noção de “contestação” (OZGA,
de medidas que é entregue para a população, 2000). Os discursos políticos veiculam, muitas
mas como um objeto de “contestação”, como vezes, noções de responsabilidade e exigên-
algo a ser discutido, mais como um processo do cia que colocam em cheque a “competência”
que um produto (OZGA, 2000). dos professores e professoras. Reações de dis-
As propostas políticas são elaboradas, re- cordância e resistência convivem com apro-
formuladas pelo debate público, apresentadas vações e mesmo sedução em torno das
para serem implementadas, rediscutidas assis- políticas para a educação. Tais posicionamen-
tematicamente no processo de implementação. tos têm expressão nas práticas desenvolvidas
Aquilo que é proposto politicamente é imple- nas escolas, de modo que os educadores tam-
mentado em termos, a partir dos sentidos que bém podem ser considerados, nesse caso, como
essa proposição imprime nos diferentes sujei- formuladores de políticas (OZGA, 2000). Pes-
134 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
quisar as proposições políticas não significa sos, os discursos sobre política educacional (ou
descuidar das apropriações que são feitas acer- seus fragmentos) absorvidos e reproduzidos
ca de seus conteúdos e sentidos no interior das acriticamente substituem a teoria na orientação
escolas. Ao contrário, nessa abordagem valo- do trabalho educacional e pedagógico.2
rizam-se também os estudos sobre esses pro- A ação de reproduzir um discurso repetida-
cessos em relação aos discursos em foco, mente pode basear-se na premissa segundo a
contribuindo para sua realização em uma des- qual “o que funciona numa sociedade, na pers-
sas esferas. pectiva da linguagem, não é a coisa mas os efei-
Ao se trabalhar com essa abordagem, por- tos imaginários que ela produz” (ORLANDI,
tanto, é prudente tomar cuidado com duas ques- 1996, p. 96). Com esta compreensão, pode-se
tões: em primeiro lugar, não considerar discurso afirmar que os textos não são a política propri-
e prática como antagônicos, mas como consti- amente, mas sua representação.
tutivos da realidade social, portanto contraditó- O discurso é um objeto simbólico e histórico
rios; em segundo, não tomar o proposto como que pode ser analisado. Ao expressar e consti-
realizado, mas como o conjunto de princípios e tuir sentidos, o discurso é também a materiali-
intencionalidades em relação a uma política. dade específica da ideologia, que não é apenas
Considerando que a sociedade atual é hierar- a “representação imaginária do real”, relacio-
quizada e dividida em classes e frações de clas- nada a processos de dominação e de substitui-
se, é preciso levar em conta as relações de força ção das “ações históricas reais” (CHAUÍ,
que se explicitam e são silenciadas no discurso, 1990). A ideologia é a forma pela qual os sujei-
de modo a perceber quais as formações dis- tos representam “o aparecer social, econômi-
cursivas que ganham mais força na sua rela- co e político” que constitui o “ocultamento ou a
ção com as condições histórico-sociais de dissimulação do real”. É, portanto, “um corpo
produção de um discurso que sustenta as políti- sistemático de representações e de normas que
cas educacionais. nos ‘ensinam’ a conhecer e a agir” (CHAUÍ,
1990, p. 3 – grifo no original).
A ideologia é criada e recriada ininterrupta-
As proposições políticas são cons- mente naquilo que os sujeitos falam e naquilo
tituídas por discursos específicos que calam, entre o dito e o não-dito. Esse movi-
mento implica no uso dos signos, de modo a
Ao analisar as políticas educacionais toma- evitar a coincidência entre aparência e essên-
mos como ponto de partida que os discursos cia (BAKTHIN, 1997).3 É claro que esse pro-
que sustentam suas proposições são de um tipo cesso não é tramado previamente e executado
específico. Tais discursos são produzidos à luz de forma a resultar em um discurso ideológico,
de um embate de interesses: são gestados, são pelo contrário, o discurso resulta ideológico em
expressão, e são apreendidos em relações de condições de não coincidência entre aparência
conflito. São assimilados por grupos diferentes e essência. Segundo Chauí (1990, p. 3):
de maneira seletiva, a partir de seus crivos, se- ... o discurso ideológico é aquele que pretende
gundo aquilo que é julgado como mais impor- coincidir com as coisas, anular a diferença entre o
tante nos enunciados. pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma
Os discursos podem ser apreendidos, por- lógica da identificação que unifique pensamento,
tanto, sob bases e filtros diferentes daqueles com linguagem e realidade para, através dessa lógica,
os quais foram formulados. Mas, até que isso obter a identificação de todos os sujeitos sociais
seja percebido, os slogans já foram divulgados com uma imagem particular universalizada, isto é,
a imagem da classe dominante.
e as palavras-chave já dominaram o discurso
do cotidiano escolar. Alguns conceitos passam 2
A este respeito ver: Duarte (2001), Moraes (2003).
a integrar a linguagem cotidiana dos profissio- 3
Para uma discussão mais ampla sobre ideologia, ver Konder
nais da educação, de modo que, em alguns ca- (2002).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 135
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
Bakhtin (1997) colabora com este debate mais que concentrar a atenção no discurso, é
afirmando os aspectos ideológicos do discurso, preciso observar a mudança discursiva, procu-
mas destacando sua dinamicidade, o fato de ser rando perceber a reconfiguração ou mutação
uno e plural ao mesmo tempo. A pluralidade de dos elementos da ordem de discurso pela ação
sentidos que pode ser atribuída a um discurso que se realiza sobre as práticas discursivas e
está relacionada à dinâmica social, aos diferen- sobre os sujeitos e suas identidades, as rela-
tes modos de significar que podem coexistir na ções sociais e os sistemas de conhecimentos
presença de emissores e receptores com com- (FAIRCLOUGH, 2001).
preensões distintas de mundo. Ao mesmo tem- Nessa perspectiva analítica, pensar as pro-
po, cada discurso é único, pois expressa um posições políticas pode ser possível pelo aces-
pensamento pessoal e social, representante da so aos discursos, mas não só, pois é necessário
cultura de um grupo, de uma época, de uma também identificar e analisar quem são os su-
classe, de um posicionamento político. jeitos históricos que estão sintetizando posições
Contudo, a significação de um discurso não políticas em lugares concretos na luta social. O
pode ser – e não é – acessada apenas pela lida discurso valoriza alguns pontos mais que ou-
com palavras, conceitos e textos. A especifici- tros, desconsidera algumas questões, cala so-
dade dos discursos que divulgam as proposi- bre outras, mostra e esconde elementos
ções políticas sugere a busca de formas também conforme os sentidos a serem divulgados. A
específicas para apreendê-los. O salto de qua- produção de discurso depende sempre das con-
lidade na análise pode ser dado pela compreen- dições históricas: sujeitos, situação, memória de
são do discurso em sua tridimensionalidade: sentidos, que constituem a realidade social. A
como texto, como prática discursiva e como identificação destes elementos pode possibili-
prática social (FAIRCLOGH, 2001). tar ao pesquisador apreender a essência de um
A concepção tridimensional do discurso res- discurso que é específico no seu modo de tra-
gata três tradições analíticas: análise textual e tar a política educacional, uma vez que ele é
lingüística, a tradição macrossociológica de aná- veiculado com a tarefa de divulgar e sedimen-
lise da prática social e a tradição microssocio- tar propostas e diretrizes para o setor, além de
lógica, que percebe a prática social como algo princípios, objetivos e valores.
que as pessoas produzem e entendem com base Tal discurso, como qualquer outro, tem filia-
em procedimentos de senso comum partilhado ções e, em conjunturas diferentes, lança mão
(FAIRCLOUGH, 2001). de enunciados já ditos, que já foram significa-
O discurso é expressão da realidade social, dos historicamente e que são inseridos em no-
mas ao mesmo tempo causa impressões sobre vas conjunturas, nas quais ganham outros
ela, é constituído e constituidor em relação à significados.
vida social. Os textos são feitos de formas às quais a
Os discursos não apenas refletem ou represen- prática discursiva passada, condensada em con-
tam entidades e relações sociais, eles as cons- venções, dota de significado potencial. O signi-
troem ou as ‘constituem’; diferentes discursos ficado potencial de uma forma é geralmente
constituem entidades-chave (...) de diferentes heterogêneo, um complexo de significados di-
modos e posicionam as pessoas de diversas versos, sobrepostos e algumas vezes contradi-
maneiras como sujeitos sociais (...), e são esses tórios, de forma que os textos são em geral
efeitos sociais do discurso que são focalizados
altamente ambivalentes e abertos a múltiplas
na análise de discurso (FAIRCLOUGH, 2001, p.
22 – palavra entre aspas no original). interpretações (FAIRCLOUGH, 2001, p.103).
Esse redizer é tratado pelos autores da aná-
Para tanto, destaca-se a importância dos lise do discurso como intertextualidade, que é
conceitos de “interdiscurso”, de Michel “a propriedade que têm os textos de ser cheios
Pêcheux, e de “ordem de discurso”, de Micha- de fragmentos de outros textos, que podem ser
el Foucault (FAIRCLOUGH, 2001). Porém, delimitados explicitamente ou mesclados e que
136 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 137
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
dos dados fornecidos pelas fontes no âmbito de analisados, é importante perceber os tratamen-
seu estudo. É preciso interrogá-las, “fazê-las fa- tos conferidos a estes, as definições, os sujeitos
lar” sob critérios definidos, para não se cair no envolvidos, as redes de influência, o contexto
risco de elevá-las ao status de objeto (THOMP- de elaboração dos discursos, e a que outros
SON, 1981). É importante salientar dentre as conceitos estão relacionados.
possíveis armadilhas metodológicas que se apre- A leitura das fontes permitirá perceber as
sentam, a de que documentos elaborados e di- redes conceituais que dão substância aos dis-
vulgados em âmbito internacional e nacional se- cursos, as quais podem ser rastreadas pela bus-
jam tratados como “demiurgos” da política ca dos conceitos relacionados ao(s) conceito(s)
educacional e das propostas que veiculam. de referência. Identificar quais os conceitos
Os documentos expressam o resultado, num veiculados e com que significados são apreen-
tempo e espaço históricos, do embate vivido por didos pode possibilitar compreender a organi-
diferentes forças sociais; eles representam a zação dos documentos e quais as bases em que
apropriação, por parte de seus formuladores, se sustentam para explicar a realidade social.
de conjuntos de idéias, pensamentos, políticas, Assim, acessando as nuances de um discurso,
ações vividas pelas diferentes populações. Den- aquilo que se pode chamar de linhas ou matizes
tre aquilo que já está presente na vida social, os discursivos, vislumbra-se apreender suas filia-
formuladores dessa documentação enfatizam, ções teóricas e sua racionalidade.
sublinham, focam algumas práticas e pensamen- O conjunto dos materiais a serem examina-
tos; desqualificam, obscurecem, desprezam dos vai ganhando qualificação à medida que,
outros. Pensamentos e práticas mais conveni- pela sua leitura, percebem-se aqueles que cons-
entes a um projeto social ganham corpo, for- tituem o “corpus documental” (FAIRCLOU-
mas, conceitos, concepções que os sustentem GH, 2001), ou seja, as fontes principais, e aqueles
e passem a ser considerados como “propostas”, que são importantes, porém, complementares
“diretrizes” e “parâmetros”. É como se esses ao debate pretendido. Outra qualificação que
materiais ganhassem a força de “realizar”, a pode ocorrer na pesquisa das proposições polí-
magia de “reinventar” o real, o fascínio de “de- ticas refere-se ao caráter dos documentos: há
terminar” a história. Com muito mais cuidado e aqueles com status de lei, que podem ser cha-
atenção podem-se tomar essas fontes docu- mados de normativos, e outros documentos, tam-
mentais como material a ser pesquisado e a bém fundamentais, que podem ser tratados
concorrer para a compreensão da realidade, como orientadores por serem produzidos com
mas que, ao mesmo tempo, ganha legitimidade a função de estabelecer uma interlocução com
para difundir suas idéias ao maior número pos- a sociedade a respeito de idéias, de concep-
sível de pessoas. ções, princípios, visando propor consensos so-
O início do procedimento metodológico nes- bre as questões educacionais.
sa abordagem é a definição das fontes, a esco- É razoável supor que os documentos norma-
lha dos documentos que tratam da temática a tivos também divulguem concepções a respeito
ser pesquisada, mas que também tem uma de- da educação e da sociedade como um todo, da
limitação temporal, espacial e do âmbito das mesma forma que o conteúdo dos documentos
políticas que estão em estudo (internacional, orientadores pode ser apreendido como norma.
nacional, estadual, municipal, privado). Feito Contudo, esta categorização cumpre a função
isso, pode-se principiar com uma leitura explo- de destacar características próprias de cada gru-
ratória, orientada sempre pela percepção e bus- po segundo as finalidades mais explícitas de sua
ca de um ou mais conceitos tratados como produção. Apesar de apresentarem argumentos
referência para a leitura, os quais são definidos e fundamentos comuns, os quais expressam uma
na própria lida com os documentos e pela te- certa unidade na proposição de políticas para a
mática a ser pesquisada. A partir da localiza- educação, cada documento precisa ser exami-
ção dos conceitos definidos nos textos nado em sua singularidade.
138 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
Ainda um último aspecto que cumpre sali- ção conservadora” para a educação e, num
entar é que os discursos que sustentam as polí- sentido mais amplo, para as políticas sociais.
ticas são constituídos por uma rede ou teia de Isso, em princípio, já coloca uma série de defi-
conceitos e slogans.4 Tratar dos conceitos que nições sobre as políticas para a educação es-
constituem uma proposta política significa lidar pecial. Em síntese, não podemos pensar tais
com palavras que estão “ganhando” sentidos políticas numa perspectiva de autonomia. Em-
numa determinada situação, qual seja, a enun- bora elas possuam características muito pró-
ciação oficial de avaliações, diagnósticos e pres- prias, não podem ser pensadas à parte. Estamos
crições a respeito da educação mundial, compreendendo as políticas de educação espe-
atingindo o Brasil em seus diversos níveis e cial como constituintes das políticas educacio-
modalidades educacionais. nais e, portanto, expressão do modelo vigente
Cada conceito, individualmente, funciona para as políticas sociais. E, nesse caso, pode-
como um ingrediente que ganha novos contor- mos elaborar a seguinte pergunta: Qual a con-
nos mediados pelo caldo ideológico e teórico no dução hegemônica para as políticas sociais e
qual está embebido. Nesse processo, os con- como podemos perceber sua expressão nas
ceitos estão relacionados a representações, a políticas voltadas para a educação especial?
imagens formadas a partir de fatos, objetos, O atual momento das políticas educacionais
pessoas, situações. São históricos e suas signi- tem-se caracterizado pela busca de uma nova
ficações são datadas; portanto, os sentidos atri- governabilidade da educação pública (KRA-
buídos às palavras estão relacionados à história, WCZYK, 2002) e de novas formas de gestão
à ideologia, ao simbólico, ao político, ao cultu- do sistema educacional, dos professores, dos
ral, podendo-se afirmar que “os sentidos não alunos, dos currículos e das unidades escola-
estão nas palavras elas mesmas. Estão aquém res. Tais evidências são expressão daquilo que
e além delas” (ORLANDI, 2001, p. 42). no debate das políticas sociais tem sido chama-
Compreender um conceito implica trabalhar do de “gestão da pobreza” (ANDRADE, 2000),
sobre sua história, sua origem e apreensão. As ou seja, uma abordagem da questão social a
palavras sofrem mudanças em seus sentidos, partir de mecanismos de “regulação focaliza-
devido ao contexto lingüístico e histórico em que da” que visam prioritariamente o alívio à po-
se apresentam (KONDER, 1984). Para além da breza (ANDRADE e DUARTE, 2005). A
importância das palavras, interessa sua signifi- educação especial e as propostas inclusivas no
cação como conceitos que constituem os pro- campo educacional estão sendo aqui tomadas
cessos de atribuição e sedimentação de sentidos como expressão das políticas de alívio à pobre-
às práticas sociais. Portanto, é necessário aten- za. Tal pressuposto apóia-se no caráter de ad-
tar não somente para sua apreensão, mas tam- ministração, justificação e legitimação das
bém para os modos como são relacionados pelos desigualdades sociais e educacionais que assu-
sujeitos nos debates políticos, como antagônicos mem as políticas de inclusão sob a lógica do
ou convergentes, servindo de base de sustenta- mercado (GARCIA, 2004).
ção para explicações sobre a realidade social.
4
Alguns conceitos e slogans que marcam a política educa-
cional atual: pobreza, equidade, desenvolvimento sustentá-
Um enfoque sobre as políticas para vel, capital humano, emprego, responsabilidade, autono-
a educação especial e algumas re- mia, participação, organização social, coesão social,
pertencimento, tolerância, diversidade, governabilidade,
ferências para a pesquisa neste competitividade, proteção social, vulnerabilidade,
campo neoinstitucionalismo estatal, transformação da escola, for-
mação de professores, mudanças curriculares, informação,
gestão, empregabilidade, necessidades básicas de aprendiza-
As propostas aqui em discussão não apenas gem, voluntariado, riscos sociais, capital social, sociedade
do conhecimento, empowerment, exclusão, comunidade,
apresentam conexões, mas constituem organi- terceiro setor, cidadania, inclusão, competências, flexibili-
camente políticas numa linha de “moderniza- dade, entre outros.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 139
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
As proposições de políticas para a educa- Considerando as bases nas quais estão apoi-
ção especial vêm sendo capitaneadas por agên- adas as proposições para a educação especial
cias internacionais, em especial a UNESCO, a no âmbito internacional, é possível analisar o
qual enfatiza, por meio de diversos documen- nível de sua apreensão no contexto educacio-
tos, propostas de desenvolvimento de uma edu- nal brasileiro. Essa tarefa pode ser desenvolvi-
cação inclusiva.5 Contudo, o Banco Mundial e da pelo escrutínio de alguns documentos nacio-
a OCDE disponibilizaram na internet, nos últi- nais, dentre os quais destaca-se aqui, por sua
mos anos, uma série de materiais por meio dos importância, a Resolução CNE/CEB 2/2001,
quais difundem idéias relacionadas a políticas que institui as Diretrizes Nacionais para a Edu-
de inclusão voltadas para diferentes grupos de cação Especial na Educação Básica, e o Pare-
sujeitos, dentre os quais aqueles identificados cer CNE/CEB 17/2001, o qual contém defini-
como com necessidades especiais.6 ções e abordagens relativas aos conceitos
As proposições aqui mencionadas apóiam- referenciais que sustentam o discurso da edu-
se em um diagnóstico de “exclusão social”, tra- cação inclusiva no Brasil.7
duzido para o campo educacional como não Já em relação aos conceitos mais citados
acesso à educação formal. A solução indicada nos discursos políticos que sustentam as propo-
refere-se a garantir para os sujeitos com ne- sições para a educação especial, cumpre des-
cessidades especiais o acesso à escolaridade. tacar: “serviços de educação especial”;
A educação, numa perspectiva inclusiva, está “atendimento educacional especializado”; “edu-
sendo pensada, portanto, como redentora das candos com necessidades educacionais espe-
questões sociais. ciais”; “professores capacitados”; “professores
Outra idéia fundamental a sustentar as polí- especializados”; “flexibilizações e adaptações
ticas atuais para a educação especial é a ques- curriculares”; e “serviços de apoio pedagógi-
tão do atendimento à diversidade e do respeito co” (BRASIL, 2001a). A compreensão dos
à diferença. A perspectiva “inclusiva” vem se conceitos principais, sua articulação, os signifi-
materializando desde a Conferência Mundial cados que lhe são atribuídos podem contribuir
sobre Educação para Todos (Tailândia, 1990) sobremaneira para uma leitura crítica de pro-
por meio da universalização do ensino funda- postas que são apresentadas como permeadas
mental e, conseqüentemente, da ampliação da por uma aura de inovação e de um sentido de-
cobertura de matrículas. Percebe-se nesse con- mocrático.
texto uma mudança na composição dos alunos
e um acento no discurso do reconhecimento da
heterogeneidade na escola. Deriva dessas me- Considerações finais
didas uma nova proposição de organização ra-
cional do trabalho pedagógico, agora com base As políticas para a educação especial brasi-
na diversidade e na heterogeneidade, que põe leira, numa perspectiva inclusiva, têm gerado
para a escola a necessidade de mudanças cur- impactos para as redes de ensino, propondo
riculares. No caso específico dos alunos com mudanças na organização escolar, no currículo,
necessidades especiais, observa-se uma ênfa- na formação de professores, entre outros as-
se no respeito às diferenças e uma abordagem
das capacidades individuais atualmente reno- 5
O documento mais recente é: UNESCO (2004). Muitos
meada pela expressão ‘diferenças individuais’. estudos já analisaram o documento BRASIL (1994), o qual
Assim sendo, as políticas curriculares que é a versão traduzida do documento original produzido para
a Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
acompanham a perspectiva “inclusiva” para a Especiais: acesso e qualidade, realizada em Salamanca,
educação estão assumindo um caráter de dife- Espanha, em 1994. Destacamos, também, Laplane (2004).
6
renciação que pode ter como conseqüência a BANCO MUNDIAL (2000) e Ranson (2001).
7
Dentre os estudos que estabelecem análises a partir da
desigualdade no acesso à cultura, justificada instituição dessas diretrizes, destacamos: Bueno; Ferreira et
pela qualidade multicultural da sociedade. al. (2002) e Prieto (2003).
140 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Rosalba Maria Cardoso Garcia
pectos. A complexidade de tais proposições os discursos ali contidos têm sido apreendidos,
frente às condições sociais de produção da es- em grande medida, como substitutos da teoria
cola brasileira coloca para as pesquisas no cam- na orientação do trabalho educacional e peda-
po da educação especial a necessidade de uma gógico. Uma constatação como esta sugere a
reflexão teórico-metodológica que contribua para necessidade de que as análises busquem alcan-
a compreensão e explicitação da questão. çar as filiações teóricas de tais discursos e per-
As referências aqui socializadas têm por mitam compreender qual a sua racionalidade.
base o estudo de proposições políticas ampara- A partir dos aportes teórico-metodológicos
das na analise documental e dos discursos, vi- aqui apresentados, podemos afirmar que as
sando perceber as mudanças sociais propostas. políticas para a educação especial numa pers-
Nesse caso, entende-se a política como prática pectiva inclusiva estão sendo analisadas como
social constituída pela disputa hegemônica de promotoras de uma nova organização racional
idéias fundamentais para que se exerça a con- do trabalho educacional e pedagógico, com base
dução política. A forma pela qual tais proposi- na diversidade e na heterogeneidade.
ções são difundidas e apreendidas envolve a O estudo da documentação referente a este
elaboração de discursos políticos, entendidos campo tem permitido perceber que se por um
como práticas sociais constituídas por redes lado propõe-se uma diferenciação educacional
conceituais que lhes atribuem substância. Nos justificada pelo reconhecimento da diversidade,
últimos anos, os sujeitos políticos que vêm as- por outro o respeito às diferenças sustenta uma
sumindo, de maneira privilegiada, a condução proposta de individualização do ensino. Conside-
das orientações e diretrizes para a educação e, rando as condições sociais de produção da es-
da mesma forma, para a educação especial, são cola brasileira, as possibilidades de ampliação da
os organismos internacionais, os quais têm nos desigualdade se fazem presentes.
documentos disponibilizados pela internet o seu As fontes documentais nacionais e interna-
principal instrumento de difusão. Porém, as idéi- cionais foram apresentadas não com o objetivo
as contidas nessa documentação não se pren- de serem aqui analisadas, mas muito mais como
dem apenas a esta forma uma vez que cada referências para a pesquisa nesse campo, com
situação de apreensão é, ao mesmo tempo, um base numa abordagem de investigação de pro-
momento de reformulação das propostas, a par- posições políticas.
tir de novas interpretações que vão sendo de- Pretendeu-se, assim, contribuir com os de-
senvolvidas. Os documentos expressam o bates acerca das políticas inclusivas para a edu-
resultado, num tempo e espaço históricos, do cação especial, com consciência da necessidade
embate vivido por diferentes forças sociais, mas de explicitar suas relações constitutivas.
REFERÊNCIAS
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007 141
Reflexões teórico-metodológicas acerca das políticas para a educação especial no contexto educacional brasileiro
_____. Centro Nacional de Educação. Centro de Educação Brasileiro. Resolução n. 2/2001, institui as
diretrizes nacionais para a educação especial na educação básica. Brasília, 2001a.
_____. _____. Parecer n. 17/2001. Brasília, 2001b.
BUENO, J.G.S.; FERREIRA, J.R. et al. Políticas regionais de educação especial no Brasil. REUNIÃO ANUAL
DA ANPED, 26, 2002, Caxambu, Resumos... Caxambu, 2002.
CHAUÍ, M. de S. Cultura e democracia. 5. ed.. São Paulo: Cortez, 1990.
DALE, R. Globalização e educação: demonstrando a existência de uma “cultura educacional mundial co-
mum” ou localizando uma “agenda globalmente estruturada para a educação”? Educação & Sociedade,
Campinas, v. 25, n. 87, p. 423-460, maio/ago., 2004.
DUARTE, N. Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da
teoria vygotskiana. Campinas: Autores Associados, 2001.
FAIRCLOUGH, N. Discurso e mudança social. Traduçãode Izabel Magalhães. Brasília: UNB, 2001.
GARCIA, R.M.C. Políticas públicas de inclusão: uma análise no campo da educação especial brasileira.
Tese (Doutorado em Educação)- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2004.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
_____. Maquiavel, a política e o Estado moderno. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
GINZBURG, C. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição. 6
reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
LAPLANE, A.L.F de. Notas para uma análise dos discursos sobre inclusão escolar. In: GÓES, M.C.R.;
LAPLANE, A.L.F de. (Orgs.) Políticas e práticas de educação inclusiva. Campinas: Autores Associados,
2004. p.5-20.
KONDER, L. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KONDER, L. O marxismo na batalha das idéias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
KRAWCZYK, N. Em busca de uma nova governabilidade na educação. In: OLIVEIRA, D.A.; ROSAR, M. F.
F. (Orgs.) Política e gestão da educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. p. 59-72.
MORAES, M.C.M.de. Recuo da teoria. In: _____ (Org.) Iluminismo às avessas. Produção de conhecimento
e políticas de formação docente. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 151-167.
ORLANDI, E.P. Discurso & Leitura. 3. ed. São Paulo: Cortez; Campinas: EdUnicamp, 1996.
OZGA, J. Investigação sobre políticas educacionais: terreno de contestação. Porto: Porto Editora, 2000.
(Coleção currículo, políticas e práticas).
PRIETO, R.G. et al. Políticas de inclusão escolar no Brasil: descrição e análise de sua implementação em
municípios das diferentes regiões. REUNIÃO ANUAL DA ANPED, 27, 2003,Caxambu. Resumos...Caxambu,
2003.
RANSON, S. The new learning for inclusion and capability: towards community governance in the education
action zones. OCDE, 2001.
STACCONE, G. Gramsci: 100 anos: revolução e política. Petrópolis: Vozes, 1991.
THOMPSON, E.P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser.
Rio de Janeiro: ZAHAR, 1981.
UNESCO. Temario Abierto sobre Educación Inclusiv: materiales de apoyo para responsables de políticas
educativas. Santiago, Chile: OREALC/UNESCO, 2004.
Recebido em 29.09.06
Aprovado em 24.10.06
142 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 131-142, jan./jun., 2007
Isa Regina Santos dos Anjos
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL:
um desafio para pessoas com necessidades
educacionais especiais
RESUMO
ABSTRACT
* Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre em Educação Especial pela
Universidade Federal de São Carlos. Pedagoga do Centro Federal de Educação Tecnológica de Sergipe. Docente da rede
estadual de Sergipe e, atualmente, técnica em Educação Especial da Secretaria de Estado da Educação de Sergipe.
Endereço para correspondência: Centro Federal de Educação Tecnológica de Sergipe, av. Engº. Gentil Tavares da Motta,
1166, Bairro Getúlio Vargas – 49.055-260 Aracaju/SE. E-mail: isaanjos@yahoo.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007 143
Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais
144 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007
Isa Regina Santos dos Anjos
pessoas com necessidades educacionais espe- inserção no tecido social e no mundo do tra-
ciais, explicitaremos as concepções de alguns balho, como também uma questão de cidada-
estudiosos da área sobre esse tema. nia. No entanto, podemos inferir que a
Silva (2000) afirma que a questão da profis- educação e o conhecimento, particularmente
sionalização se coloca no centro de uma articu- na formação profissional, vêm subordinados
lação entre trabalho e inclusão social. Nesse à lógica da produção e do mercado. Portan-
sentido, considera que a educação profissional to, a cidadania, nesta perspectiva, não deve-
das pessoas com deficiência enfrenta vários ria ser regulada pelas leis do mercado, a fim
desafios colocados tanto pelas políticas gover- de propiciar processos educativos de forma-
namentais, no que diz respeito à educação pro- ção profissional que privilegiem condições
fissional como sinônimo de desenvolvimento para os cidadãos lutarem pelos seus direitos.
social, quanto pelas iniciativas das instituições O termo Formação Profissional, em seu sig-
privadas e/ou assistenciais, que priorizam nes- nificado mais amplo, refere-se aos processos
se momento os projetos de profissionalização e educativos capazes de possibilitar ao indivíduo
inserção dessas pessoas no mercado de traba- a aquisição de conhecimentos teóricos, técni-
lho. Jannuzzi (1994) afirma que exercer uma cos e operacionais relacionados à produção de
atividade produtiva, uma atividade que resulta bens e serviços, sejam estes desenvolvidos tanto
em um bem concreto, ou seja, um trabalho, é na escola quanto nas empresas.
de grande importância para a vida de todos os Analisando-se a literatura sobre profissio-
seres humanos. É de grande importância não nalização para pessoas com necessidades
apenas financeira, mas também se refere à educacionais especiais, verifica-se que sua ori-
possibilidade de levar as pessoas a serem inde- gem encontra-se em iniciativas promovidas por
pendentes em termos sociais e pessoais. A au- instituições não-governamentais, que indicam as
tora ainda diz que a profissionalização é oficinas pedagógicas e as oficinas abrigadas ou
considerada uma atividade produtiva à medida protegidas como modelos de formação profis-
que possibilita às pessoas desenvolverem um sional, os quais vêm sendo utilizados por estas
trabalho no meio em que vivem, considerando pessoas. Essas oficinas eram situadas em insti-
suas condições culturais e diferenças individu- tuições especiais e proporcionavam atividades
ais; sendo assim, “se a possibilidade de traba- consideradas profissionalizantes, remuneradas
lho não lhe é aberta, acentua-se a sua exclusão, ou não, com o objetivo de incluir socialmente os
acentuando então a sua subordinação aos ou- sujeitos através do trabalho. E os serviços pro-
tros, esmaecendo-se a própria identidade”. fissionalizantes eram considerados uma parte
(1994, p.22) do processo de formação do indivíduo com de-
Goyos e Manzini (1989) entendem a pro- ficiência, representando uma escala a mais em
fissionalização como alternativa para a inte- sua trajetória educativa.
gração social do deficiente, ou seja, acreditam Entretanto, as oficinas pedagógicas ou pro-
que a concepção profissional e o desempe- tegidas, ainda em funcionamento em diversas
nho de uma atividade produtiva constituem instituições brasileiras, apresentam uma reali-
direito da pessoa com deficiência, e seria a dade pouco animadora, haja vista que propici-
estratégia principal, senão a única, para sua am o isolamento do trabalhador com deficiên-
integração social. Segundo esses autores, na cia do mundo externo e do próprio mundo do
medida em que o deficiente se integra como trabalho. Além disso, o trabalho nesse contexto
força de trabalho, passa a vivenciar a sua ci- é exercido por meio de subcontratos, os quais
dadania. Percebe-se que os aspectos mais não representam os direitos dos aprendizes/tra-
ressaltados se referem à educação profissio- balhadores sendo, portanto, desfavoráveis a
nal enquanto um fator importante que contri- eles, e é promovido por intermédio de progra-
bui para que a pessoa com deficiência receba mas que possuem uma tessitura rígida e inade-
uma formação social adequada para a sua quada, diante de objetivos que se pretendam de
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007 145
Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais
inclusão social. Verifica-se, assim, a presença Rodrigues e Tanaka (2001) afirmam que
de contradições resultantes do desafio de com- nessas oficinas o ensino sistemático das ha-
patibilizar as atividades do ensino com as da bilidades e dos comportamentos necessários
produção, de conciliar as necessidades pesso- para o exercício da atividade profissional aca-
ais do aprendiz/trabalhador com as do merca- ba ficando para um segundo plano, compro-
do, reduzindo o trabalho, categoria fundante de metendo o alcance dos objetivos propostos,
realização do ser social, a mero meio de sobre- tanto em termos de preparação para o traba-
vivência (GOYOS, 1989; MANZINI, 1989; lho em si quanto de colocação no mercado
SILVA, 2000). de trabalho.
Em primeira instância, nas denominadas ofi- Nesse contexto de educação profissional
cinas pedagógicas, o currículo deveria visar o inclusiva, vários autores concluem que os ser-
desenvolvimento de atitudes e hábitos para o viços de formação oferecidos em oficinas abri-
trabalho, e não deveria haver remuneração, nem gadas ou protegidas, situados em instituições
compromissos contratuais. Posteriormente, os especiais ou em apêndices destas, proporcio-
aprendizes poderiam ser encaminhados para as nam, segundo seus projetos pedagógicos, ativi-
oficinas protegidas ou abrigadas que funciona- dades consideradas profissionalizantes, remu-
riam como uma micro-empresas, e o status do neradas ou não, com o objetivo de incluir
indivíduo deveria ser de um trabalhador, com socialmente essas pessoas por meio do traba-
os seus direitos garantidos (FERREIRA, MEN- lho. Percebe-se, entretanto, em um contexto
DES, NUNES, 2003). social marcado pela competitividade, que a for-
A literatura brasileira mostra que essas ofi- mação profissional promovida em oficinas as-
cinas têm sido alvo de várias críticas com re- sume um caráter restrito de adestramento da
lação aos procedimentos que utilizam para mão-de-obra, o que pode ser identificado como
profissionalizar seus aprendizes. As críticas se uma via de estigmatização. Dessa forma, não
referem aos tipos de atividades ensinadas aos se tem clareza dos benefícios ou dos beneficiá-
aprendizes, caracterizadas como profissiona- rios da formação profissional, uma vez que ser
lizantes mas que pouco contribuem para a sua egresso de uma instituição profissionalizante
formação profissional, e ao processo de tran- dificulta a inclusão social, objetivo final das ins-
sição oficina-mercado de trabalho, pois mui- tituições que promovem a formação profissio-
tas vezes a instituição deixa de encaminhar nal. (AMARAL, 1994).
aqueles indivíduos que têm possibilidade de É importante atentar que a simples trans-
exercer um trabalho pela necessidade da sua missão de conhecimentos adquiridos não possi-
mão-de-obra (GOYOS, 1995). Outra crítica bilita à pessoa com necessidades educacionais
recorrente aos programas institucionais de pre- especiais apropriar-se de novos conhecimen-
paração para o trabalho é de que estes se dão tos necessários à sua interação com a realida-
em condições de isolamento, muito distancia- de; ao contrário, pode servir até para a
dos do mundo do trabalho. manutenção da situação vigente, e contribuir
Os teóricos apontam essas modalidades de para alijá-la cada vez mais do processo social,
atendimento como predominantes para a po- culminando na sua segregação. Assim, o tra-
pulação com deficiência mental. As oficinas balho nas oficinas não pode ser considerado
pedagógicas constituíram-se como propostas como fator de equalização entre as pessoas di-
de “educação para o trabalho” e, a partir de- tas “normais” e/ou pessoas com deficiência, pois
las, as oficinas protegidas, ou seja, o chamado a educação brasileira é marcada pela exclusão
trabalho em regime especial, foi considerado e por políticas paliativas que privilegiam na for-
produtivo, sendo então remunerado. Outras va- mação profissional atividades baseadas, muitas
riedades de formação incluiriam desde os in- vezes, em interesses institucionais.
ternatos até os trabalhos em domicílio. (SIL- A literatura vem apontando o sucesso de
VA, 2000). programas desenvolvidos em ambiente regular
146 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007
Isa Regina Santos dos Anjos
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007 147
Educação profissional: um desafio para pessoas com necessidades educacionais especiais
Talvez esta seja uma das lacunas ou um dos preciso investimentos substantivos em educa-
desafios a enfrentar; portanto, é necessária a ção. Para que o ambiente de aprendizagem na
criação de políticas de inclusão escolar no con- escola se efetive, ele necessita existir enquanto
texto das escolas de educação profissional, fato ambiente e condições objetivas na sociedade
que poderia implicar em mudanças mais pro- em todas as suas dimensões, pois não há esco-
missoras nessa área para o cenário brasileiro. la democrática em uma sociedade autocrática,
Dessa forma, as políticas públicas nesta área injusta e excludente.
devem atender aos interesses sociais, oferecen- Enfim, o futuro da inclusão escolar em nosso
do a essas pessoas a sua inserção e permanên- país dependerá de um esforço coletivo, que nos
cia no mercado de trabalho, enquanto parte da obrigará a uma revisão na postura de pesquisa-
força produtiva do país, a partir da conquista do dores, políticos, prestadores de serviços, familia-
direito igualitário e da sua cidadania. res e indivíduos com necessidades educacionais
Este artigo contribui para evidenciar que, especiais, para se trabalhar numa meta comum,
para oferecer educação profissional a pessoas que seria a de garantir uma educação de melhor
com necessidades educacionais especiais, é qualidade para todos (MENDES, 2006).
REFERÊNCIAS
AMARAL, L. A. Falando sobre o trabalho e a pessoa portadora de deficiência. São Paulo: REINTEGRA, 1994.
CASTEL, R. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. São Paulo: Vozes, 1998.
FERREIRA, J. R; MENDES, E. G; NUNES, L. R. P. Teses e dissertações sobre educação especial: os temas
mais investigados. In: Colóquios sobre pesquisa em educação especial. Londrina: EDUEL, 2003. p.113-136
GOYOS, A. C. N. A profissionalização de deficientes mentais: estudo de professores acerca dessa questão.
Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo: USP,
1986.
GOYOS, A. C. N. et al. Justificativas para a formação profissional do deficiente mental: revisão da literatura
brasileira especializada. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, v. 69, n. 5, p. 53-67, 1989.
GOYOS, A. C. N. A profissionalização de indivíduos deficientes mentais. São Carlos: EdUFSCar, 1995.
JANNUZZI, G. M. A luta pela educação do deficiente mental no Brasil. Campinas: Autores Associados, 1994.
MANZINI, E. Profissionalização de indivíduos portadores de deficiência mental: visão do agente institucional
e visão do egresso. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos: UFSCar, 1989.
MARX, K. O Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
MENDES, E. G. A radicalização do debate sobre inclusão escolar no Brasil. [S.l.: s.n.]. (Mimeografado).
RODRIGUES, R. J; TANAKA, E. D. O portador de deficiência mental: considerações acerca da sua prepara-
ção para o trabalho. In: Perspectivas multidisciplinares em educação especial II. Londrina: EDUEL, 2001. p.
655-658.
SILVA, A. G. A educação profissional de pessoas com deficiência mental: a historia da relação educação
especial/trabalho na APAE-SP. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campi-
nas, Campinas, 2000.
VIEGAS, C. M. C. Educação, trabalho e pessoas com deficiência. In: Revista Integração, Brasília, DF, MEC,
v. 10, n. 22, p.16-19, 2000.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 26.11.06
148 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 143-148, jan./jun., 2007
Alessandra Santana Soares e Barros
PODE-SE FALAR EM UM
‘MOVIMENTO DE DEFICIENTES’ NO BRASIL ?
RESUMO
ABSTRACT
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 149
Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?
150 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007
Alessandra Santana Soares e Barros
Down, em um universo composto por aquelas tantes em outra área. (...) Entre os que obtiveram
associações, por APAEs e por unidades Pesta- formação em Saúde, os campos mais referidos –
lozzi, traz referências elucidativas: “Observou- pela ordem – foram Fonoaudiologia, Psicologia,
Fisioterapia e Terapia Ocupacional ... (FEDERA-
se que, na percepção de grande número de pais,
ÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE
a participação em associações só se justifica SÍNDROME DE DOWN, 1999, p.97- 98).
enquanto seus filhos são crianças ou adoles-
centes. Com efeito, uma parcela expressiva dis- Por outro lado, a respeito da formação ma-
se que não se interessava em participar porque joritariamente universitária dos quadros de pes-
seus filhos já eram adultos” (FEDERAÇÃO soal das ONGs, a seguinte referência é
BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE esclarecedora:
SÍNDROME DE DOWN, 1999, p.125). Estas Por ocasião do evento que culminou com a fun-
afirmações são corroboradas por estudos acer- dação da ABONG (Associação Brasileira de Or-
ca da situação organizacional da categoria, que ganizações Não Governamentais), pesquisa
têm concluído que “As pessoas portadoras de efetuada com entidades presentes (...) trouxe in-
formações interessantes. No item dirigentes, foi
deficiências não estão propensas, na sua maio-
constatado que 87% tinham diploma universitá-
ria, à mobilização pela formação própria do pa- rio e 39% pós-graduação (dos quais 19% com-
ternalismo.” (VIVOT, 1994, p.30). pletaram cursos no exterior). Um quadro das
A pouca expressividade do ativismo político disciplinas cursadas na graduação indicava que
é também uma característica diferencial des- a mais freqüentada foi a filosofia, seguida da
tas entidades. Justificativas históricas estariam sociologia, economia, teologia, advocacia e ou-
calcadas no fato de que, em sua gênese, as tras. Na pós-graduação, um terço fez sociologia.
(WANDERLEY, 2002, p. 121).
entidades beneficentes, como as do tipo volta-
das para a atenção aos deficientes, não foram Muito embora seja possível apreciar refe-
marcadas pela crítica ao Estado, por operarem rências às APAEs e às Associações de Sín-
à margem do sistema, ou por terem pouca visi- drome de Down, principalmente quando prove-
bilidade pública e reservas ideológicas às fon- nientes de bibliografia por elas produzidas, como
tes de financiamento. Assim, numa perspectiva sendo as mesmas caracterizáveis na forma de
histórica, suas atuações no Brasil não contribu- organizações não governamentais, uma análise
íram para a mudança da relação entre a socie- dos pressupostos teóricos que distinguem os
dade e o Estado, configurando-se apenas como vários tipos de entidades de assistência social
de complementariedade à presença deste ou de mostrará que tais entidades beneficentes não
suplementação de suas ausências. podem ser descritas nem mesmo como ONGs.
Esta inércia do ponto de vista da mobiliza- Distinguir as ONGs de outras entidades de as-
ção política pode ser explicada ainda pelo fato sistência social ainda tem sido tarefa persegui-
de que os quadros de pessoal das entidades da com afinco por acadêmicos que dividem es-
beneficentes tradicionais, como as APAEs, são paços com a universidade e com a militância, e
compostos por funcionários ou voluntários sem que reclamam por uma distinção que proteja as
formação universitária. Quando existe forma- então reconhecidas ONGs do confundimento
ção superior, esta em grande medida refere-se com a chancela de entidades beneficentes que,
às áreas de saúde e educação, o que em geral no decorrer de seus remetimentos ao senso
não operacionaliza politicamente estes profissi- comum, ficaram notórias pela atuação pouco
onais. Uma pesquisa demonstrou que: idônea que, por vezes, as marcou com a alcu-
nha de “pilantrópicas”. (LANDIM, 2002, p. 17-
Dos 211 profissionais que reportaram ter con-
50). (Acerca da caracterização das ONGs, es-
cluído um curso superior e/ou pós-superior e
responderam à determinada questão, 113 (53,5%) trito senso, ver DURÃO, 2001, p.55-74).
tiveram formação na área de Educação; outros Se as entidades de deficientes não têm bus-
89 (42,2%) na área de saúde; cinco profissionais cado a universidade, pode-se dizer que, do mes-
formaram-se em Serviço Social e os quatro res- mo modo, a universidade não tem buscado as
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 151
Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?
152 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007
Alessandra Santana Soares e Barros
ciativa laica, ela contou com a presença da Igreja lações extra-institucionais que promovem os
Católica, tanto que esta primeira assembléia foi ideais das entidades.
presidida por um padre. Além disso, há de se Expressões de confundimento e promiscui-
considerar que os primeiros embriões da filan- dade entre as esferas pública e privada, como
tropia caritativa religiosa no Brasil, que remon- as assinaladas acima, podem ser ainda descri-
tam ao Período Imperial, já elegiam no conjunto tas pelo fenômeno do clientelismo, tipo de rela-
dos assim chamados “desassistidos” as pesso- ção, contudo, cuja natureza corrompida nem
as com deficiência. (MESTRINER, 2001, p.45). sempre é assim identificada pela tradição cul-
O olhar voltado a esta categoria haveria de se tural brasileira. O clientelismo pode ser descri-
estender no tempo por meio da filantropia higi- to como uma relação de troca de favores, em
ênica, própria da Primeira República, e da fi- geral políticos, por benefícios econômicos de
lantropia disciplinadora, própria do Estado Novo. variado escopo. Havendo o clientelismo se dis-
Contudo, entidades criadas com a finalidade seminado na tradição política brasileira, este
exclusiva de atender pessoas deficientes, e tão acaba por transitar para além dos momentos
somente elas, surgiriam no Brasil, de fato, só de manifestação representativa da democracia
na década de cinqüenta. – como a eleição de governantes – contami-
As suposições aqui sugeridas devem ser nando igualmente a dinâmica das trocas esta-
apreciadas, ainda, à luz do fato de que as enti- belecidas ao nível da participação cidadã na
dades beneficentes consideradas para os fins sociedade civil organizada.
deste trabalho estão consubstanciadas em ins- Logo, a perspectiva de análise da cultura po-
tituições com uma característica muito especí- lítica também identificaria expressões de clien-
fica. Pois as instituições de amparo aos telismo quando, por exemplo, o público-alvo de
deficientes mentais – à diferença daquelas que uma entidade beneficente a busca apenas para
atendem deficientes físicos, visuais e auditivos a prestação de serviços imediatos, como um mero
– são instituições tipicamente formadas e diri- cliente busca uma empresa, desobrigado de con-
gidas por mães e pais que se organizaram para tribuir para o fortalecimento identitário da cate-
assistir as necessidades de seus filhos. Ocorre goria por aquela entidade assistida. Clientelismo
que estas instituições, então geridas por paren- e assistencialismo se complementariam na me-
tes dos deficientes mentais, reproduzem nas dida em que o primeiro corresponde ao modo de
gestões institucionais os modelos de relações resposta dos usuários daqueles serviços, oferta-
familiares conflituosas, tensionadas pelo proces- dos de uma forma puramente assistencial pelas
so de luto do filho idealizado. Nas palavras de entidades de atenção.
Dantino: Desde a emergência do Terceiro Setor, nas
décadas de redemocratização do regime e de
Toda gama de sentimentos (culpa, negação, re-
fortalecimento da sociedade civil, as entidades
jeição, autopiedade) que acompanha o proces-
so pelo qual passam os pais quando do de deficientes vêm tentando transpor este ca-
nascimento ou da descoberta que o filho ideali- ráter assistencialista de suas atividades. Supe-
zado não nasceu, tendo vindo outro em seu lu- rar esta marca paternalista de sua atuação se
gar, parece reapresentar-se na instituição, ou seja, fez necessário para que não destoassem do
acredita-se que este conteúdo emocional faça conjunto das organizações não governamentais,
parte do cenário institucional e, como tal, silen- caracteristicamente definidas pela qualidade
cia a cena.” (DANTINO, 1998, p.34).
emancipatória de suas intervenções junto aos
Deste modo, as manifestações emocionais grupos e parcelas da população sob seus cui-
peculiares, e por que não dizer, os valores com dados.
freqüência emanados por estas mães e pais Essa tendência de reordenamento identitá-
acabam por se constituir em elemento signifi- rio das entidades de deficientes, a exemplo da
cativo das relações profissionais mantidas com Federação das APAEs, esteve expressamente
o pessoal técnico contratado, e mesmo das re- visível no processo de discussão da reforma do
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 153
Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?
Estado e do enquadramento legal das organiza- pativa e marcada pelo controle social, a com-
ções da sociedade civil (denominado Marco posição deste órgão estava dada tanto por re-
Legal para o Terceiro Setor/Lei das OSCIPs - presentantes governamentais quanto por
Organizações da Sociedade Civil de Interesse representantes da sociedade civil – como as en-
Público), que disciplinou o uso dos fundos pú- tidades de assistência social. Foi neste contex-
blicos de financiamento pelas instituições per- to, então, que se deu a formalização da presença
tencentes ao universo do associativismo. A Lei das entidades de deficientes no processo de
das OSCIPs, n. 9790/99, discriminou ainda, dis- ‘democratização da filantropia’ no Brasil, na
tintivamente, o pertencimento de ONGs, fun- medida em que parte da representação do
dações empresariais e outras entidades de CNAS foi ocupada por organismos como a
assistência social ao universo do associativis- Organização Nacional de Entidades de Defici-
mo. Segundo Landim: entes Físicos e a Federação Brasileira de Insti-
Pode-se então dizer que aquelas entidades ten- tuições de Excepcionais. (MESTRINER, 2001,
dem a se publicizar, ou se politizar, em sentido p. 220).
lato, ou seja, há, nessas dinâmicas, ao mesmo Entretanto, foi justamente no cenário da im-
tempo e de forma contraditória e combinada, uma plantação deste conselho que se puderam ob-
‘filantropização’ e uma ‘politização’ no campo servar sintomas de uma postura pouco
da assistência social através das instituições progressista por parte das entidades beneficen-
privadas. Exemplos: organizações nas áreas de
tes, dentre as quais, as entidades de deficien-
crianças e adolescentes ou dos portadores de
deficiência, ou ainda de idosos, em que uma tra- tes. Nos anos iniciais de vigência da LOAS –
dição de assistencialismo começou a se quebra- Lei Orgânica de Assistência Social, a política
da pela sua entrada no campo da luta por direitos. nacional recentemente abalada pelo escândalo
Muitas ‘viram’ ONGs, no sentido em que pas- da LBA buscava, então, através do CNAS,
sam a se enquadrar em determinadas redes, dis- novas e mais exigentes formas de recadastra-
cursos, espaços institucionais.” (LANDIM, mento de entidades e de renovação de certifi-
2002, p. 33). (grifos meus) cados de filantropia.
Deste modo, passaram a fazer parte das Assim, ocorreu que algumas entidades fi-
agendas destas entidades beneficentes pautas lantrópicas, temerosas com o curso das nego-
como inclusão social do deficiente a partir do ciações e deliberações que partissem do CNAS,
acesso ao ensino regular, empregabilidade, de- cujas normas implementadas poderiam levá-las
fesa ampla de direitos e promoção à vida inde- a perder recursos e subvenções, buscaram for-
pendente, em substituição aos consagrados mas de obstruir esse processo de ‘moralização’
temas da assistência médica e terapêutica e da da política de assistência social. Em relato da
escolarização no ensino especial. Característi- presidente do CNAS, em 1988, pode-se ler:
cas deste momento são as Associações de Sín- “Logo tivemos clareza sobre as forças contrá-
drome de Down que, nascidas na década de rias à redefinição do sistema de regulação da
80, pareceram buscar se identificar menos com filantropia. Sofremos lobbies fortíssimos.(...)
o amparo meramente protetor e paliativo – muito Fomos atropelados por medidas provisórias ge-
próprio das APAEs – e mais com o investimen- radas por pressões de APAEs, Santas Casas,
to no empoderamento das pessoas com síndro- reabrindo prazos, mudando formas de recadas-
me de Down e de suas famílias. tramento.” (MESTRINER, 2001, p. 235).
Este incremento cívico das ações da filan- O nível de engajamento participativo das
tropia foi especialmente apreciável pela esco- entidades de deficientes, ou seja, da referida
lha da representação paritária que passou a “politização” da assistência prestada, pode ser
compor, em 1993, o então instituído Conselho ainda explicitado pela apreciação de suas pre-
Nacional de Assistência Social – CNAS. Uma senças e manifestação junto aos canais de par-
vez que este conselho visava implantar a nova ticipação cidadã, bem como pela utilização de
política de seguridade social de forma partici- mecanismos institucionais e sociais com o mes-
154 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007
Alessandra Santana Soares e Barros
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 155
Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?
tes parece responsável pelo fraco noticiamento ços, estas entidades pouco sucesso têm alcan-
de questões acerca da deficiência. çado na efetivação de práticas que, pelo cará-
Essas constatações, que a princípio se refe- ter político, contribuiriam para este fim.
rem especialmente às entidades de pessoas O recurso adotado pela argumentação até
deficientes não parecem, contudo, surpreenden- aqui desenvolvida, de perseguir o enquadra-
tes, se tomadas as palavras de Teixeira (2001, mento das entidades de deficientes na forma
p. 189), para quem “qualquer processo não está de entidades filantrópicas tradicionais, tipica-
imune às mazelas enraizadas em nossa cultura mente assistenciais, para então distanciá-las
política”. Logo, este viés personalista, por exem- da configuração de um movimento social, pode
plo – que confunde a ordem doméstica com a ser questionado. Pois, a depender do paradig-
ordem pública – na gestão interna das entida- ma explicativo que se adote para descrição e
des beneficentes de assistência ao deficiente análise dos movimentos sociais, esta preocu-
mental, parece, ao fim e a cabo, reflexo de uma pação de enquadramento de entidades que aos
contaminação sofrida a partir das interações movimentos corresponderiam não é absoluta-
anômicas mais amplas iniciadas entre os cida- mente relevante. Assim, segundo a posição de
dãos e o Estado. Melluci (apud GHON, 2002. p.129), os novos
O circuito de trocas, fragilizado no que tan- movimentos sociais, por serem mais fluídos,
ge à circulação da reciprocidade e ao fluxo re- mais flexíveis, são menos forma e mais con-
forçador da confiança, fica expresso pela junto de representações significativas, expres-
incapacidade destas entidades em alargar o âm- sões culturais.
bito de suas atuações e preocupações para além Logo, a forma dada pelas estruturas associ-
do plano familiar, ou de considerar o tratamen- ativas assume menor importância, uma vez que
to empresarial necessário à sobrevivência de a concepção de movimento social que se tem é
longo prazo ou à auto-sustentabilidade financei- aquela pertinente com o conjunto de represen-
ra. Do mesmo modo, Reis (1995), em análise tações que se cria ao longo de sua existência,
do fenômeno do comunitarismo restrito con- não se devendo, assim, buscar objetos empíri-
textualizado para a conjuntura brasileira e para cos concretamente observáveis, consubstanci-
as circunstâncias vigentes de escassez de re- ados, por exemplo, na organicidade de entidades
cursos materiais e culturais, destacou o caráter beneficentes representativas dos interesses dos
estéril de ideais filantrópicos que não logram deficientes. Neste sentido, movimentos sociais
uma institucionalização efetiva de seus resulta- são construções analíticas, e não entidades que
dos, dada a insuficiência organizacional da so- se movem com a unidade de objetivos a eles
ciedade civil. Assim, o caso das entidades de atribuídos.
deficientes mentais, aqui tomado como emble- Todavia, mesmo essa forma de categoriza-
mático, pode apenas estar sinalizando a abran- ção de um movimento social mostra-se proble-
gência dos déficits em acumulação de capital mática no caso da atividade e da militância dos
social na sociedade brasileira. deficientes. Os movimentos sociais têm se con-
centrado em lutas em torno da identidade, sen-
do que a afirmação política destas identidades
Considerações finais exige alguma forma de autenticação (WOO-
DWARD, 2000). Esta se dá, dentre outros fa-
Não obstante as considerações generalistas tores, através da coesão relativa de valores que
que isentam as entidades de deficientes de ex- unificam um discurso que ajuda a construir as
clusividade neste cenário de uma sociedade ci- representações simbólicas em torno daquela
vil fracamente organizada, o que se tem, diante categoria diferenciada. No contexto brasileiro,
do exposto até aqui, é que, a despeito de um o processo de conformação do ideário acerca
discurso que reclama a superação de um mo- da deficiência se debateu ainda com a circuns-
delo de atenção típico da prestação de servi- tância de ter absorvido acriticamente discursos
156 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007
Alessandra Santana Soares e Barros
REFERÊNCIAS
AGÊNCIA DE NOTÍCIAS DOS DIREITOS DA INFÂNCIA. Infância na mídia: uma pesquisa. Coordenação
Marco Túlio César Alencar. Brasília, DF: ANDI/Instituto Ayrton Senna, 2000.
ANTUNES, M. T. A (Org). Síndrome de Down no Brasil: caminhando para o terceiro milênio. Brasília,DF:
Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down, 2000.
BARBOSA, E. Movimento apaeano: o terceiro setor como realidade. In: CONGRESSO NACIONAL DAS
ASSOCIAÇÕES DE PAIS E AMIGOS DOS EXCEPCIONAIS, 20., 2001, Brasília, DF. Anais... Brasília, DF:
Federação das APAEs, 2001. p. 283-290.
BUENO, J. G. S. A educação especial nas universidades brasileiras. Brasília, DF: MEC, 2002.
DANTINO, M. E. F. A máscara e o rosto da instituição especializada. São Paulo: Memnon, 1998.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007 157
Pode-se falar em um ‘Movimento de Deficientes’ no Brasil ?
DURÃO, J.E.S. Reforma do estado, a ação das ONGs e a assistência social. Cadernos ABONG, São Paulo,
n.30, p. 55-74, nov. 2001.
FEDERAÇÃO BRASILEIRA DAS ASSOCIAÇÕES DE SÍNDROME DE DOWN. Perfil das percepções so-
bre as pessoas com Síndrome de Down e do seu atendimento: aspectos qualitativos e quantitativos. Coor-
denação de Márcio Ruiz Schiavo. Brasília, DF: [s.n.], 1999.
FEDERAÇÃO NACIONAL DAS APAES. Eixo referencial de atuação: relatório analítico. Brasília, DF: Fede-
ração das APAEs, 1997.
GHON, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola,
2002.
LANDIM, L. Múltiplas Identidades das ONGs. In: HADDAD, S. (Org.). ONGs e universidades: desafios
para a cooperação na América Latina. São Paulo: Abong, 2002.
LOPES, U. M. Acerca da gestão administrativa das organizações não-governamentais. Trabalho de Conclu-
são de Curso (Especialização) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2002.
MESTRINER, M. L. O estado entre a filantropia e a assistência social. São Paulo:Cortez, 2001.
REIS, Elisa. Desigualdade e solidariedade:uma releitura do ‘familismo amoral’ de Banfield. Revista Brasilei-
ra de Ciências Sociais, n. 29, a. 10, p. 35-48, out. 1995.
ROCHE, C. Avaliação de impacto dos trabalhos de ONGs. São Paulo: Cortez/ABONG, 2000.
SANTOS, B S. A reinvenção solidária e participativa do estado. São Paulo: Ministério da Administração
Federal e Reforma do Estado, 1998. (Mimeografado).
SANTOS, W. G. Razões da desordem. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
SCHERER-WARREN, I. Redes e sociedade civil global. In: HADDAD, S. (Org.). ONGs e universidades:
desafios para a cooperação na América Latina. São Paulo: Abong, 2002. p. 68-83.
TEIXEIRA, E. Participação cidadã no poder local: algumas experiências no Brasil. In: ____. O local e o
global: limites e desafios da participação cidadã. São Paulo: Cortez/UFBA, 2001. p.172-195.
TÍBOLA, I. M. APAE educadora: a escola que buscamos: proposta orientadora das ações educacionais.
Brasília, DF: Federação Nacional das APAEs, 2001.
VASCONCELOS, M. Os significados do aborto: o labirinto de discursividades na Câmara dos Deputados.
Dissertação (Mestrado) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília/DF, 2000.
VIVOT, A. R. Considerações sobre a situação organizacional de entidades representativas de pessoas
portadoras de deficiência. Brasília, DF: CORDE, 1994.
WANDERLEY, L. E. W. ONGs e Universidades: desafios atuais. In: HADDAD, S. (Org.). ONGs e universi-
dades: desafios para a cooperação na América Latina. São Paulo: Abong, 2002.
WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T.T. Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000. p. 7-69.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 28.10.06
158 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 149-158, jan./jun., 2007
Roberto Sanches Rabello
RESUMO
ABSTRACT
* Bacharel em Artes Cênicas (UFBA), mestre em Educação pela UFBA e doutor em Educação pela Universidade de São
Paulo (USP). Professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Coordenador do projeto
“Ensino de arte e atendimento ao aluno com deficiência visual na rede estadual de ensino”, desenvolvido com o apoio
do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica – PIBIC. Endereço para correspondência: Faculdade de
Educação da Universidade Federal da Bahia, Av. Reitor Miguel Calmon, s/n. Vale do Canela – 40110-100 Salvador/BA.
E-mail: bob@ufba.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007 159
O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
As reflexões deste artigo têm como base camente adolescentes que viviam em regime
uma pesquisa de maior abrangência, desenvol- de internato, ávidos por expressarem o explosi-
vida originalmente na Faculdade de Educação vo momento do despertar da sexualidade.
da Universidade de São Paulo – USP 1 . O es- Estudos e pesquisas vêm mostrando a difi-
tudo foi feito a partir do relato das oficinas de culdade dos professores em lidar com alunos
teatro realizadas no Instituto de Cegos da Bahia com necessidades educacionais especiais
- ICB, no período de março a dezembro de 1997. (COLL, 1995), inseridos, muitas vezes por for-
As preocupações surgidas no decorrer dessa ça da lei, em classe regular. Por outro lado, são
atividade provocaram a reflexão sobre os dife- praticamente inexistentes trabalhos que apon-
rentes elementos constitutivos da linguagem te- tem para formas efetivamente empregadas pelo
atral experimentados por meio do jogo teatral e professor de arte no desenvolvimento de pro-
da apropriação de um texto dramático. cessos lúdicos, afetivos, sensoriais e estéticos,
No presente momento, o intuito é o de ilus- sobretudo com alunos deficientes visuais.
trar, com base na teoria da peça didática de O que gostaríamos de discutir nesse proces-
Brecht, o momento em que os alunos do Insti- so é a apropriação do texto teatral e o significa-
tuto de Cegos da Bahia trabalharam com a peça do da experiência, para um grupo de adoles-
Romeu e Julieta de Shakespeare e refletiram centes, alguns sem nenhuma escolarização e
sobre a afetividade entre adolescentes que vi- que pouco conheciam sobre teatro. Eles mes-
vem em regime de semi-internato em institui- mos afirmavam que nunca tinham participado
ções mistas. de dramatizações e nunca tinham apreciado um
O texto dramático foi tomado como “mode- espetáculo teatral. Seria possível uma alfabeti-
lo de ação” brechtiano, ou seja, como forma de zação estética efetiva, no sentido do aprendiza-
imitação crítica e de reflexão a respeito das do de uma linguagem especificamente teatral?
relações entre os participantes da montagem As aulas de teatro deveriam ficar apenas no
teatral. As improvisações criadas a partir da nível da integração e sensibilização ou o traba-
peça teatral exercitaram maneiras de agir, pos- lho poderia ser encaminhado em direção ao
turas e falas cuja imitação consciente através aprendizado dessa linguagem, por meio da mon-
do jogo teatral, como lembra Steinweg (1992, tagem teatral?
p. 48), podem provocar “reflexão e crítica so- O posicionamento teórico do estudo, procu-
bre a sociedade e/ou sociabilidade, comunica- rando valorizar o conteúdo de teatro e os temas
ção interrompida, possibilidades atrofiadas de emergentes, tomou a teoria da peça didática
socialização, de associação”. como forma de espelhar e analisar a experiên-
A intenção ao divulgar essa experiência é, cia realizada. Embora não negando os benefí-
sobretudo, refletir sobre o significado do teatro cios terapêuticos do teatro enquanto expressão,
na educação da pessoa com deficiência visual. levantamos a hipótese do teatro enquanto lin-
Um dos aspectos relevantes deste trabalho é o
registro de uma prática pedagógica de ensino 1
Trata-se de um estudo de caso, orientado pela professora
de arte, em que o autor, mesmo não sabendo Dra. Elcie Fortes Salzano Masini, que investiga as possibili-
dades, limites e significado da utilização da língua teatral
inicialmente nada a respeito de alunos com de- por um grupo de adolescentes deficientes visuais (RABÊLLO,
ficiência visual, se propôs a alfabetizar esteti- 2003).
160 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007
Roberto Sanches Rabello
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007 161
O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
comprova que os sujeitos que nunca enxerga- tal que a leva a necessitar de recursos ópticos
ram não sentem falta da visão, não se sentem e educativos especiais.
compadecidos de si mesmos, não anseiam pela Amiralian (1997) observa que, do ponto de
luz, e a cegueira não tem um significado terrí- vista médico e educacional, cego não é apenas
vel para eles como tem para o vidente. A sua aquele que nada enxerga, geralmente em nú-
relação com os videntes é que vai denotar para mero reduzido, mas também os que conseguem
eles a cegueira como terrível. Os cegos com- distinguir o claro do escuro, percebem vultos e
preendem a falta que a vista representa, devi- contam dedos a uma determinada distância.
do às possibilidades dos que estão enxergando Para Lowenfeld (1957), psicologicamente cego
à sua volta. é quem sempre foi totalmente sem vista, ou que
Quando nos debruçamos sobre a literatura perdeu a visão antes dos cinco anos de idade e,
percebemos que não existe um conceito uni- conseqüentemente, não conserva ou utiliza lem-
versalmente aceito sobre cegueira, ou sobre branças visuais na aquisição de novos conheci-
deficiência visual, e que muitos são os critéri- mentos ou, em outras palavras, não consegue
os adotados para sua definição. Essas expres- pôr em termos de visão as suas impressões tá-
sões geralmente são utilizadas para caracterizar teis, cinestésicas, olfativas e auditivas, como os
a situação dos sujeitos privados da vista ou com videntes o fazem.
visão reduzida (também denominados pesso- Como acentua Ormelezi (2000), os avanços
as com “baixa visão” ou com “visão subnor- da própria prática educacional e clínica nos anos
mal”). setenta provocaram a mudança no enfoque da
Segundo o enfoque médico-oftalmológico, a deficiência visual, determinando uma nova de-
cegueira significa “uma redução da acuidade finição e classificação funcional, não mais com
visual central desde cegueira total (nenhuma base na acuidade visual, e sim na eficiência da
percepção de luz) até acuidade visual menor visão. Assim, as pessoas com baixa visão utili-
que 20/400 P (ou seja 0,05) em um ou ambos zam a visão residual para a leitura e a escrita,
os olhos, ou redução do campo visual ao limite com ou sem recursos ópticos de ampliação e
inferior a 10º”; e visão subnormal (visão re- para situações práticas da vida diária.
duzida) significa “a acuidade visual central Na contemporaneidade, esses conceitos são
maior que 20/400 até 20/70 (ou seja 0,3)” (BRA- discutidos com vistas a uma mudança de atitu-
SIL, 1995, p. 17). Entretanto, alguns autores con- de da sociedade frente à pessoa com deficiên-
sideram pouco apropriada essa delimitação pela cia. O estabelecimento das especificidades
acuidade visual para fins educacionais, consi- ganha uma conotação de respeito às diferen-
derando que o modo pelo qual uma pessoa uti- ças individuais e o sentido da inclusão de indiví-
liza a visão é mais importante que a medida de duos com deficiência nas escolas e nas
sua acuidade visual. atividades de trabalho e de lazer. Para Vygotsky:
Masini (1994), por exemplo, prefere adotar ... é necessário liquidar o isolamento a partir de
a definição, referente à deficiência visual, da uma educação do cego e apagar a demarcação
American Foundation for the Blind, na qual entre a escola especial e a escola normal. A edu-
criança cega é aquela que não pode ser educa- cação de uma criança cega na atualidade deve ser
da através da visão e que necessita, conseqüen- organizada nos mesmos termos da educação de
temente, de um programa educacional que utilize todas as crianças capazes de um desenvolvimen-
o sistema braile, aparelhos de áudio e demais to normal (...) a Ciência Moderna deve dar ao cego
equipamentos especiais necessários para que o trabalho social certo, não degradante, não filan-
alcance seus objetivos educacionais. A pessoa trópico (como tem sido a prática padrão até ago-
com visão subnormal é a que ainda conserva ra), mas em formas que correspondam à verdadeira
essência do trabalho (VYGOTSKY, 1989, p. 108).
visão útil como via de aprendizagem, não ne-
cessita do sistema braile, mas cuja deficiência Essa atitude, entretanto, parece não contem-
visual reduz o progresso escolar em extensão plar a totalidade do indivíduo nos estudos reali-
162 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007
Roberto Sanches Rabello
zados na área de deficiência visual. Masini teve muita influência nos trabalhos científicos
(1994) e Amiralian (1997) afirmam que a mai- sobre a cegueira, afirmava que a ausência de
oria das pesquisas sobre o deficiente visual está um dos sentidos aumentava o grau de acuidade
preocupada com a questão do desenvolvimen- dos sentidos restantes. Assim, uma pessoa cega
to cognitivo ou com a defasagem da comunica- teria em compensação os outros sentidos mais
ção do deficiente visual em relação ao vidente. apurados e uma conseqüente superioridade sen-
Sabemos que a cegueira limita variadas for- sorial em relação aos videntes. Hoje, sabemos
mas de informação sobre o ambiente externo, que as pessoas cegas não possuem melhor au-
ocasionando danos para o sujeito cego, que fica dição, tato, olfato ou paladar, somente pelo fato
impossibilitado de conhecer as características de serem cegas. Na verdade, elas utilizam os
do ambiente de forma rápida e eficaz. Confor- recursos a seu alcance para buscar a estimula-
me Amirialian (1997), a cegueira, ao limitar as ção em vias alternativas, o que exige uma edu-
possibilidades de apreensão do mundo externo cação adequada (COBO; RODRÍGUEZ;
e impor um peculiar processo perceptivo ao in- TORO BUENO, 1994, p.130).
divíduo, interfere no seu próprio desenvolvimento Nem a audição, nem as sensações táteis são
e ajustamento às situações comuns da vida, pro- em nada superiores, apesar das fantasias e len-
vocando uma mudança significativa na estrutu- das que tentam justificar feitos extraordinários
ração cognitiva e na organização e constituição atribuídos aos cegos. A capacidade para distin-
do sujeito psicológico. guir variações de peso, para determinar varia-
Além do mais, a visão, no cotidiano social, ções de pressão em diferentes pontos da pele,
geralmente aparece como pressuposto do co- a acuidade do paladar e do olfato, a capacidade
nhecimento. Masini trata da questão epistemo- para determinar pequenas mudanças de tem-
lógica da mistura confusa do conhecer e do peratura também não mostram superioridade
ver e revela que, dos cegos em relação aos videntes.
... histórica e etimologicamente, na civilização A educação tem que ser adaptada, pois o
ocidental, o “conhecer” se faz com o “ver”; o poder dos sentidos é influenciado pela atenção
“ver” é condição para o “conhecer” e em certas educada. Isso implica em atividade, aplicação
interpretações os dois significados se confun- cuidadosa da mente, concentração. Ademais,
dem. Daí se desvela a situação do deficiente vi- a percepção ocorre em um corpo “visto numa
sual de pertencer a uma cultura na qual o totalidade, na sua estrutura de relação com as
“conhecer” se confunde com uma forma de per- coisas ao redor” (MASINI, 1994, p.85). As-
cepção de que ele não dispõe; condição intensi-
ficada na sociedade de massa do século XX,
sim, as impressões sensoriais não ocorrem de
onde tudo se mostra ao olhar e é produzido para forma isolada, embora possa haver predominân-
ser visto (MASINI, 1994, p. 25-26). cia de um dos sentidos sobre os outros. A visão
parece sobrepor-se aos demais sentidos no caso
Numa cultura onde o saber se origina e de-
do vidente, mas, para o cego, a complementa-
pende basicamente da visão, cabe o questiona-
ção das fontes parece ser fundamental. Por isso,
mento da autora: “Como é o pensar daquele
geralmente as pessoas ficam intrigadas tentan-
que aí está e não é vidente? (...) Como se dá o
do entender como eles conseguem compreen-
conhecimento na ausência da visão?” (MASI-
der o mundo sem o sentido da visão, conside-
NI, 1994, p. 81).
rando-se que grande parte da compreensão do
vidente provém da visão.
A educação do deficiente visual Ao procurarmos informações sobre a defi-
ciência visual tivemos inicialmente dificuldade
Por muito tempo acreditou-se que a pessoa de encontrar na literatura conceitos ou propos-
privada da visão era providencialmente com- tas que compreendessem o sujeito na sua intei-
pensada pela maior acuidade dos sentidos res- reza. Neste sentido, encontramos em Masini
tantes. A teoria da compensação sensorial, que (1994) questionamentos e informações impor-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007 163
O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
tantes a respeito do que é estar no mundo sem passaremos a relatar ajudaram muito nesse
depender da visão como sentido predominante. sentido, terminando por integrar o jeito de ser
Isso nos ajudou a refletir melhor sobre o que os de cada um com o direito de sonhar conjunta-
deficientes visuais do grupo de teatro eram ca- mente, projetando um mundo mais feliz, agra-
pazes de fazer teatralmente e o que não cor- dável e prazeroso.
respondia às suas características.
Masini (1994) defende a busca das caracte-
rísticas do sujeito para se poder definir uma ori- O texto dramático como “modelo
entação apropriada para a sua educação, de ação” brechtiniano
mostrando que o corpo é um instrumento de com-
preensão e um caminho possível para conhecer O processo de improvisação teatral teve
a pessoa. A autora acentua a necessidade de como base a proposta de Spolin (1979), que parte
“buscar as raízes do conhecimento no mundo do pressuposto de que todas as pessoas são
vivido, no contato com a experiência original – capazes de atuar no palco e aprender através
na situação em que o sujeito, através do próprio da experiência criativa, desenvolvendo habili-
corpo (que sabe, que sente, que compreende) dades através do jogo teatral e transpondo o
encontra o objeto” (MASINI, 1994, p. 94). processo de aprendizagem para a própria vida.
Compreender o sujeito na sua inteireza sig- Sabemos que o teatro é uma linguagem que
nifica entender a diversidade e heterogeneida- se manifesta por meio de um sistema de signos
de da população. Uma pessoa que perde a visão de enorme riqueza, variedade e densidade, en-
tardiamente possui referências visuais que fa- volvendo não apenas o texto falado, mas incor-
cilitam o trabalho de expressão corporal. O porando a atitude corporal, a expressão física
momento do surgimento dos problemas visuais, do ator (a ação, o movimento, o gesto, a ex-
o grau de diminuição da visão, a forma como pressão facial), a sua localização no espaço,
aconteceu, a circunstância social, familiar e entre outros sistemas (KOWZAN, 1978, p.
psicológica, a própria aceitação da deficiência, 117). Este sistema de signos foi explorado nas
tudo isso pode exercer um efeito sobre o de- oficinas de teatro a partir de jogos tradicionais,
senvolvimento do indivíduo, o que termina por de jogos corporais e de improvisação teatral,
interferir no trabalho das oficinas de teatro. na perspectiva do aparecimento de temas do
No trabalho desenvolvido, verificamos a interesse dos alunos.
importância da percepção do modo como cada Para facilitar a aprendizagem dos participan-
pessoa utilizava os sentidos de que dispunha, tes das oficinas de teatro, seguimos um esque-
inclusive os resquícios de visão. A visão de luz ma pautado nos seguintes pontos: no fator de
e a percepção de vulto, por exemplo, ajudavam interação, envolvendo jogos com dinâmicas lú-
muito na locomoção, na interação com o outro dico-afetivas de união grupal, de cooperação e
e com o espaço, facilitando a agilidade no jogo de pesquisa sensorial; na exploração dos ele-
teatral. Como lembra Masini (1994), a ausên- mentos da linguagem teatral a partir da expres-
cia do sentido da visão muda o modo próprio de são corporal (movimento, ação, gesto, som),
estar no mundo e de relacionar-se, imprimindo antes mesmo da introdução da linguagem ver-
estilos de movimento e atitudes diferenciadas. bal; no aprofundamento de temas sugeridos nas
Além do mais, estamos nos reportando a improvisações, quando os atores combinavam,
um grupo de adolescentes em particular, que em pequenos grupos, a ação, os personagens e
tinha uma potencialidade afetiva muito gran- o ambiente que desejavam representa; e na
de. Pessoas cada vez mais unidas pela vonta- avaliação das cenas produzidas cotidianamen-
de de fazer teatro, de serem amigas umas das te, refletindo a respeito dos temas e da forma
outras, de refletir e de batalhar pelos seus so- criada coletivamente.
nhos, dividindo suas emoções e idéias com Nas improvisações e nas rodas de conversa
outros adolescentes. Os processos teatrais que que realizávamos para refletir sobre as vivên-
164 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007
Roberto Sanches Rabello
cias diárias foi que surgiu o tema do “amor proi- tranhar o que é habitual, assumindo uma po-
bido”, sugerido pelos participantes. Eles não sição crítica em relação ao que estava sendo
queriam falar sobre doenças, nem sobre pre- mostrado.
conceitos e estereótipos a respeito da cegueira, O que é distanciamento? Distanciar um fato ou
queriam falar do “amor proibido” pelas barrei- caráter é, antes de tudo, simplesmente tirar des-
ras institucionais, queriam tratar de situações se fato ou desse caráter tudo o que ele tem de
românticas, da dificuldade de afeto entre ado- natural, conhecido, evidente, e fazer nascer em
lescentes, sobretudo entre os que viviam em seu lugar espanto e curiosidade (...). Distanciar
regime de semi-internato, como era o caso de- é historicizar os fatos e personagens (BRECHT,
1967, p. 137-138).
les na época.
Além de falar de amor, os alunos queriam Com o aprofundamento e aplicação desses
mostrar para as pessoas que eram capazes de conceitos, Brecht (1967) procurou desenvolver
atuar teatralmente e de encenar uma peça. um teatro didático, com o intuito de atingir os
Esse desejo nos levou a uma montagem base- estudantes, os grupos amadores e os corais de
ada no “Romeu e Julieta“ de Shakespeare. trabalhadores, enfim, as pessoas que não fre-
Um texto clássico universal foi utilizado como qüentam o grande teatro, mas que desejam fa-
“modelo de ação”, colocando em pauta a proi- zer arte. Assim, o aluno/ator devia aprender, ao
bição do namoro.2 discutir o conteúdo social da peça e ao experi-
O processo de criação do espetáculo acon- mentar situações que despertassem o espírito
teceu de maneira lúdica, envolvendo situações crítico.
da peça teatral Romeu e Julieta, misturadas No processo de encenação das peças didá-
com situações representadas nas improvisações ticas, Brecht radicaliza a relação entre atores e
teatrais. Nas oficinas de teatro o texto de público, uma vez que a platéia não precisa se-
Shakespeare foi utilizado como modelo de quer existir, importando fundamentalmente a
ação, conceito brechtiano que não tem o senti- educação dos participantes. Essa forma de te-
do da reprodução por imitação fiel de situações atro, ao exigir uma preocupação maior com a
exemplares. Na proposta de Brecht, a monta- conscientização dos atuantes, favorece a sua
gem teatral é um exercício artístico coletivo que utilização como forma de conhecimento. Segun-
utiliza o texto como objeto de “imitação crítica” do a definição de Brecht, as peças didáticas
e investigação de relações construídas social- têm como objetivo ensinar não primordialmen-
mente. A peça não é entendida como uma có- te o público, mas sim aqueles que tomem parte
pia da realidade, mas sim como uma metáfora, de sua representação. Ela instrui pelo fato de
pois, segundo os princípios brechtianos, o cará- ser representada, e não pelo fato de ser vista,
ter estético do experimento teatral é um pres- pois, mesmo contando com a presença de um
suposto para os objetivos de aprendizagem público, o objetivo da encenação é o ensina-
(KOUDELA, 1996, p. 17). mento de atitudes sociais aos próprios atores:
Brecht é conhecido no mundo inteiro como A peça didática se diferencia da peça épica de
representante de um teatro crítico, que ele espetáculo, que exige a arte da interpretação.
denominava “épico” ou “dialético”, que se ca- Brecht sublinha que a principal função da peça
racterizava por uma forma de encenação e didática é a educação dos participantes do Kuns-
de uma técnica de atuação que despertava o takt (ato artístico). A peça didática ensina quan-
público da passividade, sobretudo pelo cará- do nela se atua e não através da recepção estética
ter demonstrativo do jogo do ator. Ao invés passiva (KOUDELA, 1996, p. 13).
de uma imitação da realidade, muito comum O texto é utilizado então como forma de
em um tipo de teatro ilusionista, e que provo- criação de alternativas de atuação (improvi-
ca a identificação passiva do espectador, o 2
O espetáculo teatral foi apresentado e discutido com mais
sistema brechtiano procurava um efeito de de seiscentos adolescentes em teatros e escolas, com apoio
distanciamento que levava o público a es- da UFBA e do Instituto de Cegos da Bahia.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007 165
O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
sação) que levem o ator a pensar sobre a sua trechos novos e improvisações produzidas pe-
própria realidade cotidiana. Por isso, não im- los alunos. Inclusive devido à pouca experiên-
porta a memorização mecânica de um texto, cia dos alunos na leitura em braile, utilizamos
sendo permitido inclusive a introdução de tre- apenas fragmentos do texto, como recurso para
chos de invenção própria, em função do alvo sua apropriação. O texto tornou-se um elemento
que se quer atingir. a mais no jogo teatral, e a sua modificação ocor-
Os princípios abordados oferecem grande reu naturalmente, em função da improvisação
contribuição para o ensino de teatro e servem dos alunos, permitindo a comparação direta com
para espelhar a experiência prática desenvolvi- situações de vida.
da no Instituto de Cegos da Bahia, sobretudo As insatisfações com o cotidiano apare-
no que se refere à apropriação do Romeu e ceram no exercício do fazer teatral, possibili-
Julieta como modelo de ação. tando a elaboração de uma questão que
colocava em dúvida as normas sociais esta-
belecidas, lançando um novo olhar sobre o
A apropriação do texto como ob- relacionamento entre os jovens e sobre o pró-
jeto de imitação crítica prio mito presente no Romeu e Julieta. O
foco, entretanto, se deslocou da instituição
O texto dramático tinha sido praticamente família para os internatos.
banido nas oficinas de teatro com crianças e O princípio do distanciamento, muito utili-
adolescentes nos anos 60, com o pressuposto zado por Brecht, também ajuda a espelhar o
de que prejudicaria a espontaneidade natural do trabalho. A história que vinha sendo mostrada
educando. Somente nos anos 70 e 80 as práti- no “aqui e agora” foi colocada em suspenso
cas de teatro-educação passaram a incorporar por um programa onde os atores da peça eram
o desafio da apropriação lúdica de textos dra- entrevistados, colocando-se ora como persona-
máticos, com o objetivo de enriquecer o imagi- gens, ora como atores que comentavam a ação
nário e ampliar a visão de mundo dos partici- da peça, discutindo até mesmo uma nova for-
pantes. ma de “solução para o caso de Romeu e Julie-
Essa tendência do teatro com preocupações ta”. A entrevistadora solicitava, inclusive, um
educacionais e lúdicas é reiterada nos Parâme- posicionamento dos atores e do público a res-
tros Curriculares Nacionais – Arte (BRASIL, peito da “proibição do namoro em instituições
1998), que destacam o texto como objeto de mistas”. O fato de diferentes argumentos e
imitação crítica e princípio unificador do pro- posicionamentos serem colocados, provocava
cesso pedagógico, desde que se possibilite a li- uma discussão sobre uma matéria polêmica e
berdade e diversidade de construções. de interesse coletivo.
No experimento educacional realizado, a Outra forma de distanciamento foi realiza-
encenação do texto de Shakespeare foi desen- da por meio do jogo de representação de um
volvida a partir de improvisações, que expres- mesmo papel por três atores diferentes, como
savam idéias comuns aos atores e ao texto. no exemplo da proposta em que três pessoas
Neste processo, a proposta brechtiana forne- representavam Romeu e três representavam
ceu um método para pensar a realidade. O jogo Julieta. O público não podia se identificar com
com o texto implicou em imitar, acrescentar o personagem central, de forma a ficar hipnoti-
novos elementos, novas cenas, novos diálogos zado, posto que percebia que era uma repre-
e ações, o que envolveu um processo de cria- sentação encenada por um grupo, onde três
ção e aprendizagem. atores representam o mesmo personagem. Esse
Não existia uma estrutura rígida a ser cum- recurso foi utilizado como forma de atender ao
prida, pois, na adaptação realizada, a história interesse de “mostrar que é teatro”, quebrando
do Romeu e Julieta era emoldurada por um a empatia com o personagem central, caracte-
programa de rádio que permitia a inserção de rística do teatro ilusionista.
166 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007
Roberto Sanches Rabello
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007 167
O teatro na educação do deficiente visual e a teoria da peça didática de Brecht
cessos teatrais podem colaborar para reverter de lado processos relacionados com o corpo, a
a situação contraditória de instituições como a união, a cooperação, a afetividade, a interação
escola, que pretende educar pessoas deixando e a dramaticidade.
REFERÊNCIAS
AMIRALIAN, M. L. T. M. Compreendendo o cego: uma visão psicanalítica da cegueira por meio de dese-
nhos-estórias. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Especial. Subsídios para organiza-
ção e funcionamento de serviços de educação especial: área de deficiência visual. Brasília, DF: MED, 1995.
_____. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros
curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: arte. Brasília, DF: MED, 1998.
BRECHT, Bertolt. Teatro dialético. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
COBO, A. D.; RODRÍGUEZ, M. G.; TORO BUENO, S. T. Aprendizaje y deficiencia visual. In: MARTÍN,
Manuel; TORO BUENO, Salvador (Coord.). Deficiência visual: aspectos psicoevolutivos y educativos.
Archidona, Málaga: Aljibe, 1994. p. 129-144.
COLL C., PALACIOS J., MARCHESI, A. (Org.) Desenvolvimento psicológico e educação: necessidades
educativas especiais e aprendizagem escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
KOUDELA, Ingrid Dormien. Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo: Perspectiva, 1991.
_____. Texto e jogo. São Paulo: Perspectiva, 1996.
_____. (Org.). Um vôo brechtiano: teoria e prática da peça didática. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1992.
KOWZAN, Tadeusz. Os signos no teatro: introdução à semiologia da arte do espetáculo. In: GUINSBURG, J.;
COELHO NETO, Teixeira; CARDOSO, R. C. (Org.). Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 93-123.
LANGER, Suzanne K. Ensaios filosóficos. Tradução de Jamir Martins. São Paulo: Cultrix, 1962.
LOWENFELD, Berthold. A criança e seu mundo. Tradução de J. Espínola Veiga. Revista Lente. São Paulo,
Fundação para o Livro do Cego do Brasil, v. 1, n. 1, p. 23-31, jan./abr. 1957.
LUDKE, Menga; ANDRÉ, Marli. E. D. A. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.
MASINI, Elcie F. Salzano. O perceber e o relacionar-se do deficiente visual: orientando professores
especializados. Brasília: CORDE, 1994.
ORMELEZI, Eliana Maria. Os caminhos da aquisição do conhecimento e a cegueira: do universo do corpo
ao universo simbólico. 282 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 2000.
RABÊLLO, Roberto Sanches. Análise de um experimento de teatro-educação no Instituto de Cegos da
Bahia: possibilidades de utilização da linguagem teatral por um grupo de adolescentes. Tese (Doutorado) –
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. Tradução de Ingrid Dormien Koudela e Eduardo José de Almeida
Amos. São Paulo: Perspectiva, 1979.
STEINWEG, Reiner. Indicadores de um caminho pela Balinésia: por um teatro associal. In: KOUDELA, Ingrid
Dormien. Um vôo brechtiano: teoria e prática da peça didática. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 1992. p. 47-73.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente: o desenvolvimento de processos psicológicos superiores.
São Paulo: Martins Fontes, 1991.
_____. Fundamentos de defectología. Havana, Cuba: Editorial Pueblo y Educación, 1989. Tomo 5 (Obras
Completas).
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 26.10.06
168 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 159-168, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
RESUMO
Este estudo diz respeito a uma pesquisa realizada de acordo com a abordagem
qualitativa, sendo mais precisamente um estudo de caso. Seu objetivo geral é
discutir as contribuições da música no desenvolvimento cognitivo de crianças
surdas. As fontes pesquisadas e analisadas demonstraram a possibilidade de a
música fazer parte do cotidiano de crianças surdas e ser utilizada como ação
pedagógica, pois constitui uma fonte de expressão, prazer e interação.
Identificou-se o interesse das crianças em conhecer mais sobre a música;
porém, para a maioria das pessoas, ela é privilégio do mundo dos ouvintes e,
por isso é retirada da vida dos surdos. Além disso, poucas pesquisas com esse
tema são realizadas nesta área de estudos. Para que a música esteja ao alcance
dessas crianças, muitas transformações precisam ocorrer nos conceitos da
maioria das pessoas. A principal delas é acreditar no potencial dos surdos, não
rotulá-los e não desacreditar no seu potencial, tendo por base apenas a sua
surdez. Os surdos, assim como os ouvintes, têm o direito de conhecer a música
e expressar sua musicalidade, cabendo, portanto, aos educadores e à família
ampliar sua visão educacional e lhes possibilitar o maior número de experiências
prazerosas, que contribuíam com o seu desenvolvimento global.
Palavras-chaves: Surdez – Música – Desenvolvimento cognitivo
ABSTRACT
* Graduanda em pedagogia pela Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para correspondência: Universidade
Federal de Uberlândia, Avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G – 38408-100 Uberlândia-
MG. E-mail: marisapmourao@yahoo.com.br
** Orientadora. Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Endereço para corres-
pondência: Universidade Federal de Uberlândia, Avenida João Naves de Ávila, 2121, Campus Santa Mônica, Bloco G
– 38408-100 Uberlândia-MG. E-mail: lazara@ufu.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 169
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
Este artigo é o resultado de uma pesquisa no escolar significa ampliar a variedade de lin-
monográfica, realizada no ano de 20031 , que guagens e permitir a descoberta de novos ca-
aborda a possibilidade da presença da música minhos de aprendizagem. É antes de tudo um
na vida de crianças surdas, considerando a sua fazer artístico, é explorar e trabalhar a sensibi-
grande influência no cotidiano das pessoas em lidade humana.
geral e a sua exclusão da vida dos surdos. Pre- Salienta-se, ainda, que música tem grande
tendeu-se com este trabalho conscientizar as repercussão sobre a identidade das pessoas, sua
pessoas de que o surdo pode, assim como os auto-estima, expressividade, socialização, alfa-
ouvintes, ser um sujeito musical. betização, capacidade inventiva, raciocínio, sen-
A música está presente na humanidade des- sibilidade e percepção sonora, contribuindo
de muito cedo. Afinal, todo ser humano nasce também para o desenvolvimento cognitivo.
num mundo rodeado de sons, e a qualidade e Entretanto, a prática musical tem sido, ao
quantidade desses sons dependerá do ambi- longo dos tempos, pouco utilizada como recur-
ente em que se vive. O poder da música na so didático, embora este seja um valioso aliado
humanidade é objeto de estudo de vários cien- na educação de forma geral e esteja presente
tistas que procuram comprovar os benefícios na vida das pessoas desde muito cedo. Funda-
trazidos por ela na busca de uma vida melhor. mentando-se na sua contribuição e significado
Em toda a história a música esteve presente para a educação, surge a questão central desse
como forma de expressão, de protestos, de fes- estudo: a música está presente no cotidiano das
tividades e de cultura. Nesse contexto, a cri- pessoas de forma geral. No entanto, qual o es-
ança entra em contato com a atividade musical paço que ela tem ocupado na vida escolar e
desde muito cedo, uma vez que esta já faz par- familiar de crianças surdas? Estas ao menos
te de sua vida. sabem o que é música?
A música é a linguagem que se traduz em Para muitos, discutir a música para os sur-
formas sonoras capazes de expressar sensa- dos é uma tarefa impossível; mas é importante
ções, sentimentos e pensamentos. Está presente lembrar que, neste trabalho, procurou-se per-
em todas as culturas, no cotidiano das pessoas, ceber se a música poderia contribuir para o
sendo capaz de integrar aspectos afetivos, lin- desenvolvimento cognitivo enquanto ação pe-
güísticos e cognitivos, assim como possibilitar a dagógica, buscando aproximar os surdos da
interação social. Ela é um importante meio de
comunicação existente em nossa vida e, por isso, 1
Este estudo ocorreu num período de um ano, sendo que os
primeiros seis meses foram dedicados ao estudo sobre o
é parte do contexto educacional, particularmen- tema e os últimos meses à coleta, análise de dados e cons-
te na educação infantil. Trabalhá-la no cotidia- trução do texto final da monografia.
170 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
música e não fazê-los entender as proprieda- fissional, através de melhor capacitação para o
des do som e da música em si, pois isto requer atendimento de pessoas surdas, haja vista o
um trabalho mais longo, com a ajuda de profis- aumento da presença de crianças surdas no
sionais da área da música. ambiente escolar e as dificuldades dos profissi-
É comum a indagação sobre a possibilidade onais para atuarem na área de forma a propici-
dos surdos perceberem e sentirem as vibrações ar o desenvolvimento satisfatório deste grupo
musicais. Há, relativamente, poucas pesquisas de aprendizes.
nesta área, mas a relação entre o surdo e a Como objetivo geral deste trabalho, buscou-
música se torna possível através das vibrações se estudar e analisar as contribuições da músi-
e dos recursos sensório-táteis. Ou seja, eles ca para o desenvolvimento cognitivo das
sentem a música através da pele e das suas crianças surdas de sete a onze anos, da 1ª e 2ª
vibrações. Ao explorar as potencialidades dos séries do ensino fundamental de uma escola
surdos na música, torna-se necessário reforçar pública municipal de Uberlândia – Minas Geri-
e explorar as sensações que nascem de infor- as, procurando descobrir o espaço que ela po-
mações recebidas pelas vias não-auditivas, deria ocupar no desenvolvimento cognitivo e
como as vibrações sentidas pelo corpo ou sen- escolar dessas crianças, para, posteriormente,
sações advindas do tato, que servem de apoio identificar e compreender o contato e/ou co-
no processo de percepção corporal e sonora nhecimento que este grupo de aprendizes pos-
deste grupo de pessoas. suía sobre a música. Constituíram os objetivos
O ser humano possui um potencial ilimitado, específicos a investigação e a análise de como
incluindo o potencial do surdo para a música, o professor utilizava a música no espaço esco-
apoiado em suas sensações táteis, corporais, e lar, de como a família desse grupo de crianças
até mesmo auditivas (resíduos auditivos). Segun- a utilizava no contexto familiar e, em caso afir-
do Almeida (2000), desenvolver a capacidade mativo, como isto acontecia.
sensorial, cognitiva e física do surdo poderá aju- Optou-se por realizar um estudo de caso
dá-lo na inserção social, pois, ao se demonstra- qualitativo, envolvendo alunos de uma escola
rem possibilidades e habilidades, adquire-se municipal da cidade que possuía um grande
respeito e conseqüentemente autoconfiança, es- número de aprendizes surdos e realizava um
tabelecendo-se, assim, condições para a intera- trabalho diferencial na área da surdez. A esco-
ção com seu meio social de maneira cada vez lha por esse tipo de metodologia aconteceu por-
mais espontânea e independente, já que se sentir que nela todas as partes envolvidas têm
capaz e participante é essencial para todos. liberdade de participar do processo de conheci-
É fundamental começar uma pesquisa con- mento e serem reconhecidas como sujeitos;
siderando que todas as pessoas podem apren- afinal, a construção do conhecimento é um pro-
der. O que varia são os caminhos utilizados por cesso coletivo, não se limitando a dados isola-
cada um. Cada pessoa possui experiências e dos, em que todos podem ter o direito de propor
aptidões internas diferenciadas que a ajudam a alternativas, soluções e estratégias propícias
fazer seus elos cognitivos e estruturar seus co- para o desenvolvimento da pesquisa.
nhecimentos. Como dizia Villa Lobos, “a músi- A escola objeto desse estudo recebia apren-
ca é um direito de todos” e, com tal frase, dizes surdos de diversos bairros da cidade, for-
conclui-se que, se a música é um direito de to- necendo-lhes atendimento na primeira fase do
dos, por que privar os surdos de entendê-la, dis- ensino fundamental. Ela possuía, ao todo, qua-
cuti-la, apreciá-la e, até mesmo, de tornar-se renta e oito alunos surdos matriculados em sa-
um músico? las regulares de surdos, segundo a série em
As pesquisas nessa área ainda estão sendo curso, e o seu corpo docente compunha-se de
delineadas, mas crê-se na sua importância para professores que conheciam e utilizavam a Lín-
o meio acadêmico-científico no sentido de au- gua de Sinais Brasileira como meio de comuni-
mentar as possibilidades de enriquecimento pro- cação e educação.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 171
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
172 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 173
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
cola precisa tomar para não assumir uma pos- impossível. Entretanto, ao se realizar um breve
tura clínico-terapêutica no seu fazer educativo, retrocesso envolvendo o mundo musical, pode-
que poderia ser altamente prejudicial no desen- se perceber como a surdez e a música fizeram
volvimento escolar destes educandos, como, por parte da vida de alguns musicistas que deixa-
exemplo, utilizar a música para aproximar o ram nome na história, como Beethoven (1770-
surdo do ‘mundo ouvinte’. 1827) e Smetana (1824-1884).
A influência da música é tão grande, que ela Bedrich Smetana nasceu na Boêmia em 02
atua constantemente sobre as pessoas, aceleran- de março de 1824. O grande sucesso do com-
do ou retardando, regulando ou desregulando as positor Smetana só chegou em 1866, quando
batidas do coração, relaxando ou contraindo os viu sua primeira ópera, Os “Brandenburgos na
nervos, influenciando a pressão sangüínea e o Boêmia”, agradar ao público. Ele escreveu uma
ritmo da respiração. Tanto que o próprio contato nova ópera, “Libuse”, e começou um projeto
com a música, ao ouvi-la e apreciá-la, exerce que o tornaria, anos mais tarde, uma celebrida-
uma interferência no estado emocional das pes- de internacional: o ciclo de poemas sinfônicos
soas. O estilo musical escolhido pelo sujeito em “Ma Vlast” (“Minha Terra”), o qual levou sete
determinado momento revela a sua situação anos para ser concluído. Nesse tempo, o com-
emocional. Um exemplo disso é que, quando as positor começou a ficar surdo, mas mesmo com
crianças choram ou querem dormir, seus pais a sua surdez conseguiu terminar o seu primeiro
colocam uma cantiga de ninar ou uma música quarteto de cordas, “Da Minha Vida”. No ano
clássica para elas se acalmarem. seguinte reuniria forças para escrever sua pe-
Segundo Willems (1964, apud ROSA, 1990, núltima ópera, “O Segredo”, e terminaria em
p. 69), cada um dos aspectos ou elementos da 1881 a oitava e última ópera. Smetana viveu os
música corresponde a um aspecto humano es- seus últimos dias de vida em um asilo para do-
pecífico, que ela mobiliza com exclusividade ou entes mentais, vindo a morrer em 1884. 4
mais intensamente: o ritmo musical induz ao Ludwig Van Beethoven se tornou um meni-
movimento corporal; a melodia estimula a afe- no prodígio no piano e logo atingiu um grande
tividade; a ordem ou a estrutura musical contri- sucesso profissional. Perto dos 30 anos come-
bui ativamente para a afirmação ou para a çou a perder a audição, ficando surdo em pou-
restauração da ordem mental no homem. co tempo. A surdez fez com que Beethoven se
Neste sentido, Rudd (1997) defende que a desesperasse e desacreditasse totalmente na
música afeta o nível de vários hormônios, como sua carreira de músico. Ele passou por grandes
o cortisol (responsável pela excitação e pelo crises e pensou até em se suicidar, mas dois
estresse), a testosterona (responsável pela anos depois, já conformado, decidiu retomar
agressividade e pela excitação) e a oxitocina seus trabalhos e compor novamente, e acabou
(responsável pelo carinho), assim como as en- sendo considerado um dos mais brilhantes com-
dorfinas e a serotonina (neurotransmissor que positores de todos os tempos.
faz a comunicação entre os neurônios). Beethoven utilizou uma corneta para atenu-
O exercício musical cria, também, um vín- ar a surdez, antes de ter de usar os cadernos de
culo entre linguagem, música e movimento, pro- anotações. Até 1814 a sua surdez não foi total,
piciando às pessoas se comunicarem e se permitindo a elaboração de numerosas obras-
expressarem através da música, e constituindo primas musicais; depois dessa data, foi a pró-
uma verdadeira fonte de prazer e emoção. pria surdez que abriu ao compositor as portas
de uma nova arte, totalmente abstrata. Foi o
tempo da sua única ópera, Fidélio, das grandes
3. Os grandes musicistas e a surdez sonatas para piano, dos monumentais concer-
4
A bibliografia completa encontra-se disponível no site
Quando se propõe pensar a relação entre http://almanaque.folha.uol.com.br/musicasmetana.htm -
música e surdez, logo se imagina uma prática acesso em 23/02/07.
174 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
tos, e dos quartetos para cordas do período De acordo com Almeida (2000), os recep-
médio. Foi, principalmente, a época das obras tores sensórios de pressão (tato profundo), pre-
que lhe deram maior popularidade: as suas re- sentes em torno dos músculos, articulações e
volucionárias sinfonias e, em especial, a Sinfo- tendões, possuem propriedades de ressonância
nia n. 5. nitidamente definidas. Sabendo explorar as sen-
Tanto Smetana como Beethoven não tiveram sações captadas pela pele, o professor auxilia o
suas composições afetadas pela surdez, pelo aluno a ampliar seu instrumental. As informa-
contrário, na surdez compuseram as suas obras ções transmitidas ao cérebro por esses órgãos
musicais mais difíceis e de maior sucesso. Em- permitem a percepção do ritmo e suas varia-
bora surdo, Beethoven compôs as últimas sona- ções. A pele é capaz de responder às ondas
tas e quartetos, estendendo a sua popularidade sonoras e pressões que lhe são impostas.
até a Sinfonia n. 9. Para compor a nona sinfonia Alguns métodos musicais desenvolvidos hoje
mandou cortar o pé do piano com uma serra, de com os surdos, não prevêem o uso da música
forma que este ficasse rente ao chão e ele pu- como fonte de realização humana, mas como
desse sentir as vibrações; assim, encostava o seu uma forma de imposição da cultura ouvinte, na
ouvido junto ao piano e ao chão para que pudes- busca incessante pela aquisição da linguagem
se sentir as notas musicais5 . Até hoje esses dois oral. Por isso, faz-se necessário esclarecer,
compositores são estudados e admirados pelos antes de tudo, que nessa pesquisa é fundamen-
seus contemporâneos. tal considerar a música como ferramenta esté-
tica, tendo como objetivo final o bem-estar e a
contribuição para o aprendizado das crianças
4. Perspectivas iniciais sobre a surdas. Para que isso aconteça, a música pre-
musicalidade da criança surda cisa ser uma atividade prazerosa que pode fa-
zer parte do seu mundo não como uma ação
Rosa (1990) discute a idéia de uma pedago- mecânica, repetitiva, que vise apenas o desen-
gia cognitivista da música em que o conheci- volvimento da fala e a aproximação com o mun-
mento musical se inicia por meio da interação do dos ouvintes6 .
com o ambiente, através de experiências con- Cervelline (1987) evidenciou, após vivênci-
cretas, que aos poucos levam à abstração. A as musicais durante o ano letivo, que a criança
criança se envolve integralmente com a músi- surda, independente do seu grau de perda audi-
ca e a modifica constantemente, transforman- tiva7 , é sensível à música, gosta dela e a dese-
do-a numa resposta estruturada. Ela também ja, manifestando-se, tocando, dançando e
menciona a música como meio de sensibiliza- cantando espontaneamente.
Infelizmente, pelo fato da maioria das pes-
ção para a educação de crianças surdas.
soas não considerar a capacidade do surdo en-
Discriminar, perceber e sentir são caracte-
quanto sujeito musical, existem poucas pesquisas
rísticas importantes para o surdo estabelecer a
e investimentos nessa área. Mas não convém
ligação entre seu corpo e a música. As potenci-
privá-lo da música por mero descrédito, é pre-
alidades das pessoas para a música não vêm só
ciso trabalhar para que professores e parentes
pela via auditiva, mas também pelas não-auditi-
vas, como a pele, o tato, a visão e os ossos.
5
A bibliografia completa encontra-se disponível no site
As ondas vibratórias, transmitidas pelo ar, che- http://www.classicos.hpg.ig.com.br/beethove.htm - acessado
gariam até a pele, aos músculos, aos ossos, atin- em 23/02/07.
gindo o sistema nervoso autônomo (simpático e 6
Esta pesquisa não concorda com a utilização da música
parassimpático), viabilizando ao surdo perceber como elemento de apoio à oralização e de aculturamento
dos surdos, na tentativa de aproximá-los dos padrões acei-
o ritmo, a acentuação, a altura, a intensidade e a tos pelos ouvintes.
duração. Essas percepções, integradas à percep- 7
O grau de perda auditiva na comunidade surda é um dado
ção interna de movimento, permitem a apreciação irrelevante. Os ouvintes é quem têm a prática de classificar
de elementos do som. (BENEZON, 1985, p. 136). os surdos segundo os graus de perda de audição.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 175
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
lhe propiciem o conhecimento sobre a música, Se a idéia que surge na concepção das pes-
cabendo aos próprios surdos decidirem se que- soas é a de que a música só faz parte do cotidi-
rem ou não manter essa relação. ano dos ouvintes, então, mais uma vez, o
O que normalmente acontece é que muitos imaginário social dirá o que o surdo pode ou
surdos chegam à idade adulta sem ao menos não fazer, pode ou não aprender e assumir como
saber o que é música, por considerá-la própria parte de sua vida. Isto acontece porque, para a
do mundo dos ouvintes, conceito este que lhes maioria das pessoas, a música está embutida
foi transmitido pela sociedade em geral. na idéia de ser ouvinte.
Para que o leitor tenha idéia da representa- O surdo, assim como qualquer ser humano,
ção que é imposta ao sujeito surdo pela socie- é sensível às críticas, aos fracassos e às desilu-
dade, Skliar (1997), abordando o conceito de sões. Se a surdez é condição para o fracasso e
educação especial, afirma: incompetência na visão das famílias, que per-
Se o critério para afirmar a singularidade educa- cepção os surdos terão de si mesmos na socie-
tiva desses sujeitos é o de uma caracterização dade? Se a idéia que estes possuem de música
excludente a partir de uma deficiência que pos- é aquela própria do mundo dos ouvintes, como
suem, então, não se está falando de educação, terão interesse por ela?
mas de uma intervenção terapêutica; se se acre- A música lhes é alheia, estranha e pouco
dita que a deficiência por si mesma é o eixo que importante, ela está fora do seu mundo e não
define e domina a vida desse sujeitos, então não
lhes desperta interesse. Mas como lhes des-
se estará construindo um verdadeiro processo
educativo, mas um vulgar processo clínico. pertar o interesse para um assunto que nunca
(SKLIAR, 1997, p. 10) foi mencionado, e sim simplesmente excluído à
sua revelia?
Vê-se que a visão que se tem das pessoas A sociedade ouvinte insiste em tirar as pes-
com necessidade especial é ainda excludente. soas com necessidades especiais do seu lugar
A obstinação do modelo clínico dentro da edu- histórico e social, descontextualizando-as. Com
cação especial impede que muitos passos se- o surdo isso se dá na medida em que lhe convi-
jam dados em direção à melhoria do aprendizado dam a ser um ‘ouvinte-falante’. As pessoas em
desses sujeitos. Se muitos profissionais conti- geral querem eliminar os vestígios das diferen-
nuarem a pensar que trabalhar com educação ças que elas próprias elegem, buscando elevar
especial é minimizar o sujeito e colocá-lo na o surdo à condição de ‘normalidade’.
condição de inferior, diferente e incapaz, como Skliar (2003), em uma palestra8 na Universi-
dar a ele uma educação produtiva? dade Federal de Uberlândia, discute o processo
Segundo Cervelline (2003), quando diagnos- da invenção do outro que se constitui numa ten-
ticada a surdez, o imaginário social traz uma re- tativa de desconstruir a naturalização que foi feita
presentação de surdo: aquele que não escuta, que do problema da deficiência: o problema da defi-
é imediatamente assumida pela família. Assim, ciência é o deficiente, deslocando-o para aquilo
a representação social que se tem de surdo é de que se configurou como campo do anormal.
um ser incompleto, menor e que tem dificulda- Segundo Skliar (2003), o que domina no pro-
des para aprender. Não está em pauta a pessoa cesso de formação de professores e de cida-
como um sujeito que possui um conjunto de pos- dãos é a pergunta sobre o outro, que nasce da
sibilidades que ultrapassam a surdez. suspeita original: “será que o outro é como eu?”
A família e a sociedade, na maioria das ve- Busca–se evidenciar que alguma situação que
zes, formam o conceito de surdez e recebem acontece com o outro não é igual à que ocorre
os seus impactos, construindo-o para o surdo. com as demais pessoas. A simples presença
Segundo este conceito, o sujeito surdo é carre-
gado de impossibilidades decorrentes da inca- 8
SKLIAR, Carlos. Aspectos Educacionais da Surdez. In:
Curso de formação de professores da educação espe-
pacidade auditiva, o que automaticamente cria cial, 1: dos caminhos percorridos aos desafios que se apre-
problemas para sua inserção social. sentam.
176 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
do outro gera uma pergunta sobre ele, que se trumento precioso para a compreensão total da
transforma em uma perturbação, porque se não música. Os surdos captam as suas vibrações e
houvesse o outro (cegos, surdos, deficientes, também podem cantar, se expressar, e dançar
analfabetos, estrangeiros...) o sistema funcio- no ritmo e na melodia.
naria; mas ao mesmo tempo o outro existe e foi A controvérsia do trabalho com música e
inventado para que as pessoas pudessem se sen- surdez é discutida por Cervelline (2003), que
tir mais confiáveis, mais racionais, mais segu- explica a busca incessante de uma família em
ras e mais perfeitas. O outro deficiente foi criado usar a música exclusivamente como recurso de
para melhor definir a normalidade, e se é dife- melhoria da fala. “A sociedade, pais e profissi-
rente, é ele que tem que se esforçar para se onais acabam por estabelecer vínculos com o
aproximar do mundo normal. sujeito surdo que afetarão sua auto-estima, con-
O sujeito surdo, ao ser compreendido como tribuindo para sua estigmatização, em vez de
aquele que não pode ouvir, é automaticamente auxiliá-lo na preservação da sua saúde mental
afastado da música e isso já é uma forma de e construção de uma personalidade sadia.”
tomá-lo como outro, porque, na visão da maio- (CERVELLINE, 2003. p. 65).
ria, a música é própria da cultura ouvinte, a qual Desta forma, a representação do surdo
define a cultura surda. São os ouvintes quem como ser musical se encontra impregnada pe-
definem o que os surdos podem ou não apren- los conceitos de normalidade e possibilidade que
der, se a música é importante ou não no seu a sociedade constrói. A representação que to-
desenvolvimento. Entretanto, pergunta-se: quem dos possuem é de que ser musical é um direito
tem o direito de definir a cultura surda? Se os e atributo dos ouvintes. Entretanto, é fundamen-
ouvintes têm o direito de decidir o que querem tal acreditar nos surdos e nas suas possibilida-
ouvir, o que querem fazer e o que querem sen- des, mostrando-lhes desde crianças que eles
tir, por que o surdo não pode ter o direito de também podem usufruir da música como os
escolher ter ou não a música no seu cotidiano? ouvintes, ou até mais que eles.
No início da pesquisa perguntou-se a três Surge então a pergunta: por onde se deve
surdos adultos, em entrevista indireta, o que eles começar? Primeiramente olhando o surdo a
achavam da música: se gostavam, o que senti- partir das suas possibilidades e não a partir da
am quando estavam em contato com ela, e um sua ‘deficiência’. Transportar a música para o
deles respondeu: “música é um pouco chato, cotidiano dos surdos pode ser um instrumento
não é interessante para os surdos”. Chegou- de trabalho do professor, uma fonte de satisfa-
se a conclusão posteriormente que nunca al- ção, de confiança e de aprendizado para estes
guém havia lhes explicado o que era a música. sujeitos. A música pode ser um dos caminhos
Iniciou-se uma grande discussão sobre o para a transformação da representação social
valor e o significado da música para o surdo. que muitas pessoas têm dos surdos, pois pen-
Será que uma sessão de musicoterapia tem sig- sá-los como sujeitos musicais exige uma modi-
nificado para o surdo? Será que a interpreta- ficação das representações já estabelecidas.
ção em língua de sinais tem sentido para ele? É fato que a música e suas formas de ex-
Ou ainda, será que a música sob o título de “aju- pressão têm passado por diversos discursos
da” aborda a surdez na tentativa de lhe propici- dentro da sociedade. A censura social impede
ar a alegria de participar do mundo ouvinte, o desenvolvimento da desenvoltura corporal, li-
proporcionando a oralização? mitando as suas condições de expressão, o que
Não se pretende com isso criticar os traba- faz com que os ouvintes temam um trabalho
lhos com música realizados com os surdos, mas utilizando a música em língua de sinais, uma vez
atentar para o significado que trazem para eles, que esta exige uma grande expressividade. Não
pois o sentido da música só pode ser percebido é qualquer pessoa que sabe interpretar esta lin-
pelos surdos através da língua de sinais e pelas guagem, e utilizá-la para interpretar músicas
vibrações. A letra e o ritmo constituem um ins- exige uma grande expressividade, movimento,
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 177
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
desinibição, teatralidade, o que recai sobre a O fracasso escolar recai mais intensamente
questão da censura social. sobre os surdos, embora eles não sejam culpa-
Cabe aos professores e à família acreditar dos disso, pois as metodologias desenvolvidas
nas possibilidades do surdo, aproximar a músi- pelo professor e pela escola muitas vezes são
ca da sua realidade e rever os conceitos que inadequadas, comprometendo o seu desenvol-
elegeram e criaram para si. Os surdos têm con- vimento cognitivo.
dições de aprender como qualquer outra pes- Skliar (1998), relatando o método de educa-
soa e a música poderá trazer novas perspectivas ção bilíngüe9 para os surdos, enfatiza a neces-
para o seu universo, uma vez que lhes possibili- sidade de um novo olhar sobre a surdez que
ta sentir o prazer e a satisfação que todos sen- possibilitaria refletir sobre algumas questões
tem quando ouvem uma boa música. ignoradas nesse território, entre as quais se des-
tacam: as políticas de significação dos ouvintes
sobre os surdos; o amordaçamento da cultura
5. Música: arte e expressão huma- surda; os mecanismos de controle através dos
na enquanto ação pedagógica para quais se obscurecem as diferenças; o processo
crianças surdas pelo qual se constituem e ao mesmo tempo se
negam as múltiplas identidades surdas; a “ou-
Nas discussões sobre o sujeito surdo, por vintização”10 do currículo escolar; a burocrati-
mais que se escondam os propósitos, o maior zação da língua de sinais dentro do espaço
objetivo de muitos métodos educacionais e de escolar; e a necessidade de uma profunda re-
muitas famílias tem sido o de levá-lo à condi- formulação nos projetos de formação de pro-
ção de ouvinte-falante. Os métodos educativos fessores (surdos e ouvintes), entre uma série
buscam mais uma reabilitação do que a própria de fatores.
educação, no intuito de aproximar o surdo do Para a sociedade atual é fundamental capa-
normal, que, neste caso, são os ouvintes. citar o surdo para sua inserção no mercado de
Soares (2002) observou que a educação dos trabalho e no mundo dos ouvintes. Métodos,
surdos havia tomado para si, como principal técnicas e instrumentos têm sido utilizados para
função, o trabalho terapêutico de desenvolvi- torná-los mais eficientes e produtivos, o que na
mento da audição e dos órgãos fonoarticulató- maioria das vezes não leva em consideração o
rios, colocando em segundo plano o trabalho respeito à identidade e à cultura surda.
destinado à escolarização. A responsabilidade Esta pesquisa, como dito antes, não teve
principal de possibilitar ao aluno surdo o acesso como meta levar o surdo à condição de ouvin-
aos conhecimentos previstos no currículo es- te, mas propiciar experiências prazerosas e di-
colar se tornou, então, secundária. Esta autora versificadas. Para Cervelline (2003. p. 81), “A
ainda relata o fracasso escolar do aluno surdo música pode estar presente na vida do surdo,
e os procedimentos pedagógicos utilizados na enriquecendo suas experiências e, basicamen-
sua educação. te, possibilitando a expressão e vivência de es-
Mas, para se entender de onde surge esse tados afetivos, de prazer e de auto-realização,
fracasso, Soares (2002) coloca a questão de que contribuindo para a construção positiva de uma
este se inicia na própria formação do professor. auto-imagem e para o seu desenvolvimento
emocional.”
Se aprendemos nos cursos de especialização
que a surdez não é impedimento para aprendi- 9
Segundo Skliar (1998), a educação bilíngüe é algo mais que
zagem e que o conteúdo escolar deve ser o o domínio de duas línguas. O foco das análises sobre essa
mesmo da educação comum, por que não o te- educação para os surdos deve-se deslocar dos espaços esco-
mos oferecido aos alunos surdos? Por que ra- lares, das restrições formais e metodológicas, para locali-
zar-se nos mecanismos e relações de poder e conhecimen-
zão negamos a escolaridade a quem têm direito tos situados dentro e fora da escola.
como qualquer outro aluno que entra na esco- 10
Ouvintização: termo utilizado por Skliar (1998) para
la? (SOARES, 2002. p. 15) denominar a sujeição aos valores ouvintes pelos surdos.
178 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
Segundo a autora, em pesquisas anteriores balho com surdos, principalmente se não dominar
constatou-se que a vivência da música e a ex- bem a língua de sinais, e evitar fazer compara-
pressão da musicalidade se apresentam como ções do surdo com o ouvinte. Será necessário
possibilidades do sujeito surdo. A vivência mu- entender que ele terá que trabalhar com um outro
sical se revelou extremamente benéfica, no sen- canal comunicativo: a linguagem gestual e visual,
tido de proporcionar-lhe prazer, alegria e seguida de recursos sensório-táteis. A compara-
realização pessoal. No entanto, o que se vê é ção inibe a criança surda de prosseguir neste apren-
que esta vivência, tão importante para a reali- dizado e esta acaba por internalizar o estigma de
zação desse sujeito, tem sido sistematicamente ser incapaz para a música.
retirada de sua vida, seja na escola, seja no lar. Um instrutor surdo relata bem essa idéia, ao
As entrevistas com professores, famílias e explicar que tinha contato com a música na sua
alunos evidenciaram que a música nunca havia infância, mas aos poucos foi desgostando dela
sido explicada para as crianças surdas, e que e ficando receoso em tocar um instrumento, por
geralmente estas não gostavam muito de estu- achar muito difícil e por não ter recordações
dá-la. As crianças entrevistadas disseram que muito boas de suas experiências musicais, ale-
a primeira idéia partiu dos pais, mas que hoje já gando que não era muito bom nisso, mas que
gostavam um pouco de música, como se pode tinha vontade de aprender por causa de seu ir-
perceber nas entrevistas. mão que era músico:
Gosto de música e acho a música muito legal... Eu já toquei piano, só que eu saí porque não
(pausa). É... Gosto só um pouco, muito não. (En- dava conta de seguir o ritmo. A professora fala-
trevista com uma aluna). va mais rápido, mais lento e eu não entendia.
(Fala de um professor surdo entrevistado).
Gosto só um pouquinho. (Entrevista com uma
aluna). Nesse depoimento, a visão de seu irmão
Apenas na última entrevista a aluna falou como músico e de sua professora acabaram por
espontaneamente que fazia música porque gos- tornar a sua vivência musical desastrosa, por-
tava e não porque os pais queriam: que a representação social que ele próprio con-
cebia era a idéia de que ser musical é ser
Gosto muito e faço conservatório. Minha mãe
ouvinte. A música, para ele, parecia ser privilé-
falou para eu ir lá e hoje eu gosto muito e não
faço de obrigação. (Entrevista com uma aluna). gio somente de quem ouvia, o que o fez perder
o contato com ela e deixá-la excluída de seu
Ao analisar essas duas falas acima, pode- mundo. Além disso, a impaciência e o descré-
se aliá-las à questão colocada por uma profes- dito o fizeram sentir o receio de não correspon-
sora entrevistada: der ao esperado.
Devemos pensar até que ponto eles fazem isso A surdez tem um rótulo que necessita ser
para eles ou pra agradar os pais. (Entrevista superado. Os pais consideram tudo muito difícil
com uma professora ouvinte). para os seus filhos. Vêem a música para os sur-
Abre-se um parêntese aqui para pontuar dos, mas a representação que eles têm não con-
novamente a não aceitação dos valores dos templa a possibilidade de vê-los exercê-la
surdos pelos pais, e a tentativa de aproximá-los prazerosamente em sua vida. Porém, algumas
dos valores ouvintes, utilizando-se da música mães mostraram-se empenhadas em propiciar o
como uma forma de proporcionar o desenvol- contato de seus filhos com a música, relatando o
vimento da oralização e da percepção auditiva. interesse que eles têm por ela ao ligar o som, ao
Diante disso, não há satisfação quando os sur- pedir pela música e ao demonstrar interesse em
dos entram em contato com a música, pois eles aprender algum tipo de instrumento.
não a incorporam à sua vida. Às vezes ela dança uma música que nem é de
É necessário que o professor de música tenha dançar, mas ela está dançando. Se eu paro, ela
paciência e disponibilidade para realizar um tra- quer que eu continue, ela quer tocar e fica com
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 179
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
a mão sobre o teclado. Eu tenho muita vontade Não sei. É difícil. (Fala de uma aluna surda en-
que ela toque, de colocar ela na aula de músi- trevistada).
ca. (Fala de uma mãe entrevistada).
A escola é diferente da música, acho que não
As respostas do pai surdo e da mãe ouvinte dá pra juntar os dois. (Fala de uma aluna surda
evidenciaram um ponto coincidente, em que não entrevistada).
se sabe se a música é prazerosa para seus fi- Essas crianças não conseguiam visualizar a
lhos ou se constitui mais uma imitação de for- música como parte de sua vida escolar e, tal-
ma mecânica: vez, nem imaginassem o quanto esta poderia
Eu não sei se eles dançam porque vêem todos ser utilizada para ajudá-las no aprendizado, na
dançando, ou porque sentem e gostam mesmo aquisição de cultura, na expressividade. Essa
(Fala de uma mãe entrevistada). idéia ocorre devido à ausência da música no
contexto escolar, nos trabalhos pedagógicos com
Quando está passando a música ele continua aprendizes surdos. É uma manifestação cultu-
brincando, não dá muita bola, imita se vê e
copia, fica imitando as pessoas (Fala de um pai
ral pensar que a música é adequada ao traba-
entrevistado). lho apenas com crianças ouvintes.
E, por último, nas entrevistas dos profissio-
O interessante foi que todos os pais falaram nais que trabalham com essas crianças, identi-
que achavam que a preferência de seus filhos ficou-se que o único espaço em que ela está
era pela música mais agitada, barulhenta, mas, presente é nas comemorações, pois sendo uma
nas entrevistas com as crianças, notou-se que escola que trabalha com surdos e ouvintes, a
a preferência era mais pela música calma e len- música atende exclusivamente aos interesses
ta, diferente do que foi encontrado em algumas dos ouvintes, e não dos surdos. Estes comparti-
referências bibliográficas que tratam da rela- lham da música por mera coincidência.
ção entre música e surdez, como na fala da aluna Nas salas de aula, a música não é trabalha-
entrevistada: da e fica ao alcance dos surdos apenas em da-
Gosto de música mais lenta e menos agitada. tas comemorativas, como se vê na entrevista
(Entrevista com aluna). com professores:
Se para os ouvintes a música lenta acalma e Eles cantam, dançam, fazem coreografias nas
conforta, por que para o surdo isso haveria de festas aqui da escola. Dançam country nas fes-
ser diferente? Não se pretende aqui, fazerr no- tas juninas, dia das mães, interpretam o hino
vamente uma pesquisa pré-rotulada dizendo que nacional usando a LIBRAS e pedem para pas-
sar os CDs de Sandy e Júnior nas festas. (Fala
só é possível ao surdo perceber instrumentos de uma professora entrevistada).
de percussão, devido à sua maior possibilidade
de proporcionar maior impacto sonoro. Nessa entrevista, pode-se perceber o mais
Todas as crianças acharam que a música importante: que o pouco contato que as crianças
era uma atividade separada da vida escolar, tiveram com a música mostrou-se muito provei-
e que esta não tinha relação com seu apren- toso, uma vez que elas demonstraram interesse
dizado e desenvolvimento. Isso também se e envolvimento, utilizando a música como fonte
deve ao fato de os professores não trabalha- de prazer, emoção, cultura e entretenimento.
rem com atividades musicais no seu cotidia-
no e nem lhes explicar o que é a música. Por 6. Considerações Finais
exemplo, na fala das alunas entrevistadas,
quando lhes foi perguntado se achavam que Através da educação os surdos poderão ter
a música poderia ajudá-las no desempenho acesso a um avanço profissional, social e inte-
escolar, responderam: lectual. Mas a educação que se destina a esses
São coisas diferentes, ah, é diferente, não sei. sujeitos é permeada de descréditos e métodos
(Fala de uma aluna surda entrevistada). que tentam aproximá-los do mundo dos ouvin-
180 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Marisa Pinheiro Mourão; Lázara Cristina da Silva
tes; o que, automaticamente, bloqueia seus di- co é preciso ter talento, dom e bom ouvido.
reitos de cidadão. Neste caso, como explicar o magnífico traba-
Desta forma, torna-se importante ressaltar lho de Beethoven e de Smetana, na história dos
que um bom processo de aprendizagem depen- grandes musicistas, que não tiveram um ‘bom
de da comunicação entre aluno e professor, pois ouvido’ para a maioria das pessoas, mas, em
ambos são produtores de conhecimento. O que compensação, deixaram as mais brilhantes
vem acontecendo é que os surdos lidam com obras musicais, provando que a música tam-
seus professores ouvintes, seus fonoaudiólogos bém acontece na vibração dos acordes, no si-
ouvintes e com uma grande parte da sociedade lêncio dos sons e na interiorização dos senti-
ouvinte, que, na maioria das vezes, querem lhe mentos? Afinal, não existiria som se não
ditar o que aprender, o que podem, para o que houvesse o silêncio.
têm potencial, o cargo que podem alcançar, Propiciar a música na infância pode ser uma
deixando a cultura surda cada vez mais amor- ferramenta fundamental para o surdo. Este pode-
daçada. Quando sentem que os ouvintes que- rá utilizá-la em sua formação, no seu desenvolvi-
rem convidá-los a participar do seu mundo e mento, na busca de sua expressão e aprendizado.
retirá-los da condição de surdos, não é surpre- A música é uma forma de comunicação, expres-
endente rejeitarem o “convite”, porque eles têm são e cultura, e a sua prática pode proporcionar
uma identidade própria que merece ser respei- diferentes vivências para o surdo, contribuindo
tada e não esquecida. para o seu desenvolvimento cognitivo.
A educação dos surdos precisa levar em Porém, identificou-se nessa pesquisa que a
consideração as necessidades sociais, intelec- música é uma atividade inconstante na vida da
tuais e o interesse desses aprendizes, constru- maioria das crianças surdas, e que ela está pre-
indo um processo educativo que envolva todas sente na escola primeiramente para proporcio-
as partes. Não é um olhar caridoso que mudará nar satisfação aos ouvintes. A representação
essa situação, mas a compreensão do surdo em social que se abate sobre os sujeitos surdos lhes
sua totalidade sócio-histórica e cultural. priva do contato com a música como fonte de
Essa pesquisa buscou contribuir para que as prazer, representação esta que acaba por afe-
crianças surdas tenham novos conhecimentos tá-los e fazê-los se distanciar da música.
para transformar e explorar a sua realidade Por a música estar ausente do cotidiano da
social, encaminhando-as para serem produto- maioria das crianças surdas e não ser trabalha-
ras de cultura, mostrando-lhes diversas formas da na prática escolar, não foi possível confir-
de comunicação. mar neste trabalho as suas contribuições para
A música foi escolhida porque é uma ativi- o desenvolvimento cognitivo, pois os professo-
dade natural do ser humano, constitui fonte de res ainda não acreditam que a música possa
prazer e de emoção e foi excluída da educação ser uma ferramenta de auxílio pedagógico e,
das crianças surdas por simples descrédito. Ela tampouco, que possa ajudar os surdos no seu
poderá ajudar na construção da identidade sur- desempenho escolar.
da, utilizando a língua de sinais, integrando so- Por tudo isso, a música precisa ser trabalha-
cialmente os surdos, e possibilitando diferentes da de forma atrativa e prazerosa na infância, para
formas de expressão e comunicação. que a criança não se distancie dela como se re-
Acreditar no surdo e nas suas possibilida- presentasse uma experiência mal-sucedida, im-
des é requisito principal para começar a colo- possível e desprazerosa. Mesmo que o professor
car em prática este estudo. Discutir a repre- que atua na escola não tenha formação profissi-
sentação social de ‘ser musical’ que freqüenta onal na área da música, ele pode elaborar outros
o cotidiano na sociedade é fundamental para a tipos de experiências, como trabalhar a letra, a
sua execução, pois a musicalidade parece ser expressão corporal, a interpretação em língua de
um atributo e possibilidade dos ouvintes, que sinais, contanto que não exclua a vivência musi-
estão embutidos na idéia de que para ser músi- cal da vida de seus alunos.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007 181
No silêncio dos sons: música e surdez: construindo caminhos
Pensar a música e a surdez exige uma re- para a maioria das pessoas surdas, o que leva,
flexão do imaginário já construído de que ser conseqüentemente, à retirada da música da sua
musical é ser ouvinte. A valorização e o incen- vida social, principalmente escolar, fazendo
tivo da família e professores constituem o pri- com que existam poucas pesquisas e poucos
meiro passo para fazer os surdos acreditarem profissionais na área. A família tem um papel
nas suas possibilidades musicais, pois a surdez importante ao possibilitar o contato do surdo
não é impedimento para se usufruírem os pra- com a música desde o lar, incentivando-o, va-
zeres da música. lorizando-o e acreditando em seu potencial
Os pais manifestaram interesse em propor- musical.
cionar a música para seus filhos desde a infân- O mais importante de tudo foi saber que as
cia, porque estão buscando caminhos diferentes crianças têm interesse e acham a música atra-
e atrativos para lhes proporcionar um melhor tiva e divertida. Cabe aos profissionais que li-
aprendizado. dam com os surdos a responsabilidade de
A maior dificuldade encontrada em possi- socializar a música constantemente e redimen-
bilitar essa vivência musical foi o fato de a sionar a representação social que transmite a
prática musical ser considerada impossível idéia de que ser musical é ser ouvinte.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Antônio Carlos. Surdez, paixão e dança. São Paulo: Olho d’água, 2000.
BENEZON, R. O. Manual de musicoterapia. Tradução de C. Nastari. Rio de Janeiro: Enelivros, 1985.
BRASIL, Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Referencial curricular
para educação infantil. Brasília: MEC/SEF,1998.
CERVELLINE, Nadir Haguiara. A criança deficiente auditiva e suas reações à música. São Paulo: Moraes,
1987.
CERVELLINE, Nadir Haguiara. A musicalidade do surdo. São Paulo: Plexus, 2003.
ROSA, Nereide Schilaro Santa. Educação musical para a pré-escola. São Paulo: Ática, 1990.
RUUD, Even. Música e saúde. São Paulo: Summus, 1986.
SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: UNESP, 1991.
SKLIAR, Carlos (Org). Educação e exclusão: abordagem sócio-antropológica em educação especial. Porto
Alegre: Mediação, 1997. (Cadernos de autoria, n. 2)
_____. (Org). Pedagogia (improvável) da diferença: e se o outro não estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A,
2003.
_____. Aspectos educacionais da surdez. In: Curso de formação de professores da educação especial, 1:
dos caminhos percorridos aos desafios que se apresentam. Uberlândia , 5 dez. 2003. (Mimeografado).
SOARES, Maria Aparecida Leite. A educação do surdo no Brasil. São Paulo: Autores Associados, 1999.
_____. A escolarização da criança surda e o professor especializado. Fórum, Rio de Janeiro, v. 7, p. 11-17,
ago/set, 2002.
VILELA, Elaine M.; MENDES, Iranilde J.M. Entre Newton e Einstein: desmedicalizando o conceito de
saúde. Ribeirão Preto: Holos, 2002.
Recebido em 21.09.06
Aprovado em 26.01.07
182 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 169-182, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
RESUMO 1
ABSTRACT
* Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos. Pos-doutoranda pela Universidade Federal
de São Carlos e Unesp de Botucatu. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Educação Espe-
cial – Universidade Federal de São Carlos, Rodovia Washington Luíz, Km 235, Caixa Postal 676, Monjolinho – São
Carlos/SP. E-mail: elisandra.fono@uol.com.br
** Doutora em Psicologia pela USP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação Especial – Universidade
Federal de São Carlos. E-mail: tmsrose@terra.com.br
1
Artigo baseado em dissertação desenvolvida pela primeira autora sob orientação da segunda autora, com apoio da CAPES,
no Programa de Pós-graduação em Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 183
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
children from two public schools, mean age 9 years and 8 months old, participated
in this study. Story books and scoring procedures were used for the assessment
performed. Descriptive and correlational statistical analyses were applied,
showing that, in a general manner, the children presented delay in the acquisition
of learning in the emergent literacy period, in the view of research results
performed in preschool and school ages. Furthermore, the data revealed the
efficacy and importance of the material used for further research aimed at
developing educational resources.
Keywords: Emergent literacy – Learning disabilities – Special education
184 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 185
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
conta de livros favoritos entre crianças de dois linguagem escrita vividas normalmente pelas cri-
a seis anos de idade foi detalhada no estudo de anças sem deficiências (VAN KLEECK, 1990;
Sulzby (1985), e vem sendo referencial para KOPPENHAVER et al., 1991; KATIMS, 1994);
novas pesquisas que tomam como base o en- e a possibilidade de tornar os ambientes familiar
tendimento desta habilidade de letramento e escolar destas crianças favorecedores do pro-
emergente por crianças no processo de aquisi- cesso de letramento, modificando os programas
ção da textualidade. Ela identificou que o pa- e materiais utilizados nas escolas (SAINT-LAU-
drão inicial da leitura de faz-de-conta consiste RENT; GIASSON; COUTURE, 1998). Nestes
em lidar com as páginas do livro como unida- estudos o que mais se observou foi a falta de
des discretas, não se chegando a formar histó- consciência dos educadores acerca da impor-
rias, sendo que há uma evolução até o lidar com tância do letramento emergente e de como as
as páginas de maneira articulada, formando a atividades diárias baseadas neste paradigma po-
seqüência da história. A leitura de faz-de-con- deriam ser usadas para promover o interesse e o
ta da criança progride do uso da fala semelhan- engajamento das crianças em atividades de en-
te à linguagem oral ao da fala semelhante à sino da leitura e escrita.
linguagem escrita. Com isto a autora conseguiu Levando-se em consideração a importância
categorizar os padrões evolutivos da leitura de dos trabalhos desenvolvidos nesta área, o pre-
faz-de-conta na seguinte seqüência: uso de es- sente estudo teve como objetivo obter a carac-
tratégias de rotulação e comentários das figu- terização de um conjunto de habilidades de
ras presentes nos livros; uso de explicações letramento emergente de crianças com dificul-
sobre a seqüência de figuras; criação de histó- dades de aprendizagem, que freqüentavam clas-
rias contendo os elementos da linguagem oral; ses especiais, bem como verificar a eficácia do
criação de histórias contendo os elementos da material utilizado para esta caracterização e
linguagem escrita; e leitura convencional de his- principalmente para estas crianças, no intuito
tórias. de fornecer subsídios para futuras pesquisas e
A implicação educacional básica derivada melhoria de recursos educacionais.
das pesquisas da área de letramento emergen- A caracterização envolveu os seguintes as-
te é que a criança aprende a ler, lendo, e a es- pectos: a) as hipóteses utilizadas pelas crianças
crever, escrevendo. Toda criança tem potencial ao escreverem; b) o domínio dos conceitos bá-
para alcançar determinado nível de leitura e sicos sobre a escrita; c) o conhecimento acer-
escrita, e o desenvolvimento deste potencial ca da concepção de histórias, da sua estrutura
depende quase inteiramente das oportunidades e o uso da estrutura de história na produção
fornecidas nos ambientes familiar e escolar. textual oral e no recontar; e d) o grau de cons-
Infelizmente, as estatísticas brasileiras têm ciência acerca das características da linguagem
mostrado índices elevados de crianças que che- escrita durante a leitura de faz-de-conta.
gam ao final do ensino fundamental com difi-
culdades nas habilidades de leitura e escrita2 .
Vários fatores podem estar relacionados a isto, MÉTODO
e um deles pode ser o repertório ligado ao le-
tramento emergente. Participantes
Os estudos sobre o processo de letramento Participaram deste estudo vinte crianças com
emergente têm apresentado importantes impli- dificuldades de aprendizagem (não sabiam ler e
cações para a área de educação especial, como: escrever) que, na época do estudo, freqüenta-
a revisão da noção de que crianças com defici- 2
Para averiguar estes índices, aconselha-se pesquisar os
ências cognitivas, físicas e de comunicação são dados apresentados pelo Instituto Nacional de Estudos e
incapazes de aprender a ler e a escrever; a valo- Pesquisas Educacionais (Inep), do Ministério da Educação,
sobre o SAEB de 2003. O relatório foi publicado em junho
rização da noção de que é necessário propiciar de 2004. Ver maiores detalhes no site do MEC:
às crianças deficientes as experiências com a www.mec.gov.br.
186 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
vam classes especiais de duas escolas estaduais cado do travessão. Tais conceitos foram gra-
de ensino fundamental do interior de São Paulo. vados em áudio e protocolados para futura
Os oito participantes (todos meninos) de uma análise (ver apêndice);
escola e os 12 (três meninas e nove meninos) da (3o) Avaliação da produção oral de his-
outra escola possuíam de nove anos e três me- tórias – adaptada do estudo de Morrow (1986).
ses a dez anos e três meses de idade. Para esta avaliação a pesquisadora utilizou cin-
Houve consentimento formal dos pais dos co motivadores de textos, ou seja, a figura de
participantes por meio do termo de consenti- um cachorro, de um menino ou menina, de uma
mento, que esclareceu todos os procedimentos casa, de um carro e de uma bruxa, para que a
que seriam realizados durante o estudo, como criança elaborasse uma história a partir da es-
filmagem e gravação em fita cassete, além de colha de três deles. As produções foram gra-
futura publicação dos dados obtidos. Também vadas em áudio, transcritas e protocoladas como
houve aprovação pela Comissão de Ética da registro dos dados (ver apêndice);
Instituição da qual a pesquisadora fazia parte, (4o) Avaliação do recontar de histórias –
sob o no 003/02. baseada nos estudos de Morrow (1986) e Za-
notto (1996). O recontar das crianças foi avali-
Materiais e procedimento de coleta dos
ado diante de quatro situações com variações
dados
quanto ao grau de familiaridade da criança com
Foram realizadas as seguintes avaliações o livro e quanto ao grau de apoio deste para a
com seqüência pré-estabelecida: realização da atividade. Na primeira situação,
(1o) Avaliação da concepção da escrita a criança recontou a história de um livro famili-
– adaptada dos estudos de Ferreiro e Teberosky ar, podendo tê-lo como apoio para acompanhar
(1986) e De Rose et al. (1998). Foi solicitado a atividade. Na segunda situação, a criança tam-
da criança que escrevesse, em folha de papel, bém recontou uma história familiar, porém não
o nome de quatro objetos (telefone, banana, teve o livro como apoio. Na terceira situação, a
mesa e pão) e de duas frases (Pitoco come bolo. criança recontou uma história não familiar, ten-
Ele bebe limonada.) ditadas pela pesquisadora; do o livro como apoio. Na quarta situação, a
(2o) Avaliação dos conceitos sobre a es- criança recontou uma história não familiar, não
crita – adaptada do estudo de Clay (1985). tendo o livro como apoio. Em cada situação de
Durante a leitura de um livro de história infan- recontar a criança escolheu um livro diferente
til pela pesquisadora, a criança foi solicitada a para que a pesquisadora o lesse, sendo que para
demonstrar, oralmente seu conhecimento so- os recontares familiares os livros selecionados
bre 15 conceitos básicos que lhe foram ques- foram lidos quatro vezes, em sessões distintas,
tionados: 1) localização da frente do livro; 2) enquanto que os livros não familiares foram li-
conceito de início e término do texto escrito; dos somente uma vez. Cada uma das histórias
3) localização de texto para leitura (diferenci- recontadas foi gravada em áudio, transcrita e
ação entre escrita e desenho); 4) discrimina- protocolada para registro (ver apêndice);
ção e localização de letras maiúsculas e (5º) Avaliação da leitura de faz-de-conta
minúsculas; 5) discriminação e localização de – baseada nos estudos de Sulzby (1985). Os
uma e duas letras; 6) discriminação e localiza- dados desta atividade são os mesmos da pri-
ção de uma e duas palavras; 7) conceito de meira situação de recontagem de história do item
letra maiúscula; 8) noção de início de leitura à acima (recontar de livro familiar com apoio do
esquerda; 9) noção de direção de leitura da mesmo). Segundo a autora citada, este tipo de
direita para a esquerda; 10) noção de direção situação pode dar melhores indicativos de como
de leitura ao término da linha; 11) emparelha- anda o grau de consciência da criança acerca
mento de leitura-palavras; 12) significado do das características da linguagem escrita. Por
ponto de interrogação; 13) significado do pon- este motivo a escolha da avaliação somente com
to final; 14) significado da vírgula; 15) signifi- esta situação de recontar. A opção de se utili-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 187
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
zarem os mesmos dados coletados anteriormen- cas foi possível categorizar as tentativas emer-
te foi feita na intenção de não deixar todo o gentes de leitura conforme o método classifi-
procedimento de coleta mais extenso do que catório proposto por Sulzby (1985) e calcular a
parecia ser. porcentagem de crianças para cada um dos seus
tipos: (1) tentativas governadas pela gravura,
Análise e tratamento dos dados
não formando histórias (1.1- descrição e co-
A análise e tratamento dos dados de cada mentário; 1.2- acompanhando ou seguindo a
avaliação foram realizados da seguinte forma: ação); (2) tentativas governadas pela gravura,
(1º) Concepção da escrita: as produções formando histórias com características de lin-
gráficas foram classificadas nos níveis pré-si- guagem oral (2.1- contar histórias em forma de
lábico, silábico, silábico-alfabético e alfabético, diálogo; 2.2- contar histórias em forma de mo-
e calculou-se a percentagem de crianças que nólogo); (3) tentativas governadas pela gravu-
se encontrava distribuída em cada nível; ra, formando histórias com características de
(2º) Conceitos sobre a escrita: a análise linguagem escrita (3.1- leitura e contar simultâ-
dos protocolos de registro possibilitou o cálculo neo; 3.2- leitura similar à história original; 3.3-
da porcentagem de acertos para cada conceito leitura com as palavras da história); (4) tentati-
avaliado; vas governadas pela escrita (4.1- recusa em
(3º) Produção oral e recontar de históri- ler, baseada na consciência da escrita; 4.2- lei-
as: as transcrições destas avaliações foram pro- tura dos aspectos da escrita; 4.3- leitura hesi-
tocoladas e pontuadas em função de quatro tante; 4.4- leitura independente).
categorias estruturais (cenário, tema, enredo e
resolução) e de uma quinta categoria que ana-
lisa a seqüência destas últimas (seqüência), pro- RESULTADOS
postas por Morrow (1986). Tais categorias eram
compostas por itens que as caracterizavam, Primeiramente, as respostas apresentadas
podendo apresentar as seguintes pontuações: pelos alunos nas avaliações foram classifica-
zero ponto quando havia ausência do item; ½ das de acordo com as categorias pertinentes a
ponto quando o item apresentava-se incomple- cada uma delas. Depois, foram calculadas as
to e um ponto quando o item apresentava-se porcentagens de alunos cujas respostas foram
completo. Como o número de itens analisáveis classificadas em diferentes categorias.
não era o mesmo para todas as categorias, foi O Gráfico 1 apresenta as porcentagens de
feita a média ponderada (Total ajustado = Total da alunos que se distribuíram nas categorias pré-
categoria
/ Número de itens x 10) do somatório dos itens silábica (pré-silábica 1 e 2), intermediária
caracterizados (Total da categoria = ∑pontos dos itens), (transição da pré-silábica 2 para silábica), silá-
sendo que cada categoria poderia receber até bica-alfabética e alfabética, relativas aos di-
10 pontos e a estrutura completa 50 pontos (ver ferentes níveis de concepção da escrita.
apêndice); Os dados mostram que a maioria dos parti-
(4º) Leitura de faz-de-conta: como dito cipantes encontrava-se no nível pré-silábico
anteriormente, esta análise baseou-se somente quanto ao processo de construção da escrita.
no recontar de história familiar com apoio do Sessenta e cinco por cento dos participantes
livro, cujas transcrições foram caracterizadas apresentaram nível de concepção pré-silábico
de acordo com o que a criança parecia consi- da escrita (20% no nível pré-silábico 1 e 45%
derar como fonte de informação no livro: a) a no nível pré-silábico 2), e 20% apresentaram
gravura ou a escrita; b) se as construções eram concepção classificada como de transição do
mais semelhantes à escrita do que à fala, e c) nível pré-silábico 2 para o nível silábico. Uma
se os modelos de entonação soavam mais se- porcentagem pequena dos alunos dominava
melhantes à leitura do que à conversação ou ao concepções mais avançadas: 5% o nível silábi-
contar histórias. Com base nestas característi- co-alfabético e 10% o nível alfabético.
188 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 189
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
190 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
A categoria tema foi incluída no recontar Para a categoria enredo verifica-se que,
de história familiar com apoio (2a) por 42,1% para o recontar familiar com apoio (2a),
dos participantes de forma completa, e por 36,8% dos participantes incluíram-na em sua
57,9% de forma incompleta, e no sem apoio história de forma completa, e 63,2% de forma
(2b) por 21% de forma completa, e por 79% de incompleta, e, no sem apoio (2b) 10,5% o fize-
forma incompleta; no recontar de história não ram de forma completa, e 89,5% de forma in-
familiar com apoio (2c) por 15,8% de forma completa. No recontar não familiar com
completa, e por 84,2% de forma incompleta, e apoio (2c) e sem apoio (2d) não houve a in-
no sem apoio (2d) por 5,2% de forma comple- clusão da categoria de forma completa pelos
ta, e por 63,2% de forma incompleta. participantes avaliados. Porém 89,5% destes
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 191
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
incluíram a categoria de forma incompleta no apoio (2a), embora todos os participantes tenham
recontar com apoio, e 94,7%, no sem apoio. incluído as quatro categorias estruturais em suas
Também pode ser observado que 42,1% dos histórias, sejam elas de forma completa ou incom-
participantes incluíram a categoria resolução no pleta, quando se espera que os resultados mostrem
recontar familiar com apoio (2a) de forma com- 100% para a categoria seqüência, 5,3% dos parti-
pleta, e 57,9% de forma incompleta, e no recon- cipantes não tiveram a seqüência estrutural consi-
tar sem apoio (2b), 36,8% de forma completa e derada completa, pois apresentaram categorias fora
36,9% de forma incompleta; o recontar não fa- da ordem correta. Portanto, apenas 94,7% apre-
miliar com apoio (2c) foi incluído por 15,8% de sentaram todas as categorias em suas histórias de
forma completa, e 73,7% de forma incompleta; e, forma completa ou incompleta e na ordem correta.
no recontar sem apoio (2d), não houve inclusão Para o recontar familiar sem apoio (2b),
completa pelos participantes, porém 42,1% inclu- 68,4% dos participantes incluíram todas as ca-
íram a categoria de forma incompleta. tegorias estruturais em suas histórias e na or-
No geral, os gráficos mostram que todos os dem correta, mesmo que estas estivessem
participantes apresentaram estrutura de histó- incompletas. Porém 31,6% apresentaram se-
ria contendo todas as categorias no recontar qüência estrutural com omissão e/ou com or-
familiar com apoio, sejam elas completas ou dem incorreta de categorias.
incompletas; apresentaram pelo menos três No recontar não familiar com apoio (2c),
categorias (cenário, tema e enredo) no recon- 73,7% dos participantes incluíram todas as ca-
tar familiar sem apoio; pelo menos duas (ce- tegorias estruturais em suas histórias e na or-
nário e tema) no recontar não familiar com dem correta, mesmo que estas estivessem
apoio; e pelo menos uma (cenário) no recon- incompletas. Os 26,3% restantes apresentaram
tar não familiar sem apoio. Com isto é possí- seqüência com omissão e/ou com ordem incor-
vel dizer, analisando-se as duas variáveis reta de categorias.
estudadas – familiaridade e apoio, que hou- O mesmo ocorreu no recontar sem apoio
ve domínio maior de estrutura gramatical do (2d), ou seja, 31,6% incluíram todas as catego-
recontar familiar sobre o não familiar e do rias estruturais na ordem correta, mesmo in-
recontar com apoio sobre o sem apoio. completas, e os 68,4% restantes apresentaram
Do ponto de vista seqüencial da estrutura, os seqüência com omissão e/ou ordem incorreta
dados mostram que para o recontar familiar com de categorias.
Gráfico 4 - Média das pontuações totais das quatro avaliações de recontar histórias
192 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
Partindo dos resultados da análise indivi- próprias interpretações das histórias, sugeriram
dual das categorias, na qual foi possível supor escala crescente de dificuldade do recontar
domínio de estrutura gramatical de um tipo de quanto à inclusão das categorias estruturais.
recontar sobre outro, foi aplicado o Teste de O Gráfico 5 apresenta os resultados relati-
Comparações Múltiplas de Student-Newman- vos aos tipos de tentativas de Leitura de Faz-
Keuls, com o intuito de verificar se havia ou de-conta observados no recontar de história
não diferenças estatísticas entre as médias das familiar com apoio do livro. Foram utilizados
pontuações obtidas em cada tarefa de recon- pelas crianças quatro tipos de categorias evo-
tar, comprovando, assim, diferença estatística lutivas dos 11 propostos por Sulzby (1985): (Tipo
significante (P<0,05) entre suas estruturas gra- 1) Atenção à gravura formando história com
maticais (cenário, tema, enredo, resolução e característica de linguagem oral: contar em for-
seqüência), como mostra o Gráfico 4. ma de diálogo; (Tipo 2) Atenção à gravura for-
As médias sugerem domínio de estrutura mando história com característica de linguagem
entre as variáveis estudadas: familiaridade – oral e escrita: ler e contar simultâneos; (Tipo 3)
FC – 41,45 > NC – 33,29; FS – 35,39 > NS – Atenção à gravura formando história com ca-
23,29; e apoio – FC – 41,45 > FS – 35,39; NC racterística de linguagem escrita: similar à his-
– 33,29 > NS – 23,29, ou melhor dizendo, os tória original; e (Tipo 4) Atenção à escrita
dados mostram que as crianças, ao fazerem suas apresentando leitura das unidades da escrita.
Observou-se que 10,5% dos alunos demons- tre as aprendizagens relacionadas ao letramen-
traram leitura de faz-de-conta pautada na gravu- to emergente aqui avaliadas, ou seja, se o do-
ra e com características de linguagem oral, 52,7% mínio de determinada habilidade poderia estar
apresentaram tanto características de linguagem associado ao domínio de outra habilidade apre-
oral como de linguagem escrita, e 31,6% apre- sentada pelas crianças.
sentaram predomínio de linguagem escrita, simi- Para tanto, foi feito o cálculo de correlação
lar ao do texto. Somente 5,2% ficaram sob controle não-paramétrico de Spearman, a partir das pon-
da escrita e tentaram ler palavras de forma ainda tuações obtidas em todas as avaliações realiza-
não fluente e precisa (leitura silabada). das, cujos resultados encontram-se na Tabela 1,
Correlações obtidas com os resultados ana- na página seguinte.
lisados Os resultados indicaram que houve correlação,
O estudo também manteve o interesse em ou seja, tendência de que os alunos dominassem
verificar se havia algum tipo de correlação en- simultaneamente um conjunto de aprendizagens –
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 193
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
Nota:
(*) há correlação;
(ns) não há correlação;
(**) o cálculo do coeficiente de correlação para esta avaliação foi aplicado com base na
média obtida pelo somatório das pontuações totais das quatro avaliações de recontar;
(r) coeficiente de correlação não-paramétrico de Spearman.
194 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
(1985), é possível sugerir que os alunos do pre- Com relação ao recontar de histórias, a es-
sente estudo já deveriam ter conhecimento de colha em realizar avaliações das inclusões das
todos os conceitos avaliados, visto que em seu categorias estruturais no recontar com e sem o
estudo com crianças européias, a autora mos- apoio do livro proporcionou a oportunidade de
tra que a aquisição destes conceitos se deu analisar o efeito destas diferentes condições so-
dos cinco aos sete anos de idade. Além disto, bre o recontar dos alunos. O recontar com apoio
é possível dizer que esta avaliação também do livro permitiu às crianças avaliadas um dire-
mostrou sensibilidade aos conhecimentos das cionamento no esquema de história, tanto na ori-
crianças de faixa etária maior que a estudada entação causal quanto temporal, facilitando seu
por Clay, e que apresentavam dificuldades de desempenho na tarefa. O recontar sem apoio do
aprendizagem. livro também proporcionou a obtenção de dados
Quanto à avaliação da inclusão das catego- sobre o uso exclusivo do esquema de história,
rias estruturais na produção oral, os resultados porque naquela situação o participante contava
mostraram que todas as crianças apresentaram exclusivamente com ele para dirigir o armaze-
estruturas de história contendo pelo menos duas namento do texto na memória e também a sua
categorias: cenário e tema. A quantidade de recuperação no momento de recontá-la.
crianças que conseguiu produzir histórias com Além da análise da variável apoio, a famili-
todas as categorias foi menor que a metade do aridade ou não com livro também foi outro as-
que o seu número total. Comparando as crian- pecto considerado relevante. O uso deste como
ças deste estudo com as pré-escolares avalia- uma variação experimental partiu dos estudos
das por Morrow (1986), percebe-se o quanto de Sulzby (1985), que utilizou livros familiares
elas apresentaram estruturas de histórias ima- para avaliar as crianças durante a leitura de faz-
turas para a sua faixa etária e escolaridade, sem de-conta. A autora julga o livro familiar como
desconsiderar outras possíveis variáveis inter- um ponto importante na avaliação da leitura, pois
correntes, como classe social e experiências a criança já consegue fazer suas próprias rein-
com textos, que podem também ter influencia- terpretações do conteúdo do texto sendo a his-
do neste resultado, mas cuja análise a metodo- tória conhecida, mostrando em que nível de
logia proposta aqui não privilegiou3 . desenvolvimento encontra-se sua linguagem
Outro fator importante discutido na literatu- escrita. Por conseguinte, a análise do desem-
ra quanto à interferência na complexidade da penho da inclusão seria facilitada, visto que o
produção é o material utilizado para avaliá-la conhecimento do livro passou a ser uma variá-
(SPINILLO, 2001). Mais uma vez tomando vel importante.
como análise o trabalho de Morrow (1986), cri- De um modo geral, a análise dos dados ob-
anças pré-escolares mostraram-se instigadas à tidos nesta avaliação mostrou estruturas me-
narração de histórias com apoio dos motivado- lhores do que as apresentadas na produção oral.
res de texto, também utilizados no presente es- Esta melhora foi decorrente do tipo de situação
tudo. Os seus resultados não garantem que o experimental proposta, ou seja, observou-se que
tipo de material utilizado possa ter sido o mais quanto maior o número de variáveis analisáveis
adequado para que as crianças com dificulda- (familiaridade e apoio) presentes durante a ava-
des de aprendizagem produzissem suas própri- liação, mais complexa se apresentava a estru-
as histórias; entretanto, o inverso também não tura narrada. Houve, portanto, o domínio do
poderia ser garantido, diante do fato de que recontar familiar sobre o não familiar, e do re-
possa ter ocorrido a interferência dos outros contar com apoio sobre o sem apoio, sugerindo
fatores levantados no parágrafo anterior. De uma proposta metodológica interessante na bus-
qualquer forma, fica a proposta do uso deste ca pela dentificação da complexidade estrutu-
material como mais um instrumento para a ava- ral das histórias recontadas pelas crianças.
liação destas crianças, juntamente com o pro-
tocolo de análise proposto. 3
Cf. Maranhe, 2004; Spinillo, 2001.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 195
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
Para situar os resultados sobre as tentativas linguagem escrita pelas crianças com dificul-
de leitura de faz-de-conta obtidos com as cri- dades de aprendizagem ao tentarem ler livros
anças deste estudo, é necessário discutir os de histórias infantis e, assim, propor novos ca-
dados obtidos por Sulzby (1985) com o método minhos para se chegar a objetivos mais com-
classificatório proposto por ela, e que também plexos, como a leitura e a escrita.
foi utilizado neste trabalho. Cada vez mais, autores como Sulzby (1985),
A autora desta pesquisa realizou seu estudo Sulzby e Teale (1986), Rego (1988), Maranhe
com crianças pré-escolares com média de cin- (2004), e Monteiro (2005) vêm discutindo a
co anos e oito meses de idade no início da cole- importância do trabalho com livros de histórias
ta, e mostra que ao final do estudo (após sete e o quanto eles podem ajudar no trabalho de
meses de coleta), pouco mais de um terço de- aquisição da leitura e escrita.
las apresentavam leitura de faz-de-conta com
atenção à escrita, e não mais às gravuras como
era no início. CONCLUSÕES
Partindo do princípio de que é possível pres-
tar atenção à escrita durante a leitura entre cri- Os dados obtidos com as avaliações propos-
anças pré-escolares, poderia se dizer que as tas neste estudo identificaram que um conjunto
crianças deste estudo estariam atrasadas na de conhecimentos relevantes, previstos no pe-
habilidade de leitura de faz-de-conta, conside- ríodo de letramento emergente, ainda não esta-
rando sua idade e escolaridade. É relevante va dominado pelas crianças. Estudos posterio-
comentar que o trabalho conduzido por Sulzby res deveriam ser feitos visando a análise de
(1985) foi com crianças americanas, pré-esco- condições que poderiam ser oferecidas a estes
lares e de classe média, cujas experiências com alunos, tendo em vista o desenvolvimento das
a leitura de livros de histórias infantis são roti- habilidades de letramento emergente que se
neiramente desenvolvidas nas escolas e famíli- mostram relevantes para a aprendizagem for-
as, diferente das experiências apresentadas mal da leitura e da escrita, como a literatura
pelas crianças do presente estudo, como o re- mesma propõe.
latado pela professora em conversa informal Verifica-se, atualmente, a tendência na área
com a pesquisadora. de educação especial ao incentivo de pesqui-
Os resultados mostraram que das vinte cri- sas que mostrem interesse pela proposição de
anças avaliadas, apenas uma manteve atenção programas de desenvolvimento da linguagem
à escrita (mas porque já estava começando a oral e escrita de crianças com dificuldades de
ler as primeiras palavras); o restante voltou sua aprendizagem (VAN KLEECK, 1990; KO-
atenção para as gravuras, sendo que a maioria PPENHAVER et al., 1991; KATIMS, 1994;
apresentou uma mescla de linguagem oral (ex. SAINT-LAURENT, GIASSON & COUTU-
daí, então...) e escrita (ex. “O sol disse: só RE, 1998; SANTOS, 2001; MARANHE, 2004).
as pássaras botam ovos”) para recontar as O material utilizado neste estudo mostrou-se
histórias lidas. significativo para a análise de dados importan-
Estes dados mostram que a forma de análi- tes destas crianças, e pode ser um ponto de
se, ou seja, o método classificatório utilizado por partida para novas pesquisas na busca pelo de-
Sulzby (1985) pode ser interessante para reve- senvolvimento de programas que possam auxi-
lar o grau de conscientização dos aspectos da liar no processo de alfabetização4 .
4
Cf. Maranhe, 2004.
196 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
REFERÊNCIAS
BONETI, R.V. de F. A interpretação da escrita pela criança portadora de deficiência intelectual. Revista
Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 3, n. 5, p. 41-55, set./dez. 1999.
BRANDÃO, A.C.P.; SPINILLO, A.G. Aspectos gerais e específicos na compreensão de textos. Psicologia:
reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 11, n. 2, p. 253-272, 1998.
_____ ; _____. Produção e compreensão de textos em uma perspectiva de desenvolvimento. Estudos de
Psicologia, Natal, v. 6, n. 1, p. 51-62, jan./jun. 2001.
CARVALHO, A.M.P. Avaliação da produção de histórias de alunos de classes especiais para deficientes
mentais. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, p. 7-16, 1996.
CLAY, M.M. The Early Detection of Reading Difficulties. 3. ed. Auckland: Heinemann Educational Books,
1985.
DE ROSE, T.M.S. Compreensão de leitura: ensino e conhecimento. 1995. 185f. Tese (Doutorado em Psicolo-
gia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1995.
DE ROSE, T.M.S. et al. Adaptação e avaliação do levantamento diagnóstico de leitura e escrita de Clay. In:
REUNIÃO ANUAL DE PSICOLOGIA, 28., 1998, Ribeirão Preto. Anais... Ribeirão Preto: SBP, 1998. p. 161-
162.
FERREIRO, E.; TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1986.
GLENN, C.G. The role of episodic structure and of story length in children’s recall of simple stories. Journal
of Verbal Learning and Verbal Behavior, v. 17, p. 229-247, 1978.
KATIMS, D.S. Emergence of literacy in preschool children with disabilities. Learning Disabilities Quarterly,
Overland Park, v. 17, p. 58-69, Winter 1994.
KOPPENHAVER, D. et al. The implications of emergent literacy research for children with developmental
disabilities. American Journal of Speech Language Pathology, Rockville, v. 1, p. 38-44, Sept.1991.
MANDLER, J.M.; JOHNSON, N.S. Remembrance of things parsed: story structure and recall. Cognitive
Psychology, v. 9, n. 1, p. 111-151, 1977.
MARANHE, E.A. Ensinando categorias estruturais de história a crianças com dificuldades de aprendiza-
gem. Tese (Doutorado em Educação Especial) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, 2004. 138f.
_____. Produção oral de histórias, leitura de faz-de-conta e concepção da escrita de crianças inseridas em
classes especiais. Dissertação (Mestrado em Educação Especial) – Faculdade de Educação, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2001. 141f.
MARANHE, E.A.; DE ROSE, T.M.S. Conhecimento da estrutura de histórias apresentado por crianças com
dificuldades de aprendizagem. In: JORNADA DE FONOAUDIOLOGIA, 6., 2000, Marília. Anais... Marília:
UNESP-FFC, 2000. p. 49.
MARQUES, M.L. Quando as crianças permanecem pré-silábicas: uma busca de explicações. In: PRADO,
E.C.; AZEVEDO, M.A.; MARQUES, M.L. (Orgs). Alfabetização hoje. São Paulo: Cortez, 1997. p. 11-28.
MONTEIRO, M. de F. A leitura de literatura infantil na alfabetização: o que falam/fazem os professores sobre
essa prática? Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade, Salvador, v. 14, n. 23, p. 237-244, jan./
jun., 2005.
MORROW, L.M. Effects of structural guidance in story retelling on children’s dictation of original stories.
Journal of Reading Behavior, v. 18, n. 2, p. 135-152, 1986.
MORROW, L.M. Retelling stories: a strategy for improving young children’s comprehension, concept of
story structure and oral language complexity. The Elementary School Journal, v. 85, n. 5, p. 647-661, 1985.
SILVA, O.S.F. Ler e escrever nos labirintos hipertextuais. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 14, n. 23, p. 51-62, jan./jun., 2005.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 197
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
REGO, L.M.L.B. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas.
Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 66, n. 152, p. 5-27, jan./abr. 1985.
REGO, L.M.L.B. Literatura infantil: uma nova perspectiva da alfabetização na pré-escola. São Paulo: FTD,
1988.
SAINT-LAURENT, L.; GIASSON, J.; COUTURE, C. Emergent literacy and intellectual disabilities. Journal
of Early Intervention, v. 21, n. 3, p. 267-281, 1998.
SANTOS, J.A. Criança e literatura: desenvolvimento da compreensão e do gosto pela leitura. Tese (Dou-
torado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2001. 210f.
SPINILLO, A.G. A produção de histórias por crianças: a textualidade em foco. In: CORREA, J.; SPINILLO,
A.G.; LEITÃO, S. Desenvolvimento da linguagem: escrita e textualidade. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2001.
p. 73-116.
SPINILLO, A.G.; SIMÕES, P.U. O desenvolvimento da consciência metatextual em crianças: questões
conceituais, metodológicas e resultados de pesquisas. Psicologia: reflexão e crítica, Porto Alegre, v. 16, n.
3, p. 537-546, 2003.
SPINILLO, A.G.; PINTO, G. Children’s narratives under different conditions: a comparative study. British
Journal of Developmental Psychology, Leicester, v. 12, p. 177-193, 1994.
SULZBY, E. Children’s emergent reading of favorites storybooks: a developmental study. Reading Research
Quarterly, v. 20, n. 4, p. 458-481, Summer 1985.
SULZBY, E.; TEALE, W.H. Emergent literacy. In: BARR, R. (Org.) Handbook of Reading Research. New
York: Longman, 1991. v. 2. p. 727-757.
TEALE, W.H.; SULZBY, E. Emergent literacy as a perspective for looking at how children become writes and
readers. In: TEALE, W.H.; SULZBY, E (Orgs.). Emergent Literacy: writing and reading. Norwood: Ablex,
1986. p. 7-25.
VAN KLEECK, A. Emergent literacy: learning about print before learning to read. Topics in Language
Disorders, v. 10, n. 2, p. 25-45, March 1990.
ZANOTTO, M.A. do C. A leitura de livros de histórias infantis e o recontar histórias: estudo do desempe-
nho de crianças pré-escolares. 1996. 136f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 03.11.06
198 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
APÊNDICE
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
199
Proposta de análise de habilidades de letramento emergente para crianças com dificuldades de aprendizagem
1. Cenário Escores*
A. A história começa com um enunciado de começo ____
B. Um ou mais personagens centrais aparecem e assumem
um papel principal durante toda a história ____
C. O tempo da história é mencionado ____
D. A localização da história é mencionada ____
Total ____
Total Ajustado ____
2. Tema
A. Um começo introduzindo o problema ocorre a fim
de causar uma reação no personagem principal ____
B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de
conduzir o personagem principal em direção à resolução
do problema ou para alcançar o objetivo da história ____
Total ____
Total Ajustado ____
3. Enredo
A. Um evento, ou uma série de eventos, são mencionados,
relacionando-se ao personagem principal ____
B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de conduzir
o personagem principal em direção à resolução do problema
ou para alcançar o objetivo da história ____
Total ____
Total Ajustado ____
4. Resolução
A. O personagem principal resolve o problema ou alcança o objetivo ____
B. A história é encerrada com um enunciado final ____
C. O final apresenta conseqüências a longo prazo ____
Total ____
Total Ajustado ____
5. Seqüência
A. As categorias da estrutura de história estão presentes na ordem
correta de seqüência (cenário, tema, enredo, resolução) ____
Total ____
Total Ajustado ____
*
TA = T/Ni x 10, sendo que T = ?pi , p: pontos e i: itens (0 = pi = 1); pi = 0 (ausência do item); pi = ½ (item incompleto);
pi = 1 (item completo).
200 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007
Elisandra André Maranhe; Tânia Maria Santana de Rose
1. Cenário Escores*
A. Um ou mais personagens centrais aparecem e assumem
um papel principal durante toda a história ____
Total ____
Total Ajustado ____
2. Tema
A. Um começo introduzindo o evento ocorre a fim
de causar uma reação no personagem principal ____
B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de
conduzir o personagem principal em direção à resolução
do problema ou para alcançar o objetivo da história ____
Total ____
Total Ajustado ____
3. Enredo
A. Um evento ou uma série de eventos são mencionados,
relacionando-se ao personagem principal ____
B. Um evento, ou uma série de eventos, ocorre a fim de conduzir
o personagem principal em direção à resolução do problema
ou para alcançar o objetivo da história ____
Total ____
Total Ajustado ____
4. Resolução
A. O personagem principal resolve o problema ou alcança o objetivo ____
Total ____
Total Ajustado ____
5. Seqüência
A. As categorias da estrutura de história estão presentes na ordem
correta de seqüência (cenário, tema, enredo, resolução) ____
Total ____
Total Ajustado ____
*
TA = T/Ni x 10, sendo que T = ?pi , p: pontos e i: itens (0 = pi = 1); pi = 0 (ausência do item); pi = ½ (item incompleto);
pi = 1 (item completo).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 183-201, jan./jun., 2007 201
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
CRIANÇAS AUTISTAS DE
ALTO FUNCIONAMENTO E SÍNDROME DE ASPERGER:
estratégias para trabalhar as habilidades
narrativo-discursivas e a produção verbal
RESUMO
* Fonoaudióloga. Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Docente do
Departamento de Fonoaudiologia da Faculdade de Odontologia de Bauru – Universidade de São Paulo (USP). Endereço
para correspondência: Alameda Dr. Octávio Pinheiro Brisolla, 9-75 – A/C Departamento de Fonoaudiologia (FOB-
USP) – 17012-101 Bauru/SP. E-mail: lopesimone@usp.br
** Educadora. Pós-Doutora na Área de Educação Especial. Docente e coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Educação Especial da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Endereço para correspondência: Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar), Programa de Pós-Graduação em Educação Especial (PPGEE). Rodovia Washington
Luis, KM 235, Caixa Postal 676 – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail: ameliama@terra.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 203
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
ABSTRACT
204 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
ção de seus alunos, e seriam um passo à frente ou DSM-IV TR para nenhum outro transtorno
na facilitação do processo comunicativo e edu- global do desenvolvimento, nem qualquer outro
cacional do educando de forma global. quadro psiquiátrico (GHAZIUDDIN; LEININ-
GER; TSAI, 1995).
Desde 1990, o autismo vem sendo conside-
Transtornos globais do desenvol- rado uma síndrome comportamental com etio-
vimento logias múltiplas e curso de um distúrbio do
desenvolvimento, sendo caracterizado sucinta-
A categoria transtornos globais do desen- mente por déficits de interação social, visuali-
volvimento (TGD) é referente aos transtornos zado pela inabilidade em relacionar-se com o
que se caracterizam por prejuízos severos e in- outro, usualmente combinado com déficits de
vasivos em diversas áreas do desenvolvimento, linguagem e alterações de comportamento (GI-
como: (a) habilidades de interação social recí- LLBERG, 1990; SCHWARTZMAN, 2003).
proca, (b) habilidades de comunicação, e (c) Baltimore e Kanner (1944), no estudo origi-
presença de comportamentos, interesses e ati- nal que descreveu o autismo, observaram a
vidades estereotipados. Os prejuízos qualitati- existência de algumas características específi-
vos que definem estas condições representam cas da linguagem de crianças autistas, como a
um desvio em relação ao nível de desenvolvi- inversão pronominal (uso da primeira pessoa do
mento/idade do indivíduo, o que afeta sua adap- singular pela terceira), a ecolalia (repetição de
tação social e educacional. Em geral, as palavras ou expressões ouvidas anteriormen-
alterações se manifestam nos primeiros anos te), a rigidez de significados (a dificuldade em
de vida e podem aparecer associadas a vários associar diversos significados a um único signi-
quadros (neurológicos ou sindrômicos), varian- ficante). Mas o que mais chamou a atenção
do em grau e intensidade de manifestações. destes autores foi o fato de que as alterações
Entram nesta categoria os transtornos autistas, mais significativas se relacionavam às funções
de Asperger, de Rett e os transtornos desinte- comunicativas da linguagem (até por ser a co-
grativos da infância. (ASSOCIAÇÃO AME- municação um conceito de referência social e
RICANA DE PSIQUIATRIA, 1995, 2002). ser a socialização uma das maiores dificulda-
O DSM-IV (Manual Diagnóstico e Estatís- des do autista).
tico de Transtornos Mentais, da Associação Conforme se observa pelo relato do estudo
Americana de Psiquiatria) é uma publicação que originalmente descreveu o autismo e pelo
mundialmente adotada no diagnóstico clínico, conceito que atualmente o define, a linguagem
principalmente no que se refere aos transtor- é um dos pontos no qual se focam as altera-
nos mentais. Em 2002, foi editado o DSM-IV ções mais evidentes do autismo. Quer seja pela
TR e a terminologia adotada foi a de transtor- ausência de fala ou a presença de fala sem fun-
nos globais do desenvolvimento (TGD). ção comunicacional, quer seja pelo desenvolvi-
Não há categoria específica para o autismo mento atípico de linguagem que estas crianças
de alto funcionamento, sendo que os estudos apresentam, a linguagem é fundamental na ca-
que optam por classificá-lo como entidade no- racterização do quadro.
sológica diferenciada do autismo, ou como par-
te de um espectro autístico, consideram o
diagnóstico de autismo de alto funcionamento Autismo de alto funcionamento e
para aqueles indivíduos que possuam diagnósti- síndrome de Asperger
co de autismo antes dos trinta meses de idade,
tenham desenvolvido habilidades de interação O diagnóstico do autismo e da síndrome de
social e de comunicação e que, na época da Asperger é basicamente clínico, isto é, realiza-
avaliação/diagnóstico atual, não tenham se en- do por meio de observações que caracterizam
caixado nos critérios propostos pelo DSM-IV o quadro, observações comportamentais e aná-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 205
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
lise do histórico do indivíduo, e não por intermé- Estudos mais recentes (VOLKMAR;
dio de exames laboratoriais – exceção feita COOK; POMEROY, 1999) sugeriram que o
quando o autismo aparece associado a outra autismo de alto funcionamento poderia ser di-
condição (SCHWARTZMAN, 1995, 2003). ferenciado da síndrome de Asperger com base
Compete aqui explicitar que os diagnósticos em seu histórico de desenvolvimento, histórico
são geralmente realizados por equipes multidis- familiar e comorbidades.
ciplinares, e o que tem norteado estes diagnós- Howlin (2003), em pesquisa na qual fez um
ticos são as listas de sintomas propostas pelos levantamento dos estudos que comparavam o
manuais específicos já citados, como o DSM- autismo de alto funcionamento e a síndrome de
IV, o DSM-IV TR e o CID-10 (Classificação Asperger em 15 anos de literatura (entre 1985
Internacional das Doenças). Como a tríade di- e 2000), em grandes bases de dados (MEDLI-
agnóstica dos transtornos globais do desenvol- NE e Psych-INFO), encontrou um total de 26
vimento se refere aos déficits de comportamen- artigos, sendo que os resultados destes artigos
to, interação social e linguagem, a comunicação indicavam que os autistas de alto funcionamen-
é um dos aspectos em que se baseiam as ob- to apresentariam maiores déficits nas habilida-
servações clínicas necessárias ao diagnóstico des sociais e de linguagem, e mais interesses
e possíveis intervenções. bizarros, estereotipias e alterações no desen-
Muitas são as discussões na literatura a res- volvimento inicial de linguagem. Em contrapar-
peito do autismo, do autismo de alto funciona- tida, os indivíduos com síndrome de Asperger
mento e da síndrome de Asperger: discute-se o apresentariam maior número de desordens de
fato do autismo ser uma patologia que abarca- pensamento, alterações motoras e associação
ria desde as mais leves manifestações (estan- de patologias psiquiátricas, apresentando tam-
do aí o autismo de alto funcionamento e a bém melhor desempenho em testes verbais (de
síndrome de Asperger) até manifestações mais memória verbal e de habilidades verbais), sen-
severas; aborda-se a questão de o autismo ser do que não manifestariam problemas no desen-
uma patologia diferenciada, classificando o au- volvimento inicial da linguagem.
tismo de alto funcionamento e a síndrome de
Asperger como a mesma patologia; e ainda a
hipótese de tratar-se de patologias diversas com Habilidades comunicativas verbais
sintomatologias comuns, mas com pontos diag-
nósticos diferenciais. A comunicação seria um conceito observá-
Wing (1981, 1992) sugeriu a hipótese de ser vel, amplo e de referência social. Poderia ser
o autismo parte de um continuum ou spectrum realizada por meio de códigos lingüísticos (fala,
de desordens que teria, como problema central, escrita, linguagem gestual) e não-lingüísticos
prejuízo intrínseco no desenvolvimento da inte- (expressões fisionômicas, sorrisos, olhares, to-
ração social recíproca e na linguagem, sendo ques e “silêncios”) e envolve, no mínimo, duas
que tais características variariam na tipologia e pessoas, classificadas como emissor-receptor
na severidade com que se manifestariam. ou como interlocutores, que trocariam entre si
Perissinoto (2004) citou que a expressão uma mensagem qualquer (SYDER, 1987).
espectro autístico, já consagrada na prática clí- A fala, que garantiria uma das formas de co-
nica, reuniria os quadros de autismo leve, de municação mais aceitas socialmente (comunica-
alto e baixo funcionamento, os traços autísti- ção verbal ou linguagem verbal), também seria
cos, o autismo clássico e a síndrome de Asper- um conceito observável e referir-se-ia à exterio-
ger, assumindo a função de diagnóstico iniciada rização do pensamento por meio do uso de sím-
sem que o clínico perca de vista a gravidade de bolos verbais comuns entre as pessoas que
cada uma das manifestações atípicas e a busca estabelecem o processo de comunicação. A fala
por diagnósticos precisos e norteadores de con- constituir-se-ia, desta forma, como a manifesta-
dutas terapêuticas. ção verbal da linguagem (LAHEY, 1988).
206 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 207
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
a análise de diversos elementos sociais do con- periência. Esta seria a época em que crianças
texto e incluiriam a necessidade de uma deci- com autismo de alto funcionamento e síndro-
são por parte do indivíduo. me de Asperger se sentiriam mais isoladas e,
por isso, os programas de intervenção nesta
fase deveriam abranger diversos locais de uso
Programas de intervenção em casos natural das habilidades comunicativas verbais,
de autismo de alto funcionamento utilizando estratégias com mediação feita por
e síndrome de Asperger adultos ou pares. Nestes tipos de procedimen-
to, seriam utilizadas instruções diretas com re-
Klin (2003) acredita que qualquer interven- forços naturais e estratégias com tempo de es-
ção em indivíduos com síndrome de Asperger pera – utilizadas de forma combinada ou
deve ter como prioridade o fornecimento de si- isolada. Uma estratégia eficiente nesta fase
tuações naturais. O trabalho com a comunica- seria o uso de histórias, utilizadas para abor-
ção deveria abranger a comunicação não-verbal dar e/ou reduzir comportamentos que atrapa-
(expressões faciais, uso de gestos), a lingua- lhassem a interação social e para desenvolver
gem não literal (uso de metáforas, ironias, ab- habilidades narrativas. Poderiam ser propos-
surdos, humor), traços suprasegmentais da fala tas situações-problema e, logo após, o adulto
(padrões de inflexão e modulação vocal), prag- forneceria uma resposta aceitável ou espera-
mática (troca de turnos, sensibilidade sobre as ria que a criança o fizesse; em seguida, ha-
reações do interlocutor) e, finalmente, conteú- vendo a mediação do adulto, esta resposta se-
do e contingência da conversação. Atenção ria avaliada em sua adequação. Este tipo de
especial deve ser dada quanto à perseveração estratégia poderia ser usado como forma de
nos mesmos tópicos de conversação, nas habi- reduzir a ansiedade de crianças com autismo
lidades metalingüísticas e na reciprocidade co- de alto funcionamento e síndrome de Asper-
municativa na conversação. Os interesses ger em situações que ocorreriam em sala de
específicos que muitos autistas apresentam em aula ou em outros contextos comunicativos
um único assunto ou tópico de conversação (NORRIS; DATILLO, 1999).
deveriam ser utilizados na criação de situações Na adolescência, os jovens se engajariam
sociais em que fosse adequado usá-los. na interação social simplesmente para conver-
Rhea (2003) fez um estudo revisando pro- sar, isto é, utilizariam a linguagem como um
gramas de intervenção aplicados em crianças canal para interação e aceitação social. Como
e jovens com autismo de alto funcionamento e esta seria a dificuldade específica da síndrome
síndrome de Asperger desde a idade pré-esco- de Asperger, adolescentes com estas patologi-
lar até a adolescência. Crianças entre 3 e 5 anos as tenderiam a se sentir isolados deste proces-
(idade pré-escolar) com desenvolvimento nor- so, o que geraria sentimentos de impotência e
mal, desenvolveriam nesta fase uma gama de frustração (KLIN, 2003).
habilidades de interação social em decorrência Estas limitações não afetariam somente a
dos estímulos a ela fornecidos em contextos de capacidade de fazer amigos, mas também limi-
interação lúdicos. Por estas razões, programas tariam oportunidades nas quais as habilidades
de desenvolvimento social e de comunicação específicas dos adolescentes com autismo de alto
no período pré-escolar utilizariam tipicamente funcionamento e síndrome de Asperger pudes-
as brincadeiras como contexto primário, sem- sem ser utilizadas funcionalmente. Sendo assim,
pre conduzidas por um adulto. para estes adolescentes, a intervenção direcio-
Durante a idade escolar, a criança come- nar-se-ia ao desenvolvimento de estratégias em
çaria a usar a linguagem para adquirir novas que eles se engajassem e estendessem suas con-
informações sobre o ambiente que a cerca e versações com os outros, utilizando habilidades
sobre fatos ou eventos com os quais ela, ne- comunicativas verbais como a solicitação de in-
cessariamente, não teve contato direto ou ex- formação e as habilidades narrativas.
208 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 209
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
210 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
de duas crianças, uma delas com diagnóstico Asperger, e verificar a relação do desenvolvi-
de autismo de alto funcionamento e a outra com mento destas estratégias com a eficácia no uso
o de síndrome de Asperger, em interação com das demais habilidades comunicativas e com
um adulto-interlocutor. O desenvolvimento me- o aumento de medidas de produção verbal,
todológico desta pesquisa possibilitou a descri- como a complexidade de fala e a extensão
ção de quatro categorias de habilidades média dos enunciados.
comunicativas verbais (vide anexo). Os resul-
tados demonstraram significante uso do meio
verbal de comunicação tanto pelo adulto quan- Método
to pelos sujeitos, sendo que, de forma geral, os
Seleção dos participantes – Os partici-
sujeitos e o adulto apresentaram perfil comuni-
pantes foram indicados por profissionais das
cativo homogêneo quantitativamente, embora
escolas que freqüentavam. A pesquisadora,
tenham sido constatadas diferenças no tocante
então, realizou contato prévio com os pais dos
à extensão e complexidade dos enunciados ver-
participantes, havendo a anuência dos respon-
bais. Estes, embora fossem similares em ter-
sáveis e a apresentação do termo de consenti-
mos de funcionalidade, apresentaram-se mais mento livre e esclarecido da pesquisa. Todos
longos e estruturados nas habilidades comuni- os procedimentos deste estudo foram aprova-
cativas utilizadas pelos adultos do que nas dos dos pela Comissão de Ética em Pesquisa da
sujeitos. Importante ressaltar que, embora a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
maioria dos enunciados verbais dos sujeitos fos- Descrição dos Participantes – Participaram
se menos extensa e complexa que os do adulto, deste estudo três crianças, duas com diagnóstico
essa extensão e complexidade apresentaram- de autismo de alto funcionamento e uma com di-
se de forma variável, uma vez que cada habili- agnóstico de síndrome de Asperger realizado por
dade comunicativa verbal poderia ser composta uma equipe clínica de uma instituição educacional
de um ou vários enunciados verbais. para autistas. Na época da coleta de dados os
Partindo deste pressuposto, determinadas ha- participantes da pesquisa tinham 7 anos de idade.
bilidades comunicativas verbais utilizadas pelo Local – Este estudo foi realizado em sala
adulto de forma isolada ou encadeadas em algu- de atendimento fonoaudiológico no interior de
mas situações poderiam favorecer o aparecimen- São Paulo. Estavam dispostos nesta sala os
to de enunciados mais extensos e complexos nos seguintes móveis: uma escrivaninha com três
indivíduos do que outras, assim como poderiam cadeiras para adulto, uma mesa infantil com dois
dificultar este aparecimento em várias situações. banquinhos, um espelho de parede disposto na
O aumento da extensão média dos enunciados é parte de cima desta mesa infantil, um armário
importante, quando associado a um trabalho com fechado com brinquedos, jogos e livros infantis.
as habilidades comunicativas verbais, porque pro- Materiais e equipamentos utilizados –
move uma maior complexidade e funcionalidade Foram utilizados uma filmadora (câmera de ví-
da produção verbal e, conseqüentemente, bene- deo JVC, handcam), tripé para sustentação da
ficia o uso das habilidades narrativo-discursivas câmera em local fixo, fitas cassete para grava-
de forma geral. ção, livros infantis, brinquedos e jogos pedagó-
gicos previamente selecionados, folhas sulfites
Objetivo e canetas para registro.
Procedimento de coleta de dados – Os
O trabalho aqui exposto foi desenvolvido dados foram coletados por meio de gravações
com objetivo de descrever e analisar estraté- em vídeo de sessões de interação de cada indiví-
gias terapêuticas utilizadas em ambientes clí- duo, separadamente, com a pesquisadora, e esta
nicos e educacionais para trabalhar habilida- somente propunha as estratégias selecionadas.
des narrativo-discursivas em crianças com Cada gravação teve a duração aproximada
autismo de alto funcionamento e síndrome de de trinta minutos. No total, foram realizadas cin-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 211
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
co filmagens de cada indivíduo, com intervalos entendida por alguém que a ouve. Produ-
variando em média uma semana entre as gra- ções de uma sílaba são consideradas pala-
vações. Foram contabilizados, ao final da análi- vras somente quando forem pronomes
se, 450 minutos de gravações em vídeo, pessoais, relativos e possessivos, advérbios
transcritas e analisadas pela própria pesquisa- de afirmação ou negação, numerais e, oca-
dora, tendo sido 30% destas submetidas a cál- sionalmente, alguns verbos (ex: o verbo ser).
culo de fidedignidade com média final de Exemplo: no enunciado “Vamos lá?!” há duas
fidedignidade variando entre 91,81% e 94,42%. palavras. Se, em um minuto de conversa-
Procedimento de análise dos dados – ção, um dos interlocutores produz os três
Após as gravações, cada sessão era transcrita enunciados já citados como exemplo (“Va-
literalmente pela pesquisadora e, em seguida, mos lá, D.?!”, “Já está na hora!” e “Do que
os dados de cada transcrição eram transferi- você quer brincar hoje?”), este interlocutor
dos para um protocolo individual, para análise terá produzido doze palavras por minuto.
das habilidades comunicativas verbais e verifi- – Extensão média do enunciado: segundo
cação da extensão média dos enunciados e da Mayrink (1975) e Brandão (1985), a ex-
complexidade de fala dos participantes. A aná- tensão média do enunciado é constituída
lise dos enunciados verbais foi feita em deter- pela média de palavras (morfemas) sobre
minada unidade de tempo. Definiu-se como o total de unidades verbais (enunciados)
unidade de tempo, com base na literatura definidas minuto a minuto. Portanto, este
(BRANDÃO, 1985; MAYRINK, 1975), a ado- valor é calculado de dividindo-se o número
ção da análise minuto a minuto e a utilização total de palavras pelo número de enuncia-
das seguintes medidas de análise: dos (produção verbal). Exemplo: seguindo
– Produção verbal (número de unidades ver- o exemplo utilizado anteriormente, se há
bais por minuto): segundo Brandão (1985), doze palavras produzidas por minuto e três
unidade verbal (ou enunciado) pode ser en- enunciados, a extensão média do enuncia-
tendida como um conjunto de palavras, de- do produzida por este interlocutor é quatro.
lineadas por inflexão e pausas respiratórias – Complexidade de fala: segundo Brandão
que, geralmente, correspondem, na escrita, (1985), a complexidade de fala seria obtida
às pausas demarcadas pelos sinais conven- calculando-se a média por minuto do nú-
cionais de ponto final, interrogação, excla- mero de verbos utilizados por unidade ver-
mação e reticências. Exemplo: “Vamos lá?! bal – sendo, portanto, a razão entre o total
Já está no hora! Do que você quer brincar de verbos por minuto e o total de unidades
hoje?” Neste segmento há três enunciados verbais. Neste caso, seria necessária a con-
verbais (Enunciado 1: “Vamos lá, D.?!”; tagem do número de verbos por minuto
enunciado 2: “Já está na hora!”; enunciado como medida auxiliar. Exemplo: usando os
3: “Do que você quer brincar hoje?”). três enunciados produzidos por um interlo-
– Número de palavras por minuto: segundo cutor (“Vamos lá, D.?!”, “Já está na hora!”
Brandão (1985), são consideradas palavras e “Do que você quer brincar hoje?”), hou-
(ou morfemas) as vocalizações constituídas ve uso de quatro verbos (vamos, está, quer,
por mais de uma sílaba, que tenham refe- brincar). Se há quatro verbos em três enun-
rentes listados em dicionário (linguagem ciados, a complexidade de fala é de 1,33
ampla) ou que sejam compartilhados pela (número de verbos por minuto dividido pelo
comunidade imediata ou específica (dicio- número de enunciados).
nário de família). Ex: “deitá” significando
“travesseiro” porque no ambiente familiar da Resultados e discussão
criança isto é utilizado e aceito. Uma sílaba
ou vocalização pode ser considerada pala- Inicialmente, serão apresentadas as tabelas
vra quando tem a natureza de poder ser com os resultados brutos do estudo, obtidos com
212 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
os três participantes. Os dados apresentados maior valor de número de palavras (PAL), com-
nestas tabelas foram obtidos no total de sessões plexidade de fala (CF) e extensão média dos enun-
realizadas com cada indivíduo, sendo o partici- ciados (EME). Este fato reforça a suposição de
pante 1 (P1) a criança com diagnóstico de sín- que são as situações propostas ou as habilidades
drome de Asperger e os participantes 2 e 3 (P2 comunicativas verbais utilizadas que mais influ-
e P3) as crianças com diagnóstico de autismo de enciam na variação desses tipos de medida (visto
alto funcionamento. Para a tabela 1 foram con- que o desempenho do indivíduo se mostra variá-
siderados os maiores e menores valores de cada vel e ele se mostra capaz de alcançar desde o
uma das medidas calculadas no total de sessões menor até o maior valor de determinada medida).
(cinco para cada um dos participantes). O adulto, em interação com o participante 1, tam-
A tabela 1 foi elaborada no intuito de se bus- bém apresentou o maior e o menor valor médio
car uma relação entre os valores (maiores e me- de extensão média dos enunciados.
nores medidas) obtidos pelo adulto (A) com os O participante 2 foi o que apresentou os mai-
três participantes (P), embora não seja apenas a ores valores médios de produção verbal (PV) e
relação de A e P a responsável pelo desempenho número de verbos (V) e o menor valor médio de
destes. Notou-se que o participante 1 teve o me- complexidade de fala (CF). Foi com ele que o
nor valor médio de produção verbal (PV), o me- adulto apresentou também os maiores valores
nor número de palavras (PAL) e o menor número de produção verbal (PV), número de verbos (V),
de verbos (V), mas, em contrapartida, também número de palavras (PAL) e o menor valor mé-
foi ele que alcançou, entre todas as sessões, o dio de extensão média dos enunciados (EME).
Tabela 1 - Valores médios das medidas utilizadas na parte 1 do estudo, demonstrados pelo adulto e
pelos três participantes (P1, P2 e P3), separadamente.
Obs: Tais medidas referem-se a valores médios de: PV – produções verbais (nº enunciados/minuto); PAL – nº
de palavras / minuto; V – nº verbos /minuto; EME – extensão média dos enunciados; CF – complexidade de fala.
Os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior e o menor valor da medida indicada.
Já o participante 3 foi o que apresentou o das, sejam comparações dos indivíduos com
menor valor médio de extensão média dos enun- eles mesmos ou dos indivíduos com o adulto.
ciados (EME), mas também o maior valor de Por exemplo, não se pode afirmar que um in-
complexidade de fala (CF). O adulto, em inte- divíduo terá maior complexidade de fala ou ex-
ração com o participante 3, apresentou os me- tensão média dos enunciados se apresentar o
nores valores de produção verbal (PV), número maior número de palavras. Em termos de atua-
de palavras (PAL), número de verbos (V) e ção com a linguagem, este fato é importante
complexidade de fala (CF). para mostrar que, na avaliação de fala de um
Estes dados salientam que não há como fa- indivíduo, não se pode considerar uma única
zer uma relação instantânea entre estas medi- medida de desempenho.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 213
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
As tabelas 2 e 3 a seguir mostram os valo- 1), 6,6 (participante 2) e 9,33 (participante 3),
res absolutos da extensão média dos enuncia- e os menores valores de EME foram de 1,0
dos e da complexidade de fala (EME e CF), (para participantes 1 e 2) e 0,4 (para partici-
para que se possa observar o desempenho de pante 3). Realmente, os dados por sessão
cada participante por sessão e se possa relaci- refletem o resultado geral que já havia sido
onar este desempenho com o desempenho ge- constatado: o de que o participante 1 era o
ral dos indivíduos apresentado na tabela 1 que havia alcançado o maior valor de EME e
Pela tabela 2, constata-se que os maio- o participante 3 o que havia alcançado o me-
res valores de EME foram 10,0 (participante nor valor de EME.
Obs: Sendo EME a extensão média dos enunciados, os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior e
o menor valor desta.
De forma mais específica, os valores de EME com autismo de alto funcionamento e síndrome
para o participante 1 variaram entre 1 e 10, para de Asperger desta pesquisa apresentou-se mai-
o participante 2 entre 1 e 6,6, e para o partici- or do que a de crianças com desenvolvimento
pante 3 entre 0,5 e 9,33. Em estudo realizado por normal de linguagem. O segundo fato relevante
Jakubovicz (2002), em que foram levantadas as é que os participantes 1 e 3 tiveram desempenho
médias dos valores da frase (MVF) de 45 crian- equivalente ao de crianças com 7 anos de idade,
ças com desenvolvimento normal de linguagem, e o participante 2 teve desempenho equivalente
na faixa etária de 2 a 7 anos, os resultados de- ao de crianças com 3 anos de idade (do referido
monstraram ligeira variação: com 2 anos de ida- por JAKUBOVIZ, 2002).
de a MVF variou entre 3,2 e 4,2; com 3 anos a Pela tabela 3, observa-se que os maiores valo-
variação ficou entre 4,4 e 6,7; com 4 anos entre res de CF foram 3,0 (participante 1), 2,66 (partici-
6,4 e 7,7; com 5 anos entre 6,8 e 8,0; com 6 anos pante 2) e 1,75 (participante 3), e os menores valores
a variação foi entre 7 e 8,5 e, com 7 anos, entre de CF foram 0,16 (participante 1), 0,06 (participan-
8,2 e 11,0. Comparando tais resultados de varia- te 2) e 0,1 (participante 3). Estes dados refletem o
ção de MVF com a variação da EME consegui- que já havia sido observado pela análise da tabela
da neste estudo observamos, como primeiro fato 2, que mostra que o maior valor de CF foi alcança-
relevante, que a gama de variação das crianças do pelo P1 e o menor valor de CF pelo P2.
Obs: Sendo CF a complexidade de fala, os símbolos ↑ e ↓ significam, respectivamente, o maior e o menor valor desta.
214 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
Em seguida à análise dos menores e dos mai- pelas estratégias propostas. Desta forma, será
ores valores de cada medida obtida com cada apresentado a seguir o quadro 1, com a sínte-
participante, a pesquisadora realizou a tarefa se geral das estratégias utilizadas.
de verificar, no registro cursivo, exatamente nos O quadro a seguir (quadro 2) mostra a des-
minutos em que estes valores eram alcança- crição de cada uma das estratégias que foram
dos, quais as atividades que estavam sendo re- favorecedoras do desenvolvimento de habilida-
alizadas com os indivíduos e que habilidades des narrativo-discursivas, extensão média dos
narrativo-discursivas (HND) eram favorecidas enunciados e complexidade de fala.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 215
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
216 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
descrição mais exata do nível “real” do desen- da de informações e, por outro lado, pode ser
volvimento lingüístico, ou seja, do tipo de lin- analisada por vários profissionais – o que, sem
guagem que o indivíduo utiliza habitualmente. dúvida, auxilia a realização de estudos e análise
Sua maior importância reside no fato de que, interdisciplinar.
uma vez transcrita no papel, permite uma gran- No caso da utilização de vídeos, como ocor-
de variedade de análises (fonológica, sintática, reu na pesquisa aqui apresentada, deve-se re-
semântica, pragmática, etc); além disso, dimi- produzir as imagens da situação interativa, isto
nui o risco de interpretações subjetivas ou per- é, o registro deve incluir não só as produções
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 217
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
do indivíduo, mas também as do terapeuta ou ações de vida diária (ambiente natural) deles
avaliador e de todos os elementos verbais e não- (como rotina escolar, social, etc).
verbais que determinam o significado ou a in- A habilidade de narrar eventos advém da
tencionalidade comunicativa. capacidade causal e explanatória e também da
De forma geral, ficou clara a importância de aquisição das estruturas sintáticas para realizar
um ambiente comunicativo favorável e estimu- marcações temporais e causais, assim como da
lador, assim como das atividades programadas e capacidade de atribuir emoções, pensamentos,
situações estruturadas. O adulto-interlocutor, ações e intenções e interpretá-las de acordo
quando se coloca na posição de mediador e mo- com as expectativas normativas. Portanto, as
delo, oferecendo uma gama variada de habilida- habilidades narrativas envolvem aspectos só-
des comunicativas verbais (HCV), deve partir cio-emocionais, cognitivos e lingüísticos e, por
do pressuposto de que há sempre e em qualquer isso, a análise da narrativa representa um meio
interação, com qualquer indivíduo, o princípio da rico de investigação de desordens como o au-
reciprocidade comunicativa. A utilização de uma tismo de alto funcionamento e a síndrome de
gama variada de HCV pelo adulto favoreceu o Asperger, uma vez que tendem a utilizar as ha-
uso de uma maior variabilidade das HCV por bilidades narrativas menos freqüentemente do
parte dos participantes da pesquisa. O achado que as outras pessoas e produzem narrativas
mais relevante é, sem dúvida, o da importância mais pobres, com menos complexidade e coe-
do adulto-interlocutor fornecer apoio e suporte rência. Nesta pesquisa, notou-se menor uso de
constituído de pistas adicionais ao indivíduo, au- habilidades narrativo-discursivas com menor
xiliando-o na compreensão de determinadas es- complexidade pelos participantes do que pelo
tratégias, com exemplificações e demonstrações adulto; porém, demonstrou-se que, se o traba-
concretas. Para isto, é necessário que o adulto lho for direcionado a ampliar a extensão média
esteja atento a toda e qualquer pista do indivíduo dos enunciados, os resultados se estenderão à
e, também, dos interesses específicos e das situ- produção de narrativas mais complexas.
REFERÊNCIAS
218 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
GILLBERG, Chistopher. Autism and pervasive developmental disorders. Journal of Child Psychology
Psychiatry, v. 31, n. 1, p. 99-119, 1990.
HOWLIN, Patricia. Outcome in high-functioning adults with and without early language delays: implications
for the differentiation between autism and Asperger´s syndrome. Journal of Autism and Developmental
Disorders, v. 33, n. 1, p. 3-13, 2003.
JAKUBOVICZ, Regina. Atraso de linguagem : diagnóstico pela média de valores da frase. Rio de Janeiro:
Revinter, 2002.
KLIN, Ami. Attributing social meaning to ambiguous visual stimuli in higher-functioning autism and Asperger
syndrome: the social attribution task. Journal of Child Psychology and Psychiatry, v.7, p. 831-46, 2000.
KLIN, Ami; VOLKMAR, Fred; SPARROW, Sean. Asperger syndrome. New York: Guilford Press, 2000.
KLIN, Ami. Asperger syndrome: an update. Revista Brasileira de Psiquiatria, v. 25, n. 2, p. 103-9, 2003.
LAHEY, Margareth. Language Disorders and Language Development. London: Collier Macmillian Publishers, 1988.
LOPES, Simone Aparecida. Habilidades comunicativas verbais em autismo de alto funcionamento e síndrome
de Asperger. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos, 2000.
LOPES, Simone Aparecida. Habilidades comunicativas verbais em autismo de alto funcionamento e síndrome
de Asperger. Temas sobre Desenvolvimento, v. 53, n. 9, p.86-94, 2000.
LOSH, Molly ; CAPPS, Lisa. Narrative ability in high-functioning children with autism os asperger´s syndrome.
Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 33, n. 3, p. 239-51, 2003.
MAYRINK, Maria Laura Trindade. Um estudo do período inicial da aquisição do português. Dissertação
(Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1975.
NORBURY, Courtenay Frazier; BISHOP, Dorothy. Narrative skills of children with communication impairments.
Journal of Language and Communication Disorders, v. 38, n. 3, p. 287-313, 2003.
NORRIS, Christian; DATILLO, John. Evaluating affects of a social story intervention an a young girl with
autism. Focus on Autism and Other Developmental Disabilities, v.3, p. 180-86, 1999.
PARKER, Richard. Incorporating Speech-Language Therapy into an Applied Behavior Analysis Program.
In: PARKER, Richard. Behavior interventional for young children with autism: a manual for parents and
professionals. Austin, Texas: PRO-ED, 1996. p. 297-306.
PERISSINOTO, Jacy. Linguagem da criança com autismo. In: PERISSINOTO, Jacy; MARCHESAN, Irene
Queiroz.; ZORZI, Jaime Luiz. (Orgs.) Conhecimentos essenciais para atender bem as crianças com autismo.
São José dos Campos: Pulso, 2003. p. 39-44.
_____. Diagnóstico de linguagem em crianças com transtornos do espectro autístico. In: FERREIRA, Léslie
Picolotto; BEFI-LOPES, Débora Maria; LIMONGI, Suely Cecília Olivan (Orgs.) Tratado de fonoaudiologia.
São Paulo: Roca, 2004. p. 933-940.
RHEA, Paul. Promoting social communication in high functioning individuals with autistic spectrum disorders.
Child and Adolescent Psychiatry Clinical American, v. 1, p. 87-106, 2003.
SCHWARTZMAN, José Salomão. Neurobiologia do autismo infantil. In:_____. Autismo infantil. São Pau-
lo: Memnon, 1995. p. 17-68.
_____. Autismo infantil. São Paulo: Memnon, 2003.
SYDER, Diane. Comunicação: alguns conceitos básicos. In:_____. Introdução aos distúrbios da comunica-
ção. Rio de Janeiro: Revinter, 1987. p. 1-25.
TAGER-FLUSBERG, Harry. Autistic children´s talk about psychological states: deficits in the early acquisition
of a theory of mind. Child Development, v.63, p.161-172, 1992.
VOLKMAR, Fred; COOK, Edward.; POMEROY, John. Practice parameters for the assessment ande treatment
of children, adolescents and adults with autism. Journal of American Academy of Child and Adolescent
Psychiatry, v. 36, p. 32-54, 1999.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 219
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
WING, Lorna. Asperger syndrome: a clinical account. Psychology Medical, v. 21, p. 115-129, 1981.
WING, Lorna. Continuum autístico. In: GAUDERER, E.C.; RITVO, E.R.; ORNITZ, E.M. Autismo e outros
atrasos no desenvolvimento: uma atualização para os que atuam na área do especialista aos pais. Brasília:
CORDE, 1992.
ZIATAS, Kathryn; DURKIN, Kevin; PRATT, Chris. Differences in assertive speech acts produced by children
with autism, Asperger syndrome, specific language impairments and normal development. Development
Psychopathology, v. 15, n. 1, p. 73-94, 2003.
220 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Simone Aparecida Lopes-Herrera; Maria Amélia Almeida
ANEXO
HABILIDADES DIALÓGICAS (HD). Aquelas que envolvem a troca de informações com conteúdos variados,
obedecendo às regras sociais de estabelecimento de diálogos. São elas:
Início de turno (IT). Habilidade em iniciar um diálogo, quando ainda nenhum assunto foi abordado, com
exceção dos cumprimentos sociais convencionais. Ex: um interlocutor diz ao outro Vamos brincar de bola?.
Manutenção de diálogo (MD). Habilidade em manter um tópico de conversação proposto pelo interlocutor
(atendo-se ao contexto) ou de tentar focalizar a atenção do interlocutor em determinado tópico já iniciado
(incluem-se aqui recursos como a repetição de parte de um enunciado para sua posterior continuidade,
evitando a quebra do diálogo). Ex: quando um interlocutor diz Vamos brincar de bola? e o outro responde
De bola? Tudo bem, mas só se for de futebol!.
Inserção de novos tópicos no diálogo (NT). Habilidade em sugerir, dentro de um diálogo, novos tópicos de
conversação. Ex: quando estão jogando futebol, um interlocutor diz ao outro Quem será que vai ganhar o
Campeonato Brasileiro? ou quando se está dialogando sobre um assunto e o interlocutor fala Você assistiu
Bom Dia SP hoje?.
Organização dialógica seqüencial (OS). Habilidade em respeitar as convenções de organização sequencial
das conversações, para preenchimento de turno dialógico, através de recursos como:
1. Comentários (OS(CM)) – emissões verbais utilizadas para identificar ou descrever objetos, pessoas ou
ações sem outra função que não a de partilhar a informação com o interlocutor. Tais emissões podem se
constituir de enunciados verbais completos ou vocalizações (incluindo onomatopéias ou músicas). Ex:
um interlocutor fala Este carro é um fusca e imita o som do carro.
2. Respostas diretas (OS(RD)) – quando, após uma indagação direta ou indiretamente formulada pelo
interlocutor, há a presença de uma resposta verbal contextual ou de atos motores (acompanhados de
verbalizações). Ex: um interlocutor solicita Você pode pegar a caneta para mim? e o outro fala Tá aqui
sua caneta!, ao mesmo tempo que a pega e devolve ao outro.
3. Imitação (OS(I)) – quando, para preencher um turno do diálogo, há a repetição integral da fala do
interlocutor ou de alguma outra emissão verbal relacionada ao assunto e evocada pelo diálogo. Ex: um
interlocutor fala Eu acho que hoje eu quero brincar de bola e o outro responde Eu acho que eu quero
brincar de bola.
4. Feedback ao interlocutor (OS(FI)) – composto de enunciados ou expressões verbais que indicam
apenas atenção à fala do outro, tendo o intuito de reforço ou correção. Ex: quando um interlocutor está
falando e o outro exclama Hã, hã ou Certo, certo.. ou Fala mais alto!.
Reparação de falhas (RF). Quando há a repetição integral ou em parte de uma emissão verbal, para correção
de algum erro de pronúncia ou formulação em si ou no outro. Ex: um interlocutor está falando Ontem, eu fui
ao paque, quer dizer, ao parque.
Variação de papéis (VP). Quando há utilização de formas verbais lúdicas que indiquem a emissão de um
outro falante não presente, real ou fictício. Ex: ao contar uma história que aconteceu em casa, um interlocutor
diz Daí, minha mãe falou: - Menino, como você está sujo! ou, ao brincar de fantoche, um dos interlocutores
fala no lugar do boneco.
Rotina social (RS). Uso de emissões verbais estereotipadas e socialmente adotadas no início ou final das
interações sociais, tais como cumprimentos, agradecimentos e outras emissões de função fática. Ex: Oi, tudo
bem? ou Tchau, até amanhã!.
Expressão de sentimentos (ES). Emissões verbais cuja função é a de expressar sentimentos como protesto,
surpresa, agrado, desagrado ou qualquer outra reação emocional. Ex: um interlocutor diz, ao final de um jogo
Adorei brincar com este jogo! É muito legal!
HABILIDADES DE REGULAÇÃO (HR). Emissões verbais cuja função é regular o ambiente comunicacional,
o seu próprio comportamento comunicativo ou o do interlocutor.
Auto-regulatória (AR). Emissões verbais utilizadas para controlar verbalmente sua própria ação. As emissões
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007 221
Crianças autistas de alto funcionamento e síndrome de asperger: estratégias para trabalhar as habilidades narrativo-discursivas...
precedem imediatamente ou acompanham o comportamento motor referido. Ex: o interlocutor exclama Calma
enquanto tenta tirar o sapato (e não está conseguindo).
Direcionamento de atenção (DAT). Qualquer emissão verbal realizada no sentido de chamar a atenção do
interlocutor par si mesmo, uma ação ou objeto determinado. Ex: um interlocutor diz ao outro Olha aquilo,
que bonito!
Direcionamento de ação (DAO). Qualquer emissão verbal realizada no sentido de controlar, solicitar ou
acompanhar uma ação direta do interlocutor. Ex: um interlocutor diz ao outro Termina este desenho mais
rápido, termina!
Solicitação de objeto (SO). Emissões verbais utilizadas para solicitar um objeto concreto ao outro. Ex: Me
passa aquele brinquedo ali!
Solicitação de informação (SI). Emissões verbais utilizadas no sentido de solicitar uma informação do
interlocutor. Podem ser compostas de expressões interrogativas diretas ou indiretas. Ex: Você tem namorado?.
Consentimento (CS). Emissões verbais que solicitam o consentimento do outro para realização de uma
ação. Ex: Posso pegar aquele caderno depois de guardar o livro?
HABILIDADES VERBAIS NÃO-INTERATIVAS (HNI). Referente a emissões verbais que não tenham o
conteúdo de interação como objetivo principal.
Uso da linguagem para estabelecimento da própria identidade (LPI). Quando o indivíduo refere-se a si
mesmo em suas emissões verbais. Ex: Daí, eu fiquei muito bravo e disse – Não bate mais em mim, que eu sou
forte!
Jogo simbólico (JS). Uso da linguagem para estabelecimento de relações de representação direta ou indireta
de objetos e/ou ações, utilizando-se de expressões verbais. Ex: um interlocutor diz, ao pegar dois bastões de
madeira e cruzá-los com movimentos no ar, O avião do Rei do gado ´tá voando! Uóm! Uóm!.
Metalinguagem (ML). Quando o indivíduo utiliza a fala para se referir à própria fala ou linguagem. Ex: Eu
acho que falar serve para as pessoas ficarem só assim, mexendo a boca. Eu já pensava mesmo, antes de só
falar – resposta de um interlocutor ao outro, quando indagado por que as pessoas falavam.
Recebido em 23.09.06
Aprovado em 04.11.06
222 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 203-222, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
CONCEPÇÕES DE MÃES
sobre desenvolvimento infantil e desempenho
cognitivo de filhos com deficiência visual,
em situação de avaliação assistida e tradicional
RESUMO1
Mães de crianças com deficiência visual (DV) podem ter baixas expectativas
sobre o desenvolvimento e o desempenho dos filhos em avaliações cognitivas.
Este estudo analisou se duas abordagens de avaliação cognitiva – tradicional e
assistida – afetam as expectativas maternas sobre o desempenho do filho com
DV (baixa visão). Doze díades mãe-criança (5-9 anos) foram aleatoriamente
separadas em dois grupos. Seguiu-se um delineamento cruzado, com três fases
– G1: A-B-A-C-A; G2: A-C-A-B-A, com uma semana entre as fases B e C.
Na fase A entrevistaram-se as mães sobre desenvolvimento e desempenho
cognitivo dos filhos. Na fase B , as mães observaram os filhos sendo avaliados
por uma prova assistida – Children’s Analogical Thinking Modifiability ou
Jogo de Perguntas de Busca de Figuras Geométricas para DV. Na fase C, as
mães observaram a aplicação da Escala de Maturidade Mental Columbia nos
filhos. Estes tiveram melhor desempenho nas provas assistidas; mas,
independentemente do delineamento cruzado, as mães avaliaram como melhor
o desempenho na última prova aplicada; da mesma forma, suas altas
expectativas não mudaram após observarem as avaliações. Contudo, oito mães
consideraram a avaliação assistida mais adequada para crianças com DV,
* Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo/
UFES. Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro/UFFJ. Endereço para correspondência: Instituto de Psicologia/UFRJ (pavilhão Nilton Campos), Av
Pasteur, 250, Praia Vermelha – 22250-040 Rio de Janeiro/RJ. E-mail: acbcunha@yahoo.com.br
** Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo-USP. Professora Associada 1 do Departamento de Psicolo-
gia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito
Santo; bolsista de produtividade em pesquisa 1 B do CNPq. Endereço para correspondência: Programa de Pós-
Graduação em Psicologia/UFES, Avenida Fernando Ferrari, Avenida Fernando Ferrari, 514, CEMUNI VI – 29075-910
Vitória/ES. E-mail: sonia.enumo@pesquisador.cnpq.br
*** Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista da
CAPES. Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia/UFES, Avenida Fernando Ferrari,
514 – 29075-910 Vitória/ES. E-mail: claudiapedroza@uol.com.br
1
Este trabalho é parte da tese de doutorado da primeira autora, com bolsa da CAPES, orientada pela segunda autora.
Financiamento: CNPq/MCT, Proc. n. 520808/97-5 (NV) e (SU) e bolsa de IC para a terceira autora.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 223
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
ABSTRACT
224 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 225
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
226 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 227
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
idade das mães variava entre 30 e 60 anos (mé- foi coletado o relato verbal de cada mãe sobre
dia = 40 anos de idade) e as crianças tinham suas avaliações em relação ao desenvolvimen-
entre 5 anos e 2 meses e 9 anos (média = 7 to do filho, inclusive ao seu desempenho nas
anos e 6 meses de idade), sendo 4 meninos e 8 situações de avaliação assistida (fase B) e tra-
meninas. Todas as crianças tinham deficiência dicional (fase C). O roteiro de entrevista com
visual, com predomínio de baixa visão leve, de- as mães da criança com DV incluía 17 pergun-
corrente de causas como retinoplastia da pre- tas abertas sobre cinco temas principais: 1)
maturidade e atrofia do nervo óptico, por desenvolvimento da criança, descrevendo
exemplo, com destaque para os problemas con- seus principais aspectos; 2) comparação da
gênitos, como a toxoplasmose, a catarata e o criança com DV com a criança normal, iden-
glaucoma. Todas as crianças freqüentavam a tificando sentimentos de negação e aceitação
escola (2 na rede privada de ensino, e 10 na da deficiência, assim como a reação emocional
rede pública), sendo que 8 delas ainda tinham a esta comparação; 3) avaliação do desen-
atendimento especializado em instituições de volvimento cognitivo da criança, avaliando
educação especial e de reabilitação. o desempenho cognitivo, suas dificuldades e
Com o objetivo de obter indicadores de como facilidades para aprender, os fatores que influ-
o fato da mãe observar a aplicação de provas enciam e agentes que ajudam na aprendizagem
assistidas e tradicionais em seu filho com DV da criança; 4) identificação como mãe de
afetaria sua avaliação sobre o desempenho cog- criança deficiente, esclarecendo a interação
nitivo infantil em situação de avaliação cogniti- com a criança e seu papel e sentimentos como
va, as mães foram divididas, aleatoriamente, em mãe de filho deficiente; 5) expectativas so-
2 grupos de acordo com a seguinte condição bre o futuro da criança, destacando as preo-
experimental: G1-avaliação assistida versus tra- cupações e expectativas sobre o futuro da
dicional, e G2-avaliação tradicional versus as- criança no que se refere à área pessoal, social
sistida. e profissional.
Os dois grupos de mães (G1 e G2) foram Esse roteiro de entrevista foi usado integral-
submetidos a um delineamento experimental de mente no início da coleta de dados (fase A).
tratamento múltiplo, em delineamento cruzado Após as fases B e C, foram realizadas novas
(crossover design), com 3 fases: A, B e C. entrevistas com as mães, que prescindiram de
Para G1, foi adotada a seqüência de fases A- roteiro uma vez que era perguntado a elas so-
B-A-C-A, enquanto que, para G2, a ordem foi mente a sua opinião a respeito do desempenho
inversa (A-C-A-B-A), a fim de contrabalançar da criança na sessão de avaliação cognitiva que
possíveis efeitos da seqüência de exposição das tinham acabado de assistir.
mães à situação de avaliação cognitiva tradici- Na fase B (avaliação assistida), as mães
onal e assistida, e as expectativas maternas assistiram a suas crianças serem avaliadas pelo
acerca do desempenho infantil nessas situações CATM - Children’s Analogical Thinking
de avaliação. Houve um intervalo de uma se- Modifiability (TZURIEL; KLEIN, 1990), para
mana entre as fases B e C. as crianças com idade abaixo de 7 anos ou para
Antes do início da coleta de dados, foi soli- aquelas que tiveram dificuldade na outra prova
citada a cada mãe participante uma autoriza- assistida. Para as crianças com idade acima
ção formal por escrito, obedecendo aos aspectos de 7 anos foi usado o PBFG-DV- Jogo de Per-
éticos que devem ser considerados em pesqui- guntas de Busca com Figuras Geométricas para
sas com seres humanos. Logo após foram rea- Crianças com DV (ENUMO; BATISTA,
lizadas, individualmente, as entrevistas, que 2006a), já descrito anteriormente. Na fase C
foram gravadas em áudio e, posteriormente, (avaliação tradicional), as mães assistiram à
transcritas na íntegra. aplicação da Escala de Maturidade Mental
Na fase A, utilizando um roteiro de entre- Columbia (BURGEIMESTER; BLUM; LOR-
vista semi-estruturado, elaborada pelas autoras, GE, 1999) nas crianças.
228 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
Com relação aos dados das crianças, cabe nho cognitivo da criança na prova, como, por
destacar que foram obtidos diversos indicado- exemplo, “Estava com mais dificuldade (ava-
res de desempenho cognitivo infantil de acordo liação assistida) “... esse, eu acho que foi mais
com cada tipo de prova assistida (CATM ou fácil” (avaliação tradicional) (M4).
PBFG-DV). No entanto, para a análise proposta Esses dados foram tratados estatisticamen-
neste estudo, foram consideradas, para avalia- te pelo teste Kruskall Wallis Test, com objeti-
ção cognitiva tradicional, as respostas das vo de analisar os efeitos da condição experi-
crianças em termos de escores de desvios de mental (G1 versus G2) sobre as avaliações
idade (EDI), obtidos por elas na Escala Colum- maternas acerca do desempenho cognitivo da
bia; e para avaliação cognitiva assistida, o criança na avaliação cognitiva.
perfil de desempenho cognitivo das crianças,
de acordo com a seguinte classificação: alto-
escore, ganhador-mantenedor, ganhador- RESULTADOS
dependente-de-assistência e não-mantene-
dor. Esse perfil de desempenho obtém-se a Os resultados das crianças serão apresen-
partir das respostas das crianças entre as dife- tados antes dos resultados das mães, a fim de
rentes fases da prova assistida (sem ajuda-SAJ, contextualizar a situação observada por elas,
de assistência-ASS e de manutenção-MAN), fornecendo subsídios para a análise da possível
em termos dos tipos de tentativas de solução influência dos diferentes procedimentos de ava-
(acertos, acertos-ao-acaso e incorretas), por liação cognitiva, assistida e tradicional sobre as
cartão no CATM, e em termos de tipos de per- avaliações maternas acerca do desenvolvimento
guntas de busca (relevantes, irrelevantes, re- e do desempenho cognitivo da criança com DV,
petidas) e tipos de tentativas de solução (acer- já que os dados das crianças também descre-
tos, acertos-ao-acaso e incorretas), por prancha vem e permitem comparar seu desempenho nas
no PBFG-DV3 . duas modalidades de avaliação cognitiva.
Em relação aos dados com as mães, o Assim, com relação aos resultados das cri-
conteúdo das entrevistas foi analisado de acor- anças na avaliação tradicional pelo Columbia,
do com a metodologia de análise de conteúdo elas apresentaram desempenho cognitivo bai-
(BARDIN, 1977), em categorias e suas res- xo em termos de escore de desvio de idade
pectivas subcategorias para os cinco temas prin- (EDI), o que classificou mais da metade da
cipais anteriormente descritos, sendo registradas amostra (n = 7) como tendo um desempenho
a freqüência simples e a proporção de mães ou cognitivo “inferior” e “médio-inferior”. As de-
de citações que se enquadrava em cada subca- mais crianças foram classificadas como tendo
tegoria. desempenho na “média”. Apesar de ter ocorri-
Os dados das entrevistas das mães realiza- do diferença de desempenho no Columbia en-
das logo após a prova cognitiva, em que elas tre as crianças dos grupos G1 e G2, de acordo
avaliaram o desempenho cognitivo das crian- com o Teste de Wilcoxon essa diferença não
ças na avaliação cognitiva tradicional e assisti- foi significativa.
da, foram classificadas nas duas categorias de Quanto ao perfil de desempenho cognitivo
pontuação do desempenho cognitivo infantil a infantil identificado nas provas assistidas, a
seguir:
3
1) Bom – resposta verbal da mãe que ex- Por exemplo, para a criança ser classificada como ganha-
dora-mantenedora, ela deveria melhorar ou manter seu de-
pressava uma avaliação positiva do desempe- sempenho na fase de assistência em relação à fase sem
nho cognitivo da criança na prova, como, por ajuda em uma proporção de pelo menos 0.50 de créditos
totais (para o CATM), ou em uma proporção de pelo me-
exemplo, “... acho que ele foi melhor neste nos 0,60 de perguntas relevantes e 0.50 de acertos (para o
teste de hoje” (avaliação assistida) (M8); PBFG-DV), mantendo esse ganho no desempenho na fase
de manutenção em uma proporção de 0.50 de créditos to-
2) Mau – resposta verbal da mãe que ex- tais (no CATM) ou em uma proporção de 0,60 de perguntas
pressava uma avaliação negativa do desempe- relevantes e 0,50 de acertos (no PBFG-DV).
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 229
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
maioria das crianças (n = 5), no PBFG-DV, foi dos na avaliação assistida, e os escores de des-
ganhadora-mantenedora e uma criança foi vio de idade (EDI), obtidos na avaliação tradi-
considerada alto-escore; enquanto que, no cional, a maioria (n = 7) das crianças, mesmo
CATM, as crianças foram classificadas como aquelas consideradas pela avaliação assistida
ganhadoras-mantenedoras (n = 3), ganha- como ganhadoras, foi classificada, segundo a
doras-dependende-de-assistência (n = 1) e Escala Columbia, como tendo desempenho “in-
não-mantenedoras (n = 2). ferior” e “médio-inferior” (C1, C2, C7, C9, C10,
Como pode ser observado na Figura 1, com- C11 e C12), ou seja, indivíduos com EDI inferi-
parando-se esses perfis de desempenho, obti- or a 69 ou EDI entre 70 e 88, respectivamente.
Os resultados das mães serão descritos em cia da condição de teste (G1- condição 1: as-
termos dos dados referentes às suas avaliações sistida-tradicional; G2- condição 2: tradicional-
acerca do desenvolvimento das crianças e do assistida) sobre a avaliação das mães acerca
desempenho destas na situação de avaliação do desempenho infantil nas provas.
cognitiva, tomando por base o número de mães No que se refere ao primeiro tema descri-
que se pronunciaram sobre cada categoria e ção da criança, mais da metade das mães (58%
subcategoria para cada um dos cinco temas de da amostra) utilizou aspectos afetivos negati-
análise de conteúdo. Além disso, foram anali- vos, como, por exemplo, ser nervoso, inseguro,
sados os dados referentes à análise da influên- implicante, para caracterizar a criança. Com
230 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 231
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
fatores que mais influenciam o desenvolvimen- com frases como: “Ensinar ele a dar valor
to cognitivo infantil, em primeiro lugar elas cita- aos estudos, porque é uma peça importante
ram a escola e a família (8 vezes), e em segundo pra ele ir pro adulto”. Já sentimentos negati-
lugar o atendimento, que foi citado cinco vezes. vos, como, por exemplo, resignação, frustração,
Nos relatos das mães, foram lembradas ainda tristeza e vergonha, foram relatados pela maio-
atividades desportivas e de lazer (n = 2) e, em- ria das mães (n = 8). Por suas vez, privilegia-
bora com menor freqüência, o esforço da pró- da e realizada são exemplos de sentimentos
pria criança (n = 1) (“Ele mesmo, a vontade positivos que foram citados apenas duas vezes;
que ele tem de aprender, a força de vontade o mesmo ocorreu com os sentimentos ambíguos
dele mesmo”), além de atividades realizadas na de felicidade e culpa, que foram citados duas
comunidade como, por exemplo, participar de vezes e aparecem em frases do tipo: “Me sin-
um grupo religioso (n = 1) (“Ele contava os to feliz, até porque eu não posso consertar,
dias pra chegar o sábado, ele ir pro cate- né? Eles não têm culpa, eles não têm culpa,
cismo... é uma coisa mínima, mas pra ele é porque a culpada mesmo sou eu”.
muito, ajuda no desenvolvimento”). Por fim, o quinto e último tema analisado
Com relação ao quarto tema investigado, nas entrevistas maternas refere-se às expec-
identificação como mãe de criança defici- tativas sobre a criança. Dentre as principais
ente, no que se refere à interação com o filho, preocupações das mães destacam-se as de or-
oito mães citaram o brincar como principal ati- dem social e as relativas à saúde física da cri-
vidade de interação com a criança, seguida de ança, citadas em quatro relatos maternos. Em
atividades rotineiras como levar para a escola relação à saúde da criança, a perda da visão foi
(n = 5), para o atendimento (n = 5) e auxiliar a única preocupação apontada. Como preocu-
nas tarefas escolares (n = 5). Ensinar compor- pações de ordem social foram apontadas as
tamentos adequados, como, por exemplo, disci- questões relacionadas ao suporte familiar, à
plina e atividades domésticas, foi citado quatro adaptação social e independência/autonomia da
vezes, enquanto que ocorreu apenas uma cita- criança. Apareceram também relatos de preo-
ção de dar carinho e levar para atividades ex- cupações de ordem financeira, como ter um
tra-escolares, como natação, por exemplo. salário ou uma poupança para, no futuro, a cri-
Em contrapartida, demonstrar afeto (dar ança ser independente, que foram citadas três
carinho = “Então eu tenho mais que acolher vezes. Além disso, preocupações de ordem psi-
e aceitar com carinho” e valorizar auto-esti- cossocial apareceram duas vezes, e preocupa-
ma = “Eu não deixo ela se diminuir”) foi a ções de ordem profissional apenas uma vez nos
categoria mais citada (n = 9) para identificar as relatos das mães.
atribuições de uma mãe de criança deficiente. As expectativas das mães se relacionam aos
Cumprir deveres, como levar para a escola e aspectos sociais, acadêmicos e profissionais a
para o atendimento, além de promover suporte respeito do futuro da criança. Ocorreram 11
sócio-educacional (promover autonomia, inde- citações maternas que expressavam a expec-
pendência e oferecer proteção), foram as prin- tativa da mãe sobre a criança ter uma profis-
cipais atribuições maternas citadas por estas são, como, por exemplo, a de psicólogo, de
mães (n = 6, respectivamente). dentista, ou de veterinário, ocorrendo, conse-
Aceitar a deficiência da criança seria uma qüentemente, uma alta freqüência de mães
atribuição importante que aparece cinco vezes (83%) que relataram desejar que a criança in-
nos relatos das mães, representada por frases gressasse na faculdade ou simplesmente estu-
como “... toda mãe, toda mulher quando ti- dasse para ter uma profissão. Com relação aos
ver que ser mãe é mãe. Mas, ser mãe de um aspectos sociais do futuro da criança, as cate-
deficiente, nem toda mulher tem esse direito. gorias constituir família (“depois ela não vai
Só Deus quem dá”. Da mesma forma, trans- morar com mamãe, vai crescer, vai casar”) e
mitir valores foi citado com freqüência (n = 6), ter independência e autonomia social (“Expli-
232 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
cando que ela vai ter que fazer faculdade, Com objetivo de saber se as avaliações
ela estudar, ser uma pessoa independente”) maternas sobre o desempenho cognitivo in-
foram ambas citadas cinco vezes. fantil foram afetadas pela condição experi-
Os dados das mães relativos às entrevistas, mental (G1 versus G2 = a mãe observar
realizadas após elas assistirem à avaliação cog- primeiro a avaliação assistida e depois a tra-
nitiva assistida e tradicional da criança, indicam dicional ou vice-versa), foi calculada a signi-
que, comparando o desempenho infantil em ficância estatística das diferenças, de acordo
cada tipo de avaliação, de acordo com a condi- com o teste de Kruskall-Wallis 4 . Observou-
ção experimental (G1: assistida-tradicional e G2: se que, ainda que descritivamente, a maioria
tradicional-assistida), oito mães consideraram das mães (n = 8) tenha considerado o de-
o desempenho da criança melhor na avaliação sempenho da criança melhor na avaliação
assistida do que na tradicional. Destas mães, assistida, a ordem de apresentação e o tipo
seis pertenciam ao G2 e duas ao G1, o que sig- de prova não afetaram estatisticamente as
nifica que nenhuma mãe do G2, ou seja, que suas verbalizações sobre o desempenho da
assistiu à criança ser inicialmente avaliada pelo criança na prova, uma vez que não ocorre-
método tradicional, considerou o desempenho ram diferenças significativas a 5% de proba-
da criança melhor neste tipo de avaliação. bilidade entre as condições de teste (G1
A maioria das mães (n = 8) considerou o versus G2) para ambas as situações de ava-
desempenho da criança melhor na avaliação liação, tradicional e assistida. Conclui-se, en-
assistida, justificando sua opinião baseada em tão, que a segunda prova cognitiva aplicada
quatro justificativas: 1) apresentação do mate- no filho, após uma semana de intervalo da
rial da prova assistida (“... hoje, foi bom por- primeira aplicação, foi sempre melhor avali-
que a criança observa, além das cores, as ada pelas mães com 95% de probabilidade
formas, o conjunto, né? Quando coloca jun- estatística.
to assim, ela pensa que tem que observar o Igualmente, a fim de constatar possíveis re-
tamanho do conjunto pra saber a forma... lações entre as avaliações maternas sobre o
tem que prestar atenção...”); 2) dificuldades desempenho cognitivo dos filhos nas duas pro-
da criança relacionadas ao material do teste tra- vas aplicadas e os resultados das crianças nas
dicional (“... então, ela tinha que firmar mui- provas cognitivas - tradicional e assistida -, foi
to as vistas e ver as comparações... tinha feita uma correlação (Spearman) entre a pon-
que trabalhar mais a memória”); 3) procedi- tuação da mãe em termos de bom desempenho
mento de aplicação do teste tradicional ( “... (1) e mau desempenho (2) da criança nas pro-
ele não entendeu bem... talvez o modo de vas cognitivas, e os resultados da criança na
perguntar”); e 4) dinâmica do teste tradicional avaliação tradicional (desvios de idade pelo
(“... ele estava cansado, ele estava mais Columbia) e na avaliação assistida (acertos na
apontando por apontar...”). fase de manutenção do CATM e do PBFG-
Por outro lado, as quatro mães que conside- DV). Observou-se que não houve correlações
raram o desempenho da criança melhor na ava- significativas (p = =0.05; p = =0,01) entre as
liação tradicional justificaram sua resposta em avaliações maternas e os resultados das crian-
função, por exemplo, da prova ter sido mais ças nem na situação de avaliação tradicional,
rápida (M6, G1: “Também achei bom e foi mais nem na situação de avaliação assistida (p =
rápido, não foi?”), da criança estar mais dis- 0,156; p = -0,591). Isto significa que, para esta
posta e interessada (M3, G1: “... No outro, ele amostra (n = 12), uma boa ou má avaliação da
estava fadigado, querendo ir embora logo... mãe sobre o desempenho cognitivo da criança,
neste, eu percebi que ele estava realmente
interessado em achar a diferença”), ou mes- 4
O Teste de Kruskal-Wallis faz a análise de significância
estatística a partir da média de Rank, em que se consideram
mo do fato da criança estar ou não usando ócu- as médias mais baixas representando melhores resultados.
los no dia da aplicação. Foi usado o nível de significância de p= 0,05.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 233
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
tanto na avaliação tradicional como na avalia- responder de forma mais positiva nesta inte-
ção assistida, não se correlacionou com o bom ração.
ou mau desempenho da criança na avaliação No presente estudo, semelhante aos acha-
cognitiva. dos de Benjamim e Lomofsky (2002), ainda que
sem a existência de correlações estatisticamente
significativas, a maioria das mães (n = 8) consi-
DISCUSSÃO derou o desempenho cognitivo infantil melhor
na avaliação assistida, e esse tipo de avaliação
Primeiramente, cabe fazer considerações a mais adequado para a criança com DV devido
respeito da adequação das provas assistidas para a fatores relacionados ao material e/ou à dinâ-
avaliação cognitiva da criança com deficiência mica do teste em si.
visual (DV). Apesar de mais da metade da No entanto, ao contrário do que ocorreu nos
amostra (n = 7) ter sido classificada com um estudos de Benjamim e Lomofsky (2002), de
desempenho cognitivo “inferior” e “médio-in- Delclos, Burns e Kulewicz (1987), de Delclos,
ferior” na prova cognitiva tradicional (Colum- Burns e Vye (1993) e de Vye et al. (1987),
bia), o perfil de desempenho cognitivo obtido quando professores desenvolveram uma visão
na avaliação assistida pelo CATM e PBFG-DV mais otimista acerca do desenvolvimento cog-
mostrou que apenas duas crianças (C1 e C2) nitivo infantil após observarem uma situação
foram consideradas não-mantenedoras, isto é, de avaliação assistida, na presente pesquisa,
não se beneficiaram da mediação oferecida na não ocorreram mudanças nas avaliações das
fase de assistência da prova assistida, não me- mães acerca da criança depois de observa-
lhorando o desempenho nas proporções dese- rem a avaliação assistida ou tradicional do fi-
jadas na fase de manutenção. lho. Neste caso, para essas mães, tanto a
Dessa forma, comparando os resultados da condição experimental (ordem de apresenta-
avaliação tradicional e da avaliação assistida, ção – G1: assistida-tradicional; G2: tradicio-
pode-se supor que as provas assistidas foram nal-assistida) quanto o tipo de prova (tradicional
mais sensíveis em identificar a variação de de- ou assistida) não alteraram as suas verbaliza-
sempenho das crianças com DV, como obser- ções sobre as avaliações acerca da criança.
vou Enumo e Batista (2000, 2006a, 2006b). Além Todas as mães continuaram considerando que
disso, a avaliação assistida para a criança com os filhos tinham inteligência média (n = 6),
DV pode propiciar a compreensão do funcio- acima da média (n = 5) e superior (n = 1),
namento cognitivo da criança no que diz res- independente do desempenho das crianças nas
peito aos processos, estratégias, funções e estilos avaliações. Ou seja, as expectativas das mães
cognitivos, subjacentes ao desempenho infantil eram altas e, às vezes distorcidas, desde o iní-
na situação de aprendizagem. cio da pesquisa, havendo, portanto, poucas
A avaliação assistida foi usada em estudos possibilidades de alteração.
com o objetivo de verificar a relação entre a A fim de ilustrar, cabe destacar o caso de
observação da situação de avaliação assistida Carolina (C1), que foi avaliada como tendo uma
e a mudança na percepção de professores inteligência acima da média (“muito inteligen-
acerca do desempenho cognitivo do aluno com te”) pela sua mãe e, na verdade, apresentou
necessidades especiais (BENJAMIN; LO- um dos mais baixos desempenhos da amostra,
MOFSKY, 2002; DELCLOS; BURNS; KU- tanto na avaliação assistida quanto na tradicio-
LEWICZ, 1987, 1993; VYE et al., 1987). Nes- nal. Essa criança foi classificada como defici-
ses estudos, comprovou-se que o fato do adulto ente mental (QI = 56) no Columbia e
observar a avaliação assistida pode promover não-ganhadora na avaliação assistida pelo
uma mudança na postura adotada por ele na CATM. Este caso exemplifica o fato de que,
interação com a criança, ao passar a apresen- por vezes, as mães podem apresentar uma ava-
tar um estilo baseado na mediação, além de liação completamente incompatível com o de-
234 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
sempenho cognitivo da criança, o que torna sua do esta experimenta sentimentos como triste-
percepção ainda mais difícil de ser modificada. za, culpa e medo, ao constatar que um dos seus
As provas assistidas foram consideradas membros tem alguma deficiência. Tais senti-
mais adequadas do que a tradicional na opinião mentos podem ou não ser superados, mas cer-
da maioria das mães (n = 8); no entanto, anali- tamente alteram a dinâmica da família.
sando as condições em que esta resposta foi Na avaliação do desenvolvimento cog-
obtida, vê-se que este dado não foi estatistica- nitivo da criança, as mães classificaram-na
mente significativo, já que a segunda etapa da como “muito inteligente”, “inteligente” e “su-
avaliação é sempre melhor avaliada pela mãe, perinteligente’, citando, em geral, as habilida-
com 95% de probabilidade estatística. Cabe des cognitivas de memória para justificar esse
esclarecer que, para evitar que as respostas da julgamento e relatando que as crianças tinham
amostra fossem controladas pela condição ex- facilidade para aprender (n = 10). Simultane-
perimental, recorreu-se ao uso do delineamen- amente, as mães relataram que as crianças
to cruzado (crossover design). Neste tipo de tinham dificuldades para aprender relaciona-
delineamento experimental, a metade da amos- das à visão (n = 6), com outros aspectos asso-
tra passou pela condição inversa de exposição ciados ou não (n = 3). Este dado revela uma
às condições de estímulo ou de exposição à certa incongruência ou dissonância nas avali-
variável independente (tipo de prova cognitiva), ações das mães acerca do desenvolvimento
com objetivo de evitar que os participantes fos- cognitivo do filho, pelo fato das dificuldades
sem controlados pela exposição das condições de crianças com DV poderem não ser atribu-
de estímulo, ou seja, que a exposição à última ídas imediatamente a uma dificuldade de apren-
prova influenciasse as respostas das mães. dizagem, mas sim à incapacidade visual
Apesar deste controle metodológico, a se- (LAYTON; LOCK, 2001). Para essas mães
gunda etapa de avaliação cognitiva da criança (n = 9), a família foi considerada a influência
foi mais bem avaliada pelas mães. Uma possí- mais importante na educação da criança com
vel justificativa para este dado estaria no in- DV e um dos agentes que mais auxiliam na
tervalo de tempo de exposição entre a primei- sua educação. Elas (n = 8) também conside-
ra e a segunda etapas de avaliação – uma raram a escola como o segundo agente que
semana. Esta situação pode ter levado as par- mais ajuda na educação da criança. Cabe des-
ticipantes a ficarem sob controle da “recenti- tacar que o terapeuta ficou em último lugar
cidade do estímulo”, respondendo à condição nas suas indicações (n = 2), o que é confirma-
mais próxima em termos de memória (CAPO- do por dados de pesquisa da área, que reve-
VILLA et al., 1997). Outras pesquisas poderi- lam que os pais de crianças com DV enfrentam
am verificar esta condição, apresentando as stress devido a dificuldades em encontrar aju-
provas com intervalo de tempo maior e amos- da profissional adequada para sua criança
tras maiores também. (LEYSER; HEINZE; KAPPERMAN, 1996).
Analisando os relatos verbais maternos, ob- Merece destaque o fato da maioria das mães
servou-se que as mães descreveram negativa- citar o brincar como atividade principal na inte-
mente as crianças como nervosas e inseguras, ração mãe-criança. Esse dado é bastante re-
e positivamente como “inteligente”, “muito in- velador, considerando que, de acordo com
teligente” e “superinteligente”. Ao comparar Vygotsky (1978/1991), a brincadeira é a ativi-
a criança com DV com a criança normal, as dade principal e condutora do desenvolvimento
mães negaram a deficiência (n = 7), além de infantil, pois cria zonas de desenvolvimento pro-
relatarem indiferença, tristeza e medo como ximal, em que as crianças se comportam “...
reações emocionais à comparação. Esses da- além do comportamento habitual de sua idade,
dos são corroborados por Batista e Enumo além do seu comportamento diário” (p. 117).
(2000), que afirmam ser a interação familiar da Na interação com a criança com DV, as mães
criança com DV prejudicada pela família quan- também citaram as atividades relacionadas à
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 235
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
escola e ao atendimento clínico, ao lado da ne- também com as atitudes das pessoas, o suporte
cessidade de ensinar comportamentos adequa- financeiro e emocional e os recursos produzidos
dos. De fato, na educação de uma criança com para enfrentar a situação da deficiência.
DV, a mãe se depara com demandas diferen- Segundo Vye et al. (1987), os resultados que
tes das existentes na criação de uma criança a criança atinge na avaliação assistida podem
que enxerga. Para Troster (2001), mães de cri- servir como argumento para convencer o adul-
anças com DV, em comparação com as mães to de que ela tem mais potencial para aprender
de crianças normais, experimentam mais stress do que aparenta. Assim, a mãe ser exposta à
relacionado aos aspectos resultantes do com- aplicação de procedimentos de avaliação cog-
portamento da criança deficiente. nitiva assistida ou tradicional, com intervalo de
No que se refere às expectativas sobre o uma semana entre as aplicações, não modifi-
futuro da criança houve relatos maternos que cou significativamente suas concepções acer-
expressaram preocupações relativas à saúde (per- ca do desenvolvimento e desempenho cognitivo
da da visão) e à adaptação social (n = 4) da crian- da criança com DV. Porém, semelhante a ou-
ça, coerentemente com dados da literatura, que tras pesquisas com professores (BENJAMIN;
mostram haver preocupações também em rela- LOMOFSKY, 2002; DELCLOS; BURNS;
ção à sua própria vida pessoal (LEYSER; HEIN- KULEWICZ, 1987, 1993; VYE et al., 1987), o
ZE; KAPPERMAN, 1996). A título de ilustração, fato da maioria das mães ter avaliado as pro-
cabe destacar a fala de uma mãe sobre sua preo- vas assistidas como melhores para essas crian-
cupação com a filha: “Eu me preocupo já com o ças sugere a capacidade dessa prova em ser
futuro dela como ela vai reagir quando ela um modificador da percepção materna acerca
tiver 12 anos, 13 aninhos, por aí, fase da ado- do desempenho cognitivo do filho, de forma a
lescência”. Para Hancock, Wilgosh e McDonald melhorar as expectativas e, conseqüentemen-
(1990), mães de criança com DV se preocupam te, a interação da mãe com a criança.
REFERÊNCIAS
236 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Ana Cristina Barros da Cunha; Sônia Regina Fiorim Enumo; Cláudia Patrocínio Pedroza Canal
CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F. Desenvolvimento da criança com deficiência visual (DV) e interacção
mãe-criança: algumas considerações. Psicologia, Saúde & Doenças, Lisboa, v. 4, n. 1, p. 33-46, mar. 2003.
CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F.; PEDROZA, C. P. Será que o meu filho tem potencial de aprendizagem:
breve análise da relação entre avaliação cognitiva dinâmica da criança com deficiência visual(DV) e interacção
mãe-criança. Integrar, Lisboa, n. 21-22, p. 47-52 (número especial): maio/dez. 2003, jan./dez. 2004.
CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F.; CANAL, C. P. P. Relações entre avaliações cognitivas, assistida e
tradicional, de crianças com deficiência visual e padrões maternos de mediação durante jogos de dominó. In:
GARCIA, A. (Org.). Relacionamento interpessoal: estudos e pesquisas. Vitória: UFES, 2006a. p. 39-54
_____. Operacionalização de escala para análise de padrão de mediação materna: um estudo com díades
mãe-criança com deficiência visual. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 12, n. 3, p. 293-412,
set./dez. 2006b.
DELCLOS, V. R.; BURNS, M. S.; KULEWICZ, S. J. Effects of dynamic assessment on teacher’s expectations
of handicapped children. American Educational Research Journal, v. 24, n. 3, p. 325-336, 1987.
DELCLOS, V. R.; BURNS, M. S.; VYE, N. J. A comparison of teachers´responses to dynamic and traditional
assessment reports. Journal of Psychoeducational Assessment, Washington, v. 11, n. 1, p. 46-55, Mar. 1993.
ENUMO, S. R. F. Avaliação assistida para crianças com necessidades educativas especiais: um recurso auxiliar
na inclusão escolar. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 11, n. 3, p. 335-354, set./dez. 2005a.
ENUMO, S. R. F. Avaliação de crianças com necessidades educativas especiais em situação de pesquisa-
intervenção: dificuldades e algumas soluções. In: GUILHARDI, H.; AGUIRRE, N. C. (Orgs.). Sobre compor-
tamento e cognição: expondo a variabilidade. Santo André: ESETEC, 2005b. v. 16, p. 310-330.
ENUMO, S. R. F.; BATISTA, C. G. Evaluating cognitive abilities of visually impaired children. In: STUEN, C.
et al. (Eds.). Vision rehabilitation: assessment, interventions and outcomes. EUA: Sweets & Zeitlinger Pb.,
2000. p. 379-381.
ENUMO, S. R. F.; BATISTA, C. G. Jogo de perguntas de busca com figuras geométricas para crianças com
deficiência visual (PBFG-DV). In: LINHARES, M. B. M; ESCOLANO, A. C. M.; ENUMO, S. R. F. (Orgs.). Avaliação
cognitiva assistida: fundamentos, procedimentos e aplicabilidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006a. p. 29-37.
ENUMO, S. R. F.; BATISTA, C. G. Avaliação assistida de habilidades cognitivas de crianças com deficiência
visual por jogo de perguntas de busca com figuras geométricas em crianças com deficiência visual (PBFG-
DV). In: LINHARES, M. B. M; ESCOLANO, A. C. M.; ENUMO, S. R. F. (Orgs.). Avaliação cognitiva assisti-
da: fundamentos, procedimentos e aplicabilidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006b. p. 87-101.
ENUMO, S. R. F.; BATISTA, C. G.; FERRÃO, E. S. Uma proposta de avaliação de aspectos do desenvolvi-
mento cognitivo e acadêmico de crianças com deficiência visual. In: ENUMO, S. R. F.; QUEIROZ, S. S. de;
ORTEGA, A. C. (Orgs.). Desenvolvimento humano e aprendizagem: temas contemporâneos. Vitória: PPGP/
UFES; CAPES; Linhares: Unilinhares, 2005. p. 45-77.
ENUMO, S.R.F. et al. Comportamentos do mediador e da criança com deficiência visual na avaliação assis-
tida de habilidades cognitivas. Temas em Psicologia, Ribeirão Preto, v. 10, n. 1, p. 71-84, jan./abr. 2002.
FEUERSTEIN, R.; FEUERSTEIN, S. Mediated learning experience: a theoretical review. In: FEUERSTEIN, R.;
KLEIN, P.S.; TANNEMBAUM, A. J. Mediated Learning Experience (MLE): theoretical, psychosocial and
learning implications. London: Freund Publishing, 1991. p 3-51.
FONSECA, V. Pais e filhos em interação: aprendizagem mediada no contexto familiar. São Paulo: E. Salesiano, 2002.
FONSECA, V.; CUNHA, A. C. B. Teoria da experiência de aprendizagem mediatizada e interação familiar:
prevenção das perturbações do desenvolvimento e aprendizagem. Lisboa: Editora da Faculdade de
Motricidade Humana, Universidade Técnica de Lisboa, 2003.
FONSECA, V.; CUNHA, A. C. B.; ENUMO, S. R. F. O desenvolvimento cognitivo da criança com deficiência
visual e suas perspectivas de avaliação: da abordagem padronizada à avaliação dinâmica. Revista de Educa-
ção Especial e Reabilitação, Lisboa, v. 9, n. 1/2, p. 75-91, jan./dez. 2002.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Retratos da deficiência no Brasil. 2003. Disponível em: http://www.fgv.br/
cps/deficiencia_br/PDF/PPD_Sumario_Executivo.pdf. Acesso em: 25 mar. 2007.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007 237
Concepções de mães sobre desenvolvimento infantil e desempenho cognitivo de filhos com deficiência visual, em situação de ...
HANCOCK, K.; WILGOSH, L.; MCDONALD, L. Parenting a visually impaired child: the mother´s perspective.
Journal of Visual Impairment & Blindness, Baltimore, v. 84, n. 10, p. 411-413, Oct. 1990.
LAYTON, C. A.; LOCK, R. H. Determining learning disabilities with low vision. Journal of Visual Impairment
& Blindness, Baltimore, v. 95, n. 5, p. 288-297, May 2001.
LEYSER, Y.; HEINZE, A.; KAPPERMAN, G. Parental stress and family functioning. Journal of Visual
Impairment & Blindness, Baltimore, v. 94, n.8, p. 399-412, Aug. 1996.
LIDZ, C. S. Practioner’s Guide to Dynamic Assessment. New York: The Guilford Press, 1991.
_____. Theme and some variations on the concepts of mediated learning experience and dynamic assessment.
In: KOZULIN, A.; RAND, Y. (Eds.). Experience of mediated learning: an impact of Feuerstein´s theory in
education and psychology. New York: Pergamon, 2000. p. 166-174.
_____. Mediated learning experience as a basis for an alternative approach to assessment. School Psychology
International, Exeter, UK, v. 23, n. 1, p. 68-84, Feb. 2002.
LINHARES, M. B. M. Jogo de Perguntas de Busca com Figuras Geométricas (PBFG). In: LINHARES, M.B.M.;
ESCOLANO, A.M.; ENUMO, S.R.F. (Orgs.). Avaliação cognitiva assistida: fundamentos, procedimentos e
aplicabilidade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006. p. 35-37.
LINHARES, M. B. M. Avaliação assistida de crianças com queixa de dificuldade de aprendizagem. Temas em
Psicologia, Ribeirão Preto, v. 4, n. 1, p. 23-31, jan./abr. 1996.
TROSTER, H. Sources of stress in mothers of young children with visual impairments. Journal of Visual
Impairment & Blindness, Baltimore, v. 95, n. 10, p. 623-637, out. 2001.
TZURIEL, D. Mediated learning experience in free-play versus structured situations among preschool
children of low, medium and high-SES. Early Child Development and Care, Uxbridge, UK, v. 126, n.1, p. 57-
82, Jan./Feb. 1996.
TZURIEL, D. Parent-child mediated learning interactions as determinants of cognitive modifiability: Recent
researchers and future directions. Genetic, Social and General Psychology Monographs, Washington, DC,
v. 125, n. 2, p. 109-156, May/Aug. 1999.
TZURIEL, D.; ERAN, Z. Inferential cognitive modifiability as a function of mother-child mediated learning
experience interactions among Kibbutz young children. International Journal of Cognitive Education and
Mediated Learning,, v. 1, p. 103-117,1990.
TZURIEL, D.; KLEIN, P. S. The Children’s Analogical Thinking Modifiability Test: instruction manual.
Ramat-Gan: School of Education Bar Ilan University, 1990.
TZURIEL, D.; WEISS, S. Cognitive Modifiability as a function of mother-chid mediated learning strategies,
mother’s acceptance-rejection, and children’s personality. Early Development and Parenting, New Jersey, v.
7, n. 2, p. 79-99, Jun. 1998.
TZURIEL, D.; WEITZ, A. Mother-child mediated learning experience strategies and children’s cognitive
modifiability among very low birth weight and normally born weight (NBW) children. School of Education,
Bar Ilan University, 1998. (Manuscrito não-publicado).
VYE, N. J. et al. A comprehensive approach to assessing intellectually handicapped children. In: LIDZ, C. S.
(Ed.). Dynamic assessment: an interactional approach to evaluating learning potential. London: Guilford
Press, 1987. p. 327-359.
VYGOTSKY, L.S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores.
Tradução de J. C. Neto; L. S. M. Barreto; S. C. Afeche. São Paulo: Martins Fontes, 1978/1991.
WECHSLER, D. Escala de Inteligência para Crianças – WISC: manual de aplicação e cotação. Tradução de
Ana Maria Poppovic. Rio de Janeiro: CEPA, 1964.
Recebido em 30.09.06
Aprovado em 04.12.06
238 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 223-238, jan./jun., 2007
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins
RESUMO
* Mestre em Educação Especial. Doutoranda em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
– Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Endereço para correspondência: Av. Vicente Guaglianoni, 60,
Santa Angelina – 14802-120 Araraquara/SP. E-mail: alinemaira@yahoo.com.br
** Doutora em Psicologia. Professora adjunta do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos
(UFSCar) – Programa de Pós-Graduação em Educação Especial. Endereço para correspondência: Rodovia Washington
Luís, Km 235, Monjolinho – 13565-905 São Carlos/SP. E-mail: egmendes@linkway.com.br
*** Doutora em Educação Especial pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) – Programa de Pós-Graduação
em Educação Especial. Endereço para correspondência: Rua Oscar Chaves, 26, Jardim Conde do Pinhal 1 – 17203-100
Jaú/SP. E-mail: morganaagostini@terra.com.br
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 239
Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais
ABSTRACT
Os estudos sobre parentes de indivíduos com comportamentos que as famílias tentam em-
necessidades educacionais especiais oferecem pregar para conseguir controlar, se adaptar e
um quadro de referência bastante negativo so- lidar com situações de muito estresse. O de-
bre as reações, percepções e sentimentos ex- senvolvimento dessas estratégias requer mu-
perienciados por essas pessoas. Entretanto, já danças cognitivas e esforços comportamentais
existem também vozes discordantes de alguns constantes para administrar demandas inter-
autores que, se contrapondo a esta visão nega- nas e/ou externas. Deste modo a família de-
tiva, enviesada e estereotipada, enfatizam a senvolve estratégias de enfrentamento para
necessidade de substituí-la por uma percepção manter ou restaurar o equilíbrio entre deman-
mais realista, mais normalizante e positiva des- das e recursos disponíveis.
tas famílias. Refletindo essa nova tendência, a O modo como as famílias fazem uso de es-
literatura científica sobre o tema aponta que, tratégias de enfrentamento torna clara a dinâ-
além das tradicionais atitudes negativas carac- mica familiar diante de uma nova situação a
terizadas como resistência, superproteção, re- ser enfrentada. Essa dinâmica baseia-se no fato
jeição e peregrinação (PALOMINO, 2002; de que a família funciona como um sistema no
TELFORD; SAWREY, 1984), existe uma ou- qual um problema que atinge um dos membros
tra vertente promissora dos estudos sobre fa- afeta todos os outros. As famílias podem ser
mílias que visam investigar como elas buscam vistas como sistemas à medida que possuem
e desenvolvem meios para lidar com as conse- padrões de interação que se repetem e que são
qüências ocasionadas pela necessidade espe- previsíveis, sendo que grande parte desses pa-
cial, que são as denominadas estratégias de drões se desenvolve com o passar do tempo
enfrentamento. dentro de cada família. Além disso, cada famí-
As estratégias de enfrentamento são defi- lia possui subsistemas que se correlacionam por
nidas por Taanila, Syrjälä, Kokkonen e Järve- meio de regras implícitas e explícitas (MINU-
lin (2002), como o processo ativo que envolve CHIN; COLAPINTO; MINUCHIN, 1999).
240 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 241
Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais
242 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins
mães que estão pleiteando uma vaga para o fi- ante a aplicação do instrumento “Formulário
lho na escola regular ou especial. Neste caso, o de Identificação das Necessidades e Poten-
protocolo permite que um perfil da mãe e da cialidades de Famílias de Crianças com Ne-
família da criança com necessidades educacio- cessidades Educacionais Especiais”.
nais seja obtido de maneira direta, já que os itens A Figura 1 apresenta a distribuição de fre-
estão divididos de acordo com a categoria à qual qüências relativas em cada uma das categorias
eles se referem. do instrumento, calculadas a partir da freqüên-
Concluída a etapa de elaboração do instru- cia absoluta de respostas das 39 participantes
mento, foi realizado um estudo de campo a fim para cada categoria.
de testá-lo. De acordo com as evidências obtidas foi
Etapa 2: Estudo de campo para testar o possível obter um perfil do conjunto das par-
formulário ticipantes. Esse perfil será apresentado em
Primeiramente, o estudo foi submetido à duas partes, sendo que na primeira parte se-
aprovação pela equipe responsável e também rão descritas as potencialidades apresenta-
pelo setor administrativo de cada uma das três das pelas participantes e na segunda parte
instituições. Após aprovação, iniciou-se o con- serão apresentadas suas necessidades de
tato com as mães. atendimento.
A aplicação do instrumento foi realizada in-
dividualmente por duas pesquisadoras treinadas.
Em primeiro lugar, o Termo de Consentimento Potencialidades das mães e fami-
Livre e Esclarecido foi lido pela pesquisadora e liares
assinado por cada mãe. A seguir, uma breve
explicação do objetivo do estudo e instruções A maior parte das participantes (95%) indi-
referentes ao instrumento foram lidas para as cou possuir percepções positivas em relação ao
mães. Cada participante forneceu os dados fato de ser mãe de uma criança com necessi-
pessoais e familiares para que a Ficha de Iden- dades educacionais especiais, ou seja, elas re-
tificação fosse preenchida pela pesquisadora. latam sentimentos positivos e consideram que
Os itens que compõem o Formulário também a vida delas ganhou em significado, enriqueci-
foram lidos para elas e as respostas (concordo mento e crescimento pessoal com o nascimen-
ou discordo) assinaladas pela pesquisadora. to da criança.
Procedimento de análise de dados Outra potencialidade observada diz respeito
Para a análise, todas as respostas fornecidas às estratégias de adaptação, pois 89% das parti-
pelas participantes foram tabuladas no progra- cipantes informaram ter realizado ou continuar
ma Excel. Para tanto, foi necessária a atribuição realizando mudanças em seu estilo de vida, para
de valores numéricos às respostas afirmativas se adaptar à condição de mãe de uma criança
do questionário. Foram atribuídos, então, os va- com necessidades educacionais especiais.
lores um e zero para cada resposta. Após a atri- Em relação à aceitação, 74% das partici-
buição de valores para cada um dos itens, todos pantes relataram que aceitam a necessidade
os protocolos de registros foram preenchidos e especial da criança e também que percebem
os dados dos formulários somados e distribuídos essa aceitação por parte dos demais membros
nas categorias de análise. da família.
As categorias atitudes e reações frente ao
diagnóstico receberam a mesma freqüência de
RESULTADOS respostas. Assim, 66% das participantes indi-
caram ter atitudes adequadas em relação ao
Os resultados aqui apresentados referem- filho, não o superprotegendo, deixando que ele
se às respostas fornecidas pelo conjunto das realize tarefas simples e até o incentivando a
trinta e nove participantes deste estudo medi- realizá-las, além de dar a mesma atenção para
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 243
Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais
os outros filhos. Por sua vez, 66% também re- em relação à criança e não realizando peregri-
lataram reações emocionais favoráveis antes e nação a diferentes profissionais em busca da
após terem recebido o diagnóstico da necessi- confirmação de um diagnóstico mais favorável
dade especial, modificando suas expectativas do que o recebido.
LEGENDA
EA: Estratégias de adaptação NS: Necessidade de serviços
PP: Percepções positivas NT: Necessidade de treino
I: Informações SS: Suporte social
At: Atitudes RE: Relações com a escola
RD: Reações frente ao diagnóstico A: Aceitação
PE: Preocupação e estresse
Quanto ao suporte social, 63% das partici- cessita receber informações sobre o diagnósti-
pantes responderam possuir apoio de seus ou- co de seu filho e também informações que lhe
tros filhos, de seu marido, demais parentes e ajudem na sua criação e educação.
também de amigos. Tal apoio foi observado tan- Grande parte das participantes (78%) tam-
to em relação ao cuidado diário com a criança, bém indicou a necessidade de aprender técni-
quanto em relação ao suporte emocional que cas que lhe permitam ensinar certas habilidades
se fornece à mãe ao escutá-la e ao demonstrar para seus filhos, tais como as de tomar líquidos
empatia, apoiando as suas decisões e conver- sem auxílio, comer e vestir-se sozinho, ser in-
sando com ela sobre seus sentimentos, dúvidas dependente nas atividades de higiene, prestar
e angústias. atenção, seguir e imitar modelos, comunicar-
Finalmente, 57% das participantes não apre- se, fazer uso de regras de conduta, relacionar-
sentam indicadores de preocupação e estresse, se bem com outras crianças, utilizar as mãos e
já que a freqüência de respostas nessa catego- movimentar-se de forma mais adequada, movi-
ria foi de 43%, ou seja, a maioria das mães não mentar-se de forma independente em seu lar,
demonstrou experienciar sentimentos negativos realizar tarefas domésticas, e locomover-se
(tais como estresse e depressão) provocados sozinho pela vizinhança e em sua cidade de for-
pelo fato de ser mãe de uma criança com ne- ma independente.Dentre essas habilidades,
cessidades educacionais especiais. aquelas que obtiveram maior freqüência de res-
postas foram: comunicar-se (92%), vestir-se
Necessidades apresentadas pelas sozinho (90%), prestar atenção, seguir e imitar
mães modelos (87%), ser independente nas ativida-
des de higiene (87%), relacionar-se bem com
Quanto às necessidades que as participan- outras crianças (82%), e locomover-se na sua
tes possuem, a maioria (81%) informa que ne- cidade de forma independente (82%).
244 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins
As participantes também relataram que ne- e ao impacto neles causado pelo seu nascimen-
cessitam de serviços, ou seja, 63% delas preci- to. Observou-se uma consistência razoável nos
sam de atendimento profissional específico ou padrões dos resultados identificados nos cinco
de uma orientação por parte da escola que as estudos, o que sugere que há dados seguros
ajude com seus sentimentos, dúvidas e deman- acerca de existência de percepções e experi-
das em relação às necessidades especiais do ências positivas da família.
filho. Além disso, as mães relataram que gos- Tais evidências parecem indicar primeira-
tariam que as escolas desenvolvessem mais as mente que o nascimento de um filho, ou a exis-
habilidades de seus filhos, ou seja, que ensinas- tência de um membro com necessidades
sem habilidades diretamente para a criança ou educacionais especiais na família, não é neces-
então através de treinamento com os pais, para sariamente uma experiência negativa, tal como
que estes possam realizar algumas atividades retrata a literatura da área.
estimuladoras em casa. Entretanto, cabe ressaltar que a amostra do
Por fim, observou-se que 57% das partici- presente estudo foi selecionada entre mães de
pantes apresentam relações desfavoráveis com crianças com idade entre zero e seis anos. Pode
a escola de seus filhos, já que 43% responde- ser que, ao longo do tempo, tal percepção se
ram manter relações favoráveis com ela. As- altere e, por isso, sugere-se que sejam feitos
sim, fica claro que as mães evitam contatos com estudos com mães de crianças de diferentes
a escola, que o seu relacionamento com a insti- faixas etárias.
tuição é restrito, e que elas não são participati- Em relação às estratégias de adaptação, os
vas, deixando de ir à escola quando solicitadas resultados encontrados também corroboram os
ou então faltando a seus eventos comemorati- resultados obtidos em outros estudos. Taanila,
vos. Constatou-se ainda que há pouco ou ne- Syrjälä, Kokkonen e Järvelin (2002), por exem-
nhum diálogo entre família e profissionais plo, também encontraram essas estratégias.
responsáveis pela educação da criança com ne- Eles realizaram um estudo com 27 pais de cri-
cessidades educacionais especiais. anças com deficiência mental, com deficiência
física e com deficiência mental e física. Estes
passaram por uma entrevista inicial que buscou
DISCUSSÃO esclarecer como eles reagiram à necessidade
especial do filho, de que modo isso afetou a vida
Diante do perfil apresentado pelas partici- e o funcionamento da família, as relações entre
pantes, é possível confrontar alguns dos resul- estes pais, a vida social e o trabalho, e o tempo
tados obtidos com aqueles encontrados na que eles se dedicam às atividades de lazer.
literatura sobre famílias de pessoas com neces- Depois dessa entrevista inicial os pesquisado-
sidades educacionais especiais. res investigaram o funcionamento de cada fa-
O resultado que chama mais a atenção é o mília, fazendo uso de uma escala. Para a segunda
indicador de que 95% das participantes indica- entrevista foram selecionadas as quatro famíli-
ram ter percepções positivas em relação ao fato as com as menores (grupo I) e as maiores pon-
de ser mãe de uma criança com necessidades tuações (grupo II). Essa segunda entrevista
educacionais especiais. Hastings e Taunt (2002) visou conseguir informações sobre como as
revisaram cinco estudos nos quais foram feitas famílias enfrentaram a situação, que tipo de vida
perguntas aos parentes com o intuito de des- elas estavam vivendo no momento da entrevis-
crever o impacto positivo que uma criança com ta, e que estratégias de enfrentamento usavam.
necessidades educacionais especiais pode ge- Os resultados indicaram que as estratégias de
rar na família como um todo, ou nos seus mem- enfrentamento mais freqüentemente relatadas
bros individualmente. Os autores concluíram que pelos pais foram: busca de informações, acei-
os componentes da família relatam experiênci- tação, boa cooperação familiar e bom apoio
as e percepções positivas em relação à criança social. Os dois grupos usaram estratégias simi-
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 245
Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais
lares, mas o grupo II, além de fazer maior uso paração com as mães do grupo 2. Porém, não
dessas estratégias, tinha maior repertório e houve diferenças significativas entre os dois
maior controle em relação a ele. grupos quanto à satisfação com o suporte soci-
Por sua vez, o estudo desenvolvido por Sil- al recebido. Por sua vez, no presente estudo,
va (1988) com o objetivo de investigar quais 63% das mães indicaram que percebem o su-
são as experiências e necessidades da mãe após porte social que recebem. Diante disso, fica cla-
o recebimento do diagnóstico da deficiência ra a importância de se desenvolverem mais itens
mental do filho encontrou resultados semelhan- dentro do instrumento que aborda tal questão,
tes, no que diz respeito à categoria aceitação. para se investigar quais são as pessoas que
Quando a pesquisadora indagou sobre os senti- compõem a rede de suporte social das mães, e
mentos das mães ao receberem o diagnóstico, também o quanto elas estão satisfeitas com as
apenas 6% das mulheres entrevistadas relata- pessoas que lhes apóiam.
ram o sentimento de não aceitação da criança. Observou-se também que 57% das mães
Por outro lado, o estudo realizado por Colnago não relataram ter preocupação e estresse em
(2000) descreveu resultados diferentes quanto relação ao fato de possuir um filho com neces-
à aceitação, já que a autora considerou, após sidades educacionais especiais. Embora tal re-
implementar e avaliar um programa de orienta- sultado não possa ser considerado significativo,
ção para pais de crianças com Síndrome de ele ainda é surpreendente, já que vários estu-
Down, que um dos aspectos que deve ser tra- dos demonstram o contrário. No estudo de
balhado com os pais é, justamente, a aceitação. Matsukura, citado acima, a autora conclui que
Colnago (2000) também apresenta resulta- o número de participantes com estresse per-
dos discordantes quanto à categoria reações tencentes ao grupo das mães de crianças com
frente ao diagnóstico. Colnago observou que as necessidades educacionais especiais é maior do
reações à notícia da necessidade especial do que o número de participantes com estresse do
filho são diversas, porém todas as famílias par- grupo das mães de crianças com desenvolvi-
ticipantes demonstraram descrença, choque e mento típico.
tristeza. Assim, esse estudo mostrou que as Por outro lado, o baixo índice de preocupa-
famílias experienciam reações desfavoráveis ção e estresse apresentado pelas participan-
frente ao diagnóstico, ao passo que o presente tes desse estudo pode ser devido ao seu índice
estudo encontrou resultados totalmente opos- elevado de estratégias de adaptação.Tais es-
tos ao descrever que 66% das participantes tratégias permitem que elas enfrentem com
relataram reações favoráveis. Para investigar maior eficácia os momentos difíceis vivencia-
melhor essa categoria talvez fosse necessário dos e que estão relacionados com a necessi-
formular mais itens sobre ela, de modo a verifi- dade especial apresentada pelo filho. Além
car se as mães realmente experienciam rea- disso, as percepções positivas que as partici-
ções favoráveis frente ao diagnóstico, ou se os pantes também indicaram possuir podem fun-
itens que tratavam desse tema foram insufici- cionar como um contraponto para que as
entes para verificar reações desfavoráveis. situações de preocupação e estresse não se-
A categoria suporte social foi confrontada jam tão prejudiciais para elas.
com a pesquisa de Matsukura (2001), na qual No que diz respeito à necessidade que as
um dos objetivos foi investigar a percepção que mães têm de receber informações e serviços,
mães de crianças com necessidades educacio- relatada por elas nesse estudo, observamos
nais especiais (grupo 1) e mães de crianças com que Praconi (1988) também alcançou resulta-
desenvolvimento típico (grupo 2) possuem em dos semelhantes em sua pesquisa, que teve
relação aos níveis de estresse e de suporte so- como objetivo investigar e propor uma forma
cial. Foi constatado que as mães do grupo 1 alternativa de atuação por parte dos profissio-
demonstram perceber um número menor de nais em relação aos pais de crianças com de-
pessoas em sua rede de suporte social em com- ficiência mental. Segundo a autora, 90% das
246 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007
Aline Maira da Silva; Enicéia Gonçalves Mendes; Morgana de Fátima Agostini Martins
mães participantes apontaram a necessidade cionais especiais. Além disso, também foi al-
de receber orientação sobre como lidar com o cançado o objetivo de verificar a eficácia do
filho; 70% indicaram o desejo de receber mais instrumento em levantar indicativos para a ela-
informações sobre a necessidade especial que boração de um plano de intervenção voltado
o filho apresenta; e 40% das mães considera- para a família destas crianças.
ram importante obter informações sobre os re- Embora o instrumento construído tenha sido
cursos que a comunidade dispõe para a saúde eficaz no sentido de fornecer um quadro sobre
e a educação, a fim de poderem lidar melhor as necessidades e potencialidades das famílias
com o filho. em questão, ainda é necessário que ele seja
Finalmente, em relação à categoria relações validado. Por esse motivo, uma sugestão para
com a escola, Costa (1989) demonstrou, em futuras investigações é a aplicação desse ins-
estudo realizado com 52 mães de crianças com trumento a um número maior de participantes,
necessidades educacionais especiais que fre- com o intuito de verificar se todos os itens são
qüentavam seis instituições, que as relações compreensíveis e se, em outra população, ele
entre mães e escola especial são desfavorá- ainda será capaz de levantar dados sobre a fa-
veis. Quando as mães foram questionadas se a mília de crianças com necessidades educacio-
instituição tinha conhecimento sobre seus de- nais especiais de modo que um plano de
sejos, 60% delas responderam que não ou por intervenção possa ser desenvolvido.
falta de tempo para conversar durante as reu- Outra sugestão para futuras investigações
niões propostas, ou por considerar que a escola é o desenvolvimento de uma pesquisa na qual
já faz muito, não sendo conveniente trazer mais um plano de intervenção seja traçado tomando
problemas. Quanto à categoria necessidade de como ponto de partida o instrumento construí-
serviço, ainda no estudo de Costa, 86% das do. Dessa forma, grupos de pais podem ser cri-
mães entrevistadas responderam que precisam ados de acordo com as necessidades relatadas
de ajuda: orientação e apoio psicológico. por eles durante a aplicação do instrumento.
Espera-se que este instrumento seja aper-
feiçoado e que ele contribua para instrumenta-
CONCLUSÃO lizar os profissionais responsáveis pela educação
de crianças com necessidades especiais, para
É possível considerar que os objetivos do que possam obter informações para subsidiar
estudo foram alcançados, já que foi desenvol- programas de intervenção baseados na abor-
vido um instrumento a ser utilizado por profissi- dagem familiar sistêmica, e possam melhorar a
onais, para que estes possam conhecer tanto qualidade de atendimento educacional às cri-
as necessidades quanto as potencialidades das anças e jovens com necessidades educacionais
famílias de crianças com necessidades educa- especiais na realidade brasileira.
REFERÊNCIAS
COLNAGO, N. A. S. Orientação para pais de crianças com Síndrome de Down: elaborando e testando um
programa de intervenção. Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2000.
COSTA, T. P. G. Percepção de mães de crianças deficientes mentais acerca das necessidades especiais de
seus filhos afetados e delas próprias. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, São
Carlos, 1989.
HASTINGS, R. P.; TAUNT, H. M. Positives Perception in Families of Children With Developmental Disabilities.
American Journal on Mental Retardation, Laramie, Wyoming, USA, v. 2, n.107, p. 116-127, 2002.
MATSUKURA, T. S. Mães de crianças com necessidades especiais: stress e percepção de suporte social.
Tese (Doutorado) - Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2001.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007 247
Conhecendo as necessidades e potencialidades de mães de crianças com necessidades educacionais especiais
MINUCHIN, P., COLAPINTO, J.; MINUCHIN, S. Trabalhando com famílias pobres. Porto Alegre: Artmed,
1999.
PALOMINO, A. S.; GONZÁLVES, J. A. T. Educación especial: centros educativos y profesores ante la
diversidad. Madrid: Psicología Pirámide, 2002.
PRACONI, J. M. Diagnóstico e intervenção sobre as deficiências do sistema onde vive o deficiente mental
como alternativa de atuação profissional. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, 1988.
SILVA, S. F. Experiências e necessidades de mães após o diagnóstico de deficiência mental do filho. Disser-
tação (Mestrado) - Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 1988.
TAANILA, A.; SYRJÄLÄ, L.; KOKKONEN, J, JÄRVELIN, R. Coping of parents with physically and/or
intellectually disabled children. Child: Care, Health & Development, Exeter, UK, v. 28, n.1, p. 73-86, Jan.,
2002.
TELFORD, C. W.; SAWREY, J. M. O indivíduo excepcional. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.
Recebido em 29.09.06
Aprovado em 26.11.06
248 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 239-248, jan./jun., 2007
RESENHAS
BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em tempos
modernos. São Paulo: Contexto, 2006. 172 p.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 251-252, jan./jun., 2007 251
OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias Pereira. Conselhos Municipais de Educação...
Assim afirma Leta, a nora: Como cidadãos desse mundo global, exci-
... quero dizer que hoje sou outra pessoa... Foi tante e descartável sentimos a sensação de li-
como se pegasse uma faca afiada e dividisse a berdade quase sem limites que nos dá asas.
vida em dois pedaços...” Mas, proporcionalmente, há um grande risco e
Neste livro original e marcante, o pesquisa- um permanente vazio que impulsiona a vora-
dor analisa seu próprio papel como mediador e gem e a ânsia de ter mais, viver intensamente,
assim afirma: experimentar mais. Ser em plenitude não é o
objetivo mais perseguido.
Em termos pessoais, sendo eu o ouvinte de to-
dos, aprendi à força das mensagens enviadas de O mundo atual seduz e aponta para um ca-
uns para outros e notei que, ao me tornar regis- leidoscópio de opções e realizações. Mas as con-
trador fui visto como um caderno em branco, no seqüências dessas escolhas e estilos de vida têm
qual as pessoas escrevem suas experiências um ônus que é inevitável. Há que se pensar
como quem, de um certo jeito, acertava conta
com uma história que, afinal, não era apenas só especialmente na ética, sustentabilidade, na saú-
deles, mas, sim, de um mundo urbano em mu- de do ser e da terra, no HIV e na vulnerabilida-
danças aceleradas. (MEIHY, 2006, p. 127) de humana.
Recebido em 11.03.07
Aprovado em 11.03.07
252 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 251-252, jan./jun., 2007
OLIVEIRA, Cleiton de; GANZELI, Pedro; GIUBILEI, Sonia; BORGES, Zacarias
Pereira. Conselhos Municipais de Educação: um estudo da região
metropolitana de Campinas. Campinas/SP. Editora Alínea, 2006. 300 p.
* Mestranda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS/RS. Endereço para correspondência: Rua São
Joaquim, 250, apt 301, Centro – 93010190, São Leopoldo/RS. E-mail:
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 253-254, jan./jun., 2007 253
BOM MEIHY, J.C.S. Augusto e Lea: um caso de (des)amor em tempos modernos.
254 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, p. 253-254, jan./jun., 2007
Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade
ISSN 0104-7043
Revista temática semestral do Departamento de Educação I – UNEB
I – PROPOSTA EDITORIAL
A Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade é um periódico temático e se-
mestral, que tem como objetivo incentivar e promover o intercâmbio de informações e resultados
de estudos e pesquisas de natureza científica, no campo da educação, em interação com as de-
mais ciências sociais, relacionando-se com a comunidade regional, nacional e internacional. Acei-
ta trabalhos originais, que analisam e discutem assuntos de interesse científico-cultural, e que
sejam classificados em uma das seguintes modalidades:
- ensaios: estudos teóricos, com análise de conceitos;
- resultados de pesquisa: texto baseado em dados de pesquisa;
- estudos bibliográficos: análise crítica e abrangente da literatura sobre tema definido;
- resenhas: revisão crítica de uma publicação recente;
- entrevistas com cientistas e pesquisadores renomados;
- resumos de teses ou dissertações.
Os trabalhos devem ser inéditos, não sendo permitido o encaminhamento simultâneo para outro
periódico. A revista recebe artigos redigidos em português, espanhol, francês e inglês, sendo que
os pontos de vista apresentados são da exclusiva responsabilidade de seus autores. Os originais
em francês e inglês poderão ser traduzidos para o português, com a revisão realizada sob a coor-
denação do autor ou de alguém indicado por ele.
Os temas dos futuros números e os prazos para a entrega dos textos são publicados nos últimos
números da revista, assim como no site www.revistadafaeeba.uneb.br, ou podem ser informados
pelo editor executivo a pedido. Também será publicada, em cada número, a lista dos periódicos
com os quais a Revista da FAEEBA mantém intercâmbio.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007 255
Após a revisão gramatical do texto, a correção das referências e a revisão das partes em
inglês, o(s) autor(es) receberão o texto para uma revisão final no prazo de sete dias, tendo a
oportunidade de introduzir eventuais correções de pequenos detalhes.
256 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007
b) Livro até três autores:
NORTON, Peter; AITKEN, Peter; WILTON, Richard. Peter Norton: a bíblia do programador. Tradução de
Geraldo Costa Filho. Rio de Janeiro: Campos, 1994.
c) Livro de mais de três autores:
CASTELS, Manuel et al. Novas perspectivas críticas em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
d) Capítulo de livro:
BARBIER, René. A escuta sensível na abordagem transversal. In: BARBOSA Joaquim (Org.).
Multirreferencialidade nas ciências e na educação. São Carlos: EdUFSCar, 1998. p. 168-198.
e) Artigo de periódico:
MOTA, Kátia Maria Santos. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? uma
breve reflexão lingüística para não lingüistas. Revista da FAEEBA: educação e contemporaneidade,
Salvador, v. 11, n. 17, p. 13-26, jan./jun. 2002.
f) Artigo de jornais:
SOUZA, Marcus. Falta de qualidade no magistério é a falha mais séria no ensino privado e público. O
Globo, Rio de Janeiro, 06 dez. 2001. Caderno 2, p. 4.
g) Artigo de periódico (formato eletrônico):
TRINDADE, Judite Maria Barbosa. O abandono de crianças ou a negação do óbvio. Revista Brasileira
de História, São Paulo, v. 19, n. 37, 1999. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 14 ago.
2000.
h) Livro em formato eletrônico:
SÃO PAULO (Estado). Entendendo o meio ambiente. São Paulo, 1999. v. 3. Disponível em: <http://
www.bdt.org.br/sma/entendendo/atual/htm>. Acesso em: 19 out. 2003.
i) Decreto, Leis:
BRASIL. Decreto n. 89.271, de 4 de janeiro de 1984. Dispõe sobre documentos e procedimentos para
despacho de aeronave em serviço internacional. Lex: coletânea de legislação e jurisprudência, São
Paulo, v. 48, p. 3-4, jan./mar, 1984. Legislação Federal e marginalia.
j) Dissertações e teses:
SILVIA, M. C. da. Fracasso escolar: uma perspectiva em questão. 1996. 160 f. Dissertação (Mestrado) –
Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 1996.
k) Trabalho publicado em Congresso:
LIMA, Maria José Rocha. Professor, objeto da trama da ignorância: análise de discursos de autoridades
brasileiras, no império e na república. In: ENCONTRO DE PESQUISA EDUCACIONAL DO NORDESTE:
história da educação, 13, 1997. Natal. Anais... Natal: EDURFRN, 1997. p. 95-107.
Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007 257
6. As notas numeradas devem vir no rodapé da mesma página em que aparecem, assim como os
agradecimentos, apêndices e informes complementares.
7. Os artigos devem ter, no máximo, 30 páginas e, no mínimo, 12 páginas; as resenhas podem ter
até 5 páginas. Os resumos de teses/dissertações devem ter, no máximo, 250 palavras, e conter
título, número de folhas, autor (e seus dados), palavras-chave, orientador, banca, instituição, e data
da defesa pública, assim como a tradução em inglês do título, resumo e das palavras-chave.
Atenção: os textos só serão aceitos nas seguintes dimensões no processador Word for Windows
ou equivalente:
• letra: Times New Roman 12
• tamanho da folha: A4
• margens: 2,5 cm
• espaçamento entre as linhas: 1,5;
• parágrafo justificado.
Os autores são convidados a conferir todos os itens das Normas para Publicação antes de enca-
minhar os textos. Deste modo, será mais rápido o processo de avaliação e possível publicação.
258 Revista da FAEEBA – Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 16, n. 27, jan./jun., 2007