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São Paulo
2007
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São Paulo
2007
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Agradecimentos
RESUMO
ABSTRACT
Albert Camus dared to investigate the limits of human reason and action
throughout history in a moment of hegemony of hopes of a totalizing
rationalism. In multiple fields of expression, Camus engendered the
dismantling of historical finalism and aesthetical conceptions regarding the
human existence. His philosophy is an alternative paradigm for rationality
and for the ethical-political engagement, aiming at a fragile balance
between the requests of history, the commitment to the singular life and the
reestablishment of the constitutive bounds between men and the world.
SUMÁRIO
Bibliografia (p.490)
12
Apresentação da Tese:
1
CAMUS, A. Essais. L´Homme Révolté – Mesure et Démesure.p.697.
2
Acaba de ser enviado ao Departameto de Filosofia da USP projeto de Pós-Doutorado no qual me
proponho a preencher as inúmeras lacunas deste amplo projeto de filosofia comparada que, aos meus
olhos, permanece inacabado.
15
Albert Camus, autores entre os quais é possível, sem dúvida, estabelecer verdadeiras
transposições esquemáticas: da metodologia de pensamento à temática filosófica
norteadora, pautada pelas problemáticas da contingência, da absurdidade e dos limites
do conhecimento e da ação humanas.
Que não se considere portanto, as inúmeras referências a Pascal no
esmiuçamento do pensamento camusiano uma atitude meramente ilustrativa: trata-se
de um esforço legítimo e refletido de ancorar a metodologia de pensamento
camusiano na linhagem filosófica deste moraliste do século XVII.
Assim, se o formato atual deste trabalho está focado no pensamento deste
filósofo contemporâneo, nascido e forjado nos subúrbios da África do Norte é porque
julgo que a revitalização e a correta compreensão da obra de Albert Camus, centrada,
em continuidade com o pessimismo clássico, na reflexão sobre os limites da razão e
da ação humana na história, faz-se absolutamente imprescindível para a filosofia
atual, requerida a se posicionar com urgência diante do impasse de um presente
aparentemente sem qualquer recurso ao moto-contínuo da violência e embalado em
sua “jangada de medusa” ao sabor dos ventos tempestuosos de concepções estéticas
ou finalistas da existência e da história.
Em compasso com nossa época dilacerada, o esforço de uma interpretação
harmonizante do pensamento de Albert Camus, capaz de compreender e integrar suas
múltiplas dimensões expressivas, tornou-se um imperativo na tentativa de exprimir
que há, afinal, filósofos contemporâneos rigoristas que se recusam a compactuar com
a ordem vigente da crueldade e da indiferença – capazes de indignação - e para os
quais nem o silêncio, nem o conformismo “estético”, nem o imoralismo político
finalista, constituem regras de ação ou de pensamento.
*
16
Introdução Geral
3
CAMUS, A. O Homem Revoltado, p.13.
17
4
Idem, p.34.
5
Idem,p.18.
18
Recusando esta mescla entre história e metafísica, Sartre, ainda na carta de agosto
de 52, critica implacavelmente a concepção do engajamento camusiano: “Você
acusou os Alemães de o terem arrancado ao seu combate com o Céu para obrigá-lo a
tomar parte dos combates temporais- dos homens: «Há tantos anos que tentam fazer-
me entrar na História...>> E mais adiante: «Fizeram o que era necessário, nós
entramos na História. E durante cinco anos não tornamos a ter a possibilidade de
fruir do canto dos pássaros>>. «A História era a guerra; para si, era 1oucura dos
outros. Ela não cria, destrói; impede a erva de crescer, os pássaros de cantar, o
homem de fazer amor.>> Aconteceu. com efeito, que as circunstâncias exteriores
pareciam confirmar o seu ponto de vista: você travava na paz um combate intemporal
contra a injustiça do nosso destino e os nazistas tinham, aos seus olhos, tomado o
6
SARTRE, J-P. Situações IV, p.99-100.
19
partido dessa injustiça. 'Cúmplices das forças cegas do universo, eles tentavam
destruir o homem. ' Você combateu, segundo escreveu. «para salvar a idéia do
homem» 7 Em resumo, você não sonhou em «fazer a História», como diz Marx, mas
impedi-la de se fazer." 8 A acusação contra Camus é ainda mais categórica em páginas
anteriores. Para Sartre, Camus “se esforça por negar o tempo.” 9
Camus, embora tenha sido resistente de primeira linha, desempenhando um papel
importante na contrapropaganda à ocupação, como editor do jornal clandestino
Combat de 44 a 46, se recusa, segundo Sartre, a aderir, com toda a exigência que dele
se esperava, ao compromisso intelectual continuado com as causas revolucionárias, o
que, do ponto de vista do ativismo político da esquerda dos anos cinqüenta, seria,
simplesmente, inadmissível.
Na perspectiva de Sartre a recusa de Camus de filiar-se aos compromissos
ideológicos de seu tempo é estranhamente consoante à sua ambigüidade como
filósofo que, ao envolver o embate dos homens num invólucro metafísico, pensa
poder agir, como vimos acima, como um mero ‘visitante na história’: "A prova; desde
que a guerra acabou, você limita-se a encarar o regresso do status quo:' «A nossa
condição não deixou ainda de ser desesperante>>. O sentido da vitória dos Aliados
apareceu-lhe como ‘ a aquisição de duas ou três variantes que não terão talvez outra
utilidade do que ajudar alguns de entre nós a morrerem melhor’. Depois de ter
despachado os seus cinco anos de história, você pensava que podia regressar (e
consigo todos os homens) ao desespero donde o homem deve retirar a sua felicidade
e a «provar que não merecemos tanta injustiça» (aos olhos de quem?) retomando a
luta desesperada que o homem trava «contra o seu destino revoltante>>“ 10
Neste importante documento de agosto de 1952 11 , Sartre antecipa com Camus
a discussão que travará um ano depois com Merleau-Ponty, para quem o engajamento
político circunstancial de Sartre significava mais um resíduo de da má fé do que
demonstração de lucidez política: “Decidi, desde a Guerra da Coréia não escrever
mais sobre os acontecimentos à medida que eles se apresentam. O engajamento em
7
SARTRE, idem.p.101.
8
Idem.
9
Idem, p.100.
10
SARTRE, J-P. Situações IV, p.101.
11
Resposta a Camus. Temps Modernes, n.82, re-editado em Situations IV.
20
12
“(...)Há acontecimentos que permitem, ou melhor, exigem ser julgados imediatamente e em si
mesmos: por exemplo a condenação e execução dos Rosenberg, mas, o mais das vezes o acontecimento
só poder ser apreciado no quadro global de uma política que lhe muda o sentido ...”(Carta de Merleau-
Ponty a Sartre de 8 de julho de 1953.)
13
SARTRE, J-P. Situações IV, pp.103-5
21
14
A bem da verdade, este esforço que se pretendia “totalizante”, esbarrou no escoamento temporal,
visto que não nos foi possível analisar adequadamente, como gostaríamos, a fase madura da obra de
Camus. Assim, assinalemos que consideramos a análise que oferecemos aqui da segunda parte de O
Homem Revoltado(A revolta histórica e O pensamento Mediterrâneo) apenas indicativa de uma leitura
mais aprofundada que será elaborada no Pós-Doutorado, ao lado das análises das obras literárias de
maturidade de Camus, Os Justos e A Queda, e de novas análises sobre o desenvolvimento e a
maturidade filosófica de Sartre.
22
15
Nosso intuito original, que não nos foi possível atingir era notar, finalmente, que a legitimação da
violência revolucionária tornar-se-á expressa e contundentemente um projeto filosófico sartreano no
texto político Os Comunistas e a Paz e na peça O Diabo e o bom Deus.
23
16
A bem da verdade, sobre a segunda parte de O Homem Revoltado(A revolta histórica) constarão
nesta tese apenas algumas menções atreladas principalmente ao capíttulo destinado ao estudo de A
Peste.
25
17
CAMUS, A. Noces.p, 75.
18
CAMUS, A. Noces.p, 76.
19
CAMUS, A. Noces.p,59.
27
(I Parte)
Apresentação
20
Merleau Ponty, na carta de ‘rompimento’ de 8 de julho de 1953, por exemplo, alega que Sartre teria
“renegado” às idéias contidas em O Ser e O Nada, ao que Sartre responde: “Nem um só
momento(...)Todas as teses do Ser e o Nada’ me parecem tão justas(hoje)quanto em 1943. Apenas
afirmo que em 43 elas tinham o futuro aberto à sua frente. Repeti-las hoje, sem lhes dar este futuro que
elas implicavam, será a um tempo trair meu pensamento de agora e também traí-las.”(Carta de Sartre
a Merleau-Ponty de 29 de julho de 1953.)
28
21
SARTRE, J-P. Que é a Literatura? Ática, São Paulo, 1989, p.166.
29
22
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. Vozes, São Paulo, 2001, p.750.
30
1) Em direção ao concreto
23
SARTRE, J-P. Questão de Método, p.23.
24
idem.
25
idem.
26
idem,p.29.
31
marxistas “de plantão” ou “escolástica da justificação” 27 , Sartre nos lembra que seus
esforços e os de sua geração caminham em direção ao apelo(quase emergencial) por
uma filosofia rigorosa que viabilize pressupostos para a ação, ressaltando o
imperativo do estudo dos homens concretos e suas situações singulares, vivas(núcleo
do que procurará desenvolver como sendo a ‘psicanálise existencial’)como
instrumento talvez capaz de reconstruir o universo intencional dos projetos e
finalidades humanas, metodologia possivelmente inspirada na investigação da
totalidade singular dos processos históricos tal como elaborada originalmente no 18
Brumário de Marx: “Assim, Marx tem razão, simultaneamente, contra Kierkegaard e
contra Hegel, uma vez que afirma, com o primeiro, a especificidade da existência
humana, e uma vez que toma, com o segundo, o homem concreto em sua realidade
objetiva.” 28
27
idem,p.35.
28
idem,p.26
29
SARTRE, J-P, A Transcendência do Ego, p.79.
32
34
idem,p.82.
35
idem,p.82.
36
“Nada mais é preciso para fundamentar uma moral e uma política absolutamente
positivas.”(idem,p.83.)
34
2) O desvelo da contingência:
37
SARTRE, J-P, A Náusea. p.18.
35
38
idem.p.27.
39
SARTRE, J-P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p,30.
36
40
Idem, pp 53-4.
41
Idem, p.39
37
42
SARTRE, J.P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p.30.
38
numa simbologia que retira dos objetos seu substrato: qualquer forma da exterioridade
desconfortável na qual se Roquentin está imerso é mais ilustrativo da verdade que
busca, ainda que irrefletidamente, do que qualquer das curiosas preciosidades
poeirentas contidas na enciclopédia do Autodidata.
43
idem.p.61
44
idem.p.95.
39
fazer viver, a minha razão de ser era ele: o Marquês me havia libertado de mim. Que
hei de fazer agora? ” 45
Roquentin usava como subterfúgio para a indeterminação da própria vida a
totalidade aparentemente acabada de uma personagem do passado, alienando-se assim
da instabilidade do presente na cristalização de um passado morto, que a princípio
tentara de maneira vã recuperar objetivamente.
A angústia que acompanha este ver se abandonado ao próprio destino é, afinal, o
temor do re-encontro de si na condenação da liberdade originária, sem o refúgio de
um passado já encerrado. Aqui a interpretação de Leopoldo e Silva torna-se
insubstituível em sua clareza explicativa: “Livre do Marquês e de volta a si, há algo
que o espreita: ele mesmo. ‘A coisa, que estava à espera, deu o alerta, precipitou-se
sobre mim, vaza-se em mim, estou cheio dela. – Não é nada, A Coisa sou eu. A
existência, liberta, despida, refluiu sobre mim. Eu existo.’ 46 A descoberta da
existência é ao mesmo tempo a dor de se sentir abandonado por aquilo que nos
protegia da contingência. Mas uma vez assim capturados pela verdade, sabemos, a
partir de então, que a existência tem de ser vivida, não pode ser objetivada ou
transferida.” 47
Deste modo, re-encontramos na ficção de Sartre, para Leopoldo e Silva, tal
como num reflexo, em primeiro lugar, a narrativa daquele deslocamento da pura
espontaneidade da consciência para um ego “prático” artificialmente construído como
uma couraça contra a fluidez radical de que fala a análise presente na Transcendência
do Ego. “Vemos aí a mesma inversão na gênese da subjetividade. Roquentin
projetara um Eu fora de si e o tentara tomar como causa e origem de si próprio, para
ter ali um abrigo contra a espontaneidade e a contingência, no qual repousava o
sujeito falsamente constituído.” 48 Depois, e não menos importante podemos divisar
em A Náusea a primeira formulação narrativa para a questão da historicidade
inevitável do homem, dada pela inalienabilidade de sua existência - pelo fato de estar
à sua revelia, lançado “na poeira seca do mundo, sob a terra rude, por meio das
coisas; imaginem que somos assim devolvidos, abandonados pela nossa natureza
mesma num mundo indiferente, hostil e renitente.” 49 “Ser, é ser-no, no sentido do
45
idem.pp.148-49.
46
idem.p. 149.
47
SILVA, F-L. Ética e Literatura em Sartre – Ensaios Introdutórios. p.46.
48
SARTRE, J.P. A Náusea. Trad.Nova Fronteira. idem.46-47.
49
SARTRE, J.P. Une idéee fondamentale de la phénomenologie de Husserl: l’intencionalité, p.31.
40
50
idem. p.31.(Trad. Nova Fronteira)
51
SARTRE, JP. A Náusea.pp. 150-51.
52
CAMUS, A. A Inteligência e o Cadafalso. p.136.
41
53
SARTRE, JP. A Náusea.p.257.
54
idem.p.256.
55
.SARTRE, J-P. O Que é a Literatura, p.166.
56
SARTRE, J-P. A Náusea.p, 251.
57
idem.p.258.
42
58
CAMUS, A. A Inteligência e o Cadafalso. p.136.
59
“Para que tantas árvores toda iguais ?Tantas existências fracassadas e obstinadamente fracassadas
e novamente fracassadas – como os esforços desajeitados de um inseto caído de costas?(...)Todo ente
nasce sem razão, se prolonga por fraqueza e morre por acaso.”(A Náusea,p.197.)
43
3) A condenação à liberdade:
60
SARTRE, J-P. Situations III – La Republique du Silence,p.11.
61
idem.p.11-12.
62
idem.p.12-13.
44
circunstâncias de sua luta pertenciam a uma experiência nova: eles não combatiam
‘às claras’, como os soldados; encurralados na solidão, presos na solidão, é no
abandono(délaissement), no despojamento mais completo que eles resistiam às
torturas: sós e nus diante de carrascos bem barbeados, bem nutridos e bem vestidos
que zombavam de sua carne miserável(...)Não obstante, na mais profunda desta
solidão, estavam os outros, todos os outros, todos os camaradas da resistência que
eles defendiam; uma só palavra bastaria para provocar dez, cem prisões. Esta
responsabilidade total na total solidão não é o desvelamento de nossa liberdade
mesma?” 63
“Imagine-se certo número de homens presos e todos condenados à morte, vendo
uns degolados diariamente diante dos outros e os que sobram vendo sua própria
condição na de seus semelhantes e se contemplando uns aos outros com tristeza e sem
esperança, à espera de sua vez. Eis a imagem da condição dos homens.” 64
Se para o pessimismo clássico de Pascal imaginar a morte significa anular a
fantasmagoria do presente em função de uma visão mais abrangente da insignificância
e contingência da vida humana, o que sinaliza, ainda que negativamente para
necessidade de uma assunção plena ao valor da “verdadeira religião”, para Sartre, ao
contrário, a experiência da morte iminente fornecida pelos carrascos da guerra
concede uma horrenda demonstração da dimensão histórica do mal e do valor
inalienável da liberdade. São unicamente as escolhas humanas que dão origem à
barbárie. Apenas as escolhas humanas podem impedi-la. “As circunstâncias
freqüentemente atrozes de nosso combate nos puseram vivendo por nós mesmos, sem
disfarce e sem véu, esta situação dilacerada, insustentável que se chama a condição
humana. O exílio, a prisão, a morte sobretudo que se mascara habilmente nas épocas
felizes,nós os fazíamos os objetos perpétuos de nossas preocupações(...)a cada
segundo nós vivíamos na plenitude do sentido esta pequenina frase banal<<Todos os
homens são mortais>>E a escolha que cada um fazia de si mesmo era autêntica pois
se fazia em presença da morte.” 65
É sob o signo, afinal, de um duplo paradoxo, da liberdade re-encontrada
através do confinamento e – como veremos - do imperativo do engajamento malgrado
a contingência e a incompreensibilidade da história que se encontra o conto O Muro
63
idem. p.13.
64
PASCAL, B. Pensamentos, (Br.199)
65
SARTRE, J-P. Situations III – La Republique du Silence,p.12.
45
66
SARTRE, J-P. O Muro. p.9.
67
idem.p.10.
46
uma esteira.(...)Ele chorava – eu percebia que ele tinha piedade de si próprio; não
pensava na morte.” 68
Com o irlandês Tom, disposto, a princípio, a sorver até o último trago da aventura
da insurreição, a experiência da morte próxima é radicalmente diversa. Muito embora
não se presuma inocente e não conteste nem por um átimo a legitimidade de sua
execução sumária, Tom, de começo, não consegue aproximar-se da idéia de que vai
morrer, e seu despertar para a avaliação da real dimensão do conteúdo deste
desaparecimento, será, dentro da cronologia da narrativa, lento e penoso: “Tom
começou a falar:
- Você liquidou uns sujeitos, não? - perguntou-me. Não respondi. Ele então
começou a explicar-me que havia liquidado seis desde o início do mês de agosto;
não se dava conta da situação e eu percebia que ele não queria dar-se conta. Eu
mesmo não avaliava tudo perfeitamente, perguntava-me se íamos sofrer muito,
pensava nas balas, imaginava sua passagem ardente através do meu corpo. Tudo
aquilo estava fora da verdadeira questão, mas me sentia tranqüilo. Tínhamos a
noite toda para pensar.” 69
Aventureiro solitário 70 o irlandês Tom, pouco a pouco, procura acercar-se da
idéia de que vai desaparecer. A bem da verdade, nós leitores pressentimos através de
Ibbieta de que a sensação da morte já o preencheu por inteiro de modo a anulá-lo
antecipadamente como realidade. Ibbieta mais consciente do mesmo fenômeno de
anulação antecipada consigo mesmo não evita fitar o companheiro “moribundo”:
“Tom começou a falar em voz baixa. Era preciso que ele falasse sempre sem o que
não se reconheceria . Penso que era a mim que ele se dirigia, mas não me olhava.
Sem dúvida tinha medo de me ver suarento e cor de cinza; estávamos iguais e mais
terríveis do que espelhos, um para o outro. Ele olhava o belga, o ‘vivo’. -Você
compreende? - perguntava ele.
- Eu não compreendo nada...” 71
Para procurar compreender que morreria, Tom, assim como Ibbieta, a
princípio persegue a experiência imaginária de ser morto, até notar que a experiência
de ser morto é ainda uma experiência de vida e não guarda proporção com a
68
idem.p.27.
69
idem.14.
70
idem..25.
71
idem.21
47
72
idem. p.19
73
idem.p.20
48
como “o vivo”: ele próprio e seus companheiros de destino já estão mortos, pois o
presente já não lhes diz respeito se lhes falta qualquer possibilidade de futuro ou de
realização de projetos. Sem finalidade ou projetos os prisioneiros retornam à
contingência originária, ao fluxo da fantasmagoria 74 .
Talvez seja possível compreender através desta iluminação recíproca entre as
narrativas d’A Náusea e d’O Muro a razão do despertar vacilante de Roquentin.
Resguardado por uma vida burguesa, a história, por assim dizer, ainda não caíra sobre
ele, como desaba sobre as personagens da guerra civil espanhola. A morte, afinal, não
refluíra ainda sobre a vida do ex-sócio 75 do Marquês de Rollebon.
Neste ponto restrito o diagnostico de Sartre não parece diferir da anatomia moral
do pessimismo clássico, como por exemplo, no caso de Pascal, pois para ambos a
perspectiva e o pensamento da morte é que desencadeia a lucidez, comprometendo o
estatuto positivo da vida, re-significando a existência em termos de negatividade e de
incompletude 76 .
Para Sartre, como se parece poder notar a partir da contundência com que reflete
sobre esta questão através de suas personagens em O Muro, na iminência da morte, a
simples perspectiva do desaparecimento é suficiente para inundar com seu nada todo
o conjunto da experiência humana, relativizando assim o sentido da vida, incluindo o
senso profundo do engajamento histórico. É a voz de Ibbieta quem mais se aproxima
de exprimir o drama da incompletude da existência: “Revi a fisionomia de um
novillero que levara uma chifrada em Valência durante a Feria, o rosto de um de
meus tios, e o de Ramón Gris. Lembrei-me de alguns episódios: como passei quando
estive desempregado durante três meses em 1926, como escapei de morrer de fome.
Recordei-me de uma noite passada sobre um banco, em Granada; havia três dias que
74
É no esforço de reconhecer-se ainda existente, quebrando a sensação de irrealidade do universo, que,
nos seus minutos finais de vida, Tom põe-se a morder o braço “do vivo.”(O Muro, p.23)Tratar-se-ia da
desesperada tentativa de assegurar-se de que o universo realmente permanecerá, à revelia de seu
desaparecimento.
75
Na medida em que delegara sua vida ao Marquês, Roquentin entende-se como que “sócio” do
passado.
76
A imaginação em Pascal também é, em certo sentido, o recurso através do qual se dilui o verniz de
eternidade do presente: é assim um negador do real imediato, mas um construtor de uma imagem mais
totalizadora da experiência humana (L.163-Br.200) “Imagine-se um homem na prisão, não sabendo se
sua sentença foi pronunciada e tendo apenas uma hora para sabê-lo, e bastando essa hora, se
soubesse que foi sentenciado, para obter a revogação da pena. Seria contra a natureza que ele
empregasse essa hora em jogar cartas em lugar de tentar informar-se acerca da sentença.” O mesmo
ocorre com a experiência imaginativa da desproporção humana diante das magnitudes do universo no
célebre fragmento do duplo infinito(Pensamentos; Edição Brunshvicg.72-Lafuma .199).
49
não me alimentava, sentia-me enraivecido e não queria morrer. Aquilo me fez sorrir.
Com que ansiedade eu corria atrás da felicidade, atrás das mulheres, atrás da
liberdade...A troco de quê? Tinha querido libertar a Espanha, admirava Pi y
Margall, aderira ao movimento anarquista, discursava em comícios: levava tudo a
sério, como se fosse imortal.
Nesse momento pareceu me ter toda a vida pela frente e pensei: ‘É uma grande
mentira.’ Não valia nada, pois havia acabado. Perguntei-me como tinha conseguido
passear, divertir-me com mulheres; não teria mexido um dedo se houvesse
imaginado que iria acabar desse jeito. Tinha toda a vida diante de mim, fechada
como um saco, e entretanto tudo quanto estava lá dentro continuava inacabado.
Tentei, num momento, julgá-la. Quisera dizer foi uma bela vida. Mas não se podia
fazer um julgamento, pois ela era apenas um esboço; havia passado o tempo todo a
fazer castelos para a eternidade, não compreendera nada.” 77
A magnitude intransponível da barreira da morte relativiza o sentido dos
empreendimentos. Nos minutos de medo anteriores ao que considerava o desfecho de
sua vida, Ibbieta - homem feito que se alçara da pobreza, amara as mulheres, fizera
política e finalmente pegara em armas para lutar ao lado dos seus pela liberdade -
encontrava-se em seu exame de consciência tão desamparado e incompleto quanto o
garoto Juan que lamentava copiosamente sua tenra juventude ceifada. A descoberta da
contingência traria consigo a certeza de que, diante da morte eminente, todos os
destinos se equivalem: “Encostavam um homem num muro, atiravam nele até que
morresse – eu, ou Gris ou outro qualquer era a mesma coisa.” 78
Quando batem à porta e conduzem Juan e Tom para o fuzilamento, ao ouvir os
tiros que ecoam do pátio, temos a sensação de que, afinal, a situação limite vivida por
Ibbieta não o auxiliou mais no conhecimento de si do que a existência de
champignon de Roquentin: os dois destinos parecem unidos pela opacidade, pelo
questionamento infrutífero, pela persistência um tanto irrefletida na ação motivada
pela dúvida, e, sobretudo, pela irrealização.
É quando, inesperadamente, ao invés de ao fuzilamento, enviam Ibbieta para uma
seção de interrogatórios, e o espanhol, que “já se julgava morto” ganha seus 25
minutos de sursis:
“- Você se chama Ibbieta?
77
idem.,p.24.
78
idem,p..31.
50
-Sim.
- Onde está Ramón Gris?
- Não sei(...)
- A sua vida pela vida dele. Ficará livre se disser onde ele está.” 79
Nos minutos seguintes Ibbieta vive a experiência do dilaceramento que é
constitutivo da condição humana de que fala Sartre em A República do Silêncio:
situação limite, que remete ao absurdo da vida e ao horror de existir, mas também,
experiência privilegiada da possibilidade da invenção da liberdade: “Esta
responsabilidade total na total solidão não é o desvelamento de nossa liberdade
mesma?” 80
Ibbieta sabe onde se esconde Ramon Gris. Sabe também que morrerá sob tortura
negando-lhes a informação. Entretanto não cogita entregar seu companheiro de armas
para salvar-se. Por quê?
Sartre no ensaio político a que nos referimos acima, destaca, por um lado, a
igualdade radicalmente democrática entre os membros da resistência no que tange o
horror dos flagelos da repressão nazista. Todos poderiam morrer pelo que sabiam e
pelo que não sabiam.
Por outro, nota que a conduta da resistência exprime de maneira eloqüente o
caráter inalienável da responsabilidade do indivíduo para com a totalidade dos seres
humanos: “Este abandono, esta solidão, este risco enormes eram os mesmos para
todos, para os chefes e para os homens(...) a prisão, a deportação, a morte.”(...)para
o soldado e para o chefe, mesmo perigo, mesma responsabilidade, mesma absoluta
liberdade na disciplina. Deste modo, na sombra e no sangue, a mais forte das
Repúblicas se constituiu. Cada um dos seus cidadãos sabia o que devia a todos e que
não podiam contar senão consigo mesmo; cada um deles realizava, no abandono
mais completo, seu papel histórico.” 81
Ibbieta embora tenha dificuldade em entender sua opção, escolhe, não uma ação
frente à outra, visto que o desvelar da contingência já aplainou as realizações no nada
da incompletude, mas a própria liberdade de recusar a colaboração. “(...)pus-me a
refletir. Mas não na proposta. Naturalmente eu sabia onde estava Gris; escondera-se
em casa de seus primos, a 4 km da cidade. Sabia também que não revelaria seu
79
idem.p.29.
80
idem.p.13.
81
SARTRE, J-P. Situations III – La République du Silence, p.14.
51
82
SARTRE, J-P. O Muro.pp.30,31.
83
SARTRE, J-P. Situations III – La République du Silence.p.14.
52
84
SARTRE, J-P. Verdad y Existência p.158 “Assim, o ser pelo qual a luz vem iluminar o Ser,é , a um
só tempo, pura lucidez(para além da verdade)e pura obscuridade(aquém) como destino.”(idem)
85
A bem da verdade é com absoluta contundência que se exprimem, também na trilogia Os Caminhos
da Liberdade, a opacidade do vivido, a incompletude dos destinos e ainda a complexidade dos móveis
psicológicos do engajamento político. Não obstante nossa intenção inicial fosse percorrer com atenção
o desdobramento narrativo das existências tateantes das personagens da trilogia, levando em conta o
caráter resumido da proposta, nos contentarem em recolher duas passagens que ‘encerram’ a
“aventura” de Mathieu. O transeunte supostamente inocente da “Idade da Razão” - antes alienado de
sua dimensão histórica – vê-se em, Com a Morte na Alma, como que “à toa”(p.194.)engajado entre os
primeiros resistentes(quase “suicidas”)da ocupação alemã, disposto, sem saber porque, à “morrer por
nada”(p.199): “Pensava: ‘Vou morrer por nada’, e tinha dó de si próprio. Durante um segundo suas
recordações agitaram-se como folhas ao vento. Todas as recordações: ‘Eu gostava da vida.’ Uma
interrogação inquieta apertava-lhe a garganta: ‘Tinha o direito de abandonar os camaradas? Tenho o
direito de morrer por nada?’ Endireitou-se, apoiou as mãos no parapeito, sacudiu a cabeça com raiva.
‘E basta! Tanto pior para os que estão lá embaixo,(alemães que começam a ocupar o vilarejo) tanto
pior para todos. Chega de remorsos, de escrúpulos, de restrições; ninguém é juiz de meus atos,
ninguém pensa em mim, ninguém se lembrará de mim, ninguém pode decidir por mim(...)Aproximou-se
do parapeito e pôs-se a atirar de pé. Era um enorme revide: cada tiro vingava-o de um antigo escrú-
pulo. Um tiro em Lola, que não ousei roubar, um tiro em Marcelle, que deveria ter largado, um tiro em
Odette, que eu não quis comer. Este para os livros que não ousei escrever, este para as viagens que
recusei, este para todos os sujeitos, em conjunto, que tinha vontade de detestar e procurei
compreender. Atirava, e as leis voavam para o ar, amarás o teu próximo como a ti mesmo, pam! nesse
salafrário, não matarás, pam! nesse hipócrita aí da frente. Atirava no homem, na virtude, no Mundo: a
Liberdade é o Terror; o incêndio destruía a Prefeitura, destruía-lhe a cabeça: as balas assobiavam.
livres como o ar, o mundo explodirá, e eu com ele, atirou, olhou o relógio: quatorze minutos e trinta
segundos; não tinha mais nada a desejar senão um prazo de meio minuto, exatamente o tempo de
atirar naquele belo oficial, que corria orgulhoso para a igreja; atirou sobre o belo oficial, em toda a
Beleza do Mundo, na rua, nas flores, nos jardins, em tudo o que amara. A Beleza deu um mergulho
obsceno e Mathieu atirou de novo. Atirou: era puro, todo poderoso, livre.”85 (SARTRE, J-P. Com a
morte na alma.p.199, 200,222.)
53
Quem sabe nosso itinerário pela literatura de Sartre nos ajude, enfim, a
compreender uma reflexão fundamental sobre o tema da opacidade da história que
encontramos no texto póstumo intitulado Verdade e Existência: “A época em que vivo
tem em si mesma um sentido objetivo que cria ao viver que se lhe escapa, visto que o
cria para outros. Sem dúvida, a pergunta, pela sua significação, está viva para ela,
porque sabe que terá esse sentido e trata de captar-lo de antemão. Mas, a maneira
mesma pela qual busca captar-lo contribuirá a dar-lhe seu sentido aos olhos das
gerações seguintes(...)Desta maneira, a época é verdade para si mesma, mas verdade
ignorada.” 86
O leitor atento nota, desde o início da experiência limite de Ibbieta, a dificuldade
que a personagem encontra de compreender-se. Assim como ocorrerá também com
Mathieu (em Os Caminhos da Liberdade), a opacidade se acentua a medida que os
acontecimentos se encerram sobre ele. O que Sartre nos indica, ainda que
metaforicamente, é que seria necessário estar como fora de si para compreender-se
quando se está imerso na história., Como não é dado pairar fora do mundo para
vislumbrar os acontecimentos, toda existência humana permanece um mistério para si
mesma, como uma totalidade inacabada ou totalidade destotalizada 87 .
O desfecho de O Muro repõe de maneira incontestável a questão da
contingência e da incompletude radical.
Quando mente, Ibbieta imagina contradizer seus algozes e espera, assim, receber
a contrapartida da lógica do terror: a morte.
Contudo os cálculos humanos são desproporcionais à incerteza sobre os rumos
da história.
A mentira revela, num capricho da contingência, o refúgio de Gris no cemitério.
Este último é morto e Ibbieta – o culpado inocente – liberto da morte, ri o riso
exterminador que revela, não sem mal-estar, algo como o triunfo do absurdo.
Assim como se mostra impossível compreender a existência vivendo-a, se
desvela igualmente impossível acessar o sentido da história, fazendo-a.
86
idem. p..156
87
idem. p.157-58
54
88
idem.p.157.
55
89
SARTRE, J-P.Situations III.Paris sous l’occupation.p.37
90
Idem. p.20.
56
tempos de paz uma absoluta neutralidade. Todos estes cidadãos que procuravam ser
fiéis ao que eram entes da guerra, se viam arriscados de, ultrapassados pelas
circunstâncias, servir ao inimigo: “As mulheres e as mães dos desaparecidos, quando
haviam assistido à prisão, testemunhavam que eles haviam sido levados por Alemães
extremamente polidos, idênticos aqueles que nos perguntavam o caminho nas
ruas.” 91 (...) “do início ao fim da guerra, nós não reconhecíamos nossos atos, e não
podíamos reivindicar suas conseqüências. ” 92
Vítimas da postura oficial de conivência com o inimigo, a população sofria
com o abandono em relação ao restante da França ainda livre e com a vergonha de
perecer sem luta, como que por uma asséptica cirurgia: “ não houve ninguém em
Paris que não tenha tido, um amigo ou parente preso, deportado ou fuzilado.
Pareciam haver buracos escondidos na cidade e que eles se evadiam pelos buracos
como que tomados de uma hemorragia interna e inestancável.” 93
O morticínio “sem rosto” do maquinário militar alemão exprimia – à meia
voz- mas incontestavelmente, a situação de “prisioneiros ao ar livre” dos parisienses,
que embora resguardados dos bombardeios, padeciam, não obstante surdamente, da
despersonalização e perda de si característica do cerceamento absoluto da autonomia:
“Nós nos olhávamos uns aos outros e nos perguntávamos se nós também não
tínhamos nos tornados símbolos. É que, durante quatro anos, tinham nos roubado o
nosso futuro.” 94
Sem saída, a única atitude ética possível diante do invasor - resistir – parecia,
no mais das vezes, uma conjectura inverossímil e mesmo absurda, dada à inutilidade
dos parcos esforços resistentes relativa à potência do aparato bélico nazista e ao
assomo de violência, resultado imanente da luta imersa no cotidiano da cidade.
Ajuntemos: a complexidade da postura do resistente se adensa ainda mais quando
observados seus métodos por vezes oblíquos de ação – sabotagens, atentados à
bomba( que por vezes ceifavam também vidas inocentes)e enfim, pela sensação
remanescente de que, afinal, o que se fazia, “não servia para nada, ou servia aos
91
Idem,p.20.
92
Idem,p.37.
93
Idem,p.22.
,94 Idem.p.30.
57
Alemães” 95 . Comenta Sartre, “o que é terrível, não é sofrer nem morrer, mas sofrer e
morrer em vão.” 96 .
Neste sentido, é interessante notar que, segundo Sartre, à ação dos Resistentes
possuía um valor muito mais simbólico que militar 97 , pois representava uma resposta,
ainda que desesperada, à apatia na qual se diluía toda uma população colocada à
margem do próprio destino 98 . Estes sacrifícios humanos, nem sempre felizes na eleição
de seus métodos, levados à cabo no crepúsculo da história e “no
abandono(délaissement)absoluto” 99 , guardariam uma relação íntima com o sentimento
de culpabilidade advinda da impotência de evitar o avanço do mal. Desta situação de
emergência de decisões e de angustiosa obscuridade, nasceria um pseudo-heroísmo
problemático e ambíguo – em casos extremados em difícil consonância com a falta de
escrúpulos e com o niilismo. Surge da ausência completa de horizontes e do imperativo
de atribuir um sentido ao próprio destino: “O mal estava em toda parte, toda escolha
era má e não obstante era necessário escolher e nós éramos responsáveis; cada
batimento de nosso coração nos enchia de uma culpabilidade de que nós tínhamos
horror.” 100
Uma valiosa expressão narrativa destas ambigüidades e culpas que confinam
os que, ‘escolhendo a si mesmos’, persistem no engajamento na “noite” da história,
foi elaborada por Sartre em Morte Sem Sepultura. Nesta peça de 1946, uma pequena
mas significativa frase repercute, sintetizando o drama daqueles que se lançaram, sem
reservas, na ação; “Por nossa causa 101 ”: “Ela tinha treze anos. Por nossa causa ela
está morta(...) “Muitos outros estão mortos. Crianças e mulheres. Mas eu não os ouvi
morrer. A pequena, é como se ela ainda chorasse. Eu não posso guardar estes gritos
para mim sozinho.” 102
Lucie, Henri, Canoris e François vivem a experiência do cárcere miliciano às
vésperas da libertação da França – pesam sob suas costas as conseqüências de uma
95
Idem.p.31.
96
Idem,p.31.
97
“Com ela(a resistência)os Ingleses ganharam a Guerra, com ela eles haveriam perdido, se devessem
perdê-la.”(idem.p.30)
98
. “Nós sentíamos nosso destino nos escapar; a França se parecia com um vaso de flores que se põe
sobre o parapeito da janela quando faz sol e que se repõe em casa à noite, sem lhe pedir
consentimento.”
(Idem.p.28)
99
Idem.p.31.
100
idem, p.37.
101
SARTRE, J-P. Morts sans sépulture, pp.90,91,103
102
Idem.p.90-1.
58
103
Idem.p.90-91(Grifo nosso.)
104
Idem,p.103.
59
nos responderam: <<Mesmo assim, subam lá e tomem-na. >> Então nós dissemos:
<<Sim.>>E subimos. Onde está o erro?” 105
Para Canoris, não há como presumir qualquer espécie de inocência.
Revolucionário profissional (estrangeiro) como o Tom de O Muro, é talvez o
personagem que menos questiona o sentido dos empreendimentos, pois, consciente da
escolha de sangue que fizera, se sente justificado em suas atitudes, por mais dúbias,
por algo que julga transcendente e superior a si: a causa revolucionária. “ Não penso
em nada. Eu vivia para a causa e sempre soube que teria uma morte como
esta.” 106 Militante experiente e conhecedor da experiência dilacerante da tortura, sua
preocupação maior consiste em manter-se fiel à postura altiva de inimigo
irreconciliável do fascismo, re-avaliando a partir de suas experiência anterior – neste
momento no qual espera os algozes – se é possível definir, coagido pela dor e pelo
medo, alguma propedêutica para evitar à tentação da confissão: “Não há método.” 107
Não obstante o receio do momento da tortura, que sabe aniquilar as disposições
morais mais profundas pela hegemonia lancinante do corpo, uma certeza o
tranqüiliza; um trunfo valioso para quem almeja, sobretudo, manter-se fiel à causa
que elegeu como de sua existência: “Nós não temos nada a dizer. Tudo que sabemos
eles o sabem(...)Nós não sabemos nada, nós não temos nada a calar. Que cada um se
vire para não sofrer demais. Os meios não tem importância.” 108
Sorbier, por sua vez, vive à expectativa da tortura através de um feixe múltiplo
de preocupações acerca do passado, do presente, e do futuro: experimenta a sensação
de culpa e de malogro pela ação infeliz que pensara a princípio tratar-se de um ato
heróico; teme pelo que fará ou dirá sob tortura, momento que se aproxima e no qual
pensa que, afinal, “conhecerá a si mesmo”; e por fim, lhe ressente de modo dramático
a inutilidade tanto de sua vida, como de sua morte, pois assim como viveu sem nada
realizar por completo, morrerá sem razão, visto que nada tem para esconder de seus
carrascos: (à Canoris) “Eu queria me conhecer. Eu sabia que acabariam por me
pegar e que eu estaria, um dia, ao pé do muro, em face de mim, sem refúgio(recours).
Eu me dizia, agüentarás tu a pancada? É meu corpo que me preocupa, compreendes?
Eu tenho um corpo sujo e mal engendrado com nervos de donzela. E então, o
105
Idem,p.90-1.
106
Idem.p.111.
107
Idem, p.98.
108
Idem, pp.98, 104.
60
momento chegou, eles vão me atormentar com seus instrumentos. Mas fui roubado:
eu vou sofrer por nada, morrerei sem saber o que quero.” 109
Esta sensação prenunciada por Sorbier é ainda mais intensa em Henri, que
como Hamlet, a princípio, nega a realidade através do sono e da acedia: “Sonhava que
dançava no Sherazade. Sabem, o Sherazade em Paris. Eu nunca estive lá.” 110 Sinal de
uma primitiva necessidade de opor-se à realidade, o sonho, quem sabe represente esta
faculdade humana da negação do real pela imaginação diante de sua própria
fragilidade - única, melancólica e inútil possibilidade de evasão da situação-limite
que defronta as personagens com a questão da inalienabilidade da própria liberdade.
Se, afinal, o despertar de Henri é tardio não é senão por uma recusa integral das
vicissitudes do instante. Em seu semi-despertar, os ecos que preenchiam sua
consciência persistentemente livre, compostos de um conjunto de escapatórias para a
dimensão histórica do homem – resquícios de sonho, de arte e de natureza - se diluem,
como que absorvidos nas tintas de um croquis nebuloso e taciturno do átimo
histórico: “Ela(a música) entra pela janela, ela derrama-se sobre os cadáveres. A
música, o sol: quadro. E os corpos estão todos negros.” 111
Indagado por Lucie de como conseguira dormir, responde com uma
constatação que freqüentemente é reposta pelo horizonte sartreano; de que o homem
está abandonado ao seu próprio destino numa gratuidade e solidão sem testemunhas e
sem justificação: “Senti-me tão sozinho que me deu sono. (Ele ri) Nós somos
esquecidos da terra inteira.” 112 Esta certeza do ‘extravio’ entretanto não o imiscui da
culpa, e de maneira ainda mais significativa do que Sorbier Henri questiona-se sobre
sua responsabilidade pessoal no malogro, não apenas da operação - mas, de modo
geral, de sua existência infeliz, que foi não apenas incapaz de evitar o alastramento da
miséria humana, mas um de seus malévolos agentes: “ Sinto-me culpado(...) não
queria morrer em falta.” 113
Interpelado por Canoris (que se entende como que inocentado por um código
tácito de guerra) sobre em relação a quem se sentiria culpado, Henri começa a,
progressivamente, aceder a maior e maior lucidez a respeito da obscuridade da
própria conduta, e o primeiro véu que evapora é o da ordem superior como
109
Idem. 104-5.
110
Idem. p.105.
111
Idem. p.107.
112
Idem, p.109.
113
Idem. p.107.
61
114
Idem.p.108-9-10
62
substituir. Nós tentamos justificar nossa vida e falhamos. Agora , nós vamos morrer e
nos farão mortos injustificados.” 115
É a gratuidade e contingência da vida que se revela para as personagens de
Mortos Sem Sepultura: assim como em O Muro, confrontados com os últimos
instantes de suas vidas, as personagens se dão conta da inutilidade de seus esforços
para por em prática as vagas idéias pelas quais morriam, contestando assim, o sentido
último do empreendimento do engajamento. Enquanto eram úteis para banir o mal do
presente e erigir um futuro possível, sentiam-se justificados por uma idéia de
finalidade histórica que os guarnecia da contingência de suas ações: no momento no
qual, prisioneiros, encontram-se sem qualquer horizonte possível de futuro, notam a
esterilidade das ações e das próprias vidas diluídas no absurdo infrutífero da morte.
Sobre eles se abate a sensação da finitude, da contingência radical da vida,
preenchendo com seu negro vazio o singelo restante de existência que é o quinhão do
homem condenado: “Os metrôs estão abarrotados, os restaurantes cheios, as cabeças
estufadas remoendo pequenas inquietações. Eu deslizei para fora do mundo e ele
continuou cheio. Como um ovo. É preciso crer que eu não era indispensável...” 116
Esta sensação de extravio para fora do mundo de que fala Henri é partilhada
pelos outros prisioneiros acorrentados pela mesma heteronomia avassaladora; por um
lado, alienados de seu presente, podem ser a qualquer momento e por qualquer átomo
de vontade ser banidos da vida, por outro, cerceados de qualquer horizonte futuro,
estão assolados neste presente imediato e doloroso que já está como que preenchido
pela morte vindoura. Aqui, talvez não seja excessivo sublinhar novamente o paralelo
com as personagens do conto O Muro: enquanto àqueles, que já se julgavam mortos,
certificavam-se da continuidade do mundo exterior por intermédio do contato com o
único vivo que lhes restava - o médico Belga fascista - estes, também apartados
totalmente das raízes do existir, governar-se no presente e projetar-se em direção ao
futuro, vêem-se como que desmaterializar, anulados de antemão pela força que lhes
afasta do leme da própria vida - assim podemos compreender o verdadeiro status – o
de autômatos - destes mortos insepultos: aquém da vida (pois ultrapassados naquilo
que os fazem humanos) e já adiantados no processo de desaparecimento que é
sinônimo da morte: “(Lucie) Eu estou morta e calma, me economizo...
115
Idem. p.110-11.
116
Idem.p.114
63
(Canoris) Eu, creio que há tempos já estamos mortos: desde o momento em que
deixamos de ser úteis(...) nós não contamos mais, somos mortos sem importância.”
117
É a experiência da nadificação exemplar das condutas interrogativas, que
está posta em movimento na ficção de Sartre: as personagens ao interrogar a realidade
imprimem nela sua dimensão humana, destituindo o presente pela projeção antecipada
de sua morte anunciada: “O traço ontológico do existente é essa suspensão, ou esse
vazio de determinação essencial, negatividade que se manifesta primeiramente na
conduta interrogativa, aquela que introduz propriamente a negatividade no mundo. O
processo humano de interrogar nos indica que o homem é o ser que faz surgir o nada
no mundo.” 118
117
Não é nossa intenção proceder nenhuma análise mais detalhada da psicologia e fenomenologia de
Sartre. Nos esquivaremos, assim, neste presente escrito, o máximo possível das questões
fenomenológicas, com a intenção de realizar a proposta inicial - a confecção de um texto amplo tendo
por base a ficção do autor: preferiremos assim circunvizinhar a literatura dos ensaios políticos para ,
num segundo e terceiros relatórios, aprofundar então as questões de fenomenologia pertinentes.
Entretanto talvez, não seja excessivo recordar, a partir da análise de Leopoldo e Silva, o exemplo
clássico de Sartre para a capacidade humana de fazer refluir o nada para o real. Ele versa sobre alguém
que vai encontrar um amigo no bar, e; “Está atrasado e não tem certeza se o outro ainda está
esperando. Deve procurá-lo. O bar, na variedade e totalidade das coisas e pessoas que o constituem,
torna-se fundo da percepção, no sentido da Gestalt. Sobre esse fundo deveria aparecer a forma que é a
pessoa procurada. Mas isso só acontece porque minha expectativa visa algo de preciso e determinado,
o amigo que vim encontrar. É claro que as pessoas e os objetos não são fundo por si mesmos; sou eu
que os constituo assim para poder constituir a forma que é objeto de minha expectativa. Faço com que
tudo recue para um plano de irrealidade em relação à minha percepção, porque não viso nada a não
ser a pessoa procurada. Minha expectativa posiciona tudo num estado de evanescência, como se as
coisas tivessem retornado ao nada. Sartre diz que minha atenção procede a uma nadificação desse
fundo indiferenciado, porque não o procuro, não o interrogo. O processo de desvanecimento das
realidades inclui certos momentos de fixação de minha atenção (aquela pessoa, talvez seja ele) que
logo são superados e neutralizados como realidade. Após um certo tempo, vejo que ele não está: essa
constatação é crucial para entendermos a intuição da ausência. Como posso ver que ele não está? Não
deveríamos antes dizer que vejo tudo e todos que lá estão, menos o meu amigo, que precisamente não
está? ‘Mas, precisamente, eu esperava ver Pedro, e minha espera fez chegar a ausência de Pedro
como acontecimento real alusivo a este bar; agora é fato objetivo que descobri tal ausência, que se
mostra como relação sintética entre Pedro e o salão onde o procuro; Pedro ausente infesta este bar e é
a condição de sua organização nadificadora como fundo.’(p.51) O aparente absurdo implicado em
haver uma intuição sem objeto real pode ser explicada pelo fato de que a ausência de Pedro é de certa
forma mais real do que tudo que ali se encontra. É isso que significa a expressão ‘organização
nadificadora’: a intenção de minha consciência fez, de tudo, nada; e fez da ausência de Pedro algo
que ‘descobri’, como ‘fato objetivo’. Por isso diz Sartre que a ausência de Pedro ‘infestou’ o bar. A
ausência contaminou a presença a ponto de anulá-la. Tudo isso não pode ser explicado apenas pelo
juízo de negação. Pois esse somente foi formulado depois de um processo de nadificação das
realidades existentes. A ausência de Pedro não é apenas um juízo negativo: ela surge, eu a faço surgir
‘como acontecimento real’ por via do modo pelo qual a comprovo. O juízo vem por último e
subordina-se à intuição da ausência. ‘A ausência de Pedro infesta este bar’ quer dizer: o nada infesta
o ser. ‘A condição necessária para que seja possível dizer não é que o não-ser seja presença perpétua
em nós e fora de nós. É que o nada infeste (hante) o ser.’(O Ser e o Nada, p.56.ed. Fr.p,46.)(Grifos
nossos)
118
Talvez não seja inoportuno rememorar, ainda que de passagem, a sentença de Sartre: “O Ser pelo
qual o Nada vem ao mundo é um ser para o qual, em seu Ser, está em questão o Nada de seu Ser.”
(SARTRE, JP. O Ser e o Nada. pg. 65. Edição francesa, cit, pg. 58.)
64
119
Obviamente nos referimos a este aspecto da fenomenologia de Sartre de passagem, quase a título
ilustrativo, afinal, esperamos contar com mais três relatórios nas esperança de efetuarmos um
casamento mais denso entre teoria e ficção.
120
SARTRE, J-P. Paris sur l’Occupation, p.24-5
65
121
Idem,p.28-9.
122
Idem,p.30.
123
– “(Henri) Se unicamente nos restasse alguma coisa para empreender. Não importa o que. Ou
qualquer coisa a lhes esconder...”(Morts...p.112.)
124
Idem,p.129.
66
125
Idem,p.172-3.
126
Idem. p.144-5.
127
Idem,p.145.
67
A vertigem é angústia na medida em que tenho medo não de cair no precipício, mas
de me jogar nele.” 128
À angústia de Sorbier é derivada desta mesma angústia frente à liberdade que
encontramos na obra magna de Sartre de profunda ressonância kierkegaardiana e
heiddegeriana 129 . Ele teme que não será, nos momentos que lhe aguardam, quem quer
ser e contrariando-se, tornar-se o covarde odioso que julga ter sido durante a primeira
seção de tortura: (Sorbier) “(...)eles me perguntaram onde estava Jean e se eu o
soubesse teria lhes dito.(Ele ri) Vedes: agora, me conheço(...)
(Canoris) Tu não abrirás o bico!(mangeras pas le morceau)
(Sorbier) Mas se eu o fizesse?(Silêncio de Canoris). Vês? Existem sujeitos que
morreram em seus leitos, a consciência tranqüila. Bons filhos, bons esposos, bons
cidadãos, bons pais...Há..!São covardes como eu e não saberão jamais. Eles têm
sorte. (Um tempo)Mas fazei-me calar. Que estão esperando para me fazer calar?” 130
No caso da vertigem sartreana, como descrita em O Ser e o Nada, angústia
adviria do temor de si diante da abertura radical das condutas possíveis - de fazer de
fato aquilo que se quer evitar fazer -, por ex. jogar-se no abismo, revelando a nós
mesmos, a contingência radical não apenas das ações mas da própria consciência
empenhada na tarefa de manutenção forçosa de uma identidade a bem da verdade
inexistente. A simples possibilidade teórica de cair – ou de falar no caso de Sorbier -
torna-se uma projeção do poder total da liberdade na escolha do devir: " ao constituir
certa conduta como possível dou-me conta, precisamente por ela ser meu possível,
que nada pode me obrigar a mantê-la. Porém, encontro-me decerto já no devir, e é
em direção àquele que serei em instantes, ao dobrar a curva do caminho, que me
dirijo com todas as minhas forças - e, nesse sentido, existe já uma relação entre meu
ser futuro e meu ser presente. Mas, no miolo dessa relação, deslizou um nada: não
sou agora o que serei depois. Primeiro, não o sou pois o tempo me separa do que
serei. Segundo, porque o que sou não fundamenta o que serei.Por fim, porque
nenhum existente atual pode determinar rigorosamente o que hei de ser. Contudo,
como já sou o que serei (senão não estaria disposto a ser isso ou aquilo), sou o que
serei à maneira de não sê-lo. Sou levado ao futuro através do meu horror, que se
128
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.73-5.
129
Será de fundamental importância na continuidade deste estudo o aprofundamento das questões
trazidas pelas filosofias da existência de Kierkegaard e Heiddegger: uma obra parece, ao que tudo
indica, chave para a compreensão sartreana desta leitura: Jean Wahl: Kierkgaard et Heidegger, em
Études Kierkeggardiennes de 1938.
130
SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.123-5.
68
131
Sn?
132
Idem.p.97.
133
Idem,p.153-6.
69
134
Idem.p.117.
135
(Henri para Jean) “Eu estou contente que estejas aqui. Primeiro me destes um cigarro, depois serás
nossa testemunha, é glacial. Irás ver os parentes de Sorbier e escreverás a mulher de
Canoris.”(idem,p.129.)
136
(Henri para Jean) “Tu vês bem; tu te comoves, te agitas: estás demasiado vivo.”(idem, p.165.)
70
nos teus olhos minha última imagem viva, tu serás o único no mundo a conhecê-la.
Não a esquecerás. Eu, sou tu. Se tu vives, eu viverei.” 137
A experiência do aviltamento da violação, entretanto, provoca uma
metamorfose do que poderíamos notar como sendo um estado de espírito niilista em
constante presença na personagem Lucie: o que de começo se traduzia em cansaço e
delegação a outro do sentido da própria existência transmuta-se num áspero e violento
ímpeto de prosseguir na única recusa que poderia oferecer aos seus carrascos: a de
falar. No retorno da experiência mais ilustrativa do dilaceramento da identidade, a
devoção que guardava a Jean se diluíra, juntamente com as derradeiras esperanças de
absolvição: (Jean) “Não me amas mais. (Lucie) Eu não sei(Ele dá um passo em sua
direção). Te suplico, não me toques.(Com esforço)Creio que deveria amar-te ainda.
Mas não sinto mais o meu amor.(Com fadiga) Não sinto mais nada de nada(...) Tudo
isto não tem grande importância(...)Diga-lhes que eu não falei.” 138
A esta altura, com Henri e Canoris torturados, o corpo de Sorbier caído à
janela, Lucie dilacerada pelos algozes e François clamando pela inocência condenada,
a atmosfera do cárcere fascista conspira à atrição, ao desvelo sem reservas, à perda
dos referenciais, à impotência, numa palavra, ao simples sucumbir.
Daí a dimensão enigmática da resignação à liberdade das personagens de
Mortos Sem Sepultura, que, tendo por fundamento a desesperança, instituem valores
tão absolutos(na materialidade de sua repercussão histórica), quanto relativos(em sua
origem arbitraria e obscura): valores surgidos a partir da perspectiva limitada e opaca
de seu referencial do mundo.
Naquele momento, de maneira bizarramente infantil, a vida havia se
restringido à tola plaisantarie 139 de evitar a qualquer custo que o adversário soubesse
o paradeiro de Jean. Não é à toa que a temática do jogo retorna à peça de Sartre
(desde os gritos de Sorbier do alto da marquise) 140 como analogia da arbitrariedade
primordial dos valores da existência, enfim do absurdo fundamental que regula às
ações, com a relevância que outrora compunha às argumentações dos moralistes do
século XVII 141 :
137
Idem,p.129.
138
idem.p.170.
139
Pensamos aqui no termo em francês que tem o sentido de brincadeira, gaiatice, mas também
divertimento(no sentido do século XVII) que institui uma forte ênfase ao aspecto bizarro.
140
“Eu ganhei, eu ganhei!”(idem.p.156.)
141
Um texto meu está em impressão e será publicado brevemente sobre o assunto( Cf. GERMANO,
E.Acaso e Jogo no pensamento de Pascal in CEFP n.5).
71
142
Idem,p.166.
143
PASCAL,B. Pensamentos. Fragmentos numerados a partir da edição Brunschvicg e Lafuma.
144
(f.140) “Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao
tormento de tão grande dor, por que não está triste neste momento, e o vemos tão isento destes
pensamentos penosos e inquietantes ? Não há motivo para estranharmos: acabam de entregar-lhe uma
bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto. Como
quereis que pense em seus tormentos, se tão grande assunto o preocupa ?”
145
Este horizonte pascaliano da problemática do jogo não passa de modo nenhum despercebido pelas
análises de Sartre em O Ser e O Nada que se indica em certa medida em continuidade com o esforço
dos moralistas de transcender à analítica factuais dos comportamentos em direção a uma tentativa de
aprofundamento compreensivo das condutas. (cf.O Ser e o Nada, p.688-9)
72
toda minha força; se a perco, estou perdido” 146 Assim, a figura do jogo possui uma
dimensão filosófica preponderante em Pascal: no jeu à vide da existência tão somente
uma causa transcendente ao homem poderia justificá-lo: a aposta é feita no abandono
e na relatividade mais radical, mas seu valor é absoluto: (Br.233-L.418)
“Examinemos, pois, esse ponto, e digamos: ‘ Deus Existe ou não existe’. Para que
lado nos inclinaremos? A razão não pode determinar: há um caos infinito que nos
separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se cara ou coroa. Em que
apostareis ?”
O paradoxo insuperável da existência está assinalado: por um lado
relatividade, arbitrariedade e banalidade perspectiva, por outro o caráter absoluto não
obstante cego das decisões humanas.
De algum modo este paradoxo do compromisso surgido como se de dentro
da absurdidade da vida é reposto por Sartre em Mortos Sem Sepultura. Ao contrário
da responsabilidade clássica sugerida por Pascal, a da escolha por um sentido que
transcenda à vida, em Sartre, à absurdidade transborda em direção ao compromisso
existencial com a história, isto é, neste caso, com a finalidade histórica (imediata) que
as personagens arquitetam para si mesmas: a de não delatar Jean. Se afinal é
empunhando sua verdade pessoal que Pascal joga na manutenção de um conteúdo de
fé para vida - “se a perco estou perdido”(Br.99-L.952) - só existe também uma
clareira de liberdade, sentido e justificativa no jogo daqueles a quem “tudo
roubaram”, inclusive o futuro: “Se falamos, nós teremos perdido tudo.” 147 . Essa
finalidade carece de um horizonte mais amplo – configura, quem sabe, talvez, tão
somente uma causa mortis: afinal os prisioneiros, cadáveres insepultos, não cogitam
qualquer futuro além das quatro paredes.
É com horror que Jean testemunha esta tremenda metamorfose da
perspectiva da vida sofrida pelos condenados à morte, notando a re-modulação da
finalidade de existir de seus camaradas: suas vidas se reduziram à partida agonizante
entre cadáveres adiados 148 - na qual a premiação não é, senão, ele mesmo. Imóvel,
Jean está impotente em relação ao sofrimento dos seus, consumido por uma vergonha
146
Br.991.
147
p.166.
148
Talvez não seja excessivo notar que os carrascos esperam irrefletidamente a sua vez visto que o
exército de libertação está às portas do país.
73
e culpa sem precedentes: (Jean) “É por mim que ele vai sofrer. (Henri) Tanto mais
que seja por ti. Senão seria por nada.” 149
Prisioneiro por acaso, amordaçado por dever, testemunhando o massacre e o
desaparecimento cotidiano daqueles que lhe são caros, Jean lamenta-se copiosamente
de seu destino aparte de seus companheiros: o dote de sua vida parece-lhe irrisório
diante da infelicidade que está obrigado a, calado, testemunhar. Aturdido pelo
niilismo de seus companheiros diante do destino que lhes aguarda, ele, entretanto,
não ousa questionar-lhes, pois se julga como que inferior e culpado unicamente pela
conservação de sua integridade física: (Jean a Henri) “Continue. Tu tens direitos,
mesmo o de me torturar: pagaste adiantado. (Se levanta) Como vocês estão seguros
de si. É que basta sofrer na própria carne para conservar a consciência tranqüila.
(Henri não responde.) Tu não compreendes que eu sou mais infeliz do que todos
vocês.” 150
A situação de Jean quem sabe metaforize a da própria população de Paris
quando refém da ocupação nazista, tal como no relato retrospectivo do próprio Sartre
Paris sous l’occupation: “ (...)não ousávamos nos queixar: tínhamos uma má
consciência. Esta vergonha secreta que nos atormentava, eu a conheci, de começo, no
cativeiro(...)nos sentíamos fora do jogo.” 151
O esforço deste texto político de Sartre - como de antemão podemos divisar
pelas passagens anteriores - é o de tentar esboçar para os Ingleses os dramas
assombrosamente reais dos cidadãos parisienses que, embora preservados fisicamente,
sofriam por não poder lutar às claras como os demais e mesmo morrer, como os
demais, dignamente. Talvez neste sentido as palavras de Sartre nos ajudem a
compreender a dimensão do sofrimento moral de que é acometido Jean quando se
entende mais infortunado que seus companheiros que vão morrer, já que se crê
disposto numa posição de ainda maior inutilidade do que aqueles que morrem para
preservá-lo: “Os Ingleses e os Franceses não possuem uma única memória em
comum, tudo que Londres viveu no orgulho Paris viveu no desespero e na
vergonha(...)a ocupação foi freqüentemente mais terrível do que a guerra. Pois, em
149
Idem,p.126.
150
Idem,p.172.
151
SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation, p.33, 30.
74
guerra, cada um pode realizar sua função de homem enquanto que nesta situação
ambígua, não podíamos verdadeiramente nem agir, nem mesmo pensar.” 152
O desespero de Jean diante da morte e tortura de seus companheiros e a
vergonha pela atitude contemplativa que é obrigado a guardar diante da violação de
Lucie, a mulher que amara, nos parece análoga a dos parisienses resignados a verem
se esvair por buracos invisíveis seus irmãos de sangue. Nostalgia pela perda do futuro,
culpa pelo presente avassalador, remorso por causas que transcendem a si: suas
palavras deixam transparecer que o fardo da inutilidade da própria vida e da
impotência diante do sofrimento do próximo começa a despontar com o peso de um
destino: (Jean) “(...) vocês sofrem por conta própria. Isto é o que dá uma consciência
tranqüila. Eu era casado; não lhes disse. Minha mulher morreu em parto. Fui ao
vestíbulo da clínica e soube que ela morrera. É igual, tudo é igual!Andei, agucei o
ouvido para ouvir seus gritos. Ela não gritava. Ela teve o bom papel. Vocês
também.” 153
Jogo, partida, papel, encenação – causa: qualquer destes pretextos é igual se
pretendem justificar existências já injustificáveis que se envergam sob o peso de
tantas mortes: não é à afirmação da vida que lhes importa nestes minutos que
antecedem o martírio e o desaparecimento, mas a negação – a qualquer preço- de sua
insuportável gratuidade. A alegoria do teatro e do jogo, a arbitrariedade em estado
elementar, nos reaviva que a vida de Jean ou outro objetivo qualquer seria idêntico,
pois o que se trata é de não morrer por nada, como mostra o revelador diálogo entre
Jean e Henri: (Jean) “É para não me entregar que ela (Lucie) enfrenta os sofrimentos
e a vergonha. (Henri) Não, é para ganhar(...)Ela quer ganhar, é tudo.”
O desdobramento final de Mortos Sem Sepultura narra esta desesperançada
procura de justificação e finalidade para a existência, simbolizada nesta adesão
ilimitada ao jogo insano do silêncio alçado arbitrariamente como o valor humano
supremo. O drama final das personagens nos remete àquelas palavras ditas por Sartre
acerca do fardo da opacidade da história vivido com todo amargor pelos resistentes:
“o que é terrível, não é sofrer nem morrer, mas sofrer e morrer em vão.” 154
Enquanto seus companheiros aderem ao jogo do silêncio pela possibilidade de
atribuir um sentido, senão à suas vidas, pelo menos à suas mortes, François, como
152
Idem. pp. 17, 42
153
SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.162.
154
SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation. p.31.
75
dissemos, não se conforma em notar em Jean este sofrimento tão somente moral que
julga não passar de um golpe de ar diante da morte que lhe estreita e não aceita
morrer sumariamente: para ele só se pode justificar a morte pela vida de modo que
ensaia denunciar Jean a fim de livrar a si e a sua irmã, Lucie; o futuro de um delator
lhe parece mesmo delicioso posto que seja ainda um futuro: (Lucie) “Eu não quero
esta vida. (François) “Eu quero. Quero qualquer vida, não importa qual. A vergonha
passa quando longa é a vida.” 155
Sua intervenção, por mais vexatória, não apenas é de algum modo, bela - pelo
elogio que procede do valor da vida por ela mesma – mas também dotada de razão e
mesmo de algum rigor, na medida em que, na lógica do pior que se delineia, a morte
de Jean significaria certamente mais créditos de vida do que sua salvação ao custo do
martírio de todo o restante do grupo, donde sua afoita e temerária conclusão:
(François para Jean) “Eu te denunciarei! Eu te denunciarei. Te farei partilhar nossas
alegrias!(...)Te salvarei Lucie. Eles nos deixarão a vida.” 156
Neste momento limite o idealismo – esta presunção demasiado humana de
viver em sua verdade - se mistura dolorosamente com o niilismo e desliza de maneira
ignominiosa até a injustiça: prisioneiros da ambigüidade, ansiosos por justificar suas
existências já atormentadas pelas imensas culpas que pesam sobre os ombros daqueles
que ousam modelar à argila da história com as próprias mãos, as insepultas
personagens que restaram, defrontam-se com a nefasta situação transcrita com nitidez
por Sartre numa única sentença a que já aludimos: ““O mal estava em toda parte,
toda escolha era má e não obstante era necessário escolher e nós éramos
responsáveis.” 157
Transpassado, Canoris anuncia então, o que poderíamos considerar até
mesmo como uma expressão narrativa para a concepção sartreana do destino: destino
inscrito numa dimensão exclusivamente humana e, portanto, histórica: (Canoris a
François) “Tudo é por nossa culpa.” E conclui: 158 “Nós te pedimos perdão.” 159
As palavras de Henri enquanto se aproxima de François já nos lançam no
universo aberto e brutal das possibilidades que indica que todo sacrifício é necessário
155
SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.174.
156
Idem, p.173.
157
SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation.p.37.
158
SARTRE, J-P. Morts Sans Sepulture.p.174.p.175.
159
Idem.
76
em troca de uma finalidade mesmo que arbitrária para a história daqueles prisioneiros:
(Henri a François) “Nosso jogo é te impedir de falar.”
Mas é quando a irmã de François, Lucie, interpõe-se entre Jean e os outros
dois que rapidamente circundam o rapaz, que notamos a dominação inequívoca de um
niilismo desesperado refluindo na conduta “inequivocamente” reta dos resistentes:
diante da sinuosidade da história a retidão é uma armadilha auspiciosa:
(Jean) “Vocês imaginam que irei deixar acontecer. Não tenha medo, pequeno.
Estou com as mãos livres e estou contigo.”
(Lucie a Jean) Porque interferes?
(Jean) É teu irmão.
(Lucie) E daí? Ele irá morrer amanhã.
(Lucie)É necessário que ele cale. Os meios não contam(...)
(Lucie a Henri) “Meu pobre pequeno, meu único amor, nos perdoe.”
O assassinato, a sangue frio, do rapazote François, de tenros quinze anos
pelos nossos “heróis” nos introduz, assim, num questionamento indelével em torno
dos cálculos que fundamentam o sacrifício de homens em virtude de ideais. A
opacidade das ações, a dubiedade dos empreendimentos históricos aflora para o
primeiro plano do discurso ético-filosófico da narrativa de Sartre. Afinal, se, de algum
modo, em O Muro, a escolha puramente ocasional do cemitério como refúgio pela
parte de Gris e a delação involuntária de Ibbieta põe em cena o papel da contingência
dos acontecimentos (do mundo num sentido mais lato) no desenrolar sempre
imprevisível da história, aqui, em Mortos Sem Sepultura, Sartre acentua a
contingência radical das ações humanas, ressaltando a dimensão humana e mesmo
voluntária do mal.
Como atesta a desesperança de Lucie perante o corpo de seu irmão
covardemente executado, a morte de François configura não o esplendor do sentido
ou da causa, mas , ao contrário, o ápice da gratuidade e da ausência de justificativa,
enfim, um coroamento funesto para o niilismo: (Lucie) “Tu estás morto e meus olhos
estão secos; me perdoe: não tenho mais lágrimas e a morte não tem mais
importância. Lá fora eles são trezentos, deitados na grama, e eu também, amanhã,
estarei fria e nua, sem sequer uma mão para me acariciar os cabelos. Não há nada
do que se arrepender, tu sabes: a vida não tem mais muita importância.” 160
160
Idem.p.183.
77
161
Idem.p183.
162
SARTRE, J-P. Situations III. Paris sur l’Occupation.p.42.
78
163
MSS. p.207.
164
MSS. p.208.
165
(Lucie) “Tudo está envenenado.”idem,p.214.
166
(Henri) “(...)Em todos os momentos de minha vida interroguei-me sobre mim mesmo.”(idem.p.210.)
167
Idem.p.215.
168
Idemp.111.
79
169
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p, 677-680.
80
170
SARTRE, J-P. Questão de Método in Crítica da Razão Dialética. p.42.
171
"Não há dúvida de que o marxismo permite situar um discurso de Robespierre, a política dos
montanheses em relação aos sans-culottes, a regulamentação econômica e as leis de "maximum"*
votadas pela Convenção, tão bem quanto os poemas de Valéry ou La Légende des siècles. Mas, afinal,
o que é situar? Se eu me refiro aos trabalhos dos marxistas contemporâneos, vejo que pretendem
determinar o lugar real do objeto considerado no processo total: serão estabelecidas as condições
materiais de sua existência, a classe que o produziu, os interesses dessa classe(...)O discurso, o voto, a
ação política ou o livro aparecerão, neste caso, em sua realidade objetiva, como um certo momento
desse conflito; este será definido a partir dos fatores dos quais depende e pela ação real que exerce;
por aí, será incluído, como manifestação exemplar, na universalidade da ideologia ou da política
consideradas, por sua vez, como superestruturas. Assim, os girondinos serão situados por referência a
ruína da burguesia de comerciantes e armadores que provocou a guerra por imperialismo mercantil e,
quase logo, deseja interrompê-la porque ela causa prejuízo ao comércio exterior. Pelo contrário, os
montanheses serão tidos por representantes de uma burguesia mais recente, enriquecida pela compra
82
dos Biens nationaux* e pelas provisões de guerra; por conseqüência, seu principal interesse é o de
prolongar o conflito. Assim, os atos e discursos de Robespierre serão interpretados a partir de uma
contradição fundamental: para continuar a guerra, esse pequeno-burguês deve apoiar-se no povo, mas
a baixa do assignat,** o açambarcamento e a crise dos meios de subsistência conduzem o povo a
exigir um dirigismo econômico prejudicial para os interesses dos montanheses, além de ser
repugnante para a sua ideologia liberal; por trás desse conflito, descobre-se a contradição mais
profunda entre o parlamentarismo autoritário e a democracia direta.Pretende-se situar um autor de
hoje? O idealismo é a terra nutriz de todas as produções burguesas; esse idealismo está em movimento
uma vez que, à sua maneira, reflete as contradições profundas da sociedade; cada um de seus
conceitos é uma arma contra a ideologia ascendente - segundo a conjuntura, a arma é ofensiva ou
defensiva. Ou, melhor ainda, de início, ofensiva, torna-se, com o tempo, defensiva. Assim, Lukács
estabelecerá a distinção entre a falsa quietude do período que antecedeu a Primeira Grande Guerra
que se expressa "por uma espécie de carnaval permanente da interioridade fetichizada" e a grande
penitência, o refluxo do pós-guerra durante o qual os escritores procuram "a terceira via" para
dissimular o seu idealismo.” (idem,p.42)
172
idem.p.42.
83
175
Idem,p.49
176
Idem.p.48.
85
179
Idem.p.55.
180
Idem.p,55.
87
181
“De fato, o materialismo dialético não pode privar-se por mais tempo da mediação privilegiada que
lhe permite .passar das determinações gerais e abstratas para certos traços do indivíduo singular. A
psicanálise não tem princípios, não tem base teórica: no máximo, ela é acompanhada - em Jung e em
certas obras de Freud - por uma mitologia perfeitamente inofensiva. De fato, trata-se de um método
que se preocupa, antes de tudo, em estabelecer a maneira como a criança vive suas relações familiares
no interior de determinada sociedade. E isso não quer dizer que ela coloque em dúvida a prioridade
das instituições. Muito pelo contrário, seu objeto depende, por sua vez, da estrutura de tal família
particular e esta não passa de uma certa singularização da estrutura familiar própria a tal classe, em
tais condições; assim, algumas monografias psicanalíticas - se continuassem sendo possíveis -
colocariam, por si mesmas, em relevo a evolução da família francesa entre os séculos XVIII e XX, a
qual, por seu turno, traduz à sua maneira a evolução geral das relações de produção.”(Idem.pp 57-
59.)
182
Idem,p.59.
88
183
Idem.p.59.
89
Assim como nos anos sessenta Sartre advertirá aos marxistas o risco de
submeter à realidade ao banho de ácido dos esquemas finalistas e economicistas
universalizantes, anos antes, advertia aos psicólogos, uma perda semelhante da
dimensão concreta dos projetos: “A cada etapa da descrição supracitada
encontramos um hiato. Por que a ambição e o sentimento de sua força produzem em
Flaubert uma exaltação, em vez de uma espera tranqüila ou uma sombria impa-
ciência? Por que esta exaltação se especifica em necessidade de agir demasiado e
sentir em excesso? Ou melhor, para que serve essa necessidade que surge
subitamente, por geração espontânea(...)por que, em vez de buscar satisfazer-se em
atos de violência, fugas, aventuras amorosas ou na libertinagem, tal necessidade
escolhe precisamente, satisfazer-se simbolicamente? E por que esta satisfação
simbólica, que poderia, por outro lado, não pertencer à ordem artística. (há também,
por exemplo, o misticismo), encontra-se na literatura, e não na pintura ou na música?
‘Eu poderia ter sido um grande ator’, escreveu Flaubert em algum lugar. Por que
não tentou sê-lo? Em suma, não compreendemos nada; vimos uma sucessão de
184
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p. 683.
90
acasos, de desejos que irrompem uns dos outros, sem que seja possível captar sua
gênese.” 185
Sartre nota que no tratamento generalizante dos casos singulares da
existência através da psicologia e mesmo da psicanálise em geral conduz-se uma
perda do valor irredutível de cada gesto como inscrito numa historicidade própria e
esta simplificação seria, afinal, a essência mesmo de seus métodos; reduzir a
complexidade dos sujeitos a uma captação de “conexões genéricas”: “Por exemplo, (a
psicologia) pode captar a ligação entre castidade e misticismo, entre fraqueza e
hipocrisia. Mas ignoramos sempre a relação concreta entre esta castidade (esta
abstinência com relação a tal ou qual mulher, este embate contra tal ou qual tentação
precisa) e o conteúdo individual do misticismo; exatamente como, por outro lado, a
psiquiatria se satisfaz ao esclarecer as estruturas genéricas dos delírios e não busca
apreender o conteúdo individual e concreto das psicoses (por ex. este homem supõe
ser tal ou qual personalidade histórica, em vez de outra qualquer; por que seu delírio
de compensação se satisfaz com estas idéias de grandeza, em vez de outras, etc.) Mas,
sobretudo, essas explicações ‘psicológicas’ nos remetem inevitavelmente a
inexplicáveis dados primordiais. São os corpos simples da psicologia. Dizem-nos, por
exemplo, que Flaubert tinha uma ‘ambição desmedida’, e toda a descrição
supracitada se apóia nesta ambição original. Que assim seja. Mas esta ambição é um
fato irredutível que de forma alguma satisfaz o pensamento.(...)E pensar: isso é o que
se denomina psicologia.” 186
A psicanálise existencial de Sartre, assim, põe-se uma tarefa hercúlea de
resgatar a visão singular de cada sujeito, na complexidade e opacidade constitutivas
de sua perspectiva, ou seja, nada mais nada menos de intrometer-se na realidade
própria de cada um, em busca da origem profunda de seus projetos e realizações na
emergência do presente no qual se realizaram. Numa palavra, nos parece um projeto
de restauração da própria contingência de cada existência real.
Os mecanismos tradicionais de associação dos comportamentos a feixes
genéricos de compreensão não são suficientes para dar conta da singularidade
existencial, assim como ficará claro mais tarde, a impropriedade dos esquemas de
compreensão da história através dos esquemas abstratos marxistas: “Esse penhasco
está coberto de musgo, o rochedo vizinho, não. Gustave Flaubert tinha ambição
185
Idem, p.684.
186
Idem,p.685
91
literária e seu irmão Achile não. Assim é. Do mesmo modo, queremos conhecer as
propriedades do fósforo e tentamos reduzi-las à estrutura das moléculas químicas
que o compõem. Mas, por que há moléculas desse tipo? Assim é - eis tudo. A
psicologia de Flaubert irá consistir em concentrar, se possível, a complexidade de
suas condutas, sentimentos e gostos em algumas propriedades, bastante análogas às
dos corpos químicos, e além das quais seria uma tolice querer remontar-se.” 187
A diferenciação do empreendimento da “psicanálise existencial” em
relação à psicologia e mesmo à psicanálise tradicional na medida em que esta ainda
busca por impingir esquemas pré-estabelecidos aos indivíduos é a tentativa, por um
lado, de preservar o núcleo da liberdade donde emanam as inúmeras formas de
conduta frente às determinações da exterioridade, de outro, salientar a
irredutibilidade e historicidade dos projetos singulares, não do ponto de vista da
renúncia do empreendimento compreensivo, mas no sentido que é sempre o homem
concreto e inexoravelmente complexo que deve ser encontrado ao final da análise: “
(...)todavia, sentimos obscuramente que Flaubert não «recebeu» sua ambição. Esta é
significante, e, portanto, livre. Nem a hereditariedade, nem a condição burguesa, nem
a educação podem explicá-la; muito menos ainda as considerações fisiológicas sobre
o "temperamento nervoso" que estiveram em moda por algum tempo: o nervo não é
significante; é uma substância coloidal. que deve ser descrita em si mesmo e não se
transcende para fazer conhecido a si própria, através de outras realidades, aquilo
que é. Não poderia, de modo algum, portanto, fundamentar uma significação. Em
certo sentido, a ambição de Flaubert é um fato com toda sua contingência - e é
verdade que é impossível avançar para-além do fato -, mas, em outro sentido, essa
ambição se faz, e nossa insatisfação é garantia de que, para-além desta ambição,
poderíamos captar algo mais, algo como uma decisão radical, a qual, sem deixar de
ser contingente, consistiria no verdadeiro irredutível psíquico. O que exigimos - e que
jamais tentam nos proporcionar - é, pois, um verdadeiro irredutível, ou seja, um
irredutível cuja irredutibilidade nos fosse evidente, e que não nos fosse apresentado
como o postulado do psicólogo e o resultado de sua recusa ou incapacidade de ir
mais longe, mas sim cuja constatação produzisse em nós um sentimento de
satisfação." 188
187
Idem,p.686.
188
Idem,p.686. Ajuntemos: este sentimento de satisfação parece puramente hipotético se notarmos, por
exemplo, o teor inacabado de O Idiota da Família.
92
189
Idem. p.686.
190
“O princípio desta psicanálise consiste na assertiva de que o homem é uma totalidade e não uma
coleção; em conseqüência, ele se exprime inteiro na mais insignificante e mais superficial das
condutas em outras palavras: não há um só gosto, um só tique, um único gesto humano que não seja
revelador.”(idem.p.696.)
191
Idem, 697.
93
Neste ponto, talvez não seja excessivo notarmos a aproximação que Sartre
elabora entre seu próprio método e de alguns dos ‘moralistas’ franceses, na medida
em que os dados empíricos serviriam neles não a um mero procedimento
classificatório e ao recurso à regressão até às supostas entidades abstratas do ser, mas
a revelações acerca da própria condição humana na opacidade de sua relação
intrínseca com real. "Os moralistas mais perspicazes mostraram algo como um
transcender do desejo por si mesmo; Pascal, por exemplo, supôs descobrir na caça,
192
no jogo da péla ou em centenas de outras ocupações, a necessidade de diversão -
ou seja, clarificava, em uma atividade que seria absurda se reduzida a si mesmo, uma
significação que a transcende, isto é, uma indicação que remete à realidade do ho-
mem em geral e à sua condição. Igualmente, Stendhal, a despeito de suas ligações
com os ideólogos, e Proust, apesar de sua tendências intelectualistas e analíticas,
mostraram que o amor e o ciúme não poderiam reduzir-se ao estrito desejo de
possuir uma mulher, mas visam apoderar-se do mundo inteiro através daquela
mulher: este é o sentido da cristalização stendhaliana, e, precisamente por causa
disso, o amor, tal como Stendhal o descreve, aparece como um modo de ser no
mundo, ou seja, como uma relação fundamental do Para-si com o mundo e consigo
mesmo (ipseidade) através de tal mulher em particular; a mulher representa apenas
um corpo condutor situado no circuito. Tais análises podem ser inexatas ou não
completamente verdadeiras: nem por isso deixam de nos fazer suspeitar da
possibilidade de outro método que não o da pura descrição analítica." 193
No caso de Sartre, entretanto, talvez não seja excessivo ainda uma vez
assinalar, a transcendência filosófica da pura analítica dos comportamentos estaria
direcionada, para a elucidação do enigma do singular: a revelação buscada aqui seria a
da condição humana como projeto fundamental de elaborar a si como escolha livre,
por detrás das condutas aparentemente determinadas pelo exterior: “Não se trata aqui
de buscar um abstrato detrás do concreto(...)Pelo contrário, trata-se de recobrar, sob
aspectos parciais e incompletos do sujeito, a verdadeira concretude, a qual só pode
consistir na totalidade de seu impulso rumo ao ser e de sua relação original consigo
mesmo, com o mundo e com o Outro, na unidade de relações internas e de um projeto
192
Esta passagem de O Ser e O Nada justifica nossa intromissão pascaliana à questão do jogo
elaborada acima.
193
Idem,p.688-9
94
fundamental.” 194 Noutras palavras, a psicanálise existencial, “caso possa existir” 195 ,
“é um método destinado a elucidar, com uma forma rigorosamente objetiva, a
escolha subjetiva pela qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, faz-se anunciar a si
mesmo aquilo que ela é.” 196
Não obstante a possibilidade da psicanálise existencial 197 de fato existir,
como vimos na sentença acima, se configure uma mera hipótese, e embora alguns dos
projetos de Sartre para a aplicação de sua metodologia guardem um teor inacabado ou
mesmo nem tenham sido realizados 198 , há, entretanto, dois esforços que, afinal,
almejam um teor ‘conclusivo’: Baudelaire de 47 e Saint Gênet, comédien et martyr de
52.
Neste capítulo, nos dedicaremos a uma pequena análise da primeira parte deste
primeiro empreendimento de captura da densidade da singularidade através de uma
biografia, notando, em continuidade com o foco que já sublinhamos a partir das
primeiras obras de ficção de Sartre, a dimensão “voluntária” que o autor atribui ao
destino - encarado como manifestação última do projeto singular, isto é, escolha livre.
*
“<<Ele não teve a vida que mereceu. >> Desta máxima de consolação, a
vida de Baudelaire nos parece uma magnífica ilustração(...)E se ele houvesse
merecido a sua vida. E se, ao contrário das idéias recebidas, os homens não tem
senão a vida que merecem?”
O procedimento de Sartre é genealógico, recorrerá, primeiramente, às diversas
biografias estabelecidas sobre Baudelaire na tentativa de reconstituir a infância do
poeta sob o que seria a ótica segundo a qual ele a viveu, depois, sondará detidamente
a documentação pessoal do autor – correspondência, diários – para compreender
como o poeta exercita na vida adulta, mesmo sem o saber, certas escolhas que
guardam relações com móveis que se remetem à infância, e, além disso, através de
194
Idem.p,689.
195
Idem p.702.
196
Idem,p.702.
197
Dissemos que não é nossa intenção elaborar nenhuma investigação mais detida sobre os problemas
de natureza fenomenológica de Sartre nesta tese, entre os quais os tópicos necessários à elaboração de
uma “psicanálise existencial”: daí o teor incompleto e mesmo taquigráfico das colocações deste
capítulo. Entretanto, nos parece significativa esta pequena introdução teórica à dimensão enigmática
das condutas individuais com a finalidade de notar que em seu trabalho como ficcionista Sartre lança
mão destas linhas gerais de investigação da singularidade para constituir o itinerário de sua
personagens como oriundos de escolhas e projetos livres, próprios, não obstante obscuros e nebulosos
pois imersos na radical complexidade do presente existencial e histórico.
198
Sartre nos indica que fará uma biografia existencial de Dostoiévsky(que não fará) e de Flaubert, que,
como dissemos , deixará inconclusa.
95
199
SARTRE, J-P. Baudelaire. p, 18.
200
Idem.
201
idem. p.18.
96
‘fratura’(...)Esta ruptura brusca e a mágoa que ela resulta o lançam sem transição na
existência pessoal. Até então ainda estava penetrado pela vida unânime e religiosa do
casal que formava com sua mãe. Esta vida se retirara como uma maré o deixando só
e seco, ele perdeu suas justificações, descobriu na vergonha que ele era um, que sua
existência lhe fora dada por nada.” 202
Para Sartre é a partir deste momento que Baudelaire configurará a si mesmo
como um irrevogável misantropo, destinando-se por sua escolha pessoal à solidão.
Notemos que o isolamento a que fora submetido pelo seu grupo não é propriamente o
que vive. A solidão que Baudelaire vivencia é voluntária e radical, ele urde a própria
clausura para não se encontrar à força dela prisioneiro. Sartre nos introduz, assim, no
tema que será sempre o seu: o do destino arquitetado livremente pelo homem: “Desde
então ele pensa esse isolamento como destino(...)Tocamos aqui na escolha
fundamental que Baudelaire fez de si mesmo, neste engajamento absoluto pelo qual
cada um de nós decide numa situação particular do que será e do que é.
Abandonado(délaissé), rejeitado, Baudelaire quis retomar por conta própria este
isolamento. Ele reivindicou sua solidão para que ela surgisse ao menos dele mesmo,
para que não tivesse que a ela se submeter.” 203
A experimentação que Sartre detecta em Baudelaire é a da descoberta de si na
situação antropológica original: a do abandono(délaissement). Para o filósofo, o que
se revela não é apenas um traço psicológico de Baudelaire, mas uma condição na
medida em que a consciência humana de si se constitui pelo vislumbre desta
alteridade e apartamento radicais em relação aos outros seres. Traçando o contraponto
entre a uniformidade natural em sua quietude de significações e a inquietude
demasiado humana na atribuição de sentido a si, Sartre nota que os pássaros guardam
sempre o consolo de se verem reproduzidos nos da sua espécie, enquanto os homens
não reconhecem jamais no outro senão aquilo que os diferencia de si. A condição de
isolamento se reduplica pela diluição, segundo Sartre, daquele lastro de eternidade
que a criança perde ao constatar-se uma entre as demais 204 , e ao notar-se nesta
202
idem. p.19.
203
idem.p,19-20.
204
Solidão ontológica que emerge do primeiro despertar da consciência de si da criança que ele nota
emergir também do relato de Hughes em Un cyclone à Jamaïque: “(Emily) brincava de casinha num
canto(...)fatigada da brincadeira, ela andava sem rumo para trás, quando lhe veio de repente o
fulgurante pensamento de que ela era ela...Uma vez plenamente convencida do fato estarrecedor de
que ela era agora Emily Bas-Thornton... se pôs a seriamente examinar o que um tal fato
implicava...Que vontade havia decidido que entre todos os seres do mundo ela seria este ser
particular, Emily, nascida num tal ano entre todos aqueles que o tempo fez...Fora ela que havia
97
escolhido? Fora Deus?Mas talvez ela mesmo fosse Deus...(...)sem saber por que esta idéia a
amedrontava...A todo preço, isto deveria permanecer secreto...(Un cyclone à la Jamaïque. Plon, 1931,
p.133.)”(idem,p.21.)
205
Idem.p.22. Neste capítulo, todas as passagens referidas de Baudelaire(mesmo quando citadas por
Sartre) estão subscritas em negrito.
206
Idem,p.22.
207
Idem,p.23.
98
208
Idem,p.23.
209
Idem,p.24.
210
Idem,p.25.
99
211
Idem,p.25.
212
“Tête-à-tête sombre et limpide
Qu’un coeur devenu son miroir!” (...)“(...)il n’y a qu’un tête.”(idem,p.26)
213
Idem.p.26.
214
“Je suis la plaie et le couteau
Et la victime et le bourreau.”(Idem, p.25
215
SARTRE, J-P. O Ser e O Nada, p.212.
100
216
Idem.
217
Idem.
218
Precisaríamos buscar, oportunamente, em Heidegger, a origem deste conceito sartreano da
ultrapassagem como estrutura ‘fundamental’ do Para-si, ou seja, do ser da consciência.
219
SARTRE, J-P. Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl – la intencionalité.p.30.
101
220
“(...) a ontologia parece poder definir-se como a explicação das estruturas de ser do existente
tomado como totalidade, e definiremos melhor a metafísica como a colocação em questão da
existência do existente. É por isso que ,em virtude da contingência absoluta do existente, estamos
convictos de que toda metafísica deve concluir com um ‘é isto’, ou seja , uma intuição direta da
contingência.”(O Ser e o Nada ,p.379)
221
SARTRE, J-P. Une idée fondamentale de la phénoménologie de Husserl – la intencionalité.p.31.
222
Idem, p.210.
223
SARTRE, J-P. Baudelaire. p, 27.
224
BAUDELAIRE, C. Petit Poèmes en prose: Le Joueur généreux.Éd. Conard, p.105.
102
que dar cabo dela. Segundo Sartre, Baudelaire se crê alguém sobrando: “ Eu me
mato, escreveu em sua famosa carta de 1845, pois sou inútil aos outros e perigoso
para mim mesmo.” 225
Talvez não seja excessivo sublinhar no Baudelaire revisto por Sartre o re-
surgimento da analogia clássica do jogo com o intuito de ressaltar o caráter
provisório, bizarro e, afinal, arbitrário e absurdo, dos compromissos e dos aparatos
sociais – e do conceito de homem útil - quando submetidos à criteriosa anarquia da
consciência empenhada na lucidez. Se é a consciência que doa e que retira valores,
inclusive o valor supostamente primordial da vida, então sobressai uma quebra
definitiva do espírito de seriedade; nada tem valor porque tudo pode receber qualquer
valor: “se degustamos até a náusea esta consciência sem rima nem razão, que deve
inventar as leis as quais ela quer obedecer a utilidade perde toda a significação; a
vida não é mais que um jogo, o homem deve escolher ele mesmo seu objetivo, sem
comando, sem instrução, sem conselho(...)A vida, escreve Baudelaire, não tem senão
uma graça: é a graça do jogo.” 226
É esta relativização que, desde o começo, lança um fel sobre os empreendimentos,
mesmo o da literatura, que está de antemão submetida ao sucateamento da
indiferença, causadora também do que nomeia ‘preguiça’(paresse) derivada da
renúncia semi-lúcida de tomar a sério os empreendimentos: “Mas, e se nos é
indiferente ganhar ou perder? Para crer numa empresa, é preciso está de antemão
lançado, interrogar-se sobre os meios de a bem conduzir, não sobre seu fim. Para
quem reflete, toda empreitada é absurda; Baudelaire está imerso nesta
absurdidade(...)
...o que sinto, é um imenso desencorajamento, uma sensação de isolamento
insuportável...uma ausência total de desejos, uma impossibilidade de encontrar
uma distração qualquer. O bizarro sucesso de meu livro, e os ódios que ele acendeu
me interessaram um pouco de tempo, e depois disso, eu recaí.” 227
Sartre sublinha a opacidade e ambigüidade do surgimento da ‘obra’
baudelairiana que, afinal, surge do núcleo da “preguiça”(paresse) e sob o signo da
inutilidade e da renúncia. No embate entre a consciência refletida e reflexiva
encontra-se o projeto de efetivação do poeta, vivido mesmo que irrefletidamente:
225
Idem,p.29.
226
Idem,p.30.
227
Carta de 30 de dezembro de 1857. (idem, p.31.)
103
“Não obstante, é necessário agir. Se ele é, por uma parte, a faca, o puro olhar
contemplativo que vê desfilar abaixo de si as ondas torvelinhantes da consciência
refletida, ele é também a chaga, a ocasião mesma destas ondas. E, se em virtude de
sua posição reflexiva desgosta da ação, em baixo, em virtude de cada uma destas
pequenas consciências efêmeras que ele reflete, ele é ato, projeto, esperança.” 228 Ele
almeja escrever peças de teatro, poesia, romper definitivamente com a família,
libertar-se do julgo do padrasto, entretanto, é na forma de não fazê-lo que poderá
alimentar sua chaga. Sua ferida é o ressentimento que cultiva arduamente procurando
nele a imagem de sua solidão original. Sartre sublinha a sucessão de vontades
dissipadas e de declínios de projetos de auto-superação que afinal configurará o
núcleo mesmo do projeto obscuro de si que Baudelaire vivencia. O projeto original de
metamorfosear-se definitivamente naquilo eu perdido essencial, torna-se vislumbre do
abismo e do oco que encontra aonde procurava o núcleo do seu próprio ser: “Em
moral como na física eu sempre tive a sensação do abismo, não somente do abismo
do sono, mas do abismo da ação, do sonho, da lembrança, do desejo, do
arrependimento, do remorso, do belo, do número.” 229
Segundo Sartre este abismo que Baudelaire povoa com seu ressentimento e
sua rebeldia é uma figura do vazio da consciência – “esta fuga absoluta” - e da
liberdade originária que através de si, Baudelaire descobrirá que é. Sobretudo, este
vazio é uma derivação da condição humana de abandono, embora Baudelaire se
esforce para ocultá-la de seu próprio horizonte. O trecho a seguir, certamente é ainda
mais esclarecedor sobre a tese sartreana da condenação humana da liberdade do que
dos impasses do poeta ao buscar o reduto profundo de si mesmo: “Baudelaire: o
homem que sente um abismo. Orgulho, tédio, vertigem: ele se vê até as profundezas
do coração, incomparável, incomunicável, incriado, absurdo, inútil, abandonado no
isolamento mais total, suportando só o próprio fardo, condenado a justificar sozinho
sua existência, e se escapando sem cessar, deslizando pra fora de suas mãos, imerso
na contemplação e, ao mesmo, lançado fora de si num perseguido infinito, um abismo
sem fundo, sem anteparo e sem obscuridade, um mistério em plena luz, imprevisível e
perfeitamente conhecido. Mas, para sua infelicidade, sua imagem lhe escapa ainda.
Ele buscava o reflexo de um certo Charles Baudelaire, filho do general Aupick, poeta
endividado, amante da negra Duval: seu olhar encontrou a condição humana. Esta
228
Idem, p.32.
229
Idem,p.40.
104
liberdade, esta gratuidade, este abandono que lhe amedrontam é o quinhão de todo
homem, não o seu particular.” 230
Talvez seja a este tipo de apreensão da universalidade nascida do núcleo da
vida singular que almeje chegar o método da psicanálise existencial. Em Baudelaire
esta reivindicação da liberdade que é humana se dá pelo lento alinhavo dos retalhos
que configurará, afinal, como seu projeto pessoal, que, como mostrará Sartre, é um
percurso carregado de ambigüidades.
De um lado jorra a poesia baudelairiana, que com estrondo faz ressoar um
elogio do mal, na pessoa do próprio Satan, conclamando a uma inversão nietzschiana
completa dos pólos norteadores das condutas: “Je suis Satan” 231 . Em sua poesia reflui
o tema do gosto do infinito revisto muitas vezes pelo prisma dos Paraísos Artificiais:
uma tensão resultada do impulso “transascendente e transdescendente” como diria
Jean Wahl de dois movimentos opostos centrífugos e simultâneos, um em direção ao
anjo, outro ao animal: “Há em todo homem, a todo momento, duas postulações
simultâneas, uma em direção a Deus, outra em direção a Satan. A invocação à Deus,
ou espiritualidade, é um desejo de elevar-se de categoria; o de Satan, ou
animalidade, é uma alegria de rebaixar-se.” 232 O tema pascaliano, por excelência, da
dupla natureza, (Br.678-L.358) “O homem não é nem anjo nem animal , mas a
infelicidade quer que quem quer fazer-se anjo se faça animal” 233 retorna sob os
fumos baudelairianos ressaltando a mesma idéia de ultrapassagem sugerida no sentido
clássico 234 . O homem está sempre adiante de si, numa <<insatisfação>> metafísica e
230
Idem, p.40.
231
Idem,.p.93.
232
Idem, 37.38.
233
O belo e difícil fragmento dever ser posto no original e depois confrontado com as duas traduções
disponíveis para língua portuguesa: “L’homme n’est ni ange ni bête et le malheur veut que qui veut
faire l’ange fait la bête.” S.Milliet(Difel,1961) não parece ter uma boa solução para a sinuosidade do
fragmento: “O homem não é anjo nem animal; e por infelicidade, quem quer ser anjo é animal.” A
tradução de Mario Laranjeira(M.Fontes ,2000) parece forçar um pouco o duplo-sentido e a ironia quem
sabe sugerida por Pascal com prejuízo, talvez, de seu teor filosófico mais profundo: “O homem não é
anjo nem animal, e a infelicidade quer que quem quer se mostrar anjo se mostre animal.”
234
Sartre neste momento não faz, ou não quer fazer jus à complexidade do pensamento de Pascal
quando a ele se refere: “Quando Pascal escreve que <<o homem não é anjo nem animal>>, ele o
concebe como um certo estado estático, uma <<natureza>> intermediária.”(SARTRE, J-P.
Baudelaire.p,38) Não obstante o deslize de Sartre, qualquer leitura mais atenta poderia provar que a
“natureza intermediária” de Pascal, não é senão um estado de desnaturação, ausência de natureza, pura
perda e oscilação perpétua(notar por ex. análises de C. Rosset, L. Thirouin, entre outras) exatamente no
sentido que pretende ressaltar existir em Baudelaire. A fluidez, a inconstância, a impossibilidade da
identidade consigo mesmo, são estados proeminentes do escoamento, do vazio que é a interioridade do
homem esquecido pelo Deus escondido,e figuras da necessidade humanas de projetar-se para além.
Estes são apenas os fragmentos dos Pensamentos que tem por tema principal a inconstância; (Br - L);
17-113, 24-127, 54-112, 55-111, 73-110, 72-199: mas há inúmeros outros cujo tema é a sintomática do
105
para si mesmo” de Baudelaire, que culmina na escolha da solidão como destino, como
se de algum modo tributário da condição de opacidade de todo homem em relação a
suas vivências presentes.
Para Sartre, o que espanta na biografia de Baudelaire é a profunda
ambigüidade entre a conclamação poética da legislação indiscriminada do mal e,
portanto, da liberdade de atribuir valores, no ardiloso senso da sentença nietzchiana-
dostoievskiana do “tudo é permitido”, e à assunção indiscriminada às noções morais
inculcadas pela sociedade que ele, das alturas de seu satanismo, “jamais pôs em
questão.” 236 Longe de superar a educação católica e burguesa que recebera, continua
a vivenciar a gama de valores inculcados por sua família, e tal é o grau de
comprometimento de seu horizonte moral com estes valores, que vivencia na culpa e
no remorso suas famosas experiências de ébrio e de dandi. Tal é sua intolerância
consigo mesmo que os primeiros biógrafos cogitam que há algo escondido em sua
vida, qualquer coisa como um segredo, ou uma vergonha secreta, afinal, Baudelaire se
“trata como criminoso e se declara culpado de todas as formas.” 237 Sartre tomas as
rédeas da biografia de Baudelaire para sublinhar que não, nenhum cadáver se
encontraria no baú do poeta: “uma sequidão demasiada de coração”, talvez, “o abuso
de estupeficantes”, certamente, “algumas bizarrices sexuais” - mas estas
licenciosidades da vida de solteiro jamais rivalizaram com a rígida observação moral
pela qual pautava, ou procurava pautar seus projetos íntimos, nos quais resplandece
incólume, a moral de seus pais, como mostra seu texto de maturidade, de 1862,
intitulado Higiene, Conduta e Método:
“ Um breviário de sabedoria. Limpeza, reza, trabalho....
O trabalho engendra forçosamente os bons costumes,
Sobriedade e castidade, consequentemente a saúde, a riqueza, o gênio
sucessivo e progressivo e a caridade.” 238
Para Sartre não cessa de ser de algum modo enigmático, além de exemplar da
obscuridade patente dos projetos irrefletidos de liberdade, a permanência destes motes
encontrados muitas vezes sob a pluma do ‘poeta maldito’, na forma de imperativos e
obrigações tão irredutíveis quanto inúteis em sua inobservância: sobriedade,
castidade, trabalho, caridade.
236
Idem,p.44.
237
Idem, p.44.
238
Idem p.45.
107
239
BAUDELAIRE, C. O Poema do Haxixe, p, 52-3
240
SARTRE, J-P. Baudelaire, p.46.
108
seu tempo através de sua arte ao mesmo tempo recria de maneira pessoal e voluntária,
entorno de si, esta carapaça moral que é resíduo dum universo patriarcal em franca
decadência entre seus contemporâneos: “ Ele se deixa julgar, ele aceita seus juízes,
ele chega mesmo a escrever à Imperatriz que ele <<havia sido tratado pela Justiça
com uma cortesia admirável...>>; mais ainda, ele postulou uma reabilitação social,
de começo a cruz, depois a Academia. Contra todos aqueles que almejaram liberar os
homens , contra George Sand, contra Hugo, ele tomou o partido de seus carrascos,
de Ancelle, de Aupick, dos policiais do Império, dos acadêmicos, ele clama por seus
verdugos, ele pede que eles o obriguem pelo terror a praticar as virtudes que eles
pregam.” 241
Esta escolha de Baudelaire por ser julgado e de viver no remorso e na culpa
por uma moral que não deveria ser a sua, para Sartre, não se deveria tão somente à
equação da educação religiosa com a repressão familiar que resultaria
inequivocamente num indivíduo alquebrado e dilacerado por suas sub-determinações.
Sartre cita o caso de Gide, por exemplo, que submetido aos mesmos mecanismos por
meio de muitas reviravoltas e revezes, afinal, consegue “caminhar em direção a sua
moral(...) e inventar uma nova tábua da lei.” 242 Baudelaire, é um caso singular,
escolha voluntariamente seus próprios verdugos e os instrumentos prediletos de
tortura: “Por que Baudelaire, criador nato e poeta da criação declinou no último
momento; por que usou suas forças e seu tempo para manter as normas que o faziam
culpado? Como não se indignou contra esta heteronomia que de partida condenava
sua consciência a permanecer para sempre numa má consciência e numa má
vontade?” 243
Este trecho que citamos acima, talvez, seja o que melhor resume a dimensão
interrogante do empreendimento da psicanálise existencial de Sartre. Esta
metodologia de imersão na singularidade, afinal, se questionará sobre as razões
“obscuras para si mesmo” destas escolhas de Baudelaire, colhendo da singularidade
mais radical uma visão de algum modo universal da opacidade constitutiva dos
projetos de si. O que Sartre nos indica num plano filosófico mais geral é que, de
algum modo, o que fazemos de nós mesmo nos escapa. Assim, a interrogação acerca
do enigma Baudelaire é um questionamento que reverbera para o núcleo da condição
241
Idem, p.47.
242
Idem, p.48.
243
Idem, p.49.
109
244
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.764.
245
Idem.p.697.
246
“ Foram necessários, em todos os tempos e em todas as nações, deuses e profetas para ensinar( a
virtude) à humanidade animalizada... o homem sozinho foi impotente para descobri-la.”
(Baudelaire. p.48.)
247
Idem. p.50-1.
248
Idem, p.51.
110
a procura de fechar esta “ferida” aberta pela separação abrupta do testemunho de seus
“Deuses pessoais”: para preenche o vazio e a sensação de abismo que emana da
própria liberdade Baudelaire escolheu re-editar os Deuses supremos de sua existência
na pessoa dos mais variados juízes que faz transitar sobre sua vida, os quais ele
voluntariamente almejou, para testemunharem sua “malcriadez”.
Tornar-se maldito, afinal, é uma escolha voluntária de Baudelaire em seu
esforço obscuro por justificação que se exprimiu de maneira singular na permanência
num universo teocrático. É uma psicologia do revoltado que se delineia aqui. O
revolucionário recusa o solo do bem e do mal, subverte as perspectivas, contesta de
maneira absoluta e radical o estabelecimento contra o qual se insurge. O revoltado, ao
contrário, como alertará mais tarde à Camus, se deleita na manutenção das
hierarquias: é a permanência do sentimento de injustiça que o justifica. O epíteto de
“porta voz do Mal” que Baudelaire amealha para si, já é de forma significativa um
reconhecimento do caráter relativo e secundário que se atribui, visto não contestar o
valor de Bem estabelecido: se afirma tão somente como valor reativo à evidência
incontestável de Bem, que, deste modo, permanece em valor necessário em seu
horizonte. A caduca idéia de Bem, de moral, apregoada pelos mais reacionários de seu
tempo, permanece em Baudelaire, por conseguinte, intocada. É em honra da nostalgia
de um Bem absoluto que erige a figura do pecador irreparável. Neste mundo-cenário
pessoal erigido como couraça contra a própria liberdade, o papel que desempenha - o
culpado revoltado - representa uma função precisa, com direitos específicos e,
sobretudo, os desejáveis limites de um ser para outro: “ele tem o direito de se
queixar, ao castigo, ao arrependimento. Ele participa da ordenação universal e sua
falta lhe confere uma dignidade religiosa, um lugar aparte na hierarquia dos seres:
ele está sob abrigo de um olhar indulgente ou carrancudo.”É esta nostalgia dos pais-
deuses que Sartre entrevê nos versos de A Gigante:
249
Idem, p.54.
111
250
Idem, p.55
251
Idem. p.56.
252
Idem, p.56.
253
Idem, p.57.
112
254
Idem, p.57.
255
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p,692-3.
256
Idem,p.693.
257
SARTRE, J-P. Baudelaire, p,76.
113
258
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p.704-763.
259
Idem, p.750.
260
BAUDELAIRE, C. O Poema do Haxixe. p.80. “Deveria prosseguir na análise dessa vitoriosa
monomania?Deverei explicar como, sob o domínio do veneno, nosso homem torna-se o centro do
universo(...)É desnecessário prosseguir. Ninguém se surpreenderá se um pensamento final, supremo,
surgir no cérebro do sonhador: <<Tornei-me Deus!>>(...)se as vontades e as crenças de um homem
114
bêbado tivessem alguma virtude eficaz, este grito derrubaria os anjos disseminados nos caminhos do
céu: <<Sou um Deus>>.”(idem, p.86.)
261
Idem, p.93.
115
*
117
Quem sabe com as análises que efetuamos de A Náusea, O muro e Mortos Sem
Sepultura, sob o prisma da incompletude dos ‘destinos’ das personagens possamos
neste momento divisar, mesmo que com alguma nebulosidade, a questão da
necessidade da expressão literária para o equacionamento da problemática da
existência segundo o projeto filosófico de fundo ético de Sartre. Se “o homem é o ser
cujo próprio ser está continuamente em questão”, quem sabe a narratividade não seja
o único recurso capaz de manter o questionamento da existência na forma
interrogante. É isto que parece nos mostrar – por sinal com notável clareza, a
interpretação de Leopoldo e Silva: “A dualidade de expressão aparece, pelo menos
para a nossa interpretação, como o meio privilegiado, senão mesmo o único, de
tratar o problema ético inerente à existência. Se essa interpretação faz sentido, então
deverá ser possível mostrar que os textos teórico-filosóficos, os ensaios de crítica
literária e política, os estudos de psicanálise existencial e a obra de ficção se
organizam todos, de alguma maneira, em torno da questão ética(...)A elaboração das
questões se dá no horizonte da ordem humana, histórica.(...) Ora, o compromisso
entre o homem e a história é de ordem ética; esclarecer esse compromisso
examinando-o nas suas modulações é igualmente uma tarefa de ordem ética, quer o
façamos “no plano abstrato da reflexão filosófica”, quer no nível das “experiências
fictícias e concretas que são os romances”.(...)A reflexão filosófica e a experiência
fictícia comunicam-se pela própria manutenção de suas diferenças; o abstrato e o
concreto se interligam pela passagem interna entre a concretude do universal e a
irredutibilidade absoluta do particular(...) A articulação das instâncias humanas é
complexa porque não há nela a limpidez das idéias puras. É difícil e dramático
compreender a história que se faz, porque a contingência da ação corresponde à
opacidade da história imediatamente vivida. Somente à distância se pode montar uma
compreensão linear dos eventos históricos. E o historiador o faz justamente porque
está fora e além do presente vivido; dispõe do acontecido e não está em confronto
com o acontecimento. Mas ‘o acontecimento só aparece através das subjetividades’,
o que quer dizer que o presente não é transparente e o futuro é sempre uma
conjectura: toda consciência atual é semi-lúcida e semi-obscura. 266 Compreender a
266
SARTRE, JP. Que é a Literatura? Ob. cit., pg. 166 e nota 11 – pg. 228.
118
olhos da humanidade. E dado que esse alguém impossível por princípio o homem é o
artífice de uma verdade que jamais ninguém conhecerá.” 272
272
idem.p.157.
273
Metafísica entendida aqui como questionamento do existente e intuição direta da contingência.
274
SILVA, F-L. Ética e literatura em Sartre – Ensaios introdutórios. p. 8
275
Como notamos a propósito do caso Baudelaire: “Cada realidade humana é ao mesmo tempo
projeto direto de metamorfosear seu próprio Para-si em Em-si-Para-si e projeto de apropriação do
mundo como totalidade de ser-Em-si, sob as espécies de uma qualidade fundamental. Toda realidade
humana é uma paixão, já que projeta perder-se para fundamentar o ser e, ao mesmo tempo, constituir
o Em-si que escape à contingência sendo fundamento de si mesmo, o Ens causa sui que as religiões
chamam de Deus. Assim, a paixão do homem é inversa à de Cristo, pois o homem se perde enquanto
homem para que Deus nasça. Mas a idéia de Deus é contraditória, e nos perdemos em vão; o homem é
uma paixão inútil.”(SARTRE, J-P. O Ser e o Nada, p.750.)
121
276
SARTRE, J-P. Verdad y Existência, p.157.
277
SARTRE, J-P. Com a morte na alma, p. 200.
122
7)Violência e engajamento
278
Como dirá mais tarde Sartre numa entrevista, o esforço de suas psicanálises existenciais consiste em
mostrar que “o homem pode sempre fazer qualquer coisa daquilo que fazem dele.”( SARTRE, J-P.
Situations, IX. p.101)
279
Idem.
123
280
SARTRE, J-P. La fin de la guerre in Situations, III. e CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et
Politique. Combat, 8 août 1945.
124
281
SARTRE, J-P. Situations, I pp.13-14-31;
282
SARTRE, J-P. O Ser e o Nada. p.680.
125
283
SARTRE, J-P. La fin de la guerre in Situations, III.p.68.
284
Idem, p.66.
285
Idem.p,68.
126
286
Notar o vocabulário da página 71 do mesmo texto : “Il faut parier.”
287
Idem., 68.
288
Franqueza impossível em nosso ambiente atual recalcado pela hipocrisia do politicamente correto.
289
Idem,p.68.
290
Idem.p.69.
127
291
“cada homem<<antes de Hiroshima>> estava ao abrigo da multidão, protegido contra o nada anti-
diluviano pelas gerações de seus pais, contra o nada futuro pelos seus sobrinhos, sempre em meio ao
tempo, nunca em seus extremos.”(Idem.p.68.)
292
Idem.p.69.
128
amigos, por nossa pessoa, apostaremos pela França, nos engajaremos a integrá-la
neste mundo rude e forte, nesta humanidade em perigo de morte.” 293
Desvela-se a estratégia moraliste de Sartre, no melhor estilo da tradição do
pensamento apologético francês, fórmula parodiada por Camus tanto em O
Estrangeiro, quanto em A Peste: vende-se, afinal, barato uma solução pragmática no
beco sem saída ou no vale do desespero.
Podemos, no limite, comparar à apologia sartreana do engajamento à luz de
Hiroshima, brotada do desespero, com a simplória heurística do padre a quem foi
confiada à conversão de Meursault: “todos na sua situação se converteram” 294 , diz o
padre. Da apologética implacável do engajamento em Sartre, reflui também que só há
uma escapatória para o homem que teme o seu lobo: o engajamento revolucionário.
Não deixa de ser curioso o amálgama no qual Sartre funde todas às tendências
da política francesa sob a nomenclatura de França, para não mencionar às lutas
intestinas que esconde sob o tão portentoso quanto apaziguador nome de humanidade:
nem mesmo os melhores amigos detém a univocidade romanesca dos Três
Mosqueteiros... E Sartre o sabe. Por que então, tão indisfarçável má fé? Podemos
pensar que diante do fanal da conversão à política, os meios parecem como que
tremeluzir...
Indiferente a estes questionamentos de cunho camusiano, Sartre recita, em 20
de agosto de 1945, dias após o massacre, o corolário da panacéia existencialista para o
absurdo, isto é, o engajamento na construção do presente, como se servisse de consolo
para os sobreviventes(de todo mundo) da experiência de Hiroshima: “Mas, é
necessário apostar, a guerra morrendo, deixa o homem nu, sem ilusão, abandonado a
suas próprias forças, compreendendo enfim que não há com quem contar salvo com
ele mesmo.” 295
Não é a toa que, a despeito do sofrimento de grande parte desta humanidade de
que se faz porta-voz, Sartre encerre seu discurso sob a situação humana diante de
Hiroshima, seguindo à paródia nietzschiana dos Evangelhos, numa tonalidade cara
aos discursos de ação, anunciando, embora num tom sombrio, não um amanhã, mas
293
Idem.p.70
294
CAMUS, A. L’Étranger.p.1210.
295
SARTRE, J-P. Situations, III. p,71.
129
uma tarde, embora turbulenta, ou seja, um futuro de luta - “É a única boa nova que
anunciamos - outra tarde, esta cerimoniosa e glacial saraivada de canhões.” 296
Não há dúvida de que o existencialismo sartreano, malgrado, à angústia 297
inúmeras vezes reiterada, cultiva ao menos uma esperança: Que - enquanto houver
manhãs - a engrenagem dos dias e dos canhões testemunharão a luta dos homens em
resolver suas antigas questões.
Outro aspecto parece-nos relevante: Nas frases finais mencionadas acima
emanam o brilho de um desafio frente a esta demonstração assombrosa de poder que
pretende, pelo terror, fazer calar qualquer dissidência 298 .
Quanto à violência, ela é tão contingente quanto cada uma das manhãs após
Hiroshima: ela pode ser extirpada da vida humana - mas na medida em que o homem
e a terra podem, em conjunto, ser também extirpados da vida num só golpe.
Quanto à metodologia revolucionária à luz de Hiroshima nenhuma mudança
significativa. Sartre deixa clara, sem subterfúgios, sua postura em relação à
inevitabilidade da violência no desenrolar da história: poucos “ousam crer que se
pode passar sem ela.” 299
Mas, as palavras mais duras se dirigem notadamente “aos otimistas”
incorrigíveis - dentre os quais certamente se encontra Camus de seu ponto de vista –
àqueles que persistem em cultivar o credo caduco da recusa à violência: estes, para
Sartre “acreditavam sem provas que a paz era a substância natural do universo, que
a guerra não era senão uma agitação temporária.” 300 O evento da bomba foi, para
estes, pedagógico. Esta esperança foi devassada pela versão tecnológica do
apocalipse: “Hoje nós reconhecemos nosso erro: o fim da guerra é simplesmente o
fim desta guerra.” 301 Poderíamos, no limite, pensar que, segundo a pedagogia
revolucionária, a bomba suscitou um ganho no coeficiente da lucidez humana acerca
de sua condição: ela demole suas últimas esperanças de felicidade fora da história – a
ubiqüidade da morte demonstrada pela Bomba Atômica não deixa margem aos
refúgios idílicos.
296
Idem.p.71.
297
Idem.pp.63-9,71.
298
Sartre, não poderíamos deixar de ressaltar, conhece bem a bipolarização da política mundial e que,
assim, os EUA se anuncia o grande inimigo do socialismo.
299
Idem.p.67.
300
Idem.p.66.
301
Idem,p.66.
130
302
Idem.p.66.
303
O termo que em francês é retirado da mecânica e quer dizer “ativar de maneira rápida um
mecanismo: uma máquina, um carro etc.”., é difícil de ser mantido em português, embora significativo
conceitualmente pela analogia com o mecânico tão cara a Camus.(Le Petit Robert)
131
304
CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et Politique. Combat, 8 août 1945. p. 291
305
Idem.p.291.
306
O realismo de Sartre se contenta em notar que a bomba existe e o que fazer diante deste fato.
307
Idem.p.292.
132
308
Idem.p,292
309
O que nos parece até mesmo um tanto contraditório com a teoria da liberdade que é, por excelência,
teoria da indeterminação. Porque a paz, num horizonte de liberdade e indeterminação radicais não é um
dos possíveis?
310
Interessante notar que prière quer dizer num sentido concreto, “movimento da alma buscando uma
comunicação com Deus”(Le Petit Robert)e, apenas num sentido figurado, súplica, pedido. Quem sabe a
terminologia cristã tenha sido mal escolhida, quanto mais quando Camus busca se desvincular de um
pensamento religioso ou da simples menção à esperança(veremos a seguir). A escolha é grave, talvez
dada a rapidez com que foi escrito(o texto é publicado na Combat no dia seguinte ao massacre), pois a
leitura permite a falsa interpretação de que a luta pela paz teria sido, noutros tempos, conduzida pelo
Evangelho: “Ce n’est plus une prière, mais um ordre qui doit monter des peuples vers les
gouvernements, l’ordre de choisir...”(idem.p.292) Para o leitor reincidente, entretanto, é freqüente a
utilização deste vocabulário cristão por Camus. Notar o interessante artigo de Goldstein sobre o
assunto: “Camus et la Bible.R-P.GOLDSTEIN in Revue des Lettres Modernes – Albert Camus 4.
133
se elevar dos povos aos governos, ordem de escolher definitivamente entre o inferno e
a razão.” 311
Assim para Camus, não há refúgio numa suposta dimensão útil, para a bomba
atômica. Ela não contribui à paz, ao progresso, à compreensão da contingência ou à
lucidez. Ela evidencia, ao contrário, o absurdo de todo combate que tem a selvageria
como premissa e que só recobraríamos o senso desativando a engrenagem da
legitimação da morte e da moral do cálculo e da indiferença.
Se dissemos que a única esperança semeada por Sartre depois de Hiroshima é
a do engajamento na luta de transformação, e, no limite, o triunfo sobre os algozes da
história, visto que a guerra se mostra a partir de então, feita de tudo ou nada – Camus,
de sua parte semeia inegavelmente, outra esperança: de que a inteligência e de que o
equilíbrio entre as nações impeça o mecanismo da guerra se alastrar: “...nós nos
recusamos a tirar de tão grave notícia outra coisa que a decisão de pleitear ainda
mais energicamente ainda em favor de uma verdadeira sociedade internacional, onde
as grandes potências não tenham direitos superiores às pequenas e às médias nações,
onde a guerra, peste(fléau) tornada definitiva por único efeito da inteligência
humana, não dependerá mais dos apetites ou das doutrinas de tal o tal estado.” 312
A frase final deste texto de 08 de agosto de 1945 é um índice bem eloqüente
do tipo de fatalismo contingente expressos pela simbologia camusiana do sol ou da
peste a que nos referiremos oportunamente - que pouco tem a ver com uma
concepção do trágico ligado à pré-determinação: este mecanismo injusto e mortal da
natureza, cruel e indiferente, é uma ordem injusta que é reiterada voluntariamente
pelo homem a cada momento em que escolhe matar: “peste(fléau)tornada definitiva
por único efeito da inteligência humana.” 313
A revolta de Camus é que, através das ideologias e do estado, das concepções
filosóficas da história e do progresso, o homem não somente legitima, mas venera
voluntariamente esta ordem da morte que é a negação mesma do homem. Resultado:
Transformação do horizonte do homem que deveria ser livre, inocente e feliz, numa
engrenagem inescapável e sangrenta que ele chama de lei, de progresso, de história.
Entretanto, talvez não seja excessivo impor a Camus réplicas de cunho
sartreano, que ainda prevalecem na atualidade do terceiro milênio: Como podemos
311
CAMUS, A. Essais – Actuelles, I. Morale et Politique. Combat, 8 août 1945. p. 292.
312
Idem.292-3.
313
Idem.p.292.
134
imaginar um equilíbrio entre nações sem o conceito de força ou sem que força
signifique violência – mesmo que coibindo à violência 314 ? A recusa da violência não
significa a renúncia à luta de reversão da injustiça? Não teríamos que conceder à
Sartre que o poder esmagador da bomba não poderia, de forma alguma, pelo medo,
calar o clamor humano por justiça e igualdade? 315
Por outro lado seria injusto não impor à Sartre outras interrogações
humanistas, no estilo camusiano, ao seu ímpeto transformador: Por que devemos
reiterar necessariamente, na indeterminação e liberdade que é nossa condição, à
determinação da ordem natural da morte e da crueldade? Por que a não-violência não
consistiria num dos horizontes possíveis para a liberdade humana? Desativar a
engrenagem da violência na história não consistiria num dos possíveis da história
mesma? Porque, com a amplitude do horizonte da contingência, aceitar com
resignação que o fim da guerra é a guerra sem fim?
*
Estes entre outros equacionamentos, nossos filósofos porão entre si e
submeterão à história, não apenas em textos nos quais é muito difícil estabelecer
fronteiras precisas entre ética, política e filosofia, mas também(e arriscaríamos dizer)
- de forma ainda mais genuína - através das problematizações éticas contidas nas
narrativas literárias.
Isto por que nos textos, como por exemplo, O fim da guerra, publicado na
Revista Les Temps Modernes e o editorial do dia 08 de agosto da Revista Combat, o
impacto e o grau de comprometimento de cada palavra empregada exige uma certa
clareza de opinião que não se pode “dar ao luxo” do duplo sentido, da ambigüidade,
do paradoxo ou mesmo da contrariedade.
O filósofo público, figura tradicional da cultura francesa, seja Pascal – vulgo
Louis de Montalte - seja Voltaire, sofre em seu contexto um processo de
simplificação, mais ou menos intencional: por um lado, esta popularização é salutar
na medida em que estando empenhado no debate de questões cotidianas, a recepção
dos textos é como que purificada no processo de popularização, das dissonâncias e
interferências que porventura se interponham entre a tese defendida e os leitores. Por
outro lado, este processo depura a opacidade do pensamento que pode ser, justamente,
314
É sempre curioso notar a contradição que existe nos assassinatos cometidos pelas forças de paz da
ONU, por ex.
315
Deste ponto de vista poderíamos notar até mesmo certo heroísmo em Sartre desafiando o poder
esmagador da superpotência americana, mesmo que ao custo do sangue alheio.
135
316
O Muro.
317
Mortos sem sepultura.
318
Mortos sem sepultura.
319
Adjetivos apropriados ao herói Mathieu de Os Caminhos da Liberdade.
320
O Estrangeiro.
321
Calígula.
322
O Equívoco.
137
323
SARTRE, J-P. L’Engrenage.pp,25-6.
138
324
Idem. p.21.
325
Idem.p.119.
139
326
Idem.p,131-2.
327
Esta passagem não deixa dúvidas de pesar certa ironia em relação à postura de Lucien. Lucien, diga-
se de passagem, coincidência ou não é o nome do pai de Camus.
140
admitiria, depois da experiência desses dois últimos anos, nenhuma verdade que me
pusesse na obrigação, direta ou indireta, de condenar um homem à morte, os
espíritos que eu estimava outrora, me assinalaram que eu estava na utopia, que não
haveria verdade política que um dia nos conduzisse a este extremismo, e que seria
necessário, ou correr o risco deste extremismo, ou aceitar o mundo tal como
era.” 328 Em Nem vítimas nem Carrascos a indignação de Camus está dirigida contra os
legitimadores profissionais de plantão que, em robe de chambre, incentivam e
planejam, de seus escritórios, o derramamento de sangue – alheio, seguramente; para
Camus os intelectuais como Sartre fazem parte da engrenagem da morte que se auto-
legitima e absolve pelo conceito de finalidade histórica que constroem da clausura
tépida dos gabinetes. São mais uma faceta da tecnologia do medo que, dos homens às
técnicas, mobiliza para matar: “Este argumento era apresentado com força. Acreditei
de começo que era me apresentado com tal força porque as pessoas que me
apresentavam não possuíam imaginação para a morte dos outros. É um defeito de
nosso século. Assim como se ama por telefone, e que se trabalha não mais sobre a
matéria, mas sobre a máquina, se mata e se morre hoje por procuração. A
‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a consciência perdida.” 329
Para Camus, em nome de um realismo político, intelectuais como Sartre,
estimulam um fatalismo do tipo messiânico pois mistificam a violência como um
destino inescapável. A certeza das ideologias fantasia que, depois da travessia do
crime e da violência haveria o advento de uma rendição futura por intermédio da
justiça instaurada, no fim da noite da história. Esta submissão ao mecanismo da
violência histórica é que parece insuportável à Camus: “Vivemos no terror porque a
persuasão não é mais possível, porque o homem foi largado inteiramente à história e
porque ele não pode mais se voltar para esta parte dele mesmo, tão real quanto a
parte histórica, que reencontra na beleza do mundo e dos rostos: porque vivemos
num mundo da abstração, este dos escritórios e das máquinas, das idéias absolutas e
do messianismo sem nuances. Sufocamos entre pessoas que crêem ter absolutamente
razão, quer seja em suas máquinas ou em suas idéias.” 330
De fato, se tomamos A Engrenagem de Sartre, a postura do revolucionário não
deixa dúvidas de que a violência encontra fundamento na certeza da causa
328
CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux – Sauver les corps in Essais - Pleyade. p.334
329
Idem.p.334.
330
CAMUS, A. Le siècle de la peur. In Idem.p.332.
141
331
Foi o que observamos em relação a O Muro e a Mortos sem sepultura...
332
SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.133.
333
SARTRE, J-P. Le fin de la guerre.p, 67.
142
por isto que ele foi morto, porque quis conservar até o fim as mãos limpas.” 334 É,
em certo sentido, segundo Jean-Sartre, a idade da razão, que os contra-
revolucionários não admitem ter chegado: Agora, no poder, eles rapidamente
descobrem-na, desde o momento onde batalham pela rendição de Jean até o momento
onde, no tribunal, pleiteiam a legitimação de sua morte: (Jean, preso ainda no palácio
do governo)“Quantos mortos tem vocês?Muitos, diz François. Duzentos? Mais.
(Jean)É muito para conseguir a minha pele.” 335
O “martírio” de Lucien começa com a recusa de submeter a outro à violência
da lógica engrenagem revolucionária. Ele se recusa a matar o suposto traidor Benga,
que, morto por Jean, revelar-se-á mais tarde inocente. O diálogo entre eles é índice de
uma culpabilidade que, em nenhuma outra dimensão da obra de Sartre, se desvela
com tanta evidência: (Jean)“-Lucien! Eu te faço horror? –Tu tens sangue nas mãos. –
Sim, diz Jean. Eu tenho sangue nas mãos. Mas evitei que tivesses, tu, nas tuas. Tomei
tudo para mim. Tu pensas que não teria gostado, eu também, de permanecer com as
mãos puras?” 336 Jean em sua culpa resignada, se vê encalacrado numa engrenagem
que ele mesmo deslanchou, a saber, o moto-contínuo da violência finalista de que ele
também será vitimado pela restauração da mecânica do poder pelos novos
revolucionários. Perseguição política, deportações, mortes, todos os empecilhos
morais são transpostos para manter o poder. Sartre se aproxima por intermédio da
expressão narrativa de uma reflexão ética bastante próxima de Camus acerca da
fatalidade construída da engrenagem histórica, arquitetada e legitimada pelas
ideologias finalistas da história: mecânica contra a qual veremos Camus se rebelar,
seja em O Estrangeiro, seja em Nem vítimas nem carrascos: (...) “Não sei quantas
vezes perguntei a mim próprio se havia exemplos de condenados à morte que
tivessem escapado ao mecanismo implacável(...)nada me permitia este luxo, tudo me
proibia, a engrenagem reconquistava-me.” 337 “A morte nos re-envia, pois, à morte e
nós continuaremos a viver no terror, seja se o aceitarmos com resignação, seja se
quisermos suprimi-lo com meios que o substituirão por um outro terror.” 338
Entretanto A Engrenagem de Sartre, embora contemple este questionamento,
apresenta, inegavelmente, uma espécie de comiseração e, no limite, indulgência, com
334
SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.119.
335
Idem.p.21.
336
Idem.p.199.
337
CAMUS, A. L’Étranger.p. 204.
338
CAMUS, A. Sauver les corps in Camus à Combat.p.614.
143
339
SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.199.
144
estão nos custando muito caro.” 340 Camus conclui sua precisão aos críticos sobre a
utopia ingênua da não-violência de maneira categórica, antecipando dramaticamente
os desdobramentos que veremos alastrar-se durante o século: “Pode-se concluir que,
praticamente, o combate que travaremos nos anos que virão não se estabelecerá
entre as forças da utopia e da realidade, mas entre utopias diferentes que procuram
se inserir no real, e, entre as quais, não se trata, senão, de escolher a menos onerosa.
Minha convicção é que nós não podemos mais razoavelmente ter a esperança de tudo
salvar, mas que nós podemos nos propor ao menos a salvar os corpos, para que o
futuro permaneça possível. Vê-se, pois, que o fato de recusar a legitimação do
assassinato não é mais utópico que as atitudes realistas de hoje(..)Se trata, em
resumo, de definir as condições de um pensamento político modesto, noutras
palavras, liberto de todo messianismo, e desembaraçado da nostalgia do paraíso
terrestre.” 341
Voltando a narrativa de Sartre, notamos que a caracterização da postura da
não-violência não possui tanta sutileza. Embora digna de simpatia pelas boas
intenções, Sartre a pinta com as tintas fortes do ridículo: numa cena, Lucien,
intimidado por brutamontes se recusa a revidar: “Não pela força(...)eu não me
defenderei.” 342 Defendido por Jean que toma suas dores, exclama: “A violência
chama violência.” Noutro esquete, um diálogo entre ambos é bastante ilustrativo do
paralelo possivelmente imaginado por Sartre entre Lucien e Camus. A comparação,
embora procedente, não é, entretanto, cavalheiresca: (Lucien) “A primeira condição
para ser um homem é recusar toda a participação direta e indireta num ato de
violência. 343 Jean escuta, dividido entre a admiração amical pela pureza de Lucien e
a ironia pela sua inexperiência. – E, que meios empregarás tu?Pergunta Jean.
(Lucien) – Todos. Os livros!Os jornais!O teatro!” 344
Não obstante a ironia com a qual Sartre expõe a tese do combate unicamente
intelectual de Lucien, o prosseguimento da narrativa demonstra que esta estratégia
não é de maneira nenhuma inócua. Lucien, afastado do centro do poder -, e outrora
340
CAMUS, A. Sauver…Camus à Combat. p. 614-5
341
Idem.p.616.
342
CAMUS, A. L´Engrenage. Idem.p184-5.
343
Lembremos o texto de Camus no jornal Combat:“Tendo um dia dito que não mais admitiria, depois
da experiência desses dois últimos anos, nenhuma verdade que me pusesse na obrigação, direta ou
indireta, de condenar um homem à morte, os espíritos que eu estimava outrora, me assinalaram que eu
estava na utopia...”
344
SARTRE, J-P. L’Engrenage.p.187.
145
345
Idem.p.154. Impossível não ver uma paródia do jornal Combat dirigido de 44-6 por Camus que,
durante os dois primeiros anos, foi clandestino.
346
Outro confronto entre ambos nos repõe no questionamento sobre o conceito de eficácia, correlato ao
de legitimação no processo de instauração e manutenção revolucionária: (Jean) “Porque tu escrevestes
estes artigos?(Lucien)- Porque penso que eles são justos. (Jean)- É muito cedo!É muito cedo!(Lucien)
- Não é nunca cedo demais para dizer a verdade. (...) (Jean) -Nós nos arriscaremos a uma guerra, é
muito cedo!”Lucien faz um gesto de impaciência: - Muito cedo para a Constituição! Muito cedo para o
petróleo! Muito cedo para uma imprensa livre!Mas, o que é isso Jean! Tu não queres afinal governar
contra o país?- Por que não? Diz Jean maleficamente.(hargneusement)”(L´engrenage, 188)
347
Idem.p.187.
348
Idem.p.218.
146
349
Idem. p.216.
350
Idem.p.218.
351
Idem. p.217.
147
352
Idem.p.219.
353
Idem.p.210..
148
359
Carta de Merleau-Ponty a Sartre in CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da
ruptura entre Merleau-Ponty e Sartre.
360
CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da ruptura entre Merleau-Ponty e
Sartre. Era nossa intenção inicial notar, ainda nesta tese, a evolução da postura política de Sartre até
1952, momento da ruptura com Camus. Notaríamos que, com o acirramento dos embates
revolucionários, Sartre põe em marcha sua “ética da situação”, espécie de “moral provisória” de seu
ultra-realismo político, exprimindo-se de maneira resoluta, ainda que criticamente, sobre a
inevitabilidade da violência na ação revolucionária. A trilha nos levaria à análise de Os Comunistas e a
paz e, é claro, à interpretação detida da peça O diabo e o bom deus, na qual Sartre encarna em Goetz o
amadurecimento filosófico que conduz, como acertadamente comenta Aronson, “da revolta à
revolução.”(ARONSON, R. Camus & Sartre – Amitié et Combat.p.208.) Não obstante, o trabalho de
Pós-Doutorado nos permitirá também aprimorar o conjunto da análise apenas inicial que efetuamos de
Sartre até aqui, nos conduzindo, para além deste período determinado, ao esforço de resposta do
filósofo da liberdade, em A Crítica da Razão Dialética e em O Idiota da Família, a Merleau-Ponty e às
exigências de seu tempo, no que tange ao problema das mediações entre teoria e praxis: “Sartre dedica-
se à compreensão da necessidade das mediações que constituem as relações sociais e o tecido
histórico e sem as quais a articulação entre teoria e prática não pode ser formulada, nem a alienação
pode ser compreendida e, finalmente, sem a qual uma filosofia da liberdade torna-se impossível ou
miragem idealista. Donde a importância, nas Questões de Método, do estudo das chamadas
“disciplinas auxiliares” e da idéia de um método pregressivo-regressivo que dê substrato histórico à
noção de projeto.”(CHAUI, M. Filosofia e Engajamento: Em torno das cartas da ruptura entre
Merleau-Ponty e Sartre)
150
361
A contingência e a liberdade são “condenações” fazem parte da “paixão” humana.
362
Veremos neste sentido no Mito, a crítica ao “salto no intelectualismo” de Husserl.
151
363
CAMUS, A. Le Mythe du Sisyphe. Doravante MS. p.99. Talvez não seja excessivo notar que num
fragmento dos “Pensées” Pascal exprime também a premência do auto-conhecimento humano frente à
investigação da natureza:(L.218-Br.164) “Commencement. Cachot. Je trouve bon qu’on
n’approfondisse pas l’opinion de Copernic. Mais ceci : Il importe a toute la vie de savoir si l’âme est
mortelle ou immortelle. »
364
MS, 99. “O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem
em seguida. São jogos; é preciso primeiro responder.”
365
MS, 99.
152
366
Incluindo aí a filosofia contemporânea de sistema.
367
MS, 100.
368
MS,100
369
MS, 100.
370
MS, 100.
153
371
MS, 106.
372
MS, 99.
373
MS, 106-7.
374
MS, 108.
154
375
MS, 101.
376
MS, 107.
377
MS, 113
378
Idem, MS,111.(L.406-Br.395) “Instinto, razão. Temos uma impotência de provar, invencível a todo
dogmatismo. Temos uma idéia da verdade invencível a todo pirronismo.” Talvez não seja coerente,
após comentarmos rapidamente sobre a importância da premissa camusiana da “evidência do coração”
na constituição do método da “simpatia”(que busca o reconhecimento afetivo do outro) nos omitir
acerca do notaremos mais tarde ser uma proximidade com Pascal. O fato não passa despercebido à
Sartre que o utiliza contra o iniciante Camus: “A morte, o pluralismo irredutível da verdade e dos
155
seres, a ininteligibilidade do real, o acaso, eis os pólos do absurdo! Na verdade, estes temas não são
muito novos, e Camus não nos apresenta como tal. Foram enumerados, desde o século XVII, por uma
espécie de razão seca, curta e contemplativa, que é tipicamente francesa: constituíram lugares-
comuns no pessimismo clássico. Não é Pascal que insiste na <<infelicidade natural da nossa condição
débil e mortal e tão miserável que nada nos pode consolar quando pensamos nela de perto>>? Não é
ele que põe a razão no seu lugar? E não aprovaria sem reserva essa frase de Camus:<<O mundo não
é (inteiramente)racional nem tão irracional>>? Não nos demonstra que o <<costume>> e a
<<diversão>> ocultam ao homem <<o seu nada, o seu abandono, a sua insuficiência, a sua
impotência, o seu vazio>>?Pelo estilo gelado do Mito de Sísifo, pelo assunto dos seus ensaios, Camus
coloca-se na grande tradição desses moralistas franceses a que Andler chama com razão os
precursores de Nietzsche...”(SARTRE, J-P. Situações I, 88,89)
379
MS, p.111.
380
MS, 110.
381
MS,p.134
382
MS, 111.
156
383
Camus retoma o contraponto do racionalismo moderno nos embates de seu tempo:
“esta razão universal, prática ou moral, este determinismo, estas categorias que
explicam tudo, tem do que fazer rir o homem honesto.” 384
Assim, a vida cotidiana e a inteligência humana são igualmente perpassados pela
experiência do absurdo segundo Camus.
É a razão ela mesma que impulsiona a revelação do absurdo através da
decepção intermitente de seu elã de clareza: Desvelando a infinidade das duas
magnitudes, do grande e do pequeno infinito, a ciência humana confirma o absurdo ao
invés de apaziguá-lo; “...toda a ciência desta Terra não me dirá nada que me
assegure que este mundo me pertence. Vocês o descrevem e me ensinam a classificá-
lo. Vocês enumeram suas leis e, na minha sede de saber, aceito que elas são
verdadeiras. Vocês desmontam seu mecanismo e minha esperança aumenta. Por fim,
vocês me ensinam que este universo prodigioso e multicolor se reduz ao átomo e que
o próprio átomo se reduz ao elétron. Tudo isto é bom e espero que continuem. . Mas
me falam de um sistema planetário no qual os elétrons gravitam ao redor de um
núcleo. Explicam-me este mundo com uma imagem. Então percebo que chegaram a
poesia: nunca poderei conhecer. Assim, a ciência que deveria me ensinar tudo acaba
em hipótese, a lucidez sombria culmina em metáfora, a incerteza se resolve em obra
de arte. Que necessidade havia de tanto esforço?(...)“as linhas doces dessas colinas e
a mão da tarde sobre este coração agitado me ensina bem mais...” 385
Na linguagem de Camus, a “singular trindade” 386 - o homem, o mundo e o
antagonismo entre o desejo de verdade e a obscuridade do cosmo –formam “o três
personagens do drama” 387 do absurdo. É o elã humano para a felicidade, para a
unidade e para permanência que se debate contra a finitude indiferente de um cosmo
irracional: “o coração procura em vão o elo que lhe falta.” 388 Nem no homem, nem
no mundo se encontra exatamente o absurdo, é precisamente na coexistência destas
magnitudes desproporcionais que se dá a ebulição do sentido. Portanto, no convívio,
na conivência e no confronto com a natureza se dá a experiência autêntica do absurdo,
que no mais das vezes é ocultada pelas engrenagens do cotidiano: Despertar, tranway,
segunda, terça... sexta - Camus detecta que uma das muitas perversidades das
383
PASCAL, B. Pensées. (L.199-Br.72)
384
MS, 113.
385
MS, 112.
386
MS, 120.
387
MS, 118.
388
MS, 106.
157
389
Veremos posteriormente a importância fundamental da experimentação da natureza em Camus. O
convívio com a natureza permite uma vivência tácita dos limites: esta conivência revela o homem a si
mesmo na medida em que o homem se reconhece na natureza como um ser que está para além do
mecanismo do cotidiano, que o desumaniza: no convívio com a natureza o homem se reconhece ser
vivo, para além do universo do trabalho, dos embates cotidianos, enfim, da história: a desmedida da
modernidade pode em grande parte ser explicada pela perda do referencial da Terra.... “as linhas doces
dessas colinas e a mão da tarde sobre este coração agitado me ensina bem mais...”
390
MS, 108.“Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável queda
diante daquilo que somos, essa «náusea» como diz um autor de nossos dias, é também o absurdo.”
391
MS, 107. “O amanhã, ele ansiava o amanhã, quando tudo em si deveria rejeitá-lo.”
392
Veremos este processo de autenticidade crescente que brota do sol, da vida concreta - e não da
elaboração fria - encarnado por Meursault em O Estrangeiro.
393
Camus se referirá a Descartes em HR.
394
MS, 109.
158
todas. Mas a questão é saber se podemos viver com estas paixões, se podemos aceitar
sua lei profunda, que é queimar o coração que elas ao mesmo tempo exaltam.” 395
Três atitudes possíveis diante do absurdo da existência são concebidas por
Camus em O Mito de Sísifo: o suicídio físico, o suicídio filosófico e a assunção do
absurdo.
A consideração da primeira hipótese é, como vimos, o elemento propulsor da
investigação filosófica. O suicídio é considerado “o único problema filosófico
verdadeiramente sério”, “saber se a vida vale ou não a pena ser vivida”. A hipótese do
suicídio, parece, no limite, aos olhos de Camus, a conseqüência lógica da
experimentação do absurdo.
Mas o pensamento lógico é o pensamento “injusto” par excellance : segundo
Camus é a “lógica absurda” que deve comandar a vida.
O absurdo do mundo nega ao homem as razões profundas de viver? O homem
lúcido responde com o apego redobrado à vida, apesar da absurdidade.
Camus recusa em muitos momentos em O Mito de Sísifo, e em outros lugares
de sua obra, o suicídio como resposta digna perante o absurdo. Ele bem pode ser
considerado legítimo na medida em que esta opção pela morte se consolida numa
vivência limite da condição de absurdidade. Todavia, a chave para a dignidade
humana segundo Camus está nesta confrontação mesma com a absurdidade da vida.
Certa nobreza do homem é recuperada justamente por intermédio da revolta contra
esta ordem injusta a qual se submete docilmente o suicida escolhendo a própria
aniquilação.
Viver é o desafio supremo do homem face à realidade que o contradiz.
As caracterizações que Camus faz do suicídio dão uma medida desta
abordagem. Para Camus, o suicídio é “fuga” ou “devaneio”(délivrance) 396 , “insulto a
existência” 397 , “evasão” 398
, “salto” 399 , “aceitação” 400 , “desconhecimento” 401 ,
“negação de si mesmo” 402 , “negra exaltação.” 403 O suicídio é a negação de um dos
pólos do absurdo: “o suicídio significaria o fim desta confrontação e o raciocínio
395
MS, 113.
396
HR, 416.
397
MS, 103.
398
MS, 103.
399
MS, 138.
400
MS, 138.
401
MS, 139.
402
HR, 414.
403
HR, 417.
159
absurdo considera que não poderia admiti-lo a não ser negando suas próprias
premissas(o homem). Uma tal conclusão seria fuga ou devaneio” 404
A liberdade digna segundo Camus afronta à adversidade do absurdo, é deste
confronto que ela alça seu vôo de grandeza. É, portanto, na afirmação da vida que se
encontra o primeiro passo em direção à revolta que se mostra antes de tudo, revolta
contra a condição de fragilidade e finitude humana.
Há, pois, uma ponte entre o absurdo e a revolta intermediada pela questão do
suicídio. Se a lógica absurda responde ao absurdo com a vida, como veremos
oportunamente, responderá à legitimação do assassinato pelas ideologias, negando-se
a matar: a mediação entre estes dois horizontes, do absurdo, e da revolta, se dá pelo
respeito à vida singular do homem concreto: “Suicídio e assassinato são duas faces de
uma mesma ordem, a de uma inteligência infeliz que prefere, ao sofrimento de uma
condição limitada, à negra exaltação onde terra e céu se aniquilam.” 405 Suicídio,
assassinato e, notemos, a destruição da natureza, partilham da mesma nefasta
característica que engendra a desmedida nas escolhas da modernidade: “a indiferença
para com a vida que é a marca do niilismo. 406 ” Interessante notar sob o foco da
questão do suicídio, o elo que Camus em O Mito começa a engendrar entre os homens
eles mesmos, e destes, com a natureza. Os denominadores comuns entre estes
elementos diversos e mesmo antagônicos são a fragilidade e a contingência,
características, antes de tudo, cósmicas.
Aliás, se pensarmos em termos de nossa atualidade, de fato, a aniquilação da
natureza equivale ao suicídio coletivo.
Para Camus, nenhum dos termos da trindade do absurdo pode ser sacrificado:
nem o confronto entre desejo de clareza e a obscuridade do mundo, nem o homem
singular, nem a natureza ela mesma. O enfrentamento solidário desta condição
comum de contingência radical, de homem e mundo, caracterizará, como veremos
posteriormente, o engajamento revoltado.
O suicídio filosófico é outra modalidade de enfrentamento do absurdo
descartado por Camus.
Filósofos, “parentes por nostalgia” partilham da metodologia de realçar os
cumes do desespero para realizar melhor o “salto na esperança”: o supremo engodo
404
C II, 109.
405
HR, 417.
406
HR, 416.
160
407
MS, 115.
408
MS, 114.
409
MS, 115.
161
410
MS, 115.
411
MS, 115.
412
MS, 122-3.
413
Para Camus a posição de Jasper é ela mesma caricata em relação ao absurdo...(MS, 122.)
414
Notar os comentários sobre O Mito de Sísifo presente na edição das Oeuvres Complètes que se
refere a dificuldade de sondar as “fontes” de Camus. Fato que não passa despercebido pela pluma feroz
de Sartre. Sendo assim seria bastante temerário, e até mesmo inútil dado o intuito primordial de
estabelecer uma análise do pensamento de Camus procurar confrontar suas análises - sua leitura da
filosofia - com uma suposta concepção “verdadeira” destes filósofos elencados. Trata-se da leitura de
Camus, e a compreenderemos como ele quis ser compreendido –à meia-luz. Esse é o climat camusiano:
são os Ensaios de Montaigne, evidentemente, revisitados. Teremos que nos habituar a ele para
compreender este procedimento “alusivo” tão disseminado em O Homem Revoltado.
415
MS, 122.
416
MS, 123.
162
417
MS, 124.
418
MS, 124.
419
É extremamente interessante imaginar por que Pascal foi poupado destas análises sobre o salto da
fé, visto que segundo alguns dos pesquisadores mais preocupados com o tema, os Pensées de Pascal
está extremamente presente nas entrelinhas do discurso de Camus. Notar vídeo da discussão na
ENS(Paris), 29 e 30 de março de 2007(www.ens.fr – em breve será disponível na diffusion des
savoirs.) Quem sabe Camus conceda uma coerência à Pascal, que nega aos outros “existencialistas”?.
A articulação do “coração” enquanto instância “média” entre o irracionalismo e a certeza dogmática é,
por exemplo, comum aos dois filósofos...
420
MELANÇON, M. Albert Camus, analyse de sa pensée. EUF, 1976.
421
Camus diz: “é o terceiro sacrifício exigido por Ignácio de Loyola”(MS, 127.)
422
MS, 134.
423
MS, 129.
163
424
MS, 126.
425
MS, 127.
426
MS, 127.
427
MS, 128.
428
MS, 128.
164
429
CAMUS,A. L´Homme Revolté.p.700. Voltaremos a este ponto oportunamente.
430
MS, 129.
431
MS, 129.
432
MS, 131.
433
“O que encontro aqui não é o gosto pelo concreto, mas um intelectualismo desenfreado para
generalizar o próprio concreto.”(MS, 133.)
165
434
MS, 133.
435
MS, 133.
436
MS, 134-5.
437
MS, 135.
166
incompletude pois vê-se como participante do intelecto divino, capaz de, pela simples
intervenção da própria vontade aceder ao sentido completo, e no limite, ao próprio
Deus: “que o homem pode por suas próprias potências conhecer perfeitamente Deus,
amá-lo, obedecê-lo,agradá-lo, curar-se de todos os vícios, adquirir todas as virtudes,
fazer-se o companheiro de Deus. Que a dor e a morte não são males, que podemos
nos matar quando se é tão perseguido que deve-se crer que Deus nos chama, e outras
ainda...” 438 É inadmissível para Pascal está diluição infiel dos dramas humanos por
Epiteto que realinhava grosseiramente o dilaceramento original que é o significado
mesmo da existência humana. Por outro lado, Montaigne padece, segundo Pascal da
desmedida inversa, negando qualquer elã humano ao sentido e à unidade e
potencializando, com a metodologia do pirronismo, infinitamente as dúvidas abissais
que, de fato, fazem parte da experiência humana da vida: “ele põe todas as coisas
numa dúvida universal e tão geral que esta dúvida se lança contra ela mesma, isto é,
se duvida, e duvidando desta última suposição, sua incerteza gira em torno de si
mesma num círculo perpétuo e sem repouso...” 439 Nos Pensamentos Pascal dedicará
vários fragmentos 440 na confecção desta oposição, destacando em seguida sua própria
alternativa na qual intervém o coração como elemento complementar da
racionalidade: “Coração
Instinto
Princípios” 441 “Conhecemos a verdade, não só pela razão, mas também
pelo coração(...)Os pirrônicos(...)trabalham inutilmente. Sabemos que não sonhamos,
por maior que seja nossa impotência de prová-lo com a razão...É sobre esses
conhecimentos do coração e do instinto é que a razão deve basear todos os seus
discursos. ” 442 Na limitação da racionalidade ao seu âmbito possível, reduzida a um
meio termo útil e eficaz em meio a um duplo infinito443 de indeterminação, está a
chave para a grandeza do pensamento segundo Pascal. Em poucas palavras, na raiz de
sua oposição completa ao dogmatismo está o desvelo que na origem da racionalidade
438
PASCAL, B. Entretien de Pascal e M. de Saci sur Épictète et Montaigne. Intégrale, p.293ab.
439
Idem.p.293b
440
PASCAL, B. Pensées. (33,374);(109-392);(Papiers Classés, Section I, Contrariétés, VII);(406-
395);(521-387);(655-377)(658-391)(691-432)(896-390);(905-385)
441
Idem. (155, 281)
442
PASCAL, Pensées. (110-282) Trataremos detidamente desta relação entre Pascal e Camus na
conclusão deste trabalho, ocasião na qual demarcaremos mais precisamente fronteiras entre as duas
concepções. Por ora, é suficiente notar a confluência temática e também metódica entre estas duas
abordagens da filosofia que embora distantes, por vezes, tanto se aproximam.
443
Notar o fragmento 199-72 dos Pensées.
167
444
Idem. (131c, Papiers Classés II, Contrariétés, VII.)
445
Contudo, malgrado estas importantes convergências, obviamente, é preciso dizer que Pascal é um
dos filósofos que realizam, como sabemos, o salto na esperança. Assim, ele não pode ser admitido
expressamente como inspiração, mesmo que metódica para Camus que se contrapõe justamente ao
existencialismo utilitarista dos pensadores cristãos. Há, de fato, muitas fontes “escondidas” no
pensamento de Camus e Pascal é, sem dúvida, uma de suas influências mais zelosamente veladas.
446
447
PASCAL, B. Pensées. (L.406-Br.395)
448
MS, 136. “Essas duas certezas, meu apetite pelo absoluto e pela unidade e a irredutibilidade deste
mundo a um princípio racional e razoável, sei também que não posso conciliá-las.”(Idem)
168
Interessante notar que na única menção - não velada – a Pascal n´O Mito de
Sísifo, Camus define o termo “esquiva” como correlato ao tema do “divertimento” em
Pascal: “o essencial desta contradição(o ser para a morte no qual coabita a vontade de
viver) reside no que chamarei de «esquiva», visto que ela é a um só tempo mais e
menos que o «divertimento» no sentido pascaliano...a esquiva mortal(...)é a
esperança.” 449 Camus, por conseguinte, não desconhece o método do renversement
continuel du por au contre que é o fundamento mesmo do fragmento
Divertissement(Pensées, L.136-Br.139). Trata-se de proceder a desmontagem
sucessiva de cada ótica particular, revelando as fraquezas de cada ponto de vista, na
intenção de ver, do patamar mais alto, a “razão dos efeitos” que, nesta situação,
explicaria os motivos profundos da inquietude humana. Ora, este é exatamente o
método de Camus n´O Mito de Sísifo que expõe, passo a passo, as fissuras do
pensamento “existencialista”, alçando, por fim, a assunção do absurdo ao patamar de
lucidez suprema: o absurdo é a “razão dos efeitos” para Camus – o pensamento oculto
que permite uma compreensão interrogante da condição humana paradoxal. Nos
esforços de Camus e de Pascal o que está em jogo é, no limite, e, em termos
contemporâneos, a recusa da alienação humana. O divertimento, e a esperança são
para Pascal e Camus, verso e reverso da mesma alienação em relação à condição
humana que é digna de combate. A convergência metodológica entre os dois autores,
por conseguinte, deve ser considerada, não apenas possível, mas real e extremamente
significativa.
Todavia é imprescindível comentar que, embora não mencione expressamente
Pascal, para Camus a “solução” pascaliana para o absurdo não poderia senão
permanecer, sem dúvida, no hall dos suicídios filosóficos, pois não se diferenciaria
profundamente da atitude kierkegaardiana, visto que a dialética tensa entre grandeza e
miséria seria em Pascal ainda preliminar e subsidiária do re-encontro do fio de
Ariadne que re-encaminha à fé pelo exaurimento das soluções existenciais. Em
450
Camus, ao contrário, como vimos, “a honestidade consiste em saber manter-se
nesta aresta vertiginosa(do absurdo), o resto é subterfúgio.” 451
É afinal, a esperança a grande esquiva comum de todos os pensamentos
elencados por Camus. Ela desliza por entre brechas auspiciosas e inauditas se
449
MS, 102.
450
MS, 136.
451
MS, 135.
169
revelando por detrás, tanto dos comportamentos mais austeros, quanto dos mais
absurdos.
O caso paradigmático escolhido para encarnar estas artimanhas da esperança é
o caso de Kirilov. Segundo Camus, este personagem é a materialização de raciocínios
empreendidos por Dostoievsky que conduzem o problema da relação do homem com
a eternidade ao seu limiar. Ele decidi “sair da vida” por uma idéia: “ele quer se
matar para tornar-se deus.” 452
O raciocínio de Kirilov é, segundo Camus, de uma lógica cruel e rigorosa e
retoma o raciocínio caro a Nietzsche: “Se deus não existe, logo, eu sou deus.”
Demasiado humano, Kirilov tem todas as características do homem ordinário salvo
esta convicção de divindade que lhe transporta para além do horizonte da
normalidade: “De super-homem só tem a lógica e a idéia fixa, de homem tem todos os
registros. No entanto é que fala tranqüilamente de sua divindade.” 453 Em certo
sentido ele parece realizar plenamente a condição absurda visto que sua
independência radical, sua liberdade refletida e obstinada lhe conferem este elã
inconformista que efetiva uma conduta absurda. Kirilov pretende se matar “por amor
à humanidade”, para “ensinar-lhes” a boa nova da morte de Deus, doravante., “tudo
depende de nós.” Mas, como a de Zaratustra, esta nova não é reformista, Kirilov
pretende dar um presente à humanidade. Seu suicídio é perfeitamente vão, lúcido,
absurdo.
Não é pois em Kirilov que devemos, afinal, buscar esta centelha de esperança
que fulgura ainda na atitude do suicida e que contradiz, afinal, sua dimensão absurda.
Mas sim na obra de Dostoievsky que, como um todo, destila um resíduo “existencial”.
Segundo Camus, Kirilov, no fundo, é derrotado por Aliocha que repõe o horizonte de
eternidade que está no âmago dos dilaceramentos de Dostoievsky. Kirilov encarna
uma pedagogia do absurdo que aponta, não sua lucidez, mas a face auto-destrutiva e
inútil da assunção do absurdo, visto que a vida no horizonte dostoievskiano só teria
sentido em função da eternidade. A liberdade de Kirilov, assim, não era “para nada”:
o suicídio foi uma atitude, de algum modo, em função da eternidade, determinado
pelo horizonte de algum modo depende da eternidade de Dostoievsky: “E assim,
452
MS, 183.
453
MS, 184.
170
454
MS, 187. Camus entretanto
455
MS, 138.
456
“O que me interessa , quero repetir, não são tanto as descobertas absurdas. São suas
conseqüências.” (MS.p.109)
457
MS, 135.
458
HR, 419.
459
MS, 139.
460
HR, 420.
461
MS, 137.
462
MS, 138.
463
MS, 113.
464
MS, 138.
171
465
MS, 137.
466
MS, 137.
467
De fato a comiseração com o sofrimento, e a responsabilidade que ela acarreta, é uma característica
latente do absurdo que será efetivamente resgatada n´O Homem Revoltado. Este homem absurdo, por
ora, vive neste pecado sem Deus, numa ordem penal sem sentido, e goza, a bem da verdade, desta
innocência radical “do escravo” que “não se pertence” logo, não tem deveres, nem
responsabilidades.(MS, 1141) Esta dimensão perversa da liberdade desmedida que é consequência do
absurdo será problematizada nas obras ficcionais de Camus, O Estrangeiro, Calígula, O Malentendido
e também configurará a questão central d´O Homem Revoltado.
468
MS, 138.
469
MS,
470
MS, 138. “O contrário do suicida é o condenado à morte.”
471
MS, 138.
172
472
MS, 140.
473
“Tal privação de esperança e de futuro significa um crescimento da disponibilidade do homem.”
MS, 140.
474
MS, 141.
475
MS, 141.
476
MS,141.
477
MS, 141.
173
478
MS, 143.
479
MS, 144.
174
480
MS, 144. “O universo aqui sugerido vive somente por oposição a esta constante exceção que é a
morte.”(MS, 144)
481
Seria impossível não notar a inversão camusiana do procedimento da aposta. “Vamos morrer,
escapar pelo salto, reconstruir uma casa de idéias e de formas à nossa medida?Ou pelo contrário,
vamos manter a aposta(pari) dilacerante e maravilhosa do absurdo?”(MS, 137.) “Examinaremos, pois
esse ponto, e digamos: ´Deus existe ou não existe´. Para que lado nos inclinaremos? A razão não o
pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância infinita, joga-se
cara ou coroa. Em que apostareis?”(Pensées, L.418-Br.233)
482
MS, 144.
483
MS, 146.
484
MS, 144.
485
MS, 145. Notar o timbre nietzschiano destas passagens...
486
“Será preciso desenvolver a idéia de que um exemplo não é forçosamente um exemplo a ser
seguido(...)Estas ilustrações não são portanto, modelos(...)As atitudes de que falaremos só adquirem
seu sentido quando considerados seus contrários... ”(MS, 150)
487
MS, 149 “Não que a nostalgia lhe seja alheia. Mas prefere a ela sua coragem e seu raciocínio. A
primeira consiste em viver sem apelo e contentar-se do que tem, o segundo lhe ensina seus limites.”
175
o que o espírito absurdo pode buscar ao fim de seu raciocínio, mas sim ilustrações e
o sopro de vidas humanas. Os poucos esboços a seguir são deste tipo. Eles
prosseguem o raciocínio absurdo provendo sua atitude e seu calor.” 493
De fato, veremos oportunamente, o esforço de expressão do pensamento por
imagem presente na obra ficcional/filosófica de Camus é tão bem sucedido que
podemos compreendê-lo, no limite, como realização efetiva de uma verdadeira re-
orientação da filosofia na qual o calor e o sopro humanos recobrariam sua
importância fundamental na interpretação do real.
*
493
“Será preciso desenvolver a idéia de que um exemplo não é forçosamente um exemplo a ser
seguido(...)Estas ilustrações não são portanto, modelos.”(MS, 150)
177
2)Vivências do absurdo
Para Camus, na viagem incessante do desejo que conduz Don Juan de paixão
em paixão, procurando em cada aventura o reencontro do gosto infinito do amor
fugaz, figura “uma aposta contra o próprio céu” 494 na medida em que o amante
revitaliza com sua paixão sempre renovada, o sentido superficial e passageiro do
instante, única sabedoria possível para o homem absurdo, que não crê em amanhã: “O
que Don Juan põe em prática é uma ética da quantidade, ao contrário do santo, que
tende à qualidade.” 495
A escolha don juanesca nos remete à ética do batedor de recordes, que à força
da obstinação cotidiana, vence renovadamente a letargia do conformismo recusando a
cristalização que empobrece e desumaniza: à cabo do exercício do reiterado desafio
do amor fugaz, o homem absurdo ganha seu prêmio, isto é, sua própria ética.
Nesta ética do absurdo, é o instante que goza de todos os privilégios. Consiste
no mergulho no presente, superficial e imediato, a senda de sabedoria e felicidade do
homem alçado à dignidade absurda: “A característica do homem absurdo é não
acreditar no sentido profundo das coisas. Ele percorre, armazena e queima os rostos
calorosos ou maravilhados. O tempo caminha com ele .” 496
A vivência irrestrita da temporalidade que consiste na ética do Don Juan se
efetiva na re-invenção perpétua do amor que inunda e transtorna com suas cores
sempre diversas a letargia cinza do pensamento que não se esquece de sua própria
fugacidade: é a lucidez de seus limites 497 , e de sua transitoriedade que erige e
fundamenta o imperativo de sua paixão pelo instante. É nas mulheres que ele visa
exaurir enquanto pode este maravilhoso universo de diversidade, “esgota seu número,
e com elas , sua possibilidade de vida.”(...)Amar e possuir, conquistar e esgotar, eis
sua maneira de conhecer.” 498
O amor fiel é um calabouço para a encarnação Don Juan do homem absurdo
que entende que uma vivência que impossibilita o encontrado da multidão
transbordante de vida equivale à escolha pelo claustro do velho sono eterno. Toda a
metafísica ilusória da eternidade vela-se por detrás deste convencionalismo social
494
MS, 153.
495
MS, 154.
496
MS, 154.
497
“Faz lembrar estes artista que conhecem seus limites...”(MS,154.)
498
MS, 154,6.
178
banal e devorador: “um único sentimento, um único ser, um único rosto, mas tudo
acaba devorado.” 499 O encarceramento voluntário imposto ao homem mecanizado
pelo hábito significa negação da vida aos olhos do absurdo: “Você tem que ser
Werther, ou nada(...)há várias maneiras de suicidar-se, uma das quais é a doação
total e o esquecimento da própria pessoa.” 500
“É outro amor a que faz Don Juan estremecer, e este é libertador.” 501 A
profundidade e generosidade do amor fugaz está na abnegação total e em sua
gratuidade fundamental pois ele não visa nada, nenhuma ilusão, não possui nenhuma
esperança, afora a vivência do segundo; este amor dionisíaco, isto é fragmentado,
“traz consigo todos os rostos do mundo e seu tremor provém de saber-se
perecível” 502 (...) “Também aqui o homem absurdo multiplica o que não pode
unificar.” 503
Enfim, segundo Camus, uma legítima encarnação de Don Juan deve sabe
envelhecer: “o homem absurdo é aquele que não se separa do tempo.” 504 Como estes
artistas que “conhecem seus limites” 505 ele sabe se retirar de cena e conta até mesmo
com o ridículo; na velhice, “não oculta de si mesmo o seu horror.” 506
O fim mais plausível que Camus imagina para este personagem absurdo é
aquele no qual o conquistador morre enclausurado num convento, “isto representa a
culminação lógica de uma vida totalmente impregnada de absurdo, o desenlace feroz
de uma existência dedicada a alegrias sem futuro. O gozo termina aqui em
ascese.” 507
Como um pirrônico que duvida da própria dúvida o Don Juan decaído de
Camus renova sua desesperança num Deus em que desacredita e menospreza: eis o
coroamento amargo do herói blasfemo: “Que miragem mais assustadora desejar: a de
um homem a quem seu corpo trai e que, por não ter morrido a tempo, consuma a
comédia esperando o fim, cara a cara com o deus que não adora, servindo-o como
499
MS, 155.
500
MS, 155.
501
MS, 155.
502
MS, 155.
503
MS, 155.
504
MS, 154.
505
MS, 152.
506
MS, 153.
507
MS, 157.
179
serviu a vida, ajoelhado diante do vazio com os braços estendidos para um céu sem
eloqüência e, como ele sabe, sem profundidade.” 508
Contudo, nesta imagem da melancolia que poderia pertencer a Dürer ou
Chirico, um elã misterioso de dignidade se insinua: “Vejo Don Juan numa cela
daqueles monastérios espanhóis perdidos numa colina. E se ele olha para alguma
coisa, não é para os fantasmas dos amores fugidios, mas talvez, pelo balestreiro,
para alguma planície silenciosa da Espanha, terra magnífica e sem alma onde se
reconhece.” 509 É a grandeza humana advinda da serenidade lúcida de sair de um jogo
que já se sabia perdido, levando para o túmulo a certeza de ter desafiado com sua
experiência moral à limitação originária de sua condição.
Interessante notar a importância que Camus dá a esta ilustração de lucidez que,
como uma espécie de síntese iconográfica, será re-encarnada, como veremos
oportunamente, na figura de Sísifo, entre outras: “Sim, é sobre esta imagem
melancólica e radiante que é preciso se deter.” 510 É a ilustração da moral do homem
absurdo, de seu desafio ao cosmo, e de sua amarga sublimação: “O fim último(...)o fim
último é desprezível.” 511
*
508
MS, 157.
509
MS, 157.
510
MS, 157.
511
MS, 157.
512
MS, 158.
513
MS, 158.
180
morrer em cinqüenta metros quadrados de tábuas. Nunca o absurdo foi tão bem
ilustrado, nem por tanto tempo.” 514
Através desta multiplicação infinita da representação, o ator absurdo vivencia
ao limite o equivalente íntimo da absurdidade cósmica, isto é, o caos, a contingência e
o vazio que ele desvela em si e que partilha com seu Senhor(o absurdo): “Talvez, a
vida seja mesmo um sonho.” 515 A esta disponibilidade intensa ele responde com sua
voracidade vampiresca: “Ele é o viajante do tempo, e, no caso dos melhores, o
viajante acossado das almas.” 516
A exigência de mobilidade e diversidade que é sobretudo cósmica ele encarna
em sua continuada metamorfose corpórea. Executando na própria carne a
multiplicidade que está presente no cosmo ele demonstra ao homem comum,
engessado e adormecido pelo cenário cotidiano, do que o corpo é capaz: De que, a
bem da verdade, somente o corpo é capaz e que é sempre no plano da aparência e da
superficialidade que é a dimensão efetiva da vida, que se resolvem as determinações
mais profundas.
O ator absurdo goza, então, plenamente da existência compreendida como
jogo e desempenha infatigavelmente seus papéis que se metamorfoseiam no tempo.
Os bons atores conhecem, portanto, seus limites, e é na assunção da temporalidade
que ele evolui e se glorifica.
Outra característica absurda destacada por Camus é da efemeridade e da
gratuidade do ator visto que seu legado “se evapora” depois de se consumir no
instante da representação: “o ator nos deixará no máximo uma fotografia, e nada do
que era, seus gestos e silêncios, sua respiração curta ou seu hálito amoroso, chegará
te nós.” 517
*
Nesta compreensão da efemeridade cósmica que o ator expande na
generosidade desinteressada de sua arte o ator se assemelha à qualquer artista cuja
sabedoria consiste não na busca da eternização pela obra, mas na elaboração
continuada dele mesmo e de sua realidade por intermédio da criação: “Ao mesmo
tempo, sua única força é a criação contínua e inapreciável à qual se entregam, todos
514
MS, 159.
515
MS, 159.
516
MS, 159.
517
MS, 160. Notar que em 1939 Camus se mantêm numa concepção ultrapassada de ator, visto que se
refere visivelmente aos atores de teatro.
181
518
MS, 173-4.
519
MS, 174.
520
MS, 174.
521
MS, 174.
522
MS, 176.
523
MS, 176.
524
MS, 176.
182
pois conceber é “limitar seu mundo” 525 , em sua efetivação, visto que se defronta com
a materialidade radical de um universo de leis, físicas, morais, financeiras, que lhe
contradiz e o margeia, mas, sobretudo, na iniqüidade profunda de sua lida na
restauração de alguma justiça ou sentido profundo para si ou a para a ordem humana:
A criação “não pode ser o fim, o sentido e o consolo de uma vida. Criar e criar não
muda nada.” 526
Assim como nas atitudes do conquistador e do ator, será a partir da gratuidade
que Camus alçará a dignidade da arte absurda. Consciente de seus limites ela não visa,
nem explicar o mundo restaurando ilusoriamente a quietude impossível, nem
transformá-lo, tornando-se um Cavalo de Tróia para a beligerância humana. Livre e
sem amanhã a arte absurda não retira dignidade de sua função de epifania, ópio 527 ou
miragem útil à contemplação desesperançosa de um homem alquebrado528 . Nem
tampouco, suporta a dignidade humana em virtude de seu poder pedagógico primitivo
pelo qual podem se insinuar as causas mais obscuras.
A arte absurda alça sua dignidade de sua lucidez e de seu mergulho
interrogante nas representações reivindicadas pela vida, apesar de seu caráter inútil e
insensato 529 . Este modelo desesperançado de engajamento artístico repercute nas
dimensões filosófica e histórica do pensamento de Camus.
*
525
MS, 176.
526
MS, 176.
527
Camus precaveu desta fácil resolução dos paradoxos da condição humana pela epifania artística: a
arte absurda ao contrário, não é um epifania opilácea “não oferece uma saída pelo mal de espírito. É o
contrário uma expressão deste mal que repercute em todo pensamento de um homem” (MS, 175.)
528
“Minha vida pode encontrar ali um sentido, isto é ridículo.”(MS, 180)
529
“Criar e não criar, não muda nada.”(MS,176.)
183
530
MS, 175.
531
MS, 175.
532
MS, 178. Camus cita Balzac, Sade, Melville, Stendhal, Dostoievsky, Proust, Maulraux e Kafka.
533
MS, 178.
184
534
MS, 191.
535
“o filósofo, mesmo que seja Kant, é criador. Tem seus personagens , seus símbolos e sua ação
secreta. Tem seus desenlaces.”(MS,177.) “A Ética ela mesma, sob um de seus aspectos, não é senão
uma longa e rigorosa confidência.(MS, 178)
536
MS, 191.
537
MS, 191.
538
MS, 134.
539
MS, 191.
540
MS, 192.
185
inesgotáveis da condição humana: “Não mais a fábula que diverte e cega, mas o rosto
e o drama terrenos em que se resumem uma difícil sabedoria e uma paixão sem
amanhã.” 541
A dignidade e a lucidez da criação absurda revela, afinal, seu legado mais sutil
- não é na esperança de objetivos ou fins, afinal, que reside a primazia da criação, mas
no savoir vivre que ela implica: é no engajamento cotidiano, na discipina da
confrontação diária com os limites da condição humana exigida pela elaboração
continuada do pensamento insatisfeito, pela re-elaboração perpétua de si e de seu
entorno que ela propicia, que consiste a potência de sua mágica que dignifica o
cotidiano miserável.
*
541
MS, 192.
186
542
MS, “compreender e amar. Elas se interpenetram e a mesma angústia as confunde”.
543
A conclusão deste trabalho será intitulada- Pascal e Camus: o pensamento dos limites onde se
proporá uma leitura unitária do pensamento de Pascal por intermédio da problemática dos limites do
homem. Problemática que é o âmago, aliás, do pensamento de Camus. Assim, veremos que Pascal e
Camus podem ser vistos como partcipantes de uma espécie de “linhagem” filosófica: uma outra
história da filosofia. História nostálgica da filosofia que versa sobre a alternativa derrotada da
civilização: uma civilização baseada, não no binômio razão-desmesura, mas no par, coração-medida.
187
544
PASCAL, B. Pensées. (L.122-Br.416)
545
PASCAL, B. Pensées. (L.122-Br.416)
546
PASCAL, B. Pensées (L.117-Br.409)
547
“à medida que os homens se esclarecem, tanto acham grandeza como miséria no homem.”(L-130-
Br.416)
188
548
Idem. (L.130-Br.420)
549
MS, 190. “Esta é a tarefa do criador absurdo.”
550
MS,166.
551
MS,165-6
552
MS, 164. Trata-se do sub-capítulo La conquête.
553
Interessante notar que neste capítulo o texto, por vezes, ganha um tom em primeira pessoal que
parece extremamente confessional e que difere consideravelmente do tom escolhido para tratar o
restante da obra.
554
MS, 165.
555
MS, 165
556
MS, 165
557
MS, 165-6
558
MS, 165.
189
559
MS, 165.
560
MS, 166.
561
MS, 166.
562
MS, 166.
563
MS,166. “Até agora a grandeza de um conquistador era geográfica.” Notar em PASCAL, B.
Pensées (Br.347) “Caniço pensante. Não é no espaço que devo buscar minha dignidade, mas na
ordenação de meu pensamento. Não terei mais, possuindo terras; pelo espaço, o universo me abarca e
traga como um ponto; pelo pensamento, eu o abarco.”
190
564
MS, 165. Sobre a escolha pela ação histórica Camus diz: “Não pensem, porém que isto me agrada.”
Esta contrariedade com a participação na história Sartre ironizará na correspondência de
“rompimento”, como veremos adiante.
565
MS, 166.
566
Camus intitula, como veremos adiante, o capítulo d´O Homem Revoltado destinado à analise da
secularização da nostalgia de eterno pela política de O novo evangelho.
567
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra, p,65.
568
MS, 167.
569
MS,166. Como a criação artística absurda, este engajamento histórico absurdo é livre e gratuito.
191
570
MS, 166.
571
MS, 167.
572
MS, 166.
573
MS, 167.
574
MS, 167. “...estas são as verdadeiras riquezas(...)no meio delas o espírito capta melhor seus
poderes e seus limites.”
575
PASCAL, B. Pensées (L.122-Br.416)
576
MS, 167.
577
1MS, 167.
192
578
MS, 138.
579
MS, 169.
580
MS, 131.
581
“compaixão(...)por consciência de nossa condição insignificante(...)é a única compaixão que nos
parece aceitável(...)são os mais corajosos entre nós que a experimentam.”(MS, 168) Ele se referirá à
corajosa compaixão também em O Homem Revoltado(HR, p.700).
582
A metodologia de explicação histórica deste trabalho será, na medida do possível, a técnica do
balestreiro, isto é , encontrar balestreiros por intermédio dos quais, de dentro dos autores, possamos
vislumbrar aspectos da realidade que lhes entorna. Visto o horizonte belicista do século XX, a analogia
do balestreiro nos parece apropriada.
193
583
As quatro missivas que compõe as Lettres à un ami allemand, foram escritas respectivamente em
julho de 1943(Revue Libre em publicação clandestina), dezembro de 1943(Cahiers de la Libération),
abril de 1944(Libertés) e julho de 1944(Revue Libre). Foram publicados juntos após a libertação na
Gallimard.
584
CAMUS, A. Lettres à un ami allemand(Doravante, LA) in Essais. p.219
585
LA, 222.
586
LA, 223.
587
LA, 223.
194
588
“a criatura é minha pátria(...)Mesmo humilhada a carne é minha única certeza. Só posso viver
dela(...)Por isso escolhi este esforço absurdo e sem alcance. Por isso estou na luta.”MS, 166.
589
LA, 240.
590
LA, 240.
195
596
LA, 240. “Estas noites de julho são, a um só tempo, leves e pesadas. Leves no Sena e nas árvores,
pesadas no coração daqueles que aguardam a única aurora que doravante eles desejam.” (LA, 239.)
597
LA, 241.
598
LA, 241.
599
LA, 241.
197
600
MELANÇON, M. Albert Camus. Analyse de sa pensée. p.93.
601
HR, 241.
602
Conferência, dezembro de 1957, II, 1079.
603
HR, 489.
604
I, 334
605
II, 400.
606
I, 351.
607
II, 363.
198
608
II, 405.
609
II, 1073.
610
CAMUS, A. Lettres à un ami allemand. (Doravante LA)p. 241.
611
LA, 242.
612
LA, 227.
613
LA, 223.
614
LA, 224.
615
LA, 241.
199
616
LA, 242-3.
617
LA, 222.
618
CAMUS, A. Essais. p. 1466. Citado por RIOUX, J-P. Camus et la seconde guerre mondiale in
Camus et la Politique(J-Y-Guérin). p. 97.
200
619
LA, 217.PASCAL, B. Pensées (L.681- Br.353)
620
PASCAL, B. Pensées (Br.21-L.381)
201
ou devagar demais não entendemos bem. » 621 “ Não somente olhamos as coisas de
outros ângulos, mas com outros olhos ; não temos maneiras de achá-las iguais. » 622
“Dir-se-ia que o homicídio é mau(…)Mas, que dirão que seja bom? Não matar?não,
pois as desordens seriam horríveis, e os maus matariam os bons. Matar? não, pois
isto destrói a natureza. Nós não temos nem verdadeiro, nem bem senão em parte e
misturado ao mal e a falsidade. 623 “ O porto julga o que estão no barco, mas onde
encontrar um porto na moral?” 624
De certo, o que resta do bom senso contemporâneo, deve muito ao esforço
pascaliano de pensar a política como a administração de um conflito entre verdades
contrárias, como bem compreende Pierre Bourdieu 625 . Pascal compreende o homem
no meio do universo(Br.72-L.199), destinado a procurar, também em política, uma
medida entre os extremos das paixões humanas. A amplitude e a agilidade, a busca
pela verdade oposta, que são imperativos da reflexões políticas, provam que, para
Pascal, a procura do “juste milieu”, não pressupõe nada de extático e “confortável”.
Em Pascal, neste sentido preciso, seguramente, precursor de Camus, à procura da
medida, do pensamento justo, implica movimento, amplitude e equilíbrio: “ A
natureza nos pôs de tal modo no meio que se nós alteramos um lado da balança nós
alteramos também o contrário...” 626 “Não mostramos nossa grandeza ficando numa
extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo.” 627
621
PASCAL, B. Pensées (692-723)
622
PASCAL, B. Pensées (672-124)
623
PASCAL, B. Pensées (385-905)
624
PASCAL, B. Pensées (383-697)
625
Bourdieu fala de Pascal como antídoto aos “sonhos de onipotência” do pensamento ocidental.
BOURDIEU, P. Meditações Pascalianas. p.11. O livro de Bourdieu é uma amostra do reconhecimento
contemporâneo de Pascal no que se refere ao esforço multipolar de compreender a política de modo
complexo e interrogante, contraposição à fundamentação “escolástica”, absolutista e totalizante,
almejada pelas ciências humanas. Notar especialmente à introdução e os capítulos, III e IV.
626
PASCAL, B. Pensées (70-519)
627
PASCAL, B. Pensées (353-681)
628
CAMUS, A. Œuvres Complètes. p.379. (Trois interviews)
202
concerne à todos(...)Vocês devem resistir pois isto nos concerne e não existem duas
Franças.” 629
É de sobremaneira importante sublinhar que este editorial, que é assinado
coletivamente por Combat 630 , elenca e divulga as práticas legitimadas pela resistência
no esforço de guerra: “As sabotagens, as greves, as manifestações organizadas com o
conjunto da França são as únicas maneiras de responder a esta guerra. É isto que
esperamos de vocês.” 631
Neste sentido, podemos divisar que o próprio Camus acorda com a vicissitude
par excellance do engajamento histórico, visto que, neste momento preciso de
radicalização da Segunda Grande Guerra, não apenas admite, mas apregoa sem
hesitação a utilização da violência com a finalidade de lutar contra a ocupação.
Endossado pelo elã de solidariedade contra a injustiça, Camus prescreve: “À ação nas
cidades para responder aos ataques no campo! À ação nas fábricas! À ação nas vias
de comunicação do inimigo. À ação contra a Milícia: todo miliciano é um assassino
possível.” 632 (...) “À guerra total, resistência total.” 633
Roger Quilliot nota bem que, apesar deste editorial ser fruto, em tese, de um
esforço coletivo de redação como adverte Lévi-Válensi, há na justificativa ética da
ação da resistência proposta neste editorial de Combat uma atmosfera absolutamente
camusiana. Os termos que a publicação clandestina utiliza nos remetem à
fundamentação do engajamento contra a miséria da condição humana presente em O
Mito de Sísifo, “Nós aportaremos todos juntos esta grande força dos oprimidos que é
a solidariedade no sofrimento...” 634
E Quilliot vai além, nos permitindo antecipar um nexo direto entre a postura
ética do engajamento histórico no difícil contexto do Combat, com a obra que
imortalizará de Camus posteriormente: “o acento que é posto no fato de que toda a
comunidade francesa é concernida pela Ocupação e pela Resistência, e a idéia que o
sofrimento partilhado é uma força para os oprimidos são os temas esseciais d´A
Peste, em gestação na época.” 635
629
VALENSI, J. Combat clandestin: mars 1944. Cahier Albert Camus 8, pp121-2.
630
VALENSI, J. Cahier Albert Camus 8, p.121.
631
Idem. Combat clandestin: mars 1944. p. 121-5.
632
Idem. Combat clandestin nº55: mars 1944. p. 125.
633
Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 121.
634
Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 125.
635
Idem. Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 122.
204
636
Estilo literário que pode, a bem da verdade, ser considerado, com propriedade também, estilo
filosófico de Albert Camus.
637
VALENSI, J. Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.129.
638
Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.130-1.
205
639
Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131.
640
Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131. Em O Estrangeiro, o filme de
Fernandel também simboliza a indiferença de Meursault diante da morte da mãe.
641
Notar a opinião de Marcel Déat, deputado socialista oportunista da III República referida no nº58 de
Combat (Idem,p.137).
206
642
Combat Clandestin, nº 57, mai 1944. Cahier Albert Camus 8, p.131-2.
643
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. La crise de l´Homme. p, 744.
644
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. La crise de l´Homme. p, 744.
645
Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.
207
646
Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é exclusivamente
de Camus.
647
BEAUVOIR, S. L´oeil par l´oeil. In Revue Les Temps Modernes. p.813.
648
GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p, 43.
649
GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p, 45.
208
650
Combat 18 octobre 1944. p. 264.
651
Combat 18 octobre 1944. p. 266.
652
Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.
653
Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é excluivamente de
Camus.
209
654
Resumo do artigo de Mauriac é proposto por Lévi-Válensi em Cahier Albert Camus 8, p.270.
655
Combat 20 octobre 1944. p.271.
656
Combat 20 octobre 1944. p.271.
657
Combat 20 octobre 1944. p.271.
210
verdade.” 658 (...)“M.Mauriac não fala senão dos excessos desta revolução.”(...)“Mas
não podemos ignorar que ela peca tanto por suas fraquezas quanto por seus
659
excessos.” A frase seguinte inaugura um argumento que virá, futuramente, a
constituir um verdadeiro leitmotiv camusiano como veremos na análise de O Homem
Revoltado: “Nosso dever é denunciar os dois ao mesmo tempo e mostrar o justo
caminho no qual a força das revoluções se alia às luzes da justiça.” 660
O célebre intérprete de Pascal, certamente não poderia imaginar um
argumento deste naipe vindo do campo adversário. O que Camus evidencia ao célebre
Monsieur, o sábio ancião sabe de cor: “Não mostramos nossa grandeza ficando numa
extremidade, mas tocando as duas ao mesmo tempo.” 661
O editorial de 20 de outubro de Combat se encerra enfaticamente “pró-
depuração”, intransigente em face do dever doloroso de fazer Justiça, desvelando,
pelo brilho de sua prosa, a identidade do exigente porta-voz da Resistência: “Nosso
tempo é desses e de sua terrível lei, que é vão discutir, que é de nos obrigar à destruir
uma parte ainda viva deste país para salvar sua própria alma.” 662
Antes de qualquer objeção da parte de Mauriac, que virá inevitavelmente dois
dias mais tarde, Camus, obcecado sobre a questão da legitimidade da depuração,
insiste em tratá-la detidamente, no editorial do dia seguinte, 21 de outubro de 1944. O
tom se mostra ainda mais filosófico, passo a passo, mais evidentemente camusiano.
Notemos que os termos do editorial retomam, paradoxalmente, a argumentação de O
Mito de Sísifo empregando até mesmo de maneira literal termos caros ao âmago
conceitual das Lettres à um ami allemand, sublinhando, com isso, o enorme problema
ético que consiste decidir por “acrescentar à miséria deste mundo.” 663 “Como
apreciar levianamente um drama tão difícil que pede ainda sangue a um país que
duas guerras esvaiu de sua substância mais profunda? E como os melhores entre nós
658
Combat 20 octobre 1944. p.272.
659
Combat 20 octobre 1944. p.272.
660
Combat 20 octobre 1944. p.272.
661
PASCAL, B. Pensées (L.681- Br.353) Epígrafe das Lettres à un ami allemand…
662
Combat 20 octobre 1944. p.272. M.Mauriac, em artigo do Figaro de 22 de outubro, pedirá
esclarecimentos diretamente à Camus (“um dos «cadetes»pelos quais tenho mais admiração e
simpatia, e de quem muito aprecio, habitualmente, o estilo impecável) sobre “o que recobre esta
linguagem teológica.”(Figaro, 22 de outubro de 1944)
663
“ Nos foi necessário todo este tempo para ver se nós tínhamos direito de matar os homens, se nos
era permitido acrescentar(ajouter) à atroz miséria deste mundo.”(s´il nous était permis d´ajouter à
l´atroce misère de ce monde.)(Lettres à um ami allemand, Essais, 223.)
211
664
“...ajouter la douleur de ce peuple et à l´atroce misere de cette guerre.”Combat 21 octobre 1944,
p.274.
665
Combat 21 octobre 1944, p.274.
666
Combat 21 octobre 1944, p.275.
667
Combat 21 octobre 1944, p.275.
212
668
Combat 25 octobre 1944, p.287. Essais, 1535. Texto assinado por Camus, resposta direta à
Mauriac(Réponse à Combat).
669
Combat 21 octobre 1944, p.275.
670
CAMUS, A. Essais, p.259. Combat 30 août 1944, p.158.
671
Combat 5 septembre 1944, p.171.
672
Combat 21 octobre 1944, p.275.
673
Combat 21 octobre 1944, p.276.
213
674
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen.p, 45.
675
MAURIAC, F. Le Cahier noir. Ed.Minuit, 1944. p.12-3.
676
MAURIAC, F. Vers un socialisme humaniste. Figaro 11 de outubro de 1944.(Archives ENS)
214
677
MAURIAC, F. La vrai justice. Figaro 8 de setembro de 1944.
678
MAURIAC, F. Justice. Figaro de 12 de dezembro de 1944.
679
MAURIAC, F. Révolution et révolution. Figaro de 10 de outubro de 1944.
680
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen.p,48.
681
“Segunda-feira, a primeira condenação capital foi pronunciada em Paris. É diante deste terrível
exemplo que nós devemos nos posicionar. Aprovaremos ou não esta condenação?Eis, o problema é
terrível.”(CAMUS, A. Essais, 1536. Combat 25 octobre 1944, p.288.)
215
682
CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288.
683
CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288.
684
CAMUS, A. Essais, pp.271-2. Morale et politique. Combat, 8 septembre 1944.
685
CAMUS, A. Essais, p.1537. Combat 25 octobre 1944, p.289-90
216
686
CAMUS, A. Essais, p.1537. Combat 25 octobre 1944, p.290.
687
Ressaltemos o dilema que ecoa Antígona, visto seu esforço de fazer justiça à memória dos mártires.
688
CAMUS, A. Essais, p.1536. Combat 25 octobre 1944, p.288-9.
217
A bem da verdade, a leitura sucessiva dos textos evidencia que, à medida que
as exigências de sangue da história se intensificam, esmorece o samurai, e o iogue
camusiano ressurge com mais intensidade. Um editorial não assinado do Combat de 7
de dezembro, em resposta ao anúncio no qual o General Leclerc difunde que fuzilará
cinco reféns alemães para cada militar francês assassinado, entremostra que os
compromissos assumidos face a absurdidade, tão preciosamente descritos em O Mito
e nas Lettres, ressurgem à ordem do dia do editorialista chefe do veículo de
divulgação par excellance da expressão Resistente, suplantando assim, de maneira
evidente, os interesses dos enfrentamento cotidianos: “A consciência francesa, e a
consciência ela mesma, repugnam o sistema de reféns. Apreciamos a vida humana e
nossa diferença em relação aos hitleristas é que nós não matamos senão obrigados e
forçados, enquanto eles assassinam com simplicidade. Nós não queremos lhes
parecer. E isto faz nossa força e nossa fraqueza(...)Nós nunca mataremos um
inocente(...)Nós sempre recusaremos assassinar reféns(...)Nós jamais
689
acrescentaremos à miséria deste mundo.”
Posto que não divergem nem em relação à finalidade, nem sequer - de um
ponto de vista aprofundado - dos meios pelos quais deveria se pautar a depuração,
qual seria, então, a causa da virulência de Camus no ataque à salutar consciência
hipertrofiada de Mauriac, dedicado a velar pela justiça durante àqueles dias
nebulosos?
Sem dúvida, é a Igreja na pele de Mauriac que Camus e Combat vituperam.
Do ponto de vista filosófico, Camus nota que se destila da misericórdia de
Mauriac um conformismo eivado de moralina cristã. Como ressalta, ainda em
setembro de 44, o cristianismo, “doutrina da injustiça”, é “fundado no sacrifício de
um inocente e na aceitação deste sacrifício. A justiça, ao contrário, e Paris vem
provar com suas noites iluminadas pelas chamas da insurreição, não existe sem
revolta.” 690
À luz da história, este diagnóstico de conformismo não apenas se confirma
como se redobra, posto que somente em dezembro de 1944 o Papa Pio XII exprime
uma opinião favorável da Igreja a respeito da democracia, o que desperta fúria do
editorialista chefe do Combat de 26 de dezembro: “há anos esperávamos que a maior
autoridade deste tempo se prestasse em condenar, em termos claros o
689
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste em citoyen. p, 46.(Combat de 7 de dezembro de 1944)
690
CAMUS, A. Essais, pp.271-2. Morale et politique. Combat, 8 septembre 1944.
218
empreendimento das ditaduras(...)Esta voz que vem declarar ao mundo católico que
partido tomar, era a única que poderia falar em meio às torturas e aos gritos, a única
que poderia negá-la sem temer a força cega dos blindados.” 691
Mauriac, por sua vez, segundo a arguta interpretação de Guérin, acorda uma
absolvição sem reservas da Igreja francesa durante a ocupação: “sua honra” - diz no
artigo “A inquietude católica na França” do Figaro de 28 de outubro, antes, portanto,
da manifestação de Pio XII - “jamais foi contestada.” 692 Em 9 novembro, arremata
em “A Igreja mãe dos homens”: “A Igreja na figura de seus pastores fez bem se
escondendo.” 693
Portanto, quando Camus ataca Mauriac contra suas críticas aos excessos da
depuração, embora sejam perceptíveis, de um ponto de vista prático, a existência de
divergências tão somente pontuais a respeito dos meios da instauração da justiça,
notemos que um panorama mais amplo permite distinguir nitidamente suas vultosas
divergências político-filosóficas: é todo o conservadorismo francês que se beneficia,
aos olhos de Camus, dos justos pudores de François Mauriac. Não é à toa, portanto, o
apelido irônico que o semanário cômico francês Le canard enchaîné depositara nesta
respeitada figura da alta sociedade francesa: “Saint François des Assises.” 694
De sua ótica, Mauriac teme, antes de tudo, a derrocada pela guerra civil,
considerando que uma radicalização do processo de depuração tornaria impossível a
reconciliação. Outro fator não passa despercebido pelo crivo de Guérin, lembrando o
papel importante do conservador na mobilização da opinião pública contra a
condenação à morte por traição –– do “lambari”-intelectual anglófobo Henri Béraud:
“No fundo, Mauriac é um político bastante fino para ter compreendido que os
intelectuais pagavam pelos altos funcionários e industriais, os quais souberam ser
mais discretos.” 695
Ora, quando Camus, pelo Combat de 18 de outubro, pleiteava um justiçamento
rápido e justo - “..é ridículo sacrificar tal ou tal chefe de gabinete que continuou a
viver pelo hábito sem tocar, de outra parte, aos grandes responsáveis da indústria ou
do pensamento” - ainda
691
CAMUS, A. Essais. p, 284. Combat, 26 décembre. 1944, p.408-9.
692
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 49.
693
MAURIAC, F. in Le Figaro, 9 de novembro de 1944.
694
“São Francisco dos Sentados”(Jogo de palavras entre “Assis”, santo católico e “assises”,
“sentados”, em francês. Preciosa anedota histórica relembrada por Guérin. GUÉRIN, J-P. Le portrait
de l´artiste em citoyen. p.51.
695
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 55.
219
700
CAMUS, A. Cahier, II. (p.250)
701
Intuição ética que possui, como veremos oportunamente,ramificações narrativas como n´O
Estrangeiro e n´O Malentendido.
221
702
CAMUS, A.Essais.p, 291. Combat 08, août 1945.
703
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 91.
704
CAMUS, A.Essais.p, 289. Combat 30 août 1945.
705
CAMUS, A.Essais.p, 291. Combat, 01 août 1945.
222
706
CAMUS, A. Essais. pp.371-2. L´incroyant et les chrétiens. Fragments d´un exposé fait au convent
des dominicains de Latour-Maubourg, 1948.
707
CAMUS, A. Correspondance Jean Grénier-Camus.(p.141) Carta de 21 de janeiro de 1948. Grifo e
comentário nossos.
708
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste en citoyen. p, 60.
709
Trata-se da epopéia de Roubachov, que durante anos vivera “na ignorância do subjetivo”, face à
depuração soviética: “Roubachov é opositor pois não suporta a nova política do partido e sua
disciplina inumana. Mas como se trata de uma rebelião moral, e como sua moral foi sempre obedecer
ao partido, acaba por capitular sem restrições.”p.XVI.
710
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p, 10. Arthur Koestler é um oficial húngaro,
dissidente, ex-integrante do Komintern e precursor das denúncias contra o totalitarismo soviético. Seus
livros, Zero e Infinito e o Yogi e o comissário, assim como o Retour de l´U.R.S.S de André Gide, serão
fundamentais na consolidação da postura anti-totalitarista de Camus, se remetendo, em conjunto, sobre
a nadificação do indivíduo - zero diante do infinito – frente ao “fatalismo econômico” e à magnitude do
Estado Comunista, de pretensões messiânicas. Segundo Ronald Aronson, “Camus tornara-se íntimo de
Koestler no plano pessoal e também no plano político, e se encontra mergulhado numa revisão radical
de seu pensamento político, que apresentará mais tarde numa série de artigos intitulados Nem vítimas,
nem carrascos entre 19 e 30 de novembro de 1946.”(ARONSO, R. Camus et Sartre- Amitié et Combat,
223
p.110.) Embora a referência histórica seja correta no que concerne a ligação Camus-Koestler - como
Les Forces des choses de Simone de Beauvoir atesta - contestamos Aronson nesta suposta
“reviravolta”que atribui a obra camusiana. Nem vítimas, nem carrascos, será, a bem da verdade, como
veremos a seguir - tal como no caso Mauriac - um aprofundamento do humanismo camusiano face ao
absurdo, concepções já esboçadas em O Mito e nas Lettres à un ami allemand e não, absolutamente,
“revisão radical de seu pensamento político” como pretende Aronson.
711
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.9. (Biblioteca Tempo Universitário).
p.XIII(Gallimard)
224
712
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.9. (Biblioteca Tempo Universitário).
p.XIII(Gallimard)
713
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 111.
714
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur. p.XIII(Gallimard)
715
Notar que M.Ponty é estudioso de Machiavel. MERLEAU-PONTY, M. Éloge de la philosophie et
autres essais. Gallimard, 1965. (Note sur Machiavel)
716
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.111.
717
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.191.
718
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.122.
225
contrário do círculo vicioso aonde hominis lúpus se entre-devoram, pois ela “possui
uma lógica interna de sua condição” 719 e portanto, na ótica do realismo político, seria
o único instrumento capaz de romper com a engrenagem da violência720 . Merleau-
Ponty admite, “o marxismo é uma teoria da violência e uma justificação do
terror” 721 , contudo, em 1946, ele ainda prescreve, “o marxismo faz surgir a razão do
desatino” 722 . A continuação da sentença, de todo modo, impõe sua linha
investigativa: “a violência que ela legitima deve portar um sinal que a distinga da
violência retrógrada.” 723
Merleau-Ponty, partindo deste pressuposto, analisará por conseguinte, se a
violência soviética, no caso dos Processos de Moscou, é “progressiva”, se “as grandes
linhas ao menos convergem em direção ao desenvolvimento do proletariado em
consciência e em poder.” 724 Em caso afirmativo, o exercício da violência pelo tribunal
proletário seria um instrumento legítimo de evolução, pois, afinal, “não somos
espectadores de uma história acabada, somos atores de uma história aberta(...)o
mundo não é apenas para ser contemplado, mas também para ser transformado.” 725
Porém, é extremamente importante notar que Merleau –Ponty se atêm, para
além da “teoria” do jovem Marx, à decalagem entre o discurso teórico do marxismo e
suas condições de efetivação histórica, notando as condições particulares da
estruturação do Estado Soviético: “dos três temas fundamentais que uma filosofia
proletária da história põe na ordem do dia – iniciativa de massas, internacionalismo
e construção das bases econômicas – a história efetiva não tendo permitido a
revolução senão num só país e num país ainda não equipado, o terceiro passa ao
primeiro plano enquanto o primeiro e o segundo entram em regressão.” 726 Deste
modo, continua Merleau-Ponty (ressaltando a dificuldade da efetivação histórica do
marxismo em sua aspiração filosófica libertária original), o caráter subjetivista do
marxismo foi obnubilado pela necessidade da construção das bases econômicas - com
mão forte - conduzindo a uma concentração do poder no partido e à imposição da
719
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.120.
720
É notável como a argumentação de Merleau-Ponty será retomada por Sartre, outro editor da revista
Les Temps Modernes, pela boca de Jean, no roteiro cinematográfico A engrenagem(conferir pp.112-
136) que analisamos à luz da atmosfera pós –Hiroshima.
721
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105.
722
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105.
723
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.105.
724
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.141.
725
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.109.
726
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.145.
226
727
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.146.
728
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39.
729
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39.
730
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.154.
731
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.156.
732
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. p.24. (Biblioteca Tempo Universitário)
733
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.30.
227
de ser vistos dentro da perspectiva do futuro dos homens no poder.” 734 Isto porque,
explicita Merleau-Ponty, “qualquer que tenha sido a instrução preparatória, mantida
em segredo, não é em onze dias de debate que o Tribunal soviético podia acabar esse
trabalho relativo a vinte e um acusados (...)àqueles que podiam testemunhar
encontravam, por isso mesmo, implicados no processo: as únicas testemunhas
competentes eram acusados, e disso resulta que seus depoimentos não nos fornecem
jamais depoimentos em estado bruto.” 735 Num tom resignado, Merleau-Ponty admite:
“a culpabilidade não é aqui a união evidente de um gesto definido com móveis
definidos e conseqüências definidas.Não é aquela do criminoso do qual se sabe, pelo
testemunho do porteiro, que ele veio na tarde do crime entre nove e dez horas(...)a
trama das causas, das intenções ,dos meios e dos efeitos da atividade oposicionista
não é reconstituída.” 736 Merleau-Ponty acrescenta, entretanto, prudentemente, dado
seu compromisso com a esquerda internacional: “Escrevendo isto nós não
pretendemos polemizar...” 737
Talvez seja bastante conveniente abrir um pequeno parêntesis com a finalidade
de ressaltar que Merleau-Ponty entremostra certa nostalgia das ciências exatas,
almejando uma objetividade praticamente “galilaica” para seu estudo, que, segundo
ele, pretende “se limitar a enunciar o que podiam ser os processos de Moscou na
condição em que estavam constituídos, - e a formular essa impressão de uma
cerimônia de linguagem que deixa O Relato Estenográfico dos Debates.” 738 Merleau-
Ponty, no mesmo elã cartesiano, comenta lamuriosamente a suspeita que paira sob a
legitimidade dos Processos de Moscou: “A questão não se colocaria se os Processos
de Moscou tivessem provado os atos de sabotagem e de espionagem com se prova um
fato no laboratório...” 739
Malgrado a enumeração destes “detalhes” bastante esclarecedores sobre o
procedimento do processo Boukharine, Merleau-Ponty ressalta em contrapartida que a
suspeita do “mundo liberal” devotada aos Processos de Moscou, advém, a seu ver,
principalmente, da incompreensão que o “pensamento liberal” tem da concepção
marxista da responsabilidade. O que é incompreensível aos olhos da civilização
capitalista, para Merleau-Ponty, é que os culpados estejam de tal modo engajados no
734
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.56-7.Grifo de M.Ponty.
735
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55.
736
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.56.
737
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55.
738
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.56.
739
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.55.
228
sentido coletivista da responsabilidade que admitam seus crimes, insuspeitos até então
a eles próprios, como no caso de Roubachov, quando elucidados convenientemente
pelo Tribunal de qual o malefício de sua atitude como “ato histórico”, isto é, para o
futuro da coletividade. Como esclarece Maurice Weyemberg, “os atos dos acusados
são julgados não em função de suas intenções, mas a partir de suas repercussões
previsíveis e o impacto que terão no futuro do país da revolução. O aspecto mais
impressionante deste processo é que os acusadores e acusados falam a mesma
linguagem: são marxistas que julgam marxistas; dos dois lados da audiência fala-se
a mesma linguagem, e se está de acordo sobre a noção de responsabilidade
histórica.” 740
De acordo com a gênese marxista da história proposta por Merleau-Ponty o
magma originário da sociedade é o combate de todos contra todos, hobbesiano; Deste
modo os atos humanos não se configuram somente um resultado das intenções, mas se
contaminam ao se inscreverem num “contexto social”, repercutindo na vida comum,
com comenta no Prefácio: “A ação política é por si mesma impura visto que ela é
ação à muitos.” 741
Weyenberg ressalta que o conceito de responsabilidade marxista se deriva
desta concepção no qual o ato está intrinsecamente implicado num contexto amplo no
qual é necessário imprimir “linhas de força e perspectiva de futuro; sua opinião sobre
a situação na qual (e sobre a qual) ele deve agir resulta de uma interpretação que
permanece necessariamente parcial e sujeita a erro. A história não é nem pura
racionalidade, nem pura contingência, ela é essencialmente ambígua.” 742
Ressaltemos que a questão da ambigüidade paira sobre o conjunto de reflexões
de Merleau-Ponty desde o prefácio do Humanismo e Terror 743 : “Governar, como se
diz é prever, e a política não pode se justificar pelo imprevisto. Ora, há o
imprevisível. Eis a tragédia.” 744
Este problema da ambigüidade da ação histórica reiterada inúmeras vezes por
Merleau-Ponty no Humanismo e Terror, talvez não seja excessivo assinalar, pode ser
considerada análogo ao dilema da “opacidade” história que é tema central das
preocupações de Sartre em Verité et Existence, e eixo constitutivo, como vimos, de
740
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 115.
741
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.XXVIII
742
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 115.
743
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.65, 71, 80, 83, 87, 101-2.
744
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.XXVIII.Tempo Universitário.p.22.
229
745
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.58.
746
WEYEMBERG, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 116.
230
nossa responsabilidade aos olhos dos outros, nós não poderemos nos sentir inocentes
no processo que nos fazem, eles nos poderão condenar no próprio momento em que
nós não nos sentimos com outra culpa que esta – comum a todos os homens, de ter
julgado sem provas absolutas.” 747
Poderíamos, no limite, considerar que, do ponto de vista de Merleau-Ponty,
não seria, afinal, uma tragédia da desmedida humana que se evidenciaria com o
extermínio político tornado método por Stalin e Cia., mas, uma tragédia devida a
própria imprevisibilidade da história que exige uma política “de risco”748 : “o político
não é jamais aos olhos de outrem o que é aos seus olhos(...)aceitando um papel
político,uma oportunidade de glória, aceita também um risco de infâmia, uma e outra
«imerecidas» 749
É absolutamente imprescindível assinalar que a argumentação de Merleau-
Ponty que valida teórica e historicamente os processos de Moscou, conservando,
entretanto, um “desgosto” pela violência é desenvolvida narrativamente por Sartre em
seu roteiro, escrito no inverno de 1946 750 , A Engrenagem, intitulado inicialmente Les
Mains Sales.
Em A Engrenagem, recordemos, acompanhamos o itinerário do herói
sartreano Jean que de juiz(comandante em chefe revolucionário) passa - com o
decurso sinuoso e imprevisível da história (minada de percalços) e tendo cumprido
zelosamente suas exigências para com a manutenção da Revolução - à réu:
(Jean)“Quem fará meu processo?François faz um gesto circular. – Nós todos. (Jean)
– Segundo que lei? (François) A nossa. Eu não me defenderei. Vocês me matarão, diz
Jean.” 751
À luz da depuração soviética, notemos que o eixo da narrativa de Sartre está
na questão da responsabilidade face à história e das vicissitudes do engajamento
revolucionário. Notemos que Jean assume, sem titubear, os riscos de seus atos
históricos e aceita igualmente, sem constrangimento, que seus excessos de violência e
sua morosidade em nacionalizar campos de petróleo, sejam considerados crimes pelo
Tribunal de seus sucessores. Jean admite, sem recorrer, ser morto por seus atos de
revolucionário consciente.
747
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.25 -60.
748
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.24.
749
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.pp.22.
750
SARTRE, J-P. L´Engrenage, Paris. Nagel, 1948. Nota introdutória.
751
SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 20-1.
231
moribundo de tuberculose num campo de concentração por ordem sua - diz Jean:
(Jean) “ Digo que não me arrependo de nada! Era necessário salvar a Revolução.”
(Lucien) “Era necessário deportar tantas pessoas para salvar a Revolução? – Se o
estrangeiro houvesse re-estabelecido o Regente, diz Jean, crês que não haveria cem
vezes mais deportados?Era necessário escolher.” 758
Merleau-Ponty ratifica também, embora bem mais obliquamente, a perspectiva
revolucionária da violência responsável: “Num mundo de luta, - e para um marxista,
a história é a história da luta de classes, - não há essa margem de ações indiferentes
que o pensamento clássico reserva aos indivíduos, cada ação nos compromete e nós
somos responsáveis por suas conseqüências.” 759 (...)“Toda lei é violência” 760
A segunda parte de Humanismo e Terror, intitulada A Perspectiva Humanista
desvela que , de fato, Jean de A Engrenagem poderia, na época, também ser
considerado convenientemente um alter-ego de Merleau-Ponty. Embora Ponty
mantenha distância cautelosa do regime de Moscou, alinha-se fielmente a sua postura
de responsabilidade face às exigências históricas, como se entremostra pela sua
cuidadosa exposição da ótica marxista da inexorabilidade da violência : “Não temos
escolha entre a pureza e a violência, mas entre as diferentes espécies de violência. A
violência é nosso destino enquanto nós estamos encarnados(...)o que conta e o que
deve se discutir, não é a violência, é o seu sentido ou o seu futuro” 761 Se detendo na
diferença entre o proletário e o comissário, ou seja, nas transformações políticas da
União Soviética à sombra das exigências das circunstâncias históricas, Merleau-Ponty
frisa a diferença entre o projeto marxista original e sua efetivação histórica cerceada
pela epistemologia contingente do devir, minado de exigências. Como mencionamos,
ele expõe sombras que pairam sobre a dimensão histórica do marxismo;
“peculiaridades” sobre os Processos de Moscou; questionamentos sobre os métodos
de manutenção do poder, e embora haja uma éphoké em relação aos excessos do
regime Soviético, estes equacionamentos estão, acreditamos, de tal modo submersos
numa epistemologia da ambigüidade e contingência históricas e numa verdadeira
apologia da moral da responsabilidade que, afinal, estes dramas parecem, no limite,
758
SARTRE, J-P. L´Engrenage, p, 216.
759
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.61.
760
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.24
761
MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror.Tempo Universitário.p.121.
233
762
WEYEMBERG, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines.
763
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 121.
764
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 110.
765
MERLEAU-PONTY, M. Sens et non-sens. Paris, 1961.
766
MERLEAU-PONTY, M. Les aventures de la dialectique. Paris. Gallimard. pp. 306-7,(1955).Em
l´Opium des intellectuels, Raymond Aron qualifica esta postura de « idealismo revolucionário».
767
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p, 116.
234
768
GUÉRIN, J-P. Le portrait de l´artiste em citoyen. p, 60.
769
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.39.
770
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p.117.
771
MERLEAU-PONTY, M. Humanisme et Terreur.(Gallimard).p.40.
772
GUÉRIN, J-Y. Portrait de l´artiste en citoyen. p.60.
773
WEYEMBER, M. Albert Camus: ou La mémoire des origines. p.119.
774
CAMUS, A. Le Temps des meurtrières. In Camus voyageur en Amérique du Sud. Archives Camus
nº7(Fernade Bartfeld, 1995). Título de uma conferência de Camus em São Paulo, em dezembro de
235
*
Sob o impacto de Hiroshima, ainda em setembro de 1945, Camus se pergunta,
em solilóquio, no fragmento que inaugura o Cahier V, procurando sintetizar a
problemática do engajamento filosófico-político-moral-histórico contemporâneo : “O
único problema contemporâneo: podemos transformar o mundo sem crer no poder
absoluto da razão?” 775
Segue-se um silêncio significativo. Camus se afasta, escrevendo A Peste, que
configurará, como veremos oportunamente, a expressão narrativa mais madura de seu
engajamento ético-filosófico.
Pelos cadernos de Camus, entre setembro e outubro de 1946 - entre muitos
fragmentos que testemunham a transfiguração da problemática ética do engajamento
na dimensão narrativa de A Peste - podemos suspeitar da ambientação intelectual
tensa que circunda a confecção da série de artigos que será a única contribuição para o
Combat deste ano. Neles, encontramos vestígios 776 dos encontros com Koestler,
Sperber 777 , Malraux(M) 778 e Sartre, no qual, ainda companheiros de estrada, os
escritores discutem suas posturas sobre os caminhos do engajamento socialista à luz
das denúncias, crescentes, sobre as deportações na U.R.S.S.
Este relato dos Cahiers V que se segue é, assim, um valiosíssimo testemunho
do elã que doravante governará o engajamento filosófico-literário de Camus, bem
como da postura política que desenvolverá na coletânea de artigos intitulada Nem
vítimas, nem carrascos. Ajuntemos ainda que este relato consiste também num
significativo testemunho da postura de Sartre, contemporâneo da redação de A
Engrenagem, elaborado no mesmo inverno. Vejamos que, na síntese de Camus(C),
enquanto Koestler (K) , seguido por Sperber (2º S), insistem na necessidade da
denúncia do totalitarismo, Sartre(1º S), embora consinta nas crítica à Moscou, prefere
se ater aos flagelos do capitalismo, igualmente assombrosos, que se manifestam, de
seu ponto de vista, no entanto, bem mais sutilmente. Camus, por sua vez, esboça a
1946. Le Temps des meurtrières, faz, claramente, uma alusão a linha editorial da revista Les Temps
Modernes.
775
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1026.
776
Notar também Conversations avec Koestler, em Cahiers V, p.1072
777
Manès Sperber(1905-1984), ensaísta e romancista de origem austríaca, publicou em 1938 Análise
da Tirania no qual se interroga sobre o engajamento intelectual face ao totalitarismo.
Arthur Koestler(1905-1983). Húngaro, publicou o já referido Zero e Infinito que reflete sua experiência
no alto escalão do comunismo internacional. Participou da Guerra da Espanha.
778
André Malraux. General da Resistência, autor da Condição Humana entre outros, tornou-se porta-
voz de De Gaulle e, posteriormente, ministro da cultura da França.
236
defesa de uma “utopia relativa, modesta, refutando niilismo e «realismo político»” 779 :
“29 octobre. Koestler-Sartre-Malraux-Sperber e eu. Entre Piero de La Franscesca e
Dubuffet. K. – Necessidade de definir uma moral política mínima(...)Exame de
consciência. A ordem das injustiças(...)M.–Impossibilidade momentânea de tocar o
proletariado. É o proletário o mais alto valor histórico?(...)C. - A utopia. Uma
utopia, hoje, lhes custaria menos caro que uma guerra. O contrário da utopia é a
guerra. De uma parte. De outra parte: « Vocês não crêem que nós somos todos
responsáveis pela ausência de valores? E que, se nós, que viemos do
nitzschianismo, do niilismo e do realismo histórico, nós disséssemos, publicamente,
que nos enganamos e que existem valores morais e que doravante nós faremos o que
for necessário para lhes fundar e lhes ilustrar, vocês não crêem que seria o começo
de uma esperança?» S. Não posso guinar meus valores morais unicamente contra a
União Soviética. Pois é verdade que a deportação de vários milhares de homens é
mais grave que o linchamento de um negro. Mas o linchamento de um negro é
resultado de uma situação que dura mais de cem anos, e mais, representa, finalmente,
a infelicidade de tantos milhões de negros através do tempo quanto «Tcherkesses»
deportadas. K. É necessário dizer que, enquanto escritores, nós traímos à história
se não denunciamos o que é preciso denunciar. A conspiração do silêncio é nossa
condenação aos olhos daqueles que nos seguirão. S.-Sim.” 780
A fresta para a intimidade de Camus, fornecida pelos cadernos, entremostra o
dilema, par excellance, de uma época: “Estamos num mundo no qual é preciso
escolher ser vítima ou carrasco. A escolha não é fácil.” 781 Em outubro, Camus
confessa: “Dilaceramento no qual estou, com a idéia de fazer estes artigos para
Combat.” 782
O primeiro artigo de Nem vítimas nem carrascos – a que já nos referimos no
momento da análise de A Engrenagem (cf.na parte I) - aparece em Combat em 19 de
779
LÉVI-VALENSI, J. Camus à Combat.p.607.
780
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1073-4.(29,octobre) Notemos que, como em
A Engrenagem, Sartre admite os percalços e mesmo as injustiças do processo revolucionário. Contudo,
o eixo de sua postura ainda se mantém nas exigências da história e na inexorabilidade da moral da
responsabilidade, condenação à liberdade em linguagem sartreana. Lembremos a “tomada final” na
cena da “despedida” entre Jean e Lucien, na qual, deportado e moribundo, o editor do jornal
clandestino La lumière “absolve” o chefe-revolucionário que o exilara: “Lucien aperta as mãos de Jean
entre as suas com força: - Você fez o que pôde. Jean passa seu braço entorno dos ombros de Lucien e
o aperta contra si: - Meu irmãozinho...”(SARTRE, J-P. L´Engrenage, p.218.)
781
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1016(septembre) :
782
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1072.(octobre)
237
novembro de 1946 783 , e se intitula O século do medo: “O século XVII foi o século das
matemáticas. O século XVIII o das ciências físicas e da biologia. O nosso século XX é
o século do medo.” 784
Camus, como tivemos a oportunidade de mencionar, à luz do artigo sobre
Hiroshima, de 8 de agosto de 1945 785 , se atêm, primeiramente, à crítica das escolhas
da modernidade, questionando os rumos da “civilização mecânica” - da ciência -
confrontada ao “seu último degrau de selvageria:” 786 “seus últimos progressos
teóricos ameaçam negá-la a si própria, e visto que seus aperfeiçoamentos práticos
ameaçam a terra inteira de destruição.” 787
Com uma análise de extrema propriedade até mesmo para a compreensão da
geopolítica da atualidade do terceiro milênio, Camus prossegue notando que a
civilização contemporânea de seu tempo se aprimora no ideal hobbesiano de tornar,
mais do que nunca, o medo, uma técnica de controle social: “se o medo em si não
pode ser considerado como uma ciência, não há dúvida que ele seja, entretanto, uma
técnica.” 788
Este homem mecanizado, dominado pelo medo, traumatizado pela guerra,
silenciado pela indiferença a quem se dirige Camus, “segrega desumanidade” pois se
encontra aprisionado pelo fatalismo. A engrenagem da morte dele se apoderou: Ele
não fala mais a linguagem humana, apenas decanta a cifra das ideologias, e mata por
procuração: “Hoje, ninguém fala mais(salvo os que se repetem), pois o mundo nos
parece conduzido por forças cegas e surdas que não ouvem os gritos de advertência,
nem os conselhos, nem as súplicas. Alguma coisa em nós foi destruída pelo
espetáculo desses anos que viemos de passar.” 789
Camus ressalta a dissolução da singularidade humana face o apogeu da
abstração das ideologias e o esvair dos denominadores comuns que tornam a
comunicação e conseqüentemente, o reconhecimento dos homens entre si possível: “
783
A publicação segue nos dias 20, 21, 23, 26, 27, 29 e 30 de novembro de 1946. O título geral, Nem
vítimas nem carrascos, que aparece em primeira página, em grandes letras, é retomado a cada novo
artigo. Lembremos que Merleau-Ponty publica Humanismo e Terror em Les Temps Modernes entre
outubro e dezembro de 1946 e julho de 1947.
784
CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Ni victimes ni bourreaux, Combat 19 novembre 1946.
785
CAMUS, A. Essais, 291-3. Combat 08 octobre 1945. Nossa análise se encontra nas páginas
anteriores, pp. 119-123
786
CAMUS, A. Essais, 291-3. Combat 08 octobre 1945.
787
CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Ni victimes ni bourreaux, Combat 19 novembre 1946.
(Essais, 331.)(Oeuvres Complètes, p.436)
788
CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Combat 19 novembre 1946. (E, 331.)(OC, p.436).
789
CAMUS, A . Camus à Combat, p.609. Combat 19 novembre 1946. (E, 331.)(OC, p.436).
238
O que em nós foi destruído foi a eterna confiança no homem que sempre lhe fez crer
que se poderia retirar de outro homem, reações humanas, falando-lhe a linguagem da
humanidade. Nós vimos mentir, aviltar, matar, deportar, torturar, e a cada vez, não
foi possível persuadir aos que o faziam, que o fizessem, porque eles estavam seguros
de si e porque não se persuade uma abstração, a saber, o representante de uma
ideologia.” 790
É uma crise de reconhecimento do outro, a perda de um coeficiente comum da
humanidade que Camus detecta em seu tempo, e que sintetiza pelo impasse
comunicativo: “ o longo diálogo dos homens acaba de se interromper. E, entenda-se,
um homem a quem não se pode persuadir é um homem que amedronta.” 791
Como no filme de Stanley Kubrick Dr.Fantástico, que metaforiza o período
em questão, a engrenagem da morte parece ter sido acionada, e nenhuma palavra é
capaz de detê-la. Em Dr. Fantástico, um general americano transtornado pela
obsessão da guerra, envia, em código, a ordem de soltar bombas atômicas em
território soviético à um avião militar em missão no Alaska. O medo da
“interferência” do inimigo, exige que a linguagem humana seja substituída pelos
enigmas dos códigos militares: a ordem é que o rádio seja cortado e, doravante,
nenhuma comunicação é possível; o mecanismo da morte, do lado americano,
finamente concebido e irrepreensível, está definitivamente acionado. Do lado
Soviético, a tecnologia do medo impede qualquer esperança de salvação para a
humanidade. Entrementes, os soviéticos haviam criado, sob sigilo, “a bomba do fim
do mundo”, um artefato nuclear elaborado para, sem recurso do homem, detonar uma
gigantesca explosão capaz de destruir a Terra, caso o território soviético fosse
atingido por armas nucleares: o mega-armamento soviético, tal como o de seus
inimigos, não pode ser desarmado. Concebido pela técnica do medo, o mecanismo
soviético absolutamente preciso é irrefreável, foi parido para operar mesmo no
silêncio profundo das terras aniquiladas. Assim, os homens, de um lado e de outro “do
rio” se encontram, portanto, reféns da tecnologia que dispõe, e não podem mais
impedir, de modo algum, o decurso sinistro escolhido previamente por eles mesmos.
Apenas duas esperanças restam à humanidade, segundo a lógica implacável do roteiro
de Kubrick. A primeira, é a esperança que ocorra alguma falha ou interrupção no
intrincado mecanismo da morte concebido para levar à cabo de modo absolutamente
790
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
791
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
239
792
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
793
Como diz Camus, à época, numa mesa-redonda promovida por Civilization: “num plano técnico, de
mais em mais, a presença humana, o contato humano é substuído pelo instrumento mecânico. Isto é
válido também no plano social pois há um fenômeno internacional chamado de burocracia que faz que
240
em todos os escalões da relação com o Estado não se incida jamais numa pessoa humana.”(Camus, A.
Oeuvres Complètes.p.679.)
794
CAMUS, A . Camus à Combat, p.611. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
795
Lembremos que, segundo o Cahier V, este é um termo e uma exigência de Koestler. Cf. CAMUS,
A. Oeuvres Complètes. Carnets. Cahier V.p.1074.(29,octobre)
796
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
797
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437).
798
CAMUS, A . Camus à Combat, p.610. Combat 19 novembre 1946. (E, 332.)(OC, p.437). De um
lado, Camus, quebrando a “conspiração do silêncio”, sintetiza as constatações relatadas, tanto em Zero
e Infinito de Koestler, quanto em De volta da U.R.S.S de Gide, nas quais os autores, em uníssono,
denunciam à dissolução dos indivíduos frente ao projeto de futuro levado à cabo pelo totalitarismo
stalinista, como podemos entremostrar numa passagem significativa do livro deste arraigado socialista
defrontado ao espírito vigente nos processos e deportações promovidos por Moscou: “ O espírito
crítico não é mais adequado(...)O que se exige presentemente é a aceitação, o conformismo. O que se
exige, é uma aprovação de tudo que é feito na U.R.S.S; o que o regime procura obter, é que esta
aprovação seja, não resignada, mas sincera, entusiasta mesmo. E o mais impressionante, é que
conseguem. Por outro lado, a menor crítica é passível das piores penas, e de resto, logo sufocada. E
duvido que em outro país de hoje, salvo talvez na Alemanha de Hitler, o espírito seja menos livre, mais
241
Os objetivos de Camus, cruzar o fosso que a idéia - fixa das ideologias cava,
desumanizando o outro e cavando novos fossos, na medida em que as ideologias
facilmente identificam “outros” em meio a si mesmos. Evitar a normatização da
indiferença e do assassinato, recusar a configuração macabra que escolhe sua época.
Enfim, recusar peremptoriamente “um mundo no qual o assassinato é legítimo e a
vida humana considerada fútil.” 799
Camus apela para um esforço de reconhecimento mútuo, no qual a
conscientização da fragilidade humana seja o denominador comum. Sauver les corps,
artigo seguinte de Nem vítimas nem carrascos, a que tivemos ocasião de nos referir no
momento da interpretação de A Engrenagem, procura restaurar o caráter transgressor
do assassinato, restituindo-lhe seu horror e, sobretudo, negando-lhe a legitimidade e o
referendo das idéias. Para tanto, ele exprime o elã de uma ”utopia relativa”, como
comenta Jacqueline Lévi-Valensi, pois, afinal, rejeita o “mundo tal como ele é”800 : “
Em suma, gente como eu almejaria um mundo, não onde não se mate mais(não somos
tão loucos)Mas no qual a morte não seja mais legítima...” 801
É neste sentido que podemos compreender o texto de Camus como um ato em
defesa de uma concepção rigorosa, e no limite, intransigente, da responsabilidade
intelectual. Enquanto, em nome de uma moral da responsabilidade, do lado de Sartre e
Merleau-Ponty legitima-se, no período, a violência “progressiva”, Camus se insurge
contra a filosofia da legitimação do assassinato: o que se mostra inadmissível, como
dissemos, é que, em robe de chambre, os filósofos, de seus escritórios, legitimem e
incentivam o derramamento de sangue: sobretudo se é o sangue alheio que está em
questão.
O fato é que, aos olhos de Camus, os filósofos do Quartier Latin “não possuem
imaginação para a morte dos outros. 802 É um defeito de nosso século. Assim como se
ama por telefone, e que se trabalha não mais sobre a matéria, mas sobre a máquina,
se mata e se morre hoje por procuração. A ‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a
consciência perdida.” 803
Esta “assepsia de gabinete” dos editores da Temps Modernes, que pretende
sujar as mãos com sangue dos outros, certamente, contrasta com a atitude camusiana.
Enquanto do Deux Margots, do Flore ou da cour aux ErNeSt, os elegantes editores da
Temps Modernes, passado o sufoco, seus amigos incentivam tecnicamente o
assassinato lógico de seus pares revolucionários, compensando sua inação por um
furor teórico, Camus, que conhece bem mais de perto as exigências da história,
encarnadas, seja na miséria do subúrbio da África do Norte aonde nasceu e se criou,
seja nas alcovas da Resistência parisiense, esforça-se para construir uma salvaguarda
filosófica da vida. Como ele próprio admite: “Estamos aqui, em efeito, na utopia e na
contradição. Pois nós vivemos, justamente, num mundo no qual a morte é legítima, e
nós devemos mudá-lo se não o desejamos assim.” 804
Contra a utopia de que a engrenagem da violência progressiva, ou dos regimes
policiais quaisquer que eles sejam, instaurem a justiça terrestre, Camus contrasta sua
utopia modesta e, portanto, “menos onerosa” - um mundo no qual a violência não seja
mais legítima: “A morte nos re-envia, pois, à morte e nós continuaremos a viver no
terror, seja se o aceitarmos com resignação, seja se quisermos suprimi-lo com meios
que o substituirão por um outro terror.” 805 (...)É necessário concluir que, se pessoas
como nós vivem na contradição, elas não são as únicas, e aqueles que acusam de
utopia vivem quem sabe numa utopia diferente sem dúvida, porém, no fim, mais
onerosa.” 806
O imperativo ético de “salvar os corpos”, “utopia em menor grau”, é erigido
portanto contra as ideologias absolutas que, à esquerda e à direita sacrificam os
homens singulares à história, em virtude de suas diferentes concepções do progresso:
802
Esta é uma chave importante para compreender a dimensão ética da narrativa em Camus: À pobreza
da experiência de seus pares universitários, Camus contrasta a experiência da pobreza(ou da miséria da
história). Seria impossível não lembrar do Walter Benjamin do anos trinta. O projeto de descrever e
sensibilizar - ampliar a imaginação - “para a morte dos outros”, será retomado em O Estrangeiro e,
principalmente, em A Peste.
803
CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)
804
CAMUS, A . Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)
805
CAMUS, A. Camus à Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)
806
CAMUS, A . Camus à Combat, p.615. Combat 20 novembre 1946. (E, 334.)(OC, p.439.)
243
813
Camus, de fato tem por rival o terror. Contudo, “terror”, para Camus, significa, sobretudo terrorismo
de Estado. É triste notar que esta dimensão do termo “terror”foi abolida do vocabulário mundial da
atualidade do terceiro milênio. A reprogramação neurolinguística-midiática nos vela que a violência de
estado é também, e sobretudo ela, “terrorista”.
814
CAMUS, A . Camus à Combat, p.617. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.)
815
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371. Montaigne, na época, está entre as
leitura de Camus, como atesta o Cahier V, p.1081.
816
CAMUS, A . Camus à Combat, p.617. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.)
245
817
“absolutamente verdadeira”? Ora, diria Montaigne, “há regras falsas e muito
elásticas na filosofia.” 818
O editor de Combat ressalta que os preceitos íntimos dos socialistas, ou,
noutras palavras, suas concepções, partilhadas, de um mundo honesto – isto é, justo e
equilibrado – são absolutamente contraditórias com os métodos empregados pelos
comunistas de seu tempo: se os valores humanistas do socialismo são
“fundamentados” no anseio primordial de justiça e no ela de liberdade, então, a
ideologia marxista, que se pretende verdade absoluta, é uma impostura: “Os
comunistas estão fundamentados razoavelmente a utilizar a mentira e a violência, que
não querem os socialistas.” 819
Ainda com ecos da compreensão montaigniana do valor da moralidade no
exercício da justa política, Camus considera que as convicções humanistas do
socialismo não podem ser abandonadas em razão da “dialética irrefutável” da filosofia
marxista, pois, como diria o célebre diplomata de Bordeaux, “há coisas que um
homem de bem não faz nem em defesa do rei, nem em defesa da ordem e da lei, pois
«a pátria não destrói todos os deveres...»” 820
Camus apela para que os socialistas abandonem a dialética inflexível da
concepção finalista da história marxista que “ludibria a justiça” e “suprime de
antemão a liberdade” 821 , em detrimento da “tênue esperança” 822 de construir uma
sociedade “feliz e digna” 823 no qual “os homens sejam livres, numa sociedade
justa.” 824
É, afinal, uma alternativa ao “socialismo mistificado” ou à “revolução
travestida” que propõe Camus aos seus pares socialistas, estratégia que conserva a
crítica econômica do capital de Marx, desvinculando-a de suas práticas totalitaristas:
“ou admitimos que o fim justifica os meios, e , pois, que o assassinato pode ser
legitimado, ou renunciamos ao marxismo como filosofia absoluta, se limitando a
reter seu aspecto crítico, freqüentemente válido.” 825
817
CAMUS, A . Camus à Combat, p.619. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.)
818
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.370.
819
CAMUS, A . Camus à Combat, p.619. Combat 21 novembre 1946. (E, 336.)(OC, p.441.)
820
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371.
821
CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.)
822
“faible espoir”(p.620)
823
CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.)
824
CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.)
825
CAMUS, A . Camus à Combat, p.620. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.442.)
246
826
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371.
827
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371.
828
CAMUS, A . Camus à Combat, p.621. Combat 21 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
829
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
247
830
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
831
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
832
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
833
“O aparelho repressivo de um governo tem toda a força de tanques e aviões. Seriam necessários
tanques e aviões só para equilibrar.”( CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre
1946. (E, 338.)(OC, p.443.))
834
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
835
CAMUS, A . Camus à Combat, p.622. Combat 23 novembre 1946. (E, 338.)(OC, p.443.)
248
836
CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
837
CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
838
CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
839
CAMUS, A . Camus à Combat, p.623. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
840
CAMUS, A . Camus à Combat, p.623-4. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
841
CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.) O que fato
de asseverou verdadeiro para os habitantes da “cortina de ferro”.
842
CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
249
843
CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
844
CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
845
CAMUS, A . Camus à Combat. p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
846
De fato , no artigo seguinte, dia 26, Camus estende sua re-contextualização da concepção tradicional
de “revolução”, aprofundando a lógica interna que a comanda, e, assumindo uma análise da conjuntura
internacional que prenuncia a mundialização econômica, assinala seu anacronismo e suas
conseqüências históricas possivelmente deletérias.(CAMUS, A . Camus à Combat, p.625-9. Combat 26
novembre 1946. (E, 33?.)(OC, p.44?.))
847
CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 343.)(OC, p.448.)
848
CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 343.)(OC, p.448.)
849
CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
250
guerra do fuzil Chassepot e ela era localizada. Na perspectiva do marxismo, cem mil
mortos não são nada, em efeito, como pagamento pela felicidade de centanas de
milhares de pessoas. Mas a morte certa de centenas de milhares de pessoas, pela
suposta felicidade dos que restam, é um preço muito elevado.”(...) “Nós recusamos
objetivamente correr(...)um risco tão definitivo. 850
Deste ponto de vista, a utopia relativa de Camus se mostra uma alternativa
consistente mesmo conservando a premissa de eficácia do realismo político: Afinal,
do prisma de um mundo alicerçado na tecnologia nuclear, a alternativa da “utopia
relativa” de “preservar a vida”, não é apenas uma escolha acertada do ponto de vista
moral, ela é, também e sobretudo, uma consistente alternativa estratégica. À sombra
de armas atrozes, como aliás, sublinharia um grande admirador de Epaminondas, é
“útil” ser “honesto”.
“O mundo tem a escolha entre o pensamento político anacrônico e o
pensamento utópico.” 851 E adverte: “o pensamento anacrônico está nos matando.” 852
A alternativa está desvelada, cabe, segundo Camus, enfileirar-se: ou aceitar as
conseqüências lógicas das premissas da revolução, isto é, assumir a responsabilidade
pela “imobilização da história” 853 e pela guerra que se configura no horizonte desta
escolha, ou empreender “o renovação do conteúdo da palavra revolução” 854 , isto é,
engajar-se numa “utopia relativa”: construção de um mundo no qual a vida humana
não seja desprezada.
Camus, afinal, aposta na alternativa de procurar construir o presente, ao invés
de preparar o futuro: “Tratar-se-á unicamente de procurar um estilo de vida.” 855
O objetivo é, talvez, modesto, mas, sem dúvida, nobre e lúcido: “fixar um
sentido à vida de todos os dias.” 856
As expectativas revolucionárias de futuro, humanamente dispendiosas e
arriscadas, são substituídas pela utopia socialista modesta da renovação do presente
pelo estabelecimento de “normas indispensáveis a um mundo pacífico” 857 ; “um
código de justiça internacional cujo primeiro artigo seria a abolição geral da pena
850
CAMUS, A . Camus à Combat, p.628. Combat 26 novembre 1946. (E, 337.)(OC, p.442.)
851
CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
852
CAMUS, A . Camus à Combat, p.633.. Combat 27 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
853
CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
854
CAMUS, A . Camus à Combat, p.624. Combat 23 novembre 1946. (E, 339.)(OC, p.444.)
855
CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.)
856
CAMUS, A . Camus à Combat, p.643. Combat 30 novembre 1946. (E, 351)(OC, p.456.)
857
CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.)
251
858
CAMUS, A . Camus à Combat, p.638. Combat 29 novembre 1946. (E, 347)(OC, p.452.)
859
CAMUS, A . Camus à Combat, p.641. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.)
860
Notar que, para Camus, um é o diálogo, outra, a comunicação. Como veremos oportunamente, a
comunicação exige um reconhecimento “afetivo” do outro (compassion, sympathie).
861
CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.)
862
MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto. p.371.
863
CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 345)(OC, p.453.)
864
CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 350)(OC, p.455.)
865
Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 350)(OC, p.455.)
252
866
“...É o que chamamos uma revolução.”(Combat, 4 de setembro 1944, Morale et Politique. p.171.)
Merleau-Ponty, de sua parte, diz na mesma época: “A política é por essência imoral. Ela comporta
«um pacto com as potência infernais»...”(MERLEAU-PONTY, M. Humanismo e Terror. Tempo
Universitário.p.28.) Não é à toa, portanto, que André Abbou, um dos editores das obras completas de
Camus trave uma relação de antagonismo direto entre Nem vítimas nem carrascos e o Humanismo e
Terror: “ «Nem vítimas nem carrascos» é o exato oposto dos estudos de Merleau-Ponty.”( Oeuvres
Complètes, II.1279.)Lembremos que Merleau-Ponty publica Humanismo e Terror em Les Temps
Modernes também na forma de artigos, entre outubro e dezembro de 1946 e julho de 1947.
867
CAMUS, A . Camus à Combat, p.625. Combat 23 novembre 1946. (E, 341.)(OC, p.446.)Notar
também Camus à Combat, p.633. Combat 27 novembre 1946. (E, 346.)(OC, p.451.)
868
SARTRE, J-P. L´Engrenage. p, 90.
869
CAMUS, A. Oeuvres Complètes. Cahier V. p.1090.
253
870
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165
871
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165.
872
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165.
873
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165.
874
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, pp.165-6.
875
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165.
876
CAMUS, A. Le mythe de Sysiphe. OC, p.165.
877
Veremos no capítulo seguinte que a dimensão narrativa da obra de Camus encarna este objetivo
expresso de “dar rosto” ao homem niilizado pela indiferença das burocracias de estado, reavivando
assim a pouca imaginação dos intelectuais para “a morte dos outros”.
254
878
Nós fomos obrigados a vos imitar para não morrer.” CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC,
p. 242.
879
CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC, p. 223. “é muito(...)avançar em direção à tortura e à
morte, quando se têm completa certeza que o ódio e a violência são coisas vãs por si mesmas(...)é
muito bater-se(...)desprezando à guerra.” (LA, 222)
880
CAMUS, A. Lettres à um ami allemand. OC, p. 240. “Eu, recusando este desespero e este mundo
torturado, queria somente que os homens, reencontrem sua solidariedade para entrar em luta contra
seu destino revoltante.” (p. 240)
881
LA, 240.
882
Notar Combat clandestin: mars nº55 1944. p. 121.
255
ela (a depuração) seja rápida e bem feita.” 883 Camus não acredita que a re-construção
de uma sociedade dilacerada por guerras intestinas possa prosseguir sem o acerto de
contas com a memória: o esquecimento, afinal, é um dos ingredientes preferenciais do
niilismo contemporâneo, calcado na indiferença de fatos e valores. Perdoar, neste
sentido, significaria compactuar. Porém, o desenvolvimento da polêmica com
Mauriac revela que o compromisso de Camus com a memória se defronta com as
vicissitudes das barganhas morais da política cotidiana e teme ser dissolvido pela
mecânica dos tribunais da depuração. Após a desilusão de substituir a política pela
moral e de assistir pessoalmente aos tribunais, Camus ressalta o fracasso da
depuração, e conclui pela impossiblidade de erigir uma condenação à pena de morte:
“Em todo culpado, há uma parte inocente. O que torna revoltante toda condenação
absoluta.” 884 Filiando-se a um pessimismo político comum à Mauriac, Camus se
recusa, finalmente, a admitir à força como substituição à justiça.
Assim, de fato, Camus evolui em seu engajamento histórico-filosófico. Porém,
notemos, ele não evolui senão em direção às origens.
Ora, quando Camus universaliza sua condenação aos tribunais “políticos” e ao
“terrorismo” de Estado em Nem Vítimas nem carrasco, ele se re-inscreve no âmbito
de um engajamento face ao absurdo já delineado em textos anteriores.
Se equivoca, portanto, Raymond Aronson quando atribui uma reviravolta à
postura de Camus confrontado com o engajamento prudente de Mauriac. Guérin e
Weyemberg tampouco reforçam este solo ético que, afinal, O Mito de Sísifo e as
Lettres à um ami allemand reivindicam.
De certo há, de fato um aprendizado maior com a polêmica com Mauriac: com
o aprofundamento do díalogo crente - incrédulo Camus compreende a necessidade de
formular um engajamento “ecumênico” pela salvaguarda da vida humana. Como dirá
posteriormente, se “o absoluto é um assunto de cada um e não de todos” 885 ,em
contrapartida, o engajamento pela salvaguarda da vida “é um trabalho de todos” 886 no
qual “todos os homens de boa vontade poderão se re-encontrar.” 887 Veremos
oportunamente que a adesão do Padre Panneloux à brigada sanitária n´A Peste
simbolizará este universalismo reivindicado pelo engajamento camusiano; dirá Rieux
883
Combat 18 octobre 1944. Segundo Lévi-Valensi este texto muito provavelmente é exclusivamente
de Camus.
884
CAMUS, A. Correspondance Jean Grénier-Camus.(p.141) Carta de 21 de janeiro de 1948.
885
CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.744.
886
CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.745.
887
CAMUS, A. La crise de l´homme. OC,II, p.744.
256
888
CAMUS,A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
889
MS, 166.
257
existencialista fizera. Nós saltamos este passo com ele, conscientes de que o
moralismo era a última cidadela do idealismo burguês(...) em Combat, Camus
procurava um «juste milieu».” 893
***
893
BEAUVOIR, S. La Force des Choses. pp.31-151.
259
*
Na mesa-redonda promovida pela revista Civilization, à pergunta “ o que pode
e deve der salvo ?” 895 Camus responde por intermédio de uma longa elocução bastante
clara e organizada, de começo, reformulando e precisando à questão: “«Qual é o
destino do indivíduo?» Nós todos sabemos, todos nós pressentimos que ele vai ser
morto(...)Se nós queremos salvá-lo, então duas questões se impõem. Primeiramente:
quais são os princípios de fraqueza que no indivíduo de hoje, lhe conduzem a ser
sacrificado mais cedo ou mais tarde? E, em segundo, quais são os fatores exteriores,
históricos e ideológicos que ameaçam o indivíduo e o sacrificarão mais cedo ou mais
tarde?” 896
Para Camus, os princípios de fraqueza do homem contemporâneos são o
“individualismo anárquico” que está “ultrapassado pela história” e que “nós
897
carregamos em nós mesmos” e a inclinação à solidão - ao esquecimento da
existência dos outros - noutras palavras, a tentação da indiferença: “estou
profundamente convencido de que o homem não está só.” 898 Para Camus, é, afinal, de
começo, a própria psicologia do homem contemporâneo, fundada no individualismo e
na indiferença, que lhe conduz “a ser sacrificado mais cedo ou mais tarde.” 899
895
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678. A pergunta é lançada em meio a uma discussão da qual
participam também Jean Wahl e Maurice de Gandillac, no momento em que Georges Friedmann
admite a existência de um denominador comum entre a América e a U.R.S.S - o advento da
“«civilização técnica»”, que impõe uma clivagem absoluta entre “«meio urbano» e «meio natural»”,
conduzindo à “mecanização da vida” e produzindo “alienação social” e, ademais, arriscando dissolver
por completo a singularidade dos indivíduos. Friedmann, no entanto, pondera que “«um Estado
socialista está bem melhor armado que um Estado capitalista para resolver estes problemas»”,
acrescentando “«que desde o século XIX, o estatismo crescente dos estados democráticos ameaça a
liberdade dos indivíduos. Trata-se hoje« não de lamentar o passado, mas de ver como ajudar o
florescimento do indivíduo nas civilizações que hoje se preparam...»”(OC, II, pp.677-8)
896
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678.
897
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678.
898
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678.
899
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 678.
261
900
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes,II. p. 687.
901
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
902
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
903
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
904
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
905
Quando esta experiência de interlocução é mediada pela cifra das ideologias, mesmo havendo
diálogo, não há comunicação e o que impera é o silêncio amedrontador.
262
declara: “Vocês sabem, mais e mais a política interfere em suas reações e em suas
maneiras de considerar o mundo.” 906
Arriscando uma analogia filosófica ilustrativa, se é, afinal, “o silêncio eterno
dos espaços infinitos” 907 que amedronta o pós-copernicano Pascal, é “o silêncio
eterno do diálogo político”, refratário, que apavora o filósofo testemunha de
Auschwitz e de Hiroshima 908 : “amanhã será o monólogo do vencedor e o silêncio do
escravo.” 909
Outra característica que ameaça o homem de sua época, assinala Camus, é “a
vontade de potência” 910 .
Segundo o diagnóstico de Camus na mesa-redonda de Civilization, este
conjunto de características - o silêncio refratário produzido pelas ideologias, a
abstração e a alienação produzida pelas burocracias de Estado, o esquecimento da
dimensão concreta do homem e multifacetada da vida e a vontade de potência
disseminada pelas concepções de política e de história – configuram a doença de uma
época, que se manifesta no sintoma contagioso e paralisante do “terror” 911 .
Paralisado pela alquimia do terror 912 , o mundo contemporâneo se conforma ao
fatalismo apregoado pelos senhores da guerra, esquecendo em seu presente vazio
dominado pela idéia de futuro, valores norteadores anteriores às expectativas de
felicidade e de sucesso sugestionadas pelas ideologias: “na medida em que o homem
crê no progresso inevitável, na medida em que o homem crê numa lógica histórica
inevitável, crê por exemplo, que, da sociedade feudal deve fatalmente suceder à
anarquia primeira, que as nações devem sair deste estágio feudal para o
internacionalismo, ou se preferem, a Sociedade das Nações, e, em seguida, para a
sociedade sem classes, e, se baseando sobre este raciocínio absoluto, estabelece estes
objetivos históricos que se trata de atingir acima dos valores(...)Se, pois, nos
906
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
907
“Le silence éternel de ces espaces infinis n´effraie.”(Pascal, B. Pensées.L.201-Br.206)
908
Talvez seja interessante ressaltar que na origem destas duas “apreciações” estaria a conscientização
lúcida da fragilidade humana. “Entre nós e o inferno, ou o céu,há apenas a vida, a coisa mais frágil do
mundo(La chose du monde la plus fragile).”(Pascal, B. Pensées. (L.152-Br.213))
909
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.
910
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679. “É por isso que os homens tem razão de ter medo, pois
num mundo como esse é sempre por acaso ou por uma boa vontade arbitrária que sua vida ou de seus
filhos é poupada.” CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.
911
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679-80. “...dos
912
“Me parece incontestável que vivemos num mundo do terror, e com a sensação mais ou menos
confusa, mais ou menos precisa do terror.” CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679.
263
baseamos no racionalismo absoluto ou na idéia de progresso, qual quer que ela seja,
nós admitimos o princípio de que os fins justificam os meios.” 913
As conseqüências lógicas desta submissão incondicional e fatalista à
concepção materialista da história, que reduz a vida ao progresso, segundo Camus,
são palpáveis nos crimes praticados, legitimados ou esquecidos em nome da
racionalidade política contemporânea: “se é inevitável que devemos chegar a esta
sociedade sem classes, não iremos hesitar na escolha dos meios, e a mentira, a
violência, o assassinato do homem, podem ser lamentáveis no costume das pessoas,
mas, em todo caso, não devem ser recusados, se, ao que se deve chegar, é uma coisa
inevitável, histórica e desejável.” 914 Fatalismo maquiavélico idêntico, fundamenta o
cotidiano tautológico da sociedade (capitalista) da indiferença, consolidada numa
escatologia do sucesso: “Todo mundo hoje quer sucesso, pelo dinheiro ou pelo jogo.
Todo mundo quer triunfar(...)Tem-se razão quando se consegue. E quanto mais se
consegue, mais se tem razão. No limite é a justificação do assassinato.” 915
Para Camus, o problema que infesta todos os domínios da ação incluindo aí a
tentação do fatalismo que circunda a contemporaneidade, é o de como se opor aos
refinados instrumentos coercitivos e deterministas da história, na absoluta “ausência
de valores”: “não possuímos nenhum Valor fundamentado a opor” às ideologias “e
se não temos nenhum valor – e me limito a constatar um estado de fatos – estamos no
niilismo.” 916 Camus explicita a dimensão histórica do eclipse dos valores humanos,
intimamente ligado, a seu ver, ao conformismo e a indiferença: “as pessoas que não
acreditavam em nada durante a guerra, não tinham nada a dizer à Hitler porque sob
este aspecto, o niilismo absoluto tem o mesmo efeito que o racionalismo absoluto.” 917
Neste ponto, a elocução de Camus, procurando sintetizar as forças que
dilaceram o homem contemporâneo, deixa o terreno do diagnóstico da civilização e
procura alçar uma dimensão “prescritiva” 918 , ainda que modesta para a época: “Se
913
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 679-80. “...dos valores que estamos habituados por
educação ou pré-julgamentos considerados como válidos.”
914
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680.
915
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes,II. p. 687.
916
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680.
917
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680.
918
O Dicionário Houaiss concede uma definição do verbete “prescrição” exata do sentido que
pretendemos atribuir à dimensão “edificante” do pensamento de Camus: “5– conjunto das medidas
não-cirúrgicas(medicamentos, dietas, outros cuidados)determinados pelo médico para o tratamento
dos doentes.”(HOUAISS, A.Dicionário da língua portuguesa). À doutrina(intervenção cirúrgica),
Camus oporia sua prescrição(isenta de dogmatismos, menos periclitante do ponto de vista do doente).
264
pensamos que, de uma parte, o indivíduo tem seus erros, de outra, que ele está diante
de fenômenos coercitivos, nós devemos então nos dizer que é necessário se opor tanto
quanto possível a este destino.” 919
É neste panorama no qual coabitam o declínio do homem e o eclipse dos
valores que, afinal, Camus inscreve seu engajamento alternativo, a necessidade de
estabelecer “as condições necessárias de um pensamento modesto” 920 : “o
empreendimento do pensamento, da reconstrução, da conciliação dos aspectos
contraditórios, não pode se fazer numa atmosfera de medo.” 921
Camus almeja criar a possibilidade de um pensamento interrogante, capaz de
se construir à medida que constrói o presente, ao invés de suprimi-lo na esperança de
futuro. Ao invés de buscar construir uma verdade pré-deteminada, tratar-se-ia de
construir as condições da própria busca: Para tanto seria preciso fomentar, não a
uniformização das expectativas de futuro, mas a liberdade da experimentação, da
criatividade e do questionamento, forças de re-construção de uma realidade presente
permeada por aspectos contraditórios: “As pessoas que não possuem Verdade
absoluta não querem matar ninguém e pedem que não matem ninguém. As pessoas
almejam procura a verdade e para tanto precisam de certas condições históricas que
permitam esta procura.” 922
Assim segundo a prescrição de Camus, como paliativo para o “terror”
generalizado do “outro” seria preciso desmantelar, primeiramente, o terrorismo de
estado, “para talvez aliviar as tensões” 923 . Antes de tudo seria necessário, afinal,
“salvar os corpos para que o futuro seja possível” 924 , o que significaria “exigir a
supressão da pena de morte(...)Se isto puder ser feito(...)é o único procedimento que
pode hoje salvar o indivíduo.” 925
Moralmente intransigente, o “pensamento modesto” de Camus se contrapõe
diretamente à “vontade de potência” da política em vigor - mesmo em sua roupagem
Contudo o termo empregado neste texto, veremos oportunamente, é mais contundentemente moralista,
prédication.
919
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 680. Vale antecipar: eis uma chave de leitura valiosa para O
Estrangeiro.
920
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
921
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. Diga-se de passagem: Eis uma boa definição do
pensamento segundo Camus – pensamento dos limites como veremos oportunamente - delineado pela
premissa da modéstia: reconstrução, conciliação dos aspectos contraditórios.
922
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
923
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
924
CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux.
925
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
265
926
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681. Não é à toa que na mesa-redonda “uma longa
intervenção de Friedmmann critique o pessimismo político de Camus” preferindo fomentar uma
esperança teórica para o dilema entre moral e política: “A dialética de Hegel que tem por eixo «a ação
recíproca da causa e do efeito» está no coração do problema «e permite encontrar como realizar
concretamente esta interação do esforço político e moral.»”(CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p.
685.) Notemos que, apesar do sociólogo Georges Friedmann, normaliano philosophe da promoção de
1921, poder ser considerado um debatedor esclarecido, visto que se dedica ao estudo das relações do
homem com a técnica - sua tese universitária, de 1946, O Problema do maquinismo industrial é
precursora da “sociologia do trabalho - vê-se, contudo, que estando profundamente impregnado da
linguagem hegeliana - marxista do racionalismo da época e à U.R.S.S (que visitou muitas vezes entre
1932 e 1936), ainda paira no diálogo com Camus, o problema da incomunicabilidade causada pelo
jargão cifrado das ideologias: “Não há mais diálogo possível num mundo aonde todos são
surdos”(CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.) De um ponto de vista
profundo a divergência intelectual entre Camus e Friedmann e Merleau-Ponty, pode ser considerada
ainda mais vasta. Ora, a dupla de ex-normalianos é cultivada nos racionalismos de Spinoza e Leibniz e,
em busca de relaxamento à luz dos parcos feixes de sol sob as árvores da cour aux Ernest, apreciavam
certamente a leitura de um bom Descartes. De algum modo, as grandes esperanças do racionalismo
metafísico ocidental ressurgem em suas abordagens da realidade, que, por intermédio ou não do
marxismo, procuram re-estabelecer uma racionalidade absoluta para a história. Como diria Kuhn, em
As Estruturas das Revoluções Científicas, a “matriz disciplinar” de Camus é oposta: Pascal,
Montaigne, Epicuro, as praias de Argel e o panteon da deusa nêmesis. No caso de Camus, a filosofia
procura ilustrar um estilo de vida condizente com a irracionalidade intrínseca da história: É neste
sentido que procuraremos oportunamente salientar a importância de refazer a matriz disciplinar
filosófica para uma adequada compreensão ética da atualidade. Renovar as fontes de abordagem crítica,
revigorar autores tais que Pascal e Montaigne, por exemplo, nos permite pensar mais apropriadamente,
afinal, um mundo (des)estruturado pela irracionalidade e pela paixão, como diagnosticou Pierre Hansen
recentemente numa conferência na tradicional École Normale da rue d´Ulm - Une géopolitique des
passions, novembro de 2006.(ENS, Diffusion des savoirs) É bastante significativo que num recente
colóquio internacional dedicado aos pensamentos de Pascal e de Spinoza, final de 2006 no Cológio
Internacional de Filosofia de Paris (Rue Descartes), o eixo das discussões, notadamente da parte de
Anthony Mackenna e André Comte-Sponville, tenha sido o grande apelo atual do pensamento de
Pascal e a caducidade de racionalismos totalizantes como o de Spinoza. Mesmo diagnóstico é o de
Pierre Bourdieu que, com seu Meditações Pascalianas, lega, em seu última obra, a necessidade de
abandonar as bitolas do sistema e da ambição totalizante para a sobrevivência da sociologia, se
esforçando em notar nas críticas pascalianas ao racionalismo cartesiano uma alternativa
“malograda”para a história da cultura. Camus, acreditamos, nos permite retomar este elo perdido com
as antropologias da lucidez. Sobre Friedmann notar o recente GREMION-LOISON, P-F. Georges
Friedmann. Un sociologue dans le siècle,1902.1977. Paris, 2004.
927
BEAUVOIR, S. La force des choses.p.152
266
928
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
929
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
930
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
931
Camus execra àqueles “que não tem vontade de pensar muito tempo na miséria humana, preferindo
falar de maneira muito geral e dizer que esta crise do homem é de todos os tempos...” (CAMUS, A.
Nous autres meurtrières. Oeuvres Complètes,II. p. 686.)
932
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 686.
267
933
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.
934
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.
935
BEAUVOIR, S. La Force des Choses. p.151.
936
CAMUS, A. Oeuvres Complètes,II. p. 682.
937
CAMUS, A Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.
938
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 686.
939
“prédication” in CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682.
940
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682. Vale talvez antecipar uma chave de leitura para O
Estrangeiro colaborando na tese da intertextualidade ética entre a dimensão literária e política do
engajamento de Camus: o indivíduo se enconta, afinal, como estrangeiro num mundo elaborado para a
morte. Como já diagnosticara O Mito de Sísifo notando a perda do sentido da existência, a sociedade
contemporânea refuga e impulsiona o homem em direção à morte, pelos mecanismos, mais e menos
sofisticados da indiferença, sendo que a filosofia é vista como a dimensão mais sofisticada deste
mecanismo...
268
941
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. Carnets. Cahier V.p.1073-4.
942
CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux.
943
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
944
PASCAL, B. Pensées. L.233-Br.418
269
legais; e julgara perverso quem não poupasse o amigo porventura militando nas
fileiras do inimigo. Rica era sua alma, pois nas mais violentas e rudes ações humanas
permanecia bom e generoso e isso nas condições mais delicadas previstas na
filosofia 945 (...)Aprendamos pois com tão nobre modelo...” 946 Em Pascal, tomando por
paradigma os Três Discursos sobre a Condição dos Grandes, a “edificação” pela
exemplaridade moral é conclusão de uma articulação para demolir a fundamentação
política e a “ordem histórica” visto que esfacela o direito divino, natural e “de mérito”
dos Reis: “Não evitareis vos perder, mas ao menos perderei-vos como homem
honesto. Há pessoas que se danam tão neciamente, pela avareza, pela brutalidade,
pelo deboche, pela violência, pelo furor! O meio que vos ofereço é sem dúvida mais
honesto.” 947 Em Camus, o engajamento pelos “valores exemplares” 948 é também
oriundo de um diagnóstico fatal, um último recurso contra a engrenagem da violência
que se alastra: “Nós estamos no limiar, será a morte ou uma nova civilização; e nossa
geração, quero dizer, àqueles que estão vivos hoje, é que devem prepará-la.” 949
Se Montaigne contrapõe ao vasto elenco de hábitos pútridos dos governantes o
paradigma moral do bem sucedido general Epaminondas - “...senhor tão indiscutível
da guerra que a forçava a inclinar-se ante sua bondade” 950 - Camus opõe ao monstro
frio dos Estados calculado pela álgebra do realismo político o exemplo da
“comunidade Barbu” 951 , fundada por Michel Barbu que, “cansado de esperar cinco
geraçãos pelo triunfo da história” 952 , em 1944, cede seus direitos de propriedade aos
945
“...Essa coragem tão grande, essa tenacidade e resistência à dor, à morte, à pobreza, foi por arte
ou temperamento que as alcançou?Coberto de sangue, obstinado sob os golpes, enfrenta e vence uma
nação que ninguém vencera; e, em plena batalha, evita ferir o amigo! Senhor tão indiscutível da
guerra, que a forçava à inclinar-se ante sua bondade, e isso em meio aos maiores horrores, na
excitação dos combates, e do estrondo das armas!É milagroso introduzir em ações dessa ordem uma
imagem da justiça e somente pelo rigor de seus princípios pôde Epaminondas associá-las à doçura e à
prática dos bons costumes, da tolerância e da mais pura inocência.” (MONTAIGNE, M. Ensaios, III-
Do útil e do honesto. p.371)
946
“...a pensar que, mesmo contra o inimigo, nem tudo é permitido.” (MONTAIGNE, M. Ensaios, III-
Do útil e do honesto. p.371)
947
PASCAL, B. Les Trois discours sur la condition des grands. Intégrale.p.368.
948
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682.
949
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682.
950
MONTAIGNE, M. Ensaios, III- Do útil e do honesto. p.371.
951
É bastante interessante o comentário de Du Teil que devota à communauté Barbu – depois chamada
de communauté Boimondau - o mesmo respeito que Camus: DU TEIL, R. Communauté de travail,
l´éxperience révolutionnaire de Marcel Barbu, Paris, PUF, 1949. No Homem Revoltado, o autor se
aterá ao exemplo do engajamento sindical como forma de luta pela construção da justiça social. De um
ponto de vista histórico Camus refere-se ao estoicismo grego como um movimento de re-estruturação
exemplar: “Houve um movimento deste gênero no fim do mundo grego, quando tudo ia mal, que se
chamava socedade estóica, internacional tanto que ela podia ser na época e que preparava um giro na
civilização...”(CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 682.)
952
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 685.
270
953
Num trecho dos rascunhos de Nem vítimas nem carrascos Camus refere-se longamente sobre a
comunidade Barbu: “o tipo de sociedade contratual que repensa nossa sociedade até no modo de
produção encontra, em efeito, uma excelente ilustração tal com a concebeu e realizou Marcel Barbu ,
em Valença. Ela comporta 150 homens de todos os credos (marxistas, cristãos, sem partido) que se
declaram felizes...”(CAMUS, A. Camus à Combat.p. 637.)
954
“...a liberação definitiva depende da reforma internacional. Mas experiências como a de Marcel
Barbu, que cria um tipo de relação humana saído da livre decisão dos homens, respeituoso das
diferenças e da liberdade nos mostra que, aguardando, nos é possível realizar algumas conquistas
provisórias sobre a desordem e ódio universais.” (CAMUS, A. Camus à Combat.pp. 637-8.)
955
CAMUS, A. Camus à Combat.p. 637.
956
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
957
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 681.
958
“...é bem evidente que não se trataria de edificar uma nova ideologia. Se trataria somente de
procurar um estilo de vida.”(CAMUS, A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.638)
271
dos governos, comunidades de reflexão que iniciarão o diálogo através das nações e
que afirmarão pelas suas vidas e seus discursos que este mundo deve parar de ser dos
policiais, dos soldados e do dinheiro para tornar-se o mundo do homem e da mulher,
do trabalho fecundo e do lazer refletido.” 959
Para Camus, é este engajamento alternativo por um novo estilo de vida que é
960
preciso ser “fundado” e “ilustrado.” Como já prenunciava O Mito de Sísifo - “a
grandeza mudou de campo.” 961 O “conquistador” lúcido, no horizonte terrível que se
delineia, procurará conquistar o que interessa. O único engajamento lúcido é o que se
dispõe a tentar preservar a vida: “Todas as nossas disputas são vãs. Uma única coisa
importa que é a paz.” 962
É como se Camus opusesse aos seus pares filósofos da mesa-redonda de
Civilization de 1946, o esforço que Pascal contrapunha aos Grandes em sua
conferência em Port-Royal no primeiro trimestre de 1660, “Espelho de Príncipe”
dedicado ao filho do Duque de Luynes: “...me basta vos desviar das vias brutais nas
quais vejo muitas pessoas de vossa condição se deixarem levar por não conhecer o
estado verdadeiro dessa condição.” 963
Não será desinteressante nos determos, ainda que rapidamente, no relato da
réplica de Merleau-Ponty pela qual podemos notar a incompreensão sofrida pelo
pensamento de Camus confrontada com uma audiência cultivada e afinada e com as
esperanças do Grande Racionalismo: “Merleau-Ponty se pergunta, se Camus, de
quem ele aprecia a modéstia das proposições, traz realmente uma solução ou se ele
sobretudo recai, recomendando uma atitude apolítica, na guerra do individualismo
que ele pretende banir(...)«Se não procuramos encontrar uma forma de Estado
organizado, resvalamos na pura moral» 964
Camus responde de maneira bastante lacônica, por intermédio do que
podemos notar que, embora modesto, o engajamento de Camus se mostra, no entanto,
inflexível: “Queremos ou não salvar o indivíduo?Se queremos, na minha opinião,
959
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 746.
960
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. Carnets. Cahier V.p.1073-4.
961
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.166.
962
CAMUS, A. Nous autres meurtriers. Oeuvres Complètes, II. p. 687.
963
PASCAL, B. Les Trois discours sur la condition des grands. Troisième Discours. Intégrale.p.368.
964
Merleau-Ponty retoma a recriminação que, segundo Beauvoir, Sartre faz de Camus: “Um dia Sartre
o havia recriminado (a Camus) esta confusão: “«Combat faz muita moral e não faz política o
bastante».”(BEAUVOIR, S. La force de choses.p.152.)
272
965
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683.
966
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683.
967
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II. p. 683.
968
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
273
969
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
970
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
971
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
972
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744. À luz do desfecho da polêmica
com Mauriac – ambos se acordam sobre o imperativo de salvaguardar à vida - e da exaltação da
“comunidade Barbu” – na qual se declaram felizes pessoas de todos os credos (cristãos, agnósticos,
marxistas) esta passagem entremostra sua força: trata-se da reivindicação “ecumênica” do engajamento
camusiano. Se “o absoluto é um assunto de cada um e não de todos”, em contrapartida, o
engajamento pela salvaguarda da vida “é um trabalho de todos” no qual “todos os homens de boa
vontade poderão se re-encontrar.” Como já mencionamos, oportunamente notaremos que a adesão do
Padre Panneloux à brigada sanitária n´A Peste encarnará este universalismo almejado pelo engajamento
do nosso filósofo: Sublinhemos a relevância do esforço de procurar estabelecer o denomindor comum
da preservação da vida entre horizontes metafísicos incompatíveis, ou mesmo, antagônicos. Camus, de
fato, preconiza que a incomunicabilidade entre ideologias é um problema que antecipa um dilema ainda
mais amplo: a incomunicabilidade e o conflito entre civilizações. Jacqueline Lévi-Válensi nota “a
lucidez premonitória” de Camus nesta passagem de Nem vítimas, nem carrascos: “O choque dos
impérios está em vias de tornar-se secundário em relação ao choque das civilizações(...)Em dez anos,
em cinquenta anos, será a proeminência da civilização ocidental que será questionada.”(Ni Victimes
ni bourreaux. - Le monde va vite. Camus à Combat, 27 novembre 1946, p.631.)
274
estratégia ética maior da filosofia camusiana como podemos notar pela abertura desta
conferência que pretende sintetizar o compromisso ético-político-filosófico
camusiano: “1)Num imóvel da Gestapo de uma capital Européia, depois de uma noite
de interrogatório, dois inculpados ainda sangrando se trovam algemados e a
zeladora do imóvel[faz cuidadosamente a limpeza], o coração em paz visto que ela
sem dúvida tomou seu café da manhã. À recriminação de um dos torturados, ela
responde com indignação, com uma frase que, traduzida em francês, seria algo
como: «não me ocupo do que fazem os meus locatários.»2)Em Lyon, um dos meus
camaradas foi retirado de sua cela para um terceiro interrogatório. Como lhes
haviam dilacerado as orelhas, por ocasião de um interrogatório precedente, ele
portava uma bandagem em volta da cabeça. O oficial alemão que o conduziu é o
mesmo que já assistiu às primeiras sessões e, não obstante, é ele que lhe pergunta
com uma nuance de afeição e de solicitude na voz: «Então, como vão as
orelhas?» 973 3)Na Grécia(...)um oficial Alemão se prepara para fuzilar três irmãos
que tomara como reféns. A velha mãe se joga a seus pés e ele consente poupar-lhe
apenas um, mas na condição que ela própria designe qual. Como ela não consegue se
decidir, ele lhes prepara. Ela escolhe o mais velho, visto que ele se encarregava da
família, mas de um só golpe, ela condenou os outros dois como queria o oficial
alemão.4)Um grupo de mulheres deportadas, por meio dos quais se encontra uma
camarada nossa, é repatriada na França pela Suíça. Logo na entrada do território
suíço, elas percebem um enterro civil. E este espetáculo único lhes faz cair numa
gargalhada histérica: « É assim que tratam os mortos aqui», se dizem.” 974
Como diz Camus em O Mito de Sísifo, “não são morais que as imagens
propõem e elas não engajam julgamentos: elas são desenhos.” 975 As imagens
delineiam os dramas humanos, a atmosfera dos tempos, e como no caso da
conferência A Crise do Homem permitem sintetizar e partilhar os sintomas das
doenças contemporâneas: “Existe uma Crise do Homem, visto que a morte ou a
tortura de um ser, pode ser, em nosso mundo, examinada com um sentimento de
indiferença ou de interesse amical ou de experimentação , ou de simples
passividade(...)visto que o extermínio de um ser pode ser visto de outra maneira que
não a do horror e a do escândalo que devia suscitar(...)É fácil demais acusar somente
973
Notemos que no estágio atual do “terror” é toda a política internacional que se rege por esta
dubiedade, incluindo aí os organismos humanitários.
974
CAMUS, A. La Crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 738-9.
975
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 169.
275
Hitler e dizer que estando a besta morta o veneno desapareceu. Pois sabemos bem
que o veneno não desapareceu, que nós o guardamos nos nossos próprios corações e
isto se sente na maneira pela qual, as nações, os partidos e os indivíduos, ainda se
olham com cólera...” 976
A opção pela imagem remonta ao “romancistas filósofos”,“Sade, Melville,
Stendhal, Dostoievsky, Proust, Malraux, Kafka, para só citar alguns” 977 , e, de nossa
parte ajuntemos, deve muito ao universo da mitologia e da tragédia gregas, aos
moralistes du XVIIéme siècle - Pascal, La Bruyère, La Rochefaucault – e a Nietzsche.
Contra o caráter abstrato das doutrinas, Camus contrasta a dimensão ética interrogante
da imagem: “todos os problemas recuperam sua lâmina. A evidência abstrata se
retira diante do lirismo das formas e das cores. Os conflitos espirituais se
encarnam(incarnent)e voltam a encontrar seu abrigo miserável e magnífico no
coração do homem.” 978
Sublinhemos que assim como acontecia na ilustração das condutas absurdas
que visualizamos n O Mito de Sísifo – que figuram somente estilos de vida - a
expressão narrativa é expressão de um estilo filosófico norteado pela noções de limite
e de inacabamento intrínseco, em contraste com o absolutismo das filosofias
totalizantes de seu tempo: "a escolha(...)de escrever por imagens mais do que por
raciocínios é revelador de um certo pensamento, persuadido da inutilidade de todo
princípio de explicação e convencido da mensagem educadora(enseignant)da
aparência sensível(...)Ela é a conclusão de uma filosofia freqüentemente inconfessa,
sua ilustração e seu coroamento. Mas ela não é completa senão pelos subentendidos
desta filosofia.” 979
Não é à toa que, desde os cadernos íntimos de janeiro de 1936, Camus já
exprima a necessidade de recorrer à imagem para captar, com a acuidade exigida por
seu paradigma de filosofia(ancorado na tradição da anatomia moral de inspiração
moraliste), os dramas concretos da existência: “Não se pensa senão por imagens. Se
você quer ser filósofo, escreva romances.” 980
Generalizando este pressuposto filosófico da imagem, consideramos toda sua
obra literária como constituinte do projeto filosófico camusiano: uma passagem de
976
CAMUS, A. La Crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 739.
977
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 178.
978
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. P.137.
979
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. Essais. p. 179.
980
CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Cahier I, janvier 1936. OC, II.p.800.
276
981
CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Cahier III, 21février 1941. OC, II. p.920. Cremos poder
considerar a peça Le Malentendu, esboçada na primavera de 1939(OC, I.p.LXXVII), escrita
definitivamente durante a ocupação em 1943, e encenada em 1944, um “quarto pólo” do absurdo.
277
982
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457.
983
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457.
984
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.457-8.
985
CLAIR, J. Mélancolie – génie et folie en Occident. Paris. Gallimard, 2005. Em exposição ocorrida
nas Galeries nationales du Grand Palais, Paris(10 octobre 2005-16 janvier 2006).- brilhantemente
sintetizada em publicação da Gallimard, encontramos um percurso da antiguidade à arte
contemporânea dedicado às figuras da melancolia.
986
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. p.29(Folio Gallimard)
278
987
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459.
988
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459.
989
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459.
990
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.459.
279
991
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.460 e 477.
992
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461.
993
MONTAIGNE, M . Ensaios. III.p.371.
994
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461.
995
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.461.
280
1002
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.466.
1003
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.466.
1004
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468.
1005
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468.
1006
Sympathie. Do grego Syn+pathos: sofrer, sentir conjuntamente; sentir com o outro. Compassion:
do latin compassione. Possui sentido análogo; partilhar a paixão, qualquer que ela seja. Os termos
possuem uma simetria bipolar (o primeiro versa sobre a partilha de sentimentos ligados ao
reconhecimento efetivo do outro, o segundo, da partilha do sofrimento). Estes termos nos remetem ao
reconhecimento afetivo da alteridade e ressurgirão, veremos, n´A Peste e n´O Homem Revoltado,
como termos-chave no “pensamento mediterrâneo”, engajemento camusiano pelo reconhecimento
mútuo, pela salvaguarda daquilo que no homem não pertence à história.
282
minha intenção não era aborrecê-la. Pareceu-me, simplesmente, que nós não éramos
assim tão estranhos(étrangers)um para o outro.” 1007
Mas é com a chegada da mãe à recepção que o risco do coração parece mais
evidente às engrenagens da aniquilação.
Jan procura encontrar ocasião para se desvelar diante da mãe, buscando o
itinerário da reminiscência e do sentimento, procurando aludir em suas considerações
sobre a desesperança e sobre o esquecimento da anciã, às suas próprias faltas como
filho: [Jan]“Tenho um coração fiel...É compreensível,[hesitando um momento]se
tivesse tido um filho que a amparasse, talvez não tivesse se esquecido dele” 1008
Quanto à mãe, alquebrada pelo conformismo, ela ensaia com seu habitual cansaço,
um semi-despertar letárgico: [Mãe]: “...Um filho! Oh, mas eu já sou muito velha. As
velhas desaprendem até mesmo a amar os filhos. O coração gasta-se...senhor.” 1009
Martha, em muitos sentidos discípula de Mme de Merteuil1010 , detecta, talvez
instintivamente, que a linguagem do coração pouco à pouco se infiltra na
conversação, ameaçando minar a pureza retilínea de sua álgebra da felicidade. Esta:
[Martha]: “O coração não tem nada a fazer aqui(...)Se sois rico, isto é bom. Mas não
fale mais do seu coração.” 1011
Ela se interpõe entre mãe e filho que ameaçam, pela permissividade das
palavras, re-encontrar a dimensão humana que os uniria: [Martha, se colocando entre
eles decididamente]: “Um filho que entrasse aqui encontraria o que qualquer cliente
pode estar seguro de encontrar: uma indiferença indulgente(bienveillante).Todos os
homens que recebemos se acomodaram. Eles pagaram seus quartos e receberam uma
chave. Eles não falaram de seu coração. Isto simplificava nosso trabalho(...)Não fale
mais de seu coração, não podemos nada por ele(...)Pegue sua chave,se assegure de
seu quarto. Mas saiba que estás numa casa sem recursos para o coração ” 1012
Posteriormente, numa conversa particular com sua mãe, Martha exprime sua
1007
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.468. Uma passagem, antes da chegada da mãe à recepção,
vale ser comentada: trata-se da cena na qual Jan entrega seu passaporte à irmã que, interrompida
abruptamente pelo velho funcionário sorumbático, não chega a lê-lo.
1008
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.470.
1009
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471.
1010
Interessante notar que o risco maior dos métodos “balísticos” “libertinos” de Mme. Martha e Mme.
de Merteuil é o inesperado amor. Notar em LACLOS, C. As relações perigosas. Abril Editorial.
1011
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471.
1012
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471.
283
1013
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.473.
1014
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.471.
1015
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.473.
1016
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.477.
1017
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.477.
1018
[Jan]: “Nada lembra o homem. De manhãzinha, se encontra na areia os traços deixados pelas
patas dos pássaros do mar.São os únicos sinais de vida. Quanto às tardes...[Martha, lentamente] : E
quanto às tardes, senhor? [Jan] As tardes são transtornantes...” (CAMUS, A. Le malentendu. OC,
I.p.476.) Jan diz ainda à Martha: “me parece que, pela primeira vez, usas comigo uma linguagem
humana.” (CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.476.)
284
desejo, e para obter o que desejo, esmagaria tudo à minha passagem.” 1019 Tomando
por premissa a concretização da felicidade futura, o assassinato é um método eficaz e,
portanto, desejável.
Jan começa a se resignar de se ver dissolvido pela lógica contemporânea da
indiferença que legitima e produz, por intermédio de suas filosofias, de sua inação e
de sua indefinição moral, à tirania e à barbárie: [Jan]: “Se compreendo bem, uma de
vocês me admite por interesse, outra, por indiferença.” 1020
Não importa que Jan ainda diga às mulheres, “que cultiva por elas um
sentimento de simpatia, e mesmo de grande simpatia” 1021 ou que a mãe, assomada
por uma compaixão irresistível por este estrangeiro ímpar, ainda bata à porta de seu
quarto na tentativa de salvá-lo.
A álgebra de uma história equivocada está completa - o silêncio desumanizado
(das burocracias e das ideologias), o esquecimento das origens, o conformismo, o
fatalismo das concepções pré-determinadas, idealistas e fixas de felicidade, calcadas
intransigentemente por uma política da eficácia: [Jan, pega a taça, a olha...]: “ Um
copo de cerveja em troca de dinheiro; uma taça de chá e por engano. [Ele pega a taça
e a retém um momento em silêncio.] (...) Então, honremos à festa do pródigo! [Ele
bebe...]” 1022 Mais tarde Martha dirá à Maria: “houve um mal-entendido. E por pouco
que conheças o mundo, não te surpreenderás.” 1023 Se evidencia a inversão da
parábola de Lucas XV, 11-32, à sombra da cena trágica contemporânea.
Se no universo da teleologia cristã o sofrimento de Jó ou o perdão do filho
pródigo se inscrevem numa absurdidade redimida por um nexo que a transcende e que
pretende restaurar o sentido da existência, na tragédia contemporânea governada pela
contingência e que se vale do non sens para a concretização de seus fins deletérios, o
nexo re-afirmado cotidianamente, e até mesmo reivindicado, é o da própria
absurdidade, vínculo a partir do qual o homem se relaciona com todas as esferas da
realidade com a voracidade da inocência primordial: [Mãe]: “...esse mundo mesmo
não é racional e posso bem dizer que, eu, de tudo provei, da criação à
destruição.” 1024 [Martha]: “...isto aconteceu como tinha que acontecer. Tu mesma
1019
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.pp.473-8.
1020
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.478.
1021
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.481.
1022
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.480.
1023
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.494.
1024
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.488.
285
disses, esse mundo não é racional.” 1025 É uma mimesis cínica da indiferença cósmica
que, afinal, fabrica as políticas da aniquilação e da indiferença contemporâneas.
É a procura de uma absolvição nietzschiana que, principalmente Martha,
encarna; a assunção plena a uma cosmologia da indiferença, heraclitiana, na qual a
noção de injustiça está como que dissolvida pela lei cósmica da guerra, da aniquilação
e da des-razão: [Martha]: “Pois é agora que estamos na ordem. É preciso se
persuadir. [Maria]: Que ordem? [Martha]: Àquela na qual pessoa jamais é
reconhecida.” 1026
Se a revolta de Martha possui a nobreza irrepreensível de se insurgir contra a
tristeza e a avareza européias, ela no entanto se corrompe e se nega pela lógica da
eficácia suicida que empreende, enfim (como veremos oportunamente), pelo
desconhecimento da noção de limite. A desmedida da justa rebeldia degenera em
niilismo, matriz da tragédia contemporânea. Conseqüência lógica: tudo, até mesmo a
barbárie, é permitido: [Martha]: “para obter o que desejo, esmagaria tudo à minha
passagem.” 1027 (...)“Eis-nos todos na ordem. Compreendei que, nem para ele, nem
para nós, nem na vida, nem na morte, não há nem pátria, nem paz.” 1028
Mas vale sublinhar: O fatalismo sanguinário de Martha é sintoma de uma
doença contemporânea, de uma atmosfera que, por si, conspira e impulsiona ao
suicídio ou ao assassinato. Se há um destino que paira sobre a ação de O Equívoco é o
fado de uma humanidade que arquiteta pacientemente sua própria aniquilação pelas
malhas do silêncio, do fatalismo e da indiferença que tece. Com a álgebra da
desesperança e do silêncio esculpida pela sensibilidade contemporânea, obtemos a
aniquilação como conseqüência lógica, “por pouco que conheças o mundo, não te
surpreenderás.” 1029 É o caldo cultural do niilismo contemporâneo irrompendo
irresistivelmente na história; é a tristeza européia produzindo seus eivados frutos:
[Martha]: “...não se pode chamar de pátria a esta terra estreita, privada de luz, onde
damos de comer aos animais cegos(...)esta casa terrível(épouvantable)onde ficaremos
apertados uns contra os outros.” 1030
Quem sabe, este velho funcionário-fantasma que ronda o albergue, impassível
e cruel, que intervém somente para a concretização da tragédia – de começo
1025
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.489.
1026
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496.
1027
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.pp.473-8.
1028
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496.
1029
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.494.
1030
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.496.
286
impedindo que Jan seja reconhecido e, após sua morte, restituindo seu passaporte às
assassinas – simbolize o velho continente, estéril, indiferente, tirânico e avaro, incapaz
de restituir felicidade aos seus: [O Velho à Maria, com uma voz nítida e firme]: “Me
chamaste? [Maria]: Oh, não sei! Me ajude, eu preciso de ajuda. Tenha piedade e
consinta me ajudar! [O Velho, com a mesma voz]: Não.” 1031
Quem sabe, este velho fantasma hamletiano não seja senão uma figura do
intelectual em silêncio, inacessível e indisponível para promover um passo em prol da
reconciliação dos homens.
De todo modo, Le malentendu é um fait divers, um fato absolutamente
condizente com a atmosfera dos semanários e bastante “natural” se considerado do
ângulo de outras presas das engrenagens da indiferença tais como atesta o comentário
de Meursault sobre a notícia que lê no único jornal disponível em sua cela: “ ”1032
*
Com notável distanciamento crítico, é assim que Camus rememora na
apresentação dos Fundos Camus, atualmente na Biblioteca Mejànes em Aix-en-
Provence, as circunstâncias da elaboração desta obra teatral: “ O Malentendido foi
escrito em 1943 na França ocupada. Eu vivia então, defendendo ao meu corpo, no
meio das montanhas da França. Esta situação histórica e geográfica seria suficiente
para explicar esta espécie de claustrofobia da qual sofria então e que se reflete nesta
peça. Respira-se mal, é fato, mas neste momento, tínhamos todos a respiração
curta.” 1033 Camus se refere à internação para tratamento da tuberculose em Saint-
Etienne, vilarejo no valle du Rhône entre 1942 e 1943. A doença recrudescente,
companheira do autor desde a infância, o impedira de ser mobilizado em 1939,
embora Camus tenha pedido formalmente integração no exército francês, como
atestam documentos da época 1034 . Quem lhe recomenda o tratamento que o priva
definitivamente das praias de Argel é o médico e amigo Cviklinski1035 . É em Saint-
Etienne, mais precisamenta na pensão Oettly, que Camus faz os primeiros contatos
com membros da resistência ligados ao movimento Resistente Combat 1036 que
integrará.
1031
CAMUS, A. Le malentendu. OC, I.p.497.
1032
CAMUS, A. L´Étranger.p.
1033
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. OC, I.p.505.
1034
TODD, A. Albert Camus – une vie. (ilustração 29)
1035
TODD, A. Albert Camus – une vie. pp.436 e 411.
1036
TODD, A. Albert Camus – une vie. pp.439.
287
1037
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. OC, I.p.505.
1038
CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.505.
1039
CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.506.
1040
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506.
1041
CAMUS, A. Présentation du Malentendu- Version du «Figaro» Littéraire. OC, I.p.506.
1042
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506.
1043
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506.
1044
CAMUS.A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.643.
1045
CAMUS.A. Ni victimes ni bourreaux. Camus à Combat. p.643. É sintomático observar que Roger
Quilliot, em seu La mer et Les prisions, não cofira a relevância devida ao panorama histórico-filosófico
que Le Malentendu tão evidentemente simboliza. QUILLIOT, R. La mer et le prisons. Le retour du
prodigue. Gallimard. Paris.1970.
288
1046
Equívoco, segundo o Le Petit Robert é o primeiro sentido para o termo malentendu.
1047
CAMUS, A. Présentation du Malentendu. Dernier version du Fond Camus. OC, I.p.506.
289
1048
ROBB, A. Alchimie & Mystique. p.256. Nanquim de Blake que também serve como frontispício
deste trabalho.
1049
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época da Tragédia Grega, V. Trad. Rubens Rodrigues Torres
Filho.Col Os Pensadores, p.103.
1050
Grifado por Camus na versão do Ecce Homo que consta em seu volumoso acervo sobre Nietzsche.
Notar ARNOLD, J-A. Camus lecteur de Nietzsche. Em Cahiers Albert Camus 9.pp.96-7.
290
1051
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332.
1052
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332. “...Não sou louco e aliás, nunca fui tão racional.
Simplesmente, senti num só golpe a necessidade do impossível. As coisas, tais como são não me
parecem satisfatórias(...)antes não o sabia. Agora, sei. Este mundo tal como ele é, não é suportável. Eu
preciso da lua, ou da felicidade, ou da imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas
que não seja deste mundo.”(Caligula. OC, I. p.331)
1053
Nos referimos aqui especificamente ao emprego do termo por Heráclito. Fg.52 In Hipólito,
Refutação, IX,9. “Tempo(Aiôn) é criança brincando, jogando; de criança o reinado.”(Trad. José
Cavalcante de Souza)
291
estão privados de conhecimento, porque lhes falta um professor que conheça aquilo
que ensina.” 1054
Calígula apressa a ampulheta do tempo, gira a engrenagem da morte,
demonstrando, pela vileza de suas ações em prol do Tesouro público1055 , pelo copioso
recurso às punições e execuções de Estado, pelo menosprezo cotidiano à dignidade
humana, a evidência cósmica da absurdidade e da injustiça que aprendeu com a
desaparição de Drusilla: “Findaste por compreender que não é necessário ter feito
algo para morrer.” 1056 É a lógica de um cosmo indiferente em operação, convertida
numa política de Estado assassina: “Decidi ser lógico e visto que tenho o poder,
verão quanto à lógica pode custar. Exterminarei os contraditores e as contradições.
Se for necessário, começarei por ti.” 1057 À Cherea, Calígula exprime o raciocínio dos
tiranos que desfrutam das prerrogativas de um cosmo que tudo absorve e absolve em
sua magnitude impassível: “Este mundo é sem importância e quem o reconhece
conquista sua liberdade.” 1058 (...) “Acabei de compreender a utilidade do
poder(...)Hoje, e pelo tempo que virá, minha liberdade não tem mais fronteiras.” 1059
A metáfora do totalitarismo como uma peste, produzida pela convicção
filosófica de que o homem não encontra fronteiras ou limites diante de um cosmo
indiferente, se cristaliza na rivalização metódica de Calígula com a crueldade dos
deuses: “Farás fechar os celeiros públicos(...)Digo que vai haver fome amanhã.
Todo mundo conhece a fome, é uma peste. Amanhã, haverá peste...e pararei a peste
quando me aprouver. [explicando aos outros] É que, apesar de tudo, não tenho
muitas maneiras de provar que sou livre. É-se sempre livre à custa de alguém...” 1060
Num mundo descrito com a clarividência dos olhos de um físico, privado de
ilusões, Calígula re-fundamenta a política, flutuante desde o crepúsculo dos ídolos -
ela se alicerça doravante no esteio da crueldade natural do cosmo: “Para um homem
que ama o poder, a rivalidade com os deuses tem algo de irritante. Suprimi isto.
Provei a estes deuses ilusórios que, um homem, se tem vontade, pode exercer, sem
aprendizagem, sua ridícula profissão.” 1061
1054
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332.
1055
“Se oTesouro tem importância, então a vida humana não tem.” CAMUS, A. Caligula. OC, I.
p.333.
1056
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.346.
1057
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336.
1058
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.337.
1059
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336.
1060
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359.
1061
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.362.
292
1062
Mencionaremos oportunamente a importante re-estruturação sofrida pela peça face às solicitações
da guerra entre 1941 e 1943.
1063
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.362.
1064
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342.
1065
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342.
1066
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343.
1067
?
293
1068
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343.
1069
Notadamente, veremos oportunamente, o nietzchianismo banalizado pela história...
1070
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.386.
1071
“Caligula ou le joeur” é o primeiro sub-título concedido por Camus à peça segundo os Manuscritos
dos Fundos Camus (version A). Notar ARNOLD, J-A. Camus lecteur de Nietzsche. Em Cahiers Albert
Camus 9.. A passagem seguinte do Ecce Homo da biblioteca de Camus(edição de 1932), retém a
atenção de James Arnold, ela se encontra “sublinhada contrariamente ao hábito de Camus à tinta,
caprichosamente, com uma mão firme”(p.96):“Não conheço outro modo de lidar com grandes tarefas
senão o jogo...” (Na versão brasileira, NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.51.) Arnold subscreve: “É muito
possível que este aspecto do jogo esteja em relação com o ato II do Calígula...”(Op.cit.p.96) Outras
frases em relação direta com o Calígula estão também grifadas, no volume do Crepúsculo dos Ídolos
utilizado por Camus e em seu volume da Origem da Tragédia: “A afirmação da vida em seus aspectos
mais estranhos e árduos; a vontade de vida...esta felicidade que traz ainda com ela a felicidade da
nadificação...” (edition Mercure de France.p.94) “que a existência do mundo não pode se justificar
senão como fenômeno estético(...)um deus puramente artista, absolutamente desprovido de escrúpulos
e de moral, para quem a criação ou a destruição, o bem ou o mal são manifestações de seu capricho
indiferente e de sua toda - potência; que se desembaraça, fabricando mundos, do tormento de sua
plenitude...”(editem Mercúrio de France p.10) em ARNOLD, J-A. Camus lítio de Nietzsche. Em
Cahiers Albert Camus 9.pp.96-98.
1072
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.102-3.
294
1073
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Hipólito, Refutação, IX, 9. Trad. José Cavalcante de Souza.
1074
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Hipólito, Refutação, IX, 9. Trad. José Cavalcante de Souza.
1075
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387.
1076
HERÁCLITO. Fragmentos. Fog. 80 in Orígenes contra Celso, vI, 12. Trad. José Cavalcante de
Souza.
1077
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.369. Em Heráclito: “A rota para cima e para baixo é uma e a
mesma.” In Hipólito. Refutações. IX, 10.
1078
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339. Em Heráclito: “Direções do fogo: primeiro mar, e do mar
metade terra, metade incandescência...Terra dilui-se em mar e se mede no mesmo logos, tal como era
antes de se tornar terra.” In Clemente de Alexandria. Tapeçarias, V, 105. “O deus e dia e noite,
inverno verão, guerra paz, saciedade fome...” In Hipólito. Refutações. IX, 10. “As (coisas) frias
esquentam, quente esfria, úmido seca, seco umedece.” Tzetzes, Escólios para a Exegese da Ilíada. “O
mel segundo Heráclito, é a um tempo amargo e doce, e o próprio mundo é um vaso de mistura que tem
que ser continuamente agitado.” (NIEZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica dos Gregos.p.104) A
ótica heraclitiana é retomado pelo Zaratustra de Nietzsche: “A dor é também um prazer, a maldição é
também uma benção, a noite é também um sol; ide embora daqui, senão aprendereis: um sábio é
também um louco.”(NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.(O canto do Ébrio)p.324.)
1079
“...«Tudo tem, em todo tempo, o oposto em si», com tanta insolência que Aristóteles o acusa de
crime supremo diante do tribunal da razão, de ter pecado contra o princípio de não-contradição.”
(NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.103.)
1080
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339.
295
1081
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 52 in Porfírio, Questões Homéricas, Iliáda, IV, 4. Trad. José
Cavalcante de Souza.
1082
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.104.
1083
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.105.
1084
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108.
1085
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.110.
1086
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.104-5.
1087
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108.
296
1088
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108.
1089
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387.
1090
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.
1091
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.336-7.
1092
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.337.
1093
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.
1094
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.
1095
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.
297
conhecem.” 1096 “Pois cadáveres, mais do que estercos, são para se jogar fora.” 1097
“O asno prefere a palha ao ouro.” 1098 “Porcos em lama se comprazem, mais do que
em água limpa.” 1099 “- Quem sabe respirar o ar dos meus escritos sabe que é um ar
das alturas, um ar forte. É preciso ser feito para ele, se não há o perigo de se
resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa –mas quão tranqüilas banham-
se as coisas na luz! Com que liberdade se respira!” 1100 “Más testemunhas para os
homens são olhos e ouvidos, se almas bárbaras eles tem.” 1101 Esta dimensão
aristocrática do saber é requerida para a compreensão adequada da condição humana
inscrita no cosmo indiferente heraclitiano-nietzcshiano: “Sombrio, melancólico,
lacrimoso, escuro, atrabiliário, pessimista e, de modo geral, odioso, só acham de
Heráclito aqueles que não tem motivo para ficar satisfeitos com sua descrição
natural do homem.” 1102
Calígula, aliás como Zaratustra, está para além do aristocrata - “conquistei
a divina clarividência do solitário.” 1103 O imperador encontra-se, obviamente, para
além de bem e mal: “Tais homens vivem em seu próprio sistema solar.” 1104 Em seu
universo “artístico”, de deus constitutivo e contemplativo 1105 , cercada pelos jogos,
pela música, pela poesia, pelo teatro vivo, seu desvelo pela destruição e pelo crime
encontra-se absolutamente integrado em sua arte de viver. Imperador e artista
dionisíaco, Calígula, em sua “concepção estética básica do jogo do mundo” 1106 está
além das fronteiras morais e seus excessos são constitutivos de sua arte de amar a
vida: “Não é o ânimo criminoso, mas o impulso lúdico que sempre desperta o novo,
que chama à vida outros mundos. Às vezes, a criança atira fora o seu brinquedo:
mas logo recomeça, em humor inocente.” 1107 Se Calígula aniquila, pouco a pouco, a
1096
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. In Seni Res Publica gerenda sit, 7. Trad. José Cavalcante de
Souza.
1097
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 96 in Banquete, IV. Trad. José Cavalcante de Souza.
1098
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107. Citando Heráclito mencionado em
Ética a Nicômaco, VIII.
1099
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 13 in Clemente de Alexandria, Tapeçarias, I, 2. Trad. José
Cavalcante de Souza.
1100
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Prólogo.p.18.
1101
HERÁCLITO. Fragmentos. Frg. 102 In Porfírio, Questões Homéricas, Ilíada, IV, 4.
1102
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108-9.
1103
Lembremos que até aos “homens superiores”, Zaratustra abandona no desfecho de seu percurso:
“Pois bem!Ainda dormem, esses homens superiores, quando eu já estou acordado: não são esses os
companheiros próprios para mim!”(NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p. 326.)
1104
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.110.
1105
É o ator que mais perfeitamente realiza a função de
1106
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.109.
1107
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107.
298
1108
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.108.
1109
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107(5º parágrafo).
1110
NIETZSCHE, F. A Filosofia na Época Trágica Grega. p.107-8.
1111
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.363.
1112
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.363.
1113
Cf. NIETZSCHE, F. Ecce Homo.
1114
GAY-CROSIER. R. Les envers d´un échec. Étude sur Le théâtre d´Albert Camus.p.61.
1115
“Este mundo,tal como é, não é suportável. Eu, então preciso da lua ou da felicidade, ou da
imortalidade, de qualquer coisa que seja demente talvez, mas que não seja desse mundo.”(CAMUS, A.
Caligula. OC, I. p.331.) “Somos dois ou três na história a ter feito verdadeiramente a experiência
disto, e atingir esta felicidade demente.”(CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.386.)
1116
“...a morte não é nada, te juro: ela é apenas o sinal de uma verdade que torna a lua necessária.”
(CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.332.)
299
de existir na beleza e na plenitude - “Eu ainda não esgotei tudo aquilo que me faz
viver. É por isso que quero a lua.” 1117
Como diz Zaratustra - “Acaso a lua não nos embriaga?” 1118
A lua é o símbolo supremo desta busca pela transfiguração trágica da dor
em prazer - espécie de hóstia ou de Santo Graal – procurada seja pelo ébrio
dionisíaco, seja pelo tirano-artista.
Zaratustra e Calígula procuram, embora de modos diferenciados1119 ,
redenção e justificação cósmica na lua, isto é, na beleza, no prazer - na arte - no
movimento bramânico de criação e destruição. Trata-se de um movimento de
“eternização” pela efetivação e contemplação do vir-a-ser: “Todo o prazer quer
eternidade para as coisas(...)Ó homens superiores, por vós almeja o prazer, o
indomável, bem-aventurado –almeja pelo vosso sofrimento, ó criaturas
malogradas!Por coisas malogradas, almeja o eterno prazer...Aprendeste agora o meu
canto?Adivinhaste o que ele quer?Cantai para mim, agora, homens superiores, a
minha cantiga de roda!(...)Profundo é o mundo!E mais profundo do que pensa o dia.
Profundo é o seu sofrimento – E o prazer – mais profundo que a ansiedade. A dor diz:
«Passa, momento!»Mas quer todo o prazer eternidade. Quer profunda, profunda
eternidade.” 1120 “Vivo, mato, exerço o poder delirante do destruidor, ao pé do qual o
do criador parece uma macaquice. É isso ser feliz. É isso a felicidade, essa
insuportável libertação, esse desprezo universal, o sangue, o ódio em meu redor, esse
isolamento sem par do homem que põe toda a sua vida diante de si, a alegria
desmedida do assassino impune, essa lógica implacável que rebenta as vidas
humanas(Ri), que te destrói Cesônia, para perfazer, enfim, a solidão eterna que
desejo.” 1121
Calígula desempenhará o solitário papel de protagonista do Aiôn até o
desfecho lógico de seu jogo, com a lucidez de um teórico refinado das artes do
combate mas, sobretudo, com a embriaguez de um esteta e de um contemplador
convicto. Guiado pelo sopro de sua própria concepção lúdica da vida, com
indiferença, ele se presta a protagonizar o papel de presa na armadilha que o conluio
1117
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.365.
1118
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p.321.(O Canto de Ébrio)
1119
Seria preciso um estudo bem mais completo, que deixaremos para o pós-doutorado, para consignar
uma análise fundamentada de comparação em detalhe entre Calígula e Zaratustra. Seguramente seria
preciso estudar mais demoradamente o universo deste último.
1120
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra.p.324-5.(O Canto de Ébrio)
1121
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.387.
300
do tempo, por ele semeado, lhe arquiteta. Seu exercício, por três anos, de uma
rigorosa política fundamentada no mimetismo da crueldade cósmica, revela, afinal,
um subliminar projeto suicida.
Na cena final da versão de 1943 do Calígula de Camus coabitam, afinal,
desenlace trágico e engajamento filosófico na medida em que o golpe “em pleno
rosto” 1122 de Cherea em Calígula encarna a recusa de uma “filosofia que se
transforma em cadáveres” 1123 e o compromisso de “lutar contra uma grande idéia
cuja vitória significaria o fim do mundo.” 1124
O sentido engajado da peça, orientado num horizonte que problematiza a
questão da responsabilidade intelectual, é evidenciado no diagnóstico de Cherea sobre
o jogo poético-existencial de Calígula: “É preciso, pois, compreender, que isto trata
do poder assassino da poesia.” 1125
A dimensão ética anti-nietzschiana1126 que o autor lhe infunde em meio à
luta viva contra o totalitarismo da Segunda Grande Guerra, provoca, num indício
importante do liame entre engajamento literário e engajamento filosófico em Camus,
até mesmo a incorporação, na versão de 1943, de um mea culpa de Calígula que fere à
extrema coerência deste “herói” trágico, bem preservada na versão de 1941. Como
comenta James Arnold: “Esta abjuração de si impõe ao protagonista e a seu destino
trágico o reconhecimento de uma falta moral que vai de encontro às intenções
originais do autor.” 1127
Um Calígula demasiado shakespeariano, demasiado visceral 1128 , some da
versão madura: “Se eu tivesse tido a lua, ou Drusilla, ou o mundo, ou a felicidade,
tudo teria mudado!” 1129 E, sobretudo, uma tomada de consciência contemporânea é
incorporada à trama eticamente engajada do autor que concebia ao mesmo tempo as
1122
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388.
1123
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.343.
1124
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.342.
1125
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.349.
1126
“Sem dúvida, para Camus, Calígula não é somente uma refutação da vontade de potência
nietzschiana, é preciso vê-lo como um processo inclemente contra o totalitarismo. O verídico é tão
claro quanto simples: o pensamento conquistador é culpado sob qualquer aspecto.” (GAY-CROSIER.
R. Les envers d´un échec. Étude sur Le théâtre d´Albert Camus. Minard, 1967.)
1127
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.1984.p.172.
1128
“...soi para ti cheio de ódio – e tu és para mim como uma ferida que eu gostaria de dilacerar com
minhas unhas para que o sangue e o pus misturados à minha vida saia em gordas borbulhas.”
CAMUS, A . Caligula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984.p.119.
1129
CAMUS, A . Caligula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. p.119.
301
Lettres à um ami allemand 1130 : [ Calígula estende as mãos para o espelho] “Procurei
o impossível nos limites do mundo, nos confins de mim mesmo 1131 . Estendi as minhas
mãos[gritando], estendo as minhas mãos e é a ti que encontro, sempre a ti diante de
mim, e eis-me cheio de ódio diante de ti. Não escolhi o caminho que era preciso, não
cheguei à nada. A minha liberdade não é a correta (Ma liberté n´est pas la
bonne.)” 1132
É importante assinalar, no entanto, que em ambas as versões do Calígula de
Camus conste o mesmo presságio lúcido prenunciado pelas derradeiras palavras do
imperador antes de sucumbir à lógica predadora da qual se fez pedagogo: “À história,
Calígula, à história.[O espelho quebra-se e, nesse instante, entram por todas as portas
os conjurados, as armas. Calígula faz-lhes frente, com um riso de louco. O Velho
Patrício fere-o pelas costas, e Cherea em pleno rosto 1133 . O riso de Calígula se
transforma em soluços. Todos os ferem. Num último soluço, Calígula, rindo e
estrebuchando, grita]: Ainda estou vivo!” 1134
Trata-se da evidenciação do intertexto político e histórico desta obra teatral
seguramente engajada na construção de uma “ética da solidariedade nascida da
experiência da Europa esmagada pela tirania.” 1135
*
Contudo, seria temerário sublinhar tão somente os aspectos tirânicos do
Calígula de Camus sem aludir a sua inquietante simpatia em cena. Por exemplo,
qualquer espectador da encenação levada à cabo por Charles Berling em 2005 em
Paris, no Théâtre de l´Atelier – montagem que conservando fidelidade absoluta ao
texto camusiano, encarna sua mensagem sobre o poder num cenário atual, o dos
1130
O vocabulário de Cesônia desvela que nos encontramos no mesmo registro, histórico e ético, das
Lettres: “...se o mal está sobre a terra porque querer a ele acrescentar(pourquoi vouloir y ajouter)?”
(CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.338.) “É que admites o bastante a injustiça de nossa condição para
resolver a ela acrescentar (ajouter), enquanto que me parece que o homem deveria afirmar a justiça
para lutar contra a injustiça eterna.”(CAMUS, A. Lettres à un ami allemand.Essais. p.240.)
1131
“Procurei-me a mim mesmo.”(HERÁCLITO. Fg.101. In Contra Colotes, 20.)
1132
A parte grifada foi incorporada na versão de 1943. Notar CAMUS, A . Calígula version de
1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. p.119 e CAMUS, A. Calígula. Oeuvres Complètes I.
p.388. Perceber que Maria diz a Jan no Malentendu(I,4): “seu método não é o correto.(ta méthode n´est
pas la bonne.)”(CAMUS, A. Le Malentendu. OC, I. p.464.)
1133
“Cherea esta sobre ele e o fere com seu punhal, três vezes no rosto...” Única diferenciação em
relação a cenografia do desfecho da versão de 1941. (CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388 e CAMUS,
A . Calígula version de 1941. Cahiers Albert Camus 4. Gallimard.1984. pp.119)
1134
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.388 e CAMUS, A . Calígula version de 1941. Cahiers Albert
Camus 4. Gallimard.1984. pp.119-20.
1135
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.1984.p.175.
302
1136
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.338.
1137
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339.
1138
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.339.
1139
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.334.
303
tem. Isto é claro. Todos aqueles que pensam como tu devem admitir este raciocínio e
ter sua vida por nada visto que pensam que o dinheiro é tudo. Enquanto isto, eu
decidi ser lógico e visto que tenho o poder, verás quanto esta lógica irá vos custar.
Eu exterminarei os contraditores e as contradições. Se for preciso, começarei por
ti.” 1140 Esta simpatia mórbida de Calígula entra em cena principalmente porque o
espectador é conduzido a partilhar com o “herói” do desprezo pela ambientação
cortesã, palaciana, corrompida e viciada –isto é política(no senso brasileiro do termo)-
que o cerca. Assim, como não compactuar - ainda que pelo riso - com a lógica da
voracidade, quando ela é, pela primeira vez, aplicada à risca aos seus mais
proeminentes mentores, tantas vezes triunfantes em sua impunidade? “Vamos, seção
três, parágrafo primeiro. [Helicon, se levanta e recita mecanicamente] «A execução
conforta e liberta. Ela é universal, fortificante e justa em suas aplicações assim como
em suas intenções. Morre-se porque se é culpado. Se é culpado porque se é sujeito à
Calígula. Ora, todo mundo é sujeito à Calígula. Logo, todo mundo é culpado. Donde
se conclui que todo mundo morre. É uma questão de tempo e de
paciência.»” 1141 Enigma da “cordialidade”, assim como aniquila facilmente, o
Calígula de Camus, ama e é amado facilmente: “Sou puro no bem, como sou puro no
mal.” 1142
Além desta franja lírica da revolta de Calígula contra a finitude, outro
aspecto caro as preocupações de Camus ajuda a delinear os traços ambíguos que
compõe o retrato do tirano: na pele de Calígula vemos o horizonte trágico de uma
política que, apesar de virtualmente nobre, está fadada ao fracasso pelo desprezo dos
métodos pelos quais se efetiva. Trata-se do messianismo historicista, que, segundo
Camus, confunde as dimensões histórica e metafísica da condição humana numa
política pautada em função da construção da eternidade e não do presente. Camus
afirma n O Mito de Sísifo, “ uma revolução é sempre contra os deuses(...)Trata-se de
uma reivindicação humana contra o seu destino.” 1143 Ora, a voracidade de Calígula,
que deseja o “impossível enfim sobre a terra”, “a lua na mãos”, encarna o potencial
transgressor e destruidor da justa reivindicação humana contra o absurdo da condição
humana, quando esta desconhece a noção de limite. Há, afinal, muitos traços de
1140
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.335-6.
1141
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359.
1142
CAMUS, A. Caligula. OC, I. p.359.
1143
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe. In Essais.p.166.
304
adorado. Ele escreverá sobre Nietzsche comentários que não se compreendem senão
num contexto de luta contra o totalitarismo.” 1147
Segundo Arnold, que manifesta um comentário arriscado e bastante difícil
de ser fundamentado, diante das transformações submetidas ao substrato ético da
versão de 1943, diante do imperativo “de liquidar as ocorrências do nietzschianismo
em sua própria obra, começando por Calígula” 1148 - diante de Camus - “estamos em
presença de um fenômeno bastante raro: um escritor que empreende pensar e
escrever contra si mesmo porque entrevê e teme a perversão provável de uma
verdade a qual ele ainda se atêm.” 1149
Neste ponto determinado, Gay-Croisier e Weyemberg nos parecem ainda
mais lúcidos ao preferirem notar de maneira menos audaz um simples
amadurecimento da leitura de Camus sobre Nietzsche, ensombrecida pela ótica da
guerra.
Weyemberg ressalta, aliás, a procedência da leitura camusiana de Nietzsche
durante a Segunda Guerra, aproximando-a da interpretação de Lukács para quem as
“qualidades de Nietzsche o fazem bem mais perigoso do que o nacional-
socialismo” 1150 : “se Nietzsche é, por suas qualidades, incomparavelmente superior às
ideologias nazistas, não é menos verdade que sua doutrina de adesão ao mundo e o
eterno retorno fecham o universo sobre ele mesmo, eternizam e transfiguram os
conflitos e a violência que aí reinam. A ausência de transcendência, vertical ou
horizontal que daí resulta aproxima incontestavelmente Nietzsche da concepção
nacional-socialista de um universo livrado sem fim à luta das espécies e das
raças.” 1151
Camus, afinal, parece amadurecer, “sob pressão da história” 1152 sua
interpretação do pensamento de Nietzsche. Se a constatação do absurdo presente n O
Mito de Sísifo e válida na maturidade filosófica do autor, permanece tributária de uma
epistemologia heraclitiana-nietzschiana do cosmo, eticamente, entretanto, Camus
almeja ultrapassar a descrição do físico, do contemplador: o autor argelino reivindica
1147
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.169
1148
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.173.
1149
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.173.
1150
WEYEMBERG, M. Camus et Nietzsche: evolution d´une affinité in Albert Camus 1980.p.229.
1151
WEYEMBERG, M. Camus et Nietzsche: evolution d´une affinité in Albert Camus 1980.pp.229-30
1152
CAMUS, A. Conférence prononcé à Athènes sur l´avenir de la tragédie. Essais.p. 1705.
306
1153
Notar em (HALEVY, D. Nietzsche), o capítulo dedicado à visão de Surlei.
1154
CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Décembre 1942.OC.p.974.
1155
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe in Essais.p.197.
1156
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe in Essais.p.198.
1157
CAMUS, A. Carnets 1935-1948. Carnets IV. Janvier 1943.OC.p.978.
1158
JAMES ARNOLD, A. La poétique du premier Caligula in Cahier Albert Camus 4.
Gallimard.p.169
307
Outra ordem desponta no céu luminoso de Argel, outra significação até então
dormente é desperta nos elementos malgrado à ânsia do herói em permanecer na
quietude da cronologia analítica dos funcionários submissos aos cartões de ponto:
“Tomo o ônibus às duas horas e chego lá à tarde. Assim, posso passar a noite a velar
e estou de volta amanhã à noite. Pedi dois dias de folga ao meu patrão e, com uma
desculpa destas, ele não podia recusar. Mas ele não tinha um ar lá muito satisfeito.
Cheguei mesmo a dizer-lhe: - A culpa não é minha.” 1160
1159
CAMUS, A. L’Étranger. p.1127(Pleyade)-
1160
Idem.p,1127-1128
308
dos amigos) é a irreflexão mecânica que confere uma absurdidade quase irônica à
descrição de sua ida ao enterro. Como um títere, Meursault age na medida dos
impulsos exteriores que recebe: é uma anti-ação que protagoniza na medida em que
esta é, a bem da verdade, “reação”, às pessoas ou aos elementos. É somente da
resposta mecânica que é capaz nosso herói: somente a réplica lhe faz viver.
Persistentemente imerso na temporalidade irreflexiva do cotidiano ele nega, por ora,
sua condição(humana)de solitário, através do sono, signo maior, seja da
inconsciência, seja da inocência: “Tomei o ônibus às duas horas. Fazia muito calor.
Como de costume, almocei no restaurante do Celeste. Estavam todos com muita pena
de mim e o Celeste me disse: - Mãe, há só uma. – quando saí, acompanharam-me à
porta(...) Tive de correr para não perder o ônibus. Esta pressa, esta correria e,
talvez, também os solavancos, o cheiro de gasolina, a luminosidade da estrada e do
céu, tudo isso contribuiu para que eu adormecesse no caminho. Dormi quase o tempo
todo. E, quando acordei, estava apertado de encontro a um soldado que me sorriu e
me perguntou se eu vinha de longe. Disse que sim, para não ter que voltar a
falar.” 1161
1161
CAMUS. Idem, p.1127,1128.
1162
Idem, 1129.
309
1163
“Bebi. Tive então vontade de fumar. Mas hesitei, porque não sabia se podia diante de minha
mãe(...)Através das fileiras de ciprestes que levavam às colunas perto do céu, desta terra ruiva e verde,
destas casas raras e bem desenhadas: eu compreendia a minha mãe.”(p.1131)Preso, Meursault recorre
constantemente à memória da mãe e seu zelo na evocação nos faz notar que o vínculo entre ambos é
bem maior e mais profundo do que se poderia imaginar no início da obra;“Lembrei-me nestes
momentos de uma história de minha mãe. (p.1203)”(...) “Mamãe dizia que não se é jamais
completamente infeliz.”(p.1205)
1164
“A culpa não é minha.” (p,1127) “- Não tem nada que se justificar, meu filho.”(p.1128) “Mas por
um lado, não é culpa minha se o enterro foi ontem em vez de ser hoje, e, por outro lado, teria tido, de
qualquer maneira, o sábado e o domingo livres.”(p.1138)
1165
Idem, p.1132.
310
vazia: “estavam tão absortos em seus pensamentos, que nem se davam por isso. Tinha
mesmo a impressão de que esta morta, ali deitada, nada significava para eles.” 1166
Os gestos precisos destes autômatos do rito são daqueles que desabam ao raiar do dia,
revelando à armação mecanicamente imperfeita da pantomima carpideira: “ Lembro-
me de que, a certa, altura, abri os olhos e reparei que os velhos dormiam dobrados
sobre si mesmos, com a exceção de um único que de queixo encostado às costas das
mãos, e com estas agarradas à bengala, me olhava fixamente, como se estivesse à
espera de me ver acordar. Depois, voltei a adormecer.” 1167
“Se vamos muito devagar, arriscamo-nos uma insolação. Mas, se vamos muito
depressa, transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio. – Tinha razão. Não há
saída.” 1169 Mesmo o esforço do ‘alquebrado’ ancião que, no fim dos seus dias, sua
mãe adotara como “noivo”, exaurido e por fim desmaiado pelos esforços exigidos
pelo enterro sob o sol escaldante - parece envolto desta artificialidade exageradamente
mecânica e patética, que vulgariza os gestos humanos, que encontramos
freqüentemente no teatro de marionetes: “Grossas lágrimas de enervamento e de
tristeza corriam-lhe pela cara abaixo. Mas, por causa das rugas, não caíam.
Dividiam-se, juntavam-se e formavam uma máscara de água nessa cara
arruinada(...)<<no momento do desmaio>>(dir-se-ia um boneco partido.)” 1170
1166
Idem, p.1132.
1167
Idem, p.1133
1168
Idem, pp.1134, 1136-7
1169
Idem, p.1137.
1170
Idem, p.1137.
311
existência como que estampado na superficialidade dos atos e ritos da vida. Podemos
considerar a descrição da crua banalidade que circunda a morte “alheia” (e que reflui
para aniquilar o sentido da vida) como a versão camusiana da “náusea”sartreana: “Os
homens também segregam desumanidade. Em certas horas de lucidez, o aspecto
mecânico de seus gestos, sua pantomima desprovida de sentido torna estúpido tudo
que os rodeia. Um homem fala ao telefone atrás de uma divisória de vidro; não se
ouve o que ele diz, mas vemos sua mímica sem sentido: perguntamo-nos por que ele
vive. Esse mal-estar diante da desumanidade do próprio homem, essa incalculável
queda diante da imagem daquilo que somos, essa ‘náusea’, como diz um autor de
nossos dias, é também o absurdo.”(...)“Sob a iluminação mortal deste destino,
aparece a inutilidade.” 1171
1171
CAMUS, A. O Mito de Sísifo. pp,29-30.
1172
“Quando estava lá em casa, mamãe passava o tempo a seguir-me em silêncio com os olhos. Nos
primeiros dias de asilo, chorava muitas vezes. Mas era por causa do hábito(habitude). Ao fim de
alguns meses, choraria se a tirassem do asilo, ainda devido ao hábito. Foi um pouco por isto que, no
último ano, quase não a fui visitar. E também porque a visita me tomava o domingo...”(p.1128)
1173
CAMUS, A. O Estrangeiro. p.1135.
1174
São célebres os fragmentos dos Pensamentos que descrevem a impossibilidade do homem de
pensar na própria condição através da evidência da morte: “(L.136-Br.139) “Como se explica que esse
homem, que perdeu há poucos meses o filho único, e que, atormentado, por processos e brigas, estava
ontem tão perturbado, já não pense mais nisso agora ? Não vos admireis: ele está ocupado em ver por
onde passará o javali que os cães perseguem com tanto ardor há seis horas. Não precisa nada mais.”
(L.522-Br.140) “Esse homem tão abatido com a morte de sua mulher e de seu único filho e sujeito ao
tormento de tão grande dor, por que não está triste neste momento, e o vemos tão isento destes
pensamentos penosos e inquietantes? Não há motivo para estranharmos: acabam de entregar-lhe uma
bola e cabe-lhe atirá-la a seu companheiro, e ei-lo a pegá-la de modo a marcar um ponto. Como
312
quereis que pense em seus tormentos, se tão grande assunto o preocupa?”Em Montaigne encontramos
esta temática, por exemplo, nos Ensaios Que Filosofar é aprender a morrer e Apologia de Raymond
Sebond.
1175
PASCAL, B. Pensamentos. (L.10, Br.167); 36-164;101-364;132-170;133-168;136-139.
1176
CAMUS, A. O Mito de Sísifo. p.29.
1177
“Se vamos muito divagar, arriscamo-nos a uma insolação. Mas, se vamos muito depressa,
transpiramos e na igreja apanhamos calor e frio. – Tinha razão. Não há saída.”(p.1137)
313
1178
Idem.pp, 1131-1137. Grifos nossos.
1179
CAMUS, A. O Mito de Sísifo. p.29.
1180
CAMUS, A. O Mito de Sísifo, p.28-29.
1181
Idem. P, 29.
1182
CAMUS, A. L’Étranger, p.1139.
314
Esta assunção irrefletida à ordem dos elementos pode ser considerada paralela
ao tema pascaliano do “divertimento”, que em Pascal simboliza a esquiva por meio da
qual o homem se nega a compreender a condição humana: “ – Divertimento – não
tendo conseguido curar a morte, a miséria, a ignorância, os homens lembraram-se,
para ser felizes, de não pensar nisso tudo.” 1183
1186
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p23.
1187
Idem, p.1141.
1188
Idem. p.1139.
1189
Idem. p.1142.
1190
(à Maria): “ – Morreu ontem. – Tive vontade de dizer-lhe que a culpa não era minha, mas detive-
me porque me pareceu já ter dito isso mesmo ao meu patrão...”(Idem. p.1138)
1191
Idem. p.1142.
1192
“Disse que sim, mas no fundo me era indiferente.”(dans le fonde cela m’était égal.)(Idem.1155)
“Pensando bem não era infeliz(...)Quando abandonei os estudos, compreendi muito depressa que
essas coisas não tinham importância.”(Idem.1155.) “Nesse caso, porque casar comigo?-disse ela.
Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, poderíamos casar.”(Idem.p1155)
316
fato, trapaceia 1193 a relação do homem com a natureza que é de oposição originária:
Meursault é a sua vítima exemplar. Meursault, o amante do dia, pensa que o ritmo da
terra conspira em seu favor, que o sol forja sua inocência. Mas o sol lancinante do dia
do enterro é o presságio de que o cosmo, a bem da verdade, joga contra a felicidade
dos homens: é o que o impede de prosseguir 1194 . O homem não se conforma à
limitação de sua existência: a natureza o engole em sua determinação inescapável de
finitude.
O sol que até então se mostrara redentor na vida de Meursault mascarara seu
poder de calcinar até o dia do enterro. O sol – a tirânica ordem do cosmo - que é da
beleza, mas também da indiferença e da injustiça, mostrará sua face cruel numa tarde
na praia, desumanizando peremptoriamente nosso herói, repondo-o na facticidade que
é a cronologia do homem: “O sol caía quase a pique sobre a areia e o seu brilho no
mar era insustentável.”(...) “Mal se respirava, neste calor de rachar que subia do
chão”(...) “A areia e ferver parecia-me vermelha”(...) “O sol estava agora
esmagador. Estilhaçava-se na praia e ao mar.”(...) “Quando Raymond me deu o
revólver, o sol refletiu-se na arma...Pensei neste instante que disparar ou não
disparar, era tudo o mesmo”(...) “Ficar e partir vinha a dar na mesma”(...) “Era o
mesmo brilho avermelhado”(...) “Pensei que me bastava voltar para trás e tudo
ficaria resolvido. Mas atrás de mim comprimia-se uma imensa praia vibrante de
sol(...)A ardência do sol queimava-me as faces e senti o suor amontoar-se nas
sobrancelhas. Era o mesmo sol do dia em que minha mãe foi enterrada ,e, como
então, doía-me a testa(...)Por causa desta queimadura que já não podia suportar
mais, fiz um movimento para a frente. Sabia que era estúpido, que não iria
desembaraçar do sol simplesmente por dar um passo a frente. Mas dei um passo, um
só para frente. E desta vez, sem se levantar, o árabe tirou a navalha do bolso e a
mostrou ao sol. A luz refletiu-se no aço e era como uma longa lâmina faiscante que
me atingisse a testa. Os meus olhos ficaram cegos, por detrás desta cortina de
lágrimas e de sal. Sentia apenas as pancadas do sol na testa e, indistintamente, a
espada de fogo brotou da navalha, sempre diante de mim(...)Foi aí que tudo vacilou.
O mar enviou-me um sopro fervente e espesso(...)Parece-me que o céu se abria em
toda sua extensão, deixando tombar uma chuva de fogo. Todo o meu ser se tesou e
1193
Em francês, “tricherie” é um termo utilizado em Le Mythe de Sisyphe,p23.(Folio Essais)
1194
Lembremos a via crucis do enterro sob o sol crepitante e o desmaio de Perez.
317
crispei a mão que segurava o revólver. O gatilho cedeu, toquei na superfície lisa da
coronha e foi aí, com um barulho ao mesmo tempo seco e ensurdecedor, que tudo
principiou.” 1195
É esta injustiça interna à Justiça que inocenta o mais culpado dos homens –
mesmo Meursault - visto que mata em nome da lei e do código moral - não para
glorificar o inocente ceifado, mas para estabelecer, através da proliferação do
martírio, a incontestabilidade de sua letra e de sua força.
1198
Idem, 1171.
319
primeira” 1199 : É esta postura humanista o arcabouço ético que Camus emprega na
descrição dos dias enclausurados do condenado à morte e do “martírio” diante da
aproximação gradual do instante do cumprimento ‘refletido’, ‘justo’ e ‘preciso’ da lei.
A vida, mesmo reduzida àquela caverna, ainda valia à pena, com a fumaça dos
cigarros queimados, os azulejos e o sono quase ininterrupto.
Com a clausura, a memória se avivara, entremostrando, através das treliças da
sonolência, raios de lucidez: “Mamãe dizia que não se é jamais completamente
infeliz. Mesmo na prisão continuava a concordar com ela, quando o céu se coloria e
um novo dia entrava em minha cela” 1201
Este apego apaixonado à vida, renovado a cada raio de sol, não permite que
Meursaut permaneça indiferente após sua condenação à morte, a qual recebe sem
surpresa.
1199
CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine in Réflexions sur la peine capitale.p.144. Este panfleto
humanista contra a pena de morte se inicia com a narração do que seria a história de seu pai - quando
este presencia a execução de um criminoso em Argel. Este mesmo fato será também narrado n’O
Estrangeiro, a seguir.
1200
Idem. p.1176. Como ficara conhecido durante o inquérito.
1201
Idem. p.1205.
1202
CAMUS, A . Le Mythe de Sisyphe. p,23.
320
1203
Idem.p.1202
1204
“…o mecanismo mais uma vez esmagava tudo: era-se morto discretamente, talvez com um pouco
de vergonha, mas com muita precisão.”(Idem, 1203)
1205
Idem. p. 1202.
321
1206
“ Compreendi que destruíra o equilíbrio do dia, o silêncio excepcional de uma praia onde havia
sido feliz. Voltei então a disparar mais quatro vezes contra um corpo inerte, onde as balas se
enterravam sem se dar por isso. E era como se batesse quatro breves pancadas à porta da
desgraça(malheur).”
1207
Idem, p.159
1208
“Sentia-me agora outra vez calmo(...)Como se esta grande cólera me tivesse limpado do
mal...”(L’Étranger, 1210-2.)
322
autoriza aqui a certeza mais implacável(...)A morte, ela, não comporta nem graus
nem probabilidades. Ela fixa todas as coisas, tanto a culpabilidade quanto o corpo,
numa rigidez definitiva.” 1209 Camus ajunta em seguida: “Que Caim não seja morto,
mas que conserve aos olhos dos homens um signo de reprovação...” 1210
Não é à toa, que Meursault, em relação à justiça, cultiva apenas uma nesga de
revolta, de náusea, e, sobretudo, de desprezo: “Que importa se, acusado de um crime,
era executado por não ter chorado no enterro de minha mãe?” 1213
Assim, podemos divisar n’O Estrangeiro, uma dimensão ética muito bem
delineada no que diz respeito à recusa da pena capital, de modo que podemos
considerá-lo de certa perspectiva, até mesmo uma heurística da inutilidade e do horror
de sua aplicação. Dilatando o conteúdo da representação da pena de morte, podemos
assinalar que a narrativa da condenação de Meursault, manifesta uma postura
humanista de recusa, que é mais abrangente, da violência - em especial da violência
de estado que é legitimada pela lei.
1209
CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine.pp.160, 1.
1210
Idem.p.197
1211
CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine in Réflexions sur la peine capitale.p.144.
1212
CAMUS, L’Étranger. p.1203.
1213
Idem, p.1211.
323
de Koestler. Der algum modo suas intuições poderosas estão presentes nos pleitos de
Camus junto ao governo da França pela revogação da pena de morte dos estudantes
árabes Bem Sadok e Taleb Abderrahmane condenados na guerra de liberação colonial
na Argélia: “Diante do crime, como se define em efeito nossa civilização?A resposta é
simples: nesses trintas anos, os crimes de Estado superam de longe os crimes dos
indivíduos(...)O número de indivíduos mortos diretamente pelo Estado tomou
proporções astronômicas e ultrapassa infinitamente os assassinatos particulares.” 1214
1214
CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine. p.194.
324
Meursault se rebela não pelo fato de ser morto pela crueldade de uma justiça
injusta, ou pela ausência do paraíso após a morte, mas simplesmente, por deixar de
viver. Embora seja a morte a margem da questão, é um problema de vida que lhe
ocupa. Trata-se de atribuir um sentido – mesmo que o da incompreensibilidade – a
esta vida como ela lhe aparece no calor desta expectativa do cadafalso: sofrida,
absurda, mas emanando tonalidades de luz e aromas da terra, desejos, lembranças, e a
nostalgia destes vinte anos que estava prestes a não viver.
Qual poderia ser o sentido da vida deste homem que vivera, vira morrer,
matara, e iria morrer?
1215
Idem.p.19. O pensamento do verme é o pensamento da morte segundo Le Mythe de Sisyphe.
1216
“Quando acabou, dirigiu-me a palavra tratando-me por ‘meu amigo’: se me falava desta forma,
não era por eu ser um condenado à morte; na sua opinião, todos nós éramos condenados à
morte.”(p.1210)
1217
Idem.1210.
1218
Idem.p.1210.
325
“Agarrava-o pela gola da sotaina. Atirava para cima dele <<do padre>>todo
o fundo de meu coração com impulsos de alegria e de cólera. (...)Tinha tido razão.
Vivera de uma dada maneira e poderia ter vivido de outra maneira. E depois? Era
como se durante este tempo todo tivesse estado à espera deste minuto...e dessa
madrugada em que seria justificado.(justifié)” 1219
Talvez não seja excessivo abrirmos um parêntesis para notar que, nesta
narrativa de Camus, a exemplo do teatro grego ou do pessimismo clássico de Pascal,
não há diferença do ponto de vista existencial, entre fatalidade e contingência.
Poderíamos dizer que o contingente é a face humana do destino em realização ou que
a fatalidade é um modo humano de apreensão da contingência. N’O Estrangeiro, não
há contrariedade entre a ordem da natureza e a justiça, e o que faz eticamente
inaceitável a “justiça de estado”, do ponto de vista da condenação à morte, é
1219
Idem, 1210. Talvez não seja excessivo notar que justifié, significa a um só tempo, justificar,
legitimar e inocentar.(Le Petit Robert)
1220
“…já que um só destino devia eleger-me a mim próprio e comigo milhares de privilegiados que,
como ele, se diziam meus irmãos?”(p.1211)
1221
Idem, 1211.
326
1222
CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine.p 165
1223
Idem, p.165.
327
Nos trechos finais d’O Estrangeiro é que se alça um dos mais dissonantes
acordes éticos que pretende exprimir Camus: A persistência do amor à vida e o
imperativo de perseverar mesmo em face à desrazão e à indiferença - “Julgo que
dormi, pois acordei com estrelas sobre o rosto. Subiam até mim ruídos campesinos.
Aromas de noite, de terra e de sol refrescaram-me as têmporas. A paz maravilhosa
deste verão adormecido entrava em mim como uma maré. Pela primeira vez, havia
muito tempo, pensei na minha ‘mãe’. Julguei ter compreendido por que é que, no fim
da vida, arranjara um ‘noivo’, por que é que fingira recomeçar. Também lá, em redor
deste asilo onde as vidas se apagavam, a noite era como uma treva melancólica. Tão
perto da morte, a minha mãe deve ter-se sentido liberada e pronta a tudo reviver.
Ninguém, ninguém tinha direito de chorar por ela. Também eu me sinto pronto a tudo
reviver.” 1224 Esta persistência no amor à vida, de tudo reviver - e, no limite, a
felicidade diante do absurdo é que tentaremos, ainda que rapidamente, esmiuçar
entrelaçando os itinerários de Meursault e Sísifo.
1224
CAMUS, A. L’Étranger.p.1211-2.
1225
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.164.
1226
Idem.163.
1227
“Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício
indizível no qual todo o ser se empenha e não terminar coisa alguma. É o preço pelas paixões da
Terra.” (CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.p.164.)
328
1228
“Apesar de tantas provas, minha idade avançada e a grandeza da minha alma me levam a julgar
que tudo está bem.”<<Édipo, de Sófocles>> in CAMUS, A. Le Mythe..164.
1229
CAMUS.A. L’Étranger.p.1122.
1230
Idem. p.168.
1231
CAMUS, A. L’Étranger. p, 1211.
1232
Podemos pensar, cotejando O Estrangeiro com o tema d’O Mito de Sísifo, que, filosoficamente, é a
recusa do suicídio que se dá aqui: mesmo quando a vida perde seu verniz de sentido.
1233
MS, 138.
1234
PASCAL, B. Pensées. (Br. 409)
329
1235
CAMUS, A. L´Envers et l´Endroit. Entre oui et non. OC, I. p.48
1236
Aquele que mata, morrerá...
330
leitor, como agente ético, associar voluntariamente o sim à vida (apesar do absurdo)
com a recusa de matar (nem tudo é permitido, mesmo ao condenado) 1237 .
O leitor ético deve comiserar-se com o homem, feito de carne e luz - da
mesma matéria de nossos sonhos, culpas e frustrações (heróico em sua persistência
apaixonada de viver) e indignar-se contra a “engrenagem”: seja a do cosmo - que
mata - seja a da lei, que, imitando a crueldade do tempo aniquila em virtude de uma
suposta ordem: “Se a morte está na natureza, a lei não é feita para imitar ou
reproduzir esta natureza. Ela é feita para a corrigir.” 1238
Esta engrenagem avassaladora é, afinal, em Camus, símbolo da história tal
como o homem (insignificante em relação aos acontecimentos) a percebe: recoberta
por forças aparentemente irresistíveis.
Talvez não seja excessivo notar que recusar-se à mecânica da engrenagem
histórica - à vingança de sangue, e às ideologias que coroam a eficácia da barbárie - é,
em meio às guerras e lutas revolucionárias da primeira metade do século anterior, uma
postura ética de absoluto rigorismo. Neste ponto, a oposição de Camus à postura
política de Sartre, nas décadas de 40 e 50, se mostrará evidente: “Dos idílios
humanitaristas do século XVIII aos cadafalsos sanguinolentos, a rota é reta e os
carrascos de hoje, cada um o sabe, são humanistas.” 1239
A resposta de Camus ao pai do assassino confesso Claude Panconi - que pede
sua intervenção no momento da condenação à morte do filho - é índice desta chave
humanista de leitura: “Sim, eu nego, e sem ressalvas que O Estrangeiro possa incitar
ao crime: este livro, como todos os meus outros livros, sem exceção, ilustra a sua
maneira, meu horror do castigo absoluto e a interrogação angustiada diante de toda
culpabilidade 1240 . Minha profissão, meu senhor, e digo pela primeira vez com
tristeza, não consiste em acusar os homens - Consiste em os compreender, a dar uma
voz à sua infelicidade comum.” 1241
Dar voz a infelicidade comum da condição humana, revitalizar o valor da vida
humana singular em meio ao niilismo cego, ao silêncio das ideologias, à diluição dos
1237
Tema que será contemplado pelo O Homem Revoltado.
1238
CAMUS, A. Réflexions sur la guilhotine.p,165.
1239
Idem, 195.
1240
Interrogação angustiada sobre a culpabilidade que paira na obra futura de Camus, como em Tarrou
de A Peste, “que recusava aos homens o direito de condenar alguém, sabendo no entanto que não
podemos deixar de condenar, e que mesmo as vítimas se encontram às vezes como carrascos, vivera no
dilaceramento e na contradição, sem conhecer nunca a esperança.”(CAMUS,A. La Peste. p.1459)
1241
CAMUS, A. Réflexions sur la guillotine.p.165.
331
1242
CAMUS, A. La Peste. Théâtre Récits, Nouvelles.p.1423. (Tarrou)
332
1243
“Trouver une démesure dans la mesure.”(Février, 1938.)
1244
(Br.82-L.44)“Qui tient le juste milieu qu´il paraisse et qu´il prouve.”
333
dificilmente acreditamos nelas quando nos chegam. Sempre houve no mundo pestes e
guerras; entretanto, pestes e guerras nos acham desprevenidos.” 1245
Cunhado, como os demais, nos moldes tradicionais de uma sociedade erigida e
fundamentada numa razão prepotente, Rieux hesita confrontar-se com um
acontecimento tão paradigmático da absurdidade quanto as guerras, revelador, tanto
quanto elas, do crepúsculo das ilusões de altivez e prevalência antropocêntricas: “O
doutor estava desprevenido, como os outros; assim compreendemos suas hesitações.
Inquietava-se e confiava. Quando estoura uma guerra, os homens dizem: - ´Isso dura
pouco, é idiota´. Sem dúvida a guerra é idiota, mas não deixa de prolongar-se. A
tolice continua; não a percebemos porque sempre estamos a pensar em nós mesmos.
Noutras palavras, eram humanistas; não acreditavam nos flagelos. O flagelo escapa
às previsões do homem – e dizemos que o flagelo é irreal, um sonho mal que vai
desaparecer. Não desaparece -e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que
desaparecem, os humanistas em primeiro lugar, pois não tomam precauções.” 1246
Rieux se pergunta como os moradores de Orã, absortos e adestrados em seus
cotidianos pré-moldados, colonizados na arrogância do humanismo, conviverão com a
nova realidade instaurada pouco a pouco pela peste, que, inexoravelmente – calcula –
em breve cristalizará seus mais belos projetos: “Os habitantes da cidade não tinham
culpa de ser assim; esqueciam a modéstia, julgavam que tudo ainda era possível para
eles, o que supõe que os flagelos são impossíveis. Continuavam a fazer negócios,
projetavam passeios e tinham opiniões. Como iriam ocupar-se da peste, que suprime
o futuro, as mudanças, as discussões?” 1247
O médico sintetiza suas inquietações quanto ao despreparo de seus
concidadãos para o flagelo, visto que estes se mantém culturalmente reféns de um
narcisismo antropocêntrico natimorto: “Julgavam-se livres – e ninguém nunca será
livre enquanto houverem flagelos.” 1248
Preocupa o doutor Rieux a falta de “imaginação para a morte dos outros” 1249
de seus concidadãos, a incapacidade de perceber o quanto todos, sem excessão, estão
1245
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247. Sempre que tecnicamente possível,
conservamos a tradução brasileira de Graciliano Ramos(Opera Mundi, Rio de Janeiro, 1973)
1246
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247.
1247
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1247-8.
1248
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.
1249
Vale notar o retorno à preocupação de Nem Vítimas, Nem carrascos: “Este argumento foi
apresentado com força[acusação de utopia contra a recusa da legitimação da violência por Camus].
Mas creio que se o apresentam com tanta força é porque as pessoas que o apresentam não tem
imaginação para a morte dos outros. É um defeito de nosso século. Assim como se ama por telefone, e
334
implicados neste caso - avaliando de maneira realista que a ordem da aniquilação está
em vigor – inaptidão para a compaixão que mede pela sua própria dificuldade de
conceber e “projetar” o sofrimento humano em larga escala: “...o perigo permanecia
irreal para ele. Mas, quando se é médico, faz-se uma idéia da dor e tem-se um pouco
mais de imaginação (...) Procurava juntar no espírito o que sabia daquela doença. Os
números lhe flutuavam na memória: umas trinta grandes pestes conhecidas tinham
feito quase cem milhões de mortos. Na guerra, já nem sabemos que é um morto. E se
uma pessoa morta só nos impressiona quando a vemos, cem milhões de cadáveres
semeados na história representam na imaginação uma vaga fumaça.” 1250
Rieux se esforça para traduzir em termos de uma significação verdadeiramente
humana os dados provenientes dos relatos históricos caricaturados pelo tempo e pela
frieza das estatísticas, ambos desencarnados: “O doutor se lembravada da peste de
Constantinopla, que, segundo Procópio, tinha feito dez mil vítimas num dia.Cinco
vezes o público de um grande cinema. Eis o que seria necessário experimentar.
Reunir as pessoas à saída de cinco cinemas, levá-las a uma praça e matá-
las.Teríamos alguma clareza, pelo menos daríamos rostos conhecidos a esse
agrupamento anônimo.” 1251
Diz Rieux, ingenuamente, em meio aos conturbados e densamente nebulosos
anos quarenta 1252 : “É impossível realizar isso, naturalmente, e ademais, quem
conhece dez mil rostos?” 1253
Atiçando a própria imaginação, “o doutor se impacientava” 1254 - Ora, como
diria Pascal, ressaltando na faculdade imaginativa seu caráter não apenas pedagógico
mas verdadeiramente construtor da conceção humana do mundo, “o maior filósofo do
mundo, sobre uma táboa(planche), por mais larga que seja, se houver embaixo um
precipício, embora a razão o convença de sua segurança, a imaginação prevalecerá.
que se trabalha não mais sobre a matéria, mas sobre a máquina, se mata e se morre hoje por
procuração. A‘limpeza’(propreté) é conquistada, mas a consciência perdida (CAMUS, A . Camus à
Combat, p.614. Combat 20 novembre 1946.) (E, 334.)(OC, p.439.)
1250
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.
1251
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.
12521252
“Os curiosos acontecimentos que são objetos desta crônica se produziram em 194.,em Oran.”
(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1219.)
1253
Talvez não seja excessivo assinalar que metodologia similar se asseverará não apenas possível mas
legítima na conjuntura de dezenas de regimes, totalitários ou messiânicos, através da história do século
XX e do recente século XXI. CAMUS, A. La Peste.Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.
1254
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1248.
335
Muitos não poderiam pensar sequer nisso sem empalidecer e suar...” 1255 - “Atenas
empestada pelos pássaros; cidades chinesas cheias de moribundos silenciosos; os
corpos dos galés de Marselha empilhados em buracos, liquefazendo-se; a muralha
erguida em Provença para conter o vento furioso da peste; Jafa e seus mendigos
horrorosos; camas úmidas e podres no chão sem ladrilho do hospital de
Constantinopla; doentes suspensos em ganchos; o carnaval dos médicos mascarados,
na peste negra; ajuntamento de vivos no cimitério de Milão; carretas de mortos a
apavorar Londres; e noites e dias, sempre, em toda parte, cheios dos gritos
intermináveis dos homens.” 1256 “Estamos presos por um fio” 1257 : Rieux procura em
vão se habituar - pela disciplina de um imaginário lúcido, pelo exercício de uma
memória ética ancestral - com o terror que terá que enfrentar, mas é vencido pelo
acalanto emanado de uma razão de altivez insistente e pela vitalidade iluminada do
mediterrâneo 1258 : “Mas esta vertigem não prevalecia diante da razão(...)Não. Tudo
isso não é ainda bastante forte para matar a paz daquele dia(...) e uma tranquilidade
tão pacífica e tão indiferente negava quase sem esforço as velhas imagens do
flagelo.” 1259
O que se segue é o relato da coexistência dos cidadãos de Oran com a
percepção e a expectativa, doravante agudas, da finitude; com o confinamento e o
exílio, com a privação e o sofrimento; com o definhamento progressivo da dignidade
e da esperança; noutras palavras, com a experimentação efetiva do mal.
E é a absoluta banalidade do mal que escorre do relato dos acontecimentos.
A engrenagem da morte seria vivida com bastante naturalidade se não fosse
pelos contratempos do exílio e do confinamento: “Na miséria comum, preservava-os
o egoísmo do amor, e só se lembravam da peste porque ela ameaçava eternizar a
separação.” 1260
1255
PASCAL, B. Pensées. (Br.82) Neste sentido a dimensão ética da imagem de Camus é herdeira
direta do legado dos moralistes do século XVII, para quem a imagem, no caso de Pascal pulverizada no
caleidoscópio dos Pensamentos, é constitutiva do procedimento da anatomia antropológica e moral.
Como em Rembrandt, em Pascal (e em Camus) o pensamento se exprime na imagem e o esforço
central de A Peste é o de unificar, pela imagem, o problema da condenação da condição humana às
engrenagens, históricas e metafísicas, da ordem penal.
1256
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.
1257
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.
1258
“Só o mar, além do tabuleiro baço das casas, afirmava a inquietação do mundo.”(CAMUS, A. La
Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.)
1259
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.
1260
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1249.
336
1261
O próprio Camus faz uma reportagem em 1939 sobre o tema, intitulado Misère en Kabylie, mais
tarde reprisado nas Croniques algeriènnes(1939-1958).
1262
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1288-9.
1263
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1289.
1264
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1289-90.
337
1265
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1290-1.
1266
“Numa saleta, perto do consultório, improvisara uma antecâmara. No chão cavado formava-se um
lago de desinfetante e no centro havia uma ilhota de tijolos. O doente era colocado em cima da ilha,
despiam-no, a roupa caía na água. Lavado, enxuto, metido na áspera camisa do hospital o doente era
levado a outra sala. Fora preciso utilzar os pátios de recreio de uma escola, onde havia agora
quinhentos leitos, todos eles ocupados. Depois do trabalho de manhã, que ele mesmo dirigia, vacinas
em doentes, bulbões incisados, Rieux examinava as estatísticas, regressava para as consultas da tarde.
Ao anoitecer, finalmente, fazia visitas e recolhia-se tarde.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits,
Nouvelles. p.1291.)
1267
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1283.
1268
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1284.
338
condição miserável: “...os homens que que percebem naturalmente a sua condição
evitam por todos os modos o repouso e tudo fazem para procurar o
tumulto”1269 (...)Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem
paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu
abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio.” 1270
A tranquilidade enganadora das tardes da cidade sitiada só é quebrada pelos
gritos esparsos e pelas sirenes exigidas pelo trabalho exasperante e, por que não,
violento, de Rieux - diagnosticar e exigir o isolamento dos doentes, se necessário por
meio de aparatos policiais, conforme a metodologia sanitária conveniada como
apropriada para a convivência com o flagelo: “´Tenha pena doutor´, implorava a Sra.
Loret, mãe da arrumadeira que trabalhava no hotel de Tarrou. Que significava isso?
Pena ele tinha, é claro. Mas isso não ajudava ninguém. E logo soava a campainha da
ambulância.” 1271
Enquanto os dias e os números de vítimas se multiplicam, o doutor Rieux,
interroga-se continuamente sobre sua dura função no ritual macabro e preciso exigido
pelo flagelo. Perscrutando seu trabalho cotidiano, ele nota em si mesmo um
progressivo distanciamento nascido da exigência mesma de cumprir
responsavelmente sua tarefa: “Na sensação deste coração fechando-se lentamente em
si mesmo, o doutor encontrava o único alívio nesses dias esmagadores. Ele sabia que
sua tarefa ia ser facilitada. É por isso que se alegrava(...)Para lutar contra a
abstração, é preciso assemelhar-se um pouco com ela.” 1272
Se alguns habitantes de Orã fogem à peste pelo esquecimento - no
divertimento – outros, pela pura indiferença - como no caso do “homem dos gatos”,
que permanece entretido com suas pequenas maldades – outros ainda, dela se nutrem.
Cottard, por exemplo, sobrevivente de uma tentativa malograda de suicídio,
subitamente retoma o bom humor diante da calamidade - e, com o avanço da doença,
até mesmo prospera às custas do mercado negro surgido com o fechamento da cidade;
1269
PASCAL, B. Pensées. Br.139 –L.136.
1270
PASCAL, B. Pensées. Br.131 –L.622. “O povo tem opiniões muito sadias: por exemplo:
1)Escolher o divertimento, e a caça no lugar da prêsa: os semi-hábeis zombam e triunfam, mostrando
com isso a loucura do mundo; mas por uma razão que não penetram, o povo tem razão.”(Br.324-L-
110)
1271
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1282,1291.
1272
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1293. Se evidencia o intertexto com a
concepção de engajamento histórico delineado nas Lettres à un ami allemand: “Foi necessário entrar
na vossa filosofia, aceitar parecer um pouco convosco(...)Nós fomos obrigados a vos imitar para não
morrer.”(CAMUS, A. Lettres à un ami allemand.p. 242)
339
“Cottard se acha à vontade no terror” 1273 : “Saindo do hospital, dois dias depois do
fechamento das portas, o doutor Rieux encontrou Cottard, que parecia muito
satisfeito. Rieux gabou-lhe a aparência. – Sim as coisas vão muito bem- disse o
homenzinho. – Mas, doutor, que peste miserável, hem? Está ficando séria. O doutor
concordou. E o outro afirmou com certa jovialidade. – Não há razão para que ela
pare agora. Vai-se escangalhar tudo.” 1274
Mas é o padre Paneloux que é paradigma desta nutrição pela morte que é a
fundamentação mesma da Igreja para Camus - convicção prenunciada pela explosão
de ira de um Meursault atormentado à beira do cadafalso por um vampiresco
capelão 1275 .
Alquebrados pela privação, pela clausura e pela separação, amedrontados,
abandonados à própria sorte, fragilizados, expulsos da vida em vida 1276 , os oranenses
se apressam à missa em busca de uma escatologia para sua expiação coletiva, “a
catedral de nossa cidade, em todo caso, esteve abarrotada de fiéis quase toda a
semana.” 1277 A pregação do padre Paneloux - na sorumbática catedral de Orã,
cheirando à “incenso e roupa molhada”, sob uma “chuva torrencial” - sedimentada
por milênios de uma “verdade” 1278 preparada sob medida para tempos de desgraça
absoluta, encarna este procedimento parasitário de nutrição pela adversidade
constitutiva da condição humana, típico do cristianismo: “Meus irmãos, vocês se
encontram na desgraça, meus irmãos, vocês a mereceram(...)Citou a passagem do
Êxodo relativa à peste no Egito e disse: - «Foi para abater os inimigos de Deus que
pela primeira vez houva na história o flagelo. Faraó contrariou os desígnios eternos,
mas a peste o fez cair de joelhos. Desde a origem da história o flagelo de Deus feriu
cegos e orgulhosos.» Meditai nisso e prostai-vos.” 1279
Naquele dia, no alto do púlpito, vestido à caráter, Paneloux se valia, é claro, de
milênios de adestramento religioso pela atrição, das mais refinadas artes da oratória,
mas também da atmosfera apocalíptica fornecida pelo dilúvio que se abatia sobre a
1273
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1380-1.
1274
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1284. (Tradução de referência de Graciliano
Ramos)
1275
“....qualquer coisa se partiu dentro de mim. Comecei a gritar aos berros, insultei-o e disse-lhe
para não rezar. Agarrara-o pela gola da batina(...)Nenhuma de suas certezas vale um cabelo de
mulher.”(CAMUS, A. L´Étranger. p.211.)
1276
Situação de condenação à morte encarnada por Meursault.
1277
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1295.
1278
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1294.
1279
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1296.
340
1280
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1296-7.
1281
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1296.
1282
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. pp.1299-1300.
1283
“...embora a cidade pouco a pouco se habituasse a ele, ninguém sabia donde vinha e nem porque
estava ali...” (p.1235) Mais tarde, Tarrou confessa a Rieux, “...não há um país na Europa aonde eu
não tenha partilhado lutas.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.
341
Aliás, como o próprio narrador admite, talvez não seja necessário “dar às
formações sanitárias mais importância do que tiveram.” 1284 Mesmo porque, se
passados os acontecimentos, os cidadãos de Orã “cedem à tentação de exagerar seu
papel” 1285 , sabe-se, entretanto, refletidamente, que foi questionável a eficácia de suas
ações em face do flagelo. Segundo o narrador, entretanto, além da nobreza de seu
combate cotidiano, no qual os sanitaristas empenhavam a própria vida, é louvável nas
“formações” a contribuição na conscientização da população para a dimensão coletiva
do problema incontornável que os afligia: “O mérito dos que se dedicaram às
organizações sanitárias não foi grande, pois não podiam se comportar de outro
modo, e o contrário é que teria sido incrível. Esses indivíduos levaram a pupulação a
habituar-se ao flagelo, e todos afinal se convenceram de que a doença estava ali e e
era precso lutar contra ela. Tornando-se a peste ocupação de alguns, apresentou-se
realmente o que era, problema geral. Até aqui tudo bem. Mas não felicitamos um
mestre por ensinar que dois e dois são quatro.Talvez o felicitemos por ter escolhido
tão bela profissão.” 1286
As formações sanitárias nascem de uma reinvindicação de Tarrou junto à
Rieux - encarregado dos assuntos sanitários junto à prefeitura. Ele exige uma
coletivização da luta contra a peste que supra o imobilismo oficial a quem “falta
imaginação” e que “não percebe os flagelos” - “se continuarem assim , morrerão
todos e nós com eles” 1287 : “- Dentro de quinze dias ou de mês, o senhor não será
mais útil aqui. Foi vencido pelos acontecimentos. – É exato. – disse Rieux. A
organização do serviço sanitário é má. Faltam-lhes homens e tempo(...)Planejei
organizar formações sanitárias voluntárias(...)Tenho amigos em toda parte.
Formarão o primeiro núcleo, e naturalmente participarei dele.” 1288
O caráter por vezes frio, “abstrato” e de firmeza quase ditatorial da
metodologia posta em prática por Rieux como encarregado da saúde do município, se
potencializa com o alastramento do flagelo e com os aperfeiçoamentos impostos pelas
“formações sanitárias voluntárias”, organizadas por Tarrou.
1284
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326. Se evidencia, como veremos adiante
mais detidamente, a analogia com a Resistência Francesa – movimento extremamente importante e
significativo, mas não propriamente pela eficácia de sua ação histórica.
1285
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326.
1286
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1327.
1287
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1321.
1288
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1320-1.
342
1289
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1356-7.
1290
“De começo o que caracterizava nossos enterros era a rapidez!(...)tudo se passava
verdadeiramente com o máximo de rapidez e o mínimo de riscos. Sem dúvida, pelo menos no princípio,
o sentimento natural das famílias se ofendeu(...)E tudo estaria bem se a epidemia não tivesse
propagado, conforme vimos. ”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1360.)
343
consentiam chegar à porta do cemitério, e isso não era oficial, pois na última
cerimônia, as coisas tinham mudado um pouco. No extremo do cemitério, num espaço
coberto de almecegueiras, tinham aberto duas enormes fossas, uma para homens,
outras para mulheres. Como se vê, a administração respeitava as conveniências, e só
muito mais tarde esse pudor final desapareceu: homens e mulheres se juntaram nas
covas, sem nunhuma decência. Felizmente essa confusão veio nos derradeiros
momentos do flagelo. No período que nos ocupa existia separação das fossas,
mantida com rigor(...)No outro dia os parentes eram convidados a assinar um papel,
e isto indicava a diferença que pode haver entre os homens e os cães, por exemplo: o
registro ainda era possível.” 1291
Não pode passar despercebida a premissa da eficacidade pela qual se pauta a
administração das “formações sanitárias” – “até o fim de agosto nossos concidadãos
foram sepultados, senão decentemente, pelo menos de modo à sugerir à
administração a consciência de cumprir o seu dever.” 1292
O limiar desta desumanização administrativa produzida pelas necessidades da
peste é sintetizada pelos “bondes da praia”, convenientemente reformados e
desviados “para a linha do forno, que se tornou estação final.” 1293
Também é de limiar a situação de desumanização sofrida pela criança
empestada, sem nome, filho do juiz, isolado dos pais por força dos imperativos
categóricos do estado de excessão1294 - deixada nas mãos de nossos administradores
da peste - que, agora, nela infundem, pela primeira vez, e sem nenhuma garantia, um
soro experimental: “Experimentou-se no fim de outubro o soro de Castel.” 1295
“Instaram a criança no hospital auxiliar, numa velha sala de classe, onde
haviam posto dez camas. Ao cabo de vinte horas, Rieux julgou o caso perdido(...)Por
isso Rieux teve a idéia de experimentar o soro de Castel. À noite, depois do jantar,
fizeram a demorada inoculação sem obter uma única reação da criança. No dia
1291
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1361. Os intelectuais que não possuem
imaginação “para a morte dos outros”, quem sabe tomem proveito desta soturna descrição, que nada
mais é do que a transposição camusiana da desumanização do homem provocado pelas pestes da guerra
e da indiferença – pragas que nos assolam mais do que nunca hoje - tantas vezes fomentadas e
legitimadas pela presunção da verdade.
1292
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1363.
1293
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1364. Escrito entre 1939 e 1944, mas
publicado somente em 1946, deixamos em aberto se esta invocação imagética de Camus, tão
significativa da maligna aliança contemporânea entre eficácia e indiferença, é testamental ou
premonitória.
1294
“Era necessário, se um deles estivesse infectado sem saber, não multiplicar as probabilidades do
contágio.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1363.
1295
“...que le sérum de Castel fut essayé.”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1391)
344
seguinte, pela madrugada, reuniram-se todos em torno do menino para julgar aquela
experiência decisiva.” 1296
Já não era um garotinho que jazia ali: mas um experimento decisivo.
Submetida, à revelia dos pais ao constrangimento da análise e da intervenção
agressiva, observado e medido, - “Castel, sentado(ao pé da cama), lia, com aparência
tranquila, uma obra antiga” - isto é, reduzido e coisificado como uma cobaia, o
martírio da “criança” sem nome é redobrado: “- Não houve remissão matinal, não é
verdade Rieux? Não tinha havido, mas a criança resistia mais tempo que o
previsto.” 1297
Na narrativa de Camus, a profilaxia se mostra tão onerosa quanto a peste:
moralmente, parece ainda mais avassaladora visto que o mal e a privação são como
que produzido por homens e não por um destino esmagador.
O experimento prossegue, numa agonia vigiada e julgada por um corpo
administrativo que, afinal, não parece sequer conhecer o nome da “criança”: “À
cabeceira, o corpo maciço de Tarrou(...)ao pé da cama, Rieux se conservava em pé;
Castel(...)lia, com aparência tranquila(...)Pouco a pouco, à medida que a luz
aparecia na velha sala da escola, os outros foram chegando(...)Primeiro Paneloux,
depois Tarrou(...)Grand chegou às sete horas (ficaria apenas um
instante)(....)Rambert encostou-se à cama próxima, tirou um maço de cigarros. Olhou
a criança, meteu os cigarros no bolso(...)Sabiam já o resultado, com certeza. Em
silêncio, Rieux mostrou o menino, que, de olhos fechados, as feições descompostas, os
queixos cerrados, o corpo imóvel, agitava a cabeça de um lado para o outro no
travesseiro sem fronha.” 1298
Mas a imparcialidade do julgamento objetivo do experimento é quebrado pela
progressiva comiseração da administração, principalmente de Rieux, que até então “se
conservava em pé”. Com o acirramento do combate do garoto pela vida, os
voluntários demovem seu corações embotados pelas exigências cotidianas: “Tinham
assistido à morte de crianças, pois o terror, meses e meses,não fazia escolha, mas
ainda não tinham seguido, como agora, minuto a minuto, o sofrimento delas.” 1299
Para os voluntários, “a dor inflingida aos inocentes nunca deixará de parecer o que
era na verdade: um escândalo. Mas até aquele momento o escândalo fora mais ou
1296
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
1297
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
1298
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
1299
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
345
1300
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394. O intertexto com o diálogo entre Ivan
Karamazov e Aliocha, a que Camus faz referência em O Homem Revoltado como veremos a seguir, se
mostra bastante evidente: “Quisera falar do sofrimento da humanidade em geral, mas detenhamo-nos
antes no sofrimento das crianças. Isso reduzirá minha argumentação a um décimo(...)Escuta: se todos
devemos sofrer para pagar a harmonia eterna sob preço do nosso sofrimento, qual a razão do
sofrimento das crianças?.”(DOSTOIEVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p. 643)
1301
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
1302
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394.
1303
“Rieux se voltou subitamente para o eclesiástico, abriu a boca, engoliu a palavra, fez um esforço
visível para dominar-se...”( CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1394-5)
1304
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
346
do mundo regulada pela morte” 1305 , móvel confesso à Tarrou dias antes: “ – Não
padre. Tenho do amor outra idéia. E recusarei até a morte essa criação que tortura
as crianças.” 1306 (...)“- Esse pelo menos era inocente, o senhor sabe.” 1307
Rieux retoma, de maneira bastante evidente, a argumentação de Ivan em face
de Aliócha, quando o mais velho procura inculcar no noviço sua revolta metafísica:
“A harmonia universal não vale uma única das lágrimas de uma dessas crianças
torturadas.” 1308
Ele já expusera à Tarrou sua divergência fundamental em relação ao padre
Paneloux, embora este, como já mencionamos, integre, desde o recrudescimento da
doença, aliás com bastante honradez, as “formações sanitárias”: “Paneloux é um
homem de estudo. Não viu muita gente morrer; por isso fala em nome de uma
verdade.” 1309
O médico, confessa à Tarrou, prefere agir com base na empiria e na
interrogação, ao invés de fundar-se em certezas ou razões “imaginárias”: “ - Vivi
muito em hospitais para aceitar a idéia de castigo coletivo(...)Não sei o que me
espera nem o que haverá depois disto. Hoje sei que há doentes e é preciso curá-los.
Mais tarde eles refletirão e eu também. O mais urgente é curá-los. Defendo-os como
posso, é tudo.” 1310
Por aí, se exprime com clareza que a fundamentação do engajamento
profissional de Rieux reside numa contraposição, tácita e interrogante, à “ordem
mesma do mundo” 1311 : “Ao menos nisso Rieux julgava seguir o caminho da
verdade, lutando contra a criação tal como ela era.” 1312
A contraposição de Rieux à metafísica cristã de Paneloux está, afinal, fundada
numa revolta 1313 , ainda que tácita, contra a contingência: “Como a ordem no mundo é
regulada pela morte, talvez convenha a Deus não crermos nele, por todos os meios
lutarmos contra a morte, sem levantar os olhos para o céu onde ele se cala.” 1314
1305
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323.
1306
“Num movimento arrebatado, Rieux voltou-se, exclamou com violência”(p.1397)
1307
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
1308
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p. 643
1309
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1322.
1310
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323.
1311
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323.
1312
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1322.
1313
“Há horas que apenas sinto a minha revolta.” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.
p.1397.)
1314
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1323.
347
1315
“[Tarrou]- Aprendi muito.” “ Conhece a vida, hem?Julga conhecer tudo – murmurou Rieux. A
resposta veio na mesma voz tranquila. –Acho que sim.”(p.1325) Notar que se Tarrou, humanista
profissional, julga ter “aprendido muito” com a peste enquanto que Rieux considera ter aprendido tão
somente algo: “A miséria.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1324)
1316
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1323.
1317
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1325.
1318
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1324.
1319
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1324.
1320
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1327. Vale assinalar que o contraponto “tácito”
e sem fundamentação teórica de Rieux contra o sofrimento imposto pela “criação”, poderia afinal nos
remeter a 3º “opinião sadia do povo” segundo Pascal: (Br.324-L.101)“- O povo tem opiniões muito
sadias: por exemplo(...)3)Ofender-se por ter recebido uma bofetada(...)um homem que recebe uma
bofetada sem se magoar é acabrunhado por injúrias e necessidades.”
1321
“....Já ouviu uma mulher gritar «Nunca!» Na hora da morte?Eu já ouvi. E não pude me acostumar
a isso. Era de novo, a ordem do mundo me repugnava. Depois fiquei mais modesto. Apenas não me
habituei a ver morrer.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1323.)
1322
CAMUS, A. Lettres à un ami allemand. Essais. p.223.
1323
“Na sensação deste coração fechando-se lentamente em si mesmo, o doutor encontrava o único
alívio nesses dias esmagadores. Ele sabia que sua tarefa ia ser facilitada. É por isso que se
alegrava(...)Para lutar contra a abstração, é preciso assemelhar-se um pouco com ela.”(CAMUS, A.
La Peste.Théâtre,Récits,Nouvelles.p.1293.)
348
e dela procurando até mesmo um refúgio “no céu fresco de primavera” 1324 e na
“tranquilidade pacífica e indiferente” 1325 de sua ensolarada cidade.
Aos pés do garoto, a revolta de Rieux se exprime doravante em compaixão.
Num gesto que sintetiza o exercício de uma racionalidade afetiva, o médico procura
em vão sincronizar seu coração como o coração do paciente que se apega à vida por
um fio: “...era como se os doentes já não sentissem o pavor do começo; havia uma
espécie de consentimento no jeito que se comportavam. Só o menino se debatia com
todas as suas forças. Rieux de tempo a tempo lhe tomava o pulso, num gesto
maquinal, para sair da imobilidade impotente em que se achava, e sentia, fechando
os olhos, aquela agitação misturar-se no tumulto do seu próprio sangue. Confundia-
se então com o menino supliciado, queria sustentá-lo com a força que lhe restava.
Mas o pulsar de seus corações, de acordo por um momento se desarmonizava, a
criança fugia e seu esforço resvalava no vazio.” 1326
Poder-se-ia dizer - entremostrando por aí a constituição progressiva da ética
camusiana, centrada no reconhecimento afetivo da alteridade - que só a partir do
momento que Rieux se dispôs a sofrer conjuntamente à criança ele, afinal, começa a
compreender efetivamente - isto é, afetivamente - seu paciente, e, através dele, o que é
a peste, e o que é o mal: “a miséria.” 1327
A compreensão afetiva do outro, testemunha que a condição humana é
miserável, indigna e beira o insuportável 1328 .
“[O menino] Abriu os olhos pela primeira vez, olhou Rieux. No rosto
cavado,máscara de argila pardacenta, abriu-se a boca e em seguida se ouviu um
grito contínuo, apenas graduado pela respiração; de repente o grito encheu a sala de
um protesto monótono, discorde e tão pocuo humano que parecia vir de todos os
homens juntos. Rieux apertou os dentes, Tarrou desviou-se(...)” 1329
“Mas o menino continuava a gritar e, em roda, os doentes se agitaram. O das
exclamações regulares, no fim da sala, precipitou o ritmo, e o queixume se
transformou es grito verdadeiro, enquanto os outros gemiam cada vez mais alto. Uma
1324
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1249.
1325
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1249.
1326
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.p.1395.
1327
Notar que se Tarrou, humanista profissional, julga ter “aprendido muito” com a peste, o dr.Rieux
considera ter aprendido tão somente algo: “A miséria.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits,
Nouvelles. p.1324)
1328
[Paneloux] “Para mim também esse espetáculo é insuportável.”(p.1397)
1329
“Castel fechou o livro abandonado sob os joelhos...” (p.1395.)
349
1330
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396.
1331
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396.
1332
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1396
1333
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
1334
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
1335
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
350
homens de boa vontade poderão se re-encontrar.” 1336 Rieux diz ao padre Paneloux,
engajado como ele contra a propagação do mal - que a esta altura se revela,
seguramente, um personagem inspirado em François Mauriac1337 : “Nós trabalhamos
juntos por qualquer coisa que nos reúne para além das blasfêmias e das preces. Isto,
unicamente, é importante(...)O que odeio é a morte e o mal, o senhor sabe, e, queira
ou não queira, estamos juntos para suportá-los e combatê-los.” 1338
Por aí podemos divisar que embora engajados contra o mesmo mal, Rieux e
Paneloux, no entanto, se pautam por concepções absolutamente diferentes do
engajamento.
Paneloux – de certo modo como Tarrou, que pensa “saber tudo” – infunde ao
sofrimento humano a inversão histórica tradicional do cristianismo: por que a
realidade do cristão começa, afinal, após a morte, o padre compreende o sofrimento
humano como uma mera travessia em direção à “graça”. Do ponto de vista profundo,
seu foco é a alma e não o corpo. Ele está lá, no combate cotidiano contra o
sofrimento, para aliviar os percalços desta trajetória pré-estabelecida pela ordem
penal: é a salvação(salut)do homem que lhe interessa.
Rieux, por sua vez, comprometido com a modéstia, exerce um engajamento
interrogante contra o sofrimento: “Salvação é palavra um pouco grande para mim.
Não vou tão longe. É a saúde que me interessa.” 1339
Há, afinal, uma passagem oblíqua entre as concepções do engajamento de
Paneloux 1340 e de Tarrou que se evidencia após uma visita que o ativista e o doutor
Rieux fazem aos acampamentos nos quais os infectados, por força da ação pública
eficaz, mantinham-se isolados dos outros habitantes de Orã.
Se o sofrimento da criança anônima inoculada pelo soro experimental de
Castel metaforiza a dimensão metafísica da luta comum contra a absurdidade que é a
1336
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
1337
Remetemos, neste mesmo trabalho, ao capítulo Camus em Combat, no qual estudamos a polêmica
entre Camus e Mauriac. Ali pudemos notar que, embora com horizontes metafísicos distintos, e mesmo
antagônicos, Mauriac e Camus, segundo este último, podem se acordar no que concerne a defesa da
vida e o combate à injustiça. É o que uma palestra de Camus pronunciada no covento Latour-
Malbourg em 1948, intitulada l´Incroyant et les chrétiens,(Essais, p. 371) procurará delinear, redendo
homenagem à François Mauriac(Idem. p.372).
1338
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
1339
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1397.
1340
Abandonamos à míngua este personagem que em algumas páginas definha e morre
misteriosamente, como se após o confronto, -de perto -, com a evidência do sofrimento dos inocentes,
Paneloux se desmotivasse à lutar, até mesmo pela sua própria existência. Sua morte pela peste não é
confirmada: a narrativa insinua que uma “crise mística” encadeia a “desistência” do personagem. O
óbito de Paneloux corresponde ao enterro da concepção metafísica cristã para Camus.
351
1341
GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p.79.
1342
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.
1343
GUÉRIN, J-P. Portrait de l´artiste en citoyen. p.79.
1344
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1424.
1345
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1420.
1346
Tarrou se revolta contra seu pai, funcionário aplicado, com um pendor irresistível pela abstração,
que ganha a vida exigindo a execução de homens, e sabe de cor o guia Chaix - com os horários dos
trens de toda a europa - não obstante desconheça empiricamente tanto os homens como as viagens.
1347
“Quando jovem vivia com a idéia de minha inocência, isto é, sem idéia de nada.”(p.1420)
352
processo até aconclusão, e tive com com o infeliz uma intimidade vertiginosa, que
meu pai não tivera nunca. Este devia, segundo o costume, assistir aos «derradeiros
momentos», expressão polida com que se designava o mais abjeto dos
homicídios(...)Insisti muito nesse princípio porque ele foi realmente o princípio de
tudo.” 1348
O militante internacionalista confessa que no cerne de seu combate contra a
ordem penal da existência, está um contraponto primitivo à condenação à morte, e de
sua fala se desprende uma nova conceitualização do termo peste, entendida também
como metáfora da indiferença ao sofrimento e à ordem penal da existência: “O que me
preocupava era a condenação à morte. Queria aceitar as contas com o mocho ruivo.
Em consequência, faço política como se diz. Em suma, procurava não ser um
empestado. Acreditei que a sociedade em que eu vivia era baseada na pena de morte
e supus, combatendo-a, combater o assassinato.” 1349
A passagem seguinte reforça a tese de que a figura do militante
internacionalista de A Peste, seja inspirada em Arthur Koestler, pois Tarrou relata
como, no decurso de sua luta contra à “ordem penal”, ao lado de “pessoas estimadas”,
percebe que seu combate contra a injustiça e a violência se materializava, a bem da
verdade, no leitmotiv da violência e da condenação à morte : “Associei-me a pessoas
estimadas (aimais)que nunca deixei de estimar, fiquei longo tempo com elas, e
envolvi-me em lutas por todos os países da Europa(...)Não ignorava,é claro, que
também nós às vezes pronuciaávamos condenações. Mas essas poucas mortes,
diziam-me, eram necessárias para chegarmos num mundo isento e homicídios(...)Isso
durou até que assisti a uma execução, na Hungria(...)«Você nunca viu um
fuzilamento. Nunca viu decerto. Você se limita ao que viu nas estampas dos livros.
Uma venda, um poste, alguns soldados longe. Pois não é assim. Sabe que o pelotão
de fuzilamento se coloca a um metro e cinquenta do condenado? Sabe que, se o
condenado avançasse dois passos bateria com o peito nos fuzis? Sabe que, nessa
curta distância, os fuziladores concentram o fogo no coração e fazem, com balas
grossas, um buraco onde a gente poderia colocar uma mão fechada? Não, você não
sabe dessas coisas: são pormenores de que ninguém fala. O sono dos homens é mais
1348
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1422.
1349
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.
353
precioso que a vida das criaturas empestadas. Eu, desde dia, não dormi direito. O
mau gosto ficou-me na boca, e não deixei de insistir, isto é, pensar.” 1350
Talvez não seja excessivo sublinhar, a esta altura, a dimensão ética da
imagem em Camus: trata-se de insistir em provisionar, principalmente aos
intelectuais, engajados em causas nobres, mas carentes de experiências efetivas,
imaginação para a morte dos outros. É, afinal, onipresente a precupação com a
questão das engrenagens da violência alimentadas pela boa vontade dos
revolucionários que, afinal, mimetizam a crueldade e a indiferença cósmica ao
reintroduzirem em suas ações a injustiça e o sofrimento contra a qual originalmente se
contrapunham.
Observemos a postura de Tarrou, que, como o húngaro Koestler, tendo
participado ativamente do movimento revolucionário internacionalista, passa,
posteriormente, à oposição ferrenhe contra o totalitarismo, uma vez confrontado com
a veritá effetualle della cosa , isto é com a realpolitik em voga nos “Estados
revolucionários”: é o eixo do questionamento sobre a responsabilidade intelectual que
volta à tona na narrativa d´A Peste: “Compreendi então que me conservava empestado
nos longos anos em que, de todo o coração, julga lutar contra a peste. Havia,
indiretamente aprovado a morte de milhares de homens, chegara a provocar esta
morte aceitando as ações e os princípios que fatalmente a determinavam. Os outros
não pareciam inquietar-se, pelos menos nunca falavam disso espontâneamente. Eu
tinha um bolo na garganta. Estava com eles e me sentia só. Quando resolvia expor
meus escrúpulos, diziam-me que era preciso refletir no caso, davam-me com
frequência razões impressionantes para fazer-me tolerar o que eu não conseguia
engolir. Respondia-lhes que os grandes empestados,os que usam becas vermelhas,
também se apegam a excelentes razões nesses casos, e se admitíssemos as razões de
força maior e as necessidades ceitas pelos pequenos empestados, não deveríamos
recusar as dos grandes. E achava que, cedendo uma vez mais, já não tínhamos meio
de parar.” 1351
Tarrou verbaliza os escrúpulos do engajamento camusiano, que embora
afinado com as intenções originárias dos revolucionários de esquerda, se recusa a
compactuar com seu pragmatismo no poder: “Me parece que a história me deu razão:
hoje matam cada vez mais. Eles estão todos no furor do assassinato e não podem
1350
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1423.
1351
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1424-5.
354
1352
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425.
1353
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425.
1354
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425.
1355
O desafio de analisar este obra de maturidade de Camus deixaremos para o pós-doutorado, ocasião
na qual teremos possibilidade de analisar o conjunto dos textos posteriores a O Homem Revoltado.
1356
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425.
355
recusar tudo que, de perto ou de longe, por boas ou por más razões, mata ou
justifica que se mate.” 1357
É, afinal, sob um prisma rigorista da responsabilidade do intelectual que a fala
de Tarrou deve ser compreendida.
Por aí percebemos, sem sombra de dúvida, que a metáfora da “peste” possui
uma dupla inscrição problemática, a saber, metafísica e histórica. Ela simboliza de
maneira genérica o mal - a natureza humana frágil e finita - de ancoragem metafísica
- e a propagação e banalização do mal e da indiferença - de raízes históricas: “Assim,
esta epidemia nada me ensina; sei que, junto a você, devo combatê-la. Sei de
ciência certa – aprendi na vida, Rieux, você me entende –que trazemos conosco a
peste e ninguém, ninguém no mundo está livre dela. E precisamos vigiar-nos em
descanso para, um descuido momentâneo, não respirar na cara de outro e levar-lhe
a infecção.” 1358
Camus exprime através de Tarrou a conjugação entre“ótica pessimista de
mundo” 1359 e ação social “otimista”, nos termos da conferência A Crise do
Homem 1360 de março de 1946, ano de publicação de A Peste: “O que é natural é o
micróbio. O resto, saúde, integridade, limpeza, o que você quiser, tudo é
consequência da vontade, de uma vontade que não deve parar nunca. O homem
honesto(hônnete homme), aquele que não infecta quase ninguém, é o que menos se
distrai. É preciso vontade e tensão para não se distrair nunca!” 1361
“O que vos digo não é de grande alcance. Se permanecerdes aí, não deixarás
de vos perder, mas ao menos vos perderá como homem honesto(hônnete homme).” 1362
Observemos a terminologia de referência da conduta ideal, de um pensamento
e de uma ação lúcidos, rigorosos e responsáveis, segundo Tarrou: l´honnête homme,
exemplar moral caro ao horizonte dos moralistes do século XVII 1363 .
1357
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425. “Ouvi argumentos numerosos, que me
viraram quase a cabeça e foram suficientes para levarem outras cabeças consentirem no assassinato e
percebi que a desgraça dos homens vinha de não usarem a linguagem clara. Decidi então falar e
proceder claro, entrar no bom caminho...”(p.1426)
1358
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1425-6.
1359
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 745.
1360
4) A quarta coisa a fazer é de procurar e de criar, a partir da negação, os valores positivos que
permitirão conciliar um pensamento pessimista e uma ação otimista. É o trabalho dos filósofos.”
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 744.
1361
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1362
PASCAL,B . Trois Discours sur la condition des grands. L´Intègrale.p. 366.
1363
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.35-L.647) “Homem honesto. É preciso que se possa dizer, não é
nem matemático, nem predicador, nem eloqüente, mas homem honesto . Esta é a única qualidade que
me agrada.” (Br.38 –L.732) “Poeta e não homem honesto.”
356
1364
Como veremos em breve com o ideal da “simpatia”.
1365
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1366
“Depois de um silêncio o doutor se ergue um pouco e pergunta, se Tarrou tem uma idéia do
caminho que seria necessário para chegar à paz. «Sim, a simpatia(sympathie)» (La Peste. p.1427)
1367
Variante da passagem supracitada em A. CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.2000.
1368
Esforço de reconhecimento da alteridade que é notório, por sinal,em toda a política pascaliana,
inscrita na metodologia do reversement du pour au contre, numa palavra, na multiplicação de pontos
de vista possíveis sobre o real.
1369
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1370
CAMUS, A. La crise de L´Homme. Oeuvres Complètes, II. p. 745.
357
por isso que decidi me por ao lado da vítimas, em todo caso, para limitar os
danos.” 1371
É Tarrou, curiosamente - o “calculista” e “comedido” ativista internacional,
organizador profissional de catástrofes humanitárias - quem exprime, afinal, com a
lucidez que lhe é característica, algumas das chaves-mestra do engajamento
camusiano do pós-guerra, procurando conjugar indignação e justeza, compreensão
afetiva da alteridade e ação histórica “modesta”, porém eficaz: “Digo, pois, que há
flagelo e vítimas, nada mais. Se, apesar disto, me torno flagelo também, não consinto
nisto. Procuro ser um assassino inocente. Não é grande ambição, você está vendo.
” 1372
Tarrou expõe uma preocupação constitutiva do pensamento de Camus, a saber,
a busca de uma ação histórica eqüilibrada, eficaz, sem sacrifícios à virtude e ciente
de seus limites. O Homem Revoltado prosseguirá o tratamento do problema se
dedicando a análise das idéias e das ações revolucionários, avaliando-os em relação
às origens da revolta, procurando eqüalizar na ação histórica, indignação e medida.
Os Justos, prolonagará por sua vez o tema dos assassinos inocentes, ou assassinos
delicados, buscando matizar a partir do ensaio da Revolução Russa de 1905, um
união possível entre a ação revolucionária eficaz e virtude.
“Encontrar uma desmedida na medida” 1373 é o imperativo que ressoa nos
cadernos íntimos do autor e no conjunto de sua obra dedicada a problematizar a
questão do engajamento ético-político-filosófico.
Ora, o transcorrer da cena camusiana, o desfecho da conversa entre Tarrou e
Rieux, e posteriormente, a evolução indiferente da peste, nos encaminha diretamente
ao núcleo do pensamento dos limites de Camus, âmago de sua concepção madura de
engajamento ético-político-filosófico que consite no esforço de eqüilibrar desmedida
e medida, indignação e justeza, nas dimensões do pensamento e da ação histórica.
Utilizando um recurso cinematográfico caro ao inglês Mike Figgs1374 ,
deixemos por ora de escutar o que dizem – vemos claramente que prosseguem
trocando estas nobres palavras - e nos concentremos na ambientação que os cerca e no
que fazem.
1371
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1372
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1373
“Trouver une démesure dans la mesure.”(Février, 1938. Camus, A. Cahier II)
1374
Notar, o excelente Inocência.
358
1375
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1376
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1377
“Rieux souriait”(p.1427)
1378
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428.
1379
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428.
1380
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428 Talvez não seja excessivo assinalar o
abuso de autoridade dos nossos “heróis”, que utilizam seus “salvo-condutos” oficiais, de autoridades
359
sanitárias - com poderes absolutos em regime de exceção – para usufruírem de algo nem sequer
sonhado pelo conjunto da população – que dirá pelos confinados em campos de concentração para
infectados.
1381
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428
1382
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428
1383
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428
1384
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1385
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
360
inimigo da ordem penal, ele ainda se pauta pela premissa de “descer o céu à terra”1386 :
“Justamente. Podemos ser santos sem Deus, é o único problema concreto que
conheço hoje.” 1387
Vê-se que Tarrou não acedeu completamente ao pensamento da modéstia, e, à
sua maneira escrupulosa de “assassino inocente”, permanece sendo um ensaio de
mais um Grande Inquisidor - um Aliócha- que afinal, de algum modo, corre o risco
de permanecer nutrindo, da miséria, seus projetos e esperanças angelicais de futuro:
mais um santo urdido pelo Novo Evangelho 1388 . De um ponto de vista profundo, do
angelismo de humanitarista profissional de Tarrou, reverbera, insistentemente – por
detrás de um aparente altivez desinteressada1389 - um projeto de poder
desmedido 1390 : “a virtude toda pura é assassina.” 1391
Sua aptidão para a burocracia da morte, para o cálculo e para a organização
policial, sua frieza pragmática 1392 , sua serenidade amistosa e viril 1393 , antecipam,
talvez, “virtudes” de um ditador da boa vontade - desses que terminam por construir
castelos intransponíveis. Tirano “artista”: seu ódio à morte é oriundo de um elã de
eternidade.
E como um amante da eternidade mergulharia sem hesitação na espessura seu
véu do mar noturno?
Como um “futuro santo 1394 ”, procurando absolvição na história vindoura,
mergulharia sem pudor num cosmo sem laços com o porvir?
1386
Tema que será desenvolvido de maneira multipolar em O Homem Revoltado. Nesta tese, a questão
é tratada mais especificamente, com sua referência dostoiévskiana norteadora, no capítulo Entre as
dimensões metafísica e histórica da revolta. Notemos a passagem que Camus capta dos diários de
Dostoiévsky: “Se Aliocha tivesse concluído que não há nem Deus, nem imortalidade, ele teria se
tornado imediatamente ateu e socialista. Isso porque o socialismo não é apenas a questão operária, é
sobretudo a questão do ateísmo, de sua encarnação contemporânea, a questão da Torre de Babel, que
se constrói sem Deus, não para alcançar os céus e sim para rebaixar os céus à terra.”(CAMUS, A.
L´Homme Révolté. p.469-70.)
1387
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1388
Notar o capítulo Le nouvel Évangile em L´Homme Revolté. p.523
1389
“...serão os outros que farão a história.”(p.1426)
1390
A situação de Tarrou é bastante elucidativa da atual geopolítica internacional e até mesmo nacional,
na qual o humanitarismo, seja na forma do humanitarismo profissional, seja na forma do
popu(lu)lismo, tornou-se um para-poderio econômico, político e até mesmo militar estratégico. O
Homem Revoltado volta ao tema da relação entre desmedida e santidade: “É bem verdade que a
desmedida pode ser uma forma de santidade, quando o seu preço é a loucura de Nietzsche.”(CAMUS,
A. L´Homme Révolté. p.703.)
1391
“...Eis porque a verborragia humanitária não é menos fundada do que a provocação cínica.”(
CAMUS, A. L´Homme Révolté. pp.699-70)
1392
“Tarrou murmurou que aquilo não tinha acabado, que haveria vítimas, pois isto era da
ordem.”(p.1427)
1393
Que lembre, talvez, as maneiras amistosas de um Mussolini, um Pol. PT ou um IdiAmin Dada...
1394
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428.
361
1395
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1396
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.165.
1397
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428.
1398
“Ao manter a beleza preparamos o dia do renascimento em que a civilização colocará no centro de
sua reflexão, longe dos princípios formais e dos valores degradados da história, essa virtude viva que
fundamenta a dignidade comum do homem...”(CAMUS, A. L´Homme Revolté. p. 679-80.)
1399
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.
362
1400
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.
1401
“Rieux s´arrêta le premier...” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.) “Celui
qui s´arrête fait remarquer l´emportement des autres. Comme un point
fixe.”(PASCAL,B.Pensées.(Br.382-L.699)
1402
“Le peuple a les opinions très saines. Par exemple…”(PASCAL, B. Pensées. (BR.324 – L.101))
(Br.233-L.418):“Quando se trabalha para o amanhã, e o incerto, age-se com razão...”
1403
“Era preciso, agora, recomeçar.”(p.1429)
1404
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326.
1405
CAMUS, A. L´Homme Revolté- Mésure et Démesure.p. 697.
363
profundamente.” 1406 Este conluio parcial com o cosmo, ainda que prenhe de
desconfiança, é, portanto, um imperativo absoluto de sobrevivência para Rieux: “É
preciso viver com o tempo e morrer com ele.” 1407
Ser feliz, apesar do mal, é, neste sentido, uma ambição de homem que escapa
ao santo. Em meio a uma história que é um “jogo certo para tudo perder” 1408 , Rieux
ainda cultiva, como Sísifo, a suprema ousadia da felicidade: “O mar sopramava
docemente ao pé dos grandes blocos do cais; surgiu, espesso como um veludo,
flexível e manso como um animal. Chegaram, subiram nos rochedos. As águas
subiam e desciam lentas. Essa respiração calma expunha e logo escondia reflexos
oleosos na superfície. Diante deles estirava-se a noite, sem limites. Rieux sentia sobre
os dedos a cara da pedra gasta e experimentava uma felicidade estranha.” 1409
Ânimo que talvez não embale Tarrou. Ele hesita.
É em vão que Tarrou busca absolvição no mar. Melhor seria beber nele as
emanações brahamânicas regenerativas procuradas pelo experiente Rieux.
E neste único e breve momento de solidão, deslize no qual o olhar de seu
colega nem o “guarda” nem o “recria” - sem a guarita da solidariedade - até mesmo o
santo perece.
Que a doença de Tarrou avance na contramão da peste, é, portanto, bastante
significativo.
A “evolução” caprichosa da peste exprime sua absurdidade constitutiva.
A aparente ordenação matemática pela qual funcionava, começa por fraquejar,
desvelando uma contingência originária: “Ela perdia num curto espaço de tempo, a
quase toda a força em longos meses conseguida.Vendo-a soltar presas certas, como
Grand e a moça de Rieux; exarcebar-se dois ou três dias nalguns bairros e
desaparecer completamente noutros; agarrar vítimas na segunda-feira de deixá-las
escapar quase todas na quarta;esbaforir-se ou precipitar-se – podíamos julgar que
ela se desorganizava por enervamento e cansaço, perdia o autodomínio, a eficácia
matemática e soberana que fazia sua força.” 1410
Observemos: não são os esforços dos “voluntários das formações sanitárias”
que faz o flagelo regridir e, finalmente, se extingüir por completo, ou quase. Nem
1406
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.
1407
CAMUS, A. Le Mythe de Sisyphe.165.
1408
PASCAL, B. Pensamentos. Br.294
1409
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1428
1410
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440.
364
1411
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440.
1412
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440.
1413
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440.
1414
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1440-1.
1415
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1441.
1416
CAMUS, A. Cahier V, juin 1947. OC, II.p.1082.
1417
CAMUS, A. L´Homme Revolté- Mésure et Démesure.p. 697.
1418
Obviamente a idéia de um microorganismo intruso passa despercebida pelos renascentistas e
clássicos. Entretanto, a disfunção do corpo na ótica renascentista e clássica passa por uma
compreensão de sua interatividade com os elementos.
365
1419
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1420
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1427.
1421
“trata-se de o máximo de homens possível.” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.
p.2000.
1422
A referência à Delacroix não é vã: “...o artista está embarcado. Embarcado aqui me parece mais
justo do que engajado. Não se trata, em efeito, para o artista de uma engajamento voluntário, mas de
um serviço militar obrigatório(...)Nós estamos em pleno mar. Todo artista hoje está embarcado na
galera de seu tempo.O artista, como os outros, por sua vez, deve remar, sem morrer, se ele pode, isto
é, continuar a viver e a criar.”(CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1079.)
1423
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453.
366
1424
Conferir em Montaigne. MONTAIGNE, M. Ensaios III – Do útil e do honesto.
1425
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1452.
1426
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453.
1427
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1453.
1428
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1454.
1429
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1456.
1430
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.706.
367
mãos vazias e o coração oprimido, sem armas e sem recurso contra esse
desastre.” 1431
“No fim foram as lágrimas de impotência que não deixaram Rieux ver Tarrou
virar-se de chofre contra à parede e expirar sem queixa, como se nele hovesse
partido uma corda essencial. Depois, a noite, não de luta, mas de silêncio.” 1432
Reiteremos , visto a importância constitutiva deste tema para o pensamento de
Camus: O “fim” de Tarrou revela, “a medida das coisas e do homem” 1433 - a
“natureza comum dos homens” 1434 - isto é, o limite, a fragilidade: “Sempre a mesma
pausa, o mesmo intervalo solene, o mesmo sossego depois dos combates, o silêncio
da derrota.” 1435
Mas se o combate contra a contingência da condição humana n´A Peste é
vão 1436 do ponto de vista da eficácia histórica, malogro inscrito numa situação
metafísica, se é incapaz de sanar este dilaceramento constitutivo, ele é, entretanto,
altivo e nobre em face da absurdidade. A lembrança de Tarrou em seu leito - na face
dura os olhos ainda brilhavam com toda a força da coragem” 1437 - vigora ainda.
Sobretudo, o engajamento dos voluntários-resistentes da peste – possivelmente
inútil do ponto de vista de sua real eficácia1438 foi, entretanto, passada à luta,
imperativo no que diz respeito à dignificação coletiva, e, principalmente, na
construção daqueles que se aliaram em seu desafio à absurdidade e ao fatalismo.
A nobreza altiva não obstante vã da luta contra a absurdidade está na re-
criação dos próprios combatentes e do real à sua volta – na recusa das pestes da
indiferença e do conformismo 1439 . Assim como o valor do pensamento interrogante
está na re-criação do pensador e do pensamento, o valor da arte na recriação do
cotiano do artista e no embelezamento mundo de que ele é capaz - no dia-a-dia do
1431
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1457.
1432
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1457.
1433
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1434
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1435
“C´était partout la meme pause, le meme intervalle solennel, toujpurs le meme apaisement qui
suivait les combats, c´était le silence de la défaite.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles.
p.1457.)
1436
É peciso não cair na tentação do obscurantismo e notar que o soro de Castel, se bem que com a
ajuda do inverno ensolarado do Mediterrâneo, encontra sucesso “relativo”, embora ainda permaneça
predominantemente inócuo, como no caso de Tarrou.
1437
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1456.
1438
Seria impossível não notar insistir na analogia entre os “voluntários” e os Resistentes: notar que a
“nulidade” estratégico -militar da Resistência Francesa em relação às forças que efetivamente
comandavam os confrontos da segunda guerra é bastante evidenciada.
1439
“O problema mais sério que se põe aos espíritos contemporâneos: o conformismo.”(CAMUS, A.
CahierV.p.1088.)
368
combatente revoltado com o real, que se pauta por uma conduta interrogante, modesta
, não vale a prêsa, mas a caça 1440 : a caça obstinada, mesmo que infrutífera, da justiça
que é seu clamor original 1441 .
Neste sentido, para Camus, o pensamento e a ação são permutáveis na nobreza
de sua obstinação por vezes vazia. Agir, “ insistir, isto é pensar” 1442 : “Se o limite
descoberto pela revolta transfigura tudo; se todo pensamento, toda a ação que
ultrapassa um certo ponto nega a si própria, há, efetivamente, uma medida das coisas
e do homem(...)se quiser continuar vivo, ele deve portanto retemperar-se nas fontes
da revolta, inspirando-se então no único pensamento fiel a essas fontes, o
pensamento dos limites.” 1443
Outra experiência é absolutamente significativa na construção ética dos
engajados d´A Peste: o aprendizado de uma solidariedade humana constitutiva,
metafísica visto que ela nasce da perplexidade original em relação às determinações
da absurdidade, sejam elas cósmicas ou históricas, a que Camus chama de
compaixão(compassion) 1444 : “...sociedade e disciplina perdem seu sentido se elas
negam o « nós somos». Sozinho, em certo sentido, eu suporto a dignidade comum que
não posso depreciar nem mim, nem nos outros. Este individualismo não é gozo, ele é
luta, sempre, e, às vezes, alegria sem igual no auge da orgulhosa compaixão(fière
compassion).” 1445
Assim, da lucidez em relação aos limites da condição humana - de fragilidade;
da indignação em relação a injustiça da finitude; da recusa das ilusões religiosas; da
negação das esperanças e das promessas de futuro e de eternidade; brota uma
1440
“Eles não sabem que é só a caça e não a presa que procuram”(PASCAL, B. Pensamentos. Br.139-
L.136) “O povo tem opiniões muito sadias. Por exemplo. 1)Escolher(...) a caça em lugar da presa: os
semi-sábios zombam e triunfam, mostrando com isso a loucura do mundo; mas, por uma razão que
não penetram, o povo tem razão.”(PASCAL, B. Pensamentos. Br.324-L.110)
1441
Nesta tese, o próximo capítulo, Origens da Revolta, tratará detidamente desta questão. É preciso
manter-se fiel às “origens da revolta”, ao pensamento dos limites, nos empreendimentos históricos-
revolucionários.
1442
“...Je n´ai pás cesse d´insister, c´est-à-dire d´y penser.”(CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits,
Nouvelles. p.1424.)
1443
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1444
“O fim do movimento absurdo , revoltado, etc., o fim do mundo contemporâneo por conseguinte, é a
compaixão no sentido primeiro, isto é, para terminar o amor e a poesia.” O restante do fragmento dos
Cadernos de 1947, demonstra o rigorismo moraliste do autor –consigo mesmo - rigorismo que se
exprimirá, mais tarde, na voz de Clemence de A Queda: “Mas isto exige uma inocência que não tenho
mais. Tudo que posso fazer é reconhecer corretamente o caminho que conduz a ela e deixar vir o
tempo dos inocentes. Vê-lo, ao menos, antes de morrer.” (CAMUS, A. Cahier V.p.1084.)
1445
CAMUS, A. L´Homme Revolté. p.700.
369
1446
Boiando de costas no mar, Rieux encarna a busca da “transcendência horizontal” num reino – da
natureza – anterior à história. Este movimento de “transcendência horizontal”- recusa do exílio da
história - se multiplica nesse re-encontro generalizado da familiaridade “nos outros” seres (que também
não pertencem à história.)
1447
O interterxto ético de A Peste com o artigo Salvar os corpos, de Ni victimes ni bourreaux é bastante
eloqüente aos olhos de um leitor experimentado de Camus.
1448
“Odeio a morte e o mal, o senhor sabe. E queira ou não queira, estamos juntos para suportá-los e
combatê-los...” (CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1398.)
1449
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1398
370
praças.”(...)“Sabiam agora que uma coisa podemos desejar sempre e obter às vezes:
a ternura humana.” 1450
*
É preciso ainda insistir, isto é, pensar, em quem seria afinal o personagem
porta-voz de Camus.
Se, como vimos detidamente, Tarrou enuncia alguns dos leitmotiv capitais de
Camus, Rieux é, seguramente, quem encarna melhor, ainda que irrefletidamente –
talvez lhe falte a lucidez de Sísifo - a forma final de uma “desmedida na
medida” 1451 que Camus procura estabelecer desde a conclusão do Mito de Sísifo,
passando pelas Cartas a um amigo alemão, e pelos editoriais em Combat, buscando
alcançar um tênue equilíbrio ético entre a justa revolta e a ação lúcida contra a ordem
cósmica e histórica da finitude. Rieux, além de advinhar que a felicidade, “que a
verdadeira pátria, estava além dos muros da cidade enferma. Estava nas urzes
cheirozas das colinas, no mar, nas terras livres e na força do amor” 1452 - é, afinal,
poupado destes tempos devoradores por seu exercício cotidiano de modéstia e de sua
ignorância calculada: “- Não sei nada, realmente.” 1453 “Rieux marchait
toujours(...)Rieux ne savait rien.” 1454
Mas a morte da mulher de Rieux, revelada através de um telegrama – a cidade
aberta - revela a desatenção do médico à vigilância extenuante da medida.
À lembrança, a advertência de Tarrou: “O que é natural é o micróbio. O resto,
saúde, integridade, limpeza, o que você quiser, tudo é consequência da vontade, de
uma vontade que não deve parar nunca. O homem honesto(hônnete homme), aquele
que não infecta quase ninguém, é o que menos se distrai. É preciso vontade e tensão
para não se distrair nunca!” 1455
Ao embarcar na urgência dos enfrentamentos cotidianos e esquecer da esposa
gravemente doente em alguma parte do recito – Rieux e o leitor 1456 – comungam na
1450
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1463-1467
1451
CAMUS, A. Cahier II.p.849 “Trouver une démesure dans la mesure.”
1452
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1467
1453
“E o senhor, que é que o senhor sabe?” CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1324.
1454
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1466.
1455
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1426.
1456
E Camus. Embora sejamos completamente avessos à intromissão biográfica na interpretação
filosófica é preciso que se diga que Camus deixa Francine na Argélia enquanto compartilha a luta de
seu tempo. (TODD, O. Albert Camus – une vie.)
371
1457
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1474.
1458
CAMUS, A. Cahier V, juin 1947. OC, II.p.1082.
1459
CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.
1460
CAMUS, A. Cahier V. OC, II.p.1084
1461
(Br.82-L.44)“Qui tient le juste milieu qu´il paraisse et qu´il prouve.” (Imaginação. Papéis
Classificados. Vanidade II)
1462
CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.
1463
“A medida, nasce da revolta, só pode ser vivida pela revolta. Ela é um conflito constante,
perpetuamente despertado e dominado pela inteligência. Ela não vence nem a impossbilidade , nem o
abismo. Ela se equilibra com eles.” (CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.)
1464
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1325
1465
CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.
372
1466
Procurando enfatizar um intertexto evidente entre as conclusões éticas de A Peste com as reflexões
filosóficas de O Homem Revoltado, anteciparemos neste capítulo o âmago deste ensaio filosófico de
Camus. Este atalho será absolutamente necessário visto que não foi possível tratar, ainda neste
trabalho, os capítulos finais de O Homem Revoltado, a partir do capítulo A Revolta Histórica. O
objetivo de analisar, pois, a maturidade da filosofia de Camus, incluindo aí uma investigação cautelosa
do itinerário de Camus pela história da revolta, dos gregos às guerras mundias do século XX, será
concretizado somente no trabalho de pós-doutorado.
1467
CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme. p.705.
1468
Problematizados em Le Malentendu.
1469
Problematizados em Calígula.
1470
Problematizados em O Estrangeiro e em A Peste.
1471
É também da servidão intelectual a que Camus se refere aqui. Notar CHARBIT, D. “L´Homme
Révolté: grandeur et servitude de la fonction intellectuelle in L´Homme Revolté 50 ans après –Albert
Camus 19. Lettres Modernes. Minard. Paris-Caen, 2000.
1472
CAMUS, A . Camus à Combat, p.642. Combat 30 novembre 1946. (E, 350)(OC, p.455.)
1473
CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1081.
1474
CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1079.
1475
CAMUS, A. Discours de Suède.p.1074.
1476
CAMUS, A. Discours de Suède.p.1072.
1477
CAMUS, A. Ni Victimes ni bourreaux. Essais. p. 334
1478
CAMUS, A . Le témoin de la liberté. Essais. p.400.
373
1479
CAMUS, A. Ni Victimes ni bourreaux.Essais. p. 351.
1480
CAMUS, A. Réponde à E. Astier.363.
1481
CAMUS, A . Le témoin de la liberté. Essais.p.405.
1482
CAMUS, A. Essais. Citado por Michel Melançon em Albert Camus: analyse de sa pensée.
1483
CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1079.
1484
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p. 489.
1485
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. Epígrafe. Daniel Defoe em Journal de l´année
de la peste.(R.Quilliot in Essais. 1936)
1486
O quadro se encontra em Paris, no Louvre, na seção de pintura francesa de grandes formatos,
século XIX.
1487
CAMUS, A. Conférence du 14 décembre 1957.p.1079.
1488
CAMUS, A. L´Homme Revolté. p. 693.
1489
“...para nascer uma segunda vez, e lutar em seguida, com o rosto erguido(visage
découvert)...”CAMUS, A. Discours de Suède -10 décembre .p.1073 “
374
1490
Nos permitimos reiterar pela terceira vez a frase de Camus visto a importância que concedemos a
ela como elemento unificador de sua reflexão.CAMUS, A. L´Homme Revolté. Au-delà du nihilisme.
p.705.
1491
CAMUS, A. L´Homme Revolté. pp.697-8
1492
CAMUS, A. L´Homme Revolté. pp.698.
1493
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.78-L.887) “É preciso dizer, grosso modo: isto se faz por figura e
movimento, porque isso é verdadeiro; mas dizer quais e montar a máquina, é ridículo, pois é inútil,
incerto e penoso....”
1494
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.72-L.199) “ Bornés en toute genre c´est état qui tient le mileu entre
deux extremes se trouve em toutes nous puissances.”
1495
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.378-L.518)
1496
Recordemos que Camus cita Pascal numa entrevista significativa para a Revue du Caire em 1948.
CAMUS, A. Essais. Trois Interviews. p.379. Há também uma menção significativa nos cadernos de
1942: “Pascal: o erro vem de uma exclusão.”(CAMUS,A. Cahier II, 1942. OC II. p.970)
375
1497
“...aquele que aborda seriamente o problema moral deve ir aos extremos. Que sejamos por
(Pascal) ou contra (Nietzsche), é suficiente que o sejamos seriamente, e vemos que o problema moral
não é senão sangue, loucura e gritos.”(CAMUS,A. Cahier II, 1943. OC II. p.1016) Notemos neste
fragmento a referência explícita ao reversement continuel du pour au contre, método pascaliano de
reconhecimento da alteridade pela multiplicação de postos de vista possíveis sobre a realidade: “qu´on
soit pour(Pascal)ou contre(Nietzsche).”(p.1016) “- Razão dos Efeitos – Passagem contínua do pró ao
contra(renversemet continuel du pour ou contre). Mostramos que o homem é vão pela estima que
dedica às coisas que não são essenciais. E todas essas opiniões são destruídas. Mostramos, em
seguida, que todas essas opiniões são muito sadias e que, destrate, sendo todas as vaidades muito bem
fundadas, o povo não é tão vão quanto se diz. E, assim, destruímos a opinião que destruía a do povo.
Mas é preciso destruir, agora, esta última proposição, e mostrar que continua sendo verdadeiro que o
povo é vão, embora suas opiniões sejam sadias, porque não sente a verdade delas, onde esta verdade
existe e porque...”(Br.328-L.93) “...Assim vão-se sucedendo as opiniões do pró ao contra, segundo a
luz que se tem.”(Br.337-L.90)Vemos que a interiorização da metodologia de pensamento pascaliano
por Camus é profunda. Notaremos adiante, principalmente na análise camusiana de Nietzsche, sua
aplicação vigorar também na leitura de textos filosóficos.
1498
CAMUS A. Cahier II.
1499
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.70-L.519)
1500
CAMUS, A. Jean Grenier, Correspondance 1932-1960. Paris. Gallimard, 1981. Recordemos uma
passagem dos Cadernos: “O esforço que fiz para estabelecer meu próprio equilíbrio não é
inteiramente vão. O que eu disse ou encontrei, pode servir, deve servir a outros.”(Camus, A. Carnets
III. p.215.)
1501
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p. 704
1502
Como bem lembrou David Walker no colóquio americano que tem a busca de equilíbrio camusiano
por tema: WALKER, D. Albert Camus: les extremes et l´éqüilibre.p.iv.
1503
CAMUS, A. Lettres à um ami allemand.p.217 (PASCAL, B. Pensamentos (Br. 353. L-681))
376
forças.” 1504 “Se o limite descoberto pela revolta transfigura tudo; se todo
pensamento, toda a ação que ultrapassa um certo ponto nega a si própria, há,
efetivamente, uma medida das coisas e do homem(...)se quiser continuar vivo, ele
deve portanto retemperar-se nas fontes da revolta, inspirando-se então no único
pensamento fiel a essas fontes, o pensamento dos limites.” 1505
Em Camus, assim como em Pascal, a consciência da fragilidade, do
“limite” 1506 como “natureza comum” 1507 dos homens, torna-se “o primeiro
valor” 1508 norteador: “A grandeza do homem é grande na medida em que ele se
conhece miserável.” 1509
Para Camus, a traição dos movimentos históricos revolucionários
contemporâneos à premissa de luta contra a injustiça pela qual originalmente se
pautavam, se dá pelo esquecimento deste valor primitivo que reúne os homens numa
solidariedade metafísica - o da frágil vida humana singular em contraponto
constitutivo à ordem cósmica da finitude: “Os desvios revolucionários explicam-se,
em primeiro lugar pela ignorância ou pelo desconhecimento sistemático desse limite
que parece inseparável da natureza humana e que a revolta, justamente, revela.” 1510
Segundo Camus, o valor do limite e da fragilidade da condição humana
precisa ser anteposto entre o homem singular e uma história trituradora que aniquila
tanto pelas garras do conformismo, da indiferença e da escravidão legitimadas pela
“desumana desmedida da divisão do trabalho” 1511 , quanto pelo próprio ímpeto
igualmente desmedido de atingir uma alternativa “pré-concebida” para a sociedade
futura: “Ou esse valor de limite será realizado, ou, de toda forma, a desmedida
contemporânea só encontrará sua regra e a sua paz na destruição universal.” 1512
Para Camus nas ideologias que fundamentam, seja o progresso pela produção
e pelo acúmulo, seja o advento de um “idílio universal”, vigora a desmesurada
presunção do conhecimento e da ação em vista da totalidade: “A totalidade, com
1504
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.72-L.199)
1505
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1506
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.699.
1507
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1508
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.699.
1509
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.397-L.114)
1510
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1511
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.698.
1512
“...Este limite era simbolizado por Nêmesis, deusa da medida, fatal aos desmedidos. Uma reflexão
que quisesse levar em conta as contradições contemporâneas da revolta deveria procurar a sua
inspiração nesta deusa.”CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.698.
377
efeito, não é mais que o antigo sonho de unidade comum aos crentes e aos revoltados,
mas projetados horizontalmente sobre uma terra privada de Deus.” 1513
As concepções finalistas da história por ex., produtoras da convicção de um
Reino dos fins vindouro, constituem segundo Camus, o messianismo secularizado de
século XX.
Ora, recordemos a Situação do escritor em 1947, segundo o “incerto” J-
P.Sarte: “...é preciso historializar a boa vontade do leitor, ou seja provocar, se
possível, pela organização formal da nossa obra, a sua intenção de tratar o
homem(...) Assim o levaremos pela mão até fazê-los perceber que o que ele de fato
quer é abolir a exploração do homem pelo homem, e que a Cidade dos Fins, que ele
baseou por completo na intuição estética, não passa de um ideal de que só nos
aproximamos ao cabo de uma longa evolução histórica. Em outros termos, devemos
transformar a sua boa vontade formal numa vontade concreta e material de mudar
este mundo, através de determinados meios, a fim de contribuir para o advento futuro
da sociedade concreta dos fins(...)É preciso, portanto, ensinar simultaneamente a uns
que o reino dos fins não pode realizar-se sem a Revolução, e aos outros que a
Revolução só é concebível se ela preparar o reino dos fins.” 1514
Camus comenta, potencializando sua crítica às esperanças do Grande
Racionalismo totalizante ressurgidas em concepções messiânicas tais com a de seu
amigo 1515 filósofo, que aliás, constituem a mainstream da inteligentsia da época:
“Sartre: ou a nostalgia do idílio universal.” 1516
O autor argelino adverte sobre a engrenagem da razão que legitima a supressão
da liberdade presente, em troca de uma esperança trans-histórica: “...a liberdade foi
também incorporada ao movimento da história(...)Identificada com o dinamismo da
história, ela só poderá desfrutar a si mesma quando a história se detiver, na Cidade
universal.” 1517
De maneira bastante significativa, ele sintetiza sua ótica sobre o “tipo” de
engajamento sartreano, que pretende “ganhar” 1518 e “levar pela mão” 1519
o coro dos
descontentes “através de determinados meios, a fim de contribuir para o advento
1513
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.636.
1514
SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.pp.202-203.
1515
A ruptura data de 1951.
1516
CAMUS, A. OC, II. Cahier V, 1947.
1517
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.636.
1518
SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.p.202.
1519
SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.pp.202-203.
378
1520
SARTRE, J-P. O que é literatura? –Situação do escritor em 1947.p.202. É preciso que se diga,
entretanto, que neste texto Sartre milita para “converter a Cidade dos Fins numa sociedade concreta e
aberta...”(p.201) Sua tarefa em 1947 consiste em “mostrar infatigavelmente” que há uma implicação
da militância, “da pessoa e da revolução socialista”(p.203)
1521
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.636.
1522
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. p.697.
1523
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.638.
1524
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.615.
1525
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.615.
1526
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.638.
379
1527
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.637.
1528
Conferir neste trabalho o capítulo Entre as dimensões metafísica e histórica da revolta.
1529
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651.
1530
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651
1531
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.652.
1532
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.652
1533
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.651
1534
CAMUS, A. L´Homme Révolté- Mésure et Démesure. pp.699-705.
1535
CAMUS, A. L´Homme Révolté- La Totalité et le Procès. p.653.
380
*
“Em 1950, a demedida é sempre um
conforto e, às vezes, uma carreira.
A medida, ao contrário, é pura
tensão.”(CAMUS, A. L´Homme
Revolté.p.704.)
1536
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.82-L.44); (Br. 257-L. 160);(Br. 208-L. 190);Br. 72-L. 199);(Br.
378 -L. 518);(Br.69-L.723);(Br.70-L.519);(Br.160-L.257)
1537
Utilizamos, com prudência, a sugestão de tadução de Sérgio Milliet.
1538
Do francês midi. Em Camus “midi” significa também Mediterrâneo, meio-termo solar entre a
Grécia e a Europa.
1539
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700.
1540
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.
1541
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.69-L.723)
381
magnitude cósmica, “um mundo que é seu primeiro e último amor” 1542 , que,
constitutivamente, o enobrece, mas também o contradiz permanentemente,
ensinando, assim, seus limites: “O homem, enfim, não é inteiramente culpado, ele não
começou a história; nem de modo algum inocente, visto que a continua . Aqueles que
passam deste limite e afirmam sua inocência total acabam na loucura da
culpabilidade definitiva. A revolta, ao contrário, coloca-nos no caminho de uma
cupabilidade calculada.” 1543
O paradigma camusiano se constitui, assim, pelo exercício de uma tensão
permanente entre a consciência da contingência e a responsabilidade concreta, entre a
vivência dos dramas solitários do indivíduo, a procura obstinada por uma
compreensão afetiva da alteridade através do exercício da “simpatia”1544 , ou seja, de
uma compaixão metódica, e pelo empenho de concretizar uma “ação coletiva”1545
modesta, porém eficaz: “Neste limite, o «Nós existimos» define paradoxalmente um
novo individualismo. «Nós existimos» diante da história, e a história deve contar com
este «Nós existimos» que, por sua vez, deve manter-se na história. Tenho necessidade
dos outros que tem necessidade de mim e de cada um(...)Só eu, em certo sentido,
suporto a dignidade comum que não consigo degradar nem em mim nem nos outros.
Esse individualismo não é gozo, é sempre luta e, às vezes, alegria ímpar, no auge da
orgulhosa compaixão (fière compassion).” 1546
É neste sentido que Camus compreende ser a “ética da revolta” - conjugação
entre indignação, lucidez, ímpeto e modéstia – um contraponto vital aos
empreendimentos políticos totalizantes e aniquiladores de seu tempo: “Longe de ser
um romantismo, a revolta toma ao contrário o partido do verdadeiro realismo. Se
quer uma revolução, ela a quer em favor da vida, não contra ela.” 1547
“A política não é religião: do contrário, não passa de inquisição.” 1548
Camus prefere trabalhar na construção do presente através de uma indignação
revoltada e de um combate continuado contra as injustiças sociais, ao invés de
aniquilá-lo desde a raíz, legitimado em promessas filosóficas de amanhã: “..a revolta
se apóia no real para encampar um combate perpétuo até a verdade.”(...)“apóia-se
1542
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.708.
1543
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700.
1544
Como pudemos notar pela construção e pelo exercício da “ética da simpatia” em A Peste.
1545
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700.
1546
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.700.
1547
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
1548
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.705.
382
primeiro nas realidade mais concretas, como a profissão, a aldeia, nas quais
transparecem a existência, o coração vivo das coisas e dos homens. Para ela a
política deve submeter-se a essas verdades.” 1549
Ele que, como vimos, em meados de 1946, depositava esperança e valor no
regime comunitário de trabalho e de vida da comunidade alternativa Barbu 1550 ,
experiência concreta de melhoria significativa da qualidade de vida do pós-guerra,
prefere conferir valor, em 1951, ao “engajamento revolucionário sindical”: “Este
próprio sindicalismo não seria ineficaz?A resposta é simples: foi ele quem, em um
século, melhorou prodigiosamente a condição operária, desde a jornada de dezesseis
horas até a semana de quarenta horas. O Império ideológico fez o socialismo regridir
e destruir a maioria das conquistas do sindicalismo. É que o sindicalismo partia da
base concreta, a profissão(...)enquanto a revolução cesariana parte da doutrina, nela
introduzindo à força o real(...)O sindicalismo(...)é a negação em favor do real, do
centralismo burocrático e abstrato.” 1551
Engajar-se modestamente nos enfrentamentos cotidianos da democracia pela
construção progressiva de uma melhoria da justiça social, aos olhos de Camus, é a
opção menos dilacerante para um futuro enrijecido pela sociedade armamentista.
“...quando a revolta faz avançar a história e alivia o sofrimento dos homens, ela o
faz sem terror, ou até mesmo, sem violência, nas condições políticas mais
diversas.” 1552
É sobretudo contra a desumanização desmedida do homem pelas engrenagens
históricas do trabalho alienado, ou da sociedade abstrata dos fins, que Camus
contrapõe à “medida Grega da vida” 1553 , fundada numa relação de simbiose absoluta
com a natureza, com o cosmo: “Este contraponto, este esprito que mesura a vida, é o
mesmo que anima a longa tradição daquilo que se pode chamar de pensamento solar,
no qual, desde os gregos, a natureza sempre eqüilibrou-se ao devir.” 1554
Camus ressalta a importância vital de um engajamento que evolua às origens
da civilização, em busca de uma re-união afetiva entre homem e natureza, que
transcenda a relação de dominação e de transformação típicos do materialismo
1549
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
1550
Notar, neste mesmo trabalho, a conclusão do capítulo Camus em Combat: à procura do juste mileu.
1551
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
1552
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
1553
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
1554
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.701.
383
1555
“A natureza, que deixa de ser objeto de contemplação e de admiração, não pode ser em seguida
senão a matéria de uma ação que visa transformá-la.” CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.702.
1556
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.
1557
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.
1558
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.
1559
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.703.
1560
Notar, neste mesmo trabalho, a conclusão do capítulo Camus em Combat: à procura do juste mileu.
1561
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.704.
1562
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1326.
384
1563
CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.693.
1564
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.353-L.681) Camus suprime em sua epígrafe o fim da frase: “... e
enchendo todo o intervalo.”
385
1565
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.353-L.681)
1566
Nos remetemos a análise canônica de Lucien Goldmann. GOLDMANN, L. Le Dieu Caché.
1567
“Não mostramos nossa grandeza fincando numa extremidade, mas tocando as duas ao mesmo
tempo e enchendo todo o intervalo.”PASCAL, B. Pensamentos. (Br.353-L.681)
1568
Sobre estes temas específicos do jargão pascaliano nos remetemos ao canônico, HARRINGTON,
T. Verité et méthode chez Pascal. Scarlett Marton tem um também canônico artigo sobre o ponto-fixo
em Pascal na revista Discurso. Existem também referências em minha tese de mestrado A dimensão
ética da incerteza em Pascal e, também no sub-capítulo dedicado a Nietzsche neste trabalho - Entre as
dimensões histórica e metafísica da revolta.
1569
“pensées de derrière.”PASCAL, B. Pensamentos. (Br.337-L.90)
1570
PASCAL, B. Pensamentos. (Br.336-L.91)
1571
Notemos o esforço de compreensão “segundo à luz que se tem”, do povo, do nobre, do caçador, do
rei, do libertino, do advogado bem pago, do juiz, do sapateiro, etc.
1572
PASCAL, B. Pensées.(Br.383-L.697)
1573
PASCAL,B. Pensées.(Br.382-L.699)
386
contemporâneo cultiva com “os verões da Argélia” 1574 : “Les hommes d´Europe,
abandonnés aux ombres, se sont détournés du point fixe et rayonnant.” 1575
Para Camus, pensador do meio-dia, a natureza é o oráculo dos limites, a pítia
inspiradora, e o “radiante ponto fixo” contradito pelo “movimento destruidor da
história” 1576 - “Compreende-se então que a revolta não possa prescindir de um
estranho amor.” 1577
“Miséria e grandeza deste mundo: ele não oferece nenhuma verdade, mas
amores.” 1578
Se Pascal busca um porto, Camus tem o próprio mar como ponto fixo, na
medida em que nele opera sua busca quixotesca pelo absoluto e efetiva sua
transcendência horizontal: “Rieux ficou de costas, imóvel, olhando o céu cheio do luar
e das estrelas. Respirou profundamente.” 1579
Camus denuncia a condição atual do homem contemporâneo, exilado da
beleza e da grandeza da vida, diluído como uma cifra num universo estatístico,
escravizado pelas garras de uma história dedicada ao progresso e a transformação,
sem espaço para suas buscas pessoais de absoluto 1580 , nem tempo para a vivência de
sua dignidade constitutiva: “Eles trocam o presente pelo futuro, a humanidade pela
fumaça do poder, a miséria dos subúrbios da cidade por uma cidade
fulgurante(...)Por isso, quiseram apagar a alegria do quadro do mundo, adiando-a
para mais tarde(...)Ao negarem a justa grandeza do mundo, precisaram apostar na
própria excelência. Na falta de coisa melhor eles se divinizaram e sua desgraça
começou(...)estes deuses tem os olhos vazados.” 1581
Camus diagnostica o mal-estar ocidental: “O segredo da Europa é que ele não
ama mais a vida.” 1582
Em contraponto à escravidão contemporânea pelo fatalismo do progresso,
Camus evolui às origens 1583 , “peregrinando às fontes” 1584 , revigorando o laço
1574
CAMUS, A. Noces.p, 76.
1575
CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708.
1576
CAMUS, A. Discours de Suède.p.1074.
1577
CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.707.
1578
CAMUS, A. Cahier II.p.855.
1579
CAMUS, A. La Peste. Théâtre, Récits, Nouvelles. p.1429.
1580
“Talvez cada qual busque por todos esse absoluto.”(CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708)
1581
CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708.
1582
CAMUS, A. L´Homme Révolté.p.708.
387
1583
Às suas próprias origens visto que O Verão (1954) revisita as intuições originais apreendidas nas
Núpcias(1936) com o oráculo dos limites, isto é, a natureza. Esta evolução às origens, veremos em
nossa pesquisa de pós-doutorado, ganha tristes contornos com a morte de Camus: no porta-luvas de seu
carro, colidido contra uma árvore, encontra-se a novela inacabada O Primeiro Homem que versa sobre
a vida dos antepassados pied noir de Camus, na Argélia.
1584
É Roger Quillior que se refere assim à Retour à Tipasa.(Essais.p.1818)
1585
CAMUS, A. Cahier II.p.855. “Misère et grandeur de ce monde: il n´offre point de vérités mais des
amours. L´absurdité règne et l´amour en sauve.” A referência simbólica e a proximidade de estilo e de
pensamento entre Camus e Pascal se evidencia novamente. Notar um texto de minha autora publicado
na revista Primeiros Escritos: Grandeza e miséria do homem segundo a ótica do duplo infinito.
1586
Texto de O Verão quem conjuntamente ao capítulo a Dimensão histórica da revolta em O Homem
Revoltado, será objeto de estudo detalhado em nossa pesquisa futura de pós-doutorado.
1587
CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855.
1588
CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855.
1589
CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.854. A citação camusiana de Heráclito nos lembra da força
multipolar do Obscuro, visto que, enquanto o legado de Nietzsche, como vimos na análise de Calígula,
ressalta em Heráclito o téorico da inocência do vir-a-ser, a herança camusiana prefere pensá-lo como
mentor da desmedida na medida: “Heráclito, inventor do devir,concedia, entretanto, um limite a este
escoamento perpétuo.”(CAMUS, A. L´Homme Revolté.p.699) Ambos interpretam diferentemente o
fragmento seguinte: “Por trás de todas as transgressões das leis vi Erínias julgadoras. Vi o mundo
inteiro como o espetáculo de uma justiça reinante, e forças naturais, demoniacamente onipresentes,
subordinadas a seu serviço.”(Heráclito segundo Nietzsche, em A Filosofia na Época da Tragédia
Grega ). Camus retorna ao seu modo de leitura particular de Heráclito em O Exílio de Helena:
“Heráclito já imaginava que a justiça impõe limites ao universo físico ele mesmo«O sol não
ultrapassará seus limites, senão as Erínias que guardam a justiça saberão descobrí-lo.»”(p.852) “A
desmedida é um incêdio segundo Heráclito.” (CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.855.)
388
1590
CAMUS,A. L´Été. L´Exil d´Hèléne.p.857.
1591
CAMUS, A. La Crise de l´homme. OC II. p.745.
1592
CAMUS, A. Discours de Suède -10 décembre
389
1593
CAMUS, A. L´Homme Revolté. (Doravante HR, 413).
1594
Tratar-se-á também do caso de Meursault n´O Estrangeiro que, como vimos, mata “por acaso”,
sem premeditação e posterioremente é aniquilado pela engrenagem, pelo sistema da morte.
1595
HR, 413.
1596
HR, 413-4.
390
1597
HR, 414.
1598
HR, 414.
1599
HR, 414.
391
tomar a decisão de matar, tinha-se negado muito, a ponto de negar a si mesmo pelo
suicídio. Deus trapaceia, todos são trapaceiros como ele, inclusive eu, logo, resolvo
morrer: o suicídio era a questão. Atualmente a ideologia nega apenas os outros, só
eles são trapaceiros. É então que se mata.” 1600 Segundo Camus o suicídio e o
assassinato são expressões da mesma indiferença: os dois raciocínios se alicerçam na
constatação do absurdo. À indiferença de viver, o suicida responde aniquilando-se: a
mesma indiferença mobiliza e legitima a morte de outrem.
Camus desvela a periculosidade desta lógica da indiferença derivada de uma
radicalização absoluta e irrefletida da constatação do absurdo: “O sentimento do
absurdo, quando dele se pretende, em primeiro lugar, tirar uma regra de ação, torna
o crime de morte pelo menos indiferente e, por conseguinte, possível 1601 . Se não se
acredita em nada, se nada faz sentido e se não podemos afirmar nenhum valor, tudo é
possível e nada tem importância.” 1602 Desta vivência irrefletida do absurdo é que o
niilismo se alimenta, fortificado pela desrazão cotidiana que é o espetáculo
reincidente do século XX: na mão dos Estados ele se converte numa potência
transgressora e aniquiladora sem limites: “Não há nem pró, nem contra, o assassino
não está nem certo, nem errado.” 1603 No outro extremo da ação desmesurada, o
niilismo também opera na inação opiácea e indiferente à história - que é outra postura
coerente de uma vivência irrefletida do absurdo. Este “diletantismo trágico”, adverte
Camus, é tão nocivo quanto à ação desmesurada pois é igualmente indiferente à vida,
própria ou alheia. Equilibrados no âmago da indiferença e da desrazão, num mundo
onde o sentimento do absurdo é dominante e irrefletido, os diferencias entre ação e
inação, bom e mau, justo e injusto estão definitivamente solapados por um universo
sem sentido no qual é a força e a coação que arbitram indiscriminadamente: “o mundo
não estará mais dividido em justos ou injustos, mas em senhores e escravos. Desta
forma, não importa para que lado nos voltemos, no âmago da negação e do niilismo,
o assassinato tem seu lugar privilegiado.” 1604
O niilismo seria, em certa medida, uma conseqüência lógica da radicalização
da postura advinda de uma vivência, de certo modo, irrefletida do absurdo.
1600
HR, 414.
1601
Esta radicalização da atitude absurda omite, por ora, a concepção de preservação do homem
concreto que já se insinua em vários trechos e, principalmente, no capítulo Os Conquistadores de O
Mito de Sísifo.
1602
HR, 415.
1603
HR, 415
1604
HR, 415.
392
1605
HR, 416.
1606
HR, 416.
1607
HR, 417.
1608
HR, 416-7.
393
1609
HR, 417-8.
394
9)Origens da revolta
1610
DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p. 459. Notemos a formulação de Rakitine sobre o
raciocínio de Ivan: “Não há imortalidade da alma, e portanto, não há boas ações – quer dizer que
tudo é lícito.”
395
1611
“a primeira e única evidência que assim me é dada, no âmbito da experiência absurda, é a revolta.
Privado de qualquer conhecimento, impelido a matar ou consentir que se mate, só disponho desta
evidência , que é reforçada pelo dilaceramento em que me encontro.”( HR, 418).
1612
HR, 419.
1613
HR, 419.
1614
HR, 420.
396
universal ou, se, pelo contrário, sem pretensão a uma impossível inocência, ela pode
descobrir o princípio de uma culpabilidade razoável.” 1615
Para influir nesta nova orientação da revolta, Camus perscrutará as origens
deste sentimento, suas conseqüências morais e valores, vislumbrando no que ele
difere e o que ele guarda em comum com este “espanto” antes de tudo metafísico
diante da finitude que caracteriza a experimentação da lucidez absurda.
*
A primeira caracterização que Camus concede do insurreto em O Homem
Revoltado é a do escravo que, após se submeter a uma condição injusta dócil e
repetidamente durante toda a sua vida, um dia, nega-se a aceitar a ordem de seus
superiores. Neste momento, segundo Camus, o escravo instaura um duplo movimento,
paradoxal, de negação e de afirmação: por um lado, nega a ordem monótona a que
era acorrentado, dizendo que há afinal um “limite” 1616 que não pode ser ultrapassado,
“a mesma idéia de limite no sentimento do revoltado de que o outro «exagera», que
estende seu direito para uma fronteira a partir da qual um outro direito o enfrenta e o
delimita.” 1617 Por outro, o escravo afirma a existência desta fronteira mesma, na qual
“o sentimento de que se têm razão” 1618 , insinua, ainda que tacitamente, que ele
mesmo é possuidor de um direito, que ele “tem algo em si mesmo «que vale à pena»”
e que é preciso preservar: “ele contrapõe à ordem que o oprime uma espécie de
direito a não ser oprimido além daquilo que pode admitir.” 1619
Neste átimo se inicia o processo de dignificação do homem empreendido pelo
ato mesmo da revolta pois ela conduz a um reconhecimento, ainda que tácito e
confuso, da própria condição e uma assunção, ainda que ainda irrefletida, ao que se é:
“ há em toda revolta uma adesão integral e instantânea do homem a uma certa parte
de si mesmo.” 1620 É, pois, um juízo de valor, a avaliação da própria dignidade que
desponta no horizonte do escravo, como um amanhecer, por intermédio da revolta.
Este movimento de dignificação pela revolta se expande naturalmente da
instância particular à uma postura universal pois no instante que recusa o silêncio o
escravo institui uma dignidade a si que contradiz intrinsecamente a situação que lhe
1615
HR, 420.
1616
HR, 423.
1617
HR, 423.
1618
HR, 423.
1619
HR, 423.
1620
HR, 423.
397
homens.” 1627 Esta projeção do valor individual ao coletivo, que é desencadeada pela
vivência comum do sofrimento é sinal, segundo Camus, de que há, em toda revolta
algo que transcende o indivíduo e que o “retira de sua solidão, fornecendo-lhe razões
para agir” 1628 (...)“algo que não pertence apenas a ele, mas que é comum a todos os
homens...” 1629
Talvez não seja excessivo sublinhar que Camus é enfático na oposição às
filosofias de seu tempo quando reaviva “a suspeita” de que haja uma espécie de
natureza humana advinda da fragilidade de sua condição comum: “A análise da
revolta nos leva pelo menos a suspeita de que há uma natureza humana, como
pensavam os gregos, e contrariamente aos postulados do pensamento
contemporâneo.” 1630 Esta suspeita da existência de uma natureza humana comum
estaria implícita para Camus nesta abnegação característica do revoltado, disposto a
abrir mão de seu único bem que é a vida, e neste ímpeto que remete seus valores
individuais aos seus semelhantes: “ Sem dúvida, ele exige para si o respeito, mas
apenas na medida em que se identifica com uma comunidade natural.” 1631 Este
espelhamento da condição individual na coletiva, que é, afinal, uma exteriorização
inevitável deste processo de auto-reconhecimento empreendido pela revolta, alude,
segundo Camus, à solidariedade metafísica que, no limite, como veremos
oportunamente no desenvolvimento d O Homem Revoltado, é comprobatória da
prevalência de uma certa natureza humana comum: “a revolta não nasce, única e
obrigatoriamente, entre os oprimidos, podendo também nascer do espetáculo da
opressão cuja vítima é um outro(...)Na revolta, o homem se transcende no outro, e,
desse ponto de vista, a solidariedade humana é metafísica.” 1632
Por ora, Camus não aprofunda a investigação sobre a existência desta suposta
“natureza humana”, consente tão somente a metamorfose que a revolta empreende na
esterilidade solitária da experiência do absurdo: na vivência do absurdo o sofrimento é
individual enquanto que, “a partir do movimento de revolta, ele ganha a consciência
de ser coletivo, é a aventura de todos.” 1633 Consolidando ainda melhor esta
descoberta da existência enquanto condição partilhada engendrada pela revolta - por
1627
HR, 425.
1628
HR, 425.
1629
HR, 425.
1630
HR, 425.
1631
HR, 426.
1632
HR, 426.
1633
HR, 431-2
399
1634
HR, 432.
1635
HR, 432.
1636
HR, 432.
400
dignidade que impulsiona e empreende seu desafio à injustiça: o revoltado não quer o
que não tem “ele defende aquilo que ele é” 1637 e neste movimento ele defende “a
dignidade comum a todos os homens.” 1638 Assim Camus sublinha o valor afirmativo
da revolta que se obnubila por sob sua carapaça contestadora: “Aparentemente
negativa, já que nada cria, a revolta é profundamente positiva., porque revela aquilo
que no homem precisa ser defendido.” 1639
Camus, entretanto, refina esta postura revoltada, exprimindo que ela não é
eivada do abstracionismo que sublima seu zelo pelo homem no idealismo de um vago
amor à humanidade 1640 , imbuído de uma confiança tão-somente teórica na natureza
humana. Camus, ao contrário, filia esta revolta solidária à encarnação apaixonada da
revolta na pele de Ivan Karamazov no qual o dilaceramento original consiste na
paixão radical pelos homens – comiseração absoluta com o sofrimento dos
«inocentes» - que transforma-se em exigência de afrontamento obstinado à Ordem
Divina, como podemos acompanhar ainda que ligeiramente, nestas palavras ditas ao
seu irmão noviço, Alióscha: “Todo o universo do conhecimento não vale o pranto
dessa criancinha suplicando a ajuda de Deus(...)não quero que a mãe beije o verdugo
que lhe fez estraçalhar o filho; ela não o pode perdoar(...)Recuso essa harmonia,
recuso-a por amor à humanidade(...)Revolta?(...)Pode-se viver revoltado?Pois assim
quero viver.” 1641 É desta contraposição obstinada e até mesmo vã ao sofrimento
singular que Camus filia à atitude genuinamente revoltada. Ela dá às costas ao
universo da finalidade e da eficácia imposto pelas filosofia da história. Sua dimensão
positiva provêm da defesa indiscriminada do homem “carnal”, compreendida ela
mesma, como valor. A revolta tira sua dignidade, portanto, do movimento mesmo de
revolta, do ato de revoltar-se, e não necessariamente de seu êxito em transformar a
condição humana.
Neste sentido Camus vê a revolta como uma atitude que só encontra sentido
em uma sociedade ocidental1642 cujo presente é de uma dessacralização absoluta, onde
1637
HR, 427.
1638
HR, 427.
1639
HR, 428.
1640
Este abstracionismo “aplicar-se-ia talvez a certas formas vagas de idealismo humanitário ou às
técnicas do terror.”(HR, 428)
1641
DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p. 640-4.
1642
Comentário que possibilita notar o teor “particular” das argumentações de Camus. Elas não se
preocupam com uma exatidão histórica absoluta: afinal, como desconhecer a atuação de Gandhi na
Índia que não se compreenderia de outro modo senão como revolta? E a China de Mao? Obviamente, a
dessacralização está presente nestes dois movimentos anti-tradicionalistas, mas eles não são
401
1650
HR, 437
1651
“O essencial, não é ainda remontar às origens das coisas,mas, sendo o mundo como é, saber como
conduzir-se nele.”(HR 413.)
403
visa uma integridade humana na qual sua dignidade está incluída – ela teima em
preservar àquilo que no homem não pode ser sacrificado pela injustiça.
A história do século XX é um diário desta maré de contestação lúcida e
dolorosa, claudicante, e por vezes inútil que configura, de maneira ou de outra, a
origem das rebeliões históricas deste século. Por este prisma, o espírito de revolta
que incendeia o século, se trata, nas palavras de Camus “de uma consciência cada vez
mais ampla que a espécie humana toma de si mesma ao logo de sua aventura.” 1652
Assim, por conseguinte, em Camus, a condição metafísica não esmorece nem
atenua o conteúdo corrosivo da revolta. Se trata de viver na revolta e saber comportar-
se, não diante dela, mas nela: na opacidade e na espessura de sua efetivação
histórica: “Ela é nossa realidade histórica. A menos que se fuja à realidade, seria
necessário que nela encontrássemos nossos valores. Longe do sagrado e de seus
valores absolutos, pode-se encontrar uma regra de conduta?Esta é a pergunta
formulada pela revolta.” 1653
A investigação de Camus pretende, afinal, estabelecer, de dentro da revolta -
do balestreiro mesma da contestação - o valor, ou valores, norteadores da verdadeira
rebelião, para que o princípio originário da revolta não se perca à força de sua
efetivação histórica: “Nossa tarefa será examinar o que acontece com o conteúdo da
revolta nas ações que acarreta e apontar o rumo a que leva a infidelidade ou a
fidelidade do revoltado às suas origens.” 1654
Camus não antecipa seu resultado crítico em relação aos movimentos
revolucionários em voga em seu tempo, mas sua expressão reiterada daquilo que
considera ser o valor fundamental de toda revolta 1655 , já entremostra o diagnóstico
pessimista de sua época: “A solidariedade dos homens se fundamenta no movimento
de revolta e esta, por sua vez, só encontra justificação nessa cumplicidade. Isto nos
dá o direito de dizer, portanto, que toda revolta que se permite negar ou destruir a
solidariedade perde, ao mesmo tempo, o nome de revolta e coincide, na realidade,
com um consentimento assassino.” 1656
O diagnóstico de Camus é definitivo, e indício das razões profundas de sua
paciente e multifacetada elucubração em O Homem Revoltado: A revolta que trai à
1652
HR, 429.
1653
HR, 431.
1654
HR, 437.
1655
“observemos que o fundamento deste valor é a revolta ela mesma.”(HR, 430)
1656
HR, 431.
404
solidariedade original ao sofrimento e à fragilidade humana que lhe deu origem, perde
a si mesma.
É a este esquecimento das origens a que Camus tributa o deslize das
revoluções históricas nas calamidades de sangue ululantes do século XX.
Em sua ânsia transformadora o revoltado que se empossa do trono de Deus
almeja instaurar na história esta unidade e felicidade que reivindica para a ordem
humana; é então que surge o perigoso deslize no qual o desejo de ordem assume uma
dimensão metafísica. Buscando realinhavar um dilaceramento que é constitutivo o
revoltado opera, então, num regime de absoluta desmedida, “começa então o esforço
desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o caso, o império dos
homens.” 1657
O diagnóstico camusiano exprime sem temor sua reprovação deste movimento
desenfreado em direção à reforma absoluta da condição humana que os movimentos
revolucionários contemporâneos protagonizam: “Isso não se fará sem conseqüências
terríveis, das quais só conhecemos algumas.” 1658
Entretanto, Camus adverte: “essas conseqüências não se devem absolutamente
à revolta em si ou, pelo menos, elas só vêm à tona na medida em que o revoltado
esquece as suas origens, cansa da dura tensão entre o sim e o não, entregando-se por
fim à negação de todas as coisas ou à submissão total.” 1659
Como bem compreendeu Maurice Weyembergh 1660 , o segredo da manutenção
do elã original da revolta para Camus está num perpétuo movimento de rememoração
de suas origens. O tesouro do homem revoltado está na rememoração dos limites e da
fragilidade de sua condição.
Camus pretende elaborar em O Homem Revoltado, portanto, uma espécie de
memorial da revolta, na intenção de submeter este movimento multiforme à
interrogação constante, numa intenção que podemos caracterizar, no limite, como
rigorista: trata-se de perscrutar de maneira intransigente as diversas manifestações da
revolta submetendo-as ao crivo de seus valores originários 1661 .
1657
HR, 437.
1658
HR, 437.
1659
HR, 437.
1660
“Toda obra de Camus é disposta sob o signo da memória e da comemoração.”WEYEMBERG, M.
Albert Camus ou la mémoire des origines.p, 224.
1661
Veremos a seguir que Camus empreenderá suas análises em duas frentes: a revolta metafísica e a
revolta histórica.
405
Para Camus, é Sade quem primeiro procede uma ofensiva coerente contra a
ordem metafísica, mas antes dele, desde os gregos até às portas do século XVIII, o
escritor entrevê uma linhagem insurreta que instiga, em diferentes níveis, à
contestação da condição humana.
Se Prometeu é o ícone da rebelião par excellance aos olhos contemporâneos,
Camus se apressará em diferenciar rigorosamente a contestação empreendida no
mundo Grego, daquela empreendida posteriormente.
Prometeu se assevera, sem dúvida, um modelo de insurreição, mesmo que no
seio de uma cultura na qual a noção de limite é central - traços, segundo Camus,
prometéicos como “a luta contra a morte” e o “o messianismo” serão caros às
manifestações contemporâneas da revolta. Contudo, Camus compreende que o
diferencial maior das duas esferas da contestação está na compreensão do “destino”
que, no mundo grego, impõe um limite interno à revolta: “o seu rebelde não se volta
contra toda a criação,e sim, contra Zeus, que é sempre apenas um dos deuses, e cujos
dias estão contados.” 1664 O homem antigo, imerso no destino, que é ele mesmo a
natureza, desconhece esta contestação absoluta da ordem que promove a manifestação
1662
HR,431.
1663
HR, 431.
1664
HR, 439.
406
universo no qual a morte perde seu sentido, seria uma expressão da angústia profunda
diante da impotência humana frente à finitude. Citando a segunda máxima capital de
Epicuro, Camus, inverte o senso primordial que este autor assume tradicionalmente na
história do pensamento: “a morte não tem nenhuma relação conosco; pois aquele que
se encontra dissoluto é insensível, e o que é insensível não possui nenhuma relação
conosco.” 1671
De fato, Epicuro reforça esta opinião em outras partes dos textos que dele nos
restaram, tais como na carta a Ménécée: “Da maneira que foi esboçada pelos deuses,
da morte se diz que, pelo fato de ser um estado que não comunica com o estado do
vivo, ela não pode ser tomada, de um ponto de vista físico, por algo que possa
perturbar a organização da vida.” 1672 Entretanto, segundo a opinião balizada de Jean-
Marie Guyau, por exemplo, o esforço de Epicuro comportaria um conteúdo mais
positivo daquele restaurado por Camus, pois ele visaria, não insinuar uma contestação
contra a condição humana, mas, ao contrário, “apaziguar este temor ainda primitivo
da morte.” 1673 Para Guyau, seja em Epicuro, seja em Lucrécio, o temor da morte é
uma potência sobretudo imaginativa que é a origem de todos os grilhões humanos,
pois ela submete o homem ao temor constante e à submissão aos deuses. No sistema
epicurista, no qual homem e natureza partilham da mesma essência, átomos e
movimento, a morte tornar-se –ia simplesmente uma conseqüência natural e
irreprimível de um cosmo tão contingente quanto o homem. Só o que vive e sente
participa do universo, logo, para Epicuro, a morte não pode ser uma experiência de
vida: “quando a morte é, não somos mais. Ela não é pois nem para os vivos, nem
para os mortos; pois, para aqueles que são, ela não é; e para aqueles para quem ela
é, não são mais.” 1674 Opinião semelhante divulga Lucrécio para quem a indiferença
para com a morte é traço de almejada sabedoria: “A morte não é nada para nós e não
nos toca em nada visto que o espírito revela sua natureza mortal.” 1675 As opiniões de
Lucrécio sobre o caráter irrisório da morte em sua obra, Da natureza, segundo Guyau,
re-afirmam as convicções de Epicuro; ambos pretenderiam, afinal, deslindar os
homens de seu tempo do aprisionamento do medo que lhes amarga a vida, lhes
cerceia à liberdade e os submete aos deuses. Construindo uma concepção de universo
1671
EPICURO. Lettres, Máximes, Sentences, p.199. HR, 440.
1672
EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 115.
1673
GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 166.
1674
EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 193.
1675
LUCRECIO. De la nature. III, 830. Flammarion, p.227.
408
1676
O termo aplicado a Epicuro e Lucrécio é de Guyau. GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p. 137.
1677
LUCRECIO. De la nature. III, 975. Flammarion, p.235.
1678
GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 130-1.
1679
GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 131.
1680
GUYAU, J-M. La morale d´Épicure.p, 132.
409
1681
“Pois os deuses existem”. EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 192.
1682
EPICURO. Lettre à Ménécée (124-127). Idem.p, 192.
1683
BALAUDÉ, J-F. in EPICURO. Lettre à Ménécée. Introduction, p.115.
1684
HR, 440.
410
existência humana(...) 1685 O ser é pedra. A singular volúpia da qual nos fala Epicuro
reside sobretudo na ausência de sofrimento; é a felicidade das pedras. Para escapar
ao destino, em um admirável movimento que reencontraremos nos nossos grandes
clássicos, Epicuro mata a sensibilidade; e já de saída, o primeiro grito da
sensibilidade, que é a esperança” 1686
No banimento conceitual da morte e no afastamento do âmbito divino da
esfera humana empreendido por Epicuro, a leitura camusiana privilegia, não o
surgimento de uma potência humana livre do espectro amedrontador dos deuses, mas,
simplesmente, uma negação radical da esperança. Já que seus construtos não detém,
nem tampouco desmentem ou apaziguam a tragédia cotidiana da morte, o legado
profundo de Epicuro não é a tranqüilidade indiferente, mas o desespero
desesperançado e circunspecto: preâmbulo e germe de uma revolta metafísica que se
alastrará e potencializará brevemente. O que a postura de Epicuro salienta, por
contraste, segundo Camus, é a inutilidade dos esforços da elucubração humana para
apaziguar o sofrimento da finitude. A persistência dilacerante deste horizonte de
contingência, de absurdidade, antecipa o desespero silencioso que repousará também
nos sistemas contemporâneos que pretendem vencer à absurdidade unicamente pela
virtude da coesão argumentativa e da convicção em seus próprias cidadelas
conceituais. Na construção de Epicuro e de Lucrécio o sistema filosófico é, assim, o
último refúgio: uma “cidadela cega” 1687 (citadelle aveugle) contra a evidência
irredutível de um mundo em decomposição. Esta perseguição obstinada e, no fundo,
desesperada por uma ascese sem esperança em meio ao caos, antecâmara do ódio e do
clamor contra o absurdo e contra a injustiça universais, Camus entrevê radicalizada
nas páginas finais do Rerum Natura de Lucrécio, na “prodigiosa imagem de
santuários divinos cheios de cadáveres da peste.” 1688 Negados ao homem o recurso
do socorro aos deuses, aos mitos - à esperança – cabe contemplar de maneira
consciente e indignada a absurdidade absoluta da peste testemunhando o sofrimento
atroz de nossa condição: “Agora direi a causa da epidemia , donde surge esta força
mórbida soprando destruição e morte sobre os homens e as rezes. Para começar
existem, como demonstrei acima os átomos de coisas que nos são salutares mas assim
1685
Camus cita a II Máxima de Epicuro a que nos referimos a pouco. “a morte não tem nenhuma
relação conosco; pois aquele que se encontra dissoluto é insensível, e o que é insensível não possui
nenhuma relação conosco.” EPICURO. Lettres, Máximes, Sentences, p.199. HR, 440.
1686
HR, 440-1.
1687
HR, 442.
1688
HR, 443.
411
também voam mil germes de doença e de morte; quando, por acaso eles se unem e
perturbam o céu, o ar torna-se mórbido. E todo este poder de doença, esta
pestilência, nos vêm seja do exterior, como das neblinas e das brumas que caem do
céu, seja da terra ela mesma na qual o mal surge quando no solo úmido se putrefaz,
batido de chuvas e sóis intempestivos(...)Esta é a causa da peste(...)De começo eles
sentem a cabeça queimar, em chamas, os olhos invadidos de um estrondoso
vermelho. Suas gargantas negras, transpiram também por dentro, o sangue, as
úlceras obstruem o canal e a voz(...)depois, pela garganta, a doença se alastra ao
peito, afluindo em massa para um coração dolorido(...)o interior do homem em
brasa até os ossos, um fogo queimando o estômago, os nervos e as mãos se
contratavam, o corpo tremia(...)terríveis úlceras, um fluxo negro nos
intestinos(...)alguns gravemente terrificados pelo limiar da morte, viviam amputados
pelo ferro das partes viris, outro sem mãos ou sem pés persistiam à viver, outro ainda
permanecia sem os olhos, tamanho o medo da morte lhes havia invadido(...)Não se
poderia encontrar uma pessoa que a doença, a morte ou o luto não atentava(...)
grande parte se acamava de mágoa(...)A urgência e a misérias inspiram os maiores
horrores. Sob as fogueiras construídas por outros, os homens berravam depositando
os de seu sangue, aproximavam-se da chama, engajavam lutas sangrentas, tudo
menos abandonar os corpos.” 1689
De fato, no melancólico desfecho do Rerum Natura é bem evidente a desproporção
absoluta entre o conhecimento das causas e a experimentação dos efeitos, sobretudo
no que tange àquilo que é propriamente humano. De que serve o saber frente ao
testemunho e ao próprio padecer?
De certo que o filósofo desesperançado na intervenção dos deuses toma para si
o zelo para com o homem, assumindo, de alguma maneira “ o seu lugar”1690 . Mas sua
ciência das coisas, nada significa, não salva e não consola: só há silêncio na cidadela
conceitual que cala cedendo lugar ao horror puro do testemunho.
O desespero contido diante do espetáculo do mundo é, afinal, o legado
revoltado e o passo adiante que Camus entrevê em Epicuro e, principalmente, em
Lucrécio, em direção à negação metafísica absoluta.
1689
LUCRECIO. De la nature. VI. (1090; 1140, 1150,1160 ; 1250 ; 1290) ; Flammarion, p.457-67.
1690
HR, 443.
412
Para Camus, nos despojos destes dois filósofos já se insinuam uma nova
sensibilidade que originará o deus antropomórfico dos cristão, “a quem a revolta pode
pedir pessoalmente uma prestação de contas.” 1691
Planejado por Deus, o assassinato de Abel por Caim é o primeiro piparote da
revolta represada pela concepção antiga do destino: “Com Caim, a primeira revolta,
coincide com o primeiro crime.” 1692 A face oculta do Deus terrível do Antigo
Testamento “irá mobilizar a energia revoltada.” 1693 Todos os olhos que clamam por
justiça voltam a face ao Deus escondido, e é de dentro desta nova religião que se
alastra, que se respira, a atmosfera da revolta. Visto esta personificação do autor das
“regras” perversas, do “mestre do jogo” 1694 , e do campo de batalha - a história - o
revoltado da modernidade em seu itinerário de negação é herdeiro da insubmissão do
primeiro criminoso: “A história da revolta, tal como a vivemos atualmente, é muito
mais a dos filhos de Caim do que a dos discípulos de Prometeu.” 1695 Para Camus, o
Novo Testamento procura corrigir o rumo inexoravelmente violento do anterior, no
qual o abismo absoluto entre o escravo e seu Mestre implacável insuflava o ódio e a
imprecação, visando “responder antecipadamente a todos os Caim do mundo ao
suavizar a figura de Deus e ao criar um intercessor entre ele e o homem.” 1696 O Cristo
vem, na leitura de Camus, amenizar a revolta, mostrar que o próprio Deus sofre e se
desespera, “o mal e a morte não mais lhe são imputáveis, já que ele está dilacerado e
morre.”(...) A noite do Gólgota só tem importância na história dos homens porque
nessas trevas a divindade, abandonando ostensivamente os seus previlégios
tradicionais, viveu até o fim, incluindo o desespero, a angústia da morte. 1697
Seguramente é significativo assinalar que na transição entre o Deus Terrível
do antigo testamento e a figura intermediadora do Cristo, Pascal simbolize para
Camus o recalque da revolta, a domesticação forçosa e difícil da dúvida e do
inconformismo diante da absurdidade – traços insinuados de dentro mesmo do
cristianismo - através de uma sublimação “cega” na fé:“Inversamente, é preciso
submeter-se ao Deus de Abrãao, de Isaac e de Jacó, quando completou, como Pascal,
1691
HR, 443.
1692
HR, 443.
1693
HR, 443.
1694
Notar a soberba intrepretação de Laurent Thirouin sobre o jogo de Deus em Pascal. THIROUIN, L.
L´Hasard et les réglès. Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal.
1695
HR, 443.
1696
HR, 443.
1697
HR, 444.
413
1698
HR, 443. Será preciso dispor em outro momento deste trabalho um comentário longo à respeito da
referência ao Memorial de Pascal que Camus lança aqui. Um comentário completo sobre a dimensão
da revolta em Pascal será elaborado oportunamente.
1699
“...não tendes direito algum por vós próprio ou por vosso nascimento: e foi uma infinidade de
acasos que não só vos fez um filho de um duque, como até mesmo vir a este mundo...”(Pascal, B. Trois
Discours sur la condition des Grands, 366.)
1700
PASCAL,B. Pensées. (Br.163-L.197) “(Nada mostra melhor a vaidade dos homens que considerar
a causa e os efeitos do amor, pois todo o universo muda. O nariz de Cléopâtre.)”
1701
PASCAL,B. Pensées.(Br.294-L.60)“Nada é tão falível como estas leis que reparam as
faltas(…)Decerto a sustentariam obstinadamente, se a temeridade do acaso que semeou as leis
humanas,tivesse encontrado nelas pelo menos uma que fosse universal(...)Quem a reduz ao seu
princípio esmaga-a...”
1702
PASCAL,B. Pensées. (Br.294-L.60) “Três graus de elevação no pólo derrubam à jurisprudência.
Um meridiano decide a verdade.” (...)É preciso, diz-se, recorrer às leis fundamentais e primitivas do
Estado(...)é um jogo certo para tudo perder.”
1703
PASCAL,B. Pensées. (Br.97-L.634)“A coisa mais importante do mundo é a escolha da profissão.
O acaso a dispõe.O costume faz pedreiros, soldados e empalhadores.”
1704
PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des Grands, 366. “Vós herdais, dizeis, vossas
riquezas de vossos ancestrais; mas não é por mil acasos que vossos ancestrais as adquiriram e as
414
conservaram?(...)Uma reviravolta na imaginação dos que elaboraram a lei vos teria feito pobre e
somente as circunstâncias do acaso vos fez nascer com a fantasia de leis favoráveis à vossa
condição...”
1705
PASCAL,B. Pensées. (Br.291) “«Por que me matais?»”(Br.292)“«Ele reside na outra
margem.»”(Br.293) “«Por que me matais» - Como! Não habitais do outro lado da água?Meu amigo,
se morásseis deste lado, eu seria um assassino, seria injusto, matar-vos desta maneira; mas, desde que
residis do outro lado, sou um bravo, e isso é justo»”Aprofundaremos oportunamente a postura política
de Pascal que recusa, como Camus, a legitimação do assassinato. É assustadora a lucidez deste
fragmento do século XVII, se pensamos em nossa realidade atual na qual as fronteiras entre ricos e
pobres tornam ou criminoso, ou louvável o extermínio do outro.
1706
PASCAL,B. Pensées. (Br.177-L.62) « (Três hóspedes). Quem tivesse a amizade do rei da
Inglaterra, do rei da Polônia e da rainha da Suécia teria julgado que lhe faltaria retiro e asilo neste
mundo.” Lembremos que Carlos I foi decapitado em 1649, o rei da Polônia João Casimiro foi
destronado em 1656 e Cristina da Suécia abdicou em 1654.
1707
PASCAL,B. Pensées. (Br.175.L.709) “Conhecemo-nos tão pouco que muitos pensam morrer
quando estão passando bem, e muitos julgam passar bem quando estão próximos da morte, não
sentindo a febre próxima ou o abscesso prestes a formar-se.”
1708
PASCAL,B. Pensées(Br.206-L.201)
1709
PASCAL,B. Pensées(Br.208-L.194)
1710
PASCAL,B. Pensées(Br.205-L.68)
1711
PASCAL,B. Lettres... Ouvres Complètes. Seuil. P.275.
415
Novo Testamento (“...só posso aprovar àqueles que procuram gemendo” 1712 ) será o
expediente que fundamentará o salto na própria busca de Pascal: “para que não
encarassem como efeito do acaso, era necessário que fosse predito” 1713 (...) “após as
predições tão admiráveis da ordem do mundo que vejo realizadas, vejo que isto é
divino.” 1714
Toda a lucidez da constatação da absurdidade em inúmeras instâncias da existência,
da epistemologia à política, se esboroa no clamor do sentido. Pascal, prefere o
esmorecimento amargo na irracionalidade, o “embrutecimento”(abêtissement) e
“inverte”, afinal, o sinal da revolta. Ele revolta-se, enfim, contra a própria dúvida:
“Conheçai, pois, soberbo, que paradoxo és para vós mesmo. Humilha-vos razão
impotente!Calai-vos natureza imbecil...” 1715
Até mesmo esta história aparentemente ocasional, seguramente impostora
sangrenta e injusta, que martiriza e massacra os homens, precisa ser segundo Pascal,
não apenas aceita, mas amada visto que a ordem penal é a “lógica do pior” 1716 - a
maneira pela qual Deus, sem palavras, se exprime aos homens: “Como é belo ver com
os olhos da fé Dario e Ciro, Alexandre, os romanos, Pompeu e Herodes, todos
1717
agindo, sem o saber, em prol da glória do Evangelho.” . Como comenta
L.Thirouin, “Em face do homem, miserável jogador, tão pouco capaz de assumir o
acaso, quanto dele se livrar, o Deus dos Pensamentos ganha freqüentemente a
1718
imagem simétrica de um mestre do jogo .” Do ponto de vista da submissão à
ordem penal, até mesmo o elogio de Herodes é louvável. Do sofrimento individual à
diáspora dos judeus, que é um martírio coletivo, tudo se encaixa no jogo de Deus, “a
razão dos efeitos marca a grandeza do homem de ter tirado da concupiscência tão
bela ordem.” 1719 “Os verdadeiros cristãos obedecem entretanto às loucuras; não
porque respeitem as loucuras, mas sim a ordem de Deus, a qual, para punição dos
homens, escravizou-os a essas loucuras....” 1720 Nos Pensamentos de Pascal, esta
assunção dolorosa e difícil da face terrível da lógica de Deus, encontra-se expressa de
maneira intensa no longo e atípico fragmento Mistério de Jesus, no qual as dúvidas
1712
PASCAL,B. Pensées(Br.421-L.405).
1713
PASCAL,B. Pensées(Br.707-L.385).
1714
PASCAL,B. Pensées(Br.734-L.329).
1715
PASCAL,B. Pensées. Papiers classés/Section I, Contrarietés/VII.
1716
ROSSET, C. La logique du pire. Puf, 1995.
1717
PASCAL,B. Pensées(Br.701-L.317).
1718
THIROUIN, L. Le hasard et les règles.Le modèle du jeu dans la pensée de Pascal.p.199
1719
PASCAL,B. Pensées(Br.403-L.106).
1720
PASCAL,B. Pensées(Br.338-L.14).
416
1721
PASCAL,B. Pensées(Br.553/791-L.919).
1722
HR, 446.
1723
PASCAL,B. Memorial. Intégrale,
1724
HR, 443.
417
1725
Um fragmento obscuro e misterioso dos Pensamentos condiz de algum modo nesta apreciação nos
dizendo que, por algum motivo(quem sabe por causa da persistência da angústia), é a própria crença
que deve ser “automatizada”: “...somos autômato tanto quanto espírito(...)O costume torna as nossas
provas mais fortes e mais críveis; inclina o autômato, o qual arrasta o espírito sem que este o
perceba...”
1726
É pelo rigorismo e pelo desprezo ao poder estabelecido que o jansenismo é perseguido no século
XVII. Era um movimento insuportável aos olhos do poder político em virtude de sua indignação
rigorista. Seu cristianismo era duro demais para o espírito da época...
1727
HR, 445.
1728
HR, 445.
1729
HR, 446.
418
*
Para Camus, Sade é o caso extremo do esquecimento das origens da revolta. É
ele quem conduz à desmesura ao seu limiar; às últimas conseqüências, a lógica
revoltada.
Ele sintetizaria também em sua pessoa, visto que viveu vinte e sete anos na
prisão, a conseqüência lógica do moto-contínuo da violência que se inicia na
repressão de Estado, “na medida em que foi tratado de maneira atroz pela sociedade,
reagiu de modo atroz.” 1731 Sade exprimiu em imaginação, em sua vida enclausurada,
um elã de liberdade absoluta, inversamente proporcional ao que efetivamente viveu.
Este “sonho” de desmesura, segundo Camus foi profético posto que antecipou
que a vontade de liberdade absoluta se reverte em servidão absoluta.
Para Camus, Sade não é necessariamente ateu. Partindo do princípio que todo
autor é eventualmente “todos os seus personagens”, Camus se prende à Justine 1732 , a
heroína que é fulminada por um raio após o criminoso prometer à Deus conversão
caso ela fosse poupada. Segundo Camus “o crime humano é a resposta ao crime
divino. Há desse modo uma aposta libertina que é a réplica da aposta
pascaliana.” 1733
Se em Pascal, a contingência radical conduz a uma aposta na incerteza em um
Deus de amor, como podemos acompanhar na leitura do célebre fragmento L.233-
Br.418, e a assunção à Ordem Penal, em Sade, a resposta será uma réplica sangrenta,
à altura do criminoso-Deus. Segundo Camus para Sade é a própria religião que prova
que Deus é um assassino: “Se Deus mata e nega o homem, nada pode proibir que se
neguem e matem os semelhantes.” 1734 O crime humano somente mimetiza a
crueldade divina, é escrupulosamente elaborada a sua imagem e semelhança.
Mas esta lógica é dilacerante e é o rigor fulminante dos demonstrativos da
absurdidade que inspira, curiosamente, como em Pascal, a uma revolta de Sade contra
1730
HR, 445.
1731
HR, 447.
1732
SADE. Justine, ou, os infortúnios da virtude. ?
1733
HR, 448.
1734
HR, 448.
419
1741
HR, 450.
1742
HR, 450.
1743
HR, 451.
1744
HR, 451.
1745
HR, 451.
1746
MORAIS, E-R. Sade – A felicidade Libertina.
421
1747
HR, 452.
1748
HR, 454.
1749
HR, 457.
422
1750
HR, 456.
1751
HR, 457.
1752
HR, 457.
1753
HR, 456.
1754
HR, 457.
423
1755
HR, 457.
1756
E que se prolonga com lamentável evidência no século XXI.
1757
HR, 458
1758
HR, 458.
1759
HR, 459.
424
1760
HR, 460.
1761
HR, 460.
1762
HR, 461.
1763
HR, 462. Não poderíamos esquecer que o tema do ponto fixo é pascaliano par excellance.
1764
HR, 463.
1765
HR, 463.
425
1766
SARTRE, J-P. Baudelaire, p. 48.
1767
(SARTRE, J-P. Baudelaire, p. 72)
1768
HR, 463.
1769
HR, 464.
426
1770
HR, 464.
1771
HR, 493
1772
HR, 494.
1773
HR, 495.
427
acorrentar à qualquer custo, aos grilhões que intimamente rejeita: “Escreverei aqui
meus pensamentos sem ordem, e não, talvez, em uma confusão sem objetivo: é a
verdadeira ordem , que marcará sempre meu objeto pela própria desordem. Honraria
muito a meu tema se o tratasse com ordem, pois quero mostrar que ele é incapaz de
ordem.” 1774 “Escreverei meus pensamentos com ordem, por um objetivo sem
confusão. Se forem justos, o primeiro que vier será a conseqüência dos outros. Essa é
a verdadeira ordem. Marca meu objetivo pela desordem caligráfica. Muito
desonraria meu tema, se não o tratasse com ordem. Quero mostrar que ele é capaz
disso.” 1775 Lautréamont segue em sua máscara burlesca de positividade: “Não aceito
o mal. 0 homem é perfeito. A alma não cai. O progresso existe. O bem é
irredutível.” 1776
Vejamos em seguida que o belo fragmento de Pascal no qual a dignidade do
homem está assinalada pelo reconhecimento de sua fragilidade, digno da honra até
mesmo do revoltado padrão, torna-se, na pena de Lautréamont, um retrato
vanglorioso da condição humana, um convite à desmesura, fundado em falsas
promessas de eternidade. Podemos notar o formidável deslocamento do pessimismo
efetuado pela pirueta surrealista: quem era, sob a égide pascaliana, um frágil caniço,
um mero bambu; pela lente de aumento do surrealista Ducasse, vê-se um eternal
carvalho, imune às agruras demasiado humanas do tempo: “O homem não passa de
uma caniço, o mais fraco da natureza, mas é um caniço pensante. Não é preciso que
o universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota d água bastam para
matá-lo. Mas, mesmo que o universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre
do que quem o mata, porque sabe que morre e a vantagem que o universo tem sobre
1777
ele; o universo desconhece tudo isso.” “O homem é um carvalho. A natureza não
conta com nada mais robusto. Não é preciso que o universo se arme para defendê-lo.
Uma gota d' água não basta para sua preservação. Mesmo que o universo o
defendesse, não ficaria mais desonrado que aquilo que não o preserva. 0 homem sabe
que seu reino não tem morte, que o universo possui um começo. O universo nada
sabe; é, quando muito, um caniço pensante.” 1778
1774
PASCAL. B. Pensées. (L.532- Br.373)
1775
LAUTREAMONT. Poesias. p.269.
1776
LAUTREAMONT. Poesias. p.269.
1777
PASCAL. B. Pensées. (L.200- Br.347)
1778
LAUTREAMONT. Poesias. p.270.
428
1779
PASCAL. B. Pensées. (L.114- Br.397)
1780
LAUTREAMONT. Poesias. p.270.
1781
HR, 495.
429
1782
PASCAL.B. Pensées. Papiers Classés/Section I, Contrarietés/ VII e L.130-Br.420.
1783
LAUTREAMONT. Poesias. p.272.
1784
LAUTREAMONT. Poesias. p.272.
1785
HR, 495.
1786
HR, 495.
1787
HR, 496.
1788
Para Camus, entretanto, a alternativa de Lautréamont é um degrau mais dilacerada do que no caso
de Baudelaire, perfeitamente metódico em sua atitude de dândi. Lautréamont, para Camus, é sem
dúvida um cínico. Mas, como o poeta de Fernando Pessoa, ele é “um fingidor que finge a dor que
430
deveras sente”. Ele, a bem da verdade, “tenta tornar-se surdo a este apelo ao ser que jaz também no
fundo de sua revolta.”(HR, 496.)
1789
HR, 496.
1790
HR, 496.
1791
HR, 497.
431
1792
HR, 497.
1793
HR 497-500.
1794
HR, 506.
1795
HR, 503.
1796
HR, 507.
1797
HR, 507.
1798
HR, 503.
432
1799
HR, 503.
1800
HR, 500.
1801
HR, 503.
1802
HR, 490.
433
1803
“(a revolta) tem os seus dândis e os seus serviçais, mas não reconhece neles os filhos
legítimos.”(HR, 497)
1804
HR, 465.
434
respeito de Sade, de algum modo “um escritor é todos os seus personagens”, mas, no
caso de Doistoiévsky isto se evidencia com um rigor inaudito, o que o habilita aliás,
como vimos, a ser um artista absurdo: malgrado a necessidade de dar um conteúdo
positivo à seu empreendimento literário como entremostriam trechos dos Diários
citados por Camus 1805 , Dostoiévsky permanece no limiar da revolta, inclusive da
rebelião histórica - visto que conhecemos o comprometimento posterior do escritor
com o primeiro ensaio da Revolução Russa. Lembremos que n´O Mito de Sísifo
Camus cita, por exemplo, a persistência da questão da eternidade em Dostoiévsky,
como a resposta de Aliócha no final dos Irmãos Karamazov exprime: “«- Sim,
ressucitaremos todos, reencontra-nos-emos, todos, e contaremos alegremente uns aos
outros tudo que se passou...”» 1806 Mas, veremos agora, que n O Homem Revoltado,
Camus exprime uma leitura bem menos tencionada à ambigüidade do que a
reivindicada em O Mito de Sísifo. Aqui, Camus exprime de maneira, aliás,
incontestável, que Dostoiévski buscará, em concomitância com seu momento
histórico, outra expressão ao seu elã de eternidade.
Atenhamo-nos, por ora, à Ivan, que, em sua primeira crítica à ordem divina, a
contesta em nome de uma moral da justiça. Para Camus, “ele afirma que a
condenação à morte que paira sobre os homens é injusta. Em seu primeiro
movimento, pelo menos, longe de defender o mal e ele defende à justiça. Portanto, ele
não nega de modo absoluto a existência de Deus. Ele o refuta em nome de um valor
moral” 1807 . De certo, Camus se refere ao início do diálogo entre Ivan e Aliócha que se
mostra o prenúncio do eixo ético da obra de Dostoiévsky : “Assim, pois, eu aceito
Deus de boa vontade e também Sua sabedoria e Seus desígnios, que nós não
conhecemos absolutamente; creio na ordem, no sentido da vida, creio na harmonia
eterna(...)Não estou no bom caminho?Ora, muito bem: imagina agora que eu me
recuso categoricamente a aceitar o mundo de Deus; sabendo que ele existe, não o
1805
“A fé na imortalidade do ser humano é tão necessária(que sem ela se acaba por matar) porque se
trata do estado normal da humanidade. Sendo assim, a imortalidade da alma humana existe se
qualquer dúvida.”(MS, 187.)
1806
DOSTOIÉVSKY, F. Os irmãos Karamazov, p.1217.) Citando por Camus n´O Mito. Mas Camus
compreende, desde O Mito de Sísifo que Aliócha é, de certo modo, o Cândido de Dostiévsky, “um
comentarista aponta com toda a razão: Dostoiévsky está comprometido com Ivan – e os capítulos
positivos dos Irmãos Karamazov lhe exigiram três meses de esforço ininterrupto, enquanto que aquilo
que ele chamava de «blasfêmias» foram compostas em três semanas em plena exaltação.”(MS, 187)
1807
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 632.
435
admito entretanto. Compreende pois bem isso: Não é Deus que eu não aceito, mas o
mundo de Deus, o mundo que Êle criou; recuso-me admiti-lo.” 1808
Ivan encarna, segundo Camus, a recusa da Salvação. Ele recusa o reino da
graça em nome do desejo de justiça. Se os libertinos e os dândis recusavam ao Deus
maléfico e capricho do Antigo Testamento, em Dostoiévsky é a ordem do Deus de
amor que é integralmente contradita, se ela se revela injusta ao ponto de exigir o
sacrifício de inocentes: “Escuta: se todos devemos sofrer para pagar a harmonia
eterna ao preço de nosso sofrimento, qual a razão do sofrimento das crianças?(...)A
harmonia universal não vale uma única das lágrimas de uma dessas crianças
torturadas, como aquela que batia no peito com as mãozinhas, fechada, na cloaca
imunda pedindo a ajuda de «Nosso Senhor». A harmonia universal não vale essas
lágrimas(...)Recuso esta harmonia, recuso-a por amor à humanidade(...)Não me
recuso à aceitar Deus Alióscha: mas com o maior respeito, lhe devolvo minha
entrada.” 1809 Comenta Camus “Ivan não diz que não há verdade. Ele diz que, se há
uma verdade, ela só pode ser inaceitável. Por que? Por que é injusta. A luta da
justiça contra a verdade surge aqui pela primeira vez; e não terá mais fim.” 1810
Este combate pela justiça reverberará noutra característica sumamente
importante em Dostoiévsky assinalada por Camus, a saber, a dimensão coletiva
configurada e assumida pela primeira vez na revolta, posto que Ivan não barganha o
sofrimento dos outros contra a idéia de uma salvação individual, “ele recusa ser salvo
sozinho” 1811 .
Com ele se configura uma exigência coletiva e absoluta de salvação e justiça
que caracterizará mais tarde, segundo Camus, a megalomania revolucionária que de
alguma maneira preconiza com a radicalidade da exigência de felicidade de que é
portador, “ou Todos ou Ninguém.” 1812 Isto porque, em sua exigência de justiça
generalizada “ num universo que está baseado em absurdos”, Ivan não possui mais
nenhum referencial de bem e mal - “Ivan se esforçará em fazer o mal a fim de ser
coerente.” 1813 “Ora, no meu juízo, segundo minha inteligência lastimável e terrestre,
euclidiana, sei apenas que o sofrimento existe, que não existem culpados, que as
1808
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 632.
1809
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 643-4. Citado parcialmente por Camus (HR, 466)
1810
HR, 466.
1811
HR, 467.
1812
HR, 467.
1813
HR, 466.
436
coisas decorrem direta e simplesmente umas das outras, que tudo passa e se
equilibra.” 1814
Diante da indiferença moral trazida por esta perspectiva, o passo seguinte na
tentativa de descer o céu à terra, é bem conhecido: “Tudo é permitido. Com este tudo
é permitido começa realmente a história do niilismo contemporâneo.” 1815
Trata-se da conversão de uma aspiração metafísica instaurada na história
cotidiana, incluíndo aí a lógica da legitimidade do assassinato, “Ivan revolta-se contra
um Deus assassino; mas desde o instante em que racionaliza sua revolta, extrai dela
o assassinato. Se tudo é permitido , ele pode matar o pai ou deixar que o matem.” 1816
Permitir o assassinato do pai é a resposta de Ivan para a questão que, segundo
Camus, constituirá o mais profundo progresso aportado por Dostoiévsky ao espírito
da revolta: “pode-se viver mantendo-se permanentemente na revolta?” 1817 Ivan
consentirá às consequências lógicas de sua decisão se entranhando no paradoxo que
findará por lhe dilacerar: “Revolta?(...) –Pode-se viver revoltado? Pois assim eu
quero viver.” 1818
Não obstante escolha à revolução, à condução da revolta ao seu extremo, as
evidências sensíveis ao coração se interpõem entre Ivan e o imoralismo sem limites.
Seu ímpeto se dissolve em melancolia em confronto direto com o sentimento das
origens de sua revolta, não permitindo assim a fidelidade almejada aos princípios da
lógica revoltada. Ivan que reinvindicava uma réplica diante da injusta condenação à
morte impingida por Deus, que desprezava à pena de morte pelo mimetismo que esta
representava da ordem divina 1819 , estremece, ele “não pode permitir que se mate o
próximo.” 1820 Imerso neste paradoxo trágico, Ivan enlouquece.
O paradoxo de desfecho d´Os Irmãos Karamazov sintetiza em Ivan o drama da
revolta metafísica em seu ensejo de materialização histórica presente nos
empreendimentos revolucionários do século XX. Não obstante sua origem residir na
compaixão, no elã de justiça, sua consequência imediata é a reiteração da injustiça e
da morte, e, no caso do empreendimentos históricos, da servidão, impelida pela
1814
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 642.(HR, 467.)
1815
HR, 467.
1816
HR, 468.
1817
HR, 468.
1818
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p.644.
1819
“...cortam-lhe fraternalmente à cabeça em nome do senhor...”(DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos
Karamazov.p.638.)
1820
HR, 469.
437
1821
DOSTOIÉVSKY, F. Os Irmãos Karamazov.p, 655-64.
1822
HR, 469.
1823
HR, 469.
1824
HR, 469.
438
1831
HR, 469.
1832
STIRNER, M. L´unique et s proprieté(1845).
1833
HR, 472.
1834
HR, 472.
1835
“Os nomes não o nomeiam, ele é O Único.”(HR, 472.)
440
1836
STIRNER, M. L´unique et s proprieté.p,317-8.
1837
HR, 473.
1838
HR, 473.
1839
STIRNER, M. L´unique et s proprieté.pp.310, 319.
441
Único: “só há o«meu poder(...)o esplêndido egoísmo das estrelas»” 1840 . Segundo
Camus, com Stirner, “o individualismo chega assim a um apogeu.” 1841
O evangelho de Stirner destila a cantilena de um individualismo radical que
define suas ações ao léu, em virtude e prazer da liberdade irrefreável de mestre do
jogo de que desfruta o Único, que arbitrariamente e, “sem preocupação”, estipula às
regras de sua partida. Stirner contrapõe seu jogo aberto e singular de poder às
ideologias que mascaram suas vontades de dominação estipulando crime, castigo e
recompensa como “horizontes morais” e “Humanos”, falseando seu conteúdo
idiossincrático e arbitrário. Para tanto, Stirner esboça uma concepção de história
radicalmente individualista, em franco contraste às pretensões universalizantes do
materialismo histórico, como podemos constatar numa passagem do capítulo final de
O Único e sua propriedade, sem dúvida, bastante significativa para a constituição da
abordagem camusiana: “Que o indivíduo é, para si mesmo uma história do mundo, e
que o resto da história não é senão sua propriedade, isto ultrapassa à visão Cristã.
Para este último, a história é superior, porque é a história do Cristo ou do
«Homem»; para o egoísta, somente sua história possui um valor, visto que não quer
desenvolver a não ser a ele mesmo, e não ao plano de Deus, aos desígnios da
Providência, à liberdade, etc. Ele não se vê como um instrumento da Idéia ou um
vassalo de Deus, ele não se reconhece em nenhuma vocação, ele não imagina não ter
outra razão de ser senão contribuir ao desenvolvimento da humanidade e não crê
dever portar seu estandarte; ele vive sua vida sem se preocupar se a humanidade
com isso perde ou ganha. – O quê?! Vim eu ao mundo para realizar idéias? Para
trazer com meu civismo minha pedra para a realização da idéia de Estado, ou para,
pelo casamento, dar existência como esposo e pai à idéia de família? Quem enxerga
em mim esta vocação?Eu não vivo segundo uma vocação assim como a flor não
desabrocha nem exala seu perfume por dever.” 1842
Camus se atêm às conseqüências lógicas das idéias de Stirner, “O que é bom:
tudo que posso usar, o que é legítimo, àquilo que sou capaz”(...)“Não há mais crimes
nem erros; por conseguinte, não há mais pecadores.” 1843 A combinação entre suas
premissas, negação de qualquer ordem divina ou moral, afirmação integral da
potência do Único, compõe uma visão filosófica que, segundo Camus, despreza
1840
HR, 473.
1841
HR, 474.
1842
STIRNER, M. L´unique et s proprieté.p. 319.
1843
HR, 474.
442
1844
HR, 474.
1845
HR, 475.
1846
HR, 475-4.
1847
HR, 475.
443
1848
STIRNER, M. L´unique et s proprieté.p. 319.
1849
HR, 475
1850
HR, 475.
1851
HR 475.
1852
HR, 475.
1853
HR, 475.
444
crença na vida.” 1854 Nietzsche teria encontrado também, morto, Deus, na alma de seu
tempo, encerrada definitivamente esta questão, ele ter-se-ia incumbido de responder à
difícil questão que sucede ao dilema de Ivan Karamazov1855 : “Pode-se viver sem
acreditar em nada?” 1856 A resposta de Nietzsche configurará uma afirmativa absoluta
a esta questão, mas nos termos de uma concepção cosmológica extremamente
exigente.
Aderindo à concepção pré-socrática de cosmo, Nietzsche considera a realidade
como inocente devir; como a criança heraclitiana, o cosmo evolui por si, sem
finalidade e sem empenho: “A criança é inocência e esquecimento, um recomeço, um
jogo, uma roda que gira por si só, um primeiro movimento, o dom sagrado de dizer
sim.”
Este eterno devir que, obviamente, prescinde da idéia de Deus, torna inúteis as
idéias de unidade, finalidade ou valor. Para Nietzsche, segundo Camus, “todo juízo de
valor leva à calúnia da vida. Julga-se apenas aquilo que é, em relação ao que deveria
ser – reino dos céus, idéias eternas ou imperativo moral. Mas o que devia ser não
existe; este mundo não pode ser julgado em nome de nada.” 1857
Não se pode avaliar à vida em termos de bem e mal, mau ou bom, verdade ou
mentira pois se o cosmo é inocente, indiferente e multiforme, todas as faces da vida,
das mais belas às mais terríveis lhe pertencem e lhe exprimem. Camus cita duas frases
de Nietzsche em seqüência, que visam demonstrar o revigoramento potencializado do
imperativo de Ivan Karamazov pela concepção nietzschiana de cosmo: “As vantagens
deste tempo: nada é verdadeiro, tudo é permitido.” 1858 (...) “Problema: por que meios
se obteria uma fórmula rigorosa de niilismo completo e contagioso, que ensinaria e
praticaria com um conhecimento inteiramente científico a morte voluntária?” 1859
Dadas as premissas epistemológicas do absurdo, todas as conseqüências podem delas
se efetivar.
Segundo Camus, Nietzsche diagnostica que todo niilismo se fundamenta no
mascaramento da gratuidade fundamental do cosmo e nos subterfúgios morais que
velam a relação originária do homem com as pulsões da natureza: “A conduta moral,
1854
HR, 475.
1855
“Revolta?(...) –Pode-se viver revoltado? Pois assim eu quero viver.”DOSTOIÉVSKY, F. Os
Irmãos Karamazov.p.644.
1856
HR, 475.
1857
HR, 476.
1858
HR, 476
1859
HR, 477.
445
tal como exposta por Sócrates ou tal como recomenda do cristianismo, é em si mesmo
um sinal de decadência.”(...)“A moral visa substituir às paixões por um mundo
harmonioso, totalmente imaginário.” 1860
O cristianismo é, sem dúvida, o arqui-rival de Nietzsche, em seu desprezo
pelos valores da terra, do corpo e pela semeadura das esperanças para o além túmulo
que o desviam de sua relação originária com o cosmo. Mas Camus se atêm ao fato
que, embora despreze o cristianismo a partir do instante que Paulo tranformou o
legado de Cristo num empreendimento imperialista, Nietzsche poupa a figura do
Cristo, pois considera que o âmago de seus ensinamentos seria “o consentimento total,
a não resistência ao mal.” 1861
Camus reitera esta perspectiva do Cristo paradoxalmente elogiada por este detrator,
par excellance, da religião. Em sua interpretação de Cristo, Nietzsche valoriza sua
aceitação e sua vivência dos aspectos obscuros da existência, traço que se mostrará
fundamental em seu próprio pensamento: “É preciso aceitar o mundo como ele é,
recusar-se a aumentar sua desventura, mas consentir em sofrer pessoalmente o mal
que ele contém.” 1862
Deturpando a doutrina desprovida de ambição do Cristo, Paulo, segundo Nietzsche, a
transforma num mercado onde se barganha o sentido da existência: “A idéia do
julgamento se entranha aos ensinamentos do Cristo, e as noções correlativas de
castigo e de recompensa. A partir desse instante, a natureza torna-se história, e
história significativa: nasce a idéia de totalidade humana.” 1863
Este maquinário do cristianismo que destina à vida humana a um sentido
imaginário e falso que lhe ultrapassa, transmundano, como diria Nietzsche, será
mimetizado por seus substitutos morais após a morte de Deus no espírito de seu
tempo: “ O socialismo nada mais é do que um cristianismo degenerado. Na verdade,
ele mantém essa crença na finalidade histórica, que trai a vida e a
natureza...” 1864 Assim, Nietzsche se insurge contra o socialismo e “todas as formas de
humanitarismo” a quem considera, como Stirner, uma simples degradação do
cristianismo, que remodela a dinâmica, crime, castigo e recompensa e acaba por se
1860
HR, 477.
1861
HR, 478.
1862
HR, 478.
1863
HR, 478.
1864
HR, 479
446
1865
HR, 479.
1866
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 65.
1867
Como reiterado tantas vezes no Ecce Homo.
1868
Fragmento sobre o Daimon de Sócrates...Ele ri e não se atira às paredes...
1869
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 49.
447
serdes filhos de vossos pais: o passado inteiro devereis, assim, redimir!Essa nova
tábua eu suspendo sobre vós.” 1870
Mas qual seria esta promessa de futuro senão um homem voltado
exclusivamente para o presente? Qual seria a nova tábua de Nietzsche, senão àquela
que ensina a ausência de toda lei moral e a assunção total às pulsões e determinações
do cosmo? “Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer
diferente, seja para trás, seja para a frente, seja em torna a eternidade. Não apenas
suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo – todo idealismo é mendacidade ante o
necessário – mas amá-lo...” 1871
Para Camus, a boa nova do amor fati, por intermédio da qual Nietzsche
concede uma dimensão ética à epistemologia do cosmo inocente que engendra por si,
como um dançarino, o eterno retorno do devir, é a própria concepção de liberdade do
autor, visto que ela consiste na afirmação irrestrita de todos os aspectos, até mesmo os
mais problemáticos da existência. Este é o sentido da terra que se está gestando. Esta
atitude que Nietzsche apelidará de “fatalismo russo” em sua auto-biografia filosófica
Ecce Homo é, para Camus uma “aprovação superior, nascida da superabundância e
da plenitude, é a afirmação sem restrições do próprio erro e do sofrimento, do mal e
do assassinato, de tudo que a existência tem de problemático ou estranho.” 1872
A moral de Nietzsche assume, assim, toda gratuidade e irresponsabilidade que
confere ao cosmo, e que desvela como sendo sua efetiva nobreza e divindade. A
existência é um jogo arbitrário sem sentido e sem Criador no qual “o dom sagrado é
dizer sim.” Interessante notar que Camus considere a sentença de Heráclito, como a
resposta nietzschiana para a Aposta de Pascal: “Examinemos, pois, esse ponto, e
digamos: ‘ Deus Existe ou não existe’. Para que lado nos inclinaremos? A razão não
pode determinar: há um caos infinito que nos separa. Na extremidade dessa distância
infinita, joga-se cara ou coroa. Em que apostareis ?” 1873 “A criança é inocência e
esquecimento, um recomeço, um jogo, uma roda que gira por si só, um primeiro
movimento, o dom sagrado de dizer sim.” 1874 “Fui compreendido? –Dionísio contra o
crucificado....” 1875
1870
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 210.
1871
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p,51.
1872
HR, 483.
1873
PASCAL, B. Pensées. (L.233-Br.418) “...Que eu não leia Pascal, mas que o ame...”(
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.41.)
1874
HR, 483.
1875
HR, 484.
448
1876
HR, 484.
1877
HR, 484.
1878
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.114.
1879
NIETZSCHE, F. Além de Bem e Mal. Fr.225.
1880
“Querem uma fórmula para um destino assim, que se faz homem? – Ela se encontra no meu
Zaratustra. «– quem um criador quiser ser no bem e no mal, deverá ser primeiro um destruidor, e
despedaçar valores. Assim o mal maior é o próprio bem: este porém é o criador.» Eu sou,no mínimo, o
homem mais terrível que já existiu; o que não impede que eu venha a ser o mais benéfico. Eu conheço
o prazer de destruir em um grau conforme à minha força de destruir – em ambos aobedeço à minha
natureza dionisíaca, que não sabe separar o dizer «Sim» do «fazer Não. Eu sou o primeiro imoralista:
e com isso sou o destruidor par excellance.” (NIETZSCHE, F. Ecce Homo. p.110 – Citando Assim
falou Zaratustra, II Da superação)
1881
HR, 483-4. O Calígula de Camus, como vimos, é a encarnação deste criador-político nietzschiano.
449
deformidade anti-semita, que ele nunca deixou de desprezar 1882 (...)Em seu nome
colocou-se a coragem contra a inteligência, e essa virtude que foi realmente a dele,
transformou-se em violência cega.” 1883
Camus, portanto, embora reconheça o brilhantismo metódico e a lucidez
severa de Nietzsche é implacável no que se trata de associá-lo, sem reservas,
malgrado ele próprio, à vontade de potência e de destruição do nazismo, alinhando-o
à artilharia ideológica do mal absoluto: “...conhecem-se a sua posteridade e o tipo de
política que ia ser autorizado pelo homem que se dizia o último alemão anti-
político.” 1884 Notemos que Camus compreende que seja à despeito de Nietzsche - que
seja através, em grande parte, da deturpação de sua filosofia - que se conclua de seu
pensamento austero, que a bem da verdade compõe uma verdadeira sinfonia à vida –
o seu contrário, isto é, uma ode à morte: “Sua solidão profunda do meio-dia e da meia
–noite perdeu-se, entretanto, nas multidões mecanizadas que finalmente se
multiplicaram na Europa.” 1885
A bem da verdade, de nossa parte ajuntemos, Nietzsche, principalmente em
sua auto-biografia filosófica, alardeia, aos quatro ventos sua disparidade profunda
com o elã que diagnosticava animar o Reich. De início à cabo, o Ecce Homo constitui
um esforço hercúleo de desvinculação do gênero alemão. Quem sabe não seja
desnecessário seguir o desenvolvimento desta obra de maturidade de Nietzsche na
tentativa de indagar, em sintonia com a enquete camusiana, sobre a real opinião de
Nietzsche a respeito de seu país natal.
Desde o início do Ecce Homo, Nietzsche esboça de si mesmo um perfil psico-
fisiológico radicalmente anti-germânico, forjando até mesmo uma falsa ascendência
polonesa: “ já minha ascendência permite-me enxergar além das perspectivas
puramente locais, puramente nacionais (...) Por outro lado, sou talvez mais alemão
do que ainda podem ser os alemães de hoje , meros alemães do Reich - eu , o último
1882
“...Ainda não encontrei um alemão que tivesse afeição pelos judeus; e embora todos os homens
cautelosos e políticos rejeitem de modo absoluto o autêntido anti-semitismo,mesmo essa cautela e essa
política não se de origem contra o próprio gênero de sentimento,mas tão somente contra sua poderosa
imoderação, em especial contra a manifestação disparatada e vergonhosa desse sentimento
imoderado(...)«Não deixar entrar novos judeus!Fechar as portas para o Leste»(...)isso é o que ordena
o instinto de um povo que natureza é ainda fraca(...)Mas os judeus são, sem qualquer dúvida a raça
mais forte, mais tenaz e mais pura que atualmente vive na Europa...” (NIETZSCHE, F. Além de Bem e
Mal. Fr.251.) “Há uma historiografia alemã- imperial, há, receio, até mesmo uma anti -semita”.(EH,
p.103)
1883
HR, 484.
1884
HR, 484.
1885
HR, 485.
450
alemão anti - político. E no entanto, meus antepassados eram nobres poloneses; deles
tenho muito instinto de raça no corpo, quem sabe até mesmo ainda o liberum
veto.” 1886
1887
Pouco nos importa aqui se o auto - retrato de Nietzsche é fiel ; o que
cabe acentuar nesta passagem de “Por que sou tão sábio” é que um dos
pressupostos da singularidade da experiência do filósofo é sua descaracterização
enquanto alemão genuíno, associada a habilidade que a fisiologia lhe propicia para
“transtrocar perspectivas.” 1888
Nietzsche marca, deste a primeira menção à própria genealogia, sua
alteridade em relação à Alemanha e estipula seu descomprometimento com qualquer
sentimento cívico. O filósofo descreve-se como um alemão de um tipo extinto, um
alemão malhado, de raça e instinto polonês (de quem herdou também a inclinação
para vetar leis) , de um tipo impróprio para a integração num “rebanho”: alega que
seria ele o último alemão sem o dom “aristotélico” da sociabilidade, contrário ao
espírito gregário típico do Reich .
O que se desenha pouco a pouco é o quadro de influências que entremostra o
afastamento de Nietzsche do espírito e metabolismo alemães: a ascendência
polonesa , uma adesão à sensatez do “fatalismo russo” e uma vinculação espontânea
à sabedoria fisiológica dos budistas. Tudo colabora na expressão da singularidade
Nietzsche.
Diferença que na segunda menção direta sobre à Alemanha em Ecce homo,
ganha contornos de contraponto evidente, já que a “cultura alemã” exemplifica um
adversário à altura , uma causa vitoriosa e nefasta, dotada de “maestria de armas”,
escolhida voluntariamente para o jogo da guerra. Outro dado caro acrescentado ao
“protocolo de guerra” nietzschiano revela que atacar pessoas simboliza o ataque a
“causas”: David Strauss e Richard Wagner aparecem associados à crítica à
“cultura” (bildung) alemã - Nietzsche diz servir -se de pessoas como “uma forte
lente de aumento com que se pode tornar visível um estado de miséria geral, porém
dissimulado, pouco palpável” 1889 .
1886
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. (Ele será até o fim do capítulo legendado como EH).p.26
1887
É talvez digno de nota que Halevy considera esta ascendência aristocrática polonesa de Nietzsche
como fantasiosa.(HALEVY, D. Nietzsche)
1888
Tal é o exercício que a oscilação própria da constituição fisiológica de Nietzsche permite “da
ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos , e , inversamente, da plenitude e certeza da vida rica
descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence’.(EH, p.24)
1889
EH, p. 32
451
1890
EH, p.34
1891
Vemos o “filósofo - legislador” gerindo - enquanto médico - adequadamente sua fisiologia.
Lembremos essa passagem: “essas pequenas coisas - alimentação , lugar, clima, distração, toda a
casuística do egoísmo - são inconcebivelmente mais importantes do que tudo o que até agora tomou-se
como importante. Nisto exatamente é preciso começar a reaprender.”(EH,p.50)
1892
EH,p.35
1893
EH.p.36
452
atraso que beirava à santidade”. Nietzsche começa então a se distinguir dos seus
neste ponto: sua inteligência se exprime espontaneamente, de começo, através de sua
indisposição natural contra os pressupostos fisiológicos do idealismo. Podemos
observar neste capítulo de Ecce Homo, assim, três níveis de crítica à cultura alemã:
alimentação , clima e distração. Três aspectos ao mesmo tempo, influenciadores e
influenciados( à maneira de um círculo - vicioso)pela ótica distorcida do idealismo.
Primeiramente o filósofo critica a alimentação alemã, pois a digestão é
componente nobre na constituição das disposições do homem, com parcela
importante de influência em seu conatus. A cozinha de Leipzig, por exemplo,
segundo o Ecce Homo, que teve o desprazer de conhecer quando estudava
Schopenhauer, quase lhe haveria feito “renegar à vida”. A inter-relação entre
fisiologia e moral é um dos preceitos vitais fundamentais da nova sabedoria
nietzschiana: “como você deve alimentar-se para alcançar seu máximo de força, de
virtù no estilo da renascença, de virtude livre de moralina?” 1894 Segundo Nietzsche,
a cozinha alemã em geral é responsável pela indigestão própria do espírito alemão
“que de nada dá conta” : “a sopa antes da refeição, as carnes demasiado cozidas, as
verduras gordurosas; a degeneração dos doces em peso para papel” 1895 e os maus
hábitos da mesa causam as “entranhas enturvadas” típica dos alemães. É o
desencargo para com o corpo dos alemães, o verdadeiro pecado contra o espírito,
origem de seus ‘pés pesados’ e da ‘má consciência’. Diz Nietzsche no final desta
seção, “todos os preconceitos vêm das vísceras” 1896 .
A inadequação entre Nietzsche e a Alemanha provém também de outra
fonte segundo o Ecce Homo: de pressupostos ligados ao lugar e ao clima. A
influência climática sobre o metabolismo afasta Nietzsche mais uma vez de sua pátria,
que considera um lugar impróprio ao cultivo do gênio: “o gênio é condicionado pelo
ar seco, pelo céu puro”, e “o clima alemão em si já é suficiente para desencorajar
vísceras fortes, de disposição heróica inclusive.” 1897 Entre os lugares de clima seco,
apto para o desenvolvimento do gênio - Paris, Florença, Jerusalém e Atenas -
nenhum em território alemão. A infância do filósofo descrita como “isenta de
lembranças felizes” foi envenenada pela total ausência de afinidade entre às condições
de vida na Alemanha ( alimentação , clima) e a fisiologia de Nietzsche: “a ignorância
1894
EH,p.36.
1895
EH.p.38.
1896
EH.p.38.
1897
EH.p.39.
453
1898
EH.p.19.
1899
EH.p.19.
1900
1901
EH, p.41.
1902
Nietzsche cita nomes (todos franceses) dignos de sua admiração: Molière, Corneille e Racine; Paul
Bourget, Pierre Loti, Gyp, Meilhac, Anatole France, Jules Lamaître, Guy de Moupassant, Stendhal.
1903
EH,p.41.
1904
EH, p.42.
454
1905
EH,p.46. Entretanto Bach e Hendel são elogiados : “são alemães de um tipo extinto”.
1906
EH, pp.44,45.
455
de justiça de paladar alemão, que a tudo dá direitos iguais - que tudo acha
saboroso.” 1907
Em “O caso Wagner” Nietzsche expõe a transfiguração da música de mestres
como Wagner e Heirinch Schultz operada pela pequenina política alemã: música
dionisíaca tornada sacra e gregária pelo mau gosto alemão. A discussão sobre a
música, transforma-se num ataque aos ouvintes doentios que produzia à bildung
alemã; torna-se evidente, com a leitura atenta deste capítulo do Ecce Homo, que a
análise que propõe uma associação de Nietzsche à vontade de Reich - no que viria
agigantar-se e concretizar-se nos ideais arianos e militaristas de Hitler - é , afinal
distorcida, elaborada a partir de orelhas imensas. 1908 O que Nietzsche ouvia em
Wagner, era algo diferente, não tinha nada haver com o Wagner vestido de Hussardo
escutado pelo rebanho do Reich: “o que nunca perdoei à Wagner ? O haver
condescendido com os alemães - o haver-se tornado um alemão do Reich. Onde reina
a Alemanha corrompe a cultura.” 1909 O que o filósofo ouvia era algo diverso : era a
música dionisíaca que Nietzsche escutava, traduzida e transfigurada pelo seu próprio
escutar . Por outro lado, o que os alemães do Reich ouviam da música de Wagner é
apenas o que poderiam ouvir: ecos transfigurados de sua experiência doentia, de sua
decadência fisiológica, da má consciência idealista: “Wagner, Bayreuth, toda a
pequenina miséria alemã é uma nuvem onde uma infinita imagem do futuro se reflete.
” 1910
É o mal entendido , a falência comunicativa do conteúdo íntimo da “arte
dionisíaca” que leva à apropriação do nome de Wagner pelo Reich: “a nevroise
nationale da qual adoece a Europa, essa perpetuação da pequenina política: eles
levaram da Europa seu sentido, sua razão - levaram-na a um beco sem saída.” 1911
E ressaltemos: Nietzsche prevê para si, a mesma sina de seu contraditor - “e
tão certamente como Wagner é um mero mal entendido entre os alemães, também
eu o sou e eu o serei” 1912 . De fato, os alemães não experimentavam na música de
Wagner e nos discursos de Nietzsche “a grande arte dionisíaca libertadora ” que
clamava ser escutada. O que foi compreendido não foi senão a reverberação
mesquinha, idealista e gregária que a Europa encontrava em seu próprio fundo.
1907
EH, PP.102/103.
1908
Camus, se atêm, entretanto, que são de fato, os asnos que apoderarem deste maquinário...
1909
EH, p. 44.
1910
EH, P.65.
1911
EH. p.105.
1912
EH, P.30.
456
1913
EH, 17.
1914
EH.117.
1915
EH, p.54.
1916
“Quando busco formar a imagem de um leitor perfeito, resulta sempre em um monstro de coração
e curiosidade, e também em algo doce, astuto, cauteloso, um aventureiro e descobridor nato”.(EH,
p.56)
457
intensidade ; “que hoje não me ouçam, que hoje nada saibam de mim, não é não só
compreensível, parece-me até justo”. 1917
Tendo em vista a concepção de comunicação nietzschiana não é surpreendente
que a leitura feita pelo Nationalzeitung - um jornal prussiano típico - considere a
Além de Bem e Mal “um signo dos tempos, como a verdadeira e correta filosofia
junker ...” 1918 ; e que a palavra “super-homem” seja entendida na Alemanha pelo
avesso, designando algum monstro, meio santo, meio gênio. É uma condição para a
compreensão da obra de Nietzsche, segundo o Ecce Homo, não partilhar nada com
Alemanha: “é absolutamente imprescindível não ser alemão”. 1919
Segundo o Ecce Homo, é o caráter estrangeiro de sua obra que a faz,
consecutivamente, ser, ainda que parcial e nebulosamente, entendida no exterior: Em
lugares, segundo seus próprios termos, mais irmãos que a Alemanha - Viena , São
Petersburgo, Estocolmo, Copenhague , Paris , Nova York - “em toda parte sou
descoberto: não o sou na terra chata da Europa(Flachland), a Terra dos
Alemães(Deutschland)” 1920 . É das interpretações francesas que Nietzsche guarda
melhor expectativa(e colhe já elogios). Pois os franceses, por afinidade, estão mais
aptos à captar o presente íntimo que o filósofo os concedeu “ em Paris mesmo estão
assombrados com ‘toutes mes audaces et finesses’(...)receio que se encontre em mim
uma pitada de sal que nunca se torna insípido - ‘alemão’ - o esprit”.” 1921
Esse jogo de espelhamento entre escritor e leitor, imprescindível para o
sucesso da débil experiência da comunicação, exprime que a filosofia de Nietzsche é
de um aristocratismo radical; é para poucos, como vimos, no limite, para ninguém.
Filosofia destinada apenas aos companheiros de viagem, almas irmãs
dispostas a seguir juntas por afinidade gratuita, pelo puro elã; amantes da altura e do
clima das montanhas - da solidão, ou da solidão à dois: um pensamento fundado no
ideal da criação artística, como bem detecta Camus, destinado às alturas, nada
disposto aos interesses do vale - da terra chata(Flashland). Trata-se do contraponto
exato do gregarismo e do nivelamento operado pela política junker. Lembrando ainda
uma vez as palavras do Zaratustra, que consideramos a opinião final de Nietzsche à
1917
EH, p.52
1918
EH, p.54
1919
EH, p.55
1920
EH, p.54
1921
EH, p.55
458
1922
NIETZSCHE, F. Assim falou Zaratustra.p.65.
1923
HR, 485.
1924
HR, 485.
1925
PETERS, H.F., Nietzsche et sa soeur Elizabeth. Paris. Mercure de France, 1978. (p.316).
459
“também no meu caso os alemães a tudo recorrerão para fazer um imenso destino
parir um rato.” 1926
Camus, de sua parte, observemos com cuidado, reitera sem reservas, pois, a
existência de um abismo profundo, inexpugnável, entre o pensamento profundo de
Nietzsche e o Reich: “Reconheçamos em primeiro lugar que será sempre impossível
confundir Nietzsche com Rosemberg. Devemos ser advogados de defesa de
Nietzsche.” 1927
Porém, Nietzsche não está à salvo no renversement continuel du pour au
contre de Camus.
Advertimos que a reabilitação de Nietzsche seria, da parte de Camus, parcial.
Camus questiona em O Homem Revoltado qual aspecto da filosofia de Nietzsche
endossaria a interpretação lhe conferida pela história do século XX: “O próprio
movimento que culminou com Nietzsche, e que o sustenta, tem as suas leis e a sua
lógica, que talvez expliquem a sangrenta desfiguração que se infringiu à sua filosofia.
Não haverá nada em sua obra que possa ser utilizado no sentido do assassinato
definitivo?” 1928
Camus dá um passo adiante na profanação deste filósofo, que, na atualidade
do terceiro milênio, foi tornado sacro, malgrado as advertências de Zaratustra. 1929 Ele
é sacrílego ao ponto de se perguntar se, de fato, Nietzsche não teria, de fato, sido útil à
consciência bem cultivada dos carrascos nazistas: “Os matadores, desde que
renegassem o espírito em favor da letra, e até mesmo aquilo que na letra continua
sendo espírito, não poderiam encontrar seus pretextos em Nietzsche?” 1930
A resposta de Camus, fissura de antemão o caráter marmóreo no qual se
forjará a veneração contemporânea à Nietzsche: “Sim. A partir do momento em que se
negligencia o aspecto metódico do pensamento nietzschiano, a sua lógica revoltada
não conhece limites.” 1931
1926
EH, 105.
1927
HR, 485.
1928
HR, 485.
1929
“Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração desmoronar?Guardai-vos de que não vos
esmague uma estátua.” (EH, 20)
1930
HR, p.485-6
1931
HR, 486.
460
1932
HR, 486.
1933
EH, 51.
1934
HR, 486.
461
1935
HR, 486.
1936
PASCAL, B. Pensées. (L.70.-Br.337) “Gradação. O povo honra as pessoas de grande nascimento.
Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem da pessoa, mas do
acaso(...)Os devotos que tem mais zelo que ciência os desprezam(...)Mas os cristãos perfeitos as
honram por outra luz superior. Assim vão se sucedendo as opiniões do pró ao contra, segundo a luz
que se tem...”
1937
PASCAL, B. Pensées.(Br.336) “Razão dos efeitos: é preciso ter um pensamento oculto e julgar
tudo por ele, falando entretanto como o povo.
1938
PASCAL, B. Pensées.(Br.336) “- Razão dos efeitos – Passagem contínua do pró ao contra.
Mostramos que o homem é vão pela estima que dedica às coisas que não são essenciais. E todas estas
462
opiniões dão destruídas. Mostramos em seguida que todas essas opiniões são muito sadias e que,
destarte, sendo todas as vaidades muito bem fundadas o povo não é tão vão como se diz. E, assim,
destruímos a opnião que destruía a do povo.Mas é preciso destruir agora esta última proposição, e
mostrar que continua sendo verdadeiro que o povo é vão, embora suas opiniões sejam sadias, porque
não sente a verdade delas onde esta verdade existe e por que, ponto onde não existe, as suas opiniões
são sempre muito falsas e muito malsãs.”
1939
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. (EH), p.114.
1940
HR, 487.
463
ainda mais longe. Nietzsche é efetivamente o que ele reconhecia ser: a consciência
mais aguda do niilismo. O passo que ele faz o espírito de revolta dar consiste em
fazê-lo saltar da negação do ideal à secularização do ideal.” 1941
Para Camus, Nietzsche vai além do mero conformismo, pois ele instiga à
tragédia contemporânea na medida em que, decretada a irracionalidade do mundo,
“Nietzsche reivindicaria o rumo do futuro humano.” 1942 Camus cita um fragmento,
como de hábito, sem referência, que, possivelmente, constava na compilação de textos
de Nietzsche realizada por Elizabeth Forster Nietzsche, conhecida como Vontade de
Potência: “«A tarefa de governar a Terra vai derrotar-nos.» E ainda «Aproxima-se o
tempo em que será necessário lutar pelo domínio da terra, e essa luta será travada
em nome dos princípios filosóficos».” 1943 Camus decreta: “Ele enunciava o século
XX” 1944
Interessante notar que podemos afirmar certamente 1945 que Camus conhecia
passagens como a do prólogo do Ecce Homo na qual Nietzsche afirma sua aversão à
ser considerado um profeta: “Vós me venerais; mas e se um dia vossa veneração
desmoronar? Guardai-vos de que não vos esmague uma estátua.” 1946
Camus, afinal, reafirma sua postura diante da sentença acima. Para Camus,
Nietzsche sabe exatamente o quilate do presente de destruição que concebe e semeia
em sua época. Embora possamos interpretá-la como uma expressa precaução de
Nietzsche, uma recusa prévia de compactuar com seus “descendentes” e de ser o
mestre de quem quer que seja, para Camus, as inúmeras frases como esta
disseminadas por sua obra, atestam somente que o mais fino e exímio dos psicólogos
de sua época – Nietzsche - premedita absolutamente sua intenções: “Ele anunciava o
século XX. Mas, se anunciava, é que estava alertado para a lógica interior do
niilismo e sabia que uma das conseqüências era o império.” 1947 Da nossa parte
ajuntemos: e o desmoronamento. A apreciação de Nietzsche elaborada por Camus é
extremamente severa: “Por isso mesmo ele preparava esse império(...)É preciso dizer
sim ao devir(...)é preciso procurar a liberdade; é preciso dizer sim à história. O
1941
HR, 487.
1942
HR, 487.
1943
HR, 487.
1944
HR, 487.
1945
ARNOLD, A-J. Camus lecteur de Nietzsche.Albert Camus 9. p, 95
1946
EH, 20.
1947
HR, 487.
464
1948
HR, 487.
1949
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p. 211.
1950
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra.p, 210.
1951
HR, 488.
1952
NIETZSCHE, F. Além de Bem e Mal. p,8.
1953
HR, 489.
1954
HR, 489.
1955
HR, 489
465
logo secularizam as filosofias que lhes dão esse direito(...)A esse respeito, o nacional-
socialismo é apenas um herdeiro provisório, a decorrência irada e espetacular do
niilismo.” 1956
A inculpação à filosofia é grave. Logo, outros acrescerão à regra, e é preciso
escolher 1957 .
*
1956
HR, 488.
1957
Talvez não seja excessivo relembrar um trecho dos Cadernos já mencionado no capítulo sobre
Calígula que sintetiza a crítica camusiana de Nietzsche: “...A ocasião força a escolha. Foi assim que
pareceu necessário a Nietzsche atacar com argumentos de força Sócrates e o cristianismo. Mas é
assim ao contrário que é necessário que nós defendamos hoje Sócrates, ou ao menos o que ele
representa, visto que a época ameaça de o substituir por valores que são a negação de toda a cultura e
que Nietzsche arriscaria obter aqui uma vitória a qual ele não desejaria.”(CAMUS, A. Carnets 1935-
1948. Carnets IV. Février 1943.OC.p.984)
1958
HR, 490.
1959
Somente a leitura camusiana permitiria enquadrar Epicuro e Lucrécio, neste perfil: tratar-se-ia neste
caso mais especificamente, da negação da morte, correspondente à negação da condição humana, que
destina-se, segundo Camus, ao “parecer”. Na leitura de Camus, a epistemologia do cosmo e o desprezo
para a morte são os argumentos que forjam este “parecer” de positividade. Em sua interpretação de
Epicuro e Lucrécio, Camus privilegia, recordemos, a extrema melancolia presente nesta denegação da
morte.
1960
HR, 490.
466
1961
HR, 490.
1962
HR,490.
1963
HR 508.
1964
HR, 508.
1965
“É preciso ter um pensamento oculto e julgar tudo por ele, falando, entretanto, como o
Povo.”(PASCAL, B . Pensées.L. –Br. )
1966
HR, 508.
467
veemente a esta condição regida pela pena de morte generalizada.” 1967 A linguagem
de Camus é indício desta abordagem clínica da filosofia e da história das idéias: “Em
todos os casos que encontramos, o protesto dirige-se sempre a tudo aquilo, que na
criação, é dissonância, opacidade..” 1968
Para Camus, a origem de todas estas expressões da revolta está uma exegese,
ainda que por contraste, à vida, “Sade, e os românticos, Karamazov ou Nietzsche só
entraram no mundo da morte porque quiseram à verdadeira vida” 1969 , eles se
dilaceram e consigo à justa revolta, quando seu protesto original contra “a pena de
morte generalizada” vai além, negando às origens da revolta que está ancorada, afinal,
no amor do homem, na consciência vigilante e inconformada contra sua condição de
finitude.
A origem esquecida por estes revoltados, segundo Camus, é o clamor de “uma
interminável exigência de unidade” 1970 , que o cosmo contradiz na opacidade
indiferente que o caracteriza: “A recusa da morte, o desejo de duração e de
transparência são as molas de todas essas loucuras, sublimes ou pueris.” 1971
Camus delineia ainda melhor, para sorte de seus leitores, sua concepção das
origens da revolta - a qual nenhum dos personagens citados até agora conseguiu
permanecer até o fim fiel. Não é apenas a melancolia diante da própria finitude que
mobiliza o revoltado “perfeito”, “porque muitos desses rebeldes pagaram o preço
necessário para ficar à altura de suas exigências”, mas um “protesto contra o
mal” 1972 .
Notemos o empreendimento de dignificação da condição humana presente na
obstinação do puro revoltado, “lutar contra a morte equivale a reivindicar um sentido
para a vida.” 1973
Esta comiseração insubmissa com a condição humana faz par com a
“exigência de unidade” presente na pura revolta. Camus, é importante sublinhar,
unifica os elãs de justiça e de clareza, nos reposicionando no horizonte de O Mito de
Sísifo reiterado no prólogo de O Homem Revoltado: trata-se da exigência de “um
princípio de explicação”, clamor de uma impossível transparência que o revoltado
1967
HR, 508.
1968
HR, 508.
1969
HR,508.
1970
HR,509.
1971
HR,509.
1972
HR 509.
1973
HR,509.
468
1974
HR, 509.
1975
HR, 509.
1976
HR, 511.
1977
HR, 509.
1978
HR, 509.
1979
HR, 509.
1980
HR, 509.
1981
HR,509.
469
1982
HR, 509.
1983
HR, 510.
1984
HR, 510.
1985
HR, 510.
1986
HR, 510.
470
“a liberdade absoluta torna-se, afinal, uma prisão de deveres absolutos, uma ascese
coletiva, uma história a ser terminada.” 1987
Doravante, O Homem Revoltado perseguirá este fenômeno de secularização da
escatologia cristã, que retoma, pelos prismas de uma razão e de uma revolta
distorcidas, às idéias messiânicas de sacrifício, martírio, redenção e advento,
instâncias às quais a revolta originalmente se contrapunha. Camus irá perscrutar as
encarnações justiceiras da revolta nos movimentos revolucionários belicosos e
liberticidas que, sinal dos tempos, não se contentam mais em operar num plano
metafísico: “Precisamos abordar agora esse esforço convulsivo no sentido do
império do mundo e da regra universal.” 1988
Seria necessário acompanhar, no detalhe, o desfecho deste itinerário.
A bem da verdade, antecipamos, na medida da responsabilidade de uma
análise ainda não satisfatória, as conclusões de O Homem Revoltado no capítulo O
pensamento dos limites: uma arte de viver para um tempo de catástrofe.
Entretanto, infelizmente, conhecemos nossos limites. Precisaremos de um
trabalho aparte na tentativa de compreender o conjunto da obra de maturidade de
Camus que engloba, além da parte final de O Homem Revoltado, Os Justos, A Queda,
o inacabado O Primeiro Homem –que encarna dramaticamente seu esforço
tragicamente inacabado de evolução às origens – além de outros muitos textos
políticos e filosóficos importantes do autor, como o pouco conhecido A Defesa do
Homem Revoltado. Seria importante também realizar uma análise detida da questão
argelina segundo Camus, o que nos levaria numa viagem pelo tempo, da infância ao
fim prematuro do autor num acidente de automóvel.
Será este objetivo de um trabalho posterior, aonde poderemos também,
finalmente, analisar em detalhe as cartas de ruptura entre Sartre e Camus e o
intertexto polêmico de suas obras de maturidade, que, afinal, continuam a dialogar
não obstante um silêncio formal tenha sido instaurado entre os dois filósofos.
Agora, nos contentaremos, tão somente, à título de conclusão, em resumir o
itinerário que traçamos do pensamento de Camus e conceder uma visão geral dos
objetivos gerais de nosso trabalho, centrado, a bem da verdade, na re-constituição de
uma linhagem filosófica capaz de fornecer um paradigma alternativo para a
racionalidade e para a ação no terceiro milênio.
1987
HR, 510-1.
1988
HR, 511.
471
***
Conclusão
1991
PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des grands. p.366.
474
1992
(L.532-Br.373)
1993
CAMUS, A . Carnets II. Paris, Gallimard, 1964, p.337.
475
*
Procuraremos nos centrar, em ambos os autores, na questão da recusa da
legitimação da ordem política procurando em seguida mencionar o inconformismo
com a redução do humano a sua dimensão histórica.
1994
SARTRE, J-P. Situações.I (Trad. Rui Gonçalves)Publicações Europa-América.pp.88,89.
477
1995
PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des grands.p.366
1996
idem,366.
478
1997
(L. Papiers classés/Section I, Vanité/II), Br.82)
1998
(L.48-Br.366)
1999
(L.67-Br.177)
2000
(L. Papiers classés/Section I, Divertissement VII), Br.139)
2001
(L. Papiers classés/Section I, Vanité/II), Br.82)
2002
(L.61-Br.309)
2003
(L.95-Br.316)
2004
Estas duas expressões - a misè-en-scéne e a reflexão - são indissociáveis em Pascal e Camus.
479
E assim não podendo fazer com que o que é justo fosse forte, fez-se com que o
é forte fosse justo.”
Para Pascal, oculto sob a carapaça cênica dos juízes do mundo, encontra-se
apenas o poder tirânico da força2005 , que não apenas governa o mundo em seus
aspectos materiais, mas também inscreve nos hábitos e nas mentalidades dos povos
seus cabrestos e suas sub- determinações:(L.89-Br.315) “Esse hábito é uma
força(...)não acontece o mesmo com um cavalo arriado frente ao outro?” (L.64-
Br.295) “Meu, teu. Este cachorro é meu, dizem estas pobres crianças. Este é o meu
lugar ao sol. Eis o começo e a imagem da usurpação de toda a terra.”
Finalmente, a ordem estabelecida carece de legitimidade profunda para
Pascal: alicerçado no acaso e na brutalidade, automatizado pelo hábito e sedimentado
pela imaginação, o poder político é não somente infame, ele é ilegítimo, visto que é
usurpado do povo: “Vós sois propriamente um rei de concupiscência. Vosso reino é
pouco extenso; mas nisso vós sois iguais aos maiores reis do mundo; eles são como
vós, reis de concupiscência.” 2006
O procedimento crítico de Pascal certamente inspirará posteriormente a
genealogia da moral de Nietzsche, “a arte de agredir e subverter os Estados consiste
em abalar os costumes estabelecidos, sondando-os até em sua fonte, para apontar a
sua carência de justiça.” 2007
Existe afinal uma recusa radical de compactuar com o poder e uma profunda
indignação com a ordem política presente no conjunto dos textos que herdamos de
Pascal.
Outra característica fundamental é a lucidez modesta do pensamento político
de Pascal. A política não pode resgatar o homem de sua condição histórico-metafísica
miserável, mas necessita imperativamente limitar a loucura dos poderosos: (Br.331-
L.533) “Só imaginamos Platão e Aristóteles com grandes túnicas de pedantes(…)Se
escreveram sobre política, foi para por em ordem um hospício; e, se fizeram menção
de falar dela como de uma grande coisa, é que sabiam que os loucos a quem falavam
julgavam ser reis e imperadores; entravam nos seus princípios para moderar a
loucura deles ao menor dos males possível.”
2005
(L.59-Br.296)”Quando a questão é julgar se se deve fazer guerra e matar tantos espanhóis à
morte, um só homem é juiz disso, e além do mais interessado...”
2006
PASCAL, B. Trois Discours sur la condition des Grands.p.368.
2007
(L.60-Br.294)
481
2008
“As coisas mais desarrazoadas do mundo tornam-se as mais razoáveis por causa do
desregramento dos homens. Que há de mais de menos razoável do que escolher para governar um
Estado o primeiro filho de uma rainha? Não se escolhe, para governar um barco, aquele, entre os
viajantes, quem é de casa melhor(meilleur maison): seria uma lei ridícula e injusta.. Mas, por que são
e serão sempre escolhidos assim, ela se torna razoável e justa; pois quem se escolherá?O mais
virtuoso e o mais hábil?Eis-nos embaraçados: cada um pretende ser o mais virtuoso e o mais hábil.
Liguemos, pois, essa qualidade a algo incontestavel. É o filho...”(L.977-Br320) Lembremos que a
revolta moraliste se exprime nesta mordacidade e ironia lúcidas: a ironia é a expressão da reserva de
consciência – expressão da liberdade pascaliana em relação às engrenagens de seu tempo.
2009
(L.60-Br.294)
2010
Considero os mecanismos de reconhecimento do outro parte deste esforço de “preservação” da
vida. Assim, todos os fragmentos relacionados ao olhar, e também os fragmentos relacionados ao
renversement continuel du por au contre, estão, a meu ver, envolvidos na elaboração de um método de
reconhecimento do outro em sua singularidade perspectiva. É o próprio conceio de verdade que é
implodido pelo esforço pascaliano de pensar a política como o embate, não somente entre óticas
contrárias, mas entre verdades contrárias.
482
“O século XVII foi o século das matemáticas, o XVIII, dos físicos, o século
XIX, da biologia. Nosso século XX é o século do medo.” 2013
Diante do espetáculo sanguinário elaborado pelas ideologias e pelas técnicas,
Camus exprime em 1946 um pessimismo tão amplo quanto possível em relação às
escolhas da modernidade. Não somente às ideologias cabe uma re-avaliação completa
do significado da existência humana, é a própria razão que encontra em Hiroshima um
novo paradigma: “seus últimos progressos teóricos conduziram-na a negar-se a si
2011
Como evidencia a dinâmica dos fragmentos que vimos acima trata-se de um estilo filosófico de
contraponto à filosofia de sistema. (L.532-Br.373)“Escreverei meus pensamentos sem ordem, não
talvez em uma confusão sem objetivo: esta é a verdadeira ordem, que marcará sempre meu fim pela
própria desordem.”
2012
Sobre a incorporação da indeterminação nas reflexões científicas e filosóficas recomendamos a
leitura de outro artigo de minha autoria publicado nos Cadernos de Ética e Filosofia Política: Acaso e
o jogo no pensamento de Pascal. Está no prelo pela Humanitas outra publicação de mais fôlego A
dimensão ética da incerteza: ciência e poder em Pascal.
2013
CAMUS, A. Le siècle de la peur. Combat in Camus à Combat, p.609.
483
2014
Idem.
2015
CAMUS, A. L´Éxil d´Helène In Essais. p.854.
2016
CAMUS, A. Le siècle de la peur. Combat in Camus à Combat, p.611.
2017
Idem.p.612.
2018
Idem.p.612.
2019
CAMUS, A. L´Homme Révolté. In Essais. P. 697.
484
2020
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.697.
2021
“Trata-se, a bem da verdade, de uma transcendência que poderíamos chamar horizontal em
oposição a transcendência vertical que é a de Deus ou das essências platônicas.”CAMUS, A.
Remarques sur la Révolte. In Essais. p, 1683.
2022
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p. 700.
2023
O fundamento transcendental da moral criticado por Camus possui duas roupagens: o sacrifício do
homem concreto pelo conceito abstrato e absoluto de virtude ou de Verdade. E o extermínio do homem
presente em virtude do nascimento da sociedade futura. Em Camus o fundamento moral é a natureza
humana, isto é a vida humana contingente.
2024
CAMUS, A. CAMUS, A. L´Homme Révolté, p.706.
2025
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.706.
485
2026
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p. 614.
2027
MELANÇON, M. Albert Camus – analyse de sa pensée. p.148.
2028
CAMUS, A. L Défense de l´Homme Révolté. p, 1709.
2029
CAMUS, A., L’Exil d’Helène in l’Été. Essais. p. 854.
486
2030
CAMUS, A. Noces à Tipasa in Noces… Œuvres Complètes, p.110.
487
que vive o homem, enfim, não se deve unicamente às limitações impostas pelos
outros homens, mas estaria enraizada numa condição de insignificância, fragilidade e
contingência que é, sobretudo, cósmica. Uma tal abordagem metafísica da natureza e
da história seria impensável, por exemplo, para Sartre, para quem a única relação do
homem com a natureza se dá através dos impedimentos que ela suscita e do trabalho,
sendo a ordem natural um mero cenário dos combates cotidianos.
Neste sentido a novela O muro(1939) e o romance A peste(1947),
caminhariam em direções diametralmente opostas: enquanto a novela sartreana
enfatizaria, numa radical inversão da tragédia grega, que a liberdade seria o
verdadeiro motor escondido detrás da “fatalidade”, e, que quer queiramos quer não,
estaríamos obrigados a escolher, e “condenados a ser livres”, o romance de Camus
demarcaria em oposição o insignificante potencial humano frente ao caráter
demolidor das determinações da terra. O calor, a doença, a morte, toda a magnitude
brutal das forças naturais – seriam, para Camus, instâncias para além do domínio de
ação meramente humano.
2031
CAMUS, A. Oeuvres Complètes, II, p. 210.
2032
“Este universo sem dono adiante não lhe parece nem estéril, nem fútil. Cada um dos grãos desta
pedra, cada fragmento mineral desta montanha repleta de noite, formam por si sós um mundo. A luta
para chegar aos cumes basta para preencher um coração de homem. É preciso imaginar Sísifo
feliz.”(CAMUS, Le Mythe de Sisyphe p.304.)
488
2033
CAMUS, A. L´Homme Révolté. p.693.
2034
PASCAL, B. Pensées (L. 513 –Br.4.)
489
Assim, a crueldade da injustiça dos meios que o Estado dispõe para freiar
o avanço da criminalidade - a crueldade do sistema carcerário - acabam por endossar e
nutrir o leitmotiv da desmedida da violência, que estabelece entre nós um retorno à
ordem natural que é uma espiral da indiferença absolutamente abominável : « Você
não reparou que nossa sociedade está organizada por este gênero de liquidação ?
Você ouviu falar, naturalmente, destes minúsculos peixes brasileiros que atacam aos
milhares o nadador imprudente, limpando-o, em alguns instantes, com pequenas
mordidas rápidas, deixando só um esqueleto imaculado? » 2035
As lembranças que Camus guardou do Brasil, em sua passagem em julho
de 1949, não foram muito favoráveis. Em sombrias descrições feitas em seu Journal
de voyage, destila-se uma náusea persistente, uma aura de inquietude…
De todo modo, seu presságio sinistro é uma analogia conveniente à
voracidade em vigor na atual sociedade brasileira.
Hoje, somente o aprofundamento do pensamento dos limites - ou seja, a
conscientização de nossa inscrição coletiva na existência, da fragilidade comum da
condição humana, pode nos salvar da engrenagem da morte acionada pelas injustiças
sociais. Este raciocínio solar de Camus é válido para o homem e para a natureza que
estão, neste momento atual, entre nós, eclipsados pela noite da indiferença.
É neste sentido que a concepção rigorista da responsabilidade do intelectual de
Camus mostra sua lucidez, vigor e nobreza: é preciso estar ciente de que “cada
palavra engaja” 2036 e que nada é inútil.
*****
2035
CAMUS, A. La chute.Thêátre, Récits, Nouvelles. p. 1479.
2036
CAMUS, A. Combat Clandestin, nº 58, juillet 1944. Cahier Albert Camus 8, p.136.
490
BIBLIOGRAFIA
CROISIER, R-G. Les envers d´un échec. Étude sur le théâtre d´Albert Camus.
Paris. Minard,1967.
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