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RELIGIOSIDADE POPULAR – MÓDULO 28-A

SUMÁRIO

Introdução ........................................................................................................ 02

Capítulo I - Catolicismo Popular........................................................................... 02

Capítulo II - Religião e Cultura Popular.................................................................04


Capítulo III - Estudo sobre o catolicismo brasileiro nos finais do século XIX e início

do Século XX................................................................................14

Conclusão ........................................................................................................ ..27

Bibliografia.........................................................................................................27
INTRODUÇÃO

O ser humano é um ser incuravelmente religioso. Religiosidade é a disposição ou tendência


para a religião ou as coisas sagradas. A religiosidade pode ser individual ou coletiva. Quando é
coletiva, chamamo-la de religiosidade popular, um fenômeno em si mesmo muito interessante e
culturalmente rico. Muita coisa, porém, é resultado de uma mistura complexa de sincretismo,
folclore e superstição, surgida de forma espontânea e à revelia da religião oficial. A sua forma
mais recorrente é a festa religiosa, dia consagrado à memória de um santo padroeiro ou à
comemoração de um evento histórico religioso com ritos e festejos diversos. Estudaremos neste
módulo algumas manifestações dessa natureza. O fenômeno, diga-se de passagem, parece ter
ficado mais restrito aos limites do catolicismo.

Capítulo I
CATOLICISMO POPULAR
João Maria Van Damme

1. A Religiosidade dos Colonizados


Nos fins do século XV, portugueses e espanhóis invadiram um continente desconhecido.
Pensaram que estavam chegando na Índia. Por isso chamaram os habitantes da terra de
"índios". Na sua bagagem, os colonizadores trouxeram uma religião. Para eles, era a única
verdadeira. Por isso, todos os povos que moravam nas terras sob seu domínio, tinham que
conhecer e adotar esta única fonte de verdade: a religião católica.
Os povos indígenas e os escravos negros tinham suas próprias crenças e práticas religiosas.
Por muito tempo, eles resistiram à insistência missionária dos católicos. Os colonizadores
proibiam seus cultos, danças e rezas. Os nomes dos seus deuses não podiam ser pronunciados.
Todos tinham que ser batizados, assistir missas e outros atos religiosos, como procissões, a
reza do terço e de ladainhas em latim.
Negros e índios procuravam formas de continuar vivendo sua religiosidade original. Isto não
era fácil, porque os senhores colonizadores tratavam com muito violência quem não adotava a
religião dominante. Não ser católico significava ser um rebelde e desconhecer a autoridade dos
"reis católicos". Os povos dominados assistiam portanto durante o dia as rezas dos brancos. A
noite tornou-se o espaço deles. Utilizavam as imagens dos santos para manter o culto aos seus
espíritos e orixás.
Entre os colonizadores havia também famílias pobres, que traziam suas tradições para a
nova pátria. Sobretudo santos e santas eram importantes para eles. Eram venerados nos
oratórios familiares, um pequeno canto, mesa ou altar dentro da casa, nas capelas dos
povoados ou fazendas ou ainda nos santuários mantidos por congregações e irmandades. Os
leigos, mais do que o clero, lideravam estes cultos. Achavam que era melhor pedir a Deus por
intermédio dos santos do que fazer o pedido diretamente. Consideravam Deus muito distante.
Na Igreja Católica, todos os ministérios eram ocupados por homens. As mulheres ocupavam,
e ocupam até hoje, posições inferiores. Nas religiões afro e indígenas nem sempre é assim. As
mulheres costumam exercer as principais funções nas celebrações e ritos. São elas que
garantem muitas vezes o contato com as divindades. A "mistura" religiosa e principalmente a
importância das mulheres na vivência religiosa católica popular que nascia desta "mistura", não
agradavam à hierarquia eclesial. Por isso, o poder central em Roma decidiu retomar o controle
sobre a religiosidade. O primeiro Concílio no Vaticano (Vaticano I) iniciou um processo de
romanização das práticas religiosas católicas.

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2. Vaticano I e a Romanização
Uma das principais medidas que os bispos, reunidos no Vaticano em 1869-70, tomaram foi
de unificar a maneira de celebrar liturgias e sacramentos. Não foram mais toleradas expressões
próprias dos povos: sua língua, danças, festas. Os "novos" santos que a hierarquia introduziu
(Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora de Lourdes, da Imaculada Conceição, etc.),
marginalizam as devoções tradicionais. Como conseqüência, o catolicismo perde importância
como culto comunitário e ele se privatiza. Rezas e cultos comunitários perdem lugar. O padre é
uma figura central. Ele tem o poder de fazer a ponte entre Deus e a pessoa. O padre pode
aproximar-se do altar Ele fala com Deus e vira as costas para o povo. Todos os atos religiosos
considerados importantes tinham o padre como ator principal. A prática religiosa do povo era
taxada de "superstição".
A fim de fortalecer sua influência, Roma se empenhou ainda na multiplicação das dioceses.
Assim, havia mais bispos para controlar este grande território que era o Brasil. Seminários
foram abertos, paróquias criadas. A estrutura eclesial vinha para acabar com a independência
da rezas populares.

3. A Religiosidade do Povo Revalorizada


Muitas comunidades de cristãos, durante séculos, viviam distantes das matrizes paroquiais e
raramente foram visitadas por padres e missionários. As desobrigas eram os únicos momentos
em que padres passavam nos povoados para administrar os sacramentos. Em muitos lugares,
no entanto, o povo continuava rezando do seu jeito: ladainhas, danças de São Gonçalo e
outras. Na vida cotidiana, a partilha e a solidariedade, que são os principais valores evangélicos,
eram prática comum.
Com a eleição do Papa João XXIII, um vento novo começou a soprar na Igreja. João XXIII
desceu do trono papal, recusou as honrarias e a coroa. Ele voltou sua atenção para os
problemas e a vida do povo. Procurou reconhecer os sinais dos tempos. Convocou o segundo
Concílio do Vaticano, que ele próprio não pode mais assistir, porque faleceu antes de seu
encerramento. Mas preparou os alicerces para uma profunda renovação na Igreja, onde os
leigos e os pobres teriam mais lugar e participação.
A romanização da Igreja foi freada. Não se celebrava mais em latim, a língua oficial da
estrutura eclesial. O povo começou a ter acesso à Bíblia. Pelo outro lado, o Vaticano tentou
diminuir a importância do culto aos santos e suas imagens foram banidas das igrejas. Muitos
cristãos não concordavam com isso e continuavam fazendo promessas e pedindo a intervenção
de santos e santas para obter a proteção e a ajuda de Deus.
Com estas mudanças, os cristãos leigos começaram a ter maior influência na própria vida da
Igreja. Com sua prática de partilha, ajudaram a descobrir novamente o princípio fundamental
do cristianismo. Deram sua contribuição nas reflexões sobre as leituras bíblicas. Sua vivência do
amor e da solidariedade e suas idéias lançaram uma visão crítica sobre a organização do
mundo. Descobriu-se que a Bíblia fala em Justiça e que o mundo estava repleto de injustiças. A
Bíblia fala em perdão e o mundo vivia a vingança. A Bíblia fala em Libertação e o mundo estava
marcado pela opressão e pela escravidão. A Bíblia diz que deve haver Igualdade. No mundo só
se vê exploração e competição. Estávamos longe do sonho do Reino do Amor.
A religião do povo trazia tudo isso para dentro da Igreja. Exercia uma crítica ferrenha ao
mundo e suas estruturas. A religião, que estava a serviço da opressão durante muitos séculos,
começou a ser mais popular. Deus é dos pobres. A prática religiosa inclui uma vida voltada para
o irmão. Esta mensagem brotava da religiosidade do povo e foi confirmada através de muitas
declarações oficiais da hierarquia.
Hoje devemos nos perguntar qual será o futuro desta religiosidade. Os meios de
comunicação e os poderes econômicos e políticos dão hoje mais importância ao consumismo e
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à competição. Será que eles conseguirão destruir o sentimento religioso cristão do povo? Na
Igreja também h uma tendência de centralizar novamente o poder em Roma e nas mãos da
hierarquia. Será que no futuro teremos novamente uma massificação da prática da religião,
sem efetiva participação popular? Quem responderá a estas duas questões será a história. E
quem faz a história somos nós. Depende de nós, da nossa luta, do nosso empenho, da nossa
voz e da nossa ação, o rumo em que a religião do povo caminhará.

Capítulo II
Religião e Cultura Popular
Estudo de festas populares e do sincretismo religioso1[1]

Sergio Ferretti
Antropólogo, Prof. da UFMA

Introdução

Embora muitos autores clássicos tenham pesquisado e escrito sobre religião, seu
estudo, como o das festas populares, não é considerado prioritário, especialmente em regiões
subdesenvolvidas como o Norte e o Nordeste do país, onde diante da escassez de recursos
disponíveis, há outros temas considerados mais urgentes. Religiosidade e festas populares
parecem a muitos como tema de menor importância.
Para o povo, entretanto, religião e festas, são temas importantes na vida diária,
como podemos constatar na realidade cotidiana das camadas populares. No Maranhão e em
todo o Nordeste, religião e festas constituem assunto fundamental na vida de muitas pessoas. A
rotina diária é interrompida muitas vezes ao longo do ano, pela organização ou a participação
em diversas festas, que assinalam a quebra periódica desta rotina. Para os que as organizam,
as festas não representam propriamente momentos de lazer, mas de trabalho, intenso e
prazeroso, no seu preparo e na sua realização.
As religiões afro-brasileiras caracterizam-se pela presença de numerosas festas. O
transe, as iniciações, as comemorações anuais das divindades, as obrigações do calendário de
cada casa, são assinaladas com festas, toques, danças, cânticos e oferendas de alimentos
especiais. Em São Luís, cada grupo afro-religioso organiza anualmente pelo menos cerca de
uma dezena de festas, algumas maiores, chegando a durar uma semana ou mais, outras com
um, dois ou três dias de duração. É comum que os participantes destas religiões assistam festas
em sua casa e em uma rede de outras casas amigas. Assim, o ano se caracteriza, para o “povo-
de-santo”, por uma sucessão de festas. Além das festas específicas do culto, muitos terreiros
também fazem ou participam de diversas festas da cultura popular local, algumas incluídas no
próprio calendário de cada casa.
Nossas pesquisas situam-se nos limites ambíguos entre religião e cultura popular e
nas fronteiras entre os campos da Antropologia, da História e do Folclore. A religião é um dos
elementos básicos, constitutivos da cultura de toda sociedade. Segundo Pereira de Queiroz

1[1]
Palestra proferida a 07/06/2001, em Recife, no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco.
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(1992: 206), Durkheim vê na religião e nos valores em geral, a base dos fatos sociais e os
fundamentos da estrutura social. Os limites entre o sagrado e o profano, entre o rito religioso e
a festa popular, embora possam ser definidos, estão porém muito próximos. Como diz
Durkheim (1989: 456): “talvez não haja júbilo onde não exista algum eco da vida séria. No
fundo, a diferença está mais na proporção desigual em que esses dois elementos são
combinados”.

Religião e Festas

Durkheim, em sua obra clássica sobre a vida religiosa (1989: 452), discute a
importância do elemento recreativo e estético na religião, mostrando (456), a interrelação entre
cerimônia religiosa e a idéia de festa, pela aproximação entre os indivíduos, pelo estado de
“efervescência” coletiva que propicia e pela possibilidade de transgressão às normas.
A relação estreita entre religião e festas foi apontada por Durkheim, para quem
(1989: 372), “nos dias de festa, a vida religiosa atinge grau de excepcional intensidade”. Para
Durkheim, as festas teriam surgido da necessidade de separar o tempo em dias sagrados e
profanos (1989: 373). Referindo-se ao descanso religioso, lembra Durkheim (1989: 372/273)
que “o caráter distintivo dos dias de festa corresponde, em todas as religiões conhecidas, à
pausa no trabalho, suspensão da vida pública e privada à medida que estas não apresentam
objetivo religioso”. Para Durkheim, as festas surgiram pela necessidade de separar no tempo,
“dias ou períodos determinados dos quais todas as ocupações profanas sejam eliminadas” (Id.
Ib. 373). Adiante afirma: “O que constitui essencialmente o culto é o ciclo das festas que
voltam regularmente em épocas determinadas”.(Id. Ib. 419). Assim repetição do ciclo das
festas constitui, para Durkheim, elemento essencial do culto religioso.
Durkheim também salienta (1989: 452), a importância dos elementos recreativos e
estéticos para a religião, comparando-os a representações dramáticas e mostrando (1989:
453), que às vezes é difícil assinalar com precisão as fronteiras entre rito religioso e
divertimento público.
Durkheim estabelece portanto, relações íntimas entre religião e festas, entre
recreação e estética, mostrando o parentesco ou a proximidade entre o estado religioso e a
efervescência, o delírio, os excessos ou exageros das festas.
Rita Amaral (1992), estudando festas nos candomblés paulistas, constata que,
embora haja muitos trabalhos sobre festas específicas, os estudos teóricos sobre festas parece
não terem avançado muito após Durkheim. Analisando a festa como estilo de vida no
candomblé, Rita Amaral (1992: 168-197) constata que existe uma vasta bibliografia
antropológica sobre festas. Mostra ao mesmo tempo a insuficiência de reflexões teóricas sobre
o tema, lembrando que alguns autores propõem uma tipologia ou classificação de festas, que
podem ser recreativas, libertadoras, transgressoras, comemorativas ou de confraternização, de
participação ou de representação.
Em outro trabalho, a autora dá continuidade às suas reflexões sobre festas
brasileiras analisando cinco grandes festas populares em diferentes regiões do país, mostrando
seus múltiplos sentidos, de organização popular, de expressão artística, de ação social, de
expressão de identidade cultural e afirmação de valores. Amaral (1998: 7), considera que a
festa: é um forte elemento constitutivo do modo de vida ... é uma das linguagens favoritas do
povo brasileiro.

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Segundo Amaral, embora tenha havido o empobrecimento de algumas festas que
eram mais pomposas no passado, atualmente no Brasil as festas crescem em todos os sentidos
especialmente em luxo e participação. Para Rita Amaral (1998: 52): pode-se dizer que a festa é
uma das vias privilegiadas no estabelecimento de mediações da humanidade. Segundo Rita
Amaral a festa brasileira se liga essencialmente à religião e desde o período colonial a
sociabilidade brasileira encontra-se estreitamente relacionada à realização de festas. Rita
Amaral considera que existe um modelo brasileiro de festa e que a disposição para a festa
constitui traço marcante da identidade nacional.
François Isambert (1982), discute longamente os conceitos de religião popular e de
festas, especialmente no contexto europeu. Critica a posição de Caillois e de outros, sobre a
decadência das festas tradicionais nas sociedades industrializadas. Isambert analisa teorias
sobre a festa a partir de Roger Caillois, que inspirado em Durkheim, vê a festa como liberação
periódica dos instintos comprimidos pelas regras sociais e como transgressão ritual de regras
que o sagrado impõe à vida cotidiana, em que o mito se une ao rito, pois o caos da festa é
reconstituição simbólica do caos primitivo.
Para Caillois (1988) a festa é uma regeneração da ordem social, uma atualização do
período criador. Para Duvignaud (1983) a festa é uma subversão criadora. Isambert lembra que
os intelectuais ficaram impressionados com o festival de Woodstock dos hippies e com os
aspectos festivos de Maio de 1968, voltando a se interessar pelo estudo das festas e da religião
popular.
O medievalista francês Jacques Heers (1987:11) afirma que a festa “apresenta-se
também como o reflexo duma sociedade e de intenções políticas”. Considera ser fácil conceber
o prestígio que recai sobre aquele que oferece jogos e festas. Indica como outra conseqüência
da festa, (id.: 17) “a exaltação da situação e dos valores, ainda mais das influências, dos
privilégios e dos poderes, tudo reforçado pela exibição do luxo e pela distribuição de benesses.”
O historiador francês Michel Vovelle (1987), afirma que causou surpresa a
historiadores marxistas, ao demonstrar complacência por temas heterodoxos como a morte e a
festa, em vez de se interessar pela tomada de consciência das massas. Diz que a partir dos
anos sessenta, surgiu uma geração de historiadores interessados na história das mentalidades,
ampliando o campo de pesquisa da etnografia histórica e fazendo renascer o interesse dos
historiadores pelo estudo das festas.
Vovelle considera a festa um importante campo de observação pois é o momento em
que um grupo projeta simbolicamente sua representação do mundo. Segundo Vovelle (1987:
247), a Revolução de Maio de 1968, fez o historiador se interessar pela festa, inicialmente pela
festa que representou a Revolução Francesa, procurando aspectos revolucionários da festa e do
carnaval, como subversão dos privilégios e a multiplicidade de significados da festa
carnavalesca. Diz que através dos séculos a festa não possui uma estrutura fixa e se modifica
constantemente, mas fornece exemplo do que denomina de “estruturas obstinadas”, ou
estruturas formais, que resistem através dos tempos, devido à inércia das mentalidades. Diz
também que é necessário refletir, sem conclusões prematuras, sobre a natureza e finalidade da
festa.

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Religiosidade popular

A idéia de religiosidade popular não é aceita tranqüilamente por todos, devido,


segundo afirmam, à própria crítica, indefinição e falta de rigor do conceito de povo2[2]. Para
Montoya (1989) não pode logicamente existir o que se chama de religiosidade popular. Ele
considera tautologia afirmar que religiosidade popular é a religiosidade do povo, uma vez que
povo é um mito inventado a época da Revolução Francesa.
Há autores (Driessen, 1989: 82), que comparam os conceitos de religião oficial e
popular, aos conceitos de cultura de elite e de “folk”, de rural como oposto a urbano, de
primitivo como oposto a moderno, ou de proletariado se opondo a capitalismo, preferindo a
distinção entre religião praticada e religião prescrita. Segundo Driessen, no contexto do
catolicismo, o que existe é mais uma tensão nas relações entre igreja universal e catolicismo
local e não exatamente uma distinção entre religião oficial e popular.
No campo das religiões afro-brasileiras, entretanto, o conceito de religião popular
não significa religião que se distingue da oficial, como acontece com o catolicismo oficial e o
popular. Elementos do catolicismo popular e do oficial muitas vezes estão presentes nas
religiões afro-brasileiras quase como complemento. Além disso, sendo originalmente orais, as
religiões afro não possuem uma dimensão formal ou oficial que se contraponha à popular.
Ao nos referirmos a povo temos em mente membros das classes subalternas, que no
Nordeste e especialmente no Maranhão é constituído predominantemente por negros e
mestiços.
No Maranhão, como em todo Brasil, diferente talvez do que ocorre hoje no mundo
cristão europeu, a religiosidade popular é a religião vivida e praticada pelos mais pobres, que
são os mais numerosos e, no Maranhão, predominantemente mestiços e negros. No tambor de
mina e nas demais religiões afro-brasileiras, não existe ainda uma ortodoxia que diferencie a
religião oficial da popular. É conveniente lembrar entretanto, que existem grupos mais elitizados
entre as chamadas religiões afro-brasileiras. Alguns destes grupos talvez estejam caminhando
para a construção de uma ortodoxia neste campo, o que no momento ainda é uma hipótese.
Assumimos porém, com Lombardi Satriani (1986: 55), que religião popular é a religião das
classes subalternas de uma determinada sociedade.

Cultura Popular

Para muitos, folclore equivale a cultura popular. Para outros, cultura popular equivale
a cultura de massas e seria diferente do folclore. Com isso abre-se uma discussão interminável
e considerada mesmo bizantina, que segundo Rita Segato de Carvalho (1992), começa a perder
fôlego a partir dos anos 60 com mudanças ocorridas nas Ciências Sociais e devido a diversos
fatores, uma vez que hoje dilui-se a preocupação com a elaboração de tipologias de culturas e
de sociedades e também porque é difícil definir e diferenciar o que é e o que não é povo, como
o que é e o que não é cultura popular.

2[2]
Como diz Satriani (1989: 55): “Provisoriamente e aguardando ulteriores e necessárias
especificações, assumo pois a religião popular como a religião das classes subalternas de uma
determinada sociedade.

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A expressão cultura popular pode ser entendida como uma forma mais moderna de
designar o folclore. A palavra folclore encontra-se desgastada e tem conotações pejorativas. A
expressão cultura popular é também discutível. Alguns como Canclini (1983), propõem a
expressão culturas do povo. O conceito de cultura popular, criticado sobretudo por cientistas
sociais, vem sendo hoje largamente utilizado no âmbito da História. Isambert (1982) discute o
renascimento do interesse pelo estudo de religião, cultura popular e festas, como temas
interrelacionados e caracteriza múltiplas utilizações destes conceitos.
Segundo Ortiz (1980: 46), Gramsci inclui o folclore e a religião dos subordinados no
conceito de cultura popular, como concepção do mundo e como forma de conhecimento que se
contrapõe à cultura hegemônica. Convém lembrar que existem diferenças marcantes entre
religião popular e folclore e que uma não deve ser limitada à outra (Isambert, 1982: 48). No
tambor de mina a religião é encarada como “obrigação”, como algo que deve ser levado muito
a sério e que impõe respeito. O folclore costuma ser visto pelo povo como mera distração,
como “brincadeira”, como se diz no Maranhão. Acontece que para os participantes de
manifestações folclóricas como o tambor de crioula e ou o bumba-meu-boi, a festa ou a
“brincadeira”, chega a ser levada tão a sério pelos seus organizadores, que acaba se
transformando praticamente numa obrigação religiosa. De qualquer forma o povo distingue
religião e folclore e, nesta perspectiva, consideramos preconceituoso incluir religião popular no
domínio do folclore. Apesar de imprecisões, parece-nos que o termo cultura popular é mais
adequado do que folclore, principalmente quando relacionado com religião.

Sincretismo

Sincretismo é palavra para muitos considerada maldita, que provoca mal estar em
muitos ambientes e autores. Diversos pesquisadores evitam mencioná-la, considerando seu
sentido negativo, como sinônimo de mistura confusa de elementos diferentes, ou imposição
do evolucionismo e do colonialismo. O Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda apresenta
cinco sentidos desta palavra. O primeiro deles como “reunião dos vários Estados da Ilha de
Creta contra o adversário comum”. Como explica Canevacci (1996: 15): “Dizia-se, de fato, que
os cretense, sempre dispostos a uma briga entre si, se aliavam quando um inimigo externo
aparecia”.
Segundo o antropólogo holandês André Droogers (1989) o termo sincretismo possui
duplo sentido. É usado com significado objetivo, neutro e descritivo, de mistura de religiões, e
com significado subjetivo que inclui a avaliação de tal mistura. Devido a essa avaliação muitos
propõem a abolição do termo. Droogers informa que o termo sincretismo sofreu mudanças de
significado com o tempo e que a distinção entre a definição objetiva e subjetiva tem raízes
históricas. Na antiguidade significava junção de forças opostas em face ao inimigo comum, de
acordo com o primitivo sentido político apresentado pelo Dicionário do Aurélio. A partir do
século XVII, tomou caráter negativo, passando a referi-se à reconciliação ilegítima de pontos
de vistas teológicos opostos, ou heresia contra a verdadeira religião. Hoje no Brasil este
sentido encontra-se muito difundido.
Embora alguns não admitam, todas as religiões são sincréticas, pois representam o
resultado de grandes sínteses integrando elementos de várias procedências que formam um
novo todo. No Brasil, quando se fala em religiões afro-brasileiras pensa-se imediatamente em
sincretismo, como “aglomerado indigesto” de ritos e mitos, ou como “bricolagem” no sentido de
mosaico as vezes incoerente de elementos de origens diversas” (Pollak-Eltz, 1996: 13).
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Costuma-se atribuir também o termo sincretismo em nosso pais, quase que exclusivamente ao
catolicismo popular e às religiões afro-brasileiras. Mas o sincretismo está presente tanto na
Umbanda e em outros tradições religiosas africanas, quanto no Catolicismo primitivo ou atual,
popular ou erudito, como em qualquer religião. Consideramos que o sincretismo pode ser visto
como característica do fenômeno religioso. Isto não implica em desmerecer nenhuma religião,
mas em constatar que, como os demais elementos de uma cultura, a religião constitui uma
síntese integradora, englobando conteúdos de diversas origens. Tal fato não diminui mas
engrandece o domínio da religião, como ponto de encontro e de convergência entre tradições
distintas.
No campo das religiões afro-brasileiras, diversos dirigentes e militantes, sobretudo
os mais intelectualizados, tendem atualmente a seguir a estratégia de condenar o sincretismo.
Esta atitude defendida por alguns há tempos, difundiu-se entre nós principalmente após a
realização, em 1983 na Bahia, da II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura.
Desde então alguns líderes bastante conhecidos das religiões afro-brasileiras passaram, a
condenar o sincretismo afro-católico, afirmando não ser hoje mais necessário disfarçar as
crenças africanas por traz de uma máscara colonial católica.
O movimento de reafricanização difundido sobretudo no sul e que atualmente se
expande no Brasil, critica e combate o sincretismo afro-brasileiro procurando uma pureza
africana ou a volta a um africanismo primitivo. Ocorre algumas vezes, uma verdadeira “guerra
santa” de combate ao sincretismo, visto como atraso e aceitação da dominação colonialista
escravizadora.
Em alguns grupos de culto afro-brasileiros e mesmo entre estudiosos destes grupos
nota-se, pelo menos nos últimos quinze anos, em grau diversificado, e, em várias regiões, a
preocupação em negar ou ocultar vestígios exteriores do catolicismo numa “cruzada” contra o
sincretismo. Visitando o salão de danças de um terreiro de candomblé, um pesquisador nos
mostrava desenhos de orixás nas paredes, explicando que antes ali estava cheio de quadros
de santos, e que ele insistiu que fossem retirados, para evitar a confusão entre orixás
africanos e santos católicos.
Esta confusão seria um dos pontos centrais da polêmica. Pessoas mais
intelectualizadas, que atualmente participam em diversos níveis de diferentes segmentos das
religiões afro-brasileiras, preocupam-se em afastar a confusão entre santos e orixás3[3]. Esta
ambigüidade que alguns “puristas” pretendem evitar, encontra-se entretanto mais difundida
na periferia dos cultos afros do que entre seus participantes mais ativos. A identificação
ambígua entre santos e orixás, que perturba líderes e intelectuais ligados aos cultos afro-
brasileiros, a nosso ver existe mais na cabeça de intelectuais que falam do povo do que nas
práticas populares.
No Maranhão, por exemplo, se diz que, na Casa das Minas (Ferretti, S. 1996),
alguns voduns são devotos ou têm “adoração” por determinados santos católicos. Com isso
constata-se que há uma distinção entre o vodum e o santo. Note-se que esta devoção não
ocorre com todos os voduns4[4]. A devoção ou adoração de um vodum a um santo, não implica

3[3]
Como acontece na passagem do conhecido filme “O Pagador de Promessas”, em que o cinema brasileiro dos anos
sessenta caracterizou a figura de um tipo popular oferecendo a Santa Bárbara uma pesada cruz para pagamento de uma
promessa à Iansã pela cura de um jumento. O pagador de promessas enfrentou áspera polêmica com o padre, que afirmava
que Iansã não era Santa Bárbara.
4[4]
Na Casa das Minas são conhecidos e cultuados voduns de cinco famílias, sendo três principais e maiores: a família real ou
de Davice (dos fundadores da Casa), a família de Quevioçô e a família de Dambirá e duas secundárias, que são hóspedes das
outras, a de Savalunu e a de Aladanu (Ver Ferretti, S. 1996). Muitos voduns como Zomadônu, Dadarro e a maioria dos
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na confusão ou indistinção entre ambas as entidades. Os devotos dos voduns e dos santos
não confundem um com o outro.
Provavelmente no passado, esta devoção teria se originado da estratégia de aceitar
a dominação, como forma possível de sobrevivência numa sociedade opressora. Atualmente
esta estratégia não se faz mais necessária numa sociedade pluralista, em que se discutem
direitos das minorias, como bem o expressam diversos líderes de movimentos negros e de
comunidades afro-religiosas. Mas para a maioria, antigos esquemas mentais permanecem e
não mudam com facilidade de um momento para outro. Já ouvimos líderes religiosos
afirmarem que não retiram imagens de santos católicos dos terreiros para não serem
confundidos com os crentes.
Em trabalho anterior (Ferretti, S. 1995), mostramos que o sincretismo está presente
em grupos de cultos afro-brasileiros muito tradicionais como a Casa das Minas5[5].
Constatamos que o sincretismo não se opõe à tradicionalidade ou à africanidade do tambor de
mina do Maranhão.
Convém lembrar que, no imaginário e na expressão artística afro-brasileira, os
orixás costumam ser caracterizados com atributos de santos católicos, quase todos brancos,
como por exemplo o guerreiro romano, pelo qual Ogum é representado em muitos
candomblés. Vários outros orixás são também caracterizados assim6[6]. Além disso o
calendário da maior parte dos cultos afro-brasileiros, como não podia ter sido diferente, é
construído basicamente em cima do calendário ocidental cristão7[7].
A maioria dos estudos sobre sincretismo, realizados entre nós nos anos quarenta e
cinqüenta, apresentavam quadros comparativos da identificação de sincretismos entre santos
e orixás em diferentes regiões do Brasil e nas Américas. Apresentavam também esquemas
comparativos tipo: “jeje-nagô-muçulmi-banto-católico-espírita”, etc. Estes quadros e
esquemas, largamente utilizados por estudiosos no passado, cedo se esgotaram e caíram de
moda, uma vez que de fato explicavam pouco e de forma esquematizada, sem penetrar mais
a fundo a complexidade do problema. Serviam principalmente para tentar identificar o que se

voduns da família real da Casa das Minas, não têm devoção a nenhum santo católico. Outros, da família real ou de outras
famílias, são devotos de vários santos, como Doçú, que adora São Jorge, Nochê Sepazim, que adora o Divino Espírito Santo,
Averequete, que adora São Benedito, Polibogi, que adora Santo Antônio, Badé que adora São Pedro, Sobô que adora Santa
Bárbara, os gêmeos Toçá e Tocé, comemorados no dia de São Cosme e São Damião, e outros. Isto é conhecido pelos
participantes do Tambor de Mina, que como afirmamos, não confundem o vodum com o santo.
5[5]
Agrupamos o sincretismo na Casa das Minas(Ferretti, S. 1995: 78), em quatro situações hipotéticas: Separação ou não
sincretismo; Mistura, junção ou fusão; Paralelismo ou justaposição; Convergência ou adaptação. O objetivo desta
classificação foi o de constatar a existência crescente e gradual de diferentes tipos de sincretismos, mais do que classificá-los
com terminologia rigorosa, uma vez que a realidade não se submete facilmente a classificações que podem ser apressadas e
que preferimos evitar. Verificamos que estas dimensões ou sentidos do sincretismo necessitam ser identificados em cada
circunstância e mesmo em cada casa. Como dissemos (1995: 91), numa mesma casa e em diferentes momentos dos rituais,
podemos encontrar separações, misturas, paralelismos e convergências. Estudando Casa das Minas concluímos que não
existem fronteiras nitidamente demarcadas entre sincretismo e tradição. A Casa das Minas é ao mesmo tempo muito
tradicional e muito sincrética, fenômeno que se constata facilmente na Casa de Nagô e em outros terreiros afro-maranhenses.
6[6]
Jorge Carvalho (S/D 81) analisando a iconografia do sincretismo afro-brasileiro, mostra com
propriedade que a imagem tradicional com que Iemanjá é representada nos cultos afros, é não
africana e não católica.
7[7]
Temos conhecimento de poucos grupos que preservam calendários diferentes, procedentes de outras tradições.

Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 10


considerava a procedência e o funcionamento exterior do sincretismo afro-católico entre
santos e orixás8[8].
Existe evidentemente no Brasil uma tendência favorável aos estudos sobre o
sincretismo, que podemos identificar em diversos autores9[9]. A campanha de combate ao
sincretismo que alguns líderes e intelectuais querem entretanto difundir, reflete mentalidade
autoritária e inquisitorial de segmentos intelectuais excessivamente preocupados com pureza
teórica, e com rigor teológico. Toda religião como toda cultura constitui fenômeno vivo,
dinâmico, contraditório, que não pode ser enclausurado numa visão única, cartesiana,
intelectualizada, petrificadora e empobrecedora da realidade.
Deve-se evitar a tentativa de ridicularizar o sincretismo de praticantes mais simples
dos cultos afros e de outras religiões populares, que muitas vezes trocam pedaços de palavras
de ladainhas e orações em um latim estropiado, mas conservado com orgulho em inúmeras
festas populares de todo o Brasil. Como o latim vulgar da Idade Média, o nagô, o jeje e outras
línguas usadas na diáspora africana, também se modificaram e se misturaram por razões
fonéticas e outras. Variações fonéticas usadas popularmente não devem ser encaradas como
obscurantismo ou ignorância e ridicularizadas, como às vezes acontece.
É evidente que hoje não se admite o uso de termos preconceituosos como
crendices, superstição, feitiçaria, bruxaria e ou expressões ultrapassadas como animismo e
fetichismo, que foram empregados com freqüência por estudiosos no passado e continuam
sendo difundidos pelos meios de comunicação ao se referirem às religiões de origem africana,
visando negar-lhes seu caráter religioso específico. O termo sincretismo, no sentido objetivo
(Droogers, 1989) entretanto, se distingue daqueles termos preconceituosos e não possui
conotação valorativa, a não ser a que lhe é atribuída pelos que não gostam de utilizá-lo.
Não concordamos que se deva simplesmente negar ou esconder o sincretismo,
dizendo que foi um fenômeno que só funcionou no passado e hoje está em desaparecimento.
Pode ser até que no futuro o sincretismo afro-católico venha a se reduzir, por exemplo na
identificação de exterioridades entre santos e orixás. Mas no momento atual, não se pode
negar sua existência, por se pretender ou desejar que ele desapareça, por refletir aspectos
que são hoje considerados por alguns como obscurantistas. Esta estratégia de querer “tapar o
sol com a peneira”, no fundo pode até ser prejudicial às tentativas de superação do
sincretismo, refletindo intolerância religiosa que não está de acordo com o espírito das
religiões africanas.
O sincretismo afro-brasileiro foi uma estratégia de sobrevivência e de adaptação,
que os africanos trouxeram para o Novo Mundo. No Continente Africano, nos contatos
pacíficos ou hostis com povos vizinhos, era comum a prática de adotar divindades entre
conquistados e conquistadores. Foi uma estratégia de sabedoria que pode ser entendida no
primeiro significado da palavra apresentada no Dicionário do Aurélio: “reunião de vários
Estados da Ilha de Creta contra o adversário comum”. Alem disso, na própria África é sabido

8[8]
Na década de cinqüenta, entre os estudiosos do sincretismo afro-religioso no Brasil, destaca-se o antropólogo Túllio
Seppilli, que publicou na Itália artigos sobre sincretismo e realizou trabalhos com enforque diferente e pioneiro. Seus estudos
infelizmente foram pouco conhecidos entre nós, devido, como nos informou o professor João Batista Borges Pereira, ao
desinteresse por análises sobre aculturação e sincretismo, que passou a vigorar na Antropologia desde fins da década de
cinqüenta. Enfatizando a complexidade do fenômeno do sincretismo, Seppilli (1955) constata a maior presença africana na
liturgia afro-brasileira (nos cânticos, nos instrumentos, na música e na dança), do que na mitologia ou nas técnicas mágico
religiosas, onde considera que o processo do sincretismo está mais avançado.
9[9]
Entre os quais podemos destacar Renato Ortiz (1980), Roberto Motta(1982); Anaíza
Vergolino Henry (1987), Ordep Serra (1995), José Jorge de Carvalho (S/D) e outros.
Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 11
que diversos povos receberam muito cedo influências cristãs, mesmo antes do tráfico de
escravos ter se tornado mais intenso.

Sincretismo e festas religiosas populares

Identificamos exemplos de sincretismos nas festas religiosas populares realizadas


nos terreiros de tambor de mina do Maranhão que estamos estudando. No tambor de mina
entidades religiosas africanas ou brasileiras pedem a realização de festas da cultura popular e
são homenageados pelos devotos com festas de vários tipos. Assim nos terreiros de mina é
comum a realização de festas do Divino Espírito Santo, de tambor de crioula, de bumba-meu-
boi, banquete para os cachorros, ladainhas, procissões e outros rituais que são oferecidos em
homenagens e como pagamento de promessa a caboclos, voduns e encantados. A realização
destas festas nos terreiros constitui uma forma de expressão da religiosidade popular e não
pode ser vista como superstição ou atraso ou ridicularizado como fator obscurantista que
prejudica a pureza ou a africanidade da religião. Não se pode também dizer que o sincretismo
foi um fenômeno que só funcionou no passado e que se encontra em desaparecimento.
Para concluir podemos dizer que o sincretismo, elemento essencial de todas as
formas de religião, está muito presente na religiosidade popular, nas procissões, nas
comemorações dos santos, nas diversas formas de pagamento de promessas, nas festas
populares em geral. Constatamos que o sincretismo constitui uma das características centrais
das festas religiosas populares. Nas religiões afro-brasileiras o sincretismo é uma forma de
relacionar o africano com o brasileiro, de fazer alianças como o escravo aprendeu na senzala e
nos quilombos “sem se transformar naquilo que o senhor desejava” (Reis 1996: 20), nem ficar
”presos a modelos ideológicos excludentes” (Munanga, 1996: 63).
Trata-se de uma estratégia de transculturação que reflete a sabedoria que os
fundadores também trouxeram da África e eles e seus descendentes ampliaram no Brasil. Em
decorrência do sincretismo, podemos dizer que as religiões afro-brasileiras têm algo de
africanas e de brasileiras, sendo porém diferentes das matrizes que as geraram.

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Capítulo III
Estudo sobre o catolicismo brasileiro nos finais
do século XIX e início do Século XX
Maria Aparecida Junqueira Veiga Gaeta1
Universidade Estadual Paulista

RESUMO:
Este artigo aborda o confronto entre um catolicismo autoritário, tridentino e romanizador, que
penetrou no Brasil na segunda metade do século XIX e se consolidou nas primeiras décadas do
século XX, e o catolicismo tradicional vigente, de fortes raízes populares. Em sua obsessão pela
unanimidade, o ultramontanismo negou as outras formas de ser católico, estabelecendo as
dicotomias entre o velho e o novo, o bom e o mau. Entretanto, as velhas formas de
religiosidade popular resistiram, mantendo ainda hoje uma inesgotável fonte de devoção e de
fé.
Palavras-chave: catolicismo ultramontano; religiosidade popular; devoções européias;
conflitos entre os catolicismos; cultura popular

Deus te salve, casa santa, / Onde Deus fez a morada,


onde mora o caliz bento / e a hóstia consagrada.
Deus te salve, ó lindo arco, / Deus te salve! Felizmente
vai passar senhor Divino / com todo acompanhamento2.

O debate sobre a prática da religiosidade popular vem se intensificando na contemporaneidade,


seja para glorificá-la, ressaltando o seu caráter libertador, seja para exorcizá-la como pouco
ortodoxa, do ponto de vista teológico, ou alienada sob outros prismas. Algumas correntes
apresentam este conceito de forma reificada, isto é, tratam as formas populares de
religiosidade como se fossem independentes das relações sociais nas quais se inserem. É o caso
de artigos e de obras de alguns folcloristas que, preocupados com a preservação descritiva de
nossas tradições culturais, revelam-se, na maior parte das vezes, desenraizados historicamente.
Entendemos que algumas categorias básicas como o sagrado e o profano, o oficial e o popular,
só poderão ser compreendidas dentro de um contexto de relações da religião com a sociedade3.

Estas reflexões sobre as relações dos homens com o divino desdobraram-se necessariamente
sobre questões ligadas à conceituação e à interpretação da cultura popular, na medida em que
a experiência do sagrado é apropriada de maneiras diversas pelos grupos ou por indivíduos,
caracterizando uma pluralidade de usos e de entendimentos.

Revisitando o conceito historiográfico de cultura popular, Roger Chartier afirma que não é
possível aceitar, sem algumas restrições, a periodização clássica que vê na primeira metade do
século XVIII um momento de corte, de contraste muito forte entre uma idade de ouro, quando
a cultura popular teria sido livre, profusa, e uma época regida pela disciplina eclesial estatal, na
qual ela teria sido reprimida e subjugada. Este esquema pareceu pertinente ao se tratar de dar
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conta da trajetória cultural da Europa ocidental após 1600 ou 1650, época em que as ações
conjugadas dos Estados absolutistas (centralizadores e unificadores das Igrejas com as
reformas protestante e católica, repressivas e aculturantes) teriam abafado ou recalcado a
exuberância inventiva de uma antiga cultura do povo4.

Observa esse autor que a chave teórica que perpassou pelos trabalhos de alguns
investigadores, preocupados com os movimentos desenraizadores da cultura popular
tradicional, como Jacques Le Goff e Robert Muchembled, entre outros, conclui pela
desqualificação da cultura popular ou pelo seu desaparecimento5.

"Em 1500, a cultura popular era a cultura de todo o mundo; uma segunda cultura para os
instruídos e a única para os demais. Por volta de 1800 contudo, em muitas partes da Europa, o
clero, a nobreza, os comerciantes, os homens de ofício e suas mulheres - haviam abandonado a
cultura popular, da qual estavam agora separados, como nunca antes, por profundas diferenças
de visão de mundo", afirma Peter Burke6.

Essa destinação histórica de que se revestiu a cultura popular se deslocou, muitas vezes, para
as análises da religiosidade popular católica brasileira de herança colonial, considerada como
destruída e/ou desqualificada pelo catolicismo. Os trabalhos em que as clivagens religião
popular e religião erudita se faziam de forma dicotômica, ordenando o campo religioso,
dividindo dominantes e dominados em toda a sua extensão e que, de forma implícita, remetiam
essa religiosidade para as periferias e para as camadas subalternas, reproduzem essa óptica de
desagregação7.

Assim, torna-se importante uma reflexão sobre essa tensão, no caso brasileiro, estabelecendo
as estratégias - no sentido utilizado por Michel de Certeau - que supõem a existência de lugares
e instituições utilizados pelo catolicismo ultramontano, erudito, quando se estabeleceu no Brasil,
diante das tradicionais formas religiosas vigentes no país, desde a colonização. O fundamental -
aponta Chartier - é considerar, para cada época, como se elaboraram as relações complexas
entre formas impostas, mais ou menos constrangedoras e imperativas, e identidades afirmadas,
mais ou menos desenvolvidas ou reprimidas8.

O CATOLICISMO LETRADO E O SONHO AUNAMINISTA

A partir da segunda metade do século XIX, um novo modelo eclesial católico começou a ser
implantado no Brasil: o ultramontanismo. De raízes conservadoras, essa autocompreensão
nasceu sob o impacto das revoluções liberais européias que agitaram o próprio trono pontifício.
Buscando uma consolidação doutrinária teológica, estruturou-se em torno de alguns anátemas:
a rejeição à ciência, à filosofia e às artes modernas, a condenação do capitalismo e da ordem
burguesa, a aversão aos princípios liberais e democráticos, e sobretudo ao fantasma destruidor
do socialismo.

Engendrado com a mesma concepção medieval unitária do Universo, esse catolicismo estava
marcado pelo centralismo institucional em Roma, por um fechamento sobre si mesmo e por
uma recusa de contato com o mundo moderno. Conscientes de que essa ordenação doutrinária
constituía-se na força mantenedora da unidade da Igreja, os pontífices romanos, desde
Gregório XVI até Pio XII, não mediram esforços para a sua consolidação9. Com uma rigidez
hierárquica, reproduzida também pelas mais distantes células paroquiais, o ordenamento
ultramontano aspirava a uma univocidade entre a Europa, Ásia, África e América.

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Ancorado, portanto, na ortodoxia tridentina, e naturalmente no pensamento aristotélico-
tomista, o ultramontanismo construiu um arcabouço religioso destinado a se derramar ainda
por todos os poros da sociedade, e nos seus diferentes microcosmos desencadeou estratégias
reformadoras. A expressão doutrinária mais explícita dessa concepção religiosa foi a encíclica
Quanta Cura e o Syllabus que a acompanhava, em que se retomava a luta pela preponderância
da autoridade espiritual da Igreja sobre a sociedade civil. De acordo com suas teses, a
sociedade inteira deveria estar impregnada de catolicismo, a educação seria submetida à Igreja
e os clérigos estariam fora da jurisdição do Estado10.

Donoso Cortés, Joseph de Maistre, Luis De Bonald e Felicité Lammenais foram pensadores que
justificaram e firmaram essa política religiosa do século XIX, atacando os princípios anticatólicos
da sociedade burguesa e postulando uma soberania absoluta para a Igreja, na busca de uma
única identidade católica11.

A obsessão pela unidade religiosa, ancorada nas utopias medievais de um único universo regido
por um único centro espiritual em Roma, bem nos lembra a Cidade do Sol, de Campanella,
imaginada com esta concepção metafísica da ordem12. Em círculos concêntricos, as diretrizes
ultramontanas deveriam dirigir-se a todo o universo católico, seguindo uma ordenação perfeita
tal qual a solar, numa mecânica celestial irradiadora de luz e de vida13. Nesse sonho unitário
não se configuravam as incompatibilidades e as alteridades identitárias. Na busca do uno,
diante do múltiplo social, manifestava-se a intransigêcia ante o plural, confrontando-se, na
verdade, com o próprio lugar da história que é, por excelência, o lugar da divisão e dos
choques de valores. De maneira análoga à sociedade das abelhas, afastava-se a diversidade,
desejando-se a aurora de uma sociedade perfeita, como apontaram Platão, Campanella e
Morus14.

A REFORMA ROMANIZADORA

Como uma engrenagem em que as peças não-funcionais são excluídas em nome da harmonia,
o catolicismo ultramontano via-se como a única fonte da verdade e da salvação. Fora de seus
quadros estavam o anátema e a condenação. Aprisionado pelo maniqueísmo, julgava o outro
não-católico como uma maldição e/ou uma fonte de erros. O outro católico, porém não-
ultramontano, era considerado como uma ovelha desgarrada, cheia de vícios, que poderia ser
reintegrada ao rebanho desde que despojada de seus antigos vícios.

Essa nova espiritualidade sacramental - que se tentava implantar nos finais de século XIX -
engendrou a condenação de práticas religiosas anteriores, vigentes desde o período colonial,
isto é, as vivências de um catolicismo português leigo e despojado de um rigor teológico. Essas
formas devocionais foram vistas então com uma forte carga de negatividade e acusadas de
serem portadoras de sobrevivências pagãs, de superstições, e de apresentarem atos
exterioristas e sem profundidade.
O ultramontanismo tentou, portanto, substituir a realidade presente, completamente
multifacetada, plural, por uma outra nova, positiva e absolutamente única. Estabeleceu uma
marca de polaridade entre o velho e o novo, o bom e o mau, o presente e o futuro, o existente
e a realidade a ser criada15. Acreditou na possibilidade de se gerar um homem novo, envolvido
na neo-espiritualidade tomista, depurado de suas antigas crenças, tidas então como atraso e
crendices.

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Nesse sentido, os papas ultramontanos insistiram junto às hierarquias eclesiais brasileiras para
que encetassem uma campanha de transformação radical nas formas de piedade e devoção
praticadas por grande parte da população, tanto rural como urbana. As antigas manifestações
de culto dirigidas e organizadas por leigos, nas confrarias e nas irmandades, com frágil
intervenção clerical, não se adequavam mais ao novo contexto eclesial, que se desejava firmar
nas dioceses brasileiras16. Nesse deslocamento, a presença sacerdotal ia se constituindo
gradualmente na figura central de toda a neo-sacralidade. O padre tornava-se o responsável
por toda a dinâmica da espiritualidade e da política da Igreja, e sob a sua liderança é que se
desenvolviam as antigas atividades reservadas aos leigos. Com esse processo de romanização,
o poder decisório das Mesas das confrarias foi migrando para as mãos do vigário, ou do
assistente espiritual. A partir daí, toda a programação festiva e/ou administrativa caberia à
autoridade clerical competente.

Um paradigma sacramental e clerical deveria, portanto, erradicar os elementos espúrios e


regenerar o mundo católico. A desordem oriunda da ignorância deveria ser eliminada, pois
julgava-se que as sociedades civilizadas não encerravam heterogeneidade cultural e religiosa
marcantes; a homogeneidade cultural interna constituiria, certamente, a base de um profundo
sentimento de identidade nacional17. As imagens da grande nação católica começam a ser
projetadas. Nessa cosmovisão, a espiritualidade seria alcançada se os agentes eclesiais
assumissem os lugares que até então estavam nas mãos dos leigos, sendo investidos da
autoridade necessária a esse fim. Sob a liderança clerical, a harmonia do conjunto seria uma
decorrência natural.

A partir dessa autocompreensão, a igreja ultramontana foi desencadeando estratégias para a


consecução de seus objetivos reformadores. As práticas e estratégias dentro de uma
conceituação certeauniana que estabelecia a produção de objetos, normas e modelos
institucionais, mesclaram-se com o repertório simbólico configurador dessa nova ordem que se
pretendia estabelecer. Baczko observa a eficácia de um conjunto simbólico para se projetar a
imagem ideal de uma sociedade nova, livre do que carregava de arcaico e ultrapassado.
Entende ainda que parte do êxito desta linguagem situa-se na inversão efetuada pelos
militantes, em seu caráter espontâneo transformando-o em obrigatório e imposto18. Nesse eixo,
a igreja ultramontana desenvolveu um conjunto de representações objetivando impregnar não
só a esfera pública, como também modelar os costumes cotidianos, estabelecendo uma cruzada
para a romanização das antigas formas de religiosidade popular.

A EXPULSÃO DOS LEIGOS

As reformas administrativas efetuadas no Santuário do Bom Jesus de Pirapora constituíram-se


num retrato destas mudanças. Esse antigo centro devocional passou, a partir de 1883, a ser
administrado por três membros, sendo que o pároco tornou-se membro nato e os demais, o
secretário e o tesoureiro, de livre nomeação e demissão pelo bispo diocesano.

Assim, esmolas, rendimentos, doações ficaram doravante em poder de um sacerdote idôneo,


retirando dos leigos a função administrativa. "As devoções sob a denominação de irmandades
na Capela de Pirapora não trazem nenhum proveito nem para a sociedade nem para a religião",
afirmou um deputado ultramontano, na Assembléia paulista19.

O esforço romanizador em purificar o catolicismo de seus aspectos populares e retirá-lo do


domínio leigo ganhou um significativo apoio durante a 1ª Reunião do Episcopado Brasileiro,
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realizada em São Paulo, em 1890. Durante o encontro, os bispos discutiram essa questão dos
centros de religiosidade popular, e duas candentes questões foram firmadas: a primeira
consistia em retirar definitivamente das irmandades leigas a administração financeira dos
santuários e confiá-la a institutos religiosos europeus, a serem chamados especificamente para
esse fim. A justificativa era a de que os leigos dilapidavam o patrimônio constituído pelas
doações dos devotos e que, em contrapartida, se fosse administrado por sacerdotes idôneos,
poderia ser utilizado em outras pias finalidades como, por exemplo, a formação do clero. Esse
argumento fazia sentido, naquele momento, pois com a separação Estado-Igreja, a subsistência
dos seminários constituía-se num problema, já que haviam perdido as verbas governamentais20.

A segunda deliberação tomada no Encontro foi a de confiar totalmente a sacerdotes a direção


espiritual desses devocionais de maneira a torná-los "centros de verdadeira fé católica"21.
Postulava-se a necessidade de que os padres reformadores atuassem com firmeza, visando
erradicar as superstições e as manifestações populares julgadas inconvenientes e substituí-las
por uma outra nova instrução religiosa, efetiva, eficaz, de práticas devotas: "são de singular
efeito como homenagem a nosso Senhor Jesus Cristo as romarias quando movidas e
executadas com verdadeiro espírito de fé. Desejamos que o clero as promova e as dirija aos
principais santuários do Brasil", afirmavam os bispos22.

Esse discurso clerical complementava-se com outro que fluía, simultaneamente, ligado à
desqualificação da administração leiga através das irmandades e confrarias instaladas nos
santuários: "sou de opinião que tais irmandades nunca tiveram e nem têm administração
regular, não devem ser conservadas pois seus funcionários residem em distâncias grandes e aí
não vão senão uma vez ao ano", dizia o Vigário-Geral do bispado paulista23. O mesmo olhar
vigilante e perscrutador foi dirigido à Irmandade do Santuário do Bom Jesus de Iguape, onde,
segundo o vigário,

dois indivíduos dispõem ao seu bel-prazer dos recursos, há muitos anos. Jamais pensarei que
eles malbaratam (sic) os seus bens, mas o que é verdade é que nada de bom aí se tem feito24.

A EUROPEIZAÇÃO DOS SANTUÁRIOS

O olhar ultramontano expraiou-se pelos santuários brasileiros, que atraíam milhares de fiéis em
busca de soluções taumatúrgicas e cotidianas. Aparecida, por exemplo, um lugar sacralizado
pela devoção popular em torno de uma capelinha, tornou-se com o tempo um centro ao qual
afluíam peregrinos das mais distantes regiões e que, para cumprir suas promessas ofereciam,
além de preces, generosas doações e legados. A fim de que todo esse patrimônio fosse
revertido em obras da Igreja, o bispo paulista D. Lino Deodato (1873-1894) um dos luminares
do ultramontanismo em São Paulo, decidiu transferir para esse local o Seminário Diocesano.
Desejava iniciar ali a construção do prédio e entregá-lo à congregação dos padres redentoristas
para que se incumbissem também" dos múltiplos e pesados trabalhos de sua administração
espiritual", afirmava o pastor. Além dessa marcante espiritualidade, desejava ainda que os
sacerdotes estrangeiros, ao administrarem os legados dos romeiros, os investissem na
formação de seminaristas para a diocese.

Da mesma forma, os santuários de Bom Jesus de Iguape, de Pirapora e de Perdões, originados


no setecentismo, e com forte afluência de romeiros, nos mesmos moldes, receberam as
melhores atenções das autoridades eclesiais, pois significavam centros consagrados daquela
religiosidade espúria, contrária aos cânones litúrgicos ultramontanos25. Em Pirapora, os padres
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belgas da Ordem de São Norberto chegaram à cidade em 1897 e iniciaram a organização do
culto, dedicando-se também à construção de um seminário e à instalação de escolas paroquiais
para meninos e meninas. Em Perdões, os padres redentoristas assumiram o santuário,
enquanto em Iguape foram os padres premonstratenses. A administração religiosa européia
tornou-se um paradigma para os numerosos santuários espalhados pelo país. Delineava-se uma
romanização dos santuários das romarias e dos romeiros, mais tarde regulamentada por meio
de uma legislação específica.

Esse deslocamento do poderio leigo para o paroquial não se deu de forma harmônica, mas, ao
contrário, foi um processo eivado de conflitos entre as partes. Nos santuários de Bom Jesus da
Lapa, na Bahia, de Jardinópolis, em São Paulo, e no de Alto Paraguai, em Mato Grosso, entre
outros, em maior ou menor grau, os atritos com autoridades eclesiais se explicitaram,
sobretudo, nas festas do patrono. Em Jardinópolis-SP, chegou-se a realizar duas comemorações
concomitantes: a da matriz e a da capelinha do santo. Entretanto, ameaças de excomunhão a
quem participasse da festa leiga rondavam a cidade.

O ABANDONO DOS SANTOS POPULARES

Desde o início da colonização, os escravos e seus descendentes buscaram entre os santos


negros a mediação entre Deus e o seu cotidiano de penúrias e servidão, pois achavam que os
santos brancos pouco entendiam dessas vicissitudes. Assim, São Benedito, por ser filho de
escravos, era sempre solicitado:

Meu São Benedito


É um santo dos pretos
Que fala na boca
E responde nos peitos.
Que santo é aquele
Que vem no andor?
É São Benedito,
É nosso Senhor26.

Este santo irmão na cor e nas origens, justiceiro das injustiças, era venerado através dos
batuques, congadas, moçambiques, caxambus, rituais que o aproximavam do mundo africano27.

No final do século XIX, entretanto, as devoções que possuíam uma larga expressão popular,
como a de São Benedito e a do Divino Espírito Santo, a de Nossa Senhora do Rosário, a de
Santa Efigênia, a de Santo Elesbão e a dos Reis Magos começaram a ser desqualificadas pelos
agentes ultramontanos. Discretamente as imagens eram retiradas dos altares centrais e
alojadas em capelinhas. O mesmo se deu com as devoções brancas, de fortes raízes populares
- como o culto ao Bom Jesus Sofredor, expresso nas diferentes figurações do Bom Jesus da
Cana Verde, da Lapa, dos Perdões, do Senhor dos Passos, do Bom Fim, do Senhor Morto -
entre outras devoções. Era aos santuários que os devotos acorriam em romarias para cumprir
promessas, deixar seus ex-votos e fazer pedidos. As diversas irmandades leigas ligadas às
devoções incumbiam-se de promover o culto por meio de festas e de procissões populares28. As
imagens do milagroso Bom Jesus iam sendo substituídas pela divulgação de outra, ligada ao
culto do Sagrado Coração de Jesus, promovida especialmente pelos padres jesuítas através de
associações, agora ultramontanas, como o Apostolado da Oração. Como expressão dessa nova
devoção, começaram a surgir as suas primeiras igrejas, aflorando a luta subjacente entre as
Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 19
devoções romanizadas trazidas da Europa e as antigas formas típicas de um catolicismo luso-
brasileiro. Uma nova afirmação da Igreja como instituição hierárquica promotora do culto
eucarístico, por intermédio dessa devoção, confrontava-se com o caráter laico da Igreja
concebida como cristandade, e agora em crise.

Nesse redimensionamento, a devoção ao Coração de Jesus recebeu uma forte carga


promocional dos papas, por Encíclicas, e pelos bispos reformadores que consagraram as suas
dioceses ao Coração de Jesus, como a do Ceará e a de São Paulo, entre outras. Essa devoção
encontrou também grande ressonância entre os católicos, sobretudo quando remodelada na
expressão de Cristo Rei29, tornando-se, sem dúvida, um dos baluartes mais importantes para a
consolidação do catolicismo ultramontano no Brasil. A imagem do Cristo Redentor, inaugurada
pelo Cardeal Leme em 1933, no topo do Corcovado, de braços abertos sobre a Guanabara,
coroou com êxito esse processo de consagração, agora em nível nacional.

Sem combater diretamente as devoções tradicionais, os padres romanizadores limitavam-se a


não participar delas e a condenar os excessos cometidos durante as suas festas, tais como a
dança, a bebida e os jogos, bem como criticar o mau uso do dinheiro recolhido pelos devotos.
Tentativas de eliminar os elementos picarescos populares dos eventos religiosos
esquadrinhavam-se durante as procissões, as novenas e as romarias.

Nessa guerra de imagens, como bem expressou Gruzinski em relação ao processo de


resistência cultural mexicano30, os antigos santos foram aposentados nas sacristias, enquanto
eram entronizadas nos lugares centrais imagens de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, de
Santo Afonso de Liguori, de São Luís Gonzaga, de Nossa Senhora Auxiliadora, de São João
Bosco, de Santa Úrsula, da Sagrada Família, de São José, de Madre Mazzarello, entre outras. Os
cultos europeus que se instalaram nos altares das paróquias e nas capelas de colégios católicos
tornaram-se espelhos paradigmáticos a serem imitados nas vivências cotidianas. Sacralizadas
pelas virtudes sacramentais, as devoções brancas européias, então conectadas às hierarquias
eclesiais, tornaram-se privilegiadas estratégias de erradicação e de substituição das antigas
práticas populares31.

A FESTA COMPORTADA E O FOLIÃO CENSURADO

As congregações religiosas européias foram peças fundamentais para os bispos, que se


dedicavam à cruzada romanizadora em suas dioceses. Instaladas nos velhos centros de
religiosidade popular voltaram-se, a partir desses lugares, para as manifestações exteriores do
culto. Festas, ruas, procissões, folias e foliões foram incessantemente devassados, vigiados e
normatizados. A cultura clerical esforçou-se na marginalização de todo um corpo de
comportamentos e práticas culturais socialmente admitidos e que, a partir de então,
começaram a ser criticados e condenados.

As Constituições do Arcebispado da Bahia de 1707, por exemplo, foram bastante tolerantes em


relação aos aspectos picarescos e populares das manifestações religiosas, limitando-se apenas
a discipliná-los, mas nunca com severidade:

não é nossa tenção proibir que no adro se possam fazer representações ao Divino, sendo
aprovadas por nós ou por nosso Provisor: nem que outrossim na ocasião de festas entrem
danças e folias nas Igrejas sendo honestas e decentes, em quanto se não disser Missa, nem se
celebrarem os Ofícios Divinos32.

Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 20


Durante o Brasil Colonial, procissões e demais cerimônias religiosas - como as bandas e os
ranchos com seus instrumentos populares - ocupavam um lugar central. Ordens Régias, Editais
das Câmaras e até mesmo os Documentos Eclesiásticos convocavam a musicalidade para
abrilhantar e criar a atmosfera sonora das missas, procissões, romarias e festas de padroeiros.
O romancista Manuel Antonio de Almeida, descrevendo o Rio de Janeiro na metade do século
XIX, aponta os cortejos e as folias de rua, durante as festas religiosas e procissões. Ressalta
que a folia popular e os seus foliões, com seus ranchos de pastores, ao som dos pandeiros,
machete e tamboril, cantavam versos que agradavam ao santo e atraíam os moradores para o
cortejo:

O Divino Espírito Santo


É um grande folião,
Amigo de muita carne
Muito vinho e muito pão33.

No desejo de esvaziamento popular e de ortodoxia religiosa, as hierarquias clericais voltaram-se


para os poderes públicos municipais e judiciários em busca de ratificação para esta imposição
de valores culturais. A ancoragem policial e as Posturas Municipais, estabelecendo os seus
padrões de decoro e de moralidade, configuraram-se em pilares dessa campanha de vigilância e
de erradicação dos elementos populares da religiosidade, sobretudo dos homens pobres.

Bebedeiras, vadiagem, desvio de esmolas arrecadadas, denúncias de orgia, de abusos, de jogos


de roleta e de víspora34, críticas à falta de higiene das bandeiras que eram beijadas (como um
veículo de propagação de moléstias) foram fatores básicos nessa conjugação de esforços.

A vigília espiritualizante encontrou guarida sobretudo nos destacamentos policiais que se


incumbiram de moralizar os eventos, tirando das ruas as danças e confinando-as em recintos
fechados, e intensificando a repressão aos jogos sempre presentes nas festas35.

Nos livros do Tombo paroquiais encontram-se inúmeras queixas do clero contra o mau
comportamento dos romeiros nas festas. Precavendo-se destas profanações, os padres foram
disciplinando as procissões, destruindo os barracões que alojavam os romeiros, proibindo os
corteges36, os bailes e as arruaças.
Danças, músicas, alardes, tambores, folias, máscaras, palhaços, imperatrizes, bandas, fogos -
representações emblemáticas do sagrado que eram consentidas e incentivadas pelo catolicismo
tradicional, como privilegiadoras dos sinais visíveis da fé e da graça37 - começaram a ser
ciosamente regulamentadas.

Nas praças, os cortejos fúnebres e as procissões foram gradualmente incorporando a nova


liturgia, mais austera, na qual os elementos carnavalescos e o riso que permeavam os festejos
religiosos do catolicismo popular iam sendo eliminados em virtude de suas características
profanas. Eram lugares, como diria Bakhtin, onde o riso tinha um profundo valor de concepção
do mundo, era uma das formas capitais pelas quais se exprimia a verdade sobre o mundo na
sua totalidade, sobre a história, sobre o homem38.

Dessa forma coesa, os agentes ultramontanos e os administradores públicos buscaram modelar


as práticas litúrgicas vigentes. Enraizar o novo implicava um esforço de desmontagem do velho.
Nesse condicionamento, encíclicas e pastorais iam circunscrevendo, regularizando e obrigando
o cumprimento de preceitos tridentinos junto às paróquias e aos paroquianos39.

Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 21


As prescrições sobre a festa do Espírito Santo, ou de Pentecostes, como preferia o bispo de São
Paulo, D. Lino Deodato, constituem-se numa leitura paradigmática dessas tentativas de
erradicar costumes e escândalos que faziam parte do fundo mais antigo da cultura religiosa
brasileira. Os esforços do bispo dirigiam-se prevalentemente às folias e aos foliões, criticando a
imoralidade de seus membros, que faziam dessa devoção "um verdadeiro modo de vida e
mesmo de furto". A maior indignação era sobretudo em relação à "vida ociosa que levavam os
foliões", especialmente os meninos, pois, segundo o bispo, "poderiam aplicar-se a algum ofício
ou dar-se ao trabalho de roça"40.

Vícios, ociosidade, preguiça, indolência são imagens recorrentes da desqualificação episcopal


em relação às bandeiras do Divino Espirito Santo. Contrapondo "as constantes bebedeiras,
cantorias, comesainas e outros divertimentos que sempre andam de parceria nas festas do
Divino", o bispo recomendava aos párocos que, junto com seus paroquianos, refletissem sobre
as promessas do batismo e sobre sua renovação, indicando a leitura da encíclica de Leão XIII
sobre este tema. Aconselhava que a festa deveria ser feita prevalentemente dentro da Igreja.
Quanto aos foliões, o bispo indicava a necesssidade de possuírem os "atestados para
esmolarem". Em casos de abuso, recomendava aos fiéis que se recusassem a dar esmolas.
Finalmente, o último apelo: "se a paróquia fosse muito pobre, o melhor caminho era o de não
fazer a festa"41.

O bispo estabelecia um aspecto determinante para a romanização das folias populares


sinalizada na insistência para que as comemorações se dessem dentro das Igrejas. No domínio
da esfera privada, do templo católico, certamente o poderio clerical atuaria com maior eficácia
na instrumentalização dessas cerimônias.

Na busca da purificação dos elementos sagrados, de suas excrescências profanas, e de


emoldurá-las segundo os cânones ultramontanos, as hierarquias eclesiais iniciaram ao mesmo
tempo o disciplinamento musical das liturgias, quer de seu repertório, quer de seus
instrumentos.

Pio X, entendendo que "a Casa do Senhor necessitava de decoro e de afastar tudo o que
diminuísse a piedade", exarou uma encíclica sobre o "Canto Gregoriano e a Música Sagrada",
onde determinava a substituição das composições musicais profanas pelo canto gregoriano,
solicitando ainda que fossem cantadas em latim: "são proibidos todos os gêneros de música
lasciva, impura, licenciosa, indecente, profana ou teatral". Exigia que o repertório musical
executado durante os ofícios estivesse" expressamente aprovado pelo ordinário ou pela
comissão competente". Quanto ao coral, determinava que fosse formado apenas por
eclesiásticos e por cantores perfilados entre os "homens de reconhecida piedade e probidade de
vida e que se mostrassem dignos do ofício"42. Além desse balizamento, cirscunscreveu a
natureza instrumental: "dentro da Igreja só o órgão e em casos especiais o uso de outros
instrumentos somente com a licença do ordinário". Proibia o "uso do piano e de todos os
instrumentos fragarosos ou ligeiros como o tambor, chinescos, pratos e outros semelhantes"43.

Ratificando o discurso romano e sob a alegação de que as bandas de música davam" ocasião a
divertimentos que profanam de algum modo as festas religiosas", os bispos solicitavam aos
párocos que "tanto quanto possam" não as chamassem para as festas 44. Sanções, proibições e
excomunhões por transgressões acompanhavam as ordenações normativas eclesiais. Os
tambores de origem africana, tão populares nas festas dos Congos e Folias de Reis, que ao lado
dos gangás, dos batuques e dos caxambus abrilhantavam os cortejos, foram obrigados a sair

Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 22


dos templos católicos e a procurar outros lugares que os abrigassem. Instalaram-se
naturalmente, a partir de então, nos terreiros de Umbanda e nos Candomblés.

TÁTICAS DE APROPRIAÇÕES CULTURAIS

Michel de Certeau opõe o tático ao estratégico. O desempenho do estratégico requer a


presença de um sujeito ou sujeitos com um projeto global, um oponente claro e um controle
sobre o terreno de onde se há de produzir a confrontação. Ao contrário, o universo do tático,
"essa atemporal arte dos mais fracos se caracteriza pela ausência do projeto, de um espaço
próprio para a confrontação ou de uma totalização do oponente". São "modos de fazer", afirma
esse autor45.

Transportando essa tensão para as formas populares de religiosidade, observamos que sob
uma aparência passiva, na realidade elas se mostraram inventivas e criadoras. Uma produção
racionalizada, expansionista e barulhenta não anulou os espaços próprios de recepção, de usos
e de interpretação.

Estudos sobre a musicologia dos cultos afro-brasileiros nos grandes centros de religiosidade
popular46, revelam a forte presença de elementos não africanos, tanto na música religiosa como
na profana. A cantiga de batismo na Umbanda, observada em um centro, no Rio de Janeiro, em
seu texto e na sua formação melódica revelou ao pesquisador um forte vínculo com o
catolicismo. Ao lado das palmas, do movimento dos corpos, do som dos atabaques, ouve-se o
canto:

São João batizou Cristo,


Cristo batizou João,
Grande foi batizado no Rio Jordão47.

Observou-se ainda uma original apropriação de elementos musicais eruditos católicos contidos
no canto gregoriano, muito próximos do arrebatamento do espírito e da comunhão social.
Mostram alguns trabalhos que esta operação significa a flexibilidade que marcou a prática
religiosa dos africanos e de seus herdeiros, sobretudo no Rio de Janeiro48.

A experiência religiosa popular não cumpriu, portanto, um destino iluminista que previa o seu
final com o triunfo da razão, da urbanização e da modernidade. Ela se reatualiza com
experiências vividas de incontáveis maneiras e que estão presentes no cotidiano sob formas
variadas, descontínuas e surpreendentes49.

As festas brasileiras em devoção aos milagrosos santos continuam atraindo multidões que
chegam em romarias a pé, de carros ou em modernos ônibus. Há uma vivência do religioso em
íntima conjunção com o cultural, possibilitando muitas vezes a recuperação da própria
identidade.

Subjacente ao desejo de festar, corre uma visão de mundo intrinsecamente ligada ao mistério
da graça almejada e dos milagres pedidos pela intercessão dos santos e garantidos pela
promessa que obriga a colocar a festa nas ruas, afirma Marlise Meyer50. A festa, a dança, o
canto, o som das violas são as formas pelas quais se materializa a devoção, inequívoca, unindo
os elementos sagrados e os profanos.

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O catolicismo popular permaneceu vivo em amplas camadas da população, nos subterrâneos
religiosos populares que não entendiam o latim, mas que continuaram entoando-o nas trezenas
em louvor a Santo Antônio ou no mês de Maria, repetindo as ladainhas, numa circularidade
entre a cultura erudita e a cultura popular51. Continuou presente, no devocionário de todos
aqueles que encontram no divino um lenitivo para o seu sofrimento e uma esperança para seus
desejos. O sentido da vida, do trabalho, do amor, da família, da morte, que para muitos
brasileiros está ligado a um campo simbólico religioso, faz com que populares, cujas clivagens
culturais não são coincidentes com sua estratificação social, sejam refratários a distinguir o
sagrado do profano, relutando em separar o que para eles sempre fora uma homenagem
completa e ambivalente52.

A utopia ultramontana - de se constituir num bloco monolítico católico e de se manter como a


única voz competente - engendrou mudanças, é claro; contudo, as outras formas de
religiosidade se confrontaram e as camadas populares não se constituíram num receptáculo
passivo. Ao contrário, resistiram, constituindo-se em bastiões de autonomia religiosa, embora
muitas vezes amputados. Ao buscar uma identidade homogeneizante, o catolicismo confrontou-
se com a própria diversidade e, diante da inexorabilidade do plural, reconheceu a necessidade
de estabelecer novas práticas e modelos culturais, mesmo como armas contra outras religiões
que vinham assediando o seu rebanho. Os santuários de Aparecida, de Bom Jesus da Lapa, de
Bonfim, entre outros, continuam acolhendo devotos e romeiros sob um olhar ecumênico
eclesial.

NOTAS

1 Professora do Departamento de História Social, Política e Econômica da Universidade Estadual


Paulista. UNESP - Franca.

2 Versos cantados nas Folias do Divino.

3 BENEDETTI, Luis R. Os Santos nômades e o Deus estabelecido. São Paulo: Paulinas, 1984
; BAROJA, Júlio Caro. Las formas complejas de la vida religiosa. Barcelona: Circulo de Lectores,
1995.
4 CHARTIER, Roger. Cultura Popular - revisando um conceito historiográfico. Estudos Históricas.
Rio de Janeiro, v.8, n. 16, 1995. pp.179-192.

5 LE GOFF, J. "Culture clericale et traditions folkloriques dans la civilization mérovingienne".


Annales. Economie, Societé, Civilizations. 1967, v.22, pp.780, 791.
6 BURKE, Peter. A Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. pp.207,
208, 270.

7 FERNANDES, Rubem C. Romaria da Paixão. Rio de Janeiro: Rocco. 1994. p.216.

8 CHARTIER. Op. cit., p.81.

9 WERNET, Augustin. A Igreja na História de São Paulo no século XIX. São Paulo: Ática, 1987,
p.30 e ss.

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10 PIO IX. Papa. Encíclica Quanta Cura - Syllabus. 8 dez. 1864. In: HOYOS, Frederico (Coord.)
Colleción Completa Encíclicas Pontifícias (1832-1965). Buenos Aires: Editorial Guadalupe, 1963.
T 1, p.115

11 WERNET, A. Op. cit., p.40.

12 CAMPANELLA, Tommaso. "A cidade se Sol". In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural,
1973, v.112.

13 RAMOS, César A. "A Cidade do Sol. A Utopia Metafísica de Campanella". In: História:
Questões e Debates. Curitiba, 7 (13), dez. 1986, p.138.
14 BACZKO, Bronislaw." Utopia". Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, 1985, v.5,
pp. 346-396.

15 LIBÂNO, João Batista. Utopia e Esperança Cristã. São Paulo: Loyola, 1989.

16 GAETA, M. Ap. Junqueira. Os percurso do ultramontanismo em São Paulo no bispado de D.


Lino Deodato R. de Carvalho. São Paulo: 1991. Tese (Doutorado em História) FFLCH-USP.
p.200 e ss.

17 QUEIROZ, Maria Isaura P. de." Evolução religiosa e criação: os cultos sincréticos brasileiros".
In: KOHUT, Karl e Albert Meyers (org.). Religiosidade popular en América Latina. Eichstatt:
Publicaciones del Centro de Estudios Latinoamericanos. 1988, pp.33.

18 BACZKO, B."A Imaginação Social". Enciclopédia Einaudi. Lisboa: Imprensa Nacional, v. 13,
p.323.

19 ANNAES da Assembléia Legislativa de São Paulo, 1883. Coleção de Obras do Estado de S.


Paulo. São Paulo, 1925, p.65.

20 GAETA, M. Op.cit., p.146.

21 AZZI, Riolando. "Elementos para a História do Catolicismo Popular". Revista Eclesiástica


Brasileira, 1976. v.36, fasc.141, p. 117.
22 Idem, ibid.

23 Relatório Geral do Mons. Barroso enviado ao bispo Joaquim Arcoverde. 1894. Arquivo da
Cúria Metropolitana de São Paulo, Seção de Manuscritos.

24 idem.

25 FRANÇA, Maria C. Pequenos Centros Paulistas de Função Religiosa. São Paulo: Instituto de
Geografia da Universidade de São Paulo, 1975. 2v, p.56.

26 POEL, Francisco V. D. O Rosário dos Homens Pretos. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1981,
p.131.

27 GAETA, Maria Ap. J. O escravo nas praças: a festa religiosa das confrarias do Brasil no
século XVIII. 1992, p.125.
28 AZZI, Riolando. op. cit.; França, Maria C. Op. cit.

Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 25


29 LEÃO XIII. Papa. "Encíclica Divinium illud munus. Sobre o Espírito Santo", 9 de maio de
1897. In: HOYOS, Frederico (coord.) Colleción Completa Encíclicas Pontifícias (1832-1965).
Buenos Aires: Editorial Guadalupe, 1963. T.1, pp. 31-34.

30 GRUZINSKI, Serge. "Guerre des images et colonization de l'imaginaire dans le Mexique


colonial". In: Structures et Cultures de Societés ibeo-americaines. Paris: CNRS, 1990.

31 PIO XI. Papa. "Encíclica Quas Primas. Sobre as Festas da realeza de Jesus Cristo", 11 de
dez. de 1925. In: HOYOS, F. (coord.), op.cit.

32 VIDE, Sebastião M. da. As Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, propostas e


aceitas no Sínodo Diocesano de 1707. São Paulo: Tipografia 7 de dez. de Antonio Louzada.
1853, art.742, p. 226.

33 ALMEIDA, Manoel Antonio de. Memórias de um sargento de Milícias. Rio de Janeiro: Edições
de Ouro. s/d.

34 ALMEIDA, Jaime de. Foliões. Festas em São Luís de Paraitinga na passagem do século
(1888-1918). São Paulo: 1987 (Doutorado em História). FFLCH-USP, p.220.
35 FRANÇA. Op. cit., p. 159.

36 Tipo de escola de samba, composta por negros, que saía atrás da procissão do Bom Jesus.

37 REIS, João José. A morte é uma festa; setor fúnebre e revolta popular no Brasil . São Paulo:
Cia. das Letras, 1991.

38 BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo: Hucitec, 1987.
39 O arcebispo da Bahia, Dom Luiz Antônio dos Santos, chegou a proibir na igreja a cerimônia
da lavagem do Senhor do Bonfim; AZZI, Riolando. Op. cit., p. 123.

40 GAETA, Maria A. J. Op.cit. 1991, p. 261.

41 idem, ibid., p.261.

42 PIO X. Papa. "Encíclica Inter Plurimis; Motu Próprio" 22 de nov. de 1903. In: HOYOS, F
(coord.). Op.cit. p. 697.

43 idem, ibid.

44 SANCHIS, Pierre. Arraial: Festas de um povo. As romarias portuguesas. Lisboa: D. Quixote,


1983, p.39 e ss.

45 CERTEAU, Michael de. A Invenção do Cotidiano. Rio de Janeiro: Vozes, 1994, p 49.

46 PINTO, Tiago de O. "Breves anotações sobre as músicas de culto afro brasileiro". In:
KOHUT, Karl; Albert Meuers (eds). Religiosidade en America Latica. Eischstatt: Centro de
Estudos Latinoamericanos. 1988, pp. 315, 328.

47 idem, ibid, p. 318.

48 ABREU, Marta. "Festas religiosas no Rio de Janeiro: perspectivas de controle e tolerância no


século XIX". Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d., pp. 183-203.
Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 26
49 BRANDÃO, Carlos R. "El rastro de la mirada". In: Escenarios de lo Sagrado. Antropologia.
Madri, n. 40, outubro, 1995, p.16.

50 Meyer, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 1993, p. 186.

51 BAKHTIN, M. Op.cit.

52 SANCHIS, Pierre. Op.cit., p.155.

CONCLUSÃO

A religiosidade popular é um conjunto de manifestações da cultura religiosa tradicional. A


relações teórica e prática entre os homens e a potência superior são praticadas sem
formalidades ou ritualismo imposto conforme a tendência natural e sem constrangimento do
coração. Suas diversas expressões retratam a alma de um povo, exprimindo sentimentos e
valores teológicos seculares. Seu estudo muito interessa à antropologia e sociologia.

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Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 27


Avaliação de Religiosidade Popular — Módulo 28-A

Aluno: ______________________________ Matrícula_________


Cidade ________________ UF ____________ Data ___________
PREZADO ALUNO:
* Estude o módulo e entregue esta avaliação respondida sem rasura
* Não copie do colega e responda com caneta azul ou preta

01. Trabalho de Pesquisa (50% da nota total): Faça uma pesquisa descrevendo, pelo
menos, mais cinco festividades populares de caráter religioso.
02. Questionário (50%)

QUESTIONÁRIO

01 — Defina, em suas palavras, religiosidade popular.


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02 — Qual o impacto do Concílio Vaticano I sobre a religiosidade do povo?

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03 — Que papel desempenhou o papa João XXIII na revalorização da religiosidade popular?


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Mód. 28-A / Religiosidade Popular. 28

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