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Fonte: http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.211/6826
Outorga onerosa do direito de construir em área de operação urbana. Marrom: potencial
adicional de construção; amarelo: contrapartida
Imagem divulgação [Website Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento]
No tocante aos julgados, analisa-se acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal
– STF, cuja recorrente é empresa interessada em construir além do máximo permitido
pela legislação urbanística de Florianópolis, sem arcar com a contrapartida
correspondente à OODC. Destaca-se a votação unânime pela improcedência do recurso,
valorizada pelo voto de alguns ministros, e aborda-se o estágio atual da
jurisprudência do STF sobre o tema.
Tal importância é avaliada por Flavio Villaça, para quem o Plano Diretor é a
cristalização do planejamento urbano da segunda metade do século 20 (7). Este autor
ressalva que “plano” e “planejamento” são conceitos distintos, onde este é a
atividade intelectual exercida para a elaboração daquele. E não obstante sua
relevância, Villaça critica o instituto do Plano Diretor porquanto não é ele “uma
peça puramente científica e técnica, mas uma peça política” e, ademais, “as camadas
populares não têm demonstrado grande interesse em participar de debates sobre os
planos diretores” (8). Villaça também observa que, nos processos de elaboração de
Planos Diretores e leis de zoneamento, a “população” (maioria) é substituída por
grupos ou setores ou classes sociais (minoria) ao passo em que a classe dominante
(política e setor da produção imobiliária) sempre tem participação ativa (9).
Apesar destas fragilidades, a OODC pode ser regulamentada pelos planos diretores,
de acordo com o assim disposto no artigo 28 do Estatuto da Cidade, que a insere no
âmbito dos instrumentos de política urbana:
“Art. 28. O plano diretor poderá fixar áreas nas quais o direito de
construir poderá ser exercido acima do coeficiente deaproveitamento
básico adotado, mediante contrapartida a ser prestada pelo beneficiário”.
Para compreender a aplicação da OODC, é necessário saber que é por meio do
coeficiente de aproveitamento (CA) que o município pode limitar o direito de
construir em determinado lote. Em geral há três tipos de CA: o CA mínimo, que
estabelece o mínimo que o proprietário do imóvel deve construir; (10) o CA básico,
que define qual é o potencial construtivo máximo a ser exercido gratuitamente no
terreno; e o CA máximo, que determina o máximo de vezes em que se pode reproduzir
a área do terreno em forma de área construída. Porém, neste caso, o interessado
terá de arcar com a contrapartida, que é a OODC, valor devido pela área construída
que excede o básico. A figura abaixo apresenta esquematicamente a diferença entre
os tipos de CA.
No tocante aos precedentes históricos da OODC, no Brasil, o instituto que lhe deu
origem, denominava-se “solo criado”, expressão ainda utilizada e cujo conceito
embasou a Carta de Embu, (11) elaborada na década de 1970, quando o Grupo de Estudos
da Grande São Paulo – Gegran, composto por juristas e urbanistas, reuniu-se no
Centro de Estudos e Pesquisas em Administração Municipal da Secretaria do Interior
do Estado de São Paulo. Discutia-se, então, a necessidade de normatização da
política urbana, a separação entre direito de propriedade e direito de construir,
e o solo criado. Em dois seminários, realizados em 1975 e 1976, sendo o segundo em
Embu, formalizou-se o referido documento, cujo texto denomina expressamente “solo
criado”, já fazendo relação com o que se conhece hoje por OODC, conforme trechos a
seguir:
[...]
José Afonso da Silva e Eros Grau, relator do acórdão a seguir analisado, compunham
o Gegran e assinaram a Carta de Embu. Ao conceituar “solo criado”, o primeiro cita
o segundo de modo a ratificar o seu entendimento:
Portanto, solo criado pode ser eficiente meio de obtenção de recursos para obras,
serviços públicos e outros investimentos em políticas urbanas, por meio da OODC.
Enquanto figura jurídica, a OODC possibilita a compreensão da desvinculação entre
direito de propriedade e direito de construir, porquanto este pode ser limitado ou
ampliado conforme o interesse público.
Judicialização da OODC
O acórdão proferido no Recurso Extraordinário – RE n° 387.047-5, de Santa Catarina,
julgado em última instância pelo STF (30), com fundamento no artigo 102, III, c da
CF/88, tendo como recorrente a empresa Koerich Participações, Administração e
Construção Ltda., trata do interesse desta em construir além do CA básico, sem
arcar com a contrapartida, em desacordo com a Lei nº 3.338/89 de Florianópolis
(31).
A lei municipal questionada possui seção específica sobre “solo criado” e, mesmo
anterior ao Estatuto da Cidade, evidencia que Florianópolis tinha o mesmo objetivo
observado na lei federal, pois no parágrafo primeiro do artigo 9º daquela,
considera-se adequada edificação cujo CA básico seja menor ou igual a 1,0 (um),
prevendo hipótese de autorização de construções com CA superior, mediante
remuneração ao Município, referente à área construída excedente.
Dever/obrigação x ônus
Imagem divulgação [Website STF]
“uma espécie de indenização que se faz ao Poder Público. Porque, à medida que
se eleva uma edificação, evidentemente o Poder Público tem maior ônus no que
tange à infraestrutura de seu entorno. É preciso criar mais canalização de
água, de esgoto, transporte coletivo etc. Evidentemente, existiria
um locupletamento indevido do particular se não houvesse um ressarcimento do
Poder Público em função dos investimentos que ele faz. Esse é o cerne da
questão” (38).
Carlos Britto:
Julgamento: 23/02/2012
Mas de modo geral, estes recursos são fundamentais para financiar o acréscimo de
infraestrutura e de equipamentos públicos, devido à ampliação da densidade nas
áreas em que o CA básico é ultrapassado, de forma a evitar que a sociedade arque
com custos que devem ser suportados pelo empreendedor.
O cálculo da contrapartida pode ser demonstrado por meio de hipótese formulada por
Landi (45). Suponha-se que um interessado pretenda construir acima do CA básico,
no bairro de Pinheiros, em São Paulo:
C= (At / Ac) x V x Fs x Fp
C = R$ 5.167,50 / m2
R$ 5.167,50 x 180 m2
R$ 930.150,00
De todo modo, é importante salientar que a OODC não deve estar dissociada da
estratégia de ordenamento territorial delineada no Plano Diretor, pois é componente
fundamental de sua base econômica. Neste aspecto, mais uma vez o caso de São Paulo
é paradigmático, pois ao instituir os fatores social e de planejamento (Fs e Fp)
na formula de cálculo da contrapartida, o município pode induzir a localização dos
empreendimentos, de acordo com a localização mais apropriada para cada tipo, em
consonância com as diretrizes de política urbana estabelecidas pelo plano diretor,
com ênfase para o interesse social.
Conclusão
A norma geral prevista no Estatuto da Cidade, assim como as normas especificas dos
municípios estudados, convergem no sentido de que a execução da política de
desenvolvimento urbano deve propiciar o cumprimento das funções sociais da cidade
de maneira plena e garantir o bem-estar dos habitantes. Cabe ao Poder Público
municipal equacionar a demanda por infraestrutura, equipamentos comunitários, áreas
verdes e outros espaços de uso público da cidade, para garantir um equilíbrio
urbano harmonioso, fixando limites sobre o direito privado, a fim de garantir justa
distribuição dos ônus e bônus do processo de urbanização caracterizado pelo
adensamento construtivo.
notas
1
Embora com aplicabilidade distinta, a OODC possui origem comum ao instrumento denominado
“solo criado”, introduzido no Brasil, na década de 1970.
2
I – Regularização fundiária; II – execução de programas e projetos habitacionais de
interesse social; III – constituição de reserva fundiária; IV – ordenamento e
direcionamento da expansão urbana; V – implantação de equipamentos urbanos e
comunitários; VI – criação de espaços públicos de lazer e áreas verdes; VII – criação
de unidades de conservação ou proteção de outras áreas de interesse ambiental; VIII –
proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico.
3
SÃO PAULO. Lei Nº 16.050, de 31 de julho de 2014. Política de Desenvolvimento Urbano e
o Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo. Diário Oficial da Cidade de São
Paulo nº 140, Suplemento.
4
BRASIL. Constituição Federal, 1988.
5
MEDAUAR, Odete; ALMEIDA, Fernando Dias Menezes de. Estatuto da Cidade: Lei 10.257, de
10.07.2001, comentários. 2 ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2004, p. 204. Grifos
dos autores.
6
Art. 41. O plano diretor é obrigatório para cidades:
10
Se esse mínimo não for atendido, pode-se considerar que a função social da propriedade
não está sendo cumprida em razão da subutilização do terreno, desde que a área em que
este se encontra esteja delimitada no Plano Diretor.
11
DOCUMENTOS GOOGLE. Carta de Embu, s.d.
12
Conceitua contrapartida como meio de compensação pela área construída além do CA básico,
pois, cumulativamente, as construções realizadas acima deste limite, ampliam a demanda
por infraestrutura, equipamentos urbanos e serviços, pelo Poder Público. Assim, a
contrapartida auxilia no reequilíbrio urbano, pois seus recursos devem ser destinados
ao atendimento desta demanda.
13
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. São Paulo, Malheiros, 2008, p.
259. Grifos dos autores.
14
Embora o fenômeno da verticalização já fosse observado nas grandes cidades dos países
centrais, desde o século 19, e nas brasileiras, desde a primeira metade do século
passado, é com a industrialização havida a partir da Segunda Guerra Mundial que este
processo toma impulso e passa a evidenciar seus impactos urbanísticos, resultando nas
primeiras experiências de outorga onerosa de potencial construtivo, a partir da década
de 1960. No Brasil, os primeiros casos de aplicação de legislação correlata ocorrem
antes mesmo da sanção do Estatuto da Cidade.
15
SILVA, José Afonso da. Direito urbanístico brasileiro. Op. cit.
16
GRAU, Eros. Aspectos Jurídicos da Noção de Solo Criado. In O solo criado - Anais do
seminário. São Paulo, Fundação Prefeito Faria Lima, 1977.
17
FERREIRA, Raquel Bastos; MATTEDI, Milton Carlos Rocha. Solo criado e outorga onerosa do
direito de construir, p. 121 – 144. In Argumentum. Revista de Direito da Universidade
de Marília. nº 15. UNIMAR, 2014, p. 126 e 127.
18
SILVA, Ana Amélia da; e SAULE JR., Nelson. A cidade faz a sua constituição. In Revista
Pólis. nº 10. São Paulo: Polis, 1993, p. 27. Disponível in
<http://polis.org.br/publicacoes/a-cidade-faz-a-sua-constituicao/> Grifos dos autores.
19
AZEVEDO NETTO, Domingos Theodoro de. Experiências similares ao solo criado. C.J.
Arquitetura, n. 16, São Paulo, FC Editora, 1977, p. 44. Apud REZENDE, Vera F.; FURTADO,
Fernanda; OLIVEIRA, Maria Teresa Corrêa de; e JORGENSEN JÚNIOR, Pedro. Outorga onerosa
do direito de construir e o solo criado: uma necessária avaliação das matrizes
conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 2, nov. 2009.
20
REZENDE, Vera F.; FURTADO, Fernanda; OLIVEIRA, Maria Teresa Corrêa de; JORGENSEN JÚNIOR,
Pedro. Op. cit.
21
Idem, ibidem.
22
Idem, ibidem.
23
Na tradução literal, espaço flutuante.
24
Na tradução literal, bônus de zoneamento.
25
Melhor controle e utilização do solo, menor diferenciação de valorização da terra e das
consequentes desigualdades sociais, assim como aumento da participação da sociedade no
planejamento urbano.
26
REZENDE, Vera F.; FURTADO, Fernanda; OLIVEIRA, Maria Teresa Corrêa de; JORGENSEN JÚNIOR,
Pedro. Op. cit.
27
Idem, ibidem.
28
BRASIL. Procuradoria Geral da República. The Vancouver Declaration on Human Settlements.
Disponível in <http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-
apoio/legislacao/moradia-adequada/declaracoes/declaracao-sobre-assentamentos-humanos-
de-vancouver>
29
Isto ocorre em face de que as resoluções das conferências não possuem caráter mandatório.
30
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 387.047-5, de Santa
Catarina, 2008. Disponível in
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28387047%2EN
UME%2E+OU+387047%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/mcj3kak>
31
FLORIANÓPOLIS. Município. Lei nº 3.338, de 28 de dezembro de 1989. Dispõe sobre a
atualização e alteração da legislação urbana do Município de Florianópolis.
32
PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. Rio
de Janeiro, Elsevier, 2010, p. 414.
33
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n° 387.047-5, de Santa
Catarina, 2008. Grifos dos autores.
34
BRASIL. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, dispõe sobre o Sistema Tributário
Nacional e institui normas gerais de direito tributário aplicáveis à União, Estados e
Municípios.
35
Art. 119, CTN. “Sujeito ativo da obrigação é a pessoa jurídica de direito público,
titular da competência para exigir o seu cumprimento”. Art. 121, CTN. “Sujeito passivo
da obrigação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo ou penalidade
pecuniária”.
36
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 2 ed. São Paulo, Saraiva, 2010, p. 652.
37
Doutrina jurídica é a exteriorização, por exemplo, por meio de livros ou artigos, de
estudos realizados por pessoas da área jurídica que explicam e/ou interpretam o Direito
e seus diversos ramos.
38
BRASIL, 2008. Op. cit. Grifos dos autores.
39
Idem, ibidem. Grifos dos autores.
40
Idem, ibidem. Grifos dos autores.
41
BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário com Agravo nº 658642, de Goiás,
2012. Grifos dos autores.
42
De acordo com o artigo 26 da mesma lei.
43
Op. cit.
44
Idem, ibidem. Grifos dos autores.
45
LANDI, Vagner. Blog Urban Policy and Quatity of Life. Disponível in
<https://engvagnerlandi.com/>
46
SÃO PAULO. Município. Balanço da Outorga Onerosa, da Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Urbano. Disponível in
<http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/desenvolvimento_urbano/participaca
o_social/fundos/fundurb/index.php?p=202443.> O município de São Paulo divulga por meio
de relatórios mensais, por força de lei, informações acerca dos resultados da aplicação
deste e de outros instrumentos de política urbana, em seu sítio na rede mundial de
computadores. Infelizmente, trata-se de um caso raro, pois poucos municípios brasileiros
informam com clareza o resultado da aplicação destas políticas.
47
Cf. NABUT NETO, Abdala Carim. Viabilidade de empreendimentos imobiliários e
incorporações. [online] Disponível in
<https://www.construcaocivil.info/download/Resumo%20de%20Viabilidade%20de%20Empreendim
entos%20Imobiliarios%20-%20Abdala%20Carim%20Nabut%20Neto.pdf> Acesso em: 03 nov. 2017.
sobre os autores
Andréia Leal Ferro é mestranda em Direito pela Universidade Católica de Santos. Pós-
Graduanda em Direito Penal Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra. Pós-Graduada em Direito Militar pela Universidade Cruzeiro do Sul. Advogada.
Bacharel em Direito pela Universidade Municipal de São Caetano do Sul. Consultora
Jurídica no escritório Freitas Vizan Advogados.