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Fotografia eletrônica: uma reinvenção da fotografia (*)


Carlos Fadon Vicente (1993)

A fotografia, tal como outros meios de comunicação e expressão, vem


passando por transformações decorrentes de intrincados processos culturais.
Nessa perspectiva, a fotografia eletrônica pode ser compreendida como uma
reinvenção técnica e estética.

Visão Histórica

É hoje consensual o reconhecimento das múltiplas invenções da fotografia,


atribuídas a Niépce, Daguerre, Florence, Talbot e Bayard. Sua invenção, ou
descoberta se assim preferirmos, está ligada aos processos de reprodução
técnica e respondeu às necessidades de distintos contextos histórico-culturais.
Estes, por sua vez, determinaram seu curso futuro, e nesse sentido é ilustrativo
o caso de Hercules Florence no Brasil.

Ao longo do tempo sucederam-se reinvenções técnicas e estéticas, por vezes


marcadas por atitudes pendulares face às relações entre realidade e fotografia
– esta até então em base essencialmente química. Nessa trajetória, e não por
coincidência, alteraram-se nossa percepção / visão de mundo e o próprio
conceito de fotografia.

Inovações tecnológicas trouxeram uma progressiva automação do aparato


fotográfico (e.g., câmera, filme, processamento de filmes e ampliações). Mais
recentemente vem ocorrendo uma interpenetração com outros meios técnicos,
tais como eletrografia, telecomunicação, vídeo e computação. É nessa vertente
que se situam as origens da fotografia de base eletrônica.

Contexto e Gênese

A inter-comunicação e informatização das sociedades contemporâneas, ainda


que não seja uma ocorrência uniforme nas diferentes culturas, expandiu a
questão fotográfica de início restrita a produção e ao arquivamento de imagens
para a esfera da disseminação e gerenciamento de informação, onde
prevalecem os conceitos de redes de comunicação, bancos de dados e
sistemas multimeios – posteriormente denominada convergência das mídias.
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Pondo de lado, por simplicidade, as aplicações vinculadas ao sensoriamento


remoto terrestre e extraterrestre, a fotografia eletrônica tem sua razão de ser
na aceleração e integração de processos de comunicação. Trata-se de
processos de comunicação científica, industrial e social, com destaque para o
campo editorial.

Esta reinvenção também é múltipla e agora deve ser creditada a equipes de


desenvolvimento no âmbito de empresas e instituições de pesquisa. É de se
notar que as primeiras aplicações comerciais vieram de companhias da área
de vídeo e mais tarde de empresas do ramo fotográfico. A própria
nomenclatura reflete essa duplicidade, indo do still video imaging ao electronic
still photography, mais tarde genericamente dita digital image.

É sintomático o fato do desenho das câmeras de vídeo e fotografia se


aproximarem, notadamente nos modelos amadores, sugerindo ou antecipando
uma dissolução das fronteiras entre cinematografia e fotografia eletrônicas. A
máquina fotográfica tradicional produz e registra a imagem, já sua
contrapartida eletrônica permite a transmissão da imagem, essa função induz à
criação de um canal de realimentação para um editor-diretor de fotografia,
analogamente ao que acontece na televisão – possibilidade pouco explorada
nos hoje populares telefones móveis dotados de câmera.

Química versus Eletrônica?

O advento da fotografia eletrônica não é apocalíptico para a fotografia química.


Ambas permanecem sendo fotografia. Razões econômicas e operacionais
indicam uma convivência e transição entre os dois métodos e não um
antagonismo. Aponta especialmente para uma metamorfose do imaginário
fotográfico, fruto da combinação entre representação e invenção. Nas atuais
circunstâncias o uso da fotografia eletrônica (mais comumente chamada
"fotografia digital" em razão da preponderância de processos digitais na
gravação, transmissão etc.) tende a ser seletivo e progressivo, excetuados os
eventuais modismos e mistificações que costumam acompanhar as "novidades
tecnológicas".
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Concretamente, hoje o impacto maior da eletrônica se faz sentir na expansão


do conceito de realização da imagem, com o deslocamento do eixo de criação-
produção da etapa de registro da imagem para a da manipulação eletrônica,
via computação gráfica, que tem sido chamada impropriamente de pós-
produção. A manipulação eletrônica realça e aprofunda as questões estéticas e
éticas trazidas pela trucagem / montagem química. Por assim dizer, a fotografia
passa por um ponto de mutação, fluida e volátil, tem uma imbricação com o
universo das imagens eletrônicas em geral. De qualquer forma se o futuro está
nos astros, ele também pode ser intuído a partir dos produtos e das estratégias
de atuação de empresas chave nas áreas da imagem e da comunicação
eletrônica.

Rumo ao Futuro

A fotografia eletrônica levanta alguns problemas cruciais: – a matriz fotográfica


se torna de certo modo ausente, isto é, deixa de ter a "materialidade" e o
fetiche associados à fotografia convencional, tornando-se virtual e portanto não
tangível;
– a natureza "perversa" da fotografia – a possibilidade de sua manipulação –
deixa de ser uma possibilidade periférica e passa a ser um assunto central, já
que pode servir à censura, ao patrulhamento ideológico, ao política ou ao
mercadologicamente correto;
– a concepção da imagem, potencialmente mais complexa e sofisticada,
debate-se entre a economia de meios, condensável na velha máxima "menos é
mais", e o gasto maneirismo dos "efeitos especiais", ironizado no dito "mouse
na mão e nada na cabeça".

O fulcro dessas questões é cultural, e não técnico – não existem propriamente


soluções, mas sim mudanças e acomodações:
– o abandono da imagem em papel, uma possibilidade nesse fim de milênio,
pode ser traumática, a memória – o relicário fotográfico – pode no futuro se
resumir, por exemplo, a um pequeno cartão magnético;
– a imagem eletrônica pode ser entendida como a passagem ao limite da
imagem química, em que sua "espessura" tende a zero, levando ao limite a
noção de fotografia;
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– a credibilidade da fotografia é um item complexo e delicado, para não citar


seu uso para fins legais. Trata-se de certo modo de rever uma convenção
cultural, a partir da constatação de que a fotografia envolve a elaboração de
realidade e não uma mera reprodução.

Por fim um comentário sobre os abalos na questão da autoria e nos métodos e


relações de trabalho:
– a observância dos direitos e das responsabilidades autorais permanece
crítica, devendo abarcar as novas possibilidades técnicas de manuseio das
imagens;
– alteram-se os papéis dos personagens envolvidos tanto na fotografia
aplicada como na fotografia de expressão pessoal, sejam eles fotógrafos,
editores, curadores, críticos, clientes, agências, laboratórios etc. com reflexos
nos diversos públicos da fotografia;
– diluem-se as fronteiras de trabalho, tanto na criação como na produção,
tornando anacrônicas as instâncias burocráticas de regulamentação e
delimitação de mercados, ganhando importância a qualidade da educação /
conhecimento dos fotógrafos em geral.

(*) Adaptado de A memória em risco / fotografia eletrônica: técnica, estética,


ética (1990-1991) e publicado originalmente, com algumas diferenças, em
IrisFoto (São Paulo, Editora Iris), ano 46, nº 462, abril de 1993, pp. 48-49.

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