You are on page 1of 10

426 ARTIGO ARTICLE

Metáforas e significados do câncer de mama


na perspectiva de cinco famílias afetadas

Breast cancer metaphors and meanings


from the perspective of five families

Jeane Saskya C. Tavares 1

Leny A. Bomfim Trad 1

Abstract Introdução

1 Instituto de Saúde Coletiva, This article analyzes metaphors and meanings A partir da década de 60 do século XX, emer-
Universidade Federal da
related to breast cancer among families affected gem, com força na problemática social da en-
Bahia, Salvador, Brasil.
by the disease. The first section briefly contextu- fermidade, questões relativas ao modo como
Correspondência alizes the social construction of meanings relat- diferentes grupos sociais assumem o papel de
J. S. C. Tavares
ed to cancer in the 20th century, with the Brazil- enfermos ou à percepção que os indivíduos
Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da ian context as the main reference. The next sec- têm dos sintomas da doença 1. Ambas as ques-
Bahia. Rua Padre Feijó 29, tion discusses meanings ascribed to breast can- tões remetem aos significados atribuídos à
4 o andar, Salvador, BA
cer in five families that included women who saúde e à doença em uma dada sociedade, in-
40110-170, Brasil.
jeanetavares@hotmail.com had received a diagnosis of breast cancer and cluindo aqui o entendimento sobre a causali-
who were (or had been) under in-hospital treat- dade, sintomatologia, estratégia de enfrenta-
ment. The families were part of a qualitative mento, dentre outros.
study on patients in a specialized cancer hospi- É possível distinguir dois grupos de expli-
tal in the State of Bahia. The data analysis cações no que se refere à compreensão acerca
showed differences among the concepts associ- da experiência da enfermidade 1: uma perspec-
ated with cancer and breast cancer, inter-gener- tiva (a) individualista, que reduz o comporta-
ational sharing of ontological interpretations, mento humano diante da enfermidade a ques-
reinterpretation of medical discourse based on tões psicológicas ou (b) uma perspectiva cole-
psychosomatic factors, and notion of cure asso- tivista, para a qual o fator cultural é o núcleo
ciated with clinical discharge. central da análise e enfatiza, portanto, as dife-
renças de valores e atitudes frente às doenças,
Breast Cancer; Disease; Family traduzidas em diferenças de grupos e de clas-
ses sociais, faixas etárias ou etnias.
Uma e outra perspectiva coincidem, entre-
tanto, na compreensão de que a enfermidade
consiste em uma experiência e, assim sendo, é
resultado de uma interpretação 1. A enfermida-
de adquire, portanto, um sentido particular à
medida que é interpretada. Assim, a análise dos
sentidos particulares deve considerar a cons-
trução histórico-social do câncer na configura-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


METÁFORAS E SIGNIFICADOS DO CÂNCER DE MAMA 427

ção destes significados e interpretações indivi- rias, para diagnosticar e tratar a doença. Reve-
duais compartilhados nos diferentes grupos la-se, assim, o caráter fluido e mutável das de-
sociais. No caso específico do câncer, Gimenes 2 finições referentes à doença e aflições dela ad-
destaca que significados e interpretações acer- vindas, que se inscreve em uma complexa di-
ca do câncer e das situações que lhe estão as- nâmica relacional, na qual ganha destaque o
sociadas interferem no processo de enfrenta- papel das redes sociais no processo de orienta-
mento e na adaptação às diferentes fases do ção e sustentação dos significados e comporta-
desenvolvimento e tratamento da doença. mentos frente à doença 5.
O presente artigo analisa metáforas e signi-
ficados construídos em torno do câncer em Câncer: construção histórico-social
uma dupla perspectiva. Em um primeiro mo- dos significados
mento, realiza uma breve incursão histórica
pelo século XX, detendo-se, sobretudo, no con- No século XIX e início do século XX, o câncer,
texto brasileiro, apontando as imagens e signi- além de considerado contagioso, era associado
ficados vinculados ao câncer no decorrer do à falta de limpeza, à sujeira física e moral. Con-
século. Em seguida, são analisados os signifi- siderava-se que, principalmente no caso das
cados do câncer de mama para cinco famílias mulheres, o adoecimento era resultado de “pe-
que tinham entre seus membros mulheres que cados e vícios”, em especial nas práticas se-
haviam recebido diagnóstico de câncer de ma- xuais 6. Como aponta Bertolli Filho 7, entre prá-
ma e que estavam em diferentes estágios da ticas sexuais consideradas “monstruosas”, o
doença e do tratamento num hospital especia- coito bucal era identificado como causa princi-
lizado em oncologia da cidade de Salvador, Ba- pal das neoplasias nas mulheres homossexuais
hia, Brasil. ou bissexuais, formando-se nódulos cancero-
A produção dos significados no âmbito das sos inicialmente na cavidade bucal e trato di-
famílias é analisada aqui a partir da perspecti- gestivo, seguindo-se a disseminação por todo o
va fenomenológica, centrada na experiência organismo. Entretanto, alguns estudos realiza-
prática no mundo cotidiano. Essa concepção, dos no século XIX indicavam a associação en-
cuja origem remonta a Husserl 3, mas que se tre o câncer e pessoas submetidas ao excesso
atualiza em Shultz & Merleau Ponti 4, valoriza a de esforço e atividades, assim como pessoas
produção intersubjetiva de sentidos que se dá sobrecarregadas de emoções que deveriam ser
através dos processos interativos e reconhece o refreadas 8.
corpo como fundamento indiscutível da inser- As orientações sanitárias quanto à etiologia
ção do ser no mundo. e às possibilidades de cura do câncer dissemi-
Para focalizar a experiência da doença, mais nadas pelos órgãos de saúde eram confusas e
precisamente do câncer de mama, desde a óti- divergentes entre si 7. A medicina educadora
ca da fenomenologia, foram especialmente dessa época listava diversos elementos pró-
úteis as contribuições de Alves 1 e Rabelo et al. prios da vida civilizada na era industrial como
5 . Dois pressupostos, apresentados por esses possíveis causas do câncer, destacando-se o al-
autores, constituem um referencial teórico de catrão emanado das vias asfaltadas, a poeira
base na condução da nossa problemática. O das ruas, os gazes liberados pelos motores em
primeiro diz respeito à necessidade de com- funcionamento ou chaminés industriais, a pro-
preensão da experiência subjetiva da enfermi- ximidade constante de geladeiras elétricas e
dade, tendo em vista o seu enraizamento com uso de sapatos apertados ou de saltos altos. A
o contexto cultural. Devendo-se, portanto, con- atitude moralizadora e higienista, encontrada
siderar os processos sociais pelos quais os in- no Brasil nas primeiras décadas do século XX,
divíduos definem e legitimam tal experiência, norteava as ações dos órgãos de saúde pública,
assim como, comunicam e negociam os signi- que, como estratégia de intervenção sanitária
ficados relativos a ela para os demais 5. para o câncer, a tuberculose e a sífilis, aconse-
O segundo pressuposto justifica a ênfase lhavam o isolamento e desinfecção minuciosa
em torno dos processos interativos em estudos das residências em caso de morte dos doentes.
que focalizam a experiência de doença e cura Associando-se o câncer à pobreza e à sujei-
em contextos médicos plurais, uma vez que, ra física e moral, os enfermos dessa terrível mo-
nesses casos, os indivíduos percorrem diferen- léstia eram duplos inimigos da sociedade, pois
tes instituições terapêuticas e se utilizam, via não contribuíam para a produção de riqueza
de regra, de abordagens, por vezes contraditó- coletiva e oneravam os cofres públicos do Esta-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


428 Tavares JSC, Trad LAB

do e os privados da filantropia 7. O paciente de logia. A medicina oficial começou a admitir a


câncer, além de moralmente deturpado, era possibilidade de participação de fatores inter-
considerado um cidadão que não assumia sua nos (psicológicos) para o desenvolvimento do
parcela de responsabilidade social, pois deixa- câncer.
va propositadamente de seguir as regras de hi- Como analisa Sontag 8, a noção moraliza-
giene. dora do câncer como castigo que se ajusta ao
Entretanto, numa interpretação benéfica pecador, tão comum no século XIX e nas três
do adoecimento, esse era um castigo através do primeiras décadas do século XX, foi sendo gra-
qual o moribundo poderia alcançar a reden- dativamente substituída pela noção de que a
ção, caso houvesse resignação diante da dor e doença ajusta-se e exprime o caráter do pacien-
do sofrimento. Conforme discute Sant’Anna 6, te. Se, no primeiro caso, a doença era vista co-
seguindo essa concepção, para o doente, era in- mo uma resposta a uma conduta desregrada de
dicado o estoicismo, a temperança diante das indivíduos, cujos comportamentos e emoções
aflições da vida, conforme o ideal de equilíbrio eram desmedidos, na segunda, a causa estaria
e refreamento preconizados na época. Padecer relacionada justamente com a contenção do
de câncer era sofrer um castigo “redentor”, que desejo ou não-expressividade das emoções.
resultava em libertação, elevação espiritual pa- Nessa concepção, o candidato ideal ao cân-
ra o doente e sacralização do seu corpo. cer tem a personalidade marcada pela passivi-
Em relação à atitude dos médicos, durante dade, pouca emotividade, regularidade dos há-
a primeira metade do século passado, conside- bitos, baixa agressividade ou negação da hosti-
rava-se um ato de crueldade informar ao pa- lidade, depressão e dificuldade na formação de
ciente o diagnóstico ou os efeitos dos medica- vínculos afetivos. Nesse momento, já não se
mentos utilizados e apenas à família eram da- considera mais o pecado ou a elevada carga de
das essas informações. Dessa forma, mulheres atribuições responsável pelo desenvolvimento
com câncer de mama tinham acesso a pouca da doença, mas sim um tipo de personalidade
ou nenhuma informação especializada sobre específica do próprio homem – o chamado “Ti-
seu estado de saúde, viam-se diante de uma po C” 11. Uma personalidade mal-adaptada,
conspiração silenciosa entre sua família e a oposta ao consumismo e produtividade exigidos
equipe médica, contando com pouco suporte pela sociedade neoliberal do fim do milênio.
social além do oferecido pelos familiares 9. Além Argumentos a favor dos aspectos psíquicos
da desinformação e passividade, eram freqüen- na etiologia do câncer já existiam desde a me-
tes as complicações pós-cirúrgicas como linfe- dicina galênica, no entanto, é na segunda meta-
dema do braço afetado, depressão, ansiedade, de do século XX que a interpretação psicosso-
diminuição da auto-estima e das funções física mática da doença ganha notoriedade, e novas
e sexual das pacientes mastectomizadas 10. formas de interpretação sobre etiologia e de
Fazem parte, portanto, da história do en- enfrentamento do câncer são indicadas. São
frentamento do câncer até os anos 40 do sécu- clássicos os métodos de tratamento e estudos
lo XX o pudor, a vergonha, o isolamento e o si- que associam o câncer às características de per-
lêncio, que afetavam particularmente as mu- sonalidade e indicam tratamentos baseados na
lheres com câncer de mama, ameaçadas pela espontaneidade e liberação de sentimentos “ne-
mutilação de um dos principais símbolos de gativos” acumulados, estímulo a vencer o cân-
sua feminilidade. No entanto, a partir dos anos cer através de uma atitude mental positiva, al-
50, ocorreram mudanças consideráveis nos sig- teração da autopercepção e manutenção de ní-
nificados e formas de enfrentamento do cân- veis altos de qualidade de vida.
cer socialmente recomendados. É esperado e estimulado o papel ativo do
Essas mudanças foram incentivadas pelos doente, que de vítima passou a ser agente de
movimentos sociais em defesa dos direitos das sua cura. Enfrentar o câncer nesse momento
mulheres, mas deveram-se, em grande parte, histórico, particularmente para os homens, im-
aos avanços nos métodos de diagnóstico e tra- plicava em lutar brava e diariamente, em co-
tamento (associação entre quimioterapia e ra- nhecer seu próprio corpo, sua subjetividade e,
dioterapia), que possibilitaram o aumento do principalmente, falar, expor sua doença e his-
número de sobreviventes e do tempo de sobre- tória de vida. No caso específico do câncer de
vida dos pacientes. O acompanhamento pro- mama, apenas a partir da década de 70, seguin-
longado desses pacientes indicou a necessida- do um movimento internacional, as experiên-
de de lhes proporcionar boa qualidade de vida cias das mulheres mastectomizadas passaram
e a importância do estudo das repercussões e a receber atenção especial pela mídia 6.
adaptação psicossociais dos pacientes, de suas Essa mudança nos significados e formas de
famílias e dos profissionais de saúde em onco- enfrentamento do câncer contribuiu para o de-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


METÁFORAS E SIGNIFICADOS DO CÂNCER DE MAMA 429

senvolvimento de novas teorias e tratamentos bida e da esperança de cura perfeitamente iden-


mais eficientes, aumento da capacidade de ge- tificáveis. Nesse sentido, a despeito dos avan-
renciamento do estado de saúde e elevação da ços tecnológicos, observa-se a coexistência e
qualidade de vida do doente. Porém, a concep- atualização das diferentes noções e significa-
ção de que o caráter do doente é responsável dos históricos apresentados, que são particu-
pelo desenvolvimento do câncer pode mostrar- larmente construídos, legitimados e comparti-
se tão ou mais punitiva que a noção da doença lhados no âmbito familiar acerca do câncer e
como castigo. De certa forma, os argumentos sua cura. Os dados extraídos do estudo empíri-
morais e sexuais são mantidos e atualizados na co, que apresentaremos mais adiante, reforçam
incapacidade dos doentes em aceitar e expri- essa hipótese de atualização desses significa-
mir seus próprios desejos 8. dos e um certo grau de hibridização. Ou seja,
No século XXI, apesar de todo o avanço al- aos velhos significados somam-se outros, cons-
cançado nas pesquisas dos fatores genéticos, truídos intersubjetivamente a partir da expe-
em seu diagnóstico e tratamento, o câncer per- riência da doença.
manece como uma doença de causa obscura e
cujo tratamento ainda não é totalmente eficaz.
A literatura médica e as campanhas governa- Metodologia
mentais realizadas neste novo milênio desta-
cam o papel da determinação genética e as re- Tal como pontua Minayo 14, as categorias saú-
percussões da “vida moderna” associando-os de ou doença trazem uma carga histórica, cul-
aos fatores de risco para o desenvolvimento tural, política e ideológica que não pode ser
dos tumores da mama 12. contida apenas numa fórmula numérica ou
Nos meios de comunicação e propagandas num dado estatístico. Nesse sentido, ao buscar
governamentais, a organização e hábitos da vi- conhecer os significados associados ao câncer
da urbana são novamente responsabilizados de mama compartilhados nos grupos familia-
por expor os indivíduos aos fatores ambientais res de mulheres com essa doença, privilegia-
que atacam o organismo do homem moderno: mos uma abordagem metodológica de cunho
a ingestão de anticoncepcionais e gravidez tar- etnográfico.
dia, fumo, emissão de raios, dietas alimentares, Foram adotados os seguintes procedimen-
produtos industrializados, poluição, alimentos tos de coleta de dados:
alterados geneticamente, numa extensa lista (a) Ficha de consulta aos prontuários médicos
de possíveis agentes carcinogênicos. A desor- – para coleta sistemática das informações rele-
dem genética que gera o câncer está associada vantes sobre diagnóstico e estadiamento do
à modernidade, numa atualização das consi- câncer de mama, histórico e quadro clínico no
derações sobre a “vida civilizada” do início do início da pesquisa, tipo de tratamento propos-
século XX. to/realizado, doenças prévias, observações da
Nessa breve exposição histórica, percebe- equipe de saúde sobre a evolução da paciente.
se que o câncer tem sido associado à dor, à (b) Roteiro de entrevista semi-estruturada –
morte, à culpa, ao medo e, sobretudo, à estig- enfocando os dados de identificação dos entre-
matização social. A alta incidência, as reper- vistados, histórico de experiências anteriores
cussões psicossociais e as incertezas quanto à da família com outras doenças e com o câncer,
etiologia e ao tratamento revestem o câncer de modelos explicativos desenvolvidos pela famí-
valor simbólico especial, situando-o, no Oci- lia sobre o câncer, seu tratamento e enfrenta-
dente, como um dos mais “perigosos e enigmá- mento, alterações da rotina familiar e emoções
ticos” males, uma doença metáfora 8. experimentadas após o diagnóstico de câncer,
Os objetos de medo mais profundos são estratégias adotadas para lidar com o diagnós-
identificados com o câncer, que passa a adjeti- tico/tratamento do câncer, expectativas quan-
var, tornando-se ele mesmo uma metáfora: os to ao tratamento, planos e avaliação do grupo
sentimentos relacionados com o mal são pro- sobre seu futuro.
jetados no câncer, e esse – enriquecido de sig- (c) Genograma – em um plano mais geral visou
nificados – é projetado no mundo 8. É, portan- traçar a genealogia familiar, permitindo, no seu
to, uma doença sobrecarregada de significa- desenvolvimento e análise, tal como sugere
dos, que tentam dar sentido e, por fim, contro- McDaniel et al. 15, a identificação de eventos
lar, ainda que ilusoriamente, a doença, a vida e disruptivos associados com adoecimento na
a morte. família, assim como, a apreensão de mitos e
Concordando com Laplantine 13, mesmo padrões familiares relativos ao processo saúde-
considerando a variabilidade individual e so- doença. Simultaneamente, elaboravam-se “li-
cial, existem permanências da experiência mór- nhas de tempo” nas quais eram dispostos cro-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


430 Tavares JSC, Trad LAB

nologicamente os principais fatos relacionados o consentimento das pacientes, procedeu-se à


à saúde na história de cada família. observação nos domicílios acompanhada das
É importante salientar que, durante as en- entrevistas individuais e/ou grupais, de acordo
trevistas, houve o cuidado de utilizar inicial- com a disponibilidade das famílias.
mente o termo “problema de saúde” em vez de O processo de análise de dados baseou-se
câncer de mama, sendo que o mesmo era subs- na abordagem hermenêutica proposta por Mi-
tituído pelos termos utilizados pelo paciente nayo 14, que enfatiza a necessidade de ultra-
ou familiares para designar o câncer. passar-se a incerteza em relação à leitura e per-
Os participantes deste estudo foram sele- cepção do pesquisador sobre o conteúdo cole-
cionados entre famílias de pacientes atendidos tado. Dessa forma, após audição e leitura exaus-
no Hospital Aristides Maltez (HAM), uma insti- tiva das entrevistas, buscou-se compreender
tuição filantrópica especializada em oncologia, significações, conteúdos e estruturas latentes
centro de referência em assistência médica, relacionados com três categorias principais de
pesquisa e ensino, localizada na cidade de Sal- análise: concepções sobre a enfermidade, a
vador. A identificação de possíveis participan- etiologia e a cura do câncer; levando em consi-
tes se deu através de consultas em prontuários, deração o contexto sócio-cultural no qual es-
aos profissionais do serviço de psicologia da ses elementos estavam inseridos.
instituição, apresentação da pesquisa nos gru- No processo de sistematização e análise
pos de atendimento às famílias de pacientes dos dados, utilizou-se como ferramenta com-
terminais e de mulheres mastectomizadas, plementar o programa QSR-NUDIST – Vivo
além de indicações das próprias pacientes. (Qualitative Solutions & Research – Nonnume-
Procurou-se incluir pacientes com diferen- rical, Unstructured Data) que permite a siste-
tes perfis de evolução, tempo de doença, estru- matização e o gerenciamento de dados etno-
tura familiar e funcionamento social. Por isso, gráficos digitalizados, substituindo os sistemas
foram utilizados como critérios de inclusão das de classificação por meio de fichas, sendo de
pacientes: idade entre 18 e 65 anos, recebimen- responsabilidade do(s) pesquisador(es) a cria-
to do diagnóstico há menos de 10 anos e resi- ção e interpretação das categorias analíticas.
dência na cidade de Salvador. Não foram in- Tendo em vista o recorte deste artigo, que
cluídos pacientes ou familiares que apresen- adota como unidade de observação e análise a
tassem distúrbios orgânicos cerebrais, estados família, as narrativas selecionadas não buscam
psicóticos secundários ao abuso de drogas (in- enfatizar a percepção de nenhum dos seus
cluindo álcool) ou deficiência mental já diag- membros de forma particular; pretende, antes,
nosticada. apreender como o problema é percebido e de-
Foram considerados “familiares” aqueles re- finido nas famílias.
feridos pela paciente como tal, indicando víncu- Por fim, ressalta-se que foram cumpridas
lo biológico, afetivo ou de conjugalidade com a todas as determinações da Resolução 196/96
mesma, independente de existir vínculo jurídico. (Conselho Nacional de Saúde – CNS) sobre pes-
A família é, dessa forma, considerada um grupo quisa com seres humanos e que a coleta de da-
social, cujos membros mantêm um sistema de dos iniciou-se após aprovação do protocolo e
relações significativas entre si 16, do qual a pa- projeto, elaborados de acordo com as diretri-
ciente com câncer de mama é um dos membros. zes do CNS, pelo Comitê de Ética em Pesquisa
As cinco famílias selecionadas para o estu- (CEP) da instituição em que o estudo foi reali-
do tinham, entre seus membros, uma mulher zado. Nesse sentido, os nomes utilizados para
que havia recebido diagnóstico de câncer de identificação dos informantes são fictícios.
mama e que esteve ou estava em tratamento
no hospital. Ao todo, foram entrevistadas 21
pessoas, sendo 5 pacientes e 16 familiares. A Resultados e discussão
idade das pacientes variou entre 46 e 52 anos,
em sua maioria estavam casadas há mais de 20 Concepções sobre a enfermidade:
anos e tinham 2 ou 3 filhos. Exceto no caso da o câncer versus o câncer de mama
família A, os filhos das pacientes estavam na
fase da adolescência ou eram adultos jovens na Um primeiro aspecto a destacar com relação às
época do recebimento do diagnóstico de cân- concepções sobre o câncer nas famílias estu-
cer de mama. dadas, extraído a partir da análise dos genogra-
As primeiras entrevistas foram realizadas mas, refere-se ao compartilhamento intergera-
na própria instituição, respeitando as normas e cional dos significados no interior das famílias.
rotinas dos atendimentos médicos e psicológi- Observou-se uma convergência de percepções
cos oferecidos aos pacientes e familiares. Após entre os membros das famílias das diferentes

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


METÁFORAS E SIGNIFICADOS DO CÂNCER DE MAMA 431

faixas etárias sobre a letalidade do câncer e o pelos participantes conforme o tipo de câncer
sofrimento provocado pelo tratamento. em questão:
Nos depoimentos dos participantes, perce- “(...) se não cuidar mata. Morre como qual-
beu-se a diferenciação entre o que entendem quer outra doença, tem doenças piores. (...) se
por câncer, a doença maligna, e o câncer de ma- ele não for agressivo demais você convive com
ma, uma manifestação branda da doença. Nas ele muitos anos. Eu, um dia, fui a uma reunião
caracterizações sobre o câncer, houve o predo- lá (no hospital) tinha uma senhora com vinte
mínio do que Laplantine 13 denomina de mo- anos de mastectomizada... a não ser que ele seja
delo ontológico de interpretação da doença, ou agressivo demais, você viu Mário Covas com to-
seja, o câncer é identificado como um “ser”, o da força, e muita, foi embora, né?” (Ivan, mari-
“flagelo”, a “coisa” que invade, degenera o cor- do de paciente, 52 anos).
po e transforma o paciente num não-ser. Vale Essa percepção é associada, nos depoimen-
notar que as definições mais radicais e enfáti- tos, à possibilidade de esconder os efeitos da
cas sobre o câncer como doença fatal e asso- doença e da mastectomia. A “invisibilidade”
ciada a sofrimento insuportável foram encon- dos resultados da cirurgia e a sobrevivência das
tradas nas famílias nas quais havia casos de pacientes são considerados fatores que mini-
morte por câncer ou de pacientes com metás- mizam a gravidade desse tipo de câncer, pois
tase e na fase terminal da doença. não expõe a paciente à vergonha e ao precon-
Os relatos das famílias coincidem, como ceito. Por não ser um órgão de importância vi-
aponta Sant’Anna 6, com a imagem do câncer tal, a crença de que a retirada da mama promo-
encontrada em grande parte dos depoimentos ve a resolução imediata da doença também
e na literatura sobre o tema: bicho que devora o contribui para a percepção de menor gravida-
corpo do paciente. Os participantes referem-se de desse tipo de câncer.
a uma sentença de morte, uma doença mortal e No entanto, o sofrimento causado pelas re-
de rápida evolução, uma doença traiçoeira, uma percussões da quimioterapia e da mastectomia
espécie de inimigo latente que se desenvolve para auto-imagem da mulher e na sexualidade
com extrema rapidez após ser descoberto. De do casal é reconhecido pela maioria dos parti-
modo geral, são usados adjetivos radicais, asso- cipantes. As marcas deixadas no corpo pela
ciados ao terror e recobertos por mistério. mastectomia impressionam, e tanto pacientes
“Ai! Câncer é uma praga, é uma.... é uma quanto familiares evitam visualizá-las:
miséria viu? (...) é horrível a metástase come o “(...) eu tava olhando o processo feio que é o
corpo (...) eu acho que é pior do que a AIDS, por- processo cicatricial então isso mexe comigo en-
que a AIDS por mais que... por ser um vírus que tendeu? ... aquele medo assim da... da do seu
não tenha cura, mas prolonga a vida muito ... corpo daquela mudança que é uma retirada é
não tem uma rapidez como o câncer, o câncer de um processo de extração de uma parte de seu
uma hora pra outra a metástase já tá comendo corpo que você gosta, que você não quer que tire
seu... seu... seu estômago, já tá pro fígado come e que se você mesmo reconstituindo não vai fi-
(...) então corrói tudo de uma hora pra outra” car a mesma coisa, não vai ficar perfeito como
(Carla, filha de paciente, 22 anos). era entendeu? (...) porque você fica usando uma
Esses resultados concordam com as pesqui- prótese de silicone, eu acho que até na, na sua
sas nacionais e internacionais realizadas sobre vida se você tem um parceiro... deixa a mulher
o tema, nas quais o câncer é representado co- inibida aquela coisa da queda da auto-estima”
mo algo negativo, invasivo, traumático, limitan- (Ingrid, filha de paciente, 20 anos).
te, que remete ao medo e à dor tanto para os Devido à dor e ao sofrimento gerados, a
pacientes quanto para os familiares. Esses sig- quimioterapia parece receber o status de doen-
nificados podem ser uma das causas da cons- ça. Isso porque, na maioria dos casos, foi esse
tante utilização de figuras de linguagem para tratamento a principal fonte de sofrimento de-
referir-se ao câncer, dos pactos de silêncio de- vido à despersonalização e estigmatização pa-
senvolvidos intra e extra grupo familiar, da evi- ra pacientes e familiares:
tação de comportamentos preventivos e para a “O que eu sabia que eu tava com câncer era
tendência a postergar a busca pelo diagnóstico. exatamente as quimioterapias que eu tomava,
Contrariamente ao termo câncer, o câncer porque eu me olhava no espelho e via uma cria-
de mama foi identificado como uma forma de tura totalmente sem um fio de cabelo, sem so-
câncer de menor periculosidade, um mal menor brancelha, sem cílio, quer dizer... você não se
quando comparado à manifestação em outros sente nem mulher, sabe? (...) Quando você olha
órgãos. Dessa forma, embora haja ênfase do pro teu corpo que você não vê um pêlo no teu
câncer como doença fatal e com aspectos so- braço, um pêlo em canto nenhum do teu corpo,
brenaturais, o perigo da doença é relativizado aí você olha pro espelho ai você não vê sobran-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


432 Tavares JSC, Trad LAB

celha, você não vê cílio, quer dizer... poxa você Entre as famílias estudadas, as explicações
tá.... diante de um mostro, é esquisito, é feio. (...) psicossomáticas foram as que receberam maior
Era outra pessoa que estava ali, não era Alana, ênfase. No surgimento do câncer, destacam-se
não era Alana-alegria, não era Alana-mãe, não como deflagradores da doença o “sofrimento
era Alana que gostava de brincar tá entenden- retido”, o “guardar rancor”, a “amargura”:
do? Era uma coisa que estava ali fingindo que “Porque eu, eu tenho pra mim que o câncer
era Alana (...)” (Alana, paciente, 49 anos). da minha mãe foi um problema psicológico (...)
ela carregou muito assim a responsabilidade de
Etiologia do câncer dentro de casa, porque meu pai ficou desempre-
gado durante quase dez anos (...) Isso tudo foi
Nas explicações dos participantes acerca da mexendo e segundo os estudiosos tudo o que a
etiologia do câncer de mama, pode-se obser- mulher absorve, a mama que pega isso né? Que
var a combinação entre o desequilíbrio interno é a parte mais sensível da mulher (...) O psicoló-
(psíquico), social (particularmente na relação gico dela, ela, ela absorveu muito essas coisas”
com familiares), espiritual e biológico. Mescla- (Elisa, filha de paciente, 25 anos).
das aos argumentos biomédicos, foram identi- “(...) Tudo que eu sofria ficava calada e não
ficadas noções do câncer como castigo pelo pe- contava a minha família entendeu? Guardava,
cado, como fruto da sobrecarga de emoções e um dia explode né? Como se diz mesmo? Você
trabalho e expressão do caráter da paciente, de guarda, guarda, guarda um dia aparece né isso?
modo geral, em desequilíbrio com a sociedade (...) minha doença foi toda isso viu? O desgosto
em que vive. da minha vida mesmo guardando, guardando,
Ao se referirem aos aspectos biológicos do guardando acaba nisso. A doença tava retida,
câncer, os participantes apropriam-se do dis- acho que tudo isso desgosto de família mesmo
curso médico com o qual tiveram contato não entendeu?” (Célia, paciente, 54 anos).
só durante o tratamento das pacientes, como Embora seja comum a descrição do “Tipo
também através da literatura especializada e C” de personalidade, nas explicações que con-
propagandas veiculadas pelos meios de comu- sideram aspectos psicossomáticos, o câncer é
nicação. Foram citados elementos como trau- associado aos sentimentos considerados “nega-
mas físicos (queda/ pontapé, relatados pelos tivos” pelos entrevistados. Parece que qualquer
participantes com baixa escolaridade), a idade comportamento ou traço de personalidade ava-
das pacientes (acima de 35 anos), a heredita- liados como prejudiciais para os participantes
riedade, sendo essa relacionada tanto à con- são associados à gênese do câncer. Dessa for-
sangüinidade como à ocorrência de outros ca- ma, são apontados não só traços depressivos e
sos de câncer na família: melancólicos da personalidade de quem adoe-
“Não, nem me passou pela cabeça [preven- ce como também traços de ansiedade e agressi-
ção do câncer de mama], e principalmente de vidade como possíveis causas do adoecimento.
mama porque muita gente diz que... é hereditá-
rio né? E quando... é difícil ter uma pessoa ter A cura do câncer
câncer de mama se não tiver alguém na família
e até agora na família não... não tem ninguém, Prevalece nas famílias estudadas a noção do
eu sou a primeira. E até que o de bexiga, como é câncer como doença incurável atualmente. No
hereditário, eu podia... eu ficava assim ‘meu entanto, indicam esperança no desenvolvimen-
Deus eu tenho que me cuidar’. Eu faço preventi- to científico e tecnológico que promovam a cu-
vo todo ano, eu tenho que me cuidar porque ra e destacam aspectos que favoreceriam me-
possa a ser que venha acontecer, agora de ma- lhores resultados no tratamento e prevenção
ma não, de mama eu não esperei que viesse como a associação entre tratamentos médicos
acontecer” (Sônia, paciente, 45 anos). e espirituais, e comportamentos voltados para
Nas explicações espirituais, há ênfase na promoção da saúde.
predestinação, na vontade de Deus e no peca- Os comportamentos que, segundo os parti-
do como aspectos decisivos no adoecimento. cipantes, poderiam prevenir o surgimento ou a
Para os participantes, a surpresa e a dificulda- recidiva do câncer relacionam-se principal-
de de aceitar o adoecimento são geradas pelo mente ao fato de cuidar-se e à manutenção de
fato de a paciente ser considerada uma “boa elevada qualidade de vida. O que significa de-
pessoa”. Na maioria dos casos, considerou-se senvolver hábitos saudáveis relacionados à ali-
que a paciente não deveria ter adoecido, uma mentação e a atividades físicas semanais, as-
vez que não havia cometido um “erro” tão gra- sim como melhoria nas relações sociais.
ve que provocasse o câncer, e, portanto, geras- Corroborando as observações anteriores
se culpa e sofrimento merecidos. sobre a diferenciação entre câncer e câncer de

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


METÁFORAS E SIGNIFICADOS DO CÂNCER DE MAMA 433

mama, exceto na família de Alana, a cura do é, portanto, um conhecimento recorrente e pro-


câncer de mama é considerada possível e foi al- cessual, isto é, um conhecimento continuamen-
cançada através do tratamento médico. Esse ti- te reformulado e reestruturado em cada pro-
po de câncer não é reconhecido como manifes- cesso interativo específico, resultante da varie-
tação de uma doença crônica, prevalecendo, dade de explicações individuais oferecidas pa-
entre os entrevistados, a noção de que a pa- ra cada enfermidade.
ciente já alcançou a cura, pois não está mais Através da interpretação da sua experiên-
em tratamento hospitalar. Dessa forma, ao mi- cia, a pessoa adquire um sentido dentro da
nimizar o perigo e a letalidade do câncer de compreensão humana para sua enfermidade.
mama, nega-se também a necessidade de alte- Cada doença traz um novo sentido à pessoa, a
rações comportamentais imediatas nas práti- enfermidade significa, conforme relembra Al-
cas de cuidados com a saúde. ves 1 (p. 269): “as impressões sensíveis, como
Entretanto, ainda que as famílias reconhe- uma matéria bruta, só serão organizadas se
çam e enfatizem a cura nos casos em que hou- apreendidas num significado que as torne com-
ve sucesso no tratamento e evolução positiva preensíveis.”
no quadro clínico, chama atenção a ansiedade Além disso, ao registrar a tendência entre os
compartilhada por todos os participantes gera- familiares a considerar que o câncer de mama
da pela ameaça constante de recidiva da doen- se limitou ao período de crise e que as pacien-
ça, ameaça de surgimento e morte entre os tes não eram portadoras de uma doença crôni-
membros da família: ca, os resultados desta investigação indicaram
“(...) Quem será a próxima vítima? Na árvo- a necessidade de melhor entendimento das
re genealógica já foi minha avó, minha tia, mi- noções de ser ou estar doente desenvolvidas
nha mãe. Será se é minha irmã, se a gente vai por famílias de pacientes. Isso porque, assim
ter, quando vai ter, entendeu? Sei lá, fica uma, como os outros significados, esses podem estar
uma interrogação, uma agonia” (Ingrid, filha associados ao pouco cuidado de si e das mu-
de paciente, 20 anos). lheres enfermas.
Considerando as metáforas utilizadas pelos Vale salientar que, embora seja importante
participantes para o câncer e seu principal mé- que a população e os profissionais de saúde re-
todo de tratamento, percebe-se que, como conheçam a contribuição dos fatores psicoló-
apontam Alves & Rabelo 17, esse é o meio por gicos na etiologia e no tratamento do câncer, a
excelência de fabricação de imagens sugestivas interpretação linear e superficial da relação en-
das concepções e valores existentes sobre a ex- tre personalidade e câncer pode ser altamente
periência da enfermidade. Observa-se que os prejudicial. Como aponta Sontag 8, entre as
significados sobre o câncer de mama para as possíveis conseqüências danosas desse tipo de
famílias pesquisadas resultam de processos de interpretação está o enfraquecimento da capa-
reinterpretação e filtragem do discurso biomé- cidade de compreensão do alcance do cuidado
dico, aliado a sentidos presentes no imaginário médico, que dificulta a adesão do paciente ao
social sobre a enfermidade, historicamente tratamento, pois o ônus da doença lhe é atri-
construídos. Deve-se ressaltar ainda o caráter buído.
dinâmico dos significados apreendidos, posto Aliado a isso, a “responsabilidade” do pa-
que eles se transformavam ao longo da trajetó- ciente pelo adoecimento implícita nessa con-
ria da enfermidade. cepção pode gerar culpa e condená-lo a ser
também o responsável por sua cura, entendida
como resultado da sua capacidade de ter amor-
Considerações finais próprio. A mesma autora destaca que a princi-
pal vantagem em centralizar o processo de
A compreensão da enfermidade pelos atores adoecimento no caráter do doente seria garan-
sociais dá-se numa dupla dimensão temporal: tir algum controle, uma forma de triunfar, ain-
ocorre tanto em decorrência das mudanças da da que momentaneamente sobre a própria
doença no decorrer do tempo, quanto das rein- morte, que, em última instância, passa a ser
terpretações acerca dessa por parte dos atores também um fenômeno psicológico.
envolvidos. Ou seja, a cada fase da doença Por outro lado, como adverte Kleinman 18,
emergem novos significados relativos a causas situar a origem do problema de saúde no indi-
ou possibilidades de cura. víduo apresenta algumas limitações importan-
São interpretações que ocorrem dentro de tes. Sob essa ótica, a responsabilidade da doen-
um conhecimento construído através de um ça (illness) recai principalmente (embora não
ciclo de referências que inclui a família, as ami- totalmente) sobre o paciente. Essa crença é co-
zades, a vizinhança e os terapeutas. A doença mum em especial no mundo Ocidental, esti-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


434 Tavares JSC, Trad LAB

mulada por programas do governo de educa-


ção para a saúde, e os problemas de saúde são
atribuídos, cada vez mais, à “negligência” com
relação à alimentação, ao vestuário, à higiene,
ao estilo de vida, a relacionamentos, exercício
físico e aos vícios – fumo e álcool. O problema
de saúde passa a ser visto como uma evidência
dessa negligência, e a vítima deve sentir-se cul-
pada por tê-lo provocado.

Resumo Colaboradores

O presente artigo analisa metáforas e significados J. S. C. Tavares conduziu a pesquisa que derivou no
construídos em torno do câncer de mama por famílias artigo, redigiu a maior parte do conteúdo do artigo
afetadas por essa enfermidade. A primeira parte do ar- enviado, participou do processo de revisão do artigo
tigo apresenta uma breve contextualização da cons- (versões 1, 2 e 3), colaborou na redação da carta de
trução social dos significados do câncer no decorrer do resposta ao editor. L. A. B. Trad orientou o desenvol-
século XX, tendo como referência principal o contexto vimento da pesquisa que derivou no artigo, sugeriu a
brasileiro. Posteriormente, são analisados os significa- concepção geral do artigo, redigiu segmentos do arti-
dos atribuídos ao câncer de mama por cinco famílias go, conduziu o processo de revisão do artigo (versões
que tinham, entre seus membros, mulheres que ha- 1, 2, 3), redigiu a carta de resposta ao editor em cola-
viam recebido diagnóstico positivo para o câncer de boração com a outra autora.
mama e que estiveram ou estavam em tratamento
hospitalar. Essas famílias integraram um estudo qua-
litativo realizado na Bahia, com pacientes de um hos-
pital especializado em câncer. Na análise dos dados,
identificaram-se: diferenças entre as concepções asso-
ciadas ao câncer e ao câncer de mama, compartilha-
mento intergeracional de interpretações ontológicas,
reinterpretação do discurso médico a partir de consi-
derações psicossomáticas, além da noção de cura asso-
ciada à alta médica.

Câncer de Mama; Doença; Família

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005


METÁFORAS E SIGNIFICADOS DO CÂNCER DE MAMA 435

Referências

1. Alves PC. A experiência da doença: considerações 11. Carvalho VA. Personalidade e câncer. In: Carva-
teóricas. Cad Saúde Pública 1993; 3:263-71. lho MMJ, organizador. Introdução à psico-on-
2. Gimenes MG. A pesquisa do enfrentamento na cologia. Campinas: Editorial Psy; 1994. p. 65-78.
prática psico-oncológica. In: Carvalho MMJ, or- 12. Instituto Nacional do Câncer. A epidemiologia do
ganizador. Psico-oncologia no Brasil: resgatando câncer. http://www.inca.org.br (acessado em 09/
o viver psico-oncologia. São Paulo: Summus; Nov/2003).
1998. p. 232-46. 13. Laplantine F. A antropologia da doença. São
3. Huserl E. The crisis of European sciences anda Paulo: Martins Fontes; 1991.
transcendental phenomenology. Evanston: North- 14. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pes-
western University Press; 1970. quisa qualitativa em saúde. São Paulo: Editora
4. Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. Hucitec; 1992.
São Paulo: Martins Fontes; 1994. 15. McDaniel SH, Hepworth J, Doherty WJ. Os de-
5. Rabelo MCM, Alves PC, Souza IM. Experiência de safios da doença crônica. In: McDaniel SH, Hep-
doença e narrativa. Rio de Janeiro: Editora Fio- worth J, Doherty WJ, organizadores. Terapia fa-
cruz; 1999. miliar médica. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.
6. Sant’Anna DB. A mulher e o câncer na história. p. 179-204.
In: Gimenes MG, organizador. A mulher e o cân- 16. Cerveny C. A família como modelo: desconstru-
cer. São Paulo: Editorial Psy; 1997. p. 43-70. indo a patologia. São Paulo: Editorial Psy; 1994.
7. Bertolli Filho C. Fontes para o estudo do câncer 17. Alves PC, Rabelo MC. Significação e metáforas:
em São Paulo. In: Temas em Psico-oncologia, III aspectos situacionais no discurso da enfermida-
Encontro e I Congresso de Psico-oncologia. São de. In: Pitta AMR, organizador. Saúde e comuni-
Paulo: Medina; 1996. p. 8-12. cação. São Paulo: Editora Hucitec; 1995. p. 217-35.
8. Sontag S. La enfermidad y sus metáforas y el sida 18. Kleinman A. Concepts and a model for the com-
y sus metáforas. Madrid: Taurus; 1996. parasion of medical systems as cultural systems.
9. Holland JC. Historical overview. In: Holland JC, In: Currer C, Stacey M, editor. Concepts of health
Rowland JH, editors. Handbook of psychooncolo- illness and disease. A comparative perspective.
gy: psychological care of the patient with cancer. New York: Berg Publishers; 1986. p. 29-47.
New York: Oxford University; 1990. p. 3-12.
10. Rowland JH, Holland JC. Interpersonal resources: Recebido em 24/Set/2003
social support. In: Holland JC, Rowland JH, edi- Versão final reapresentada em 03/Set/2004
tors. Handbook of psychooncology: psychologi- Aprovado em 20/Set/2004
cal care of the patient with cancer. New York: Ox-
ford University; 1990. p. 58-71.

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 21(2):426-435, mar-abr, 2005

You might also like