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CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, quarta-feira, 21 de janeiro de 2009 • 25


Edilson Rodrigues/CB/D.A Press

CIDADES

RENATO,
ADOTADO HÁ
UM MÊS, JÁ
SE ADAPTOU
À CASA NOVA E
VIVE CERCADO
DE BRINQUEDOS
E CARINHO DOS
PAIS

Pouco mais de oito meses depois de ser abandonado em Ceilândia, o menino de perninhas grossas e
cabelos lisos ganha um lar. Ele estava em um abrigo e foi adotado por um casal que mora em Taguatinga

A SEGUNDA VIDA DE RENATO


MARCELO ABREU saram a chamá-lo de Renato. E ele horas não terminassem nunca”, re- autorização do hospital, o menino
DA EQUIPE DO CORREIO começou a se sentir Renato. Gos- vela a mãe. E, finalmente, a autori- pra casa, até que a cirurgia fosse
tou da sonoridade. E passou a rir. zação para passar o Natal e o ano- realizada. Edgar era o seu nome.
ma vida sem história. Um Quando alguém lhe perguntava o novo com a futura família. Renato Elisete amou aquele menino co-

U menino sem passado.


Um futuro incerto. E na-
da mais se podia dizer ou
saber daquele menino. Sem saber
de nada, ele corria pelo pátio da
nome, ele sapecava, sem hesitar,
com a voz miudinha: “Renato”. O
menino sem passado e sem histó-
ria ganhou um nome. Era tudo
que tinha. E uma “data de nasci-
ganhou presentes, o aconchego da
avó, tios e primos, de todas as ida-
des. Sentiu-se um deles, parecia ter
nascido ali. E passou a dizer: “Mi-
nha casa, meu quarto”.
mo se dela fosse. Lutou pela vida
dele. Mas durou pouco. A criança
não resistiu a uma grave infecção,
depois da cirurgia. O casal chorou
muito. A tristeza se instalou na-
casa, se atrapalhando com suas mento”. A direção do abrigo ano- Há um mês, Renato está na nova quela casa. Para suportar a dor, ela
perninhas grossas e curtas. Os ca- tou em sua ficha: “Dois de maio de casa. Há um quarto verde só pra resolveu estudar. Formou-se em
belos bem lisos voavam. Ele che- 2008”. Foi o dia em que chegou ali ele, com seus brinquedos e sua ca- pedagogia, fez pós-graduação e
gou àquele abrigo sem nenhuma — sedento, faminto, com os cabe- ma branca. Tornou-se filho único. concurso para professora. Conse-
referência. Em 2 de maio de 2008, los compridos desgrenhados, sem Os pais deram entrada, na Defen- guiu, junto com o marido, tudo
policiais da 19ª Delegacia de Polí- roupa, sem calçado e com um cor- soria Pública, à certidão de nasci- material que a vida pode lhes ofe-
cia (Ceilândia) receberam um te no pé esquerdo. Idade? Exames mento, o que caracteriza a guarda recer. “Mas faltava alguma coisa.
chamando. Havia um menininho ósseos feitos posteriormente reve- definitiva. Eles mantiveram o no- Nossa vida era monótona”, ela ad-
abandonado no Setor de Cháca- laram que ele tinha entre 1 ano e me que o filho ganhou no abrigo. E mite. Ele também: “A gente sem-
ras do P Norte. O menininho sem seis meses e 2 anos. 2 de maio, dia em que foi abando- pre quis um filho”.
história chorava de fome e de se- Logo conquistou todo mundo nado, como a data de nascimento. A vontade de ser mãe reascen-
de. Sentia medo do escuro. Chora- do abrigo. Danou-se a falar. E a Ou do renascimento. Três meses deu o desejo dela. O casal procu-
va pelo desamparo. Levaram-no contar historinhas que só ele en- depois da primeira reportagem, o rou os meios legais para adoção.
àquela instituição, que acolhe me- tendia. Tornou-se amigo das ou- Correio conta o desfecho dela, Até que em novembro um telefo-
ninos e meninas com histórias tras crianças. E virou o xodó dos também com exclusividade. nema lhes encheu de esperança. E
despedaçadas de vida. A Vara da funcionários. Comoveu sua mãe EM OUTUBRO DE 2008, O CORREIO CONTOU, COM mudaria para sempre suas vidas.
Infância e da Juventude (VIJ) foi social, a mulher que cuidava dele EXCLUSIVIDADE, O DRAMA DO MENINO SEM PASSADO Várias gestações No sábado, depois de soltar pipa
informada da sua chegada. todos os dias. Beijava-a. E passou Desde 2005, Elisete espera a che- com o filho, Edvaldo disse à mu-
Começaram as investigações a chamá-la de mãe. Renato virou gada de Renato. É o tempo em lher: “Éramos um casal. Agora, so-
sobre a origem daquela criança. pop. Não havia quem visitasse a davam na fila a possibilidade de sete quase morreu de felicidade. “A que se inscreveu na Vara da In- mos uma família, como sempre
Soube-se que naquela região ron- instituição que não o percebesse. adotar uma criança. vontade foi de levar ele, naquela fância. Mas o desejo de ser mãe a sonhamos”. Semana passada, ao
dava uma família de ciganos. Um E um dia, ele amanheceu todo Uma delas era um casal que mesma hora”, ela conta. Uma fun- acompanha desde que se casou acordar, Renato sorriu e cochichou
dia, eles derrubaram o barraco e cheio de pintinhas vermelhas es- morava pertinho da instituição. A cionária da instituição disse ontem com Edvaldo, 18 anos atrás. Vie- no ouvido de Elisete: “Amo ma-
foram embora. No tal barraco der- palhadas pelo corpo. O miudinho professora Elisete Novais de Al- ao Correio: “Eles são ligados pelo ram sucessivos abortos espontâ- mãe”. Agarrada ao filho, ela desa-
rubado, apenas uma pista. Uma fo- teve catapora. Nem assim desani- meida dos Santos, de 42 anos, e o DNA de alma”. neos. Um, aos dois meses de gra- bou no choro. Foi o melhor e mais
to em que um homem aparece car- mou. Continuou brincando, co- técnico judiciário Edvaldo Vieira Começou, então, o período de videz de gêmeos. Outro, aos cin- prazeroso choro de sua vida.
regando duas crianças. Uma delas mendo e aprontando da mesma dos Santos, 40, esperavam havia convivência, autorizado pela Justi- co meses. E o último, no sétimo O menininho que não tinha
era o menino sem história. Fotos forma. Nada deixa Renato triste, a três anos por uma chance de ter ça . Durante um mês, o casal pas- mês. Por fim, uma gravidez tubá- história, agora, de verdade, come-
foram divulgadas no site do SOS não ser quando quer fazer alguma um filho. Ou uma filha. Um dia, sou a ir todos os dias ao abrigo. ria (fora do útero) lhe tirou a es- ça a escrever uma. Com nome, so-
Criança. Até em contas de luz. Na- coisa e é contrariado. Aí, o baixi- fim de novembro, receberam uma “Eles explicam que é pra desenvol- perança da maternidade. brenome, endereço e fotografias.
da. Ninguém reclamou sua ausên- nho se agiganta. ligação da Vara da Infância. Conta- ver os laços de afetividade”, ela diz. Em cada perda, a frustração. Muitas fotografias... Dormindo no
cia. Ou foi à delegacia dizer que o ram-lhes que havia uma criança Quando Elisete voltava pra casa, Dor, lágrimas e o desalento. Um seu quarto verde, usando sua mo-
filho havia desaparecido. E ele, o DNA de alma pronta pra ser adotada. Elisete e era com uma sensação enorme de dia, há 14 anos, ela soube que no chila nova que levará para a escoli-
baixinho de pernas grossas e sorri- E o tempo passou. Renato, ainda Edvaldo, que moram em Taguatin- vazio: “Tinha medo de perder ele. Hospital Regional de Taguatinga nha, brincando com o Homem
so encantador, continuava sem sem passado e uma história, conti- ga Norte, mal dormiram. No dia Ficava querendo saber se tinha (HRT) havia um bebê de 10 meses Aranha, lambuzado de manga,
história. E nenhum passado, ne- nuava no abrigo. E poderia ficar ali seguinte, foram até o abrigo. dormido, se comeu, tava com frio, abandonado pela mãe, com gra- empinando a pipa do Batman,
nhuma referência. Em outubro, o por muito tempo. Ou todo o tem- De longe, Elisete viu aquela essas coisas de mãe”. ves problemas de saúde. A crian- mergulhado na piscina de boli-
Correio contou o drama do meni- po, caso nenhuma família demons- criança. “Ele estava sentado no colo Chegou a hora de Renato passar ça usava colostomia, procedi- nhas coloridas, assistindo, ao lado
no com exclusividade. A história trasse interesse em levá-lo para ca- da mãe social, chupando pirulito”, o primeiro dia na casa do casal. mento cirúrgico em que se faz dos pais, à primeira missa, dirigin-
comoveu Brasília. sa. Na VIJ, esgotadas todas as possi- ela conta. Edvaldo não teve dúvida: Sem que ninguém ensinasse, ele uma abertura no abdome para a do o carrão vermelho, na bagunça
Assim que chegou à Casa da bilidades de encontrar a família “Quando eu vi aquele menino, falei começou a chamar Elisete de mãe drenagem de fezes do intestino com os priminhos. E nos beijos sa-
Criança Batuíra, em Ceilândia biológica, o juiz determina o pro- pra mim mesmo: ‘Ele é meu filho’. e Edvaldo, de pai. “Quase morri grosso. Esperava a cirurgia para a pecados no pai e na mãe. Essa,
Norte, deram-lhe um nome. Todo cesso de adoção do menino. À épo- Nunca vou esquecer aquele dia”. quando tivemos que levá-lo de vol- formação do reto. sim, é a sua história. A melhor que
mundo precisa de um nome. Pas- ca, pelo menos 500 pessoas aguar- Renato olhou para os dois e riu. Eli- ta ao abrigo. Queria que aquelas Elisete e Edvaldo levaram, com ele contará daqui por diante.

Crônica da Cidade
CONCEIÇÃO FREITAS // conceicaofreitas.df@diariosassociados.com.br (cartas: SIG, Quadra 2, Lote 340 / CEP 70.610-901)

pitólio expressa a monumentalidade da em 1791, projeto de Pierre L’Enfant, (mesmo que a história já tenha ensina- brança de que a vida é um espetáculo
LUGAR DE necessária à capital de um país. Aquela
mesma que Lucio Costa desenhou para
urbanista escolhido pelo próprio presi-
dente George Washington. (Ainda bem
do que ela pode ser perversa). Muita
gente junta me passa um sentimento
muito mais grandioso e inacreditável
do que a gente consegue se lembrar.

HUMANIDADE Brasília. “Monumental não no sentido


de ostentação, mas no sentido da ex-
pressão palpável, por assim dizer, cons-
que aqui Juscelino foi mais parcimo-
nioso na vaidade. Imagine se Brasília se
chamasse Kubitschek? E os brasilien-
revigorante. No meio dela ou diante de-
la, como no caso de ontem, reencontro
a noção de humanidade. De que não
E a esplanada de Washington é lu-
gar desenhado à perfeição para os en-
contros monumentais, para aconteci-
A impressionante multidão de dois ciente, daquilo que vale e significa.” ses, kubitschekianos?). L’Enfant proje- somos só uma ilha ou um arquipélago. mentos como o de ontem — histórico,
milhões de pessoas forrando de espe- O National Mall (passeio nacional) tou uma longa avenida cerimonial, o Somos uma surpreendente repetição inesquecível.
rança o National Mall era também a é uma esplanada em seu sentido ple- National Mall, aquele que ontem domi- de nós mesmos em outros bem diferen- O National Mall estende-se sem ne-
imagem vibrante e inesquecível de uma no. “Terreno plano, largo, extenso, em nou os olhos do mundo. tes; uma soma de muitos eus que, em nhuma obstrução no canteiro central.
das fontes de inspiração de Lucio Cos- frente a uma fortificação ou a um edifí- As imagens panorâmicas do oceano situações especiais, abandona o senti- Permanece imaculadamente livre e
ta. Ao inventar Brasília, o genial urba- cio importante”, como define o de almas à espera de Barack Obama en- mento de unidade e se entrega ao senti- desimpedido, sem nada pra interrom-
nista e arquiteto desenhou a expressão Houaiss. Esplanada também é sinôni- cheram este peito brasileiro (e brasi- do do que é genuinamente coletivo. per o campo aberto e sempre à espera
do melhor urbanismo que o mundo mo de planalto, que é sinônimo de al- liense) de esperança. Não exatamente Se Deus existe, ele se manifesta na da multidão. Porque, mesmo que de-
àquela altura havia alcançado, Wa- tiplano, chapada, chapadão, platô, no novo presidente, ainda que nele multidão. Há nela uma força sublime, more, um dia ela se reúne, para reafir-
shington incluída. planura, tabuleiro, mesa. Tudo a ver também, mas na multidão por ela mes- uma comunhão que nos redime de mar sua humanidade, seu desejo de
A imensa esplanada que se desdobra com a topografia de Brasília. ma. Mais nela do que nele. nossas misérias. Mesmo com todo o ris- que o mundo melhore. A esplanada é
do Monumento de Washington ao Ca- Washington começou a ser construí- Multidão me comove como o quê co que há numa multidão, ela é a lem- a morada da multidão.

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