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Instituto de Psicologia
Andrea Mataresi
Instituto de Psicologia
Andrea Mataresi
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1. Psicologia social 2. Psicologia comunitária 3. Enraizamento
4. Comunidades locais (Nazaré (RO)) 5. Etnografia I. Título.
HM251
!
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! "X!
Banca examinadora
Prof. Dr.:___________________________________________________
Instituição:__________________________________________________
.
Prof. Dr.:___________________________________________________
Instituição:__________________________________________________
Prof. Dr.:___________________________________________________
Instituição:__________________________________________________
! X!
Agradecimentos
À Jaqueline e Betinho, por me receberem em sua casa durante minhas idas a Nazaré,
com um amor de família que gosta de cuidar! Pelas comidas deliciosas, rizadas,
conversas até tarde e a incrível ajuda na organização das entrevistas deste trabalho!
Espero poder recebe-los aqui em casa!
Ao Anauá, pela amizade de anos, pela confiança com sua história, pelos momentos
preciosos junto de sua família e pelas longas conversas, que foram a minha maior
inspiração para começar este trabalho! A você, meu amigo, eu agradeço por me
mostrar a magia dessa terra chamada Nazaré!
À Dona Vêna, Seu Pantoja, Jeferson, Professor Raimundo, Seu Vijico, Seu
Manduca, Dona Margô e Seu Getúlio obrigada pelas ricas contribuições durantes as
longas conversas!
À Vá, Neto, Lucila, Rodrigo, Roda e Cris, por me inspirarem diariamente, por
alguns dos momentos mais importantes que eu tive na Amazônia e por me ensinarem
muito do que eu sei hoje! Ter vocês por perto, mesmo que tão distantes
geograficamente, faz toda a diferença em minha vida! Agradeço, sobretudo, pela
preciosa amizade, que também se dá na luta política por uma sociedade mais justa. E
mais uma vez ao Neto, pela leitura crítica e detalhada deste trabalho! Não tenho
palavras para te agradecer!
Ao Zeca, Miriam Rosa, Renato Luz, Tiago Marin e Galeão, pelas riquíssimas
contribuições durante todos este trabalho. Nossas conversas sempre fizeram toda a
diferença durante o percurso.
! X""!
Ao Christoph, pelas conversas que varam as noites, que me fazem rir e que me
mostram que companheirismo é tão importante quanto amor!
Aos meus pais, Rosa e Carlos, pelo apoio em minha educação e vida. Sem a ajuda
de vocês em muitos dos mais importantes momentos, este trabalho não teria sido
possível! Agradeço, principalmente, por acreditarem em meus sonhos.
À minha irmã, Dani, pela parceria de sempre! Pelos conselhos de irmã mais velha e
pela sabedoria que não cabe em palavras.
À minha sobrinha, Maria Julia, por me ensinar que amor vem em um sorriso
delicado e em um olhar de confiança! Por abrir portas que só você poderia abrir!
! X"""!
outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor
com esses negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai
paridade [...] Viver é muito perigoso, e não é não [...] Todo caminho
Resumo
O desenraizamento acontece quando pessoas ou grupos são afastados de suas tradições e das
historias de vida de seus ancestrais, por razões ligadas à dominação e à espoliação econômica.
Assim, o processo de dominação privilegia o acumulo de dinheiro em detrimento à cultura e à
tradição de povos inteiros. Este processo tem sido recorrente durante a história da ocupação
da Amazônia desde o período colonial. Atualmente, a construção da Usina hidroelétrica de
Santo Antônio no rio Madeira representa uma ameaça às comunidades localizadas na região.
Entendemos que esta obra pode ser extremamente nociva à cultura e à tradição dos povos que
ali vivem. Embora existam conselhos comunitários com o objetivo de garantir a participação
dos moradores na gestão do território, efetivamente suas vozes não têm sido ouvidas durante
os processos de decisão, assim como as informações sobre os impactos da obra no território
não estão sendo compartilhadas com a população. Podemos entender esta falta de informação
e impedimento de participação como uma possível ferramenta de dominação, o que evidencia
o preconceito sofrido pelas pessoas que vivem nas periferias do capitalismo brasileiro. Assim,
o registro e a discussão de como os moradores de uma específica comunidade chamada
Nazaré vivem as diversas ameaças de desenraizamento pode oferecer subsídio aos que estão
por enfrentá-lo. Durante a pesquisa de observação participante e entrevistas de longa duração,
organizamos dissertação a partir de nove itens que compõem um retrato etnográfico da
comunidade, sendo eles: histórico de formação e estrutura da comunidade de Nazaré, relação
com o rio, organização do trabalho, lendas, religiosidade e manifestações artísticas, vida
política e vida comunitária. A partir da observação destes itens e de suas relações entre si, foi
possível notar uma presente luta por enraizamento diante das pressões que contribuem para a
desintegração de sua cultura.
Abstract
The uprootedness happens when people or groups are taken away from their traditions and the
life stories of theirs ancestors, for reasons related to economic domination. Thus, the process
of domination favors the accumulation of money over the culture and tradition of an entire
ethnic group. This process has occurred in the history of the Amazon occupation since the
colonial period. Currently, the construction of the Santo Antonio's dam, in Madeira River,
represents a threat to the communities located in the region. We understand that this work can
be extremely harmful to the culture and traditions of the peoples there. Although there are
community councils, created to ensure the participation of residents in the land management;
effectively, their voices haven't been heard during the decision-making process, as well as the
information about the impacts of the construction are not being shared with the public. We
can understand this lack of information and the denial of the population's right to participate
as a possible domination's tool, which shows the prejudice suffered by people that are pushed
to the outskirts of the Brazilian capitalism. Thus, the registration and the discussion of how
the currents residents of a community called Nazaré are living this constant threat of
uprootedness can provide subsidy to those who are yet to face it. During the field research, we
organized the work in nine items that compose an ethnographic portrait of Nazaré. These
items are: history and structure of the community, the relation to the river, organization of
work, legends, religion, artistic manifestations and political and communitarian life. From the
observation of those points and the relationship that they establish among themselves, it was
possible to notice the presence of a strong struggle for rootedness, in face of social pressures
that may cause the disintegration of their culture.
Sumário
! Y"!
2) Objetivos da pesquisa.......................................................23
3) Método da pesquisa..........................................................24
6) Bibliografia.....................................................................130
!
1) Introdução - As histórias que o rio traz
Uma das coisas que elas têm em comum é o rio que as ligam, que as tornam
navegáveis. O rio Madeira, para quem mora em sua beira, não é somente o que define
! "!
possibilidade de contato com outros locais, o principal caminho por onde as histórias
Por ele, todos os moradores de Nazaré ali chegaram, assim como o açúcar, o
sal, os primeiros medicamentos e tantos outros produtos, até hoje difíceis de encontrar
ou com preços altos devido aos custos de transporte. Por ele, os trabalhadores da
várzea podem vender seus produtos, seja pelo barco da produção, disponibilizado pela
Secretaria de Agricultura de Porto Velho, seja por meio de compradores que viajam
Sentada na beira do rio escutei histórias, prosas longas e curtas, nas quais
aparecem personagens como Nonato cobra grande, o boto rosa e o boto tucuxi, o
! #!
pescar. Aprendem que com o boto não se mexe. As escolas em sua beira recebem
crianças que perdem suas bolas no grande Madeira durante os treinos de futebol que,
cheia, que abastecia a área de várzea de nutrientes, preparando a terra para a próxima
plantação, além de levar embora os insetos que destruiriam as mercadorias. Isto, antes
de sua força ter sido controlada pela construção de uma barragem inaugurada em
2012 e que faz parte do complexo hidroelétrico do rio Madeira, localizada na antiga
! $!
Barragem de Santo Antônio
locais e, segundo o ditado local, quem bebe de sua água sempre volta. Em sua
da vida das comunidades e faz com que os moradores de Nazaré tenham orgulho de se
história será discutida em maiores detalhes ao longo deste trabalho, não significa
apenas barrar a força do rio com a finalidade de produzir energia, mas também barrar
ancoradas na relação que estes homens e mulheres estabelecem com a natureza e seus
fluxos. Barrar o rio pode ser, portanto, uma forte ameaça de desenraizamento. As
! %!
crenças, rituais e formas de trabalho são barrados, junto com os peixes e galhos que
correm por suas águas turvas. E unido a tudo isso, são barradas também um pouco da
esperança em decisões políticas que nos representem e que não contribuam para a
texto, descreveu algumas das conclusões que ela pôde chegar ao conviver com a
fácil de ser caracterizada: uma área de floresta tropical úmida, com aproximadamente
7,5 milhões de Km2, banhada por inúmeros rios que tem o rio Solimões-Amazonas
como eixo principal, habitada por uma população basicamente indígena e cabocla,
No entanto, esta é uma visão sobre a região e não a partir de quem mora na
possui muitos significados ligados aos mais diversos contextos ecológicos, sociais e
somente como floresta e reserva de recursos naturais, a Amazônia é marcada por sua
! &!
que forja o conhecimento oficial sobre os amazônidas1, que vivem, muitas vezes, em
primária. Isso se dá, entre outros momentos, durante nossas próprias ações e por meio
das interações com os nossos pais, vizinhos, família, amigos e etc. Sendo assim,
os que nos fazem capazes de interagir com uma cultura e sociedade (BRANDÃO, op.
Cit.).
dos rios, tipos de terras e etc. Assim, habitar um local como este já é um desafio por si
só, e este é justamente um dos saberes que estas populações têm a oferecer e a
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Termo usado para se referir a quem nasceu e/ou vive na região.
! '!
Segundo Porto Gonçalves (op.cit.), geralmente estes conhecimentos estão
dia, tudo se interliga , a queimada das florestas que provoca a fuga dos animais e da
água, provoca também a fuga de seus espíritos. Este holismo, formado por
populações da floresta.
dominador, ao tentar entender os costumes que não são aqueles da cultura ocidental,
muitas vezes os consideram estranhos e/ou inferiores. Este fato acontece exatamente
Brasil é fruto de um olhar imediatista e egoísta das classes dominantes que operam e
reforçam mecanismos de exclusão social. Desta forma, percebemos que a perda das
Porto Gonçalves (2001) relata que o fato do morador da floresta não ser
coloniais. Sua população é muitas vezes vista como preguiçosa e incapaz de mudar a
! (!
Os moradores da áreas rurais são considerados culpados por estarem em áreas
rurais e não se desenvolver a partir de uma perspectiva dos grandes centros urbanos e
econômicos. Desta forma, esses povos são vistos como culpados pela situação que
vivem e aqueles que impedem o desenvolvimento do país. Os povos rurais são muitas
rendem aos desejos de uma sociedade consumista, são considerados culpados por não
preservar o meio ambiente. Afinal, estes desejos são reservados a uma pequena
Fica clara uma contradição vivida por estas populações. Quando se mantém
tradicionais, são aqueles que impedem o progresso de toda a sociedade, mas quando
são condenados por destruir o meio ambiente, mesmo que suas ações de
e BEZZON, 2006).
riquezas naturais. Muitas empresas querem usar a floresta como fonte de exploração
dos recursos naturais - reais ou imaginários -que ela poderia prover. Em contraposição
cenário que a Amazônia aparece com reserva a “não ser tocada”, como se fosse um
local selvagem e sem cultura, sem nenhum processo de civilização. Novamente, não
! )!
se leva em consideração a realidade regional e estes habitantes são vistos como
posição que tem se colocado dominante é aquela do interesse por sua biodiversidade,
custo, a população que ali vive há tantos anos é quase sempre vista ou como
como mão de obra barata. Desta forma, Amazônia ainda é vista como um território “a
ser” colonizado, cuja importância é relacionada ao que pode nela ser explorado.
mundiais nos períodos coloniais, até o investimento feito pelo BID (Banco
estado que os protege, impõem sua forma de vida, impedindo a expressão das
! *!
convivência dos povos da floresta com os ecossistemas amazônicos. Saberes que são,
lamparinas e velas. É uma realidade de dura miséria e violência que desafia essa
origens. As próprias políticas de preservação ambiental, com muito de seu foco nas
riquezas da floresta e não nos habitantes que nela vivem, mostram o grande descaso
com os amazônidas.
aumentar a escola da pesca, entre outras. Todas estas propostas chegam de fora, pelo
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
O primeiro contato com as pessoas de Nazaré se deu em 2007, em um projeto que será contado mais adiante
neste mesmo trabalho.
3
“A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se
no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e
tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável
dos recursos naturais da unidade… A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido
pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações
da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato
de criação da unidade.” (ISA – Instituto Socio Ambiental)
! "+!
rio, e muitas vezes não contam com o diálogo com os habitantes da região. São
centros urbanos.
que foi imposta aos moradores da comunidade e mostra, em todos os seus aspectos, o
descaso existente com relação às pessoas que habitam estas regiões na elaboração de
alguns planos políticos. Não é raro ouvir discursos sobre os benefícios das
locais.
Santo Antônio”, que já tem modificado e que irá modificar ainda mais toda a
paisagem natural e social das comunidades. Muitas críticas são feitas a respeito desta
obra que tenha impacto no território e/ou na forma de vida local, além da comissão
presenciamos e o que nos foi relatado pelos moradores é um processo muito diferente.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
Segundo a lei No 9.985, de 18 de julho de 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
(SNUC), tem, dentre seus objetivos, o de “proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente”
e como uma de suas diretrizes: “assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e
gestão das unidades de conservação”.
! ""!
Estas comunidades estão dentro de Unidades de Conservação ou no entorno
delas. Desta forma, as leis que deveriam proteger e assegurar o direito destas
Conservação da região e do entorno delas, a voz destas pessoas não teve peso algum
atingidas. Esta decisão foi feita em meio a leilões duvidosos e a contraditória divisão
do IBAMA, passando parte importante de sua função para o ICMbio (Instituto Chico
variam muito de pessoa para pessoa. Durante as idas ao campo, pude ouvir os
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental
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em andamento e as falas referentes à ela foram bastante diferentes das encontradas na
enfrentamento das transformações que ameaçam seu modo de vida. Nota-se uma
Aspectos estes que estão extremamente ligados aos fluxos do rio (seca e cheia) e à
terra. A dominação é aqui entendida como uma das pressões para o desenraizamento,
que arranca as pessoas de suas tradições e das formas de viver de seus antepassados.
modificar de forma artificial estes ciclos e alterar os espaços que deveriam estar
alagados ou não, transformando ainda mais os fluxos naturais de fauna e flora, com
certeza determina importantes impactos sobre a vida social do grupo. Assim, podemos
socioambientais, entende-se que esta obra pode ser extremamente nociva à cultura
local.
! "$!
da convivência dos povos da floresta com os ecossistemas amazônicos e impedindo a
com os povos da floresta que moram na beira do rio Madeira. Certa vez me
questionaram o que me fazia gostar tanto de Nazaré, o que me fazia ter escolhido a
Amazônia. Esta pergunta ecoou em meus ouvidos por todo decorrer do primeiro ano
do mestrado, das idas à campo, das voltas às emoções e cenas vividas com meus
momentos.
conversas que lá tive. Já em meu primeiro ano, em 2005, era comum ouvir dos
circulação de informações mínimas, eram feitos distante dos moradores locais, que
Minha primeira ida ao baixo Madeira se deu quando, ainda no segundo ano da
graduação, conheci uma organização não governamental que era formada por
optando por entrar na equipe de educação, que tinha como projeto a realização de um
! "%!
curso de formação para educadores ribeirinhos. Minha responsabilidade inicial era a
a participar. Eles contavam com felicidade que esta era a primeira vez que uma
podemos esquecer que, embora feito na comunidade, ele foi montado por pessoas que
não vivem na região. Isso ficou claro durante seu desenvolvimento, quando
percebemos que alguns dos temas levados não eram questões para estas pessoas e sim
para nós. Depois desta experiência, participei por mais três anos desta organização,
período que tive diferentes responsabilidades e fui me aproximando cada vez mais de
Durante toda a minha participação, fui percebendo o quanto era difícil que o
muitas vezes, não eram feitos por meio do diálogo com as pessoas que ali moram,
como se elas precisassem aprender, com pessoas de São Paulo ou de outros grandes
mesmo que muitas vezes com estruturas precárias de moradia, educação, saúde e
! "&!
As comunidades existentes na região do baixo rio Madeira possuem diferentes
e comemorar os festejos locais. Além disso, elas têm diferentes níveis de acesso à
comunidade que possui água encanada e um gerador que fornece eletricidade para
todas as casas a 3 horas de trilha de outra que não tem a mesma estrutura. Algumas
comunidades possuem escola até o final do ensino médio e unidade básica de saúde
deslocamento para outras comunidades ou para Porto Velho. Muitas das pessoas
uma benzedeira.
cuidado presente nas relações entre as pessoas umas com as outras e com a floresta.
a forma de vida dos moradores de lá. Assim, compreender quais são as condições para
Certo dia, estávamos em uma roda assando peixe e conversando e, vindo pelo
rio de outra comunidade, como todos que ali chegam, um senhor se juntou a nós. No
meio das conversas, ele nos contou o porquê do nome de sua comunidade de origem:
! "'!
Cuniã, que significa menina que chora. Havia lá uma menina que não respeitava as
regras da floresta e da comunidade. Uma noite, ela saiu de casa e se perdeu na mata.
Sua família e amigos ficaram dias e dias a procurando, até que ela foi achada com a
metade do corpo e do rosto destruída pelo “neguinho da mata”. Segundo ele, ainda
Questionei-o sobre quem era o “neguinho da mata” e ele respondeu que era
um menino que vestia uma capa de pele de onça, era grande conhecedor dos
caminhos da floresta, era ágil e tinha muitos poderes. Ele existia para proteger as
matas, os animais, os rios. Tudo o que ali vivia. Além de gostar de “pregar peças” nas
Em outro momento, em uma comunidade que não tem luz elétrica, estava
luz da lua. Enquanto escrevia, um senhor que morava na casa ao lado passou por mim
havíamos nos esquecido de levar velas e baterias extras para as duas lanternas que
tínhamos. Por este motivo, decidimos apenas usar a nossa iluminação para entrar e
sair das nossas redes durante a noite. Ele não conteve seu riso diante de nosso
esquecimento.
Algum tempo depois, ele voltou com a mão cheia de velas e uma caixa de
fósforos e me disse que havia trazido as velas para que eu não ficasse mais no escuro.
Minha primeira resposta foi a de não poder aceitar, pois sabia bem qual era a
velas! Sabe o que é, menina? Aqui, a gente aprende que sem ajuda nós não vive.
! "(!
Frente à minha dificuldade em perceber o significado de seu gesto, ele me explicou
cuidam uns dos outros e da vida na floresta e percebi o quanto havia um sentido de
comunidade nesse grupo. Eu estava ali no papel de quem doava, mas tive que
Nazaré tem em sua vida cultural algo que impressiona. Algo que, em minha
hipótese, preserva as tradições regionais, que abrem campo para uma rica experiência
diferentes pressões que dificultam as expressões das formas de viver que diferem
dominador6.
ligada à transmissão oral de valores, lendas e mitos; todo esse conjunto de elementos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Esta ideia de invenção do cotidiano aparece em Certeau (1994).
! ")!
Junto destas reflexões, percebi que o que me faz sempre voltar a Nazaré e ao
tudo, a vontade de tentar compreender a força e as maneira com que aquelas pessoas
têm de encontrar saídas a estes processos. Descobri, portanto, que meu vínculo não
está somente com a Amazônia, mas sim com a força e lutas de seus povos contra a
[...] Em face de tudo isso, eu pelo menos, não vejo outro caminho para
caminhar com a minha raiva legítima, com minha justa ira, com minha
indignação necessária senão o da luta político-democrática de que possam
vir resultando as indispensáveis transformações na sociedade brasileira,
sem as quais esse estado de coisas se agrava em lugar de desaparecer.
(FREIRE, P., 1997 - Professora sim, tia não, p.71)
região do baixo rio Madeira não é, de forma alguma, uma tentativa de definir o que é
brasileiro de Nazaré não pode ser definido em poucas e definitivas palavras, afinal o
ser é devir, é transformação. Assim, não temos a pretensão de explicar ou definir uma
identidade beiradeira estática, que não se transforma. O ser que encontramos ali é o
ser que navega pela vida se transformando! É como o próprio rio descrito por
Guimarães Rosa, em “O Grande Sertão: veredas”, que não quer chegar a lugar
! "*!
específica, ou seja, o processo pelo qual a formação das raízes e a organização
autores como Gonçalves Filho (2005; 2007), Guareschi (1996), Montero (2005),
um trabalho inicial, pois seria impossível em tão pouco tempo e sem uma interlocução
mais intensa com as pessoas da comunidade propor escrever algo que tente ser mais
do que um começo de compreensão das formas de viver deste local. Tento, portanto,
história de luta de amigos tão importantes que conheci nestes anos de Amazônia.
dividido em 5 subcapítulos, que representam os nove itens aqui tratados para o retrato
etnográfico de Nazaré.
! #+!
assuntos aqui tratados pudessem aparecer em diálogo. Desta forma, a tentativa foi a
capítulos todas as vozes, indicadas por seus nomes (em caso de entrevistas), que
pesquisadora.
inspirou desde o início das viagens o desejo de utilização da fotografia como recurso
de pesquisa. Elas estão aqui inseridas não como uma tentativa de apresentar a
um instante do real e apresentá-la tal como foi. As fotos presentes ao longo deste
a inquietude e a admiração.
é neste momento que a captura da imagem é uma grande alegria física e intelectual.
! #"!
É importante ressaltar que, quando questionados sobre o uso de seus nomes
interlocutores que foram entrevistados optaram pelo uso de seus nomes reais. Assim,
todos os nomes dos moradores de Nazaré aqui citados são de interlocutores que
! ##!
2) Objetivos da pesquisa
como ele sustenta o enfrentamento das forças sociais e dos impactos que contribuem
natureza e das relações sociais que se materializam nas práticas de trabalho, nas
construção da usina hidroelétrica de Santo Antônio, assim como seus impactos atuais
obra na vida social do grupo e as formas de organização política para participar das
! #$!
3) Método da pesquisa
intenção foi a de, em dois períodos de um mês até um mês e meio (em março e abril
religiosa, entre outros encontros que são agendados com a população), além de ter
seus cotidianos.
para perto daqueles que vivem o fenômeno que se vai pesquisar. Desta maneira,
endereço, mas para o tempo e o espaço daqueles que vivem a experiência da opressão
e assim, vive uma alteração de seu ponto de vista. Esta alteração não é de forma
alguma uma adoção irrefletida das opiniões destes homens e mulheres, mas sim a
chance de estar no lugar onde as opiniões são formadas, onde há diálogos e trocas.
! #%!
Como Miquilim, de Guimarães Rosa (2001), que, com a descoberta de seus óculos,
pôde enxergar a vida de uma nova maneira, a partir de um novo ângulo e, com isso,
pessoas, pude ver em seus gestos e palavras não só a experiência de quem foi
fenômeno. A comunidade de destino pode ser entendida, neste trabalho, apenas como
inspiração, pois não houve um deslocamento definitivo para esta realidade, assim
dia destas pessoas, é preciso alongar a convivência junto deles. Assim, permitir que os
aproximação permite que seja realizada o que Geertz (1989) chamou de descrição
! #&!
dados relevantes que permitirão melhor compreender a análise dos resultados. São
eles:
foi uma das primeiras moradoras de Nazaré, casada com seu Nanã –
comunhão.
locais algumas vezes, mas que não consegue ficar longe de sua
! #'!
comunidade. Sua família, constantemente presente em nossos
nos recebe com um bom samba escrito por ele! Seringueiro desde
criança, quando saiu da casa dos seus pais em outra localidade, pois
sobre o dia que teve que sair da casa de sua família, ainda menino,
! #(!
seus netos correndo a sua volta, experiência rica e difícil de
descrever!
no mato.
! #)!
principalmente das dificuldades enfrentadas por eles em relação ao
participante, e podem ser compreendidos como índices que estabelecem o eixo das
narrativas.
participante foi inspirada na reflexão de Gonçalves Filho (2005), que diz que a
! #*!
O fato de a água não ser tratada pela maioria dos moradores da comunidade acabou
sendo limitante para a estada da pesquisadora por longo período de tempo. Desde o
pesquisa.
comunitária deste grupo. Desta forma tentamos, durante a análise dos dados, indagar
o que estava sendo transmitido nas ações sociais e não fazer a simples descrição delas.
A intenção não era a de repetir estudos em que o outro aparece como objeto do
conclusões sobre a vida comunitária a partir de pequenos fatos do dia a dia que são
a partir das tramas de vozes e saberes que se faz no diálogo entre “pesquisador” e
das narrativas de forma a dar continuidade ao exame que foi iniciado pelo depoente.
propondo aqui é o diálogo entre as perspectivas, sem que uma forma de olhar se
fenômeno que então já não será a minha ou dele, mas que será construída entre nós”
! $+!
4) Nove itens para o retrato etnográfico de Nazaré
elementos foram criando destaque. Alguns eu pude elaborar durante a viagem, outros
continuarão emergindo a medida que esta rica experiência for sendo elaborada. Como
já dito, este é um estudo piloto de um retrato que possa contribuir para a compreensão
das formas de viver destes homens e mulheres, para contribuição de uma luta diária
Eduardo Galeano
esquerda do Rio Madeira (sentido Porto Velho a Humaitá), a uma distância de 200
! $"!
Km de Porto Velho, que podem ser percorridos em uma média de 8 horas por meio de
do Nordeste para trabalhar nos seringais da região como consequência dos estímulos
! $#!
meio da comunidade existe uma ponte, que serve para a passagem das pessoas de um
! $$!
Acesso às casas na época de cheia do rio.
intimamente ligada à história da família de seu Nanã, antigo proprietário das terras da
ela não sabe dizer quando foi que seu sogro chegou na Amazônia e como ocorreu a
concessão das terras para ele. O que ela conta é que ele chegou no Amazonas, casou-
se com uma manauara, com quem teve muitos filhos (a depoente não sabe dizer
quantos). Seu Nanã, por sua vez, nasceu na Amazônia, embora todos os moradores
Nanã herdou a propriedade de seu pai, que era o patrão, ou seja, o dono das terras do
seringal. O trabalho de seu Nanã foi preparar esse território para a exploração da
borracha (que durou até o final da década de 60). Ele montou o barracão, a primeira
casa e modificou o curso do igarapé, que fez com que a comunidade, antes de se
chamar Nazaré, fosse conhecida como “boca do furo”, pois ela, a partir desta
! $%!
Antigo barracão da comunidade
Esta transformação foi feita pois o acesso das terras de seu Nanã para o rio
Madeira dependia do igarapé e, por isso, era bastante dificultado (pela distância do rio
forma, seu Nanã durante o período de seca ordenou que “seus homens” fizessem um
caminho do igarapé até o rio, quando chegou a época da cheia, este caminho ficou
crescer. A fama de bom patrão de seu Nanã fez com que os primeiros trabalhadores
hospedagem inicial até que pudessem construir suas próprias casas. Segundo seu Zé
! $&!
Ferreira, que chegou em Nazaré ainda com 9 anos de idade, seu Nanã era filho de
Barão:
Segundo as conversas com dona Vena, seu Artêmis, seu Pantoja e seu Vijico,
o seu Nanã convidou alguns homens que havia conhecido no Amazonas ou que eram
indicados para ele e, com o tempo, por ele ser conhecido por ser um bom patrão em
que ela morava com seu pai – seringueiro - e sua mãe. Ribeirinha do rio Madeira, ela
conta que sempre pegava um pouco de seringa para seu pai vender e ela poder
comprar tecido para fazer seus vestidos. Ela conheceu seu marido e logo depois se
Quando casou-se com seu Nanã, a comunidade ainda era pequena, só existiam
sete famílias, entre elas, a família do seu Pantoja, do seu Vijico e do seu Zé Ferreira,
Vena conta que era comum novas famílias chegarem lá à procura de trabalho no
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
Nome completo de seu Nanã.
11
Seu Mundico é um dos moradores antigos da comunidade. Hoje dono de um comércio de alimentos e botijão de
gás, além de uma pousada.
! $'!
seringal. Segundo os relatos, os fregueses moravam afastados do seringalista, porém,
atualmente, no local aonde o patrão morava, encontram-se várias casas bem próximas
Os relatos sobre esta época variam a cada depoente. Seu Nanã é descrito como
homem bravo, grosseiro, porém justo. Contudo, houveram depoentes que contaram
que foram morar na comunidade na época do seu Nanã, não se deram bem, e só
voltaram com sua morte. Outros homens já contam que lá não eram tratados como
escravos e que até chegavam a tirar lucro da conta do barracão no fim do mês.
escravos, dono de uma terra na qual os homens trabalham pela sobrevivência de sua
das vendas da borracha, começou o que os moradores chamam de ciclo da Solva (em
meados de 60), que tinha uma forma de coleta parecida com a da borracha.
tiraram borracha na localidade por muito pouco tempo, pois logo depois da chegada
Amazônia, era preciso demarcar a terra e entrar com o pedido de documentação. Mas
a documentação só saía para poucos. Os produtores mais fracos, como dito por eles,
! $(!
que não queriam ou não podiam mais trabalhar nestes pequenos pedaços de terras,
conversa na comunidade, um senhor contou que ele possuía uma plantação de café e
mandioca em um pequeno sítio com uma casinha, porém um dia chegou em seu
pedaço de terra e alguns animais da floresta haviam destruído tudo e, por não ter
como recomeçar a plantação, ele acabou por abandonar o seu sítio e voltou a trabalhar
que antigamente ela e seu marido possuíam uma fazendinha na beira do Madeira, ao
lado das terras de seu compadre, que após algum tempo adoeceu e faleceu com
problemas do coração. Depois da perda de seu amigo, ela e o marido não conseguiam
Essas escolhas revelam que a relação com a terra não passa simplesmente por
isso, torna necessária uma breve apresentação da história dos fluxos migratórios da
! $)!
região. O histórico de ocupação e dominação das terras da Amazônia e criação dos
Vargas (entre 1930 – 1945) traz a chamada “Marcha para o Oeste” brasileira, que
qual eles não estavam habituados a viver, e lá moravam nas terras do patrão, sendo
obrigados a viver sob seu controle e regras, além de terem que deixar parte do seu
Rondônia, a década de 60 foi marcada, inicialmente, pela ação das ligas camponesas e
pelos projetos de reforma agrária. Chegava ao estado de Porto Velho, nesta época, os
! $*!
slogan criado pelo presidente Castelo Branco sobre o território da Amazônia era
foco em sua “proteção”. Segundo Porto Gonçalves (2001), nunca houve uma época
com tantos investimentos internacionais na floresta como esta, que tinha como “foco”
a não internacionalização.
outros fatores, do povoamento da região norte, o governo militar contribuiu para uma
Essa forma de ocupação tem uma tônica comum: não consideraram as populações
que viviam na região, atropelaram culturas tradicionais, desrespeitaram brasileiros
e destruíram florestas passando por cima das leis do país, tudo em nome do
“desenvolvimento”. (SIQUEIRA e VASCONCELOS, 2010 )
quanto os povos que migraram nos diversos ciclos, construíram formas de viver
historicamente desconsiderados.
! %+!
Em 1976, o governo federal passa a regulamentar as terras que em grande
maioria eram ilegais. O critério para esta regulamentação era a “Boa fé” dos
proprietários no controle de 60 mil hectares, mostrando cada vez mais que o Estado
produtor. O que confirma com precisão os relatos dos agricultores locais sobre a
Nesse momento, a atual comunidade do Nazaré pode ser assim descrita: uma
Vena e Seu Artêmis, seu Nanã era bastante preocupado com a educação e queria
pelo seu amor à escola, esforços para trazer melhorias na comunidade e garantia da
ele tinha um tio que trabalhava para o seu Nanã e, em certa ocasião, ainda menino, foi
! %"!
trabalhar temporariamente no seringal. Após um tempo, voltou para sua região de
origem, quando o Dom João Batista, a pedido do patrão, o perguntou se ele queria
lecionar em “Boca do Furo”. Assim, a primeira escola de Nazaré foi criada pela
mulheres cuidavam das casas, das roças e das crianças. Mas, para ele, era preciso ter
escola. Naquela época, segundo o professor Artêmis, não existia concurso público
para professor. O professor mais antigo indicava o professor que entraria na escola e a
Amazônia que cursaram até a quarta série e depois de algum tempo se tornaram
professores.
Artêmis conta que lembra como se fosse hoje o primeiro dia em que se tornou
professor.
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O professor Maciel, junto do professor Artêmis, iniciou também a organização
Quando seu Nanã ainda era vivo, com relação ao trabalho, os fregueses iam
para o mato retirar a solva (produto vendido na freguesia da boca do furo)12. Segundo
o Seu Pantoja, os homens iam para o mato e deixavam as mulheres em casa cuidando
da roça. Ao entrar na floresta, eles colocavam suas redes nas árvores e faziam fogo
contadas pelos depoentes sobre a relação entre os diferentes fregueses e entre eles e o
patrão são diferentes dos relatos vistos em outros trabalhos sobre os seringais na
Amazônia. Pelos relatos, os seringueiros não possuíam contrato com o seu Nanã, eles
quantidade mínima ou ficar na floresta por tempo determinado. Eles voltavam quando
alimentos e outros itens, o que garantia que os fregueses tivessem uma dívida
constante com os donos das terras. Assim, não existiram, nesta pesquisa, relatos que
descreveram ordens do patrão referentes a quando e como eles iam buscar os produtos
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
O regime de trabalho em Nazaré se estabeleceu nos moldes do Barracões e das freguesias. Comuns,
principalmente, nos seringais da Amazônia e outras regiões do país. Com a queda da comercialização da borracha,
seu Nanã passou a coletar solva da floresta. Segundo os moradores locais, este é um produto utilizado,
principalmente, para vedar os barcos. Os termos freguesia, patrão e freguês são portanto para identificar o patrão
como o dono das terras (ou seja, o seringalista) e os fregueses como os trabalhadores (os seringueiros). Neste
regime de trabalho, análogo ao da escravidão, os fregueses só recebem o dinheiro após pagar as contas do
barracão, a partir do que coletam da terra. Mais detalhes sobre isto serão discutidos a seguir.
! %$!
da floresta. Entretanto, as diferenças entre eles ficavam bem claras nos momentos de
Os homens relatam que iam juntos para o mato, pois não se pode entrar
sozinho, sem um companheiro. Além dos animais e das confusas trilhas a amedrontar
podem confundir a cabeça das pessoas. Quando adoeciam, cuidavam uns dos outros.
Seu Pantoja, que hoje está muito adoecido, conta que já tinha seus problemas de
saúde quando era jovem, mas não tinha médico e remédio na época para lhe ajudar.
Quando sentia suas queimações se jogava no rio para esfriar e assim foi se
tratando durante os anos. Ele conta que mesmo na comunidade, não existiam muitos
medicamentos, quanto menos quando iam para o mato. Ele relata que em algumas
certeza que sem o cuidado mútuo ele não poderia acontecer. Lições que podem não
ser familiares àqueles que não conhecem aspectos da vida comunitária, como na
mato não existia a figura de alguém que mandasse na forma e no ritmo de trabalho,
eles não eram um mais importante do que o outro, um patrão do outro. Eram todos
patrão.
Dona Vena relata que o barracão era ao lado de sua casa e eles abriam em
floresta. Já para comprar, eles possuíam uma caderneta. Quando os homens estavam
! %%!
no mato, adoecidos, ou a família não possuía dinheiro naquele momento para pagar,
seus débitos eram anotados na caderneta. Outro ponto é que este era o único local de
Ferreira contam que quando voltavam do mato, traziam muitos quilos de solva nas
costas, dentro de seus paneiros, e que entregavam para o seu Nanã. Às vezes por
dinheiro, às vezes só para pagar a conta do barracão. Seu Nanã pesava a mercadoria e
fazia as contas das despesas na caderneta. Se sobrasse alguma coisa, eles recebiam o
60 centavos o quilo do produto coletado, podendo chegar a ser muito menos do que
isso.
A solva era entregue ao patrão em seu estado sólido (em tijolos feitos em latas
aguardava pelos barcos que vinham de Manaus e paravam em seu porto no igarapé
para fazer a comercialização. Dona Vena conta que algumas vezes os fregueses
misturavam barro no meio da solva para ganhar mais dinheiro. Ao perceber que os
fregueses tentavam lhe vender barro por solva, seu marido começou a quebrar os
Seu Nanã não trabalhava no mato com os outros homens da comunidade. Ele
ficava na localidade tomando conta do barracão e das vendas dos produtos coletados
por seus fregueses. Em todos os relatos, as pessoas dizem que ele era um homem
bom, justo, mas muito bravo e explosivo. Contudo, muitos dos homens mais velhos
ele era um dos melhores patrões para se trabalhar, que ele não era violento, pagava
tudo em dia e eles poderiam ir fazer a coleta por tempo indeterminado e com os
! %&!
parceiros que quisessem. Além disso, as mulheres e as crianças ficavam seguras nas
terras.
os depoentes sempre trazem aspectos positivos do trabalho com o seu Nanã, mas ao
para aqueles que estão em situação de opressão, embora possam lutar coletivamente e
pouco menos violentas no trabalho podem parecer como favor e bondade, não como
É preciso que haja algo imparcial no mundo para que seja possível usufruí-lo:
os bens mundanos precisam parecer em alguma medida nossos, abertos a
todos, para que possam parecer meus. Esta possibilidade é criada pela situação
intersubjetiva toda vez que for atravessada pela participação comum e pela
distribuição de rendas. Esta possibilidade fica também reprimida pela situação
intersubjetiva toda vez que se assenta no privatismo capitalista. O saber de um
bem parcial é dependente de seu caráter imparcial... São muitos lados por onde
o pobre é golpeado. Não sei de nada mais alarmante do que o sentimento de
não possuir direitos. (op.cit. p. 43)
o próprio sentimento de dignidade parece ser desfeito e, para aquele que sofre a
comunidade.
Nazaré. Ele se divertiu com a pergunta dizendo que é ao contrário. Hoje em dia tem
! %'!
muito mais onça e que as casas mais afastadas com certa frequência recebem suas
visitas. Ele conta que muita gente já perdeu animais de criação por conta das onças e
ainda completa: Antigamente a gente ia naquele mato ali sempre (apontando para um
pedaço de floresta do outro lado do rio). Agora só se for louco. Não dá mais, se não a
onça pega.
Ao ser questionado o porquê do aumento, ele diz que isso se deu com o
fortalecimento do IBAMA. Antes, eles iam à caça para vender a pele da onça, mas
agora, com a proibição, ninguém mais consegue vender. Ele diz que isso é para
proteger a espécie, mas comenta que agora são eles quem vivem com medo: Antes a
gente via a varredura da onça e ia atrás delas. Agora a gente vê e corre dela.
fogo garante a segurança dos moradores da comunidade. Afinal, isso faz com que
ninguém use a arma em brigas e impede que acidentes aconteçam, porém, já houve
situações em que ele precisou matar onças e jacarés que rondavam sua casa.
Indignado, um morador conta que precisou defender sua casa de um jacaré com o
remo da canoa, afinal, a polícia florestal proíbe o porte de arma, mas não garante a
Seu Nanã morreu no final do ciclo da Solva (em 1979). Com a morte do
vida política de seus moradores. O professor Artêmis conta que no dia de sua morte
ele o chamou em sua casa e pediu para que ele nunca deixasse sua santa sem um teto
e seu filho sem um prato de comida. Desde então, para seu Artêmis, estas são duas
Após sua morte, as terras de seu Nanã ficaram sem um dono para administra-
las. Isso parece ter se dado, em uma primeira análise, pelas questões de herança na
! %(!
Amazônia, assim como em tantas outras áreas de pequenas propriedades rurais. Seu
Nanã era dono dos castanhais, da solva, do açaí e de tantos outros produtos. Com a
sua morte, a terra passou a não ter mais um patrão que controlava o seu uso.
abrindo na área que pertencia à Boa Vitória13, mas ficava do mesmo lado de Nazaré
terras que eram de Boa Vitória foram integradas à “Boca do Furo”, que passou a se
pertencia à Nazaré e o território que era de Boa vitória (nenhum morador se dirige a
Nazaré como “Boca do Furo”, eles apenas relatam a existência do nome anterior),
passou a ter um presidente14, que cuida de sua administração, outros comércios foram
abrindo, e, com o tempo, mais pessoas foram chegando à comunidade. Estas pessoas
chegaram por diversos motivos, entre eles: busca de uma comunidade com mais
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Comunidade vizinha a Nazaré.
14
Na região amazônica, em comunidades em que não há padres ou freiras morando no local, a igreja possui um
presidente que é eleito pelos moradores da comunidade, além dos catequistas. Tanto este presidente, quanto os
catequistas, podem também ser considerados líderes informais.
! %)!
infraestrutura, transferidos para a escola ou Unidade básica de saúde após aprovação
em concurso público, perda de emprego em Porto Velho, busca de moradia que não
morte de seu Nanã. É importante enfatizar que seu comércio fica na área que
pertencia à Boa Vitória. Quando perguntado por que ele decidiu abrir sua loja e ele
me respondeu que após a morte do patrão, além de não existir nenhum local para as
famílias fazerem compras, não existia nada que impedisse o início de um novo
de sua loja, ele disse que abriu naquele local pois assim não abriria nada na terra dos
outros, indicando, mais uma vez a clara separação entre seringueiros e patrão.
Dona Vena conta que no dia em que seu marido faleceu ela estava fora da
comunidade e, quando chegou, já havia acontecido o enterro. Ela relata que quando
entrou no barracão notou que as pessoas haviam ido lá e pegado todas as mercadorias
que haviam sobrado e, por esse motivo, ela resolveu não dar continuidade com seu
comércio. Ela conta que hoje em dia as pessoas podem ir no mato e pegar o que
quiserem, que ninguém precisa falar com ela. Entretanto, ela ainda pede que as
pessoas peçam a ela para construir suas casas, o que, segundo a depoente, nem sempre
acontece.
Ela diz que a comunidade mudou bastante do início para agora. Andamos pela
ponte juntas e ela contou onde ficava sua casa, a primeira sala de aula e o barracão,
que ainda está ali (algumas pessoas querem derrubá-lo, mas, segundo relatos, a filha
! %*!
Ela falou que antigamente existia a ponte apenas para passar para a terra seca
de dentro- perto dos castanhais, na época da cheia. Ninguém morava ali, pois só
existia floresta, onça e jacaré nas margens. Seu irmão (pai do Anauá, também
Valeria observar com mais detalhes como foi feita a divisão do espaço entre os
moradores antigos e as famílias novas que vão surgindo na medida que a população
local cresce, seguindo a lógica da rotação e terra (os agricultores respeitam o ciclo do
plantio, colheita, queimada, tempo em que a terra está capoeirando15, como dito por
eles, preparação da terra para o novo plantio e novo início do ciclo). Outro ponto que
familiares.
dificuldades que advêm da falta de acesso a recursos e direitos básicos. Sendo que o
particular que ficava ligado poucas horas, assim que escurecia. Com os novos
! &+!
comunidade quando a contagem foi feita paga uma quantia fixa todos os meses, as
relatam já ter ficado o período de uma semana sem eletricidade em suas casas. Isso se
comunidade dois motores muito antigos que foram reformados, mas sua força não é
suficiente para a quantidade de casas. Além disso, estes motores ainda garantem a
moradores foi comum escutar relatos de que a comunidade ficou sem energia durante
Jaqueline, em uma de nossas conversas, diz ainda que talvez fosse melhor que
não tivessem o gerador, pois assim eles saberiam que só poderiam comprar carne que
pudesse ser salgada, pois muitas vezes eles acabam perdendo alimentos como
embutidos e frios devido à demora de dias para a energia ser reestabelecida. Ela não
fala isso como quem não quer o acesso à energia, mas explica que saber é melhor do
que ficar à mercê da boa vontade da empresa que cuida dos geradores para consertar
algumas linhas telefônicas particulares foram instaladas nas casas, porém com sinal
muito fraco para garantir acesso à internet. Existe uma Unidade Básica de Saúde que
Antônio. Alguns interlocutores dizem que por este motivo a construção da barragem
foi boa para a comunidade, enquanto outros se mostram indignados dizendo que é
! &"!
independentemente da construção da barragem e que, desta forma, a reforma da UBS
Além disso, uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) visita a comunidade
três vezes por mês. Segundo os moradores, todos os funcionários de outra localidade
que vão para lá pedem transferência para São Carlos do Jamari17 ou para Porto Velho,
pois não querem morar em uma comunidade pequena. Muitos dos moradores
reclamam do atendimento médico, segundo eles a fila é muito longa nos dias em que
o médico está presente, pois a grande maioria das comunidades no entorno não
os funcionários da saúde dizem que eles precisam tentar sanar os problemas menores
(como suturas, por exemplo) localmente, pois é arriscado mandar a embarcação para
outra emergência mais séria pode acontecer e eles não terem formas de socorro.
Assim, muitas vezes as suturas e dispensas de medicamentos são feitos por pessoas
que não possuem formação na área da saúde, porém possuem experiência do trabalho
diário.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Embarcação disponibilizada pela Secretaria Municipal de Saúde para a locomoção de pessoas com emergências
médicas
17
São Carlos do Jamari é a maior comunidade da região e possui mais estrutura de serviços ligados à educação,
saúde e saneamento básico, além de maior facilidade na comercialização de produtos.
18
Um barco de motor mais rápido do que os barcos de linhas.
! &#!
Foto de voadeira com cobertura, similar à “ambulancha” da região.
forma, quase todas as casas possuem um buraco negro19 do lado de fora. Quanto ao
artesiano que fica na escola. Segundo estudos feitos por uma organização não
governamental que realiza trabalhos no local, todas estas águas são contaminadas por
coliformes fecais. Mesmo com esta informação, boa parte da população local afirma
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Quando não existe água encanada na residência (o que é comum na zona rural), as fezes são então lançadas
diretamente num buraco escavado no solo.
! &$!
Banheiro na área externa da casa
mandados para Porto Velho, com a equipe do PSF. Os resíduos orgânicos são
fornecidos aos animais, como cachorros, gatos, patos e galinhas. Nos barcos que
trafegam pelo rio Madeira é comum ver as pessoas descartando no rio latas de
salas são multiseriadas e contam com a presença de três professores, que trabalham
! &%!
chamado “Saberes da Terra”, que é baseado na proposta da pedagogia da
alternância20.
metade do ano letivo de 2011. Está sendo construída uma escola estadual de ensino
com um projeto pedagógico de ensino rural. Porém, a construção desta escola deveria
ter sido finalizada em fevereiro e até o mês de novembro de 2012 ainda não havia
sido entregue.
Carlos do Jamari acabam optando por mandarem seus filhos para estudar nessas
localidades (quando eles podem arcar tanto com as despesas dos filhos, quanto com a
falta da ajuda deles nos afazeres domésticos e no manejo das plantações). É comum
para estes pais mandarem um complemento de comida para as famílias que recebem
seus filhos. Estas famílias dizem que preferem seus filhos estudando longe de casa,
pois dizem que embora a educação até o quinto ano seja boa, o “projeto Saberes da
Contudo, mandar os filhos para Porto Velho, por exemplo, significa, para
muitas destas famílias viver com os medos da cidade grande. Muitos relatam que têm
Aqueles que as filhas voltam sem terem vivido nenhuma destas três situações acabam
enfatizando o orgulho que sentem delas. Além disso, pudemos ouvir relatos de pais
que dizem que poderiam mandar as filhas mulheres para Porto Velho, mas que têm
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Os alunos alternam em períodos de aula e períodos livres, nos quais podem ajudar os pais em suas tarefas
diárias, com a finalidade de adquirir saberes tradicionais. Embora, na prática, isso aconteça, também, pela falta de
professores, o que, muitas vezes, acarreca em longos períodos sem aulas.
! &&!
medo do que pode acontecer com elas e decidem pela interrupção dos estudos. De
uma forma geral, as pessoas dizem que sentem que são esquecidas com relação à
escola. Muitos adultos são analfabetos e a grande maioria dos moradores não concluiu
Como já dito, em Nazaré, o órgão responsável por dar andamento a este processo é a
moradores relatam que o cadastro das famílias assentadas não foi realizado
instituição.
posse, que eles acreditam ter sido iniciado pela filha de seu Nanã. Embora não exista
possuem seu espaço legitimado e reconhecido por todos na comunidade. Não foi
observado nesta pesquisa como se deu a divisão de terras após a morte de seu Nanã,
! &'!
4.2) A comunidade e o rio Madeira
que em seu próprio nome já define sua existência a partir de sua proximidade com o
identificar, em suas próprias descrições sobre si mesmos, que são da beira do rio
posição com o rio, pois a parte da comunidade que está na beira do Madeira é muito
menor do que ao longo do Igarapé, que teve eu curso alterado na época em que o seu
O rio Madeira, rio de águas turvas, por anos assustou aqueles que iam para sua
curso. Contudo, para aqueles que lá moram, hoje o rio é poesia, respeitado e temido,
mas também admirado! Do imaginário social, fortemente presente nas lendas locais,
Nazaré.
! &(!
É muito comum, nas conversas com os moradores da comunidade, ouvir as
histórias que possuem o rio como cenário principal. Os botos cor de rosa e tucuxi, o
Nonato Cobra Grande, as sereias, entre outros tantos personagens vivem nos rios,
Muitos anos atrás tinha uma índia que era de uma tribo aqui da
Amazônia e ela ficou grávida. Não sei bem te falar quem era o pai
ou como ela ficou grávida. Isso faz muito tempo. Quando os filhos
dela nasceu tinha algum desses encantamentos, sabe? Eles eram
cobras, ela ficou é com muito medo. Sem saber o que fazer mesmo,
sabe? Com esse medo todo, ela jogou os meninos no rio... as
cobras. Era uma filha e um filho. O menino não dava medo em
ninguém não.... mas a menina... Essa era ruim. O menino chamava
Nonato e a menina Maria... O nonato ficava no meio do rio... ele
conseguia ir por debaixo da terra e assim que os igarapés
apareceram... Já a menina, essa era bicho ruim. Ruim mesmo.
Matava gente, virava embarcação. Matava tudo o que era animal...
Era grande. Grande mesmo. Tipo grande de virar barco, sabe? De
fazer onda no Madeira. O Nonato, para acabar com isso, teve que
matar a irmã. Só que não adiantava, todo mundo tinha medo dele.
Ele tinha os olhos de fogo e quem olhasse em seus olhos ficava
cego. Tem até um senhor aí pra baixo do Madeira que tentou matar
ele e ficou cego. Aí, era assim, para matar a cobra alguém tinha
que cortar no meio da cabeça dela, sem olhar no olho. Um homem
tinha um terçado bom mesmo e ele conseguiu e o Nonato virou
homem e vive lá no canta Galo. Mas às vezes, na lua cheia, ele
ainda vira cobra e fica no rio. Quando ele nada, balança todo os
barcos e, sem querer, ainda vira. Essa é a história do Nonato Cobra
Grande.
...você põe assim uma marcação nas casas e o boto tucuxi fica por
perto, para espantar o boto rosa. O boto tucuxi é o boto bom. Nas
embarcações também tem marcação, você pode ver, assim sempre
tem boto tucuxi por perto para não deixar os outros encostar....
Rapaz eu assim não sei o que acontece (quando o boto rosa se
aproxima), falam que eles pegam as pessoas... Eu tive uma prova,
assim! Uma vez em Itaguatiara, mas era noite, duas horas da
manhã e não teve como ver quase nada, mas de manhã o povo tava
pegando o cadáver do homem, a lancha de socorro tava perto da
embarcação. Soltavam umas bombas e eles (os botos rosas) se
afastavam.
! &)!
(Conversa com o professor Artêmis, em Janeiro de 2012)
Mas o rio, além de cenário que acolhe e abriga as lendas e histórias locais, é a
principais afluentes do rio Amazonas, pois, segundo Switkes (2008), ele é responsável
por 35% dos sedimentos e nutrientes do rio Amazonas, que é o maior rio do mundo.
Segundo o autor isso se dá pois o Madeira tem origem andina, desta forma,
sua cabeceira nasce da neve derretida dos Andes, até 5.000 m acima do nível do mar.
Assim, como grande parte dos rios amazônicos que possuem origem andina, ele
acima de Porto Velho). Desta forma, o transporte fluvial entre Guajará-Mirim (divisa
entre o Brasil e a Bolívia) e os destinos rio acima (Bolívia e Perú) com Porto Velho
(Rondônia) fica impossível de ser realizado. Este obstáculo natural do rio tem
inspirado o planejamento de complexas obras que visam superar estas limitações que
Muito mais que fonte de nutrientes (e não tenho com isso a intensão de reduzir
! &*!
Barco de linha para o transporte de Porto Velho para as comunidades
Lembro, com detalhes, a primeira vez que desci o rio21 em direção a Nazaré.
Ao entrar no barco, todos amarravam suas redes, afinal a viagem é longa. Na medida
diferentes. A temperatura cai, a paisagem muda cada vez que o barco de aproxima de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
As pessoas usam o termo “descer o rio”, pois o Madeira corre de sua nascente (como rio Beni, na cordilheira dos
Andes, Bolívia), até o rio Amazonas. Desta forma, para chegar de Porto Velho, até Nazaré, é preciso descer junto
da correnteza, em direção ao Estado do Amazonas.
! '+!
Redes amarradas no barco de linha
você escuta os som das vozes conversando por horas, crianças brincando e, em partes
animais, você vê a dança dos pássaros, que vão em revoada de forma quase que
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Recreio é o nome dado ao barco de linha que faz o transporte de pessoas e cargas de Porto Velho até as
comunidades ao longo do rio. Porém, este barco não faz o transporte para os moradores de algumas comunidades
mais distantes. Certa vez, descendo o rio, um senhor me contou que ele era de uma comunidade no rio Machado e
que, para chegar em casa, ele teria que ir até Calama (a última e a maior comunidade do baixo rio Madeira) com o
barco de linha e depois seguir mais 8 horas de rabeta (um barco menor, com motor mais fraco, porém uma opção
mais viável do que os barcos mais rápidos, considerando o alto custo do combustível no baixo rio Madeira).
23
Piseiro é o nome dado aos bares que ficam nas comunidades (e neste caso nos barcos), local no qual as pessoas
vão para dançar o brega e encontrar outras pessoas. Brega, por sua vez, é o nome dado ao tipo de forró feito na
Amazônia. Além do brega, que é o estilo de música mais ouvido na região, é também possível escutar outros
estilos, como sertanejo e música eletrônica (ou até mesmo o brega e o sertanejo com batidas de música eletrônica).
Contudo, na grande parte das vezes, estas músicas são dançadas a dois.
! '"!
Durante a viagem, os aspectos da vida comunitária já se apresentam e, durante
as horas pelo rio, muitas pessoas sempre se aproximam para perguntar quem eu sou e
de onde vim. Ele também já é local de encontro entre amigos. Afinal, com os barcos
Assim, podemos ver o rio também como forma de acesso a muitas das
comunidades em suas margens que, em sua maioria, não possuem acesso terrestre.
Existe, em Nazaré, uma discussão sobre a construção de uma estrada que ligaria a
construção da estrada tem sido dificultada, pois ela passaria no meio de uma Unidade
que a construção traria mais problemas do que benefícios, pois aumentaria o número
de pessoas na comunidade (que, segundo estes moradores, não teria estrutura para
abrigar ainda mais famílias), acreditam também que pessoas passariam a circular de
transporte de pessoas doentes para a capital, além de diminuir os custos das viagens.
do trabalho com o patrão. Era na beira do rio ou do igarapé (ao lado do barracão do
seu Nanã), que os homens deixavam os materiais coletados na floresta, para pagar a
! '#!
Além de forma de acesso na comunidade, o rio é a principal fonte de alimento
famílias, também é feita para a comercialização (tanto para pessoas de fora, como
períodos das plantações e repor os nutrientes da água, além de tirar os insetos da área
de várzea (ou do barranco, como dito pelos moradores locais), o que possibilitava a
do das grandes cidades, as formas de lazer dos moradores passavam a incluir nadar
em lagos que surgem (ou surgiam) na época de cheia, ou que ficam (ficavam)
Madeira. Como já dito na introdução desta pesquisa, o processo de decisão desta obra
contou muito mais com interesses políticos e econômicos, do que com o próprio
potencial energético do rio Madeira. Nas justificativas desta obra, um dos maiores
argumentos era que o custo da energia produzida por barragens nos rios é menor do
Nazaré.
! '$!
informação era bastante visível na localidade e até mesmo entre os integrantes de
entre outras pessoas. Nenhum dos interlocutores que eu tive contato durante o curso
De forma assustadora, a frase que pude ouvir com maior frequência durante o
decorrer da pesquisa foi que a resposta dos responsáveis pela obra era a de que as
barragens do rio Madeira eram tão modernas, pois nunca havia sido utilizado a
tecnologia que utiliza o próprio fluxo do rio para gerar energia, que só seria possível
questionar se, de fato, foram avaliados os impactos causados nas vidas deste homens,
país.
Com relação à Nazaré, foi possível observar a mudança das falas sobre o
2012. Em Abril de 2011, quando perguntava para as pessoas o que elas sabiam sobre
a obra, elas diziam que não sabiam muitas coisas. Contavam que nas falas dos
diversos benefícios.
seria algo bom, pois traria benefícios para a comunidade, com as ações de
compensação ambiental:
! '%!
Que não sabiam bem como seria, mas que quase não ia ter
mudanças. Além disso, eles falaram que teria muita compensação, a
gente acreditou. Eles prometeram 60 poços de Porto Velho a
Calama e a gente precisa de água boa.
(conversa com o professor Artemis, em Março de 2011)
Essa obra vai ser coisa boa para gente aqui do interior. Você viu o
posto de saúde que estão construindo por causa da barragem do
rio? Imagina que a gente daqui poderia ter algo bonito daquele? E
agora tão falando que vai ter escola melhor.... vai chegar coisa
boa. Se isso acontecer, acho bom dessa barragem aí, por que no
final das contas, a gente tava tudo esquecido aqui na beira do rio
antes dessa obra.
(conversa com um senhor na beira do igarapé)
Nesta época foi possível observar quatro grupos de falas muito frequentes. O
primeiro grupo era formado, majoritariamente, pelos trabalhadores que diziam não
saber o que iria acontecer até mesmo no período típico da seca de 2012 (na metade no
ano) e, por isso, não estavam planejando as plantações. O segundo grupo era
constituído por pessoas que diziam temer fazer grandes plantações e, durante a noite,
o rio subir de repente e alagar a comunidade toda (processo que sempre demorou
meses para acontecer, e não horas). O terceiro eram aqueles que trabalham
prioritariamente com a pesca e diziam que os peixes não iam mais descer o rio, pois a
no Rio Jamari (afluente do rio Madeira)24. Para reforçar a crença destes pescadores,
na primeira semana de obras, algumas toneladas de peixes foram mortas por erro de
quatro dias da sexta-feira santa, pois no feriado santo não se podia fazer grandes
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Os impactos da Usina Hidroelétrica de Samuel são muito conhecidos na área ambiental brasileira e considerados
entre os maiores desastres ambientais do país. O termo “água podre” utilizado pelos ribeirinhos diz respeito ao
processo de eutrofização da água, que consiste na morte de peixes devido à falta de oxigênio disponível em
consequência à grande quantidade de matéria orgânica na água (no caso, provida pelas áreas de floresta inundadas
pela construção da barragem).
! '&!
esforços, trabalho pesado, além de brigas e etc., e o rio, por sua vez, também não fazia
pessoas e com o desrespeito do homem pela natureza, o rio não tem mais uma data
(mas que também exercem atividades ligadas à extração de produtos florestais, pesca
e roça) que têm liderado movimentos contra as barragens, debatido as obras e projetos
preocupados com os impactos à cultura local- como Timaia e Anauá, entre outros.
aos desrespeitos às formas de viver desta comunidade, além de ser por meio de grupos
que vão até Porto Velho exigir a garantia de seus direitos, é por meio da músicas, do
ligado à luta pela garantia dos direitos, estas pessoas também afirmam não saber ao
época, já com o rio Madeira barrado, as pessoas contavam do medo da barragem não
! ''!
aguentar a força do rio, da inconstância da altura que o rio estava, dos lagos que
formado pelas novas águas que inundavam boa parte da comunidade. Contudo, de
forma bem diferente dos anos anteriores, em janeiro/fevereiro de 2012, este lago
estava seco. Anauá me explicou que o maior problema era que a época em que as
frutas caíam com mais frequência nesta área, coincidia com o tempo da formação do
lago, o que deixava as águas com alimentos suficientes para os peixes. Com o lago
que este lago encher, pois os peixes não teriam tanta abundância na alimentação.
encontram mais dificuldade na pesca, mas eles tinham clareza da altura do rio e
mais possível contar com este conhecimento, pois o rio estava mudando de forma
formados.
! '(!
comunicação, além de informações trocadas em conversas, tanto em Porto Velho,
diziam que talvez os muros da barragem não fossem fortes o suficiente para aguentar
em consideração a força das águas. Este fato só aumentava o medo dos moradores da
beira do rio.
discursos bravos e indignados com o não cumprimento do que havia sido prometido e
com a vivência das consequências que não haviam sido tão explicitadas. As falas
médio e longo prazo poderiam ser, na verdade, uma forma de convencê-los a não
! ')!
tá tudo diferente, tudo irregular. A gente não sabe o que faz. Além
disso foi falado que, por causa do número de trabalhadores em
Porto Velho, que eles iam comprar a produção do povo do interior
e, com isso, iam aumentar as vendas da gente daqui. Na realidade,
nada disso tem acontecido. Ninguém comprou nada nesse tempo
todo de construção. A gente chegava no cai n’agua com os
produtos e não tinham para quem vender e tinha que vender para o
marreteiro, quando tinha. Quando fui discutir sobre isso eles
falaram que não compravam, pois a gente não tem cooperativa e
nem registro.... mas a gente nem sabe que registro é esse. O povo
pequeno do interior não é ensinado das coisas importantes. O povo
pequeno tem que ficar quieto e ser burro, para ser pequeno e ficar
na precisão. O pior é que não sei por onde olhar.
dificuldades em manter suas formas de viver perante à tamanha alteração do rio, que
possui enorme influência na cultura local. A falta de informação tem servido como
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esquecidos diante de tantas mudanças influenciadas por um fator externo. Sem saber
como o rio vai estar nos próximos ciclos de cheia e seca, estas famílias vão tentando
Isso tudo ocorre ao mesmo tempo em que muitas pessoas que vivem nas
capitais do país, sem ver e sentir de perto o sofrimento destas famílias, afirmam
acreditarem que esta obra trará um grande desenvolvimento econômico para todos e
detalhes poucos discutidos (e por que não dizer negados), são justamente as
ali chega disposto à aprendizagem, o rio Madeira possui papel central no cotidiano
grande influência em suas formas de viver, expondo para todos as dificuldades e lutas
enfrentadas por aqueles que vivem de maneira diversa das ensinadas e regidas em prol
! (+!
4.3) Organização do trabalho em Nazaré
Seu Manduca
ainda muito jovens. Seja ajudando os pais na roça, na pesca, na coleta de produtos
florestais e nas tarefas cotidianas da casa, ou, no caso dos moradores mais antigos,
nos seringais, quase todos os relatos tiveram como eixo central uma juventude muito
fluxo do rio, que tem sua época de seca no meio do ano e a época de cheia no final e
! ("!
a gente ir pro mato pegar seringa e voltar. Com o que eu pegava,
pagava as minhas continhas do barracão e mandava o dinheiro pro
papai.... Nunca mais voltei pra casa.... Cresci e me casei.... Depois
vim para Nazaré quando quase ninguém tava aqui. Tive meus filhos
todos e depois os netos. Trabalhei na seringa depois e agora com a
minha fazendinha. Quero levar você lá. Tenho esse café todo aqui
que planto lá.
É importante salientar que o trabalho tanto com a seringa, quanto com a solva,
meses dentro da floresta para apenas pagar a conta do barracão. Dormiam em suas
redes no mato e, com fogueiras que eles faziam, cozinhavam a carne de caça, peixe e
poucas coisas que levavam com eles. Na volta, caminhavam por quilômetros, com
seus paneiros nas costas, para entregar os produtos ao patrão, que ficava na
localidade. Ninguém soube me informar o quanto eles ganhavam com a seringa, mas
com a solva, como já dito neste trabalho, era cerca de sessenta centavos o quilo, e
cada homem chegava na comunidade com 3 latões em média, o que dava entre 50 e
60 quilos.
! (#!
Seu Zé Ferreira carregando um paneiro feito por ele
misturada com barro). O produto era pesado e, logo em seguida, os cálculos da dívida
da família do freguês no barracão eram feitos. Toda semana chegava um barco que
segundo relatos, seu Nanã chegou a vender em seu porto 33 toneladas de solva de
uma só vez. Nesta época, não era preciso ir para nenhuma grande cidade para realizar
Era um regime duro aos trabalhadores que, muitas vezes, não permitia saída,
! ($!
mantinham suas dívidas com o patrão. Desta forma, o trabalho de coleta da solva e da
homem bom, que ficava na localidade cuidando das famílias e, caso a solva coletada
não fosse suficiente para pagar as contas, eles poderiam colocar a dívida na caderneta
A gente ia para o mato sem data mesmo pra voltar. A gente só sabia
que ia e as mulher na comunidade sabiam que tinham que esperar.
A vida era assim mesmo. A gente ia pra dentro cortar seringa e
depois a solva e voltava carregando tudo lá de dentro do mato até
aqui no barracão. Ia carregando tudo nas costas. Chegava aqui e
pesava... tinha que torcer para pagar tudo né? E quem sabe sobrar
um trocado. A vida não era fácil. Hoje em dia tá melhor. Eu
trabalho aqui mesmo, já não tenho mais saúde para entrar no mato.
Mas mesmo pra essa meninada toda, acho que eles podem ter algo
assim melhor que a gente.
Meu pai que me criou. Eu devo é tudo a ele, pois minha mãe me
abandonou com ele quando eu ainda era um bebê. Aí ele veio aqui
trabalhar com o seu Nanã.... A tia Vena é irmã do meu pai e foi
assim que chegamos aqui... O Nanã e a tia Vena foram muito bons
para gente. Por isso que agora, tudo que eu posso eu faço pra ela...
tenho muita gratidão pelo que eles fizeram. Meu pai ia para o mato
e me amarrava assim no peito e subia para cortar a seringa. Eu não
tinha mãe e ele prometeu que nunca me deixaria e assim ele fez pra
viver. Subia seringa comigo amarrado no peito e assim ele
conquistou muita coisa na vida.
! (%!
castanha e solva e ele tinha que manter as famílias, os fregueses...
Ele vendia comida para o povo... [quando não tinha dinheiro] podia
anotar e os homens traziam o produto para pagar. Depois que ele
morreu as pessoas tiveram que dar um jeito de cuidar de si.
trabalhar com outros produtos, tanto para a venda, como para a subsistência familiar:
! (&!
doente tinha que se virar, não dava pra ficar reclamando não, por
que lamentar não tira a dor. Para chegar aqui, e todo o trabalho é
para o barracão... só dava de pagar conta e sobreviver [...] parecia
que era trabalhar para existir, se não, não tinha o que nós fazer
[...] E a gente tava sempre é na precisão. Não sobrava nada nem
pra mulher comprar um pano e fazer o que vestir. Agora, a gente
planta nossas coisas, nossos meninos também ajudam. A gente é
nosso próprio patrão. Não tem muito dinheiro não, mas é melhor,
sabe?
forma de organização do trabalho que poderia ser descrita como análoga à condição
Naquela época era a época dos poderosos. O seu Nanã era o cara
que tirava mais solva. Cada comunidade daqui do baixo Madeira
! ('!
tinha um dono, eles tinham poder. Quando veio os impostos, eles
não tinham como pagar, ai tiveram que liberar a terra pro pessoal.
Na época já era da união e ninguém sabia... O pessoal ia buscar [a
mercadoria] e entregava pra ele tudo. Era ele que comandava. Iam
buscar as coisas e entregavam para ele. Mas [a terra] não tinha o
documento.
distribuição das terras na Amazônia, já que não ocorre a nenhum dos empregados
morte de seu Nanã. Como já dito no presente trabalho, após sua morte, as terras
forma, é preciso entender as relações e diferenças que são feitas localmente a respeito
Seyferth (1974) pôde observar, assim como no caso desta pesquisa, que nem
sempre nas áreas rurais a transmissão de terras varia de acordo com o código civil,
mas sim de acordo, entre outros aspectos, com o tamanho da propriedade, quantidade
de filhos, qual ou quais filhos possuem direito de herança. Isso ocorre, segundo a
! ((!
autora, para evitar a fragmentação da terra e, portanto, impossibilitar a viabilidade
financeira da produção (em pequenas e médias propriedade rurais, caso a terra fosse
Com relação a isto, Bourdieu (1980), afirma que geralmente existe nestas
áreas uma espécie de fórmula, que funciona localmente, utilizada para calcular a
questão da herança, mas isso não impede que o chefe de família a modifique, caso
ache necessário. Além disso, ele afirma que existem fatores sociais e morais que
influenciam esta questão, porém, os fatores econômicos não podem nunca sair de
vista.
observação mais detalhada. Contudo, podemos afirmar que, com a morte o patrão,
não houve quem herdasse a propriedade, pois sua filha, que até os dias atuais briga
pela terra, não foi considerada uma herdeira legitima. Aconteceu, neste momento,
comunidade. Desta forma, a figura do patrão não faz mais a mediação entre as
pessoas e a terra. Sobre isso, um dos moradores da comunidade, certa vez, me disse:
Em uma primeira análise, ainda inicial, foi possível observar que em muitos
casos, as filhas mulheres, em geral, não recebem a herança, elas se casam e vão morar
! ()!
com os seus maridos. Contudo, este é um assunto que necessita um estudo mais
detalhado. Por exemplo, não foi possível observar nesta pesquisa como geralmente
acontecem com as famílias caso um filho ou filha não se case, ou como são as
os relatos, coincidiu com o fim do que eles chamam de ciclo da Solva e inicio do
fato de importância fundamental é que com a morte do patrão, tiveram que se adaptar
para trabalhar numa terra sem dono. Assim, houve uma nova forma de gerar renda e
tais como açaí, andiroba, cupuaçú, entre outros (a pesca, nesta época é muito mais
mandioca, melancia e outros produtos, além da pesca para venda. Como já dito no
segue uma divisão de terras que, embora não oficializada na prefeitura de Porto
inclusive, de reposição dos nutrientes da terra e para lavar a terra dos insetos,
! (*!
segundo os moradores locais) e pela grande dificuldade na pesca para a
água. Além disso, durante a cheia do rio, animais como jacaré e cobras estão mais
próximos das casas e, portanto, mais espalhados pelas comunidades. Já na seca, não é
possível coletar açaí, castanha, entre outros, pois a época destes produtos é na virada
do ano.
outros produtos em menor escala como milho, feijão, café. O trabalho dos produtores
do trabalho. Porém, quando a produção é maior que a força de trabalho familiar, ele
contrata um filho homem de outra família mais numerosa ou com quantidade de terra
salários. As casas são constituídas pelo patriarca, sua esposa e filhos. Os filhos
casados geralmente mudam-se, mas acabam construindo suas casas bem próximas das
casas dos pais (ou da esposa ou do marido), sendo que as famílias acabam se
encontrando com frequência nas casas umas das outras, principalmente nos momentos
das refeições.
produção capitalista e o modo de produção camponês e, por isso, existe uma distinção
! )+!
entre o proletariado e o campesinato. Esta distinção está justamente na relação entre o
roçado, mas também maior o consumo. Desta forma, como observado em Nazaré, o
Ainda que exista esta divisão de terras e do trabalho familiar, isso não
significa que o trabalho não possa depender da ajuda de outros. Muitos moradores
relatam histórias de mutirões com o intuito de ajudar a família de algum produtor que
adoeceu.
por exemplo, eles dizem que antigamente era propriedade de Seu Nanã. Com a sua
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
Rancho, na localidade, significa comida.
! )"!
morte, todos passaram a coletar estes produtos e fazer a sua própria venda. Segundo o
abundância e seu preço varia entre 8 reais a lata até 20 reais, dependendo da época.
das comunidades para a capital sem nenhum custo para o produtor. Entretanto, este
produtor precisa viajar sozinho (sem nenhum acompanhante que o ajude) e não existe
um barco que o leve de volta para sua comunidade, desta forma, ele precisa arcar com
Os produtores vão procurando “pequenos furos” nas regras deste barco para
que possam viajar com alguém que os ajudem nos momentos de carregar e
forma, eles conseguem viajar em 3 pessoas, quando a safra é muito grande para
apenas um, ou quando algum deles precisa ir para a cidade, afinal, as viagens de barco
não são baratas. Podemos observar estas estratégias em várias ações dos moradores da
! )#!
Após chegar em Porto Velho, o produtor depende do preço oferecido pelos
Eu planto meu café... esse que você ta vendo alí. Aí tem que levar
nesse barco da produção pra Porto Velho, mas agora não tô
levando não. Os atravessador não tão pagando nada. Pra dar pra
alguém sem lucro nenhum, só com o dinheiro da volta meu e dos
meninos, que prefiro é dar para quem é amigo. Um tempo atrás fui
pra Porto Velho pra vender o café e eles não queriam pagar é nada
pela saca... mas era nada mesmo... Eu não sei nem ler e nem
escrever, mas eu sei o quanto tem em uma saca de café, uma lata de
castanha e uma lata de solva. Eu sei o valor do trabalho. [...] Eles
não queriam pagar nada, eu falei pro meu menino: ‘vamos jogar
tudo no rio madeira’. Jogamos tudo no rio e na frente do marreteiro
mesmo. Ser explorado? Eu não... Já sofri demais. Comecei
trabalhar muito menino e não pude aprender a ler e escrever. Não
virei doutor. Mas não vou dar o café de graça pra esse povo!
Agora, se você quiser um café, pode vir aqui! E pode trazer seus
amigos também, que café e peixe, isso a gente sempre tem pra
oferecer!
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
Marreteiro ou atravessador são as pessoas que compram as mercadorias dos produtores do interior para revender
para os mercados da cidades. Desta forma, até chegar no consumidor final, estas mercadorias passam por vários
intermediários e quem menos ganha por elas é o produtor rural.
27
Rua é a forma com que os moradores chamam a cidade (no caso, Porto Velho).
! )$!
Outro ponto de dificuldade para agregar valor à mercadoria do produtor rural é
outros, pela falta de água potável, pela instabilidade de energia elétrica ou pelo alto
preço do gás de cozinha para fazer doces, por exemplo. Os produtos os ribeirinhos
até a venda, os pequenos produtores rurais vão encontrando em seu caminho diversos
(que são como eles chamam as vendas locais), dois bares, dois restaurantes e uma
lanchonete, além de uma senhora que vende sorvete na varanda de sua casa.
artesanais (como bolos, panos de prato, trabalho de manicure e etc.). Elas também
época do patrão, as mulheres cuidavam sozinhas da roça, mas que era estritamente
! )%!
As que trabalham fora de casa, são funcionárias da escola, ajudam seus
trabalham na escola). Porém, geralmente não participam nas tarefas pesadas das
florestais. De forma resumida, elas são responsáveis pelos trabalhos que dizem
trabalhos relacionados ao sustento financeiro da casa. É claro que pode haver casos
que funcionem como exceção, que existam mulheres que fazem trabalhos para o
filhos.
no qual as terras ficam sem um dono que gerencia o trabalho. A relação com a terra
não é mais mediada pela figura de seu Nanã e a comunidade organiza uma nova
! )&!
No presente momento, a comunidade passa por mais uma mudança em seu
ritmo de trabalho, a partir das transformações do fluxo do rio. As dúvidas com relação
futuras, teria certamente contribuído para que esta fase de transição ocorresse de
ritmos naturais de uma grande obra de produção de energia. Estas incertezas estão
! )'!
4.4) Lendas, religiosidade e manifestações artísticas
O boto ia pra festa e só queria dançar. Ele era liberado. Uma vez
eu vinha com o meu filho de canoa e ele não sabia pilotear bem. Eu
dizia: “meu filho piloteia” e ele não fazia nada e não me dizia
nada. Eu dizia: “Meu filho piloteia”. Ele não me dizia nada com
medo de assustar o boto e ele virar nossa canoa por isso ele não
fazia nada era para não pegar no boto. Eu falei então deixa quieto
meu filho...vai remando, mas respeita o espaço do boto... Se você
não respeitar, o boto vira o barco... Mas se você souber que é
preciso respeitar, nada acontece. Isso aconteceu mesmo Andrea.
Tem camarada que não respeita, e o boto da rabada e ele vai parar
no Igapó, ou vira.
complexo, por dois motivos: primeiro pelo sincretismo cultural e religioso que se
Maciel (2010), Vegini e Vegini (2012) e Câmara Cascudo (2000), que pesquisaram as
! )(!
profundamente interligadas e podem ser consideradas de extrema importância para
passado, entre tantas diferentes respostas. Porém, algo em comum em todas as falas
amazônicas (que são bem diferentes das quadrilhas do sudeste), dançar o boi, o
mutuamente no processo.
acontecimentos atuais.
Raízes”, grupo criado por Timaia e seu irmão Tullio, que narra a rotina da vida na
comunidade:
! ))!
Vai pescar, vai pescar (Silvia Helena e Timaia dos Santos)
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Macaco prego: Lago presente na região – o mesmo que não se formou no ano de 2012.
29
Palha Branca: Lago na parte de trás da comunidade.
30
Menina em Tupi.
! )*!
E ela não ouvia, e eu já sabia, o que ia acontecer
Ela era da cidade
Não sabia das maldades
comunidade e das localidades de origem dos habitantes com as lendas locais, crenças
por Anauá, Timaia, seu Mundico, professor Artêmis, entre tantos outros, ela caminha
atenção.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
Ir para a margem do rio.
32
Planta tóxica existente na Amazônia.
33
Espécie de boto que, segundo a lenda local, tem o poder de espantar o boto rosa.
34
Espécie de boto que, segundo a lenda local, engravida as mulheres ou seu espírito “invade” o corpo das pessoas.
! *+!
Eu me lembro duas coisas interessantes. Uma é as crianças fazendo
teatro desde cedo e eles cantando. Imagina pensar na formação
baseada na cultura local, sem deixar de estudar, sabe? Os
adolescentes de hoje, a maioria deles sempre volta nos festejos. A
cultura aqui em Nazaré é tão forte, porque aqui as pessoas sabem
que podem contar e participar... Acho que aqui é mais forte do que
nas outras comunidades do Madeira por conta do que o pai fazia na
escola, de sempre contar as histórias, de mostrar que ele valorizava
isso. Ele era um líder natural aqui e as pessoas respeitavam ele e
viam que ele valorizava o que era nosso! No fundo, as pessoas
daqui sentem incentivo e liberdade de contar as histórias e falar do
que é da Amazônia, do boto, do neguinho da mata... [...] Aqui tem
uma coisa... eu... sou assim, uma opinião minha é meio feio de
falar, por que eu sou daqui, eu gosto muito daqui! Aqui tem uma
coisa diferente, tem uma aura, as pessoas que saem sempre voltam,
elas não perdem o vínculo.
(Timaia, março de 2013)
desta pesquisa, ele é filho do professor Maciel e cresceu em meio a livros, festejos,
música, teatro e poesia. Isso tudo, junto das histórias e lendas locais, foi sempre tão
presente em sua vida, que ele não sabe bem dizer quando foi que começou a trabalhar
com os projetos de cultura local. Ele nasceu na comunidade, porém, depois de alguns
anos teve que se mudar para concluir seus estudos. Se formou na escola e na
faculdade de letras para ser professor em Nazaré, como seu pai. Hoje, Timaia é
O minhas raízes foi um grupo criado, principalmente, por ele e seu irmão
Tullio, mas com um grande incentivo de seu pai, dos integrantes da “velha guarda” da
comunidade (professor Artemis, seu Zé Ferreira, entre outros) e de seu amigo Anauá,
! *"!
inicial era a de, junto com crianças e jovens da comunidade, cantar músicas que
falassem da história local, das lendas e formas de viver da região. Junto disso,
Hoje, o grupo cresceu e em parceria com outras pessoas, como o Anauá, o Tullio,
entre outros, criou-se o instituto “Minhas Raízes”, que tem como missão realizar, em
Bioinstrumentos construídos em Nazaré por Timaia e outros integrantes do grupo Minhas Raízes
É tão difícil falar como tudo começou. Porque assim, não fui eu ou
o outro. Em Nazaré parece que as crianças são escolhidas por Deus
para estarem aqui, elas nascem muito talentosas. Mas o pai sempre
fez as coisas, sempre fez o teatro, os festejos, o seringandor, o boi...
Eu continuo com a ajuda de outras pessoas. Tipo o Anauá sempre
participa e outras pessoas! O Minhas Raízes é uma história muito
bonita... Desde a época do pai, que ele fazia os festejos e teatro,
educação, a fanfarra, mas era tudo muito aqui em Nazaré só. Os
teatros regionais ele fazia de baixo de tapiri de palha, na vela
! *#!
mesmo. Com muita gente. Chegou o momento que a gente falou: a
gente precisa mostrar isso para fora. Ai a Silvia Helena e o Tullio
falaram de criar algo que mostrasse as coisas da nossa vila. Aí o
pai falou assim: poxa Timaia lá no Uruapiara a gente tocava com
tambor de madeira ocado. Aí eu pensei em fazer instrumentos
nossos que fosse a cara da gente, de ouriço de castanha, madeira,
essas coisas. Eu e os meninos daqui de casa começamos a produzir
os instrumentos. Nós fizemos seis músicas: minhas veias, curupira,
depois a da cobra, depois veio a da correnteza. Hoje o Minhas
Raízes é bem mais que um grupo de música. Tem o teatro com o
Anauá, tem outras coisas.
(Timaia, fevereiro de 2013)
Podemos pensar que estas crianças são tão talentosas justamente porque
somente por meio da arte, mas criando um espaço no qual crianças, jovens e adultos
podem, a partir do vínculo com o passado, viver o presente e criar planos de futuro.
saudável. O viver criativo não se reduz à atividade artística, engloba uma forma de
espaço que não é propriamente uma realidade interna e tampouco uma realidade
externa, um campo de atividades comunitárias que permite uma relação pessoal dos
! *$!
comunidade a realização de atividades ligadas à cultura da Amazônia – do caboclo
ribeirinho, das raízes indígenas, dos povos da floresta! O professor Maciel, junto do
comunidade: eles escrevem os textos a partir das histórias locais, fazem os cenários,
A “paragem cultural” é muito legal, Andrea. Você tem que vir ver!
O povo já espera ela acontecer na época do natal. Começou por
causas das comédias do professor Maciel. Depois que ele morreu,
não fizemos mais, aí o povo sentia falta. Um dia eu e o Tim
pensamos em fazer de novo. Fui pra casa e comecei a escrever... a
gente ficou trabalhando nisso e começamos a falar com o pessoal
que gosta de teatro e todo mundo ficou animado! O Léo meu filho
foi ator, a Aleita, eu, um monte de gente. As histórias era daqui
mesmo, a gente fala da dona Preta, da cobra grande e assim vai.
! *%!
Vamos assistir um dia aqui. Eu tenho um dvd com o teatro que um
menino amigo nosso gravou! [...] Falando nisso de cultura, teve
uma vez que veio um cara de fora, acho que era de Manaus. Ele
tinha um projeto de trazer cinema para as comunidade aqui do
baixo Madeira, sabe? Dizendo que ia trazer cultura pra gente, vê
só... Aí ele chegou aqui na comunidade com aqueles aparelhos
todos. Não falou com ninguém e foi logo montando a apresentação
lá no piseiro... acabou que ninguém foi. Ninguém apareceu. Ele
ficou bravo. Falou que a gente era um povo sem cultura... sem
interesse. A gente falou pra ele que não. Ele é ficou duvidando...
acabou que falamos pra ele deixar a gente mostrar um filme nosso
então. Mostramos o filme do teatro aqui de Nazaré, fomos
divulgando, pedimos ajuda pro pessoal, o povo foi se envolvendo,
sabe? Nossa.... foi lindo. Não tinha mais onde colocar gente, tinha a
tela e aquele povo todo assistindo e rindo. Mostramos pra ele que a
gente tem sim cultura, mas não adianta vir com as coisas assim de
fora [...] Teve uma outra vez que a gente tava falando de fazer a
rádio comunitária, lembra? Nossa, a gente quer muito que esse
projeto dê certo, Andrea. Aí teve o pessoal da compensação
ambiental da Santo Antônio que veio fazer levantamento do que a
gente precisa aqui. Dividiu em cultura, educação, saneamento,
saúde... Foi difícil escolher em que grupo ir. Tem tanta coisa... aí eu
fui no de cultura. A mulher falou que tinha que ter um curso para
ensinar a gente a falar em rádio, por que tinha técnica, ela falou
que não pode falar assim de qualquer jeito. Ah... isso eu não
concordo! A gente tinha a rádio aqui com o professor Artêmis e o
professor Maciel! A gente não precisa de ninguém de fora
ensinando a gente a falar! Aqui tem o dialeto próprio! Eu falo em
riba da mesa, falo curumim, falo peia... Preciso aprender sobre os
aparelhos, mas não quero falar como se não fosse daqui!
teatro. Elas fazem parte do dia a dia da vida de alguns moradores de Nazaré. Lembro
com detalhes as tantas conversas na casa do Anauá, com seus 4 filhos e 2 sobrinhos
(que ele e sua esposa criam) em volta, lembrando e contando as histórias de sua
infância e as histórias que seu pai lhe contava. Falava também sobre Dona Preta,
curandeira local, sobre as lendas do mato e as simpatias que seu pai, também
! *&!
com alegria. Já as menores sorriam e se espantavam, cada uma com a atenção de
Anauá conta que seu pai era curandeiro e que antigamente, com a falta de
Meu irmão era uma pessoa que entendia muito das rezas. Chegava
aquelas mulheres na casa dele e falavam “Ê seu Manel, eu vim aqui
pra você rezar pro meu filho que tá doente com pescoço mole.” Ele
então esfriava o corpo do roçado, ia em volta da casa pegar ervas e
folhas, voltava e fazia a reza. E falava iiihhh, você vai ficar bom. Aí
você perguntava pra ele o que fulano tem? Ele falava, nada de
mais, ele vai ficar bom, traz ele amanhã de novo aqui e eu vou dar
outra reza e ele vai ficar bom. No dia seguinte a mãe chegava lá e
ele perguntava, como o menino tá? Ah, seu Manel, agora ele tá
bom. Ele então fazia outra reza. Teu filho vai ficar bom, aí sim ele
dizia o que ele tinha. As vezes a pessoa chegava assim chorando
com algo de dar medo. Ele botava o dedo assim e rezava na pessoa.
A pessoa chegava com uma dor de cabeça, com qualquer coisa e
ficava bom, com um chá, banho ou purgante! Tinha um bando de
gente vermelha e ficava bom rapidinho. [Pergunta: O que é gente
vermelha?] É quando a pele fica assim todinha vermelha, sabe?
[Pergunta: Mas como a pessoa pega isso?] Não sei não! Mas as
pessoas ficavam boas rapidinho, maninha!
(Dona Vena, Fevereiro de 2012)
As rezas e chás feitos pelos curandeiros fazem parte do dia a dia de muitos
! *'!
tremendo, fraca desse jeito e não tenho nada? O médico ainda fazia
é piada dizendo que se eu arrumasse um namorado eu ficava é boa.
Eu não melhorei e falei assim pra minha filha: sabe de uma coisa,
faz um mês que eu tô em Porto Velho doente não melhoro. Eu vou é
pra casa e vou morrer em casa que é melhor. Vou ficar aqui não.
Vim me embora. Depois de uns 3 dias chegou a comadre finada
Chica, mulher do seu Pantoja. Ela chegou em casa e perguntou
“comadre, porque não vai a senhora na Dona Preta, compadre
Maciel fretou um barquinho para levar a menina dele aí eu vou
aproveitar e ajudar minha comadre a levar o menino dela junto,
porque você não vai?” Eu falei “rapaz, se o Maciel vai então você
diz pra ele se ele me dava a passagem ou eu ajudava a pagar”.
Depois ela voltou rapidinho e falou “comadre, o Maciel falou pra
senhora se arrumar que ele vai te levar”. Eu arrumei minha
malinha com uma roupinha assim de manga comprida, porque lá só
entra com manga comprida. Sainha comprida, toda arrumadinha.
Coloquei uma lata de leite, de sardinha uma farinha, tudo
arrumadinho. O Maciel foi me buscar e pegou minhas coisas e
quando eu cheguei na beira minhas sacolinhas estavam com a dele
no motor [barco] que ele fretou.
Aí ela pergunta por que o menino não comeu, aí ela pergunta quem
tá melhor, aí ela pergunta com quem você veio e o que você tem.
Ela já vai rezando enquanto você responde. Rezando, rezando sem
parar! Aí ela vai passando os medicamentos. Tantas horas, tanto
isso, tanto aquilo. O escrivão vai anotando. Eles passaram uns vão,
3 dias de água ardente Alemanha para passar no corpo e um
purgante.
! *(!
Alvina, mulher dele que ia em Porto Velho comprar para a menina
dela, trazer o meu. Eu não podia comer sal nem um monte de coisa
por causa do purgante. Aí a comadre Alvina mandou um recado
pelo Maciel que ia me buscar para cuidar de mim.
Era um chá da laranja que eu tinha que tomar todo dia as duas
horas da manha e ficar quietinha e deixar purgar.
Dona Preta, como já dito, é a curandeira da região. Ela recebe uma entidade
que cuida da saúde das pessoas, possui guias espirituais e benze quem a procura,
demonstrando aspectos das religiões de matriz africana. Seus guias, porém, são os
Ela também usa as cantigas e rezas católicas. O que mostra a rica mistura da
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Cumbeira na beira do Rio Madeira
! *)!
Minhas Raízes, é bastante comum as pessoas se juntarem para dividirem as despesas e
irem até a comunidade que ela mora (também no rio Madeira) para os atendimentos.
Entretanto, também é bastante comum as pessoas chegarem lá, dizerem o que sentem
Há também aqueles que se dizem católicos, mas vão nos cultos evangélicos, como por
exemplo a Dona Vena, que afirma ir à igreja evangélica pela proximidade com sua
casa.
moram na comunidade e, por isso, os cultos são mais frequentes (todas as igrejas
possuem culto pelo menos uma vez na semana). Já as igrejas católicas não possuem
um padre que more na comunidade, desta forma, as missas são mais raras, geralmente
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Dona Preta sabe benzer…
Cobra Grande foi quem me falou
Igapó foi quem me mostrou e mãe d’agua também confirmou
Que este causo é pura verdade, Doutor!
E quem quiser que conte outro
(bis)
Cumbeira na beira do Rio Madeira.
! **!
nos festejos mais importantes e na Páscoa. Existem celebrações semanais na igreja de
fora, feita pelo presidente da igreja católica, que é também catequista. Na igreja de
dentro, algumas celebrações são feitas, organizadas principalmente por Timaia e sua
família.
Muitas da pessoas que são católicas relatam irem se benzer ou fazer algum
tratamento com Dona Preta. Porém, alguns protestantes da comunidade dizem que
estas práticas não são autorizadas por seus pastores e, desta forma, estão impedidos de
realizarem estes tratamentos. Com relação a isto, também, muitas das pessoas que são
comunidade de “festejo da cultura”. Ele acontece durante uma semana, sendo que por
alguns dias as atividades são de rezas (novenas) e pequenos bingos e, nos dois últimos
região de origem de alguns dos moradores antigos, assim como o professor Maciel).
! "++!
Esta, sem dúvida, é uma experiência rica e necessária para todos que queiram
Nazaré.
janeiro, o de São Sebastião. O maior festejo mesmo é o de Junho, de São Pedro, que é
Eu me perguntava se tudo o que podia haver ali e em tudo que eu vira desde a
véspera em Pirenópolis que pudesse ser “pra não esquecer quem são”… Por que
as pessoas contam e recontam as estórias que ouviram dos avós e entre si repetem
lendas do sertão? Por que criam? Por que cantam?… Por que não são apenas
prática e funcionais e, afinal, não dividem os seus dias entre a fábrica e a TV
Globo? Por que, ao contrário, não cessam de caçar os sinais da beleza, da crença e
da identidade rústica que existem nas coisas que nós, eruditos e urbanos,
chamamos de folclore? (BRANDÃO, 1982, p. 11-12)
relação artística que leva em conta essas tradições, compõem o cenário de um fazer
envolvem uma relação com o fazer criativo que só pode manter-se vivo enquanto as
! "+"!
4.5) Vida política – vida comunitária
que falar em cultura. Termo já discutido por muitos autores e que, segundo
quando afirma que o conceito de cultura foi criado por antropólogos justamente para
viver.
(2010) que, apoiada nas lições de Whitaker (2006), nos alerta , com veemência, sobre
! "+#!
a importância da diferenciação entre aqueles elementos que são culturais e aqueles
Para Alfredo Bosi (1992), se um dia for possível fazer uma teorização da cultura
brasileira, será necessário ter como fundação (no próprio sentido de sustentar e apoiar
indivisível. De acordo com Alfredo Bosi, não há como separar as esferas materiais da
justamente falar das formas de viver de seus moradores – que se constroem em uma
trabalho entrariam neste tópico final. Sobre esta indivisibilidade, Alfredo Bosi, ainda
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
A autora se apoia no conceito de ideologia criado por Marx a Engels.
! "+$!
...O intento é deixar bem clara a indivisibilidade do homem rústico, de corpo e
alma, necessidades orgânicas e necessidades morais. Essa indivisibilidade é difícil
de ser aprendida pelo observador letrado que, por não vivê-la subjetivamente,
procura recortar em partes ou em tópicos, a experiência popular, fazendo dela um
elenco de itens separados, dos quais alguns seriam materiais e outros não.
(BOSI, 1992, p. 324)
maior dificuldade deste trabalho é fazer justamente uma síntese sobre este tema.
direitos, lutas cercadas de magia, mitos, lendas que se apresentam no dia a dia da
comunidade, sem se utilizar de uma organização textual que divida estes itens e que
traga tanto ao leitor, quanto à pesquisadora, clareza dos pontos que surgiram ou que
Como falar sobre as plantações, cheias e secas do rio e extração de castanha, sem
divisão. Alfredo Bosi apresenta em seu livro uma discussão das culturas populares de
forma generalizada. Seria, portanto, importante, para pesquisas futuras, uma maior
reflexão sobre como apresentar estas tramas culturais, como realizar a descrição
com a menor divisibilidade possível, mas que possa trazer ao leitor alguma
! "+%!
comunidade, nos ritmos de vida e trabalho e nas diferentes formas de manifestações
artísticas, entre tantos outros itens, vamos neste tópico tratar as partes que ainda não
foram discutidas na presente pesquisa, mas que podem ser consideradas de extrema
centrada nas tarefas da casa e de cuidado com a família. Um indicativo disso pode ser
mencionada neste trabalho, nas quais os filhos homens são herdeiros, pois irão
precisar sustentar suas mulheres e crianças, enquanto suas filhas serão sustentadas por
ou em outros locais, a não ser com seus vizinhos de casa e durante as atividades
bolos, comidas, panos de prato com desenhos feito por elas, entre outras coisas (esta
ação de trocar presentes é bastante comum entre as mulheres, mas não excluem os
homens, que também costumam fazer troca de presentes entre famílias – como com
peixes, frutas, castanhas, milhos plantados em seus terrenos e etc). Estas trocas
! "+&!
são, na maioria da vezes, responsáveis pela vida pública familiar. Como já dito, é
importante reafirmar que esta análise, contudo, não exclui o fato de que mulheres em
e que homens também podem eventualmente assumir o cuidado das crianças. Ambos
casas próximas às casas dos pais (ou da esposa ou do marido), permitindo que as
Além disso, na ausência dos pais, os parentes mais próximos, a irmã ou o irmão mais
Existe também, entre estas famílias, uma forte presença de ajuda mútua.
Esta ajuda envolve levar a pessoa adoecida para sua própria casa, ou realizar visitas
diárias à casa de quem está adoecido para fazer curativos, ajudar no banho, entre
outras ações. Além disso, é comum mandarem comida preparada, pesca e produtos da
roça para a família. Estas pessoas passam de amigos para compadres e comadres e,
segundo os relatos locais, de tão amigo, se torna até família e, muitas vezes, mais
família do que quem tem seu próprio sangue (Dona Vena, Fevereiro de 2012). Fato
que pode indicar que família e parentesco nesta região não possuem o mesmo
significado.
produtores se organizarem para trabalhar nas terras de algum homem que adoece.
! "+'!
Comunitário pelo professor Maciel, após uma grande cheia que resultou na destruição
O banco é uma história muito legal porque foi tipo uma estratégia
dele mesmo. Eu demorei para entender. Eu tinha na época uns 8, 9
anos... por aí. Teve uma cheia que foi uma das maiores. Nazaré não
tinha funcionário público. Era só pesca e agricultura, mas bem
mais agricultura. O pessoal tava ainda começando a plantar
melancia, que é o que hoje em dia dá mais grana. Eu me lembro que
banana, melancia, milho, eles plantavam muito e essa enchente
acabou com tudo. O pessoal tava meio desiludido e começaram a ir
embora. O pai começou a ficar preocupado assim... ele gostava
muito da comunidade e muito das pessoas que moravam aqui. Ele
ganhava muito bem na época. Ele era funcionário federal, né. Aí ele
pensou assim: poxa, eu vou entregar parte do meu dinheiro e fazer
um banco. E assim, ele tinha um grupo muito bom. Era um grupo
da igreja, mas que não era só da igreja, eles trabalhavam pra fora
[...]Ele pegou uma parte do dinheiro e comprou umas coisas de
mercearia e perfumaria. Ele pegava o dinheiro e comprava as
coisas e deixava o dinheiro no banco para o pessoal emprestar e
tinha uma moedinha própria que chamava guri. Tem um pessoal
que ainda tem tudo. O pessoal fazia tudo certinho. Eles foram
emprestando guri para comprar as coisas que eles precisavam,
porque a cheia destruiu tudo mesmo e não tinha como o povo ficar
aqui e não tinha de onde eles tirarem dinheiro. Então emprestavam
guri e os produtos eram baratos, aí eles podiam comprar as coisas.
Aí, conforme tudo foi melhorando, as pessoas foram pagando de
volta aos pouco e o banco fechou. Foi assim, o negócio tava indo
muito bem. Foi na época que nós tava terminando a quarta série.
Ele teve que sair para levar a gente pra estudar. Aí, como já tinha
feito o objetivo ele de ajudar as pessoas a ficarem aqui, ele fechou o
banco.
(Timaia, Fevereiro de 2013)
feitas em Nazaré, como já apontado anteriormente. Neste pesquisa não foi possível a
construir as novas casas em Nazaré não é feita aleatoriamente. Assim, para qualquer
! "+(!
O território da comunidade, como já dito anteriormente, é dividido por uma
ponte que, segundo os moradores locais, possibilita a locomoção nas áreas “de dentro
diferença entre as duas áreas ou, como dito por alguns dos habitantes, “bairros” da
comunidade que fica mais próxima do rio é chamada de “lado de fora” e a área mais
distante de “lado de dentro”, ou de “terra seca”, pois não alaga nas cheias do rio.
Ponte
Mapa do distrito de Nazaré feito pela equipe do projeto NAPRA (para mais informações
www.napra.org.br)
Foi possível observar que as diferenças das regiões está muito além da simples
! "+)!
comunidade que, anteriormente, pertencia ao patrão da comunidade vizinha. Desta
Neste local existe um calçadão, que facilita o uso de carrinhos de mão para o
água canalizada e pintura do lado de fora das paredes de madeira. Além disso,
média, maior renda familiar. Está também localizada nesta região a igreja de Nossa
simples, sendo que muitas delas ainda não possuem sistema de encanamento e, por
! "+*!
isso, têm os banheiros do lado de fora (com o sistema de buraco negro). Existe nesta
região uma igreja católica construída principalmente pela família de Timaia, com
ajuda de amigos, como seu Manduca, por exemplo. Nesta área, encontram-se a escola
por exemplo, em Nazaré. Se a própria tradição e a cultura popular, como dita por
impacto nas formas de vida tradicionais. Não defendo aqui a exploração do trabalho
! ""+!
Igreja do lado de dentro da comunidade
não exclui a presença de todos durante os eventos, além de ajudas pontuais, porém o
trabalho maior de organização e logística é separado por estes grupos. Como por
produtores, sendo que o presidente reside na área de fora e recebe mais ajuda das
que é indicado pela prefeitura a cada quatro anos ou após sua demissão (voluntária ou
administrador comunitário não ser votado por eles, ele não os representa. Em
administrador. Segundo os relatos, por ele ser indicado pela Prefeitura (que determina
administrador com o que e é decidido em Porto Velho fica quase que impedida.
! """!
relação à educação formal e não formal, às manifestações artísticas e eventos
religiosos.
professores, entre outros) merece, sem dúvidas, uma observação mais detalhada, que
pude acompanhar uma reunião organizada pelos moradores da comunidade para pedir
que fosse aberta uma sala do EJA (Educação de Jovens e Adultos) em Nazaré. Alguns
moradores haviam organizado uma lista com todos os nomes das pessoas que
gostariam de concluir seus estudos, mas que não tinham condições ou que não
queriam se mudar da comunidade. Eles levaram esta relação para o atual diretor da
diretor37.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Ao voltar para a comunidade em Janeiro de 2012, perguntei ao diretor o que havia acontecido com o pedido para
a secretaria de educação e ele falou que foi recusado, com a justificativa de que o governo estadual estaria
! ""#!
Dias antes deste encontro, havia acontecido na igreja da comunidade uma
produtores locais e suas demandas, contudo, em nenhum momento abriu espaço para
acordo com o que ele já tinha interesse em realizar, elas eram interrompidas. Sua ideia
interesse dele ter uma agroindústria no local, pois eles tinham outras necessidades
mais urgentes. Ao ouvir isso, o representante da Secretaria respondeu que caso eles
não aceitassem a agroindústria, o poço artesiano para o acesso de água potável não
seria construído. Com esta resposta, um outro produtor se levantou e disse que não
achava justo que eles só tivessem água potável caso aceitassem a agroindústria. Após
esta fala, o representante da Secretaria disse que a agroindústria era uma prioridade da
Prefeitura e que deveria acontecer e, a partir deste momento, não permitiu que
A diferença entre as reuniões era clara. Numa havia o encontro entre iguais,
encontro de rostos e vozes, que juntos reconheciam o sofrimento que viviam por não
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
construindo uma escola que iria atender até o final do ensino médio, portanto não havia necessidade de investir em
um programa do EJA na localidade. Desta forma, ignorando as diferenças entre o programa de Educação de
Jovens e Adultos e o ensino médio regular.
! ""$!
poderem finalizar seus estudos, mas que unidos tentavam lutar pela garantia de seus
direitos.
de classes e destruindo a dignidade dos habitantes de Nazaré que, para terem o acesso
dominador, que não enxerga naquelas pessoas homens e mulheres, mas sim corpos
que, com sua força de trabalho paga com salários irrisórios, vão gerar capital para o
comercializado pelo ribeirinho), a proposta foi passada de forma vertical, não abrindo
possibilidade para o diálogo junto dos produtores, que não puderam indicar a forma e
com qual produto gostariam de trabalhar. No final da reunião, muitos dos presentes se
desta forma, precisariam fazer o que fosse necessário, já que eles não poderiam arcar
semelhança com o que Simone Weil escreve em seus diário de fábrica, quando ouviu
de uma colega a seguinte frase: “É preciso ser mais conscienciosa quando se tem a
vida a ganhar” (WEIL, 1979, p. 91). O cidadão pobre, que vive na linha de frente os
problemas de uma sociedade de classes, precisa submeter seu tempo, espaço e forma
de trabalho à condições impostas por interesses alheios, pois eles precisam também se
! ""%!
preocupar com a existência básica do dia a dia. Existe uma vida a ganhar e o preço
disso, numa sociedade de classes, em muitos casos, é autorizar que o outro faça a
gerência de sua vida. Weil, ao falar sobre os impactos de não possuir o direito de
gerência do próprio tempo e espaço, afirma: Que bom seria poder depositar a alma, à
entrada, no cartão de ponto e retomá-la intacta à saída! (Simone Weil, op. Cit. P.
86)
assim como o Anauá, quanto às possíveis atividades de uma rádio comunitária, como
já citados anteriormente.
Porto Velho e exigirem a garantia de seus direitos. Sobre isso, Jeferson, em Fevereiro
de 2012, fala:
primeira entrevista (em março de 2011), como foi que Nazaré se tornou colégio
eleitoral:
! ""&!
Quando eu cheguei eu fiquei preocupado pela seguinte forma,
porque as coisas faltavam e ninguém sabia por onde começar a
procurar. Aí, na época de campanha eleitoral me nomearam para
ser mesário em Calama. Eu fiquei de levar o pessoal. Eram só 21
eleitores para Calama e o pessoal passou reto e deixou a gente aí
na beira. Eu fiquei revoltado com a falta de cuidado com o povo.
Eu peguei um sábado a tarde antes da próxima eleição para
governo mesmo. A eleição era dia 15 de novembro. Daí peguei
minha rabetinha e falei para a esposa que não sabia quando
voltava. Fui até o curicacas e voltei com 101 títulos. Além disso,
começamos um trabalho de alfabetizar o povo aqui, para poder
votar. Eu cheguei a Porto Velho e fui falar com os candidatos para
ajudar... Esse povo vê que tem eleitor e ajuda, querendo é votos. Ai
já me levaram no TRE e quando voltei tava garantida a urna em
Nazaré! Já trouxe a gasolina para o povo transferir o titulo para cá
e depois vir votar. É obrigatório votar, mas o povo tinha é que
gastar dinheiro com gasolina para ir até Calama. Isso trouxe
benefício para a comunidade. Porque aí tivemos saúde,
comunicação, escola melhor.
entre seus moradores. Iniciados nos finais das rezas na igreja, nos bares da
amigos.
comunidade. Não apenas de encontrar aqueles que chegam de outras localidades, mas
também de ir conversar com quem já estava em Nazaré, mas está esperando o barco.
As pessoas que voltam são recebidas pelos moradores que ficaram na comunidade e
se afastam cada vez mais dos limites físicos e geográficos da região. As relações
! ""'!
Como dito por John Comerford (s/d), podemos considerar que a vida
configura uma “comunidade moral”, pois cada um se posiciona por relação ao outro,
por meio de códigos morais comuns, que faz com que os limites da comunidade
Contudo, é possível ver em Nazaré, como indicado pelo autor em seu artigo,
contrário, elas, muitas vezes, estão espalhadas, o que reforça a ideia de que os limites
deslocam o tempo todo entre uma localidade e outra, deslocamentos que não são
necessariamente visitas curtas, mas podem se prologar por diferentes motivos, como
Para o autor, “Essa ligação entre pessoas dispostas por toda uma rede de
lugares “rurais” e “urbanos” não parece ser efêmera ou temporária, sem que tampouco
acesso à renda e à educação formal, cuidado à saúde, laços afetivos, entre outros.
! ""(!
Porto Velho, eles encontram outras pessoas de sua região de origem e, ao
origem.
nesta pesquisa, devido as mudanças de foco durante o seu curso. Neste momento,
comunidade.
A diferença da relação temporal vivida entre São Paulo e Nazaré foi e tem sido
! "")!
A diferença dos ritmos é clara e desafia o próprio corpo quando tentamos
na comunidade, na maioria das vezes, não são contadas por relógio, mas sim pela
força do sol. Geralmente, os dias começam mais frescos, chegando a uma temperatura
muito forte entre o meio dia e, mais ou menos, três da tarde. Desta forma, caminhar
Porém, nos primeiros dias da viagem de campo, durante esta pesquisa, era
bastante angustiante ficar “sem fazer nada” após o almoço. Assim, eu insistia em sair
que me hospedavam, sempre riam e diziam: Sabia que logo você voltava. Com esse
que era de outro estado do país, chegou e pediu para sentar-se conosco. Ele começou
a dizer sobre um trabalho que estava desenvolvendo com alguns colegas para a
região, a fim de aumentar a colheita de produtos florestais não madeireiros e, por sua
vez, aumentar a geração de renda dos produtores locais. Em seu discurso ele falava o
quanto o dinheiro trazia dignidade para as pessoas e que era isso que o povo dali
precisava.
de tarde, para trabalhar de novo só depois. Nunca vi gente que gosta tão pouco e
! ""*!
trabalhar. Um dos produtores, então responde: olha, mas o senhor já foi carregar
castanha no sol forte para ver? Então vá, depois a gente conversa. Momentos como
Desta forma, é quase que rotineiro os encontros serem marcados “quando o sol
baixar”. As pessoas não marcam uma hora para que isso aconteça, é preciso sentir a
força do sol. Todas as entrevistas foram marcadas desta forma, as pessoas sempre
diziam: “Vá até a minha casa quando o sol tiver fraco” e quase todos continuavam: “e
comida. Foi preciso aprender que chegar na casa das pessoas antes do sol baixar é
evitando o extremo calor que faz próximo ao meio dia), para retomar o ritmo de
trabalho de tarde. Não demora muito para você compreender o porquê da necessidade
Contudo, as diferenças dos ritmos não se dão apenas por causa do sol e das
contam umas das outras diferenciando os colegas, amigos, família e amigos que de
tão queridos, se tornam família e, junto disso, contam do tempo passado e das
amizades. Às vezes elas também contemplam o silêncio, ficam por horas observando
floresta.
Desta forma, os primeiros dias em Nazaré durante esta pesquisa sempre foram
cuidar para que a velocidade das interações e das atividades que estamos acostumados
! "#+!
em muitas tarefas em São Paulo, não desrespeitasse e atrapalhasse a vida cotidiana
organização temporal.
Foto tirada em uma tarde, na qual duas horas antes eu passei pelo igarapé e observei estas três pessoas
sentadas em silêncio. Depois, ao voltar para casa, elas ainda estavam ali. Não sei se passaram as duas
horas em silêncio, mas fiquei um tempo as observando do comércio em frente a este banco e elas apenas
contemplavam o igarapé, trocavam algumas palavras, mas não pareciam tentar evitar o silêncio.
! "#"!
5) Discussão final – Reflexões sobre o enraizamento na
comunidade de Nazaré
momento em que a família de seu Nanã estabelece uma fazenda naquele território. Os
pontos lembram uma condição análoga à escravidão, por outro lado, o patrão é
da terra na região amazônica? Como se formou essa estrutura social dividida entre o
! "##!
As características da ocupação inicial do território amazônico seguiram
floresta para coleta de bens que posteriormente seriam vendidos, com o privilégio da
colheita florestal (PRADO JR, 2011, p.224) e este fato é repleto de consequências.
bens nativos, observa-se uma certa dispersão da ocupação e a atração exercida pelos
rios. Esta atração dos rios não se justifica apenas pela água em si, mas pelo caminho
político. O passado colonial está por trás da concentração de poder nas mãos do
! "#$!
proprietário da terra. No vasto território amazônico, como se formou o contingente
populacional que não teve direito à terra e que não teve outra opção além da venda da
comunidade nos faz pensar que seu ponto de partida é exatamente a expressão do
havia notado que o grande mal da colonização é o desenraizamento, pois ela priva de
seu passado os grupos oprimidos. Privando os povos de sua tradição, de seu passado,
Nazaré, houve a morte de seu Nanã e, então, estes homens e mulheres tiveram que se
readaptar a uma vida que não dependia das ordens de alguém. Uma nova organização
social se estabeleceu, novos líderes foram surgindo e a floresta passou a ser sua
Podemos pensar que a morte de seu Nanã e a falta de herdeiros em Nazaré pode
ter contribuído para que as pessoas pudessem construir uma nova organização social,
entre outros), que configuram fortes traços de resistência, passam a amparar uma
busca por esta experiência. O sincretismo religioso, os aspectos culturais dos grupos
indígenas catequisados na região, todos esses elementos que configuram uma cultura
de resistência, são elementos que vão apoiar e sustentar uma busca por enraizamento.
existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos
! "#%!
pressentimentos do futuro. Lideranças informais, como professor Maciel, professor
Artêmis, seu Manduca, entre outros, começaram a trabalhar para garantir melhorias
trabalhadores da floresta possibilitou com que houvesse uma real participação ativa na
seus ancestrais foram garantidas. Foi possível a construção de uma forma de vida
deixam de se perceber como inferiores, mas sim como cidadãos que foram aviltados.
junto disso, intrigas e disputas políticas foram se formando, que são naturais em
espaços coletivos. Porém, neste momento, as pessoas não precisavam ser exiladas de
docilmente informações sem relação com as experiências vividas, situação esta, que
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Comunidade em oposição a como a região era conhecida na época de seu Nanã: Freguesia da Boca do Furo.
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Neste trabalho prestamos atenção as discussões a partir de uma pressão atual, a
Santo Antônio e de Jirau), com foco na barragem de Santo Antônio, que apresenta
obra, quanto construção e circulação das informações com relação aos impactos
aos moradores das áreas afetadas (que possuem, teoricamente, o direito de deliberação
anteriormente, nas formas de trabalho e práticas cotidianas das pessoas que vivem na
beira do rio. Houve, também, um enorme fluxo migratório nestas comunidades, que
(e, em geral, de muitas das obras que possuem grande impacto ambiental).
vieram ou das localidades que tiveram que ser desapropriadas, ou que moravam em
Porto Velho e, com o aumento do custo de vida da cidade, foram “empurradas” para o
interior.
para a construção destas barragens (Santo Antônio e Jirau) e que afirmam que o
processo de decisão desta obra envolveu muito mais interesses políticos e econômicos
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Madeira. Não seria visível, nas motivações que levaram à construção da barragem e
nas formas politicas que sustentam estas decisões, o prosseguimento e até mesmo o
até certo ponto, não representa de forma emblemática a luta entre a aspiração pelo
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Bibliografia
BOURDIEU, P. “La maison ou le monde renversé”. In. Le Sens Pratique. Paris: Les
Éditions de Minuit, 1980.
BRASIL. LEI No 9.985, de 18 de Julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos
I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades
de Conservação da Natureza e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9985.htm> Acesso em:
29/05/2010
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Jataizinho - Rio Tibagi /Pr. Serviço social em revista. Londrina, v. 02, n. 02,
p. 275-285, jan./jun. 2000.
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ROSA, J. G. Grandes Sertão: veredas. São Paulo: Nova Fronteira, 2006.
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