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Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

Departamento de Psicologia Social e do Trabalho

Histórias que o rio traz – Reflexões sobre o enraizamento


em uma comunidade ribeirinha da Amazônia

Andrea Mataresi

São Paulo, 2013


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Universidade de São Paulo

Instituto de Psicologia

Departamento de Psicologia Social e do Trabalho

Histórias que o rio traz – Reflexões sobre o enraizamento


em uma comunidade ribeirinha da Amazônia

Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da


Universidade de São Paulo como parte dos requisitos
para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Área de concentração: Psicologia Social


Orientador: Prof. Dr. Bernardo Parodi
Svartman

Andrea Mataresi

São Paulo, 2013


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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE


TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO,
PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

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1. Psicologia social 2. Psicologia comunitária 3. Enraizamento
4. Comunidades locais (Nazaré (RO)) 5. Etnografia I. Título.

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Autor: Mataresi, Andrea

Título: Histórias que o rio traz – Reflexões sobre o enraizamento em uma


comunidade ribeirinha da Amazônia

Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo

para obtenção do título de Mestre em Psicologia.

Aprovado em: ______ de _________________ de ______.

Banca examinadora

Prof. Dr.:___________________________________________________

Instituição:__________________________________________________

.
Prof. Dr.:___________________________________________________

Instituição:__________________________________________________

Prof. Dr.:___________________________________________________

Instituição:__________________________________________________
! X!

Aos moradores de Nazaré e de todas as


outras comunidades que vivem na pele as
duras consequências da construção do
complexo hidroelétrico do rio Madeira.
! X"!

Agradecimentos

Agradeço, primeiramente, aos moradores da comunidade de Nazaré! Pela acolhida,


sempre muito carinhosa, pelas longas conversas e paciência com as minhas perguntas.

Ao meu orientador Bernardo, pelas incríveis orientações! Pela paciência e confiança


que sempre demonstrou e por saber, com maestria, a hora de encorajar e a hora de
cobrar!

À Jaqueline e Betinho, por me receberem em sua casa durante minhas idas a Nazaré,
com um amor de família que gosta de cuidar! Pelas comidas deliciosas, rizadas,
conversas até tarde e a incrível ajuda na organização das entrevistas deste trabalho!
Espero poder recebe-los aqui em casa!

Ao Anauá, pela amizade de anos, pela confiança com sua história, pelos momentos
preciosos junto de sua família e pelas longas conversas, que foram a minha maior
inspiração para começar este trabalho! A você, meu amigo, eu agradeço por me
mostrar a magia dessa terra chamada Nazaré!

Ao Timaia, por me ensinar os caminhos da luta política! Por me ensinar em


conversas o que por anos eu tentei aprender nos bancos da escola! Eu admiro seu
trabalho imensamente e agradeço a oportunidade de ter me aproximado dele, de sua
música e incrível talento.

Ao Seu Zé Ferreira, pelas músicas e poesias, que só de lembrar fazem lágrimas


correr em meu rosto! As conversas com o senhor me fazem ter mais e mais saudade
de Nazaré. Sua varanda é, sem dúvidas, um dos meus lugares favoritos.

Ao Professor Artêmis, Pela paciência com as minhas perguntas na beira do igarapé!


Por compartilhar de maneira tão envolvente a história de sua comunidade e por me
fazer me sentir acolhida para voltar!

À Dona Vêna, Seu Pantoja, Jeferson, Professor Raimundo, Seu Vijico, Seu
Manduca, Dona Margô e Seu Getúlio obrigada pelas ricas contribuições durantes as
longas conversas!

À Vá, Neto, Lucila, Rodrigo, Roda e Cris, por me inspirarem diariamente, por
alguns dos momentos mais importantes que eu tive na Amazônia e por me ensinarem
muito do que eu sei hoje! Ter vocês por perto, mesmo que tão distantes
geograficamente, faz toda a diferença em minha vida! Agradeço, sobretudo, pela
preciosa amizade, que também se dá na luta política por uma sociedade mais justa. E
mais uma vez ao Neto, pela leitura crítica e detalhada deste trabalho! Não tenho
palavras para te agradecer!

Ao Catatau, pela necessária e importante ajuda inicial! Espero poder retribuí-la!

Ao Zeca, Miriam Rosa, Renato Luz, Tiago Marin e Galeão, pelas riquíssimas
contribuições durante todos este trabalho. Nossas conversas sempre fizeram toda a
diferença durante o percurso.
! X""!

À Solange e ao Pablo, pelas aulas maravilhosas, importantes supervisões, por serem


dois dos psicólogos que eu me inspiro diariamente e, principalmente, pela amizade!

Ao Christoph, pelas conversas que varam as noites, que me fazem rir e que me
mostram que companheirismo é tão importante quanto amor!

Aos meus pais, Rosa e Carlos, pelo apoio em minha educação e vida. Sem a ajuda
de vocês em muitos dos mais importantes momentos, este trabalho não teria sido
possível! Agradeço, principalmente, por acreditarem em meus sonhos.

À minha irmã, Dani, pela parceria de sempre! Pelos conselhos de irmã mais velha e
pela sabedoria que não cabe em palavras.

À minha sobrinha, Maria Julia, por me ensinar que amor vem em um sorriso
delicado e em um olhar de confiança! Por abrir portas que só você poderia abrir!
! X"""!

Todos estão loucos, nesse mundo? Porque a

cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e

que estão para haver são demais de muitas, muito

maiores diferentes, e a gente tem de necessitar de aumentar a cabeça,

para o total. Todos os sucedidos acontecendo, o sentir forte da gente –

o que produz os ventos. Só se pode viver perto do outro, e conhecer

outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor

já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura. [...] Como é que

se pode pensar toda hora nos novíssimos, a gente estando ocupado

com esses negócios gerais? Tudo o que já foi, é o começo do que vai

vir, toda hora a gente está num cômpito. Eu penso é assim, na

paridade [...] Viver é muito perigoso, e não é não [...] Todo caminho

da gente é resvaloso. Mas, também, cair não prejudica demais – a

gente levanta, a gente sobe, a gente volta.

(João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas)


! "Y!

Resumo

MATARESI, A. (2013). Histórias que o rio traz: reflexões sobre o enraizamento em


uma comunidade ribeirinha da Amazônia. Dissertação de mestrado, Instituto
de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

O desenraizamento acontece quando pessoas ou grupos são afastados de suas tradições e das
historias de vida de seus ancestrais, por razões ligadas à dominação e à espoliação econômica.
Assim, o processo de dominação privilegia o acumulo de dinheiro em detrimento à cultura e à
tradição de povos inteiros. Este processo tem sido recorrente durante a história da ocupação
da Amazônia desde o período colonial. Atualmente, a construção da Usina hidroelétrica de
Santo Antônio no rio Madeira representa uma ameaça às comunidades localizadas na região.
Entendemos que esta obra pode ser extremamente nociva à cultura e à tradição dos povos que
ali vivem. Embora existam conselhos comunitários com o objetivo de garantir a participação
dos moradores na gestão do território, efetivamente suas vozes não têm sido ouvidas durante
os processos de decisão, assim como as informações sobre os impactos da obra no território
não estão sendo compartilhadas com a população. Podemos entender esta falta de informação
e impedimento de participação como uma possível ferramenta de dominação, o que evidencia
o preconceito sofrido pelas pessoas que vivem nas periferias do capitalismo brasileiro. Assim,
o registro e a discussão de como os moradores de uma específica comunidade chamada
Nazaré vivem as diversas ameaças de desenraizamento pode oferecer subsídio aos que estão
por enfrentá-lo. Durante a pesquisa de observação participante e entrevistas de longa duração,
organizamos dissertação a partir de nove itens que compõem um retrato etnográfico da
comunidade, sendo eles: histórico de formação e estrutura da comunidade de Nazaré, relação
com o rio, organização do trabalho, lendas, religiosidade e manifestações artísticas, vida
política e vida comunitária. A partir da observação destes itens e de suas relações entre si, foi
possível notar uma presente luta por enraizamento diante das pressões que contribuem para a
desintegração de sua cultura.

Palavras-chave: Psicologia social; Psicologia Comunitária; Enraizamento;


Comunidades Ribeirinhas da Amazônia; Etnografia
! Y!

Abstract

MATARESI, A. (2013). Stories that sail the river: reflections on rootedness in a


Riverside community in the Amazon rainforest. Dissertação de mestrado,
Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.

The uprootedness happens when people or groups are taken away from their traditions and the
life stories of theirs ancestors, for reasons related to economic domination. Thus, the process
of domination favors the accumulation of money over the culture and tradition of an entire
ethnic group. This process has occurred in the history of the Amazon occupation since the
colonial period. Currently, the construction of the Santo Antonio's dam, in Madeira River,
represents a threat to the communities located in the region. We understand that this work can
be extremely harmful to the culture and traditions of the peoples there. Although there are
community councils, created to ensure the participation of residents in the land management;
effectively, their voices haven't been heard during the decision-making process, as well as the
information about the impacts of the construction are not being shared with the public. We
can understand this lack of information and the denial of the population's right to participate
as a possible domination's tool, which shows the prejudice suffered by people that are pushed
to the outskirts of the Brazilian capitalism. Thus, the registration and the discussion of how
the currents residents of a community called Nazaré are living this constant threat of
uprootedness can provide subsidy to those who are yet to face it. During the field research, we
organized the work in nine items that compose an ethnographic portrait of Nazaré. These
items are: history and structure of the community, the relation to the river, organization of
work, legends, religion, artistic manifestations and political and communitarian life. From the
observation of those points and the relationship that they establish among themselves, it was
possible to notice the presence of a strong struggle for rootedness, in face of social pressures
that may cause the disintegration of their culture.

Key words: Social Psychology; Community Psychology; Rootedness; Amazon


Riverside Communities; Ethnography

Sumário
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1) Introdução: As histórias que o rio traz...............................1

2) Objetivos da pesquisa.......................................................23

3) Método da pesquisa..........................................................24

4) Nove itens para o retrato etnográfico de Nazaré..............31

4.1 - Histórico de formação e estrutura da comunidade de


Nazaré......................................................................................31
4.2 - A comunidade e o rio Madeira.............................................58
4.3 - Organização do trabalho em Nazaré....................................73
4.4 - Lendas, religiosidade e manifestações artísticas..................89
4.5 Vida política – vida comunitária.............................................104

5) Discussão final - Reflexões sobre o enraizamento na


comunidade de Nazaré....................................................124

6) Bibliografia.....................................................................130

!
1) Introdução - As histórias que o rio traz

Vou lhe contar, amigo, a história desse lugar


Que poucas pessoas conhecem, outras nem ouviram falar
Em Nazaré a terra é farta para quem gosta de trabalhar
Pois a natureza não é ingrata com quem sabe dela cuidar

Minhas Raízes – Taiguara Martins

Aceite as minhas velas! Sabe o que é, menina? Aqui,


a gente aprende que sem ajuda nós não vive.

Conversa com um senhor em uma comunidade do


Baixo rio Madeira em 2005

Foto de Nazaré vista do Igarapé na época da cheia do rio Madeira

As margens do rio Madeira são compostas por diferentes paisagens, curvas,

folhagens, flores, animais, e vilas repletas de pessoas e histórias. Muitas histórias.

Uma das coisas que elas têm em comum é o rio que as ligam, que as tornam

navegáveis. O rio Madeira, para quem mora em sua beira, não é somente o que define

estas comunidades como comunidades ribeirinhas de várzea, ele é a própria

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possibilidade de contato com outros locais, o principal caminho por onde as histórias

ali vividas e contadas navegam.

Foto tirada do barco de linha, em viagem pelo rio

Por ele, todos os moradores de Nazaré ali chegaram, assim como o açúcar, o

sal, os primeiros medicamentos e tantos outros produtos, até hoje difíceis de encontrar

ou com preços altos devido aos custos de transporte. Por ele, os trabalhadores da

várzea podem vender seus produtos, seja pelo barco da produção, disponibilizado pela

Secretaria de Agricultura de Porto Velho, seja por meio de compradores que viajam

pelo rio ou de pequenos produtores com suas canoas.

Sentada na beira do rio escutei histórias, prosas longas e curtas, nas quais

aparecem personagens como Nonato cobra grande, o boto rosa e o boto tucuxi, o

neguinho da mata e tantos outros. As crianças se banham no rio e ali aprendem a

! #!
pescar. Aprendem que com o boto não se mexe. As escolas em sua beira recebem

crianças que perdem suas bolas no grande Madeira durante os treinos de futebol que,

aliás, é coisa séria.

Treino de futebol no campinho da comunidade

Sua paisagem costumava se transformar a cada época do ano, recebendo as

plantações de melancia e macaxeira na seca e a força impressionante das águas na

cheia, que abastecia a área de várzea de nutrientes, preparando a terra para a próxima

plantação, além de levar embora os insetos que destruiriam as mercadorias. Isto, antes

de sua força ter sido controlada pela construção de uma barragem inaugurada em

2012 e que faz parte do complexo hidroelétrico do rio Madeira, localizada na antiga

cachoeira de Santo Antônio, em Porto Velho.

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Barragem de Santo Antônio

O rio Madeira é a principal fonte de alimentação e de água das populações

locais e, segundo o ditado local, quem bebe de sua água sempre volta. Em sua

beirada, também, tantas famílias se despedem e se reencontram, em busca de novas

possibilidades de trabalho assalariado em áreas urbanas, acesso a níveis de

escolarização mais elevados e atenção à saúde. Ele é parte importante da organização

da vida das comunidades e faz com que os moradores de Nazaré tenham orgulho de se

chamarem de beiradeiros e anunciarem em suas músicas e poesias a sua beleza.

A construção da barragem, iniciada em meio a uma grande polêmica e cuja

história será discutida em maiores detalhes ao longo deste trabalho, não significa

apenas barrar a força do rio com a finalidade de produzir energia, mas também barrar

a tradicionalidade das formas de viver que se desenvolveram em seu correr e estão

ancoradas na relação que estes homens e mulheres estabelecem com a natureza e seus

fluxos. Barrar o rio pode ser, portanto, uma forte ameaça de desenraizamento. As

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crenças, rituais e formas de trabalho são barrados, junto com os peixes e galhos que

correm por suas águas turvas. E unido a tudo isso, são barradas também um pouco da

esperança em decisões políticas que nos representem e que não contribuam para a

dominação e opressão de nosso povo.

Aqui, faço minhas as inquietações de Karen Adami Rodrigues, que, em seu

texto, descreveu algumas das conclusões que ela pôde chegar ao conviver com a

população de uma reserva extrativista no Acre:

O homem em meio a floresta, na beira dos rios, nas reservas extrativistas,


nas comunidades indígenas ou até mesmo na cidade, necessitava mais do
que eu pensava, necessitava de políticas públicas competentes, sem
fachadas, sem delongas, não precisava de propagandas, mas sim de
pessoas imbuídas de verdades, sem vaidades pessoais, reconhecidos pelas
suas concepções de levar adiante seus projetos e não abandonarem o
homem da floresta em meio a tantas expectativas. (RODRIGUES, K.,
2010, p. 12-13)

Para muitos, infelizmente, a floresta Amazônica é, erroneamente, uma região

fácil de ser caracterizada: uma área de floresta tropical úmida, com aproximadamente

7,5 milhões de Km2, banhada por inúmeros rios que tem o rio Solimões-Amazonas

como eixo principal, habitada por uma população basicamente indígena e cabocla,

além de portadora de riqueza natural incalculável.

No entanto, esta é uma visão sobre a região e não a partir de quem mora na

região. Para os habitantes da floresta, a própria palavra Amazônia é vaga, já que

possui muitos significados ligados aos mais diversos contextos ecológicos, sociais e

culturais. A identificação de uma determinada região não é tão simples quanto as

explicações sugeridas em muitos livros didáticos (PORTO GONÇALVES, 2001).

Para Porto Gonçalves (2001), diferente da visão externa à região, que a vê

somente como floresta e reserva de recursos naturais, a Amazônia é marcada por sua

complexidade e grande diversidade. Esta primeira visão reducionista é geralmente a

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que forja o conhecimento oficial sobre os amazônidas1, que vivem, muitas vezes, em

harmonia com os mais diferentes ecossistemas.

Bem antes do surgimento da conhecida “ecologia científica”, por exemplo,

muitos povos, que desenvolveram outras culturas que não a “eurocentrista”

dominadora, geraram e aperfeiçoaram formas de pesquisa e compreensão sobre a

vida, os seres humanos e suas relações com a natureza (BRANDÃO, 2005).

Segundo o autor, além da educação formal (escolar), adquirimos

conhecimentos necessários e importantes para o dia a dia, a partir de uma socialização

primária. Isso se dá, entre outros momentos, durante nossas próprias ações e por meio

das interações com os nossos pais, vizinhos, família, amigos e etc. Sendo assim,

aprendemos em diferentes e integradas dimensões de nós mesmos e de nosso meio

social. Os diferentes saberes, sensações, sentidos, significados e as sociabilidades são

os que nos fazem capazes de interagir com uma cultura e sociedade (BRANDÃO, op.

Cit.).

Dentro da própria região chamada Amazônia, já foi registrada grande

quantidade de espécies endêmicas em ecossistemas locais, de modo que mesmo no

aspecto ecológico não há uma uniformidade em toda a vastidão nomeada Amazônia.

Essa floresta é, sobretudo, diversidade - de saberes, animais, plantas, tradições, cores

dos rios, tipos de terras e etc. Assim, habitar um local como este já é um desafio por si

só, e este é justamente um dos saberes que estas populações têm a oferecer e a

dialogar com outras culturas. Existe lá um grande conhecimento relativo à medicina

tradicional, remédios, culinária, cosméticos, entre outros, que são frequentemente

negados e desvalorizados (PORTO GONÇALVES, 2001).

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
1
Termo usado para se referir a quem nasceu e/ou vive na região.

! '!
Segundo Porto Gonçalves (op.cit.), geralmente estes conhecimentos estão

todos relacionados entre si e, sobretudo, fortemente ligados à religiosidade. No dia a

dia, tudo se interliga , a queimada das florestas que provoca a fuga dos animais e da

água, provoca também a fuga de seus espíritos. Este holismo, formado por

conhecimento, cotidiano e crença, marca profundamente a forma de vida das

populações da floresta.

O próprio cotidiano envolve a troca de saberes e o processo de ensino -

aprendizagem. É no contato com as pessoas que notamos que elas possuem

conhecimentos e práticas divergentes umas das outras - diferentes, nunca desiguais

(BRANDÃO, 2005). Entretanto, a ação humana regida pela “sabedoria” do

dominador, ao tentar entender os costumes que não são aqueles da cultura ocidental,

muitas vezes os consideram estranhos e/ou inferiores. Este fato acontece exatamente

pelo caráter etnocêntrico da visão dominante de mundo que se supõe universal

(WHITAKER e BEZZON, 2006).

O que muitos não querem perceber é que a injustiça social e ambiental no

Brasil é fruto de um olhar imediatista e egoísta das classes dominantes que operam e

reforçam mecanismos de exclusão social. Desta forma, percebemos que a perda das

raízes e da identidade está intimamente relacionada com a perda da relação com o

meio ambiente, o que facilita o processo de degradação (SATO, 2005).

Porto Gonçalves (2001) relata que o fato do morador da floresta não ser

considerado nem na formação da imagem de sua própria região decorre de uma

posição geográfica-política a que estes povos estão submetidos desde os tempos

coloniais. Sua população é muitas vezes vista como preguiçosa e incapaz de mudar a

situação de subdesenvolvimento a que sempre esteve submetida.

! (!
Os moradores da áreas rurais são considerados culpados por estarem em áreas

rurais e não se desenvolver a partir de uma perspectiva dos grandes centros urbanos e

econômicos. Desta forma, esses povos são vistos como culpados pela situação que

vivem e aqueles que impedem o desenvolvimento do país. Os povos rurais são muitas

vezes considerados impossíveis de educar, pois não possuem nenhuma perspectiva de

crescimento e que “não querem melhorar de vida”. (WHITAKER e BEZZON, 2006).

Entretanto, contraditoriamente, estas mesmas populações tradicionais, quando

resolvem se integrar ao sistema dominante, novamente se tornam vilões. Quando se

rendem aos desejos de uma sociedade consumista, são considerados culpados por não

preservar o meio ambiente. Afinal, estes desejos são reservados a uma pequena

parcela da população (WHITAKER e BEZZON, 2006).

Fica clara uma contradição vivida por estas populações. Quando se mantém

tradicionais, são aqueles que impedem o progresso de toda a sociedade, mas quando

se rendem ao sistema e passam, com ele, a desejar os benefícios do industrialismo,

são condenados por destruir o meio ambiente, mesmo que suas ações de

mercantilização sejam bem menores do que as das grandes corporações (WHITAKER

e BEZZON, 2006).

De acordo com Porto Gonçalves (2001), a floresta em si é vista como o

“futuro do Brasil”, a “última grande reserva ecológica do mundo”, ou seja, fonte de

riquezas naturais. Muitas empresas querem usar a floresta como fonte de exploração

dos recursos naturais - reais ou imaginários -que ela poderia prover. Em contraposição

a esta imagem, desenvolve-se o olhar preservacionista. Para ele, é justamente neste

cenário que a Amazônia aparece com reserva a “não ser tocada”, como se fosse um

local selvagem e sem cultura, sem nenhum processo de civilização. Novamente, não

! )!
se leva em consideração a realidade regional e estes habitantes são vistos como

perdidos na região ou vivendo em estado de natureza.

Estas opiniões em momento algum “pedem licença” aos amazônidas para

serem formuladas e expressadas. Diferentes destas visões estrangeiras à floresta,

existe a opinião e perspectiva de quem mora lá. Há milhões de famílias de

trabalhadores rurais, diferentes povos da floresta, com diferentes culturas e, desta

forma, diferentes tradições (PORTO GONÇALVES, op. Cit.).

Contudo, se observarmos a maior parte dos discursos sobre a Amazônia, a

posição que tem se colocado dominante é aquela do interesse por sua biodiversidade,

por suas riquezas e madeiras ou megawatts de energia. Não importa se na visão de

quem quer declaradamente explorar ou de quem quer “proteger” a floresta a qualquer

custo, a população que ali vive há tantos anos é quase sempre vista ou como

empecilho – para o desenvolvimento ou para a preservação ambiental – ou, então,

como mão de obra barata. Desta forma, Amazônia ainda é vista como um território “a

ser” colonizado, cuja importância é relacionada ao que pode nela ser explorado.

Historicamente é possível ver fatos que marcaram a vida das populações de lá

sendo decididos por outras pessoas. Desde o povoamento e tentativa de dominação

feita pelos portugueses e espanhóis visando competir com as novas potências

mundiais nos períodos coloniais, até o investimento feito pelo BID (Banco

Interamericano de Desenvolvimento) na época da ditadura militar (GONÇALVES,

op.cit) e, atualmente, a decisão das usinas hidroelétricas financiadas pelo “Programa

de aceleração do crescimento” (PAC) do governo federal, entre outros.

Os colonizadores, agora representantes dos interesses do grande capital e do

estado que os protege, impõem sua forma de vida, impedindo a expressão das

particularidades de seus povos e dificultando os saberes construídos a partir da

! *!
convivência dos povos da floresta com os ecossistemas amazônicos. Saberes que são,

sem dúvidas, misteriosos para os não amazônidas.

Desta forma, com a visão daquele que impõem os processos de dominação e

colonização sempre sobreposta àquela dos habitantes da região, podemos presenciar

na floresta cabos de energia elétrica passando por comunidades iluminadas a luzes de

lamparinas e velas. É uma realidade de dura miséria e violência que desafia essa

ecologia conservadora a pensar a questão social junto com a questão ecológica

(GONÇALVES, op.cit. p.17).

Durante minhas experiências em Rondônia 2 , pude acompanhar algumas

transformações que foram acontecendo nas comunidades, vi escolas sendo

construídas, casas se transformando, crianças crescendo. Vi também que as pressões

vividas pelos moradores da comunidade de Nazaré são inúmeras e de diferentes

origens. As próprias políticas de preservação ambiental, com muito de seu foco nas

riquezas da floresta e não nos habitantes que nela vivem, mostram o grande descaso

com os amazônidas.

Nesta discussão, atualmente tem se falado em Nazaré sobre a possível criação

de uma Reserva Extrativista (RESEX) 3 reconhecida pelo Sistema Nacional de

Unidades de Conservação (SNUC). Paralela a esta conversa, também existem

pressões para a construção de uma “agroindústria familiar” e de projetos para

aumentar a escola da pesca, entre outras. Todas estas propostas chegam de fora, pelo

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
2
O primeiro contato com as pessoas de Nazaré se deu em 2007, em um projeto que será contado mais adiante
neste mesmo trabalho.
3
“A Reserva Extrativista é uma área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se
no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte, e
tem como objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações, e assegurar o uso sustentável
dos recursos naturais da unidade… A Reserva Extrativista será gerida por um Conselho Deliberativo, presidido
pelo órgão responsável por sua administração e constituído por representantes de órgãos públicos, de organizações
da sociedade civil e das populações tradicionais residentes na área, conforme se dispuser em regulamento e no ato
de criação da unidade.” (ISA – Instituto Socio Ambiental)

! "+!
rio, e muitas vezes não contam com o diálogo com os habitantes da região. São

projetos que guardam resquícios colonizadores do contato dessas regiões com os

centros urbanos.

Além destas discussões, houve também a decisão da construção da barragem,

que foi imposta aos moradores da comunidade e mostra, em todos os seus aspectos, o

descaso existente com relação às pessoas que habitam estas regiões na elaboração de

alguns planos políticos. Não é raro ouvir discursos sobre os benefícios das

construções de usinas hidroelétricas ao longo dos rios amazônicos. Benefícios vistos

somente sob a ótica de quem faz a análise de rentabilidade financeira ou então a

análise da necessidade de crescimento econômico e não sob o prisma dos moradores

locais.

No início de 2012, entrou em funcionamento no rio Madeira a “Barragem de

Santo Antônio”, que já tem modificado e que irá modificar ainda mais toda a

paisagem natural e social das comunidades. Muitas críticas são feitas a respeito desta

obra, tais como possíveis falhas no Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e a

negligência do direito de participação das comunidades locais no processo de decisão.

Embora o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) 4 indique a

necessidade da presença da comunidade em todo o processo de decisão de qualquer

obra que tenha impacto no território e/ou na forma de vida local, além da comissão

mundial de barragens (CMB) fazer a orientação de envolver as comunidades que

serão atingidas durante a deliberação e o processo de decisão da construção, o que

presenciamos e o que nos foi relatado pelos moradores é um processo muito diferente.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
4
Segundo a lei No 9.985, de 18 de julho de 2000, o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza
(SNUC), tem, dentre seus objetivos, o de “proteger os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura e promovendo-as social e economicamente”
e como uma de suas diretrizes: “assegurem a participação efetiva das populações locais na criação, implantação e
gestão das unidades de conservação”.

! ""!
Estas comunidades estão dentro de Unidades de Conservação ou no entorno

delas. Desta forma, as leis que deveriam proteger e assegurar o direito destas

populações não estão sendo respeitadas. Embora exista o Conselho da Gestão

Integrada Cuniã-Jacundá, que têm como atribuição discutir e deliberar formas de

melhoria da qualidade de vida e da proteção socioambiental das Unidades de

Conservação da região e do entorno delas, a voz destas pessoas não teve peso algum

nas discussões sobre a implementação de ações do Programa de Aceleração do

Crescimento (PAC) na região.

De acordo com Switkes (2008), o processo de decisão desta obra e do

levantamento do EIA/RIMA 5 foi determinado muito mais a partir de brigas por

interesses políticos e econômicos, do que, de fato, a partir de preocupações com as

transformações do território que seriam enfrentadas pelos moradores das áreas

atingidas. Esta decisão foi feita em meio a leilões duvidosos e a contraditória divisão

do IBAMA, passando parte importante de sua função para o ICMbio (Instituto Chico

Mendes de Conservação da Biodiversidade), órgão criado exatamente na mesma

época da decisão sobre a construção da obra.

Os moradores das comunidades do Baixo Rio Madeira vivem uma enorme

falta de informação referente ao andamento da obra, impactos intermediários e

transformações do território após seu término. Eles estão “descobrindo” as

consequências na medida em que as vivem e as falas referentes a estes impactos

variam muito de pessoa para pessoa. Durante as idas ao campo, pude ouvir os

moradores em momentos muito diferentes com relação ao processo de construção da

barragem. Nas primeiras idas a Rondônia, as obras ainda estavam em planejamento e

em leilão, já na primeira ida ao campo durante a presente pesquisa, as obras estavam

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
5
Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental

! "#!
em andamento e as falas referentes à ela foram bastante diferentes das encontradas na

segunda viagem, quando a barragem já estava funcionando.

Pude compreender a falta de informação como um elemento importante dos

processos de dominação, pois, na medida em que as pessoas só estão autorizadas a

conhecer as transformações no momento em que as vivem, as indefinições e

surpresas do processo de alteração do território dificultam a organização coletiva para

enfrentamento das transformações que ameaçam seu modo de vida. Nota-se uma

submissão ao incontrolável e desconhecido, assim o protagonismo das ações

comunitárias e a continuidade da vida cotidiana podem ficar comprometidos.

Aspectos estes que estão extremamente ligados aos fluxos do rio (seca e cheia) e à

terra. A dominação é aqui entendida como uma das pressões para o desenraizamento,

que arranca as pessoas de suas tradições e das formas de viver de seus antepassados.

Entendo no presente trabalho que as pessoas se adaptam aos fluxos da

natureza e, neste processo cultural, fazem as escolhas de ações (plantio, pesca,

colheita e etc). A vida comunitária encontra amparo no ritmo da vida natural, se

mistura e se apoia nela, tornando-se elementos indissociáveis. Desta maneira,

modificar de forma artificial estes ciclos e alterar os espaços que deveriam estar

alagados ou não, transformando ainda mais os fluxos naturais de fauna e flora, com

certeza determina importantes impactos sobre a vida social do grupo. Assim, podemos

considerar que, para além dos impactos econômicos e dentre os impactos

socioambientais, entende-se que esta obra pode ser extremamente nociva à cultura

local.

Os processos de dominação impõem formas de viver estrangeiras aos

costumes locais, dificultando a prática e a perpetuação dos saberes construídos a partir

! "$!
da convivência dos povos da floresta com os ecossistemas amazônicos e impedindo a

expressão das particularidades culturais desses grupos.

Demorou muito tempo para que entendesse o que me mobilizava ao trabalhar

com os povos da floresta que moram na beira do rio Madeira. Certa vez me

questionaram o que me fazia gostar tanto de Nazaré, o que me fazia ter escolhido a

Amazônia. Esta pergunta ecoou em meus ouvidos por todo decorrer do primeiro ano

do mestrado, das idas à campo, das voltas às emoções e cenas vividas com meus

interlocutores ao ler o caderno de campo, nas disciplinas e em muitos outros

momentos.

Comecei a me lembrar de todas as minhas idas à Amazônia e todas as

conversas que lá tive. Já em meu primeiro ano, em 2005, era comum ouvir dos

moradores de diferentes comunidades questionamentos sobre as barragens, nunca

respondidos pelas autoridades públicas. Os processos de decisão, assim como a

circulação de informações mínimas, eram feitos distante dos moradores locais, que

não recebiam nenhuma informação com relação à obra.

Minha primeira ida ao baixo Madeira se deu quando, ainda no segundo ano da

graduação, conheci uma organização não governamental que era formada por

profissionais de diversas áreas do conhecimento e que tinha como objetivo elaborar e

executar projetos de apoio ao desenvolvimento de comunidades ribeirinhas da

Amazônia e também contribuir para a formação de estudantes universitários. Durante

o período letivo, os estudantes se encontravam periodicamente em São Paulo para

formação e criação dos projetos de atuação, e após este trabalho, quando

selecionados, passavam as férias trabalhando nas comunidades.

A organização era dividida em três áreas: saúde, educação e produção. Acabei

optando por entrar na equipe de educação, que tinha como projeto a realização de um

! "%!
curso de formação para educadores ribeirinhos. Minha responsabilidade inicial era a

de fazer as pesquisas sobre políticas públicas de educação do campo, suas

possibilidades e especificidades, além de acompanhar a área de produção, que

abordaria os temas relativos ao cooperativismo, beneficiamento de produtos e etc.

O curso de formação tinha o apoio da Secretaria Municipal de Educação de

Porto Velho e todos os professores das escolas de 15 comunidades foram convocados

a participar. Eles contavam com felicidade que esta era a primeira vez que uma

formação acontecia em uma das comunidades e não na capital; no entanto, não

podemos esquecer que, embora feito na comunidade, ele foi montado por pessoas que

não vivem na região. Isso ficou claro durante seu desenvolvimento, quando

percebemos que alguns dos temas levados não eram questões para estas pessoas e sim

para nós. Depois desta experiência, participei por mais três anos desta organização,

período que tive diferentes responsabilidades e fui me aproximando cada vez mais de

alguns dos moradores das comunidades da região.

Durante toda a minha participação, fui percebendo o quanto era difícil que o

encontro entre estudantes e profissionais de São Paulo e os moradores destas

comunidades não tivesse um caráter colonizador. Os projetos criados naquela época,

muitas vezes, não eram feitos por meio do diálogo com as pessoas que ali moram,

como se elas precisassem aprender, com pessoas de São Paulo ou de outros grandes

centros urbanos, qual era a melhor forma de se viver na Amazônia. Entretanto,

mesmo que muitas vezes com estruturas precárias de moradia, educação, saúde e

trabalho, os moradores do baixo-Madeira, juntos, encontram soluções para seus

problemas e contam suas histórias com enorme disposição de dividir a sabedoria

presente em sua forma de viver.

! "&!
As comunidades existentes na região do baixo rio Madeira possuem diferentes

formas de organização comunitária, crenças religiosas e maneiras de contar as lendas

e comemorar os festejos locais. Além disso, elas têm diferentes níveis de acesso à

tecnologia, estruturas de água encanada e energia elétrica. É possível encontrar uma

comunidade que possui água encanada e um gerador que fornece eletricidade para

todas as casas a 3 horas de trilha de outra que não tem a mesma estrutura. Algumas

comunidades possuem escola até o final do ensino médio e unidade básica de saúde

(UBS) em funcionamento, enquanto muitas outras possuem apenas uma escola

multiseriada de ensino fundamental I e para ter acesso à UBS dependem de

deslocamento para outras comunidades ou para Porto Velho. Muitas das pessoas

também contam com os cuidados da saúde feitos pela presença de um curandeiro e

uma benzedeira.

Ao conviver com a população local, pude perceber a força das tradições e o

cuidado presente nas relações entre as pessoas umas com as outras e com a floresta.

As tradições ribeirinhas, ao serem transmitidas de geração em geração, carregam em

si a beleza das histórias de um povo que ali vive há muitos anos.

Foi com esta reflexão e, principalmente, pela aproximação com algumas

pessoas destas comunidades, que cheguei ao meu interesse em investigar com

profundidade, a partir de um estudo de campo em regime de observação participante,

a forma de vida dos moradores de lá. Assim, compreender quais são as condições para

a sobrevivência deste grupo, as formas de organização da vida cultural que preservam

o enraizamento e quais são as atuais ameaças de desenraizamento vividas por ele.

Certo dia, estávamos em uma roda assando peixe e conversando e, vindo pelo

rio de outra comunidade, como todos que ali chegam, um senhor se juntou a nós. No

meio das conversas, ele nos contou o porquê do nome de sua comunidade de origem:

! "'!
Cuniã, que significa menina que chora. Havia lá uma menina que não respeitava as

regras da floresta e da comunidade. Uma noite, ela saiu de casa e se perdeu na mata.

Sua família e amigos ficaram dias e dias a procurando, até que ela foi achada com a

metade do corpo e do rosto destruída pelo “neguinho da mata”. Segundo ele, ainda

hoje, durante o silêncio da noite, se pode ouvir seu choro.

Questionei-o sobre quem era o “neguinho da mata” e ele respondeu que era

um menino que vestia uma capa de pele de onça, era grande conhecedor dos

caminhos da floresta, era ágil e tinha muitos poderes. Ele existia para proteger as

matas, os animais, os rios. Tudo o que ali vivia. Além de gostar de “pregar peças” nas

pessoas que entram na floresta.

Em outro momento, em uma comunidade que não tem luz elétrica, estava

escrevendo meu diário de campo na varanda, onde conseguia alguma iluminação da

luz da lua. Enquanto escrevia, um senhor que morava na casa ao lado passou por mim

e me olhou com ar de curiosidade. Depois de poucos segundos ele voltou e

questionou o porquê de estar escrevendo no escuro. Eu então lhe expliquei que

havíamos nos esquecido de levar velas e baterias extras para as duas lanternas que

tínhamos. Por este motivo, decidimos apenas usar a nossa iluminação para entrar e

sair das nossas redes durante a noite. Ele não conteve seu riso diante de nosso

esquecimento.

Algum tempo depois, ele voltou com a mão cheia de velas e uma caixa de

fósforos e me disse que havia trazido as velas para que eu não ficasse mais no escuro.

Minha primeira resposta foi a de não poder aceitar, pois sabia bem qual era a

dificuldade de conseguir este material. Ele, então, me respondeu: Aceite as minhas

velas! Sabe o que é, menina? Aqui, a gente aprende que sem ajuda nós não vive.

! "(!
Frente à minha dificuldade em perceber o significado de seu gesto, ele me explicou

com palavras a importância de se viver em comunhão.

Fui aprendendo muitas coisas nestes anos. Aprendi como os moradores

cuidam uns dos outros e da vida na floresta e percebi o quanto havia um sentido de

comunidade nesse grupo. Eu estava ali no papel de quem doava, mas tive que

reaprender a importância de receber. Aprendi, na prática, com a família deste senhor,

que as relações mudam quando isso acontece, a cumplicidade fica fortalecida.

Nazaré tem em sua vida cultural algo que impressiona. Algo que, em minha

hipótese, preserva as tradições regionais, que abrem campo para uma rica experiência

de participação e pertencimento, que indica aspectos de resistência frente as

constantes ameaças de desenraizamento e restrições materiais. Embora existam

diferentes pressões que dificultam as expressões das formas de viver que diferem

daquelas ligadas à ideologia dominante, os moradores de Nazaré têm encontrado,

durante a história da comunidade, formas de reinventar o seu existir e de continuar

seu fluxo, trazendo em suas invenções do cotidiano formas de resistência ao poder do

dominador6.

As formas como as lideranças locais preservam e transmitem a história,

tradições e perspectivas de futuro do grupo, como assumem o papel de sábios

conselheiros ou de autoridades religiosas; a forma como as atividades produtivas

envolvem relações respeitosas com os outros e com a natureza, a pedagogia muito

ligada à transmissão oral de valores, lendas e mitos; todo esse conjunto de elementos

integra uma forma de organização comunitária que sustenta experiências psicossociais

que merecem uma investigação aprofundada.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
6
Esta ideia de invenção do cotidiano aparece em Certeau (1994).

! ")!
Junto destas reflexões, percebi que o que me faz sempre voltar a Nazaré e ao

Baixo Madeira é a indignação ao ver tamanha violência nas formas de dominação e

opressão presentes no processo de construção da barragem e nas relações

estabelecidas com os centros urbanos ou com as políticas do estado, mas acima de

tudo, a vontade de tentar compreender a força e as maneira com que aquelas pessoas

têm de encontrar saídas a estes processos. Descobri, portanto, que meu vínculo não

está somente com a Amazônia, mas sim com a força e lutas de seus povos contra a

espoliação econômica e a humilhação social.

Sobre este sentimento de indignação e raiva, Paulo Freire diz:

[...] Em face de tudo isso, eu pelo menos, não vejo outro caminho para
caminhar com a minha raiva legítima, com minha justa ira, com minha
indignação necessária senão o da luta político-democrática de que possam
vir resultando as indispensáveis transformações na sociedade brasileira,
sem as quais esse estado de coisas se agrava em lugar de desaparecer.
(FREIRE, P., 1997 - Professora sim, tia não, p.71)

Relatar as formas de viver e conviver aprendida junto dos Ribeirinhos da

região do baixo rio Madeira não é, de forma alguma, uma tentativa de definir o que é

ser ribeirinho ou brasileiro ali. O ser do beiradeiro, do caboclo, do ribeirinho, do

brasileiro de Nazaré não pode ser definido em poucas e definitivas palavras, afinal o

ser é devir, é transformação. Assim, não temos a pretensão de explicar ou definir uma

identidade beiradeira estática, que não se transforma. O ser que encontramos ali é o

ser que navega pela vida se transformando! É como o próprio rio descrito por

Guimarães Rosa, em “O Grande Sertão: veredas”, que não quer chegar a lugar

nenhum, só quer ficar mais largo e profundo, só quer se transformar.

A partir destas considerações iniciais, é possível afirmar que este trabalho se

insere no campo de pesquisas da psicologia social comunitária. Interessa-nos,

portanto, investigar a dialética enraizamento – desenraizamento numa comunidade

! "*!
específica, ou seja, o processo pelo qual a formação das raízes e a organização

comunitária de Nazaré podem permitir ao grupo enfrentar as ameaças de

desenraizamento advindas do processo colonizador ainda em curso.

A finalidade não é a de simplesmente observar o sofrimento e as formas de

viver as injustiças sociais, mas sim, de possibilitar um espaço de entendimento das

injustiças e da exclusão vividas, além de contribuir para a criação de espaços de

compreensão dos fatores que formam e influenciam esta situação e as possibilidades

de enfrentamento com raízes locais, estudos amplamente encontrados nos textos de

autores como Gonçalves Filho (2005; 2007), Guareschi (1996), Montero (2005),

Sawaia (2007a), Ciampa (1995), entre outros.

A presente dissertação foi se transformando na medida em que o trabalho foi

feito. Desta forma, pretendo aqui apresentar o resultado de um estudo piloto: a

descrição e análise de itens para o retrato etnográfico da comunidade de Nazaré. Itens

que, durante a observação participante e as entrevistas, me pareceram fundamentais

para a experiência de enraizamento dos moradores desta comunidade. Irei apresentar

um trabalho inicial, pois seria impossível em tão pouco tempo e sem uma interlocução

mais intensa com as pessoas da comunidade propor escrever algo que tente ser mais

do que um começo de compreensão das formas de viver deste local. Tento, portanto,

deixar nestas páginas, mesmo que finalizadas, ainda em construção, um pouco da

história de luta de amigos tão importantes que conheci nestes anos de Amazônia.

A presente dissertação está dividida em 5 capítulos, sendo que o quarto está

dividido em 5 subcapítulos, que representam os nove itens aqui tratados para o retrato

etnográfico de Nazaré.

Os capítulos foram pensados de forma que as observações da pesquisadora

registradas no caderno de campo, as entrevistas e os autores que falam sobre os

! #+!
assuntos aqui tratados pudessem aparecer em diálogo. Desta forma, a tentativa foi a

de que os diferentes interlocutores presentes (de forma direta ou indireta) pudessem

apresentar-se construindo de fato um conhecimento formado a partir das tramas de

vozes e não na separação entre o conhecimento acadêmico e os relatos

compartilhados pelo moradores de Nazaré. Assim, nossos leitores encontrarão nos

capítulos todas as vozes, indicadas por seus nomes (em caso de entrevistas), que

conversam sobre os mesmos assuntos, a partir das compreensões e leituras da

pesquisadora.

A intenção de realizar um retrato etnográfico da comunidade de Nazaré

inspirou desde o início das viagens o desejo de utilização da fotografia como recurso

de pesquisa. Elas estão aqui inseridas não como uma tentativa de apresentar a

“realidade” da comunidade a um estrangeiro, como se a fotografia pudesse congelar

um instante do real e apresentá-la tal como foi. As fotos presentes ao longo deste

trabalho podem ser considerados momentos e índices do nosso encontro com a

comunidade, imagens que possuem narrativas e remetem à inteligência do olhar no

contexto de encontro com a alteridade. Ficam registrados momentos que revelam o

diálogo do estrangeiro com o cotidiano das práticas culturais, explicitando a surpresa,

a inquietude e a admiração.

Como havia dito Henri Cartier-Bresson (2004), “fotografar é prender a

respiração quando todas as nossas faculdades se conjugam diante da realidade fugidia;

é neste momento que a captura da imagem é uma grande alegria física e intelectual.

Fotografar é pôr na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração”. As fotografias

apresentadas ao longo do texto, portanto, farão parte deste esforço maior de

apresentar a comunidade, sabendo que elas compõem a narrativa do encontro e da

trama de significados velados e explícitos que se apresentam na pesquisa de campo.

! #"!
É importante ressaltar que, quando questionados sobre o uso de seus nomes

reais ou pseudônimos, após explicado todos os cuidados éticos da pesquisa, todos os

interlocutores que foram entrevistados optaram pelo uso de seus nomes reais. Assim,

todos os nomes dos moradores de Nazaré aqui citados são de interlocutores que

contribuíram com a construção da presente pesquisa, compartilhando de maneira

muito ativa suas histórias, lutas e formas de viver.

! ##!
2) Objetivos da pesquisa

2.1 Objetivo geral

Investigar algumas experiência de enraizamento em uma específica comunidade

ribeirinha do baixo-Madeira. Estudar o sentido de comunidade presente nesse grupo e

como ele sustenta o enfrentamento das forças sociais e dos impactos que contribuem

para desintegração de sua cultura e trazem a ameaça de desenraizamento.

2.2 Objetivos específicos

1- Estudar as festas e manifestações artísticas presentes na organização da vida

comunitária, suas características e importância na integração do grupo. Contribuir

para o registro histórico da vida cultural dessas comunidades a partir da perspectiva

da população tradicional da região.

2- Estudar alguns aspectos da forma de organização econômica e política da

comunidade, suas formas de produção e de troca, os valores e entendimentos da

natureza e das relações sociais que se materializam nas práticas de trabalho, nas

relações escolares e em outras instituições formais e não formais da comunidade.

3- Investigar certos traços pela qual a comunidade assimila e compreende a

construção da usina hidroelétrica de Santo Antônio, assim como seus impactos atuais

– durante a construção – e após seu termino; investigar igualmente os impactos dessa

obra na vida social do grupo e as formas de organização política para participar das

decisões a respeito dela.

! #$!
3) Método da pesquisa

Miguilim olhou. Nem não podia acreditar! Tudo


era uma claridade, tudo novo e lindo e diferente,
as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os
grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas
menores, as formiguinhas passeando no chão de
uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus,
tanta coisa, tudo…

João Guimarães Rosa, “Campo Geral”

Fiz, nesta pesquisa, um estudo de campo no regime de observação participante

na comunidade de Nazaré, localizada no Norte do Estado de Rondônia. Assim, a

intenção foi a de, em dois períodos de um mês até um mês e meio (em março e abril

de 2011 e janeiro e fevereiro de 2012) participar dos eventos da comunidade, das

reuniões e mecanismos de convivência política (tais como as reuniões periódicas da

associação de moradores, os encontros de discussão na igreja, após a celebração

religiosa, entre outros encontros que são agendados com a população), além de ter

conversas informais com diferentes pessoas e viver alguns dos acontecimentos de

seus cotidianos.

Como inspiração, foi usado o que Gonçalves Filho (2005) chama de

comunidade de destino. Esta é a experiência vivida pelo pesquisador que se desloca

para perto daqueles que vivem o fenômeno que se vai pesquisar. Desta maneira,

envolve um deslocamento que não é apenas físico. O pesquisador não transfere só de

endereço, mas para o tempo e o espaço daqueles que vivem a experiência da opressão

e assim, vive uma alteração de seu ponto de vista. Esta alteração não é de forma

alguma uma adoção irrefletida das opiniões destes homens e mulheres, mas sim a

chance de estar no lugar onde as opiniões são formadas, onde há diálogos e trocas.

! #%!
Como Miquilim, de Guimarães Rosa (2001), que, com a descoberta de seus óculos,

pôde enxergar a vida de uma nova maneira, a partir de um novo ângulo e, com isso,

ter a oportunidade de ver novas cores!

Segundo Gonçalves Filho, comunidade de destino não é apenas a comunidade

no sofrimento, mas também no engajamento político e na resistência contra a

dominação, comunidade de cultura, de amizade e de alegria. Ao conviver com estas

pessoas, pude ver em seus gestos e palavras não só a experiência de quem foi

dominado, mas também as formas de resistência pessoal e coletiva perante este

fenômeno. A comunidade de destino pode ser entendida, neste trabalho, apenas como

inspiração, pois não houve um deslocamento definitivo para esta realidade, assim

como explicitado pelo autor.

Para compreender os fenômenos culturais específicos da comunidade é

necessário estar exposto de forma sensível ao diálogo e aos acontecimentos do dia a

dia destas pessoas, é preciso alongar a convivência junto deles. Assim, permitir que os

rostos e vozes apareçam e que as conversas sustentem reflexão e transformação tanto

para o pesquisador, quanto para o depoente (Gonçalves Filho, 2005). Esta

aproximação permite que seja realizada o que Geertz (1989) chamou de descrição

densa, ou seja, conseguir que os fenômenos sociais sejam descritos de maneira

inteligível e que nos mostre as tramas de significados que formam a cultura.

Como recurso complementar, também realizamos entrevistas abertas com 9

sujeitos envolvidos em situações de destacada importância para a pesquisa. Os

sujeitos foram escolhidos por serem considerados lideranças locais (formais ou

informais) ou moradores antigos que puderam contar a história de formação da

comunidade. Faremos uma breve apresentação dos entrevistados, antecipando alguns

! #&!
dados relevantes que permitirão melhor compreender a análise dos resultados. São

eles:

1- Timaia – Nascido e criado em Nazaré, educador formado em letras,

um dos criadores do grupo “Minhas Raízes”, foi recentemente

aprovado no concurso para professor da escola Estadual que está em

fase de construção na comunidade. Timaia luta por ideais

construídos em parceria com outras pessoas da região, como por

exemplo na organizações de eventos culturais e de celebrações

religiosas. Músico, compositor, ator e um dos escritores das

comédias feitas em Nazaré, ele trabalha de forma a unir as histórias

da Amazônia em seus trabalhos, principalmente nas peças de teatro,

nas músicas e nos festejos. Filho do professor Manoel Maciel

Nunes, foi criado em meio a diversas atividades artísticas e livros.

Foi, sem dúvida, um dos parceiros mais presentes nesta pesquisa.

2- Dona Vena – Ribeirinha nascida e criada no baixo rio Madeira. Ela

foi uma das primeiras moradoras de Nazaré, casada com seu Nanã –

antigo patrão da comunidade, ela chegou ali ainda menina, quando

se casou. Dona de casa, em Nazaré criou seus dois filhos e

acompanhou a fundação e desenvolvimento da comunidade. Dona

Vena, em suas falas, nos mostra a importância da ajuda mútua e

enfatiza que a beleza de Nazaré está justamente na vida em

comunhão.

3- Anauá – Ribeirinho, nascido e criado em Nazaré, filho do antigo

curandeiro da comunidade, conta que já tentou morar em outros

locais algumas vezes, mas que não consegue ficar longe de sua

! #'!
comunidade. Sua família, constantemente presente em nossos

encontros, caminhadas no mato e incríveis almoços e merendas em

sua casa, participou também ativamente de nossas conversas. Ele

conta as lendas e histórias locais como ninguém, além de participar

ativamente na construção dos eventos culturais de Nazaré (como o

festejo e as peças de teatro). Foi também, junto com Timaia, um dos

maiores interlocutores que tive durante o desenvolvimento desta

pesquisa e, sem dúvidas, de toda minha história na Amazônia.

4- Seu José Ferreira – Integrante da velha guarda de Nazaré, sempre

nos recebe com um bom samba escrito por ele! Seringueiro desde

criança, quando saiu da casa dos seus pais em outra localidade, pois

precisava ajudar a família financeiramente. Ele conta emocionado

sobre o dia que teve que sair da casa de sua família, ainda menino,

para fazer parte do exército da borracha. Porém, fala com enorme

tristeza que gostaria de ter frequentado a escola. Suas histórias são

cercadas de músicas e dos objetos que fizeram parte dela!

5- Professor Artêmis – Nasceu no Amazônas, próximo ao Humaitá.

Chegou a Nazaré para trabalhar no mato, como a grande maioria

dos homens da comunidade, mas foi chamado pelo professor Maciel

para também se tornar professor na comunidade, cargo que teve até

sua aposentadoria. Além de ter também participado do inicio da

construção das peças de comédia em Nazaré, também foi grande

apoiador das formas de expressão artísticas e culturais que

acontecem na comunidade. O professor Artêmis conta suas histórias

com generosidade, em frente ao igarapé – cercado de botos, com

! #(!
seus netos correndo a sua volta, experiência rica e difícil de

descrever!

6- Seu Manduca – Também do baixo Madeira, morador antigo da

comunidade que em nossa conversa compartilhou o porquê gosta

tanto daquele lugar. Grande parceiro do Professor Maciel e do

Professor Artêmis nas manifestações culturais da comunidade, seu

Manduca contou suas histórias da época da solva e, posteriormente,

da castanha. Suas histórias são ricas, cheias de detalhes e elementos

que não nos permitem perder a atenção!

7- Seu Pantoja – Grande parceiro de conversas na varanda do seu

comércio e da sua casa! Ele chegou em Nazaré ainda jovem e lá se

casou e constituiu sua família. Seu Pantoja contou as histórias de

suas caçadas e de como era a organização do trabalho dos homens

no mato.

8- Jeferson – Presidente da Associação de produtores e amigos de

Nazaré, Jeferson nasceu e foi criado na comunidade, além de ter

sido o interlocutor mais jovem da pesquisa. Ele contou da

importância da luta coletiva por direitos! Mostrou os caminhos

percorridos por eles para tentar conseguir água potável, reformas na

comunidade, entre outros pontos, oferecendo-nos importantes

relatos sobre a organização política da comunidade.

9- Professor Raimundo – Diretor da escola, o professor Raimundo

nasceu na comunidade e passou alguns anos em outras localidades,

mas logo voltou a morar em Nazaré. Em sua entrevista, contou

! #)!
principalmente das dificuldades enfrentadas por eles em relação ao

acesso à saúde e à educação.

As entrevistas foram semi-estruturadas, o que tinha como objetivo facilitar o

trabalho de rememoração e de narrativa dos depoentes. Os núcleos temáticos das

entrevistas foram formulados a partir da convivência permitida pela observação

participante, e podem ser compreendidos como índices que estabelecem o eixo das

narrativas.

A tomada de decisão de realizar as entrevistas após a etapa de observação

participante foi inspirada na reflexão de Gonçalves Filho (2005), que diz que a

entrevista deve estar apoiada em uma convivência anterior, repleta de conversas e

baseada em amizade política, para só depois ter o uso do gravador.

As observações e entrevistas priorizaram o histórico de formação da

comunidade, as experiências de trabalho e os aspectos ligados as possíveis formas de

resistência frente às diversas pressões sociais vividas na comunidade (tais como a

decisão de transformar ou não Nazaré em uma Reserva Extrativista - reconhecida

legalmente, as políticas de preservação integral da natureza, o enfrentamento das

transformações do território pela construção da barragem, entre outras).

Desta forma, registramos as observações de como a vida política, econômica,

as trocas de saberes cotidianas e as formas de expressão artística se organizam na

estruturação da vida social na comunidade, e que importância esta experiência

comunitária tem no processo de enraizamento.

A coleta de dados aconteceu em dois períodos distintos. O primeiro durante o

mês de março/abril de 2011 e o segundo de janeiro a fevereiro de 2012, sendo que o

segundo foi mais curto do que o planejado, devido ao adoecimento da pesquisadora.

! #*!
O fato de a água não ser tratada pela maioria dos moradores da comunidade acabou

sendo limitante para a estada da pesquisadora por longo período de tempo. Desde o

início dos trabalhos em Rondônia, após algumas semanas, os limites do corpo

apareciam, dando ênfase a estes aspectos da alteridade encontrada na presente

pesquisa.

Como dito anteriormente, nosso objetivo foi a “descrição densa” da vida

comunitária deste grupo. Desta forma tentamos, durante a análise dos dados, indagar

o que estava sendo transmitido nas ações sociais e não fazer a simples descrição delas.

A intenção não era a de repetir estudos em que o outro aparece como objeto do

pesquisador – como subalterno, - mas questionar e produzir com os moradores

conclusões sobre a vida comunitária a partir de pequenos fatos do dia a dia que são

profundamente entrelaçados (GEERTZ, 1989).

Assim, como observou Schmidt (2006), o conhecimento passa a ser construído

a partir das tramas de vozes e saberes que se faz no diálogo entre “pesquisador” e

“colaborador e/ou interlocutor” durante o “encontro etnográfico”. Desta maneira, a

pesquisa conta com a coautoria de seus interlocutores.

Seguindo a orientação de Gonçalves Filho (2005), realizamos a interpretação

das narrativas de forma a dar continuidade ao exame que foi iniciado pelo depoente.

As lembranças e as discussões trazidas por ele irão dialogar com as lembranças e

discussões do pesquisador e de outros autores que estudam o assunto. O que estamos

propondo aqui é o diálogo entre as perspectivas, sem que uma forma de olhar se

sobreponha a outra. Desta forma, caminharemos “… para uma compreensão do

fenômeno que então já não será a minha ou dele, mas que será construída entre nós”

(Gonçalves Filho, op cit, p. 279).

! $+!
4) Nove itens para o retrato etnográfico de Nazaré

Em minhas idas para Nazaré, no barco durante as horas de viagem,

cozinhando, ou simplesmente sentada em frente ao “barranco” na beira do rio, muitos

elementos foram criando destaque. Alguns eu pude elaborar durante a viagem, outros

foram claramente apontados por interlocutores em Nazaré e tantos mais foram

abrindo espaço na memória e surgindo na consciência em conversas com

interlocutores de São Paulo.

Certamente, outros itens surgiriam por diferentes pessoas e em mim

continuarão emergindo a medida que esta rica experiência for sendo elaborada. Como

já dito, este é um estudo piloto de um retrato que possa contribuir para a compreensão

das formas de viver destes homens e mulheres, para contribuição de uma luta diária

pela experiência de enraizamento. Desta forma, muitos pontos chegam seguidos de

um convite de continuidade e aprofundamento.

4.1) Histórico de formação e estrutura de Nazaré

Los científicos dicen que estamos hechos de


átomos pero a mí un pajarito me contó que
estamos hechos de historias.

Eduardo Galeano

Nazaré possui atualmente cerca de 550 habitantes e está localizada à margem

esquerda do Rio Madeira (sentido Porto Velho a Humaitá), a uma distância de 200

! $"!
Km de Porto Velho, que podem ser percorridos em uma média de 8 horas por meio de

viagem em barcos comerciais (barcos de linha).

Localização satélite da comunidade de Nazaré

Localizada no entorno de duas Unidades de Conservação, uma de uso

sustentável7 (a Reserva Extrativista do Lago do Cuniã) e a outra de proteção integral8

(Estação Ecológica de Cuniã), a comunidade de Nazaré é formada por descendentes

de indígenas que ocupavam a região, e igrantes que vieram do estado do Amazonas e

do Nordeste para trabalhar nos seringais da região como consequência dos estímulos

concedidos pelo Estado para aumentar a ocupação amazônica. A comunidade ocupa

uma pequena parte da beirada do rio Madeira e cresce ao longo de um igarapé9. No


!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
Caracterizada, entre outros fatores, pela habitação humana.
8
Não permite habitação humana.
9
Pequeno leito de um rio ou canal que, no caso de regiões de várzea, possui épocas de cheia e seca, ou seja, ele
pode ficar mais raso ou mais profundo, além de mais largo ou estreito.

! $#!
meio da comunidade existe uma ponte, que serve para a passagem das pessoas de um

lado a outro da comunidade durante os meses da cheia.

Ponte na época de cheia e cheia do rio

! $$!
Acesso às casas na época de cheia do rio.

A chegada dos primeiros habitantes, e a história de formação de Nazaré, está

intimamente ligada à história da família de seu Nanã, antigo proprietário das terras da

comunidade. A família de seu Nanã é a primeira a ocupar esse território, na metade da

década de 60 (ou seja, início do governo militar). A chegada de um patrão, que

começa a explorar um pedaço de terra foi um aspecto comum da história das

comunidades ribeirinhas do baixo Madeira. Em uma das comunidades no entorno,

ainda é possível encontrar uma espécie dono do território, revelando o aspecto

principal do processo histórico de desenvolvimento das comunidades da região.

Portanto, a formação da comunidade de Nazaré teve início principalmente

durante a época da ditadura militar, na década de sessenta. Segundo a Dona Vena,

viúva de seu Nanã, as terras da comunidade pertenciam, originalmente, a seu sogro,

homem de origem portuguesa, que veio ao Brasil em busca de trabalho. Entretanto,

ela não sabe dizer quando foi que seu sogro chegou na Amazônia e como ocorreu a

concessão das terras para ele. O que ela conta é que ele chegou no Amazonas, casou-

se com uma manauara, com quem teve muitos filhos (a depoente não sabe dizer

quantos). Seu Nanã, por sua vez, nasceu na Amazônia, embora todos os moradores

antigos da comunidade se refiram a ele como português.

A construção da comunidade, tal como a conhecemos, se deu quando o seu

Nanã herdou a propriedade de seu pai, que era o patrão, ou seja, o dono das terras do

seringal. O trabalho de seu Nanã foi preparar esse território para a exploração da

borracha (que durou até o final da década de 60). Ele montou o barracão, a primeira

casa e modificou o curso do igarapé, que fez com que a comunidade, antes de se

chamar Nazaré, fosse conhecida como “boca do furo”, pois ela, a partir desta

transformação, se localizava na “boca do furo” para o rio Madeira.

! $%!
Antigo barracão da comunidade

Esta transformação foi feita pois o acesso das terras de seu Nanã para o rio

Madeira dependia do igarapé e, por isso, era bastante dificultado (pela distância do rio

e pelo fato de que na época de seca o igarapé ficava extremamente raso,

impossibilitando o transporte com embarcações maiores que uma canoa). Desta

forma, seu Nanã durante o período de seca ordenou que “seus homens” fizessem um

caminho do igarapé até o rio, quando chegou a época da cheia, este caminho ficou

cheio de água, alterando o curso natural do igarapé, além de cortar um pedaço da

fazenda ao lado de Nazaré.

Os primeiros trabalhadores chegaram e ficaram hospedados em sua casa.

Posteriormente, construiriam suas próprias casas e assim a comunidade começou a

crescer. A fama de bom patrão de seu Nanã fez com que os primeiros trabalhadores

chamassem parentes e conhecidos para trabalharem na localidade, oferecendo

hospedagem inicial até que pudessem construir suas próprias casas. Segundo seu Zé

! $&!
Ferreira, que chegou em Nazaré ainda com 9 anos de idade, seu Nanã era filho de

Barão:

Sou veterano. Trabalhava com o Eduardo da Costa Filho10... vim


para cá com 9 anos (pausa longa). O velho veio, foi lá em casa e se
compadeceu com o que viu. Eu vim então pra cá trabalhar na
seringa pro meu pai ficar lá cuidando dos meus irmãos, criando os
meninos tudinho.... Todos já morreram. Nessa época ainda não era
Porto Velho, mas sim Santo Antônio. No começo morei com o seu
Nanã e trabalhava na casa dele, depois me mandou para a
seringa... Nessa época a comunidade era pequena, depois encheu
mesmo na época da Solva. Meu pai não conhecia bem o seu Nanã,
mas minha mãe era tia do Mundico11. Vim pra cá nessa época e
nunca mais voltei. Aqui casei e tive meus filhos... Nunca soube o
que era juventude.

Segundo as conversas com dona Vena, seu Artêmis, seu Pantoja e seu Vijico,

o seu Nanã convidou alguns homens que havia conhecido no Amazonas ou que eram

indicados para ele e, com o tempo, por ele ser conhecido por ser um bom patrão em

comparação aos outros da região, as pessoas foram chegando sozinhas na localidade.

Dona Vena e seu Nanã se conheceram em uma comunidade vizinha, local em

que ela morava com seu pai – seringueiro - e sua mãe. Ribeirinha do rio Madeira, ela

conta que sempre pegava um pouco de seringa para seu pai vender e ela poder

comprar tecido para fazer seus vestidos. Ela conheceu seu marido e logo depois se

casaram. Com ele teve uma filha e um filho.

Quando casou-se com seu Nanã, a comunidade ainda era pequena, só existiam

sete famílias, entre elas, a família do seu Pantoja, do seu Vijico e do seu Zé Ferreira,

que ainda são moradores da comunidade e depoentes da presente pesquisa. Dona

Vena conta que era comum novas famílias chegarem lá à procura de trabalho no
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
10
Nome completo de seu Nanã.
11
Seu Mundico é um dos moradores antigos da comunidade. Hoje dono de um comércio de alimentos e botijão de
gás, além de uma pousada.

! $'!
seringal. Segundo os relatos, os fregueses moravam afastados do seringalista, porém,

atualmente, no local aonde o patrão morava, encontram-se várias casas bem próximas

umas das outras e próximas à antiga casa do patrão e seu barracão.

Os relatos sobre esta época variam a cada depoente. Seu Nanã é descrito como

homem bravo, grosseiro, porém justo. Contudo, houveram depoentes que contaram

que foram morar na comunidade na época do seu Nanã, não se deram bem, e só

voltaram com sua morte. Outros homens já contam que lá não eram tratados como

escravos e que até chegavam a tirar lucro da conta do barracão no fim do mês.

As lembranças sobre o patrão oscilam entre um “pai”, que oferece moradia e

auxílio na construção das casas, e um “patrão” que se aproxima a um senhor de

escravos, dono de uma terra na qual os homens trabalham pela sobrevivência de sua

família. É possível constatar um regime de trabalho (comum nos seringais) que em

muitos momentos legitima e autoriza ações violentas e opressoras.

Assim a comunidade foi crescendo e se formando. Junto ao enfraquecimento

das vendas da borracha, começou o que os moradores chamam de ciclo da Solva (em

meados de 60), que tinha uma forma de coleta parecida com a da borracha.

Posteriormente, veio o ciclo da agricultura e da pesca. Segundo os relatos, os homens

tiraram borracha na localidade por muito pouco tempo, pois logo depois da chegada

de seu Nanã no local, as vendas já enfraqueceram.

Ninguém na comunidade sabe explicar ao certo como era feita a concessão de

terras naquela época. Os moradores de Nazaré contam que antigamente, ao chegar na

Amazônia, era preciso demarcar a terra e entrar com o pedido de documentação. Mas

a documentação só saía para poucos. Os produtores mais fracos, como dito por eles,

que viviam em terras próprias, viviam sem documentação alguma e, na medida em

! $(!
que não queriam ou não podiam mais trabalhar nestes pequenos pedaços de terras,

eles simplesmente a abandonavam.

As situações que os faziam sair de suas terras eram diversas. Em uma

conversa na comunidade, um senhor contou que ele possuía uma plantação de café e

mandioca em um pequeno sítio com uma casinha, porém um dia chegou em seu

pedaço de terra e alguns animais da floresta haviam destruído tudo e, por não ter

como recomeçar a plantação, ele acabou por abandonar o seu sítio e voltou a trabalhar

com os produtos da floresta.

Em umas das conversas na beira do rio, uma moradora da comunidade contou

que antigamente ela e seu marido possuíam uma fazendinha na beira do Madeira, ao

lado das terras de seu compadre, que após algum tempo adoeceu e faleceu com

problemas do coração. Depois da perda de seu amigo, ela e o marido não conseguiam

mais cuidar de seu pequeno gado.

Essas escolhas revelam que a relação com a terra não passa simplesmente por

um cálculo econômico de rentabilidade, mas por aspectos integrados à vida social e

cultural do grupo. Ela conta:

Chegar em nossa fazendinha fazia a gente lembrar do cumpadi que


deu força pra gente ter nossos bois. Depois de que ele morreu, a
gente vendeu os bois e abandonou a terra. Ele era como família, e
perder família dói. Agora lá é só mato, nem sei se a casa ainda ta
de pé e nem quero saber. Graças a Deus agora a gente tem outras
formas de viver e nossos filhos tão crescidos. Depois disso nunca
mais fomos lá. Ainda temos contato com a cumadi e ajudamos no
que podemos, mas as terras abandonamos.

A compreensão de certos aspectos da ocupação do solo que se apresentam em

Nazaré e em outras localidades da Amazônia acontecem em momentos distintos, e por

isso, torna necessária uma breve apresentação da história dos fluxos migratórios da

! $)!
região. O histórico de ocupação e dominação das terras da Amazônia e criação dos

seringais é longo e complexo, passando pelos ciclos da borracha e, em Porto Velho,

com a desastrosa construção da estrada de ferro Madeira Mamoré. O governo de

Vargas (entre 1930 – 1945) traz a chamada “Marcha para o Oeste” brasileira, que

levou diversas famílias, principalmente de nordestinos, para os territórios Amazônicos

com a finalidade de trabalhar nos seringais. Trabalho que se desdobrou em um regime

de dominação e opressão, deixando estes trabalhadores completamente sob o controle

do seringalista, pois os migrantes nordestinos eram levados para a floresta, local no

qual eles não estavam habituados a viver, e lá moravam nas terras do patrão, sendo

obrigados a viver sob seu controle e regras, além de terem que deixar parte do seu

salário, senão ele todo, para pagar as contas do barracão e de moradia.

Também como fator de influência, logo na década de 50 o país passava por

uma fase desenvolvimentista, que desde o governo de Juscelino Kubitschek, com o

slogan de “50 anos em 5”, fomentavam ações de desmatamento.

Adiante, segundo conversas com docentes da Universidade Federal de

Rondônia, a década de 60 foi marcada, inicialmente, pela ação das ligas camponesas e

pelos projetos de reforma agrária. Chegava ao estado de Porto Velho, nesta época, os

movimentos de Teologia da Libertação e outros movimentos sociais, pois a população

do estado já enfrentava as graves consequências do final do segundo ciclo da

borracha. Entretanto, com o início do regime militar, estes movimentos foram

praticamente extintos no estado, assim como as diferentes formas de expressão

religiosas e de festejos tradicionais foram oprimidos.

Com o golpe militar, em 1964, o desmatamento da floresta cresceu

notoriamente, coincidindo com o que foi chamado de “milagre econômico” no Brasil

e, desta forma, mostrando indícios das prioridades do governo na época. Em 1966, o

! $*!
slogan criado pelo presidente Castelo Branco sobre o território da Amazônia era

“Integrar para não entregar”. Para o pensamento da época, os perigos da

internacionalização da Amazônia eram iminentes e o estado deveria intervir com o

foco em sua “proteção”. Segundo Porto Gonçalves (2001), nunca houve uma época

com tantos investimentos internacionais na floresta como esta, que tinha como “foco”

a não internacionalização.

Nesta época, houveram maciços investimentos para o que era denominado

pelo governo militar como “desenvolvimento” da região. Em nome da segurança nas

fronteiras, a floresta amazônica, que o governo militar entendia como “vazios no

território nacional”, deveria ser ocupada e dinamizada economicamente. Esta missão

passou a ser, declaradamente, objetivo principal das autoridades governamentais do

país, impulsionando a migração de pessoas do sul e, principalmente, do nordeste, à

Amazônia. Com o discurso de desenvolver economicamente o país a partir, entre

outros fatores, do povoamento da região norte, o governo militar contribuiu para uma

ocupação extremamente predatória da região. (BONFIM, 2010)

Essa forma de ocupação tem uma tônica comum: não consideraram as populações
que viviam na região, atropelaram culturas tradicionais, desrespeitaram brasileiros
e destruíram florestas passando por cima das leis do país, tudo em nome do
“desenvolvimento”. (SIQUEIRA e VASCONCELOS, 2010 )

Segundo Siqueira e Vasconcelos (op.cit.), tanto os povos originários da região,

quanto os povos que migraram nos diversos ciclos, construíram formas de viver

baseados em um íntimo conhecimento da natureza, que conta com um campesinato

fortemente ligado em sistemas agroflorestais. Porém, estes conhecimentos vem sendo

historicamente desconsiderados.

! %+!
Em 1976, o governo federal passa a regulamentar as terras que em grande

maioria eram ilegais. O critério para esta regulamentação era a “Boa fé” dos

proprietários no controle de 60 mil hectares, mostrando cada vez mais que o Estado

foi a favor de um desenvolvimento econômico e não da valorização do pequeno

produtor. O que confirma com precisão os relatos dos agricultores locais sobre a

distribuição de terras aos produtores mais poderosos.

Nesse momento, a atual comunidade do Nazaré pode ser assim descrita: uma

fazenda com sede no barracão e homens trabalhando para seu Nanã.

No entanto, a quantidade de crianças faz com que o patrão pense na

possibilidade e na importância de construir uma escola. Segundo os relatos de Dona

Vena e Seu Artêmis, seu Nanã era bastante preocupado com a educação e queria

garantir que as crianças do local pudessem ler e escrever.

A construção da escola é um momento na formação da comunidade muito

contado e lembrado por todos os depoentes. O primeiro professor de Nazaré foi o

professor Manuel Maciel Nunes (já falecido), que é recordado em diferentes

conversas com todos os moradores antigos de Nazaré que participaram de entrevistas

e conversas informais. Professor extremamente respeitado na região, principalmente

pelo seu amor à escola, esforços para trazer melhorias na comunidade e garantia da

participação política de todos, respeito às festas, danças e histórias tradicionais da

região e trabalhos junto à igreja católica.

Em entrevista, o professor Artêmis conta que o Manuel Maciel Nunes, de

origem Tupi, já era professor aos 14 anos no Uruapiara (estado do Amazonas).

Entretanto, se dizia ribeirinho, como os demais moradores. Na época, ele era

seminarista e trabalhava com 15 alunos na região em que nasceu e vivia. Entretanto,

ele tinha um tio que trabalhava para o seu Nanã e, em certa ocasião, ainda menino, foi

! %"!
trabalhar temporariamente no seringal. Após um tempo, voltou para sua região de

origem, quando o Dom João Batista, a pedido do patrão, o perguntou se ele queria

lecionar em “Boca do Furo”. Assim, a primeira escola de Nazaré foi criada pela

arquidiocese de Porto Velho, que pagava o salário do professor.

Os fregueses homens iam para o mato cotar seringa ou solva, enquanto as

mulheres cuidavam das casas, das roças e das crianças. Mas, para ele, era preciso ter

escola. Naquela época, segundo o professor Artêmis, não existia concurso público

para professor. O professor mais antigo indicava o professor que entraria na escola e a

secretaria de educação fazia a contratação (isso quando a escola passou a pertencer à

secretaria de educação). Desta forma, ainda é muito comum encontrar pessoas na

Amazônia que cursaram até a quarta série e depois de algum tempo se tornaram

professores.

Na década de 70 a escola ficou sob responsabilidade do governo. O professor

Artêmis conta que lembra como se fosse hoje o primeiro dia em que se tornou

professor.

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O professor Maciel, junto do professor Artêmis, iniciou também a organização

dos teatros de comédia na comunidade, das danças do seringandô, das contações de

histórias e lendas e composição das músicas.

Quando seu Nanã ainda era vivo, com relação ao trabalho, os fregueses iam

para o mato retirar a solva (produto vendido na freguesia da boca do furo)12. Segundo

o Seu Pantoja, os homens iam para o mato e deixavam as mulheres em casa cuidando

da roça. Ao entrar na floresta, eles colocavam suas redes nas árvores e faziam fogo

para espantar os animais selvagens. De noite contavam histórias e riam. As histórias

contadas pelos depoentes sobre a relação entre os diferentes fregueses e entre eles e o

patrão são diferentes dos relatos vistos em outros trabalhos sobre os seringais na

Amazônia. Pelos relatos, os seringueiros não possuíam contrato com o seu Nanã, eles

iam para o mato buscar a seringa e posteriormente a solva e, quando chegavam no

barracão, faziam a venda para o patrão.

Contudo, eles contam que não tinham obrigatoriedade de pegar nenhuma

quantidade mínima ou ficar na floresta por tempo determinado. Eles voltavam quando

queriam. Entretanto, as famílias só possuíam o barracão para a compra de seus

alimentos e outros itens, o que garantia que os fregueses tivessem uma dívida

constante com os donos das terras. Assim, não existiram, nesta pesquisa, relatos que

descreveram ordens do patrão referentes a quando e como eles iam buscar os produtos

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
O regime de trabalho em Nazaré se estabeleceu nos moldes do Barracões e das freguesias. Comuns,
principalmente, nos seringais da Amazônia e outras regiões do país. Com a queda da comercialização da borracha,
seu Nanã passou a coletar solva da floresta. Segundo os moradores locais, este é um produto utilizado,
principalmente, para vedar os barcos. Os termos freguesia, patrão e freguês são portanto para identificar o patrão
como o dono das terras (ou seja, o seringalista) e os fregueses como os trabalhadores (os seringueiros). Neste
regime de trabalho, análogo ao da escravidão, os fregueses só recebem o dinheiro após pagar as contas do
barracão, a partir do que coletam da terra. Mais detalhes sobre isto serão discutidos a seguir.

! %$!
da floresta. Entretanto, as diferenças entre eles ficavam bem claras nos momentos de

venda da mercadoria para o seu Nanã e das dívidas no barracão.

Os homens relatam que iam juntos para o mato, pois não se pode entrar

sozinho, sem um companheiro. Além dos animais e das confusas trilhas a amedrontar

os seringueiros, ainda existem os espíritos da floresta e o “neguinho da mata” que

podem confundir a cabeça das pessoas. Quando adoeciam, cuidavam uns dos outros.

Seu Pantoja, que hoje está muito adoecido, conta que já tinha seus problemas de

saúde quando era jovem, mas não tinha médico e remédio na época para lhe ajudar.

Quando sentia suas queimações se jogava no rio para esfriar e assim foi se

tratando durante os anos. Ele conta que mesmo na comunidade, não existiam muitos

medicamentos, quanto menos quando iam para o mato. Ele relata que em algumas

situações, eles precisavam parar no meio do caminho de volta, em comunidades em

que conheciam alguém para pedir ajuda e remédios.

Na mata, o trabalho precisava de companhia entre homens para ser feito, e da

certeza que sem o cuidado mútuo ele não poderia acontecer. Lições que podem não

ser familiares àqueles que não conhecem aspectos da vida comunitária, como na

história da vela, contada na introdução do presente trabalho. Para aqueles homens, no

mato não existia a figura de alguém que mandasse na forma e no ritmo de trabalho,

eles não eram um mais importante do que o outro, um patrão do outro. Eram todos

necessariamente indispensáveis desde que em companhia mútua! Quadro que

certamente ficava diferente quando voltavam à comunidade, com a presença do

patrão.

Dona Vena relata que o barracão era ao lado de sua casa e eles abriam em

qualquer horário e era lá que os fregueses iam vender os produtos coletados na

floresta. Já para comprar, eles possuíam uma caderneta. Quando os homens estavam

! %%!
no mato, adoecidos, ou a família não possuía dinheiro naquele momento para pagar,

seus débitos eram anotados na caderneta. Outro ponto é que este era o único local de

compras na comunidade, desta forma, não havia opções de preços.

Sobre a comercialização dos produtos coletados, Seu Pantoja e seu José

Ferreira contam que quando voltavam do mato, traziam muitos quilos de solva nas

costas, dentro de seus paneiros, e que entregavam para o seu Nanã. Às vezes por

dinheiro, às vezes só para pagar a conta do barracão. Seu Nanã pesava a mercadoria e

fazia as contas das despesas na caderneta. Se sobrasse alguma coisa, eles recebiam o

dinheiro. Segundo o professor Artêmis, o patrão pagava no máximo o equivalente a

60 centavos o quilo do produto coletado, podendo chegar a ser muito menos do que

isso.

A solva era entregue ao patrão em seu estado sólido (em tijolos feitos em latas

de tintas). Segundo a Dona Vena, após o recebimento do produto, seu Nanã

aguardava pelos barcos que vinham de Manaus e paravam em seu porto no igarapé

para fazer a comercialização. Dona Vena conta que algumas vezes os fregueses

misturavam barro no meio da solva para ganhar mais dinheiro. Ao perceber que os

fregueses tentavam lhe vender barro por solva, seu marido começou a quebrar os

tijolos do produto na chegada, na frente do freguês.

Seu Nanã não trabalhava no mato com os outros homens da comunidade. Ele

ficava na localidade tomando conta do barracão e das vendas dos produtos coletados

por seus fregueses. Em todos os relatos, as pessoas dizem que ele era um homem

bom, justo, mas muito bravo e explosivo. Contudo, muitos dos homens mais velhos

da comunidade (localmente conhecidos como a velha guarda de Nazaré) dizem que

ele era um dos melhores patrões para se trabalhar, que ele não era violento, pagava

tudo em dia e eles poderiam ir fazer a coleta por tempo indeterminado e com os

! %&!
parceiros que quisessem. Além disso, as mulheres e as crianças ficavam seguras nas

terras.

Existia uma clara diferença entre o patrão e os trabalhadores. Nas conversas,

os depoentes sempre trazem aspectos positivos do trabalho com o seu Nanã, mas ao

mesmo tempo também revelam aspectos de dominação presentes naquelas relações de

trabalho. Afinal, as falas são, comumente, repletas de contradições. Muitas vezes,

para aqueles que estão em situação de opressão, embora possam lutar coletivamente e

compreender a dominação, o acesso aos direitos básicos do homem e relações um

pouco menos violentas no trabalho podem parecer como favor e bondade, não como

obrigação do empregador e dever do Estado.

Gonçalves Filho (1998) já havia notado em suas pesquisas a angústia causada

pela negação de direitos, em função da humilhação social. Em suas palavras:

É preciso que haja algo imparcial no mundo para que seja possível usufruí-lo:
os bens mundanos precisam parecer em alguma medida nossos, abertos a
todos, para que possam parecer meus. Esta possibilidade é criada pela situação
intersubjetiva toda vez que for atravessada pela participação comum e pela
distribuição de rendas. Esta possibilidade fica também reprimida pela situação
intersubjetiva toda vez que se assenta no privatismo capitalista. O saber de um
bem parcial é dependente de seu caráter imparcial... São muitos lados por onde
o pobre é golpeado. Não sei de nada mais alarmante do que o sentimento de
não possuir direitos. (op.cit. p. 43)

Ainda sobre o assunto, o autor aponta o fato de que na situação de humilhação

o próprio sentimento de dignidade parece ser desfeito e, para aquele que sofre a

humilhação, manter este sentimento pode significar um esforço.

Para se fortalecerem frente às constantes situações de humilhação social, os

moradores de Nazaré contam das parcerias estabelecidas entre eles, dentro da

comunidade.

Nestas conversas, chegamos ao assunto sobre os perigos de entrar na floresta.

Perguntei ao seu Pantoja se a quantidade de onças antigamente era maior na região de

Nazaré. Ele se divertiu com a pergunta dizendo que é ao contrário. Hoje em dia tem

! %'!
muito mais onça e que as casas mais afastadas com certa frequência recebem suas

visitas. Ele conta que muita gente já perdeu animais de criação por conta das onças e

ainda completa: Antigamente a gente ia naquele mato ali sempre (apontando para um

pedaço de floresta do outro lado do rio). Agora só se for louco. Não dá mais, se não a

onça pega.

Ao ser questionado o porquê do aumento, ele diz que isso se deu com o

fortalecimento do IBAMA. Antes, eles iam à caça para vender a pele da onça, mas

agora, com a proibição, ninguém mais consegue vender. Ele diz que isso é para

proteger a espécie, mas comenta que agora são eles quem vivem com medo: Antes a

gente via a varredura da onça e ia atrás delas. Agora a gente vê e corre dela.

Sobre o assunto, seu José Ferreira indaga se a proibição do porte de arma de

fogo garante a segurança dos moradores da comunidade. Afinal, isso faz com que

ninguém use a arma em brigas e impede que acidentes aconteçam, porém, já houve

situações em que ele precisou matar onças e jacarés que rondavam sua casa.

Indignado, um morador conta que precisou defender sua casa de um jacaré com o

remo da canoa, afinal, a polícia florestal proíbe o porte de arma, mas não garante a

segurança das pessoas, principalmente das crianças, que moram na comunidade.

Seu Nanã morreu no final do ciclo da Solva (em 1979). Com a morte do

patrão, muitas mudanças aconteceram na comunidade. Mudanças principalmente na

vida política de seus moradores. O professor Artêmis conta que no dia de sua morte

ele o chamou em sua casa e pediu para que ele nunca deixasse sua santa sem um teto

e seu filho sem um prato de comida. Desde então, para seu Artêmis, estas são duas

missões que ele leva para o resto de sua vida.

Após sua morte, as terras de seu Nanã ficaram sem um dono para administra-

las. Isso parece ter se dado, em uma primeira análise, pelas questões de herança na

! %(!
Amazônia, assim como em tantas outras áreas de pequenas propriedades rurais. Seu

Nanã era dono dos castanhais, da solva, do açaí e de tantos outros produtos. Com a

sua morte, a terra passou a não ter mais um patrão que controlava o seu uso.

Com a falta de alguém que trabalhasse administrando o local e o barracão, as

atividades deste comércio se encerraram. Desta forma, outros comércios foram

abrindo na área que pertencia à Boa Vitória13, mas ficava do mesmo lado de Nazaré

no Igarapé. Com a transformação da área em distrito de Porto Velho, estas mesmas

terras que eram de Boa Vitória foram integradas à “Boca do Furo”, que passou a se

chamar Nazaré – em homenagem a santa que o patrão adorava.

Contudo, os moradores antigos ainda enfatizam a divisão do território que

pertencia à Nazaré e o território que era de Boa vitória (nenhum morador se dirige a

Nazaré como “Boca do Furo”, eles apenas relatam a existência do nome anterior),

além de ainda dizerem que as terras pertencem à Dona Vena.

Entretanto, existe na comunidade uma sede da EMATER, que levou

funcionários responsáveis por cadastrar os moradores e iniciar o processo de

legalização de terrenos particulares, a partir da concepção de ocupação de terra. Tanto

as discussões sobre as diferenças nas áreas da comunidade, quando sobre início do

processo de assentamento feito pela EMATER, serão discutidos adiante.

A partir a morte do patrão, as mudanças aconteceram de forma rápida. A igreja

passou a ter um presidente14, que cuida de sua administração, outros comércios foram

abrindo, e, com o tempo, mais pessoas foram chegando à comunidade. Estas pessoas

chegaram por diversos motivos, entre eles: busca de uma comunidade com mais

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Comunidade vizinha a Nazaré.
14
Na região amazônica, em comunidades em que não há padres ou freiras morando no local, a igreja possui um
presidente que é eleito pelos moradores da comunidade, além dos catequistas. Tanto este presidente, quanto os
catequistas, podem também ser considerados líderes informais.

! %)!
infraestrutura, transferidos para a escola ou Unidade básica de saúde após aprovação

em concurso público, perda de emprego em Porto Velho, busca de moradia que não

dependesse do pagamento de aluguel, entre outros.

Seu Pantoja foi o primeiro morador a abrir um comércio na região após a

morte de seu Nanã. É importante enfatizar que seu comércio fica na área que

pertencia à Boa Vitória. Quando perguntado por que ele decidiu abrir sua loja e ele

me respondeu que após a morte do patrão, além de não existir nenhum local para as

famílias fazerem compras, não existia nada que impedisse o início de um novo

comércio. Desta maneira, esta era a oportunidade de parar de depender do trabalho no

mato para a subsistência de sua família. Questionei a razão da escolha da localidade

de sua loja, ele disse que abriu naquele local pois assim não abriria nada na terra dos

outros, indicando, mais uma vez a clara separação entre seringueiros e patrão.

Dona Vena conta que no dia em que seu marido faleceu ela estava fora da

comunidade e, quando chegou, já havia acontecido o enterro. Ela relata que quando

entrou no barracão notou que as pessoas haviam ido lá e pegado todas as mercadorias

que haviam sobrado e, por esse motivo, ela resolveu não dar continuidade com seu

comércio. Ela conta que hoje em dia as pessoas podem ir no mato e pegar o que

quiserem, que ninguém precisa falar com ela. Entretanto, ela ainda pede que as

pessoas peçam a ela para construir suas casas, o que, segundo a depoente, nem sempre

acontece.

Ela diz que a comunidade mudou bastante do início para agora. Andamos pela

ponte juntas e ela contou onde ficava sua casa, a primeira sala de aula e o barracão,

que ainda está ali (algumas pessoas querem derrubá-lo, mas, segundo relatos, a filha

da Dona Vena não autoriza).

! %*!
Ela falou que antigamente existia a ponte apenas para passar para a terra seca

de dentro- perto dos castanhais, na época da cheia. Ninguém morava ali, pois só

existia floresta, onça e jacaré nas margens. Seu irmão (pai do Anauá, também

interlocutor desta pesquisa) foi o primeiro morador do lado de dentro da comunidade,

pois ele gostava de ficar em local recolhido.

A comunidade foi crescendo e, atualmente, muitas casas estão no lado de

dentro da comunidade, inclusive a de dona Vena e de outras pessoas que foram

entrevistadas neste trabalho, como Anauá e Timaia, além da casa de Jaqueline e

Betinho, que me hospedaram durante esta pesquisa.

Valeria observar com mais detalhes como foi feita a divisão do espaço entre os

moradores antigos e as famílias novas que vão surgindo na medida que a população

local cresce, seguindo a lógica da rotação e terra (os agricultores respeitam o ciclo do

plantio, colheita, queimada, tempo em que a terra está capoeirando15, como dito por

eles, preparação da terra para o novo plantio e novo início do ciclo). Outro ponto que

merecia melhor observação é a própria divisão do dinheiro dentro dos núcleos

familiares.

Desde o início da formação da comunidade, até os dias atuais, os moradores

encontram algumas dificuldades possíveis de observar ao longo de sua história, são

dificuldades que advêm da falta de acesso a recursos e direitos básicos. Sendo que o

acesso a estes elementos, quando assimilados, poderiam apoiar a vida comunitária.

Atualmente, Nazaré possui um gerador central que distribui energia elétrica

para as casas. Antigamente, segundo dona Vena, a comunidade tinha um motor

particular que ficava ligado poucas horas, assim que escurecia. Com os novos

geradores, garantidos pelo governo federal, a população que já morava na


!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Termo usado pelos moradores locais para distinguir o pedaço de terra em que estão deixando o mato crescer e o
cortando, para que a terra tenha seus nutrientes repostos.

! &+!
comunidade quando a contagem foi feita paga uma quantia fixa todos os meses, as

casas que foram construídas posteriormente não pagam nenhuma quantia.

Há quedas frequentes no fornecimento de energia em Nazaré. Os moradores

relatam já ter ficado o período de uma semana sem eletricidade em suas casas. Isso se

dá, segundo os relatos, pela qualidade do motor. Foram disponibilizados para a

comunidade dois motores muito antigos que foram reformados, mas sua força não é

suficiente para a quantidade de casas. Além disso, estes motores ainda garantem a

energia de mais duas comunidades menores na região. Em conversas com os

moradores foi comum escutar relatos de que a comunidade ficou sem energia durante

semanas e eles acabaram perdendo a comida que estava na geladeira.

Jaqueline, em uma de nossas conversas, diz ainda que talvez fosse melhor que

não tivessem o gerador, pois assim eles saberiam que só poderiam comprar carne que

pudesse ser salgada, pois muitas vezes eles acabam perdendo alimentos como

embutidos e frios devido à demora de dias para a energia ser reestabelecida. Ela não

fala isso como quem não quer o acesso à energia, mas explica que saber é melhor do

que ficar à mercê da boa vontade da empresa que cuida dos geradores para consertar

os defeitos apresentados pelos motores.

A comunidade também possui três telefones públicos que, segundo os

moradores (e minha própria experiência), estão usualmente quebrados. Recentemente,

algumas linhas telefônicas particulares foram instaladas nas casas, porém com sinal

muito fraco para garantir acesso à internet. Existe uma Unidade Básica de Saúde que

foi reformada com verbas da “compensação ambiental” da barragem de Santo

Antônio. Alguns interlocutores dizem que por este motivo a construção da barragem

foi boa para a comunidade, enquanto outros se mostram indignados dizendo que é

responsabilidade do governo disponibilizar o acesso ao atendimento de saúde,

! &"!
independentemente da construção da barragem e que, desta forma, a reforma da UBS

não compensa em momento algum os estragos causados pela grande obra.

Atualmente, esta UBS conta com um técnico de enfermagem, um

microscopista, dois agentes comunitários de saúde e um motorista de “ambulancha”16.

Além disso, uma equipe do Programa de Saúde da Família (PSF) visita a comunidade

três vezes por mês. Segundo os moradores, todos os funcionários de outra localidade

que vão para lá pedem transferência para São Carlos do Jamari17 ou para Porto Velho,

pois não querem morar em uma comunidade pequena. Muitos dos moradores

reclamam do atendimento médico, segundo eles a fila é muito longa nos dias em que

o médico está presente, pois a grande maioria das comunidades no entorno não

recebem visitas da equipe do PSF.

As principais doenças encontradas são a malária e as doenças relacionadas à

contaminação da água. A unidade básica de saúde, com frequência, tem falta de

materiais. Embora exista disponível uma voadeira18 para o transporte de emergências,

os funcionários da saúde dizem que eles precisam tentar sanar os problemas menores

(como suturas, por exemplo) localmente, pois é arriscado mandar a embarcação para

atender um problema como um corte profundo, enquanto, nos períodos de viagem

outra emergência mais séria pode acontecer e eles não terem formas de socorro.

Assim, muitas vezes as suturas e dispensas de medicamentos são feitos por pessoas

que não possuem formação na área da saúde, porém possuem experiência do trabalho

diário.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
16
Embarcação disponibilizada pela Secretaria Municipal de Saúde para a locomoção de pessoas com emergências
médicas
17
São Carlos do Jamari é a maior comunidade da região e possui mais estrutura de serviços ligados à educação,
saúde e saneamento básico, além de maior facilidade na comercialização de produtos.
18
Um barco de motor mais rápido do que os barcos de linhas.

! &#!
Foto de voadeira com cobertura, similar à “ambulancha” da região.

Com relação à moradia, as casas de Nazaré são majoritariamente construídas

de madeira em forma de palafita, mas já existem algumas construídas, em partes, de

alvenaria. Poucas casas possuem encanamento, pois segundo os moradores, construir

o sistema de canos da casa aumentam expressivamente os custos da construção, desta

forma, quase todas as casas possuem um buraco negro19 do lado de fora. Quanto ao

saneamento básico, a água consumida é retirada do Igarapé, do rio ou do poço

artesiano que fica na escola. Segundo estudos feitos por uma organização não

governamental que realiza trabalhos no local, todas estas águas são contaminadas por

coliformes fecais. Mesmo com esta informação, boa parte da população local afirma

nunca tratá-la antes do consumo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
19
Quando não existe água encanada na residência (o que é comum na zona rural), as fezes são então lançadas
diretamente num buraco escavado no solo.

! &$!
Banheiro na área externa da casa

Os lixos produzidos pelas casas e escola são queimados em um buraco, já os

lixos hospitalares produzidos pela UBS, atualmente, segundo os funcionários, são

mandados para Porto Velho, com a equipe do PSF. Os resíduos orgânicos são

fornecidos aos animais, como cachorros, gatos, patos e galinhas. Nos barcos que

trafegam pelo rio Madeira é comum ver as pessoas descartando no rio latas de

refrigerante e cerveja, assim como outros itens.

Com relação à educação, a comunidade possui uma escola que atende do 1º ao

9º ano do ensino fundamental. Durante o ensino fundamental I (do 1º ao 5º ano), as

salas são multiseriadas e contam com a presença de três professores, que trabalham

em espaços improvisados. Já durante o ensino fundamental II (do 6º ao 9º ano), existe

um projeto especial da Divisão de Ensino Rural da Secretaria Municipal de Educação,

! &%!
chamado “Saberes da Terra”, que é baseado na proposta da pedagogia da

alternância20.

Estes alunos também sofrem com a falta de professores e estrutura física na

escola. Em fevereiro de 2012, os alunos deste projeto ainda estavam cursando a

metade do ano letivo de 2011. Está sendo construída uma escola estadual de ensino

médio, que, segundo os educadores da comunidade, tem a possibilidade de contar

com um projeto pedagógico de ensino rural. Porém, a construção desta escola deveria

ter sido finalizada em fevereiro e até o mês de novembro de 2012 ainda não havia

sido entregue.

Muitas famílias que possuem parentes ou compadres em Porto Velho ou São

Carlos do Jamari acabam optando por mandarem seus filhos para estudar nessas

localidades (quando eles podem arcar tanto com as despesas dos filhos, quanto com a

falta da ajuda deles nos afazeres domésticos e no manejo das plantações). É comum

para estes pais mandarem um complemento de comida para as famílias que recebem

seus filhos. Estas famílias dizem que preferem seus filhos estudando longe de casa,

pois dizem que embora a educação até o quinto ano seja boa, o “projeto Saberes da

Terra” não funciona apropriadamente.

Contudo, mandar os filhos para Porto Velho, por exemplo, significa, para

muitas destas famílias viver com os medos da cidade grande. Muitos relatam que têm

medo da violência, do acesso às drogas e de gravidez de suas filhas mulheres.

Aqueles que as filhas voltam sem terem vivido nenhuma destas três situações acabam

enfatizando o orgulho que sentem delas. Além disso, pudemos ouvir relatos de pais

que dizem que poderiam mandar as filhas mulheres para Porto Velho, mas que têm

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Os alunos alternam em períodos de aula e períodos livres, nos quais podem ajudar os pais em suas tarefas
diárias, com a finalidade de adquirir saberes tradicionais. Embora, na prática, isso aconteça, também, pela falta de
professores, o que, muitas vezes, acarreca em longos períodos sem aulas.

! &&!
medo do que pode acontecer com elas e decidem pela interrupção dos estudos. De

uma forma geral, as pessoas dizem que sentem que são esquecidas com relação à

escola. Muitos adultos são analfabetos e a grande maioria dos moradores não concluiu

o ensino fundamental II.

A comunidade só passou a se tornar oficialmente um distrito de Porto Velho

em 1996. Com relação às terras, até o momento, nenhum morador possui

documentação de seu terreno, embora a comunidade já seja classificada como área de

assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA).

Como já dito, em Nazaré, o órgão responsável por dar andamento a este processo é a

EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural). Contudo, muitos

moradores relatam que o cadastro das famílias assentadas não foi realizado

corretamente e, por isso, nem todas as famílias constam nos documentos da

instituição.

Outro aspecto com relação à propriedade da terra é que muitos moradores

relatam ficarem inseguros com a possibilidade de um processo de reintegração de

posse, que eles acreditam ter sido iniciado pela filha de seu Nanã. Embora não exista

nenhuma divisão de terras documentada na prefeitura de Porto Velho, os moradores

possuem seu espaço legitimado e reconhecido por todos na comunidade. Não foi

observado nesta pesquisa como se deu a divisão de terras após a morte de seu Nanã,

aspecto importante para uma pesquisa futura.

Nazaré, em sua formação, mostra nos aspectos cotidianos as tensões para o

desenraizamento e a luta de seus moradores, que em suas formas de viver podem

sustentar uma experiência que enraíza. A partir da compreensão da formação da

comunidade, esta mesma tensão entre enraizamento e desenraizamento será observada

por meio de certos traços da vida comunitária.

! &'!
4.2) A comunidade e o rio Madeira

Como eu gosto de cantar!


Falar das grandes belezas que vem das margens
do rio
Olhar o sol se escondendo e a passarada fazendo
algo que nunca se viu
A natureza é o encanto que vem aqui nesse canto
chamar a todos para ver
Vem passear de barco, vem navegar no Madeira
Olhar os botos no rio, deitar na rede e sentir o
frio
O frio que envolve esse povo, o povo que vive nas
margens
Desse grande rio... desse grande rio... desse
grande rio

Minhas Raízes - Timaia

O rio está presente em todos os aspectos da vida nas comunidades ribeirinhas,

que em seu próprio nome já define sua existência a partir de sua proximidade com o

ele. Os homens e mulheres de Nazaré, muitas vezes, se chamam de beiradeiros, para

identificar, em suas próprias descrições sobre si mesmos, que são da beira do rio

Madeira. Nazaré é uma comunidade bastante singular quando pensamos em sua

posição com o rio, pois a parte da comunidade que está na beira do Madeira é muito

menor do que ao longo do Igarapé, que teve eu curso alterado na época em que o seu

Nanã ainda era vivo.

O rio Madeira, rio de águas turvas, por anos assustou aqueles que iam para sua

região, devido à sua força, na época da cheia, e as imponentes corredeiras em seu

curso. Contudo, para aqueles que lá moram, hoje o rio é poesia, respeitado e temido,

mas também admirado! Do imaginário social, fortemente presente nas lendas locais,

até a literal porta de entrada da comunidade, o rio está presente no cotidiano em

Nazaré.

! &(!
É muito comum, nas conversas com os moradores da comunidade, ouvir as

histórias que possuem o rio como cenário principal. Os botos cor de rosa e tucuxi, o

Nonato Cobra Grande, as sereias, entre outros tantos personagens vivem nos rios,

cuidando e/ou assustando os moradores!

Muitos anos atrás tinha uma índia que era de uma tribo aqui da
Amazônia e ela ficou grávida. Não sei bem te falar quem era o pai
ou como ela ficou grávida. Isso faz muito tempo. Quando os filhos
dela nasceu tinha algum desses encantamentos, sabe? Eles eram
cobras, ela ficou é com muito medo. Sem saber o que fazer mesmo,
sabe? Com esse medo todo, ela jogou os meninos no rio... as
cobras. Era uma filha e um filho. O menino não dava medo em
ninguém não.... mas a menina... Essa era ruim. O menino chamava
Nonato e a menina Maria... O nonato ficava no meio do rio... ele
conseguia ir por debaixo da terra e assim que os igarapés
apareceram... Já a menina, essa era bicho ruim. Ruim mesmo.
Matava gente, virava embarcação. Matava tudo o que era animal...
Era grande. Grande mesmo. Tipo grande de virar barco, sabe? De
fazer onda no Madeira. O Nonato, para acabar com isso, teve que
matar a irmã. Só que não adiantava, todo mundo tinha medo dele.
Ele tinha os olhos de fogo e quem olhasse em seus olhos ficava
cego. Tem até um senhor aí pra baixo do Madeira que tentou matar
ele e ficou cego. Aí, era assim, para matar a cobra alguém tinha
que cortar no meio da cabeça dela, sem olhar no olho. Um homem
tinha um terçado bom mesmo e ele conseguiu e o Nonato virou
homem e vive lá no canta Galo. Mas às vezes, na lua cheia, ele
ainda vira cobra e fica no rio. Quando ele nada, balança todo os
barcos e, sem querer, ainda vira. Essa é a história do Nonato Cobra
Grande.

(Conversa com o Anauá, em Janeiro de 2012)

...você põe assim uma marcação nas casas e o boto tucuxi fica por
perto, para espantar o boto rosa. O boto tucuxi é o boto bom. Nas
embarcações também tem marcação, você pode ver, assim sempre
tem boto tucuxi por perto para não deixar os outros encostar....
Rapaz eu assim não sei o que acontece (quando o boto rosa se
aproxima), falam que eles pegam as pessoas... Eu tive uma prova,
assim! Uma vez em Itaguatiara, mas era noite, duas horas da
manhã e não teve como ver quase nada, mas de manhã o povo tava
pegando o cadáver do homem, a lancha de socorro tava perto da
embarcação. Soltavam umas bombas e eles (os botos rosas) se
afastavam.

! &)!
(Conversa com o professor Artêmis, em Janeiro de 2012)

Mas o rio, além de cenário que acolhe e abriga as lendas e histórias locais, é a

maneira com que as pessoas, informações e objetos chegam e saem da comunidade e

é a fonte de subsistência das famílias em sua beira, além de ser de extrema

importância para a biodiversidade amazônica. O rio Madeira é considerado um dos

principais afluentes do rio Amazonas, pois, segundo Switkes (2008), ele é responsável

por 35% dos sedimentos e nutrientes do rio Amazonas, que é o maior rio do mundo.

Segundo o autor isso se dá pois o Madeira tem origem andina, desta forma,

sua cabeceira nasce da neve derretida dos Andes, até 5.000 m acima do nível do mar.

Assim, como grande parte dos rios amazônicos que possuem origem andina, ele

carrega grandes quantidade de nutrientes que, quando depositados em seu leito,

garante extrema riqueza em seu solo.

Contudo, o Madeira também se diferencia de outros rios amazônicos por outro

aspecto: nenhum outro afluente andino do Amazonas possui a quantidade de

corredeiras que ele apresenta (18 corredeiras se localizam de um trecho de 350 km

acima de Porto Velho). Desta forma, o transporte fluvial entre Guajará-Mirim (divisa

entre o Brasil e a Bolívia) e os destinos rio acima (Bolívia e Perú) com Porto Velho

(Rondônia) fica impossível de ser realizado. Este obstáculo natural do rio tem

inspirado o planejamento de complexas obras que visam superar estas limitações que

o Madeira representa (SWITKES, 2008).

Muito mais que fonte de nutrientes (e não tenho com isso a intensão de reduzir

a importância que este rio representa para a conservação da biodiversidade

amazônica), o Madeira é morada de muitas comunidade ribeirinhas, indígenas e

quilombolas da região, além de atravessar também áreas urbanas.

! &*!
Barco de linha para o transporte de Porto Velho para as comunidades

Lembro, com detalhes, a primeira vez que desci o rio21 em direção a Nazaré.

Ao entrar no barco, todos amarravam suas redes, afinal a viagem é longa. Na medida

em que o tempo passa, é possível observar as cores da floresta se transformando de

maneira impressionante, os sons dos pássaros e da própria mata vão ficando

diferentes. A temperatura cai, a paisagem muda cada vez que o barco de aproxima de

uma nova comunidade e o sol desce, dando espaço para a lua.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
21
As pessoas usam o termo “descer o rio”, pois o Madeira corre de sua nascente (como rio Beni, na cordilheira dos
Andes, Bolívia), até o rio Amazonas. Desta forma, para chegar de Porto Velho, até Nazaré, é preciso descer junto
da correnteza, em direção ao Estado do Amazonas.

! '+!
Redes amarradas no barco de linha

O sol, durante as horas de viagem, desaparece na floresta e, dependendo do

recreio22 escolhido para a viagem, o piseiro23 começa a tocar música e as pessoas

começam a dançar o brega na “pista de dança”. Já em outros barcos sem o piseiro,

você escuta os som das vozes conversando por horas, crianças brincando e, em partes

mais isoladas da embarcação, apenas os sons da floresta. Do barco você avista

animais, você vê a dança dos pássaros, que vão em revoada de forma quase que

inacreditável aos olhos de quem cresceu em São Paulo.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Recreio é o nome dado ao barco de linha que faz o transporte de pessoas e cargas de Porto Velho até as
comunidades ao longo do rio. Porém, este barco não faz o transporte para os moradores de algumas comunidades
mais distantes. Certa vez, descendo o rio, um senhor me contou que ele era de uma comunidade no rio Machado e
que, para chegar em casa, ele teria que ir até Calama (a última e a maior comunidade do baixo rio Madeira) com o
barco de linha e depois seguir mais 8 horas de rabeta (um barco menor, com motor mais fraco, porém uma opção
mais viável do que os barcos mais rápidos, considerando o alto custo do combustível no baixo rio Madeira).
23
Piseiro é o nome dado aos bares que ficam nas comunidades (e neste caso nos barcos), local no qual as pessoas
vão para dançar o brega e encontrar outras pessoas. Brega, por sua vez, é o nome dado ao tipo de forró feito na
Amazônia. Além do brega, que é o estilo de música mais ouvido na região, é também possível escutar outros
estilos, como sertanejo e música eletrônica (ou até mesmo o brega e o sertanejo com batidas de música eletrônica).
Contudo, na grande parte das vezes, estas músicas são dançadas a dois.

! '"!
Durante a viagem, os aspectos da vida comunitária já se apresentam e, durante

as horas pelo rio, muitas pessoas sempre se aproximam para perguntar quem eu sou e

de onde vim. Ele também já é local de encontro entre amigos. Afinal, com os barcos

de linha apenas duas vezes na semana, o encontro entre amigos da mesma

comunidade ou de comunidades vizinhas é inevitável.

Assim, podemos ver o rio também como forma de acesso a muitas das

comunidades em suas margens que, em sua maioria, não possuem acesso terrestre.

Existe, em Nazaré, uma discussão sobre a construção de uma estrada que ligaria a

comunidade até a capital do estado, Porto Velho. Entretanto, a viabilidade da

construção da estrada tem sido dificultada, pois ela passaria no meio de uma Unidade

de Conservação. As opiniões neste assunto na comunidade variam. Alguns acreditam

que a construção traria mais problemas do que benefícios, pois aumentaria o número

de pessoas na comunidade (que, segundo estes moradores, não teria estrutura para

abrigar ainda mais famílias), acreditam também que pessoas passariam a circular de

motos, além de aumentar o desmatamento nas proximidades. Já outras pessoas

acreditam que traria mais benefícios, pois facilitaria o acesso de mercadorias, o

transporte de pessoas doentes para a capital, além de diminuir os custos das viagens.

O rio é a porta de entrada e de saída dos produtos de Nazaré, desde os tempos

do trabalho com o patrão. Era na beira do rio ou do igarapé (ao lado do barracão do

seu Nanã), que os homens deixavam os materiais coletados na floresta, para pagar a

conta do barracão ou receber algum dinheiro em troca. Nestes mesmos pontos,

vinham os barcos que compravam os produtos. Atualmente, as vendas de maior

quantidade de produtos (como a melancia, no caso de Nazaré), são feitas em Porto

Velho. Entretanto, não é incomum encontrar pessoas vendendo alimentos em

pequenas quantidade, com suas rabetas ou canoas.

! '#!
Além de forma de acesso na comunidade, o rio é a principal fonte de alimento

da população da comunidade. A pesca, além de ser base da subsistência de todas as

famílias, também é feita para a comercialização (tanto para pessoas de fora, como

para os moradores da comunidade que não pescam). Ainda relacionado com a

alimentação da população, as épocas de cheia e seca do rio serviam para balizar os

períodos das plantações e repor os nutrientes da água, além de tirar os insetos da área

de várzea (ou do barranco, como dito pelos moradores locais), o que possibilitava a

próxima época de plantação.

As épocas de cheia e seca do rio não serviam somente de referência para o

trabalho dos produtores e pescadores locais, a própria vida comunitária se

transformava na medida que a paisagem mudava. O calendário escolar era diferente

do das grandes cidades, as formas de lazer dos moradores passavam a incluir nadar

em lagos que surgem (ou surgiam) na época de cheia, ou que ficam (ficavam)

maiores, algumas doenças ficam mais recorrentes, entre outros pontos.

Contudo, foi construída, na cachoeira de Santo Antônio, próximo ao porto de

Porto Velho, a barragem de Santo Antônio, parte do complexo hidroelétrico do rio

Madeira. Como já dito na introdução desta pesquisa, o processo de decisão desta obra

contou muito mais com interesses políticos e econômicos, do que com o próprio

potencial energético do rio Madeira. Nas justificativas desta obra, um dos maiores

argumentos era que o custo da energia produzida por barragens nos rios é menor do

que outras fontes energéticas. Porém, há de se discutir se foram inclusos os custos

socioambientais vividos na linha de frente pelos moradores de comunidades como

Nazaré.

No decorrer desta pesquisa, os contatos com a comunidade se deram durante a

construção da obra e logo após a barragem entrar em funcionamento. A falta de

! '$!
informação era bastante visível na localidade e até mesmo entre os integrantes de

movimentos sociais do estado, professores da Universidade Federal de Rondônia,

entre outras pessoas. Nenhum dos interlocutores que eu tive contato durante o curso

deste trabalho soube informar quais seriam os impactos previstos da construção da

barragem para as comunidades na beira do rio.

De forma assustadora, a frase que pude ouvir com maior frequência durante o

decorrer da pesquisa foi que a resposta dos responsáveis pela obra era a de que as

barragens do rio Madeira eram tão modernas, pois nunca havia sido utilizado a

tecnologia que utiliza o próprio fluxo do rio para gerar energia, que só seria possível

observar as consequências da obra após seu funcionamento. Assim, é possível

questionar se, de fato, foram avaliados os impactos causados nas vidas deste homens,

mulheres e crianças no processo de decisão de uma das principais obras do PAC no

país.

Com relação à Nazaré, foi possível observar a mudança das falas sobre o

assunto na primeira ida ao campo, em Abril de 2011 e na segunda, em janeiro de

2012. Em Abril de 2011, quando perguntava para as pessoas o que elas sabiam sobre

a obra, elas diziam que não sabiam muitas coisas. Contavam que nas falas dos

responsáveis pela barragem haviam apenas possibilidades de impactos que

dificultariam suas vidas, porém a certeza de obras de compensação que trariam

diversos benefícios.

Desta maneira, muitas das pessoas acreditavam que a construção da barragem

seria algo bom, pois traria benefícios para a comunidade, com as ações de

compensação ambiental:

Eles falaram que poderiam acontecer falta de água, peixe e


desbarrancar. Mas não era que ia acontecer, poderia acontecer...

! '%!
Que não sabiam bem como seria, mas que quase não ia ter
mudanças. Além disso, eles falaram que teria muita compensação, a
gente acreditou. Eles prometeram 60 poços de Porto Velho a
Calama e a gente precisa de água boa.
(conversa com o professor Artemis, em Março de 2011)

Essa obra vai ser coisa boa para gente aqui do interior. Você viu o
posto de saúde que estão construindo por causa da barragem do
rio? Imagina que a gente daqui poderia ter algo bonito daquele? E
agora tão falando que vai ter escola melhor.... vai chegar coisa
boa. Se isso acontecer, acho bom dessa barragem aí, por que no
final das contas, a gente tava tudo esquecido aqui na beira do rio
antes dessa obra.
(conversa com um senhor na beira do igarapé)

Nesta época foi possível observar quatro grupos de falas muito frequentes. O

primeiro grupo era formado, majoritariamente, pelos trabalhadores que diziam não

saber o que iria acontecer até mesmo no período típico da seca de 2012 (na metade no

ano) e, por isso, não estavam planejando as plantações. O segundo grupo era

constituído por pessoas que diziam temer fazer grandes plantações e, durante a noite,

o rio subir de repente e alagar a comunidade toda (processo que sempre demorou

meses para acontecer, e não horas). O terceiro eram aqueles que trabalham

prioritariamente com a pesca e diziam que os peixes não iam mais descer o rio, pois a

água “apodreceria” – referência ao que aconteceu na Usina Hidroelétrica de Samuel,

no Rio Jamari (afluente do rio Madeira)24. Para reforçar a crença destes pescadores,

na primeira semana de obras, algumas toneladas de peixes foram mortas por erro de

cálculo dos engenheiros responsáveis.

Estes pescadores também falavam que antigamente o rio baixava depois de

quatro dias da sexta-feira santa, pois no feriado santo não se podia fazer grandes

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Os impactos da Usina Hidroelétrica de Samuel são muito conhecidos na área ambiental brasileira e considerados
entre os maiores desastres ambientais do país. O termo “água podre” utilizado pelos ribeirinhos diz respeito ao
processo de eutrofização da água, que consiste na morte de peixes devido à falta de oxigênio disponível em
consequência à grande quantidade de matéria orgânica na água (no caso, provida pelas áreas de floresta inundadas
pela construção da barragem).

! '&!
esforços, trabalho pesado, além de brigas e etc., e o rio, por sua vez, também não fazia

grandes esforços. Agora, com o enfraquecimento do respeito à religião de muitas

pessoas e com o desrespeito do homem pela natureza, o rio não tem mais uma data

certa de começar a baixar.

Existe um quarto grupo muito menor em comparação aos outros, que é

composto por educadores e pessoas ligadas movimentos artísticos na comunidade

(mas que também exercem atividades ligadas à extração de produtos florestais, pesca

e roça) que têm liderado movimentos contra as barragens, debatido as obras e projetos

de compensação da usina (já em andamento) e se mostrado extremamente

preocupados com os impactos à cultura local- como Timaia e Anauá, entre outros.

Uma das formas mais ativas da resistência contra a degradação da natureza e

aos desrespeitos às formas de viver desta comunidade, além de ser por meio de grupos

que vão até Porto Velho exigir a garantia de seus direitos, é por meio da músicas, do

teatro e de atividades com as crianças da região. Embora com um discurso mais

ligado à luta pela garantia dos direitos, estas pessoas também afirmam não saber ao

certo as futuras consequências da obra.

O povo fala que o posto de saúde foi compensação da obra da


barragem de Santo Antônio... Mas eu fico aqui pensando, precisa
de algo tão ruim para que a gente tenha posto de saúde? Isso não
deveria ser obrigação do governo? Não acho que tão compensando
nada. Nossa perda vai ser maior do que o ganho, que já era
obrigação do governo [se referindo à construção do posto de saúde
e à garantia de acesso aos serviços de saúde pública]. Teve até umas
reuniões com a ONG que ficou de responsável pelos projetos de
compensação aqui no baixo Madeira, mas não teve muita coisa que
aconteceu não.
(Timaia, Abril de 2011)

Já durante a segunda viagem de campo as falas era bem diferentes. Nesta

época, já com o rio Madeira barrado, as pessoas contavam do medo da barragem não

! ''!
aguentar a força do rio, da inconstância da altura que o rio estava, dos lagos que

estavam secos e, as frutas que alimentavam os peixes nestes lagos temporários,

caídas, estavam apodrecendo no solo.

Na época da cheia, dentro da floresta, próximo ao igarapé, um grande lago era

formado pelas novas águas que inundavam boa parte da comunidade. Contudo, de

forma bem diferente dos anos anteriores, em janeiro/fevereiro de 2012, este lago

estava seco. Anauá me explicou que o maior problema era que a época em que as

frutas caíam com mais frequência nesta área, coincidia com o tempo da formação do

lago, o que deixava as águas com alimentos suficientes para os peixes. Com o lago

seco, as frutas estão apodrecendo e sua preocupação estava em justamente na época

que este lago encher, pois os peixes não teriam tanta abundância na alimentação.

Outro ponto que ele me apresentou é que na época de cheia, os moradores

encontram mais dificuldade na pesca, mas eles tinham clareza da altura do rio e

possuíam os lagos repletos de peixes. Com a barragem em funcionamento, não era

mais possível contar com este conhecimento, pois o rio estava mudando de forma

inconsistente, a pesca estava já muito dificultada e os lagos ainda não estavam

formados.

Antes, na cheia, eu amarrava minha canoa aqui atrás da minha


casa. Acordava no dia seguinte e sabia onde ele ia tá. Agora não dá
mais não, Andrea. A gente coloca a canoa aqui, quando vê a água
não tá mais no lugar e a gente perde ela [a canoa]... Agora, toda vez
que quero ir pescar tenho que carregar a canoa de volta pra água,
por que não sei mais olhar para o igarapé e saber onde ele vai
estar. A gente que nasceu aqui tá perdendo a possibilidade de
entender a floresta.

(Anauá, janeiro de 2012)

Concomitantemente a estas mudanças com relação à formação dos lagos e a

altura do rio, na época estavam sendo veiculadas notícias em diferentes meios de

! '(!
comunicação, além de informações trocadas em conversas, tanto em Porto Velho,

quanto na comunidade, que os responsáveis pela barragem estavam assustados com a

força do rio na época da cheia. Os jornais veiculados em canais de televisão abertos

diziam que talvez os muros da barragem não fossem fortes o suficiente para aguentar

a força do rio Madeira e questionavam se os engenheiros responsáveis haviam levado

em consideração a força das águas. Este fato só aumentava o medo dos moradores da

beira do rio.

Ontem, Andrea, eu tive que ficar acordado com a minha mulher...


ela não conseguia dormir de medo. Você viu a chuva que tava de
noite? E com essa história da barragem não aguentar, ela ficou
com medo de estourar tudo e levar a gente, a casa, tudinho... eu
fiquei também. Agora quando chove é assim. Já teve comunidade
mais perto de Porto Velho que o rio levou o barranco e várias casas
quando eles abriram a barragem. E se eles ficarem com medo de
tudo desabar e abrir de vez? O que vai ser da minha casa aqui tão
perto do rio? Pior... e se o muro estourar? Você que tem sorte de tá
lá na terra firme [se referindo à casa que eu fiquei durante as
viagens de campo desta pesquisa]. Nós aqui ouve o barulho do rio e
reza, porque como eu vou construir outra casa?

(Conversa com um senhor da comunidade em Janeiro de 2012)

Pudemos também, em paralelo às falas de medo, entrar em contato com

discursos bravos e indignados com o não cumprimento do que havia sido prometido e

com a vivência das consequências que não haviam sido tão explicitadas. As falas

indicavam que a falta de informação sobre as consequências da barragem a curto,

médio e longo prazo poderiam ser, na verdade, uma forma de convencê-los a não

fazerem resistência frente à obra.

O pessoal da Santo Antônio só mentiu na época de falar da


barragem. Se a gente soubesse da informação de verdade, ninguém
aqui ia falar sim, cê entendi?.... O pessoal da Santo Antônio falou
que não ia mudar nada no barranco e que se mudasse, iam pagar
indenização. Mas pagaram? Pagaram nada... [...]Agora tá assim,

! ')!
tá tudo diferente, tudo irregular. A gente não sabe o que faz. Além
disso foi falado que, por causa do número de trabalhadores em
Porto Velho, que eles iam comprar a produção do povo do interior
e, com isso, iam aumentar as vendas da gente daqui. Na realidade,
nada disso tem acontecido. Ninguém comprou nada nesse tempo
todo de construção. A gente chegava no cai n’agua com os
produtos e não tinham para quem vender e tinha que vender para o
marreteiro, quando tinha. Quando fui discutir sobre isso eles
falaram que não compravam, pois a gente não tem cooperativa e
nem registro.... mas a gente nem sabe que registro é esse. O povo
pequeno do interior não é ensinado das coisas importantes. O povo
pequeno tem que ficar quieto e ser burro, para ser pequeno e ficar
na precisão. O pior é que não sei por onde olhar.

(conversa inesperada às 23:30 com uma moradora de uma


comunidade vizinha, que foi remando levar seu filho de emergência
na UBS de Nazaré.)

Frente a tantas mudanças, os moradores de Nazaré foram identificando as

dificuldades em manter suas formas de viver perante à tamanha alteração do rio, que

possui enorme influência na cultura local. A falta de informação tem servido como

impedimento para os planos futuros.

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Os moradores de Nazaré contam, em suas falas, o sentimento de estarem

esquecidos diante de tantas mudanças influenciadas por um fator externo. Sem saber

como o rio vai estar nos próximos ciclos de cheia e seca, estas famílias vão tentando

encontrar formas de se adaptar diante da extrema falta de informação com relação a

um dos principais elementos que marcam suas especificidades e formas de viver.

Isso tudo ocorre ao mesmo tempo em que muitas pessoas que vivem nas

capitais do país, sem ver e sentir de perto o sofrimento destas famílias, afirmam

acreditarem que esta obra trará um grande desenvolvimento econômico para todos e

que, se no meio do caminho algumas pessoas precisarem sofrer, está é uma

consequência necessária. Afinal, como já disse Riobaldo, de Guimarães Rosa em

“Grande Sertão: veredas”, Um sentir é do sentente, mas o outro é do sentidor. Os

detalhes poucos discutidos (e por que não dizer negados), são justamente as

consequências para as comunidades afetadas, as razões para a construção da obra e

seu potencial energético, quando comparado com a necessidade de energia do país.

Sendo como forma de acesso à comunidade, fonte de subsistência da

população, morada de lendas e contos que educam e encantam os amazônidas e quem

ali chega disposto à aprendizagem, o rio Madeira possui papel central no cotidiano

dos Moradores de Nazaré. Sem dúvidas, as transformações inesperadas provocam

grande influência em suas formas de viver, expondo para todos as dificuldades e lutas

enfrentadas por aqueles que vivem de maneira diversa das ensinadas e regidas em prol

dos interesses financeiros dos centros econômicos do Brasil.

! (+!
4.3) Organização do trabalho em Nazaré

...Ih por aqui é normal um ajudar o outro...


depois de um tempo o outro ajuda o um,
sabe?[...] Por causa dessa ajuda que eu falei
pra você que eu amo esse lugar.

Seu Manduca

Os moradores das comunidades ribeirinhas, geralmente, começam a trabalhar

ainda muito jovens. Seja ajudando os pais na roça, na pesca, na coleta de produtos

florestais e nas tarefas cotidianas da casa, ou, no caso dos moradores mais antigos,

nos seringais, quase todos os relatos tiveram como eixo central uma juventude muito

próxima do trabalho. Desta forma, o trabalho acaba sendo algo de extrema

importância na formação da cultura local.

Estas pessoas organizam suas vidas e formas de produção de acordo com o

fluxo do rio, que tem sua época de seca no meio do ano e a época de cheia no final e

início. Segundo Vasconcelos (2010), “O trabalho é um valor cultural fortemente

arraigado na constituição da identidade desses povos da floresta” (p.12). Desta forma,

torna-se relevante discutir a organização do trabalho na comunidade e suas

características psicossociais. Nos relatos é possível observar como esta discussão

envolve a organização familiar e o regime de propriedade da terra.

Seringueiros desde muito jovens, os antigos moradores de Nazaré narram

momentos de trabalho como partes importantes de suas trajetórias:

Eu tinha nove anos quando papai me entregou para o patrão. Meu


tio trabalhava lá também e eu fui por que a minha mãe morreu e
meu pai tinha que pagar as contas dos meus irmãos. Eu precisei ir,
para as minhas irmãs poderem estudar. Hoje tão tudo formada na
escola. Sabem ler e escrever.... Eu assim não tive infância não
senhora. Lá no mato não tem como brincar, não era assim como
esses meninos de hoje. Hoje eu falo, meus netos tem que ir para
escola. Eles precisam ler e escrever para viver.... Meu patrão fazia

! ("!
a gente ir pro mato pegar seringa e voltar. Com o que eu pegava,
pagava as minhas continhas do barracão e mandava o dinheiro pro
papai.... Nunca mais voltei pra casa.... Cresci e me casei.... Depois
vim para Nazaré quando quase ninguém tava aqui. Tive meus filhos
todos e depois os netos. Trabalhei na seringa depois e agora com a
minha fazendinha. Quero levar você lá. Tenho esse café todo aqui
que planto lá.

(Seu Zé Ferreira, março de 2011)

É importante salientar que o trabalho tanto com a seringa, quanto com a solva,

eram extremamente exigentes fisicamente. Os homens passavam dias e, por vezes,

meses dentro da floresta para apenas pagar a conta do barracão. Dormiam em suas

redes no mato e, com fogueiras que eles faziam, cozinhavam a carne de caça, peixe e

poucas coisas que levavam com eles. Na volta, caminhavam por quilômetros, com

seus paneiros nas costas, para entregar os produtos ao patrão, que ficava na

localidade. Ninguém soube me informar o quanto eles ganhavam com a seringa, mas

com a solva, como já dito neste trabalho, era cerca de sessenta centavos o quilo, e

cada homem chegava na comunidade com 3 latões em média, o que dava entre 50 e

60 quilos.

! (#!
Seu Zé Ferreira carregando um paneiro feito por ele

Ao chegar no barracão, o patrão conferia a mercadoria (se não estava

misturada com barro). O produto era pesado e, logo em seguida, os cálculos da dívida

da família do freguês no barracão eram feitos. Toda semana chegava um barco que

comprava diretamente com o patrão os produtos coletados na floresta, sendo que,

segundo relatos, seu Nanã chegou a vender em seu porto 33 toneladas de solva de

uma só vez. Nesta época, não era preciso ir para nenhuma grande cidade para realizar

as vendas, pois os compradores viajavam pelo rio.

Era um regime duro aos trabalhadores que, muitas vezes, não permitia saída,

pois as famílias não possuíam escolhas de outros lugares para comprar os

mantimentos que não podiam ser coletados ou plantados na floresta e, assim,

! ($!
mantinham suas dívidas com o patrão. Desta forma, o trabalho de coleta da solva e da

seringa representava parte importante da sobrevivência familiar.

Ao mesmo tempo, os moradores antigos sempre contam do patrão como um

homem bom, que ficava na localidade cuidando das famílias e, caso a solva coletada

não fosse suficiente para pagar as contas, eles poderiam colocar a dívida na caderneta

do barracão. Como é possível notar, é uma história repleta de sentimentos ambíguos,

em um sistema de trabalho opressor historicamente legitimado na região.

A gente ia para o mato sem data mesmo pra voltar. A gente só sabia
que ia e as mulher na comunidade sabiam que tinham que esperar.
A vida era assim mesmo. A gente ia pra dentro cortar seringa e
depois a solva e voltava carregando tudo lá de dentro do mato até
aqui no barracão. Ia carregando tudo nas costas. Chegava aqui e
pesava... tinha que torcer para pagar tudo né? E quem sabe sobrar
um trocado. A vida não era fácil. Hoje em dia tá melhor. Eu
trabalho aqui mesmo, já não tenho mais saúde para entrar no mato.
Mas mesmo pra essa meninada toda, acho que eles podem ter algo
assim melhor que a gente.

(seu Pantoja, março de 2011)

Meu pai que me criou. Eu devo é tudo a ele, pois minha mãe me
abandonou com ele quando eu ainda era um bebê. Aí ele veio aqui
trabalhar com o seu Nanã.... A tia Vena é irmã do meu pai e foi
assim que chegamos aqui... O Nanã e a tia Vena foram muito bons
para gente. Por isso que agora, tudo que eu posso eu faço pra ela...
tenho muita gratidão pelo que eles fizeram. Meu pai ia para o mato
e me amarrava assim no peito e subia para cortar a seringa. Eu não
tinha mãe e ele prometeu que nunca me deixaria e assim ele fez pra
viver. Subia seringa comigo amarrado no peito e assim ele
conquistou muita coisa na vida.

(Anauá, Janeiro de 2012)

O seu Nanã tinha a freguesia dele, e as famílias ficavam e as


crianças todas ai, o seu Nanã se compadeceu com o povo e criou a
escola.... Quando o seu Nanã morreu foi um desastre por que ele
era muito bom e ajudava a comunidade... terminou o ciclo da solva
e começou o ciclo da agricultura. Aí era cada um por si. Cada um
tinha que cuidar de si, porque ele cuidava de todos, como patrão ele
cuidava de todos. As pessoas saíam para buscar seringa, tirar

! (%!
castanha e solva e ele tinha que manter as famílias, os fregueses...
Ele vendia comida para o povo... [quando não tinha dinheiro] podia
anotar e os homens traziam o produto para pagar. Depois que ele
morreu as pessoas tiveram que dar um jeito de cuidar de si.

(Professor Artêmis, Janeiro de 2012)

As lembranças da vida e do trabalho nessa época de constituição da

comunidade podem ser de extrema importância para a compreensão de aspectos da

vida comunitária e de como as pessoas lidam com os problemas atuais. O patrão,

proprietário da terra, centralizava a compra da solva e da seringa, e também

centralizava a venda dos bens necessários à sobrevivência no barracão.

Configura-se uma situação em que os trabalhadores ficavam completamente

dependentes da figura do patrão, uma situação em que se trabalhava para a

sobrevivência e sob o regime da dominação exercida pela centralização de toda a

comercialização de bens. Por outro lado, o proprietário da terra assumia também a

figura de um “pai protetor”, alguém que se preocupava com a sobrevivência e a vida

de seus trabalhadores, alguém em que se podia confiar e que podia proteger a

comunidade, oferecendo escola ou permitindo a compra antecipada no barracão. Estes

sentimentos ambíguos, que caracterizam o momento de formação da comunidade,

podem ter deixado consequências psicossociais de grande relevância para a atual

organização social e do trabalho em Nazaré.

O trabalho de coleta da seringa e da solva, contudo, é coisa do passado. Com a

decadência da venda destas mercadorias na região, os trabalhadores rurais passaram a

trabalhar com outros produtos, tanto para a venda, como para a subsistência familiar:

Eu tenho minha terrinha aqui em Nazaré e planto melancia. Eu


sempre falo pros meus meninos virem trabalhar comigo. Não dá
para ser empregado de ninguém não, como a gente era na época da
seringa e da solva. Aquilo era muito ruim [...] trabalhava dias no
mato, carregando aquilo tudo nas costa, com fome, quando ficava

! (&!
doente tinha que se virar, não dava pra ficar reclamando não, por
que lamentar não tira a dor. Para chegar aqui, e todo o trabalho é
para o barracão... só dava de pagar conta e sobreviver [...] parecia
que era trabalhar para existir, se não, não tinha o que nós fazer
[...] E a gente tava sempre é na precisão. Não sobrava nada nem
pra mulher comprar um pano e fazer o que vestir. Agora, a gente
planta nossas coisas, nossos meninos também ajudam. A gente é
nosso próprio patrão. Não tem muito dinheiro não, mas é melhor,
sabe?

(Conversa com um senhor de Nazaré durante uma viagem de barco)

A vida melhorou muito depois que meu marido parou de trabalhar


na solva. A gente abriu aqui o comércio e as coisas mudaram. Teve
uma vez que a gente teve que dormir na plantação de melancia,
porque melancia é assim delicada, sabe? Os bichos destrói tudinho
em uma noite. [...] dormir com a melancia não foi ruim não. Fui eu,
o marido e uns dos meninos. Era pra gente mesmo, assim que é
bom. Agora, graças a Deus, meus filhos tão tudo criado e com
emprego. Tenho uma menina trabalhando em um posto de saúde,
tem professora, tenho um menino que ajuda a gente aqui com as
coisas [...] A gente consegue muito mais do que antes.

(conversa com uma senhora, janeiro de 2012)

É possível observar em alguns trechos dos depoimentos o impacto de uma

forma de organização do trabalho que poderia ser descrita como análoga à condição

de escravidão. Trata-se de uma forma de dominação apoiada no regime de

propriedade da terra e na centralização pelo patrão da comercialização de produtos no

território. Esta observação aponta para a necessidade de se investigar o que ocorreu

historicamente para que, em um território tão vasto, alguns tenham se tornado

proprietários de imensos espaços e outros só tenham como perspectiva a troca de

produtos coletados na floresta por itens necessários à sobrevivência realizada nos

barracões dos patrões. Mas há um aspecto curioso sobre o regime de propriedade da

terra e que, na verdade, possui uma importância fundamental na evolução da

comunidade. Esse fato é narrado pelo professor Artêmis:

Naquela época era a época dos poderosos. O seu Nanã era o cara
que tirava mais solva. Cada comunidade daqui do baixo Madeira

! ('!
tinha um dono, eles tinham poder. Quando veio os impostos, eles
não tinham como pagar, ai tiveram que liberar a terra pro pessoal.
Na época já era da união e ninguém sabia... O pessoal ia buscar [a
mercadoria] e entregava pra ele tudo. Era ele que comandava. Iam
buscar as coisas e entregavam para ele. Mas [a terra] não tinha o
documento.

(professor Artêmis, Janeiro de 2013)

A dominação apoia-se sobre uma certa inércia da história, a história de

distribuição das terras na Amazônia, já que não ocorre a nenhum dos empregados

questionar quem é o proprietário da terra ou observar documentos referentes à

legitimidade da posse de um território. Mas a situação se transformou no momento da

morte de seu Nanã. Como já dito no presente trabalho, após sua morte, as terras

ficaram sem um proprietário para administra-las o que revela a importância das

relações familiares e da organização da herança para a organização social do

território. Este fato já foi percebido e estudado pelos antropólogos dedicados a

investigações no meio rural e, suas conclusões podem ajudar a iluminar aspectos da

evolução da comunidade de Nazaré.

Diversos autores da antropologia já discutiram as questões ligadas à herança e,

junto disso, questões ligadas à organização do trabalho e da família. Segundo Moura

(1978), para compreender a questão da herança em determinado local é preciso pensar

ao mesmo tempo nas questões de família, regime de produção e parentesco. Desta

forma, é preciso entender as relações e diferenças que são feitas localmente a respeito

de parentesco e consanguinidade, além de considerar o tamanho da terra.

Seyferth (1974) pôde observar, assim como no caso desta pesquisa, que nem

sempre nas áreas rurais a transmissão de terras varia de acordo com o código civil,

mas sim de acordo, entre outros aspectos, com o tamanho da propriedade, quantidade

de filhos, qual ou quais filhos possuem direito de herança. Isso ocorre, segundo a

! ((!
autora, para evitar a fragmentação da terra e, portanto, impossibilitar a viabilidade

financeira da produção (em pequenas e médias propriedade rurais, caso a terra fosse

fragmentada em muitos herdeiros, nenhum iria conseguir seu sustento e o de sua

família com pequenas frações da terra do pai).

Com relação a isto, Bourdieu (1980), afirma que geralmente existe nestas

áreas uma espécie de fórmula, que funciona localmente, utilizada para calcular a

questão da herança, mas isso não impede que o chefe de família a modifique, caso

ache necessário. Além disso, ele afirma que existem fatores sociais e morais que

influenciam esta questão, porém, os fatores econômicos não podem nunca sair de

vista.

Para compreender melhor este ponto, seria preciso dedicação a uma

observação mais detalhada. Contudo, podemos afirmar que, com a morte o patrão,

não houve quem herdasse a propriedade, pois sua filha, que até os dias atuais briga

pela terra, não foi considerada uma herdeira legitima. Aconteceu, neste momento,

uma divisão do espaço entre os moradores que definem a atual organização da

comunidade. Desta forma, a figura do patrão não faz mais a mediação entre as

pessoas e a terra. Sobre isso, um dos moradores da comunidade, certa vez, me disse:

Eu sempre falo para os meus filhos trabalhar comigo na melancia


aqui nas minhas terras. Toda época de melancia eles ajudam... Os
meninos tem que trabalhar aqui nas nossas terras, porque não dá
pra ter patrão... Quando eu morrer, as terras vão ser deles, pra eles
trabalharem e cuidar da família deles... As meninas vão pra escola
e ajudam a minha mulher, mas as terras os meninos vão cuidar...

(conversa com um senhor na beira do igarapé)

Em uma primeira análise, ainda inicial, foi possível observar que em muitos

casos, as filhas mulheres, em geral, não recebem a herança, elas se casam e vão morar

! ()!
com os seus maridos. Contudo, este é um assunto que necessita um estudo mais

detalhado. Por exemplo, não foi possível observar nesta pesquisa como geralmente

acontecem com as famílias caso um filho ou filha não se case, ou como são as

relações de herança em famílias com apenas filhas mulheres.

Após a morte do patrão, a divisão do trabalho se transformou, o que, segundo

os relatos, coincidiu com o fim do que eles chamam de ciclo da Solva e inicio do

chamado ciclo da agricultura. Indicando uma etapa de diferentes adaptações para os

moradores de Nazaré, pois, nesta mesma época as vendas da solva acabaram,

forçando os trabalhadores a se adaptarem à produção e coleta de outros produtos. O

fato de importância fundamental é que com a morte do patrão, tiveram que se adaptar

para trabalhar numa terra sem dono. Assim, houve uma nova forma de gerar renda e

uma nova forma de dividir, pensar e viver o espaço.

Durante a cheia, os trabalhadores rurais (até a segunda incursão a campo da

presente pesquisa) se ocupam com a extração de produtos florestais não madeireiros,

tais como açaí, andiroba, cupuaçú, entre outros (a pesca, nesta época é muito mais

para a venda local e consumo próprio, do que para a comercialização em outros

centros). Já na seca do rio, eles trabalham em roças próprias com a produção de

mandioca, melancia e outros produtos, além da pesca para venda. Como já dito no

item sobre o histórico de formação da comunidade, esta organização do trabalho

segue uma divisão de terras que, embora não oficializada na prefeitura de Porto

Velho, é legitimada entre os moradores da comunidade.

Esta descrição da organização do trabalho corresponde às informações obtidas

em fevereiro de 2012 e está intimamente ligada aos fluxos do rio antes do

funcionamento da barragem. Na cheia do rio as roças ficam alagadas (o que serve,

inclusive, de reposição dos nutrientes da terra e para lavar a terra dos insetos,

! (*!
segundo os moradores locais) e pela grande dificuldade na pesca para a

comercialização, pois os peixes não estão concentrados em uma pequena parte de

água. Além disso, durante a cheia do rio, animais como jacaré e cobras estão mais

próximos das casas e, portanto, mais espalhados pelas comunidades. Já na seca, não é

possível coletar açaí, castanha, entre outros, pois a época destes produtos é na virada

do ano.

Durante a seca, uma das principais fontes de renda ligada à agricultura da

comunidade é na comercialização principalmente de melancia e mandioca, além de

outros produtos em menor escala como milho, feijão, café. O trabalho dos produtores

começa no preparo da terra e só termina em Porto Velho, na comercialização.

Durante a produção, geralmente o pai da família é quem cuida da organização

do trabalho. Porém, quando a produção é maior que a força de trabalho familiar, ele

contrata um filho homem de outra família mais numerosa ou com quantidade de terra

menor. Porém, isto acontece em raras ocasiões, pois geralmente o tamanho da

produção varia de acordo com o tamanho da ajuda familiar.

É possível perceber, como também visto por Garcia Jr e Heredia (1971), ao

pesquisar famílias rurais na zona da mata do agreste pernambucano, que a vida

econômica da família está baseada no núcleo familiar e não em um sistema de

salários. As casas são constituídas pelo patriarca, sua esposa e filhos. Os filhos

casados geralmente mudam-se, mas acabam construindo suas casas bem próximas das

casas dos pais (ou da esposa ou do marido), sendo que as famílias acabam se

encontrando com frequência nas casas umas das outras, principalmente nos momentos

das refeições.

Para Almeida (1986), existe uma importante oposição entre o modo de

produção capitalista e o modo de produção camponês e, por isso, existe uma distinção

! )+!
entre o proletariado e o campesinato. Esta distinção está justamente na relação entre o

tamanho da ajuda familiar e o tamanho do roçado – quanto mais membros, maior o

roçado, mas também maior o consumo. Desta forma, como observado em Nazaré, o

tamanho da produção varia de acordo com a quantidade de membros homens da

família, ou seja, a produção não é a partir da perspectiva do capital, mas sim da

disponibilidade masculina para o trabalho no roçado e da disponibilidade feminina

para os afazeres domésticos.

Ainda que exista esta divisão de terras e do trabalho familiar, isso não

significa que o trabalho não possa depender da ajuda de outros. Muitos moradores

relatam histórias de mutirões com o intuito de ajudar a família de algum produtor que

adoeceu.

...Ih por aqui é normal um ajudar o outro... depois de um tempo o


outro ajuda o um, sabe?[...] Por causa dessa ajuda que eu falei pra
você que eu amo esse lugar. Acontece de um adoecer e nós juntá
todos os homens e ir trabalhar nas terras da pessoa, para ele não
perder nada. Já aconteceu também do camarada adoecer antes
mesmo de começar a plantação e cada um dar um pouco do que
produz para a família dele poder comprar o rancho25. Aqui é assim,
cada um tem o seu, mas se precisar a gente ajuda.

(Seu Manduca, Janeiro de 2013)

Eu tive um problema do coração e fiquei um tempão no hospital.


Quando fiquei doente ia perder toda a plantação, daqui os homens
todos vieram ajudar aqui a colher e eu não perdi nada. [...] Aqui
sempre tem dessas coisas, quando precisa sempre tem quem ajuda,
aí dá até gosto de ajudar.

(conversa com senhor de Nazaré, em um barco de linha)

Já os produtos florestais que podem ser coletados da floresta, como a castanha,

por exemplo, eles dizem que antigamente era propriedade de Seu Nanã. Com a sua

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
Rancho, na localidade, significa comida.

! )"!
morte, todos passaram a coletar estes produtos e fazer a sua própria venda. Segundo o

Professor Artêmis, a castanha é um dos produtos que pode ser encontrado em

abundância e seu preço varia entre 8 reais a lata até 20 reais, dependendo da época.

Hoje, quem chega antes é quem tem direito. Ninguém briga,


até por que eu tô usando algo que é de outra pessoa. A terra
não é de mais ninguém, é de quem chegar lá e se beneficiar. É
de todo mundo agora.

(professor Artêmis, Março de 2011)

Atualmente existe nas comunidades do baixo rio Madeira um barco

disponibilizado pela Secretaria de Agricultura de Porto Velho que leva os produtos

das comunidades para a capital sem nenhum custo para o produtor. Entretanto, este

produtor precisa viajar sozinho (sem nenhum acompanhante que o ajude) e não existe

um barco que o leve de volta para sua comunidade, desta forma, ele precisa arcar com

o preço da passagem de volta.

Os produtores vão procurando “pequenos furos” nas regras deste barco para

que possam viajar com alguém que os ajudem nos momentos de carregar e

descarregar a mercadoria. Um exemplo disso é quando um produtor me conta que ele

e cada um de seus 2 filhos afirmam ser donos de um terço da mercadoria. Desta

forma, eles conseguem viajar em 3 pessoas, quando a safra é muito grande para

apenas um, ou quando algum deles precisa ir para a cidade, afinal, as viagens de barco

não são baratas. Podemos observar estas estratégias em várias ações dos moradores da

comunidade e não apenas em situações de trabalho, que serão discutidas a seguir.

! )#!
Após chegar em Porto Velho, o produtor depende do preço oferecido pelos

marreteiros26 para vender suas mercadorias.

O barco da produção tá ai há 8 anos. Antes do barco, cada um


pagava o seu transporte. O produtor chega na rua27 e o marreteiro
fica com a marreta na beira do porto [...] Ele é o atravessador que
ganha dinheiro, não é o produtor. O atravessador vai lá e fala que
dá 4 reais, aí o produtor diz que não quer vender por esse preço.
Ele (o marreteiro) sai e logo conversa com outro marreteiro, que
vai lá e de propósito diz que dá 3,50 e se não quiser, você não
vende. Quando voltar ele diz que já comprou por 2 reais. Até você
entregar o produto. São eles quem tem o controle lá. Eles que
ganham dinheiro não o produtor que carpina a roça e trabalha. Ou
você entrega no preço que eles querem ou paga o frete pra trazer de
volta. Porque o barco da produção leva sem frete, mas você tem que
descarregar lá em Porto Velho[...] Tem feira sim, mas a feira lá é
para o atravessador, eles que comandam. O produtor daqui não
tem direito a banca. Quem quer vender vende na rua.

(Professor Artêmis, janeiro de 2013)

Eu planto meu café... esse que você ta vendo alí. Aí tem que levar
nesse barco da produção pra Porto Velho, mas agora não tô
levando não. Os atravessador não tão pagando nada. Pra dar pra
alguém sem lucro nenhum, só com o dinheiro da volta meu e dos
meninos, que prefiro é dar para quem é amigo. Um tempo atrás fui
pra Porto Velho pra vender o café e eles não queriam pagar é nada
pela saca... mas era nada mesmo... Eu não sei nem ler e nem
escrever, mas eu sei o quanto tem em uma saca de café, uma lata de
castanha e uma lata de solva. Eu sei o valor do trabalho. [...] Eles
não queriam pagar nada, eu falei pro meu menino: ‘vamos jogar
tudo no rio madeira’. Jogamos tudo no rio e na frente do marreteiro
mesmo. Ser explorado? Eu não... Já sofri demais. Comecei
trabalhar muito menino e não pude aprender a ler e escrever. Não
virei doutor. Mas não vou dar o café de graça pra esse povo!
Agora, se você quiser um café, pode vir aqui! E pode trazer seus
amigos também, que café e peixe, isso a gente sempre tem pra
oferecer!

(Seu Zé Ferreira, Janeiro de 2013)

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
26
Marreteiro ou atravessador são as pessoas que compram as mercadorias dos produtores do interior para revender
para os mercados da cidades. Desta forma, até chegar no consumidor final, estas mercadorias passam por vários
intermediários e quem menos ganha por elas é o produtor rural.
27
Rua é a forma com que os moradores chamam a cidade (no caso, Porto Velho).

! )$!
Outro ponto de dificuldade para agregar valor à mercadoria do produtor rural é

a impossibilidade do beneficiamento do produto na própria comunidade. Seja, entre

outros, pela falta de água potável, pela instabilidade de energia elétrica ou pelo alto

preço do gás de cozinha para fazer doces, por exemplo. Os produtos os ribeirinhos

são, em quase todas as vezes, vendidos da forma como são coletados.

Desta maneira, podemos perceber que desde o início do processo produtivo

até a venda, os pequenos produtores rurais vão encontrando em seu caminho diversos

momentos de dificuldade que rebaixam e aviltam os homens e mulheres do interior e

contribuem para a dificuldade em gerar renda necessária para viver.

Outra forma de geração de renda na comunidade são os funcionários públicos

(sejam advindos de concursos públicos ou ocupando cargos de confiança). Dentre

estes funcionários estão os professores, garis, diretor da escola, administrador, diretor

e funcionários da UBS e funcionários responsáveis pelos motores que geram a energia

da comunidade. Estas pessoas recebem melhores salários, quando comparados com o

restante dos habitantes de Nazaré. Existem também alguns comércios na comunidade

(que são como eles chamam as vendas locais), dois bares, dois restaurantes e uma

lanchonete, além de uma senhora que vende sorvete na varanda de sua casa.

É importante também pensar na diferença entre o trabalho dos homens e das

mulheres, tópico pouco discutido na presente pesquisa. As filhas e esposas podem

auxiliar nos comércios de seus pais, nos roçados de subsistência e na criação de

pequenos animais, como patos, porcos e galinhas ou na comercialização de produtos

artesanais (como bolos, panos de prato, trabalho de manicure e etc.). Elas também

fazem compras nas vendas para a alimentação e manutenção da casa. Mesmo na

época do patrão, as mulheres cuidavam sozinhas da roça, mas que era estritamente

para a subsistência da família.

! )%!
As que trabalham fora de casa, são funcionárias da escola, ajudam seus

maridos nos comércios ou cuidam de crianças (principalmente daquelas que as mães

trabalham na escola). Porém, geralmente não participam nas tarefas pesadas das

grandes plantações, como de mandioca e melancia ou na extração de produtos

florestais. De forma resumida, elas são responsáveis pelos trabalhos que dizem

respeito à vida privada da família, enquanto os homens são responsáveis pelos

trabalhos relacionados ao sustento financeiro da casa. É claro que pode haver casos

que funcionem como exceção, que existam mulheres que fazem trabalhos para o

sustento da família e homens que ajudam na manutenção da casa e no cuidado dos

filhos.

Como foi descrito aqui, os processos relacionados ao trabalho sofreram

grandes e impactantes mudanças desde a formação da comunidade. Aparece como um

fato de grande importância na comunidade a morte do patrão e o início de um período

no qual as terras ficam sem um dono que gerencia o trabalho. A relação com a terra

não é mais mediada pela figura de seu Nanã e a comunidade organiza uma nova

divisão do espaço, na qual todos passam a ser proprietários de um pedaço de terra. A

outra mudança significativa ocorrida no mesmo momento é o fim da comercialização

da solva e, com isso, o início do que eles chamam de ciclo da agricultura.

Desta maneira, inicialmente os trabalhadores ganhavam por produção, mas

tinham apenas o barracão do patrão para fazerem suas compras, configurando um

condição análoga a da escravidão. Contudo, após sua morte, os produtores rurais de

Nazaré precisaram construir uma organização de trabalho que, embora individual

(cada um trabalha e comercializa por si), mantem traços coletivos, principalmente

quando receber ajuda é necessário. O histórico do trabalho em Nazaré é, sem dúvidas,

muito complexo, cheio de enigmas e rico em consequências.

! )&!
No presente momento, a comunidade passa por mais uma mudança em seu

ritmo de trabalho, a partir das transformações do fluxo do rio. As dúvidas com relação

às consequências da barragem de Santo Antônio no cotidiano do trabalhador rural são

enormes e somente o tempo poderá mostrar quais foram as adaptações possíveis e

necessárias para estes moradores. Porém, transparência nas informações na época do

processo de decisão da obra, durante a sua execução e com relação às consequências

futuras, teria certamente contribuído para que esta fase de transição ocorresse de

forma menos violenta sobre as pessoas da comunidade. Apresenta-se agora um

momento de transformações ainda incerto e que está ligado ao impacto sobre os

ritmos naturais de uma grande obra de produção de energia. Estas incertezas estão

afetando e podem vir a afetar ainda mais a organização do trabalho.

! )'!
4.4) Lendas, religiosidade e manifestações artísticas

O boto ia pra festa e só queria dançar. Ele era liberado. Uma vez
eu vinha com o meu filho de canoa e ele não sabia pilotear bem. Eu
dizia: “meu filho piloteia” e ele não fazia nada e não me dizia
nada. Eu dizia: “Meu filho piloteia”. Ele não me dizia nada com
medo de assustar o boto e ele virar nossa canoa por isso ele não
fazia nada era para não pegar no boto. Eu falei então deixa quieto
meu filho...vai remando, mas respeita o espaço do boto... Se você
não respeitar, o boto vira o barco... Mas se você souber que é
preciso respeitar, nada acontece. Isso aconteceu mesmo Andrea.
Tem camarada que não respeita, e o boto da rabada e ele vai parar
no Igapó, ou vira.

(Professor Raimundo, Fevereiro de 2012)

Uma vez eu tava aqui no igarapé remando e veio o boto. Eu não vi e


ele ficou bravo. Ele é forte demais. Pegou meu remo com a boca e
ficou bravo, não deixou eu remar mais... não tinha o que eu fazer,
ele não deixou mesmo. O boto é assim, você tem que respeitar, se
não ele é perigoso. Mas se você respeitar direitinho, fica
tranquila...

(Anauá, Abril de 2011)

Falar sobre as lendas, religiosidade e manifestações artísticas em Nazaré é,

sem dúvida, a parte mais desafiadora e complexa da presente pesquisa. Assunto

complexo, por dois motivos: primeiro pelo sincretismo cultural e religioso que se

apresenta de forma marcante na comunidade e, segundo, justamente por ser um dos

tópicos que os moradores de lá mais se orgulham de apresentar e falar.

Não pretendo, nesta pesquisa, fazer o trabalho de descrever as danças e lendas

contadas em Nazaré e na Amazônia, trabalho já feito por outros pesquisadores, como

Maciel (2010), Vegini e Vegini (2012) e Câmara Cascudo (2000), que pesquisaram as

origens e transformações de lendas, contos e danças tradicionais com o passar do

tempo. A intenção deste capítulo é compreender como as lendas, as histórias, os

aspectos da religiosidade e as manifestações artísticas em Nazaré parecem

! )(!
profundamente interligadas e podem ser consideradas de extrema importância para

sustentar o vínculo com o passado e com a experiência de enraizamento.

Quando perguntado, durante as entrevistas, os motivos que levavam aquelas

pessoas a morarem em Nazaré, as respostas vinham com contextos e enredos

diferentes. Alguns contavam da importância da ajuda mútua, das amizades, outros

diziam permanecer na comunidade pela história de sua família e lembranças do

passado, entre tantas diferentes respostas. Porém, algo em comum em todas as falas

era o orgulho do que eles chamam de “cultura de Nazaré”, e complementam essa

expressão contando da felicidade de estar em um local no qual eles podiam cantar e

contar suas histórias e lendas, organizar festejos com quadrilhas tipicamente

amazônicas (que são bem diferentes das quadrilhas do sudeste), dançar o boi, o

seringandor, construir instrumentos com materiais da floresta e se educarem

mutuamente no processo.

Existe na comunidade um grupo chamado “Minhas Raízes”. Este grupo

trabalha na composição e produção de músicas, peças teatrais , festejos e outros

eventos artísticos e tem como principal inspiração as formas tradicionais de vida na

floresta, a cultura local e as lendas. Atualmente, também discutem o impacto da

barragem de Santo Antônio na comunidade, desmatamento e outros assuntos. Desta

forma, as canções trazem sempre elementos e características locais, dentre eles, a

história da formação da comunidade, misturada com as lendas, a fé religiosa e

acontecimentos atuais.

Como exemplo, apresentaremos umas das primeiras músicas do “Minhas

Raízes”, grupo criado por Timaia e seu irmão Tullio, que narra a rotina da vida na

comunidade:

! ))!
Vai pescar, vai pescar (Silvia Helena e Timaia dos Santos)

De manhãzinha, papai pega a canoa


Passa pela lagoa e logo vai pescar
La no macaco prego28
Que tem peixe pra danar!

Vai pescar! Vai pescar!


Também no palha branca29
Vai pescar! Vai pescar!
Pra poder me alimentar

De tardezinha, mamãe pega a farinha


Faz uma tapioca, me chama pra merendar
Mamãe faz tapioca para poder me alimentar
Mamãe faz tapioca, espera o papai chegar

Além desta música:

Boto tucuxi (Timaia dos Santos, Silvia Helena e Túlio Nunes)

Mamãe falou pra não pular no rio


Quando escurecer, por que faz muito frio.
Papai falou pra não ir no Igarapé
Porque o boto rosa pode puxar meu pé

O meu pai dizia: menina te cuida,


Boto vai te pegar
E na beira d’água ela falava: pára de viajar
Ela era da cidade, seu negócio era vaidade
Cunhatã30 teimosa, sobe o barranco que eu vou te benzer

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
28
Macaco prego: Lago presente na região – o mesmo que não se formou no ano de 2012.
29
Palha Branca: Lago na parte de trás da comunidade.
30
Menina em Tupi.

! )*!
E ela não ouvia, e eu já sabia, o que ia acontecer
Ela era da cidade
Não sabia das maldades

Foi descendo o barranco, minha mãe em prantos,


Põe se então a gritar.
Não adiantava, boto tomou posse,
corre então pra ajudar.
Fui correndo lá pra beira31.
Fui gritando: o que é que eu faço?
E minha mãe dizia: Lembra o que a vovó falava?
Papai, pega logo o pião-roxo32 pra surrar a mana pro boto se afastar
Papai, eu lembrei que o boto tucuxi afasta o boto rosa
Pra nunca mais voltar
Fui lá, muito angustiado,
pus minha mão na água e comecei a cantar.
Boto Tucuxi33, boto tucuxi,
Tira o boto rosa34 daqui

Em Nazaré, as histórias contadas no cotidiano misturam os fatos históricos da

comunidade e das localidades de origem dos habitantes com as lendas locais, crenças

religiosas e comemorações. Ali, a história dos antepassados é história viva! Contadas

por Anauá, Timaia, seu Mundico, professor Artêmis, entre tantos outros, ela caminha

entre as gerações. Muitas vezes com um “acredite se quiser” na metade ou no final,

mas sempre seguido de um sorriso de orgulho e elementos que nos prendem a

atenção.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
31
Ir para a margem do rio.
32
Planta tóxica existente na Amazônia.
33
Espécie de boto que, segundo a lenda local, tem o poder de espantar o boto rosa.
34
Espécie de boto que, segundo a lenda local, engravida as mulheres ou seu espírito “invade” o corpo das pessoas.

! *+!
Eu me lembro duas coisas interessantes. Uma é as crianças fazendo
teatro desde cedo e eles cantando. Imagina pensar na formação
baseada na cultura local, sem deixar de estudar, sabe? Os
adolescentes de hoje, a maioria deles sempre volta nos festejos. A
cultura aqui em Nazaré é tão forte, porque aqui as pessoas sabem
que podem contar e participar... Acho que aqui é mais forte do que
nas outras comunidades do Madeira por conta do que o pai fazia na
escola, de sempre contar as histórias, de mostrar que ele valorizava
isso. Ele era um líder natural aqui e as pessoas respeitavam ele e
viam que ele valorizava o que era nosso! No fundo, as pessoas
daqui sentem incentivo e liberdade de contar as histórias e falar do
que é da Amazônia, do boto, do neguinho da mata... [...] Aqui tem
uma coisa... eu... sou assim, uma opinião minha é meio feio de
falar, por que eu sou daqui, eu gosto muito daqui! Aqui tem uma
coisa diferente, tem uma aura, as pessoas que saem sempre voltam,
elas não perdem o vínculo.
(Timaia, março de 2013)

Timaia é um educador que nasceu e cresceu em Nazaré. Importante parceiro

desta pesquisa, ele é filho do professor Maciel e cresceu em meio a livros, festejos,

música, teatro e poesia. Isso tudo, junto das histórias e lendas locais, foi sempre tão

presente em sua vida, que ele não sabe bem dizer quando foi que começou a trabalhar

com os projetos de cultura local. Ele nasceu na comunidade, porém, depois de alguns

anos teve que se mudar para concluir seus estudos. Se formou na escola e na

faculdade de letras para ser professor em Nazaré, como seu pai. Hoje, Timaia é

professor, mas também é fundador do grupo musical e do instituto “Minhas Raízes”,

além de ser pescador, coletar produtos florestais não madeireiros e participar,

ativamente, das reuniões por melhorias na comunidade.

O minhas raízes foi um grupo criado, principalmente, por ele e seu irmão

Tullio, mas com um grande incentivo de seu pai, dos integrantes da “velha guarda” da

comunidade (professor Artemis, seu Zé Ferreira, entre outros) e de seu amigo Anauá,

também escritor e bastante ativo nas apresentações teatrais da comunidade. A ideia

! *"!
inicial era a de, junto com crianças e jovens da comunidade, cantar músicas que

falassem da história local, das lendas e formas de viver da região. Junto disso,

construir os instrumentos com materiais da floresta e trabalhar com estes jovens de

forma a incentivar a participação coletiva na vida política da comunidade, sem

esquecer das raízes de quem é de Nazaré e da Amazônia (Timaia, março de 2012).

Hoje, o grupo cresceu e em parceria com outras pessoas, como o Anauá, o Tullio,

entre outros, criou-se o instituto “Minhas Raízes”, que tem como missão realizar, em

Nazaré, trabalhos de educação, cultura e turismo de base comunitária.

Bioinstrumentos construídos em Nazaré por Timaia e outros integrantes do grupo Minhas Raízes

É tão difícil falar como tudo começou. Porque assim, não fui eu ou
o outro. Em Nazaré parece que as crianças são escolhidas por Deus
para estarem aqui, elas nascem muito talentosas. Mas o pai sempre
fez as coisas, sempre fez o teatro, os festejos, o seringandor, o boi...
Eu continuo com a ajuda de outras pessoas. Tipo o Anauá sempre
participa e outras pessoas! O Minhas Raízes é uma história muito
bonita... Desde a época do pai, que ele fazia os festejos e teatro,
educação, a fanfarra, mas era tudo muito aqui em Nazaré só. Os
teatros regionais ele fazia de baixo de tapiri de palha, na vela

! *#!
mesmo. Com muita gente. Chegou o momento que a gente falou: a
gente precisa mostrar isso para fora. Ai a Silvia Helena e o Tullio
falaram de criar algo que mostrasse as coisas da nossa vila. Aí o
pai falou assim: poxa Timaia lá no Uruapiara a gente tocava com
tambor de madeira ocado. Aí eu pensei em fazer instrumentos
nossos que fosse a cara da gente, de ouriço de castanha, madeira,
essas coisas. Eu e os meninos daqui de casa começamos a produzir
os instrumentos. Nós fizemos seis músicas: minhas veias, curupira,
depois a da cobra, depois veio a da correnteza. Hoje o Minhas
Raízes é bem mais que um grupo de música. Tem o teatro com o
Anauá, tem outras coisas.
(Timaia, fevereiro de 2013)

Podemos pensar que estas crianças são tão talentosas justamente porque

nasceram em um local no qual o fazer criativo é incentivado e extremamente

valorizado. O trabalho desenvolvido por estas pessoas tão admiradas na localidade

possibilita um espaço de brincar e se relacionar com o mundo de forma criativa, não

somente por meio da arte, mas criando um espaço no qual crianças, jovens e adultos

podem, a partir do vínculo com o passado, viver o presente e criar planos de futuro.

Para Winnicott (1951), o viver criativo é um elemento fundamental da vida

saudável. O viver criativo não se reduz à atividade artística, engloba uma forma de

relação entre sujeito e o mundo que não é de submissão ou simples adaptação à

realidade externa. Tampouco significa a perda de contato com a realidade pelo

transbordamento da vida subjetiva, como nos casos de deliro ou de alucinação. As

relações entre o viver criativo e a vida comunitária se revelam no fato de que as

atividades culturais sustentadas pelo grupo configuram um "espaço potencial", um

espaço que não é propriamente uma realidade interna e tampouco uma realidade

externa, um campo de atividades comunitárias que permite uma relação pessoal dos

membros do grupo com o mundo e com sua história.

O professor Maciel, segundo os relatos de todos os moradores com quem

conversei durante esta pesquisa e anteriormente em Nazaré, sempre apoiou na

! *$!
comunidade a realização de atividades ligadas à cultura da Amazônia – do caboclo

ribeirinho, das raízes indígenas, dos povos da floresta! O professor Maciel, junto do

professor Artêmis, iniciou também a organização dos teatros de comédia na

comunidade, das danças do seringandô, das contações de histórias e lendas e

composição das músicas.

Segundo o professor Artêmis, em abril de 2011:

O professor Maciel ... gostava de comédia. Começamos fazendo


comédia aqui em Nazaré. Ele programava tudo. Eu e ele. E o povo
participava. A gente chamava a comunidade e cada um pegava a
sua peça e ia estudar e se preparar. Ele também gostava muito de
música e os filhos deles nasceram e cresceram e se envolveram com
música. Eles todos parecem que nascem prontos, de tão talentosos
que são. Já sabem tocar os instrumentos e cantar assim de criança.
Você vê que eles que preparam até os instrumentos. Eu falo para o
Tim que não pode apresentar sem o nosso material. Não adianta
querer dar o material de fora. Tem que ser o nosso, que fazemos
aqui. Cada música que eles compõem é uma história daqui do baixo
Madeira. Elas contam da nossa história. Ou até mesmo da
cachoeira de Santo Antônio, que era uma lugar tão bonito e agora
foi transformado em barragem. Todos perderam uma bonita
paisagem.

Atualmente, Anauá participa ativamente da construção de peças teatrais na

comunidade. Chamado de “Paragem cultural”, o teatro em Nazaré traz gente de

diversas comunidades do baixo rio Madeira. A peças são todas construídas na

comunidade: eles escrevem os textos a partir das histórias locais, fazem os cenários,

as roupas e são os atores e atrizes.

A “paragem cultural” é muito legal, Andrea. Você tem que vir ver!
O povo já espera ela acontecer na época do natal. Começou por
causas das comédias do professor Maciel. Depois que ele morreu,
não fizemos mais, aí o povo sentia falta. Um dia eu e o Tim
pensamos em fazer de novo. Fui pra casa e comecei a escrever... a
gente ficou trabalhando nisso e começamos a falar com o pessoal
que gosta de teatro e todo mundo ficou animado! O Léo meu filho
foi ator, a Aleita, eu, um monte de gente. As histórias era daqui
mesmo, a gente fala da dona Preta, da cobra grande e assim vai.

! *%!
Vamos assistir um dia aqui. Eu tenho um dvd com o teatro que um
menino amigo nosso gravou! [...] Falando nisso de cultura, teve
uma vez que veio um cara de fora, acho que era de Manaus. Ele
tinha um projeto de trazer cinema para as comunidade aqui do
baixo Madeira, sabe? Dizendo que ia trazer cultura pra gente, vê
só... Aí ele chegou aqui na comunidade com aqueles aparelhos
todos. Não falou com ninguém e foi logo montando a apresentação
lá no piseiro... acabou que ninguém foi. Ninguém apareceu. Ele
ficou bravo. Falou que a gente era um povo sem cultura... sem
interesse. A gente falou pra ele que não. Ele é ficou duvidando...
acabou que falamos pra ele deixar a gente mostrar um filme nosso
então. Mostramos o filme do teatro aqui de Nazaré, fomos
divulgando, pedimos ajuda pro pessoal, o povo foi se envolvendo,
sabe? Nossa.... foi lindo. Não tinha mais onde colocar gente, tinha a
tela e aquele povo todo assistindo e rindo. Mostramos pra ele que a
gente tem sim cultura, mas não adianta vir com as coisas assim de
fora [...] Teve uma outra vez que a gente tava falando de fazer a
rádio comunitária, lembra? Nossa, a gente quer muito que esse
projeto dê certo, Andrea. Aí teve o pessoal da compensação
ambiental da Santo Antônio que veio fazer levantamento do que a
gente precisa aqui. Dividiu em cultura, educação, saneamento,
saúde... Foi difícil escolher em que grupo ir. Tem tanta coisa... aí eu
fui no de cultura. A mulher falou que tinha que ter um curso para
ensinar a gente a falar em rádio, por que tinha técnica, ela falou
que não pode falar assim de qualquer jeito. Ah... isso eu não
concordo! A gente tinha a rádio aqui com o professor Artêmis e o
professor Maciel! A gente não precisa de ninguém de fora
ensinando a gente a falar! Aqui tem o dialeto próprio! Eu falo em
riba da mesa, falo curumim, falo peia... Preciso aprender sobre os
aparelhos, mas não quero falar como se não fosse daqui!

(Anauá, março de 2011)

As histórias da comunidade não são apenas contadas durante as músicas e

teatro. Elas fazem parte do dia a dia da vida de alguns moradores de Nazaré. Lembro

com detalhes as tantas conversas na casa do Anauá, com seus 4 filhos e 2 sobrinhos

(que ele e sua esposa criam) em volta, lembrando e contando as histórias de sua

infância e as histórias que seu pai lhe contava. Falava também sobre Dona Preta,

curandeira local, sobre as lendas do mato e as simpatias que seu pai, também

curandeiro, ensinava-lhe. Durante estas conversas, as crianças maiores participavam

ativamente, relembrando seu pai dos pequenos detalhes, complementando as falas

! *&!
com alegria. Já as menores sorriam e se espantavam, cada uma com a atenção de

quem estava aprendendo os detalhes da história de seus ancestrais.

Anauá conta que seu pai era curandeiro e que antigamente, com a falta de

médicos, eram só os curandeiros que conseguiam atender os problemas de saúde.

Sobre o pai de Anauá, Dona Vena conta:

Meu irmão era uma pessoa que entendia muito das rezas. Chegava
aquelas mulheres na casa dele e falavam “Ê seu Manel, eu vim aqui
pra você rezar pro meu filho que tá doente com pescoço mole.” Ele
então esfriava o corpo do roçado, ia em volta da casa pegar ervas e
folhas, voltava e fazia a reza. E falava iiihhh, você vai ficar bom. Aí
você perguntava pra ele o que fulano tem? Ele falava, nada de
mais, ele vai ficar bom, traz ele amanhã de novo aqui e eu vou dar
outra reza e ele vai ficar bom. No dia seguinte a mãe chegava lá e
ele perguntava, como o menino tá? Ah, seu Manel, agora ele tá
bom. Ele então fazia outra reza. Teu filho vai ficar bom, aí sim ele
dizia o que ele tinha. As vezes a pessoa chegava assim chorando
com algo de dar medo. Ele botava o dedo assim e rezava na pessoa.
A pessoa chegava com uma dor de cabeça, com qualquer coisa e
ficava bom, com um chá, banho ou purgante! Tinha um bando de
gente vermelha e ficava bom rapidinho. [Pergunta: O que é gente
vermelha?] É quando a pele fica assim todinha vermelha, sabe?
[Pergunta: Mas como a pessoa pega isso?] Não sei não! Mas as
pessoas ficavam boas rapidinho, maninha!
(Dona Vena, Fevereiro de 2012)

As rezas e chás feitos pelos curandeiros fazem parte do dia a dia de muitos

moradores. Eles relatam que é comum irem ao médico e também à curandeira e

benzedeira Dona Preta.

Uma vez eu tava doente aqui em casa com uma tremedeira. Eu


morava lá fora [do lado da ponte que fica perto do rio]. Tava com
água no fogo e as pernas com uma tremedeira que eu não
conseguia ficar de pé. Aí fui para rua [Porto Velho] me tratar pra
lá. Passei mais de mês me tratando, fazendo exames e não dava
nada. Pedi para o médico bater uma chapa do meu peito para ver
se eu tava tuberculosa e nada, nada, nada... O doutor falou que eu
tava é boa. Eu então falei como assim doutor? Tô aqui com a perna

! *'!
tremendo, fraca desse jeito e não tenho nada? O médico ainda fazia
é piada dizendo que se eu arrumasse um namorado eu ficava é boa.

Eu não melhorei e falei assim pra minha filha: sabe de uma coisa,
faz um mês que eu tô em Porto Velho doente não melhoro. Eu vou é
pra casa e vou morrer em casa que é melhor. Vou ficar aqui não.
Vim me embora. Depois de uns 3 dias chegou a comadre finada
Chica, mulher do seu Pantoja. Ela chegou em casa e perguntou
“comadre, porque não vai a senhora na Dona Preta, compadre
Maciel fretou um barquinho para levar a menina dele aí eu vou
aproveitar e ajudar minha comadre a levar o menino dela junto,
porque você não vai?” Eu falei “rapaz, se o Maciel vai então você
diz pra ele se ele me dava a passagem ou eu ajudava a pagar”.
Depois ela voltou rapidinho e falou “comadre, o Maciel falou pra
senhora se arrumar que ele vai te levar”. Eu arrumei minha
malinha com uma roupinha assim de manga comprida, porque lá só
entra com manga comprida. Sainha comprida, toda arrumadinha.
Coloquei uma lata de leite, de sardinha uma farinha, tudo
arrumadinho. O Maciel foi me buscar e pegou minhas coisas e
quando eu cheguei na beira minhas sacolinhas estavam com a dele
no motor [barco] que ele fretou.

Saímos de manhã e chegamos lá de tarde. Lá o compadre


Raimundo que é o marido dela não tava. Aí todo mundo tomou
banho na beira do rio e fomos jantar. E começa 6 horas o trabalho
dela. Chegou 6:30 e chamaram a gente para subir porque o
Raimundo chegou e falou “a Dona Preta vai trabalhar”. Todo
mundo senta lá no banco. Aí todo mundo começa a cantar uns hinos
bonitos que ela gosta. Uns hinos assim bonito, da igreja né! Aí ela
canta, canta! Aí o mestre chega com ela, porque ela só recebe o
mestre, ele chega cansado perguntando: “como cêis tão por aqui”.
Aí o povo responde: uns tão doente, outros não. Uns não sabem o
que tem. Eles deram manjar [comida] pra gente, quando a gente
chega. Aí ela pergunta: “deram manjar pra vocês quando
chegaram em casa? Deram atenção?”. Por que as vezes ela não tá,
tá na roça trabalhando e quem tá em casa que recebe! Aí tudo
responde: “sim, deram manjar!” Ela pergunta se deram atenção
também e todos respondem.

Aí ela pergunta por que o menino não comeu, aí ela pergunta quem
tá melhor, aí ela pergunta com quem você veio e o que você tem.
Ela já vai rezando enquanto você responde. Rezando, rezando sem
parar! Aí ela vai passando os medicamentos. Tantas horas, tanto
isso, tanto aquilo. O escrivão vai anotando. Eles passaram uns vão,
3 dias de água ardente Alemanha para passar no corpo e um
purgante.

Ai quando o seu Maciel viu o papel, me deu uns vidros de água


ardente. Aí quando eu voltei pra casa eu pensei, como eu vou fazer
para comprar meu purgante. Aí o seu Maciel viu e pediu para a

! *(!
Alvina, mulher dele que ia em Porto Velho comprar para a menina
dela, trazer o meu. Eu não podia comer sal nem um monte de coisa
por causa do purgante. Aí a comadre Alvina mandou um recado
pelo Maciel que ia me buscar para cuidar de mim.

Ela tava morando em Candeias para os meninos dela estudarem


porque aqui só tinha escola até a quarta séria. Ela veio e
perguntou se tava tudo pronto, pois ela ia me levar na casa dela
para cuidar de mim. E eu só podia sair quando tivesse boa. Quando
cheguei lá já tinha uma cama pronta pra mim, já fui tomar o
purgante fui para debaixo do mosquiteiro! Ela foi uma santa pra
mim! Ela fazia todo dia pra mim o purgante! Cuidou mesmo.

[Pergunta: O que é o purgante?]

Era um chá da laranja que eu tinha que tomar todo dia as duas
horas da manha e ficar quietinha e deixar purgar.

[Pergunta: O que é purgar?]

Pugar é tomar o chá e deixar evacuar tudo pra limpar o organismo.


Você não pode comer salgado nem nada. Come só uma carnezinha
insossa. Eu passei três meses lá com ela para curar e o médico em
Porto Velho falou que não era nada.
(Dona Vena, Fevereiro de 2012)

Dona Preta, como já dito, é a curandeira da região. Ela recebe uma entidade

que cuida da saúde das pessoas, possui guias espirituais e benze quem a procura,

demonstrando aspectos das religiões de matriz africana. Seus guias, porém, são os

botos, que evidenciam os elementos simbólicos locais no seu trabalho e religiosidade.

Ela também usa as cantigas e rezas católicas. O que mostra a rica mistura da

religiosidade local e, porque não, tão tipicamente brasileira.

Ela é muito conhecida e, sobretudo, reconhecida nas comunidades do baixo rio

Madeira. Em Nazaré não é diferente, cantada35 em música pelas crianças e jovens do

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
35
Cumbeira na beira do Rio Madeira

Tinha um menino que só vivia assim, aluado


Tinha a menina que encantava assim, ao seu lado
Tinha um menino, mestre Agripino, Lurde e Caçode Miolo de Pote, Mundica não quer saber.
Moça no cio, boto vadio
Encanto e desgosto, leseira de encosto

! *)!
Minhas Raízes, é bastante comum as pessoas se juntarem para dividirem as despesas e

irem até a comunidade que ela mora (também no rio Madeira) para os atendimentos.

Entretanto, também é bastante comum as pessoas chegarem lá, dizerem o que sentem

e ela orientá-los a procurar o médico.

Eu tava com um problema de saúde que ninguém descobria o que


era. Eu não conseguia ficar na sala de aula. Foi muito difícil. Fui
para todos os cantos e nada... Aí fui na Dona Preta e ela viu o que
era... ela olhou, viu e falou, você vem aqui, vou cuidar disso, mas
você precisa ir no médico lá na cidade. Posso ajudar, mas você
precisa cuidar na cidade também.
(professor Raimundo, Fevereiro de 2012)

Com relação à religiosidade, em Nazaré, todas as pessoas com quem pude

conversar se declaram religiosas. Existe uma mistura entre católicos e protestantes.

Há também aqueles que se dizem católicos, mas vão nos cultos evangélicos, como por

exemplo a Dona Vena, que afirma ir à igreja evangélica pela proximidade com sua

casa.

Existem na comunidade duas igrejas católicas (uma no parte de dentro e outra

no bairro de fora) e três igrejas protestantes (duas “Assembleias do Reino de Deus”,

uma “Deus é Amor” e uma “Adventista do Sétimo Dia”). Os pastores evangélicos

moram na comunidade e, por isso, os cultos são mais frequentes (todas as igrejas

possuem culto pelo menos uma vez na semana). Já as igrejas católicas não possuem

um padre que more na comunidade, desta forma, as missas são mais raras, geralmente

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Dona Preta sabe benzer…
Cobra Grande foi quem me falou
Igapó foi quem me mostrou e mãe d’agua também confirmou
Que este causo é pura verdade, Doutor!
E quem quiser que conte outro
(bis)
Cumbeira na beira do Rio Madeira.

! **!
nos festejos mais importantes e na Páscoa. Existem celebrações semanais na igreja de

fora, feita pelo presidente da igreja católica, que é também catequista. Na igreja de

dentro, algumas celebrações são feitas, organizadas principalmente por Timaia e sua

família.

Muitas da pessoas que são católicas relatam irem se benzer ou fazer algum

tratamento com Dona Preta. Porém, alguns protestantes da comunidade dizem que

estas práticas não são autorizadas por seus pastores e, desta forma, estão impedidos de

realizarem estes tratamentos. Com relação a isto, também, muitas das pessoas que são

evangélicas na comunidade justificam, por serem evangélicas, o fato de não poderem

frequentar os festejos locais (católicos), dançar o boi e ir às festas nos “piseiros”.

Eu não tenho problema com religião nenhuma, Andrea. Sempre


aprendi respeitar todas. Só me preocupo com as crianças que não
podem fazer as coisas ligadas à nossa cultura aqui da Amazônia.
Elas não podem dançar o boi, não podem cantar músicas com as
lendas, não podem ouvir as lendas, falar da Dona Preta. Fico
pensando que se ficar assim, nossa cultura vai morrer, porque as
pessoas são proibidas de participar. Se nossa história morrer, como
a gente vai conseguir viver na floresta?

(Timaia, Abril de 2011)

Ainda sobre os eventos ligados à religião, existe em Nazaré alguns festejos

católicos. O maior deles é o de São Pedro, em junho, também chamado na

comunidade de “festejo da cultura”. Ele acontece durante uma semana, sendo que por

alguns dias as atividades são de rezas (novenas) e pequenos bingos e, nos dois últimos

dias, além dos maiores bingos, acontecem também as danças e apresentações

culturais, dentre elas, a quadrilha tradicional, a brincadeira do boi, a dança do

carimbó, a derrubada do mastro e a dança do seringandor (original do Uruapiara,

região de origem de alguns dos moradores antigos, assim como o professor Maciel).

! "++!
Esta, sem dúvida, é uma experiência rica e necessária para todos que queiram

conhecer de perto as formas de manifestações artísticas, cultura e religiosidade de

Nazaré.

Os outros festejos são o de Nossa Senhora de Nazaré, em setembro e, em

janeiro, o de São Sebastião. O maior festejo mesmo é o de Junho, de São Pedro, que é

bastante organizado pelo Timaia. Os outros são menores, tem rezas e só um

bingozinho básico (Jeferson, Fevereiro de 2012), além de um pequeno festejo que

geralmente acontece na Páscoa, mas não necessariamente todos os anos.

Neste trabalho, tentei compreender quais são os sentidos em Nazaré desta

complexa rede de fazeres, narrativas, manifestações artísticas, religiosas, e ricas

experiências culturais, que se entrelaçam e se misturam com leveza e naturalidade.

Fiz, dos questionamento de Carlos Brandão, minhas próprias perguntas:

Eu me perguntava se tudo o que podia haver ali e em tudo que eu vira desde a
véspera em Pirenópolis que pudesse ser “pra não esquecer quem são”… Por que
as pessoas contam e recontam as estórias que ouviram dos avós e entre si repetem
lendas do sertão? Por que criam? Por que cantam?… Por que não são apenas
prática e funcionais e, afinal, não dividem os seus dias entre a fábrica e a TV
Globo? Por que, ao contrário, não cessam de caçar os sinais da beleza, da crença e
da identidade rústica que existem nas coisas que nós, eruditos e urbanos,
chamamos de folclore? (BRANDÃO, 1982, p. 11-12)

A partir de minhas observações, pude pensar que a tradição oral, as histórias

que sobrevivem e são passadas de geração em geração, além do estímulo a uma

relação artística que leva em conta essas tradições, compõem o cenário de um fazer

criativo comunitário. A forma pela qual o passado e o futuro se entrelaçam nas

manifestações culturais de um grupo revelam uma dimensão essencial da vida

comunitária e do enraizamento. As tradições testemunhadas nesta comunidade

envolvem uma relação com o fazer criativo que só pode manter-se vivo enquanto as

dimensões do enraizamento local forem respeitadas.

! "+"!
4.5) Vida política – vida comunitária

Matas flores cor de anil têm a coruja do meu


lugar
Histórias que nunca se ouviu é tanta coisa pra
contar
Tem velha rezadeira, tem coruja a gorar
Tem o mito da cumbuca na canoa panema

Minhas Raízes – Timaia e Tullio Nunes

O decreto no. 6.040, de 07 de fevereiro de 2007, que Institui a Política

Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais,

define que povos e comunidades tradicionais são:

Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem


formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos
naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos
pela tradição. (BRASIL, 2007)

Desta forma, a população de Nazaré é considerada como população

tradicional. Falar da vida comunitária e da vida política em Nazaré nada mais é do

que falar em cultura. Termo já discutido por muitos autores e que, segundo

Vasconcelos (2010), passou a ser usado como forma de compreender as maneiras de

viver de diferentes grupos. A autora se inspira nos escritos de Whitaker (2006),

quando afirma que o conceito de cultura foi criado por antropólogos justamente para

dar fim ao etnocentrismo ocidental e facilitar a compreensão de outras formas de

viver.

Aqui utilizaremos o mesmo conceito de cultura adotado por Vasconcelos

(2010) que, apoiada nas lições de Whitaker (2006), nos alerta , com veemência, sobre

! "+#!
a importância da diferenciação entre aqueles elementos que são culturais e aqueles

que são ideológicos36. Desta forma, a autora afirma:

cultura é o conjunto integrado e complexo de práticas e crenças que serve como


guia de ação e nos humaniza. Reiterando, cumpre prestar atenção: práticas e
crenças que humanizam compõem a cultura...! As práticas e crenças que não
humanizam fazem parte da ideologia que podemos definir como um complexo de
idéias que justificam o poder, a opressão, a guerra, a dominação e todos os
processos que nos afastam da humanização. Daí a necessidade de observar
culturas locais e/ou tradicionais sob tais ângulos para compreender os impactos
que sobre elas provoca a expansão do capital e sua ideologia.
(VASCONCELOS, 2010, p.16 - 17)

Para Alfredo Bosi (1992), se um dia for possível fazer uma teorização da cultura

brasileira, será necessário ter como fundação (no próprio sentido de sustentar e apoiar

esta teoria) o cotidiano físico, simbólico e imaginário considerados de maneira

indivisível. De acordo com Alfredo Bosi, não há como separar as esferas materiais da

existência das esferas simbólicas e espirituais. Segundo o autor (op.cit.);

Cultura popular implica modos de viver: o alimento, o vestuário, a relação


homem-mulher, a habitação, os hábitos de limpeza, as práticas de cura, as
relações de parentesco, as divisões da tarefa durante a jornada e,
simultaneamente, as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, as palavras
tabus, os eufemismos, o modo de olhar, o modo de sentar, o modo de andar, o
modo de visitar e ser visitado, as romarias, as promessas, as festas de padroeiro, o
modo de criar galinha e porco, os modos de plantar feijão, milho e mandioca, o
conhecimento do tempo, o modo de rir e de chorar, de agredir e de consolar...
(Bosi, op.cit. p. 324. Grifos nossos)

Portanto, se aqui consideramos que falar sobre a vida comunitária de Nazaré é

justamente falar das formas de viver de seus moradores – que se constroem em uma

trama cultural extremamente complexa, todos os itens trabalhados anteriormente neste

trabalho entrariam neste tópico final. Sobre esta indivisibilidade, Alfredo Bosi, ainda

no livro “Dialética da Colonização”, afirma:

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
36
A autora se apoia no conceito de ideologia criado por Marx a Engels.

! "+$!
...O intento é deixar bem clara a indivisibilidade do homem rústico, de corpo e
alma, necessidades orgânicas e necessidades morais. Essa indivisibilidade é difícil
de ser aprendida pelo observador letrado que, por não vivê-la subjetivamente,
procura recortar em partes ou em tópicos, a experiência popular, fazendo dela um
elenco de itens separados, dos quais alguns seriam materiais e outros não.
(BOSI, 1992, p. 324)

Se falar da vida comunitária e da vida política em Nazaré é justamente falar

sobre todos os outros itens anteriores já trabalhados nesta presente dissertação, a

maior dificuldade deste trabalho é fazer justamente uma síntese sobre este tema.

Como apresentar um retrato etnográfico da comunidade de Nazaré, que tente

compreender as lutas cotidianas de homens e mulheres pelas garantias de seus

direitos, lutas cercadas de magia, mitos, lendas que se apresentam no dia a dia da

comunidade, sem se utilizar de uma organização textual que divida estes itens e que

traga tanto ao leitor, quanto à pesquisadora, clareza dos pontos que surgiram ou que

foram escolhidos em encontros e conversas informais, em músicas e em entrevistas?

Como falar sobre as plantações, cheias e secas do rio e extração de castanha, sem

entrar em contato com as histórias da cobra grande e do neguinho da mata?

A tentativa, portanto, é de expor esta indivisibilidade, mas ainda com alguma

divisão. Alfredo Bosi apresenta em seu livro uma discussão das culturas populares de

forma generalizada. Seria, portanto, importante, para pesquisas futuras, uma maior

reflexão sobre como apresentar estas tramas culturais, como realizar a descrição

densa destes fenômenos, levando-se em conta as discussões de Alfredo Bosi, ou seja,

com a menor divisibilidade possível, mas que possa trazer ao leitor alguma

organização dos assuntos discutidos no decorrer da pesquisa.

Mas se a cultura está na forma de viver, de preparar a comida e comer, de

visitar e ser visitado, de adorar um Deus, de organizar a fé e a crença em curandeiros

mantendo o respeito pelos médicos, na transmissão oral das lendas e da história da

! "+%!
comunidade, nos ritmos de vida e trabalho e nas diferentes formas de manifestações

artísticas, entre tantos outros itens, vamos neste tópico tratar as partes que ainda não

foram discutidas na presente pesquisa, mas que podem ser consideradas de extrema

importância para compreender as formas de viver em Nazaré.

Podemos considerar que as famílias em Nazaré são famílias, em sua maioria,

com modelos patriarcais. É possível observar o patriarca como responsável pelas

decisões financeiras e politicas da comunidade, enquanto a função feminina é

centrada nas tarefas da casa e de cuidado com a família. Um indicativo disso pode ser

observado na própria questão da herança e divisão do trabalho anteriormente

mencionada neste trabalho, nas quais os filhos homens são herdeiros, pois irão

precisar sustentar suas mulheres e crianças, enquanto suas filhas serão sustentadas por

outros homens, seus maridos.

Não é frequente ver mulheres casadas conversando nos bares da comunidade

ou em outros locais, a não ser com seus vizinhos de casa e durante as atividades

comunitárias (como atividades na igreja, rezas, festejos e festa da melancia, cursos

organizados pela EMATER ou pela Organização Não Governamental NAPRA, que

atua há anos na região, entre outros).

É bastante comum elas mandarem presentes para as famílias amigas, como

bolos, comidas, panos de prato com desenhos feito por elas, entre outras coisas (esta

ação de trocar presentes é bastante comum entre as mulheres, mas não excluem os

homens, que também costumam fazer troca de presentes entre famílias – como com

peixes, frutas, castanhas, milhos plantados em seus terrenos e etc). Estas trocas

acontecem quase que diariamente e muitas vezes entre as mesmas famílias.

Podemos afirmar que as mulheres são as grandes responsáveis pela

organização da vida privada da família e da relação com as casas vizinhas. Os homens

! "+&!
são, na maioria da vezes, responsáveis pela vida pública familiar. Como já dito, é

importante reafirmar que esta análise, contudo, não exclui o fato de que mulheres em

algumas situações assumem o sustento da casa, plantando mandioca e outros produtos

e que homens também podem eventualmente assumir o cuidado das crianças. Ambos

os casos puderam ser observados no decorrer desta pesquisa.

Os filhos casados geralmente mudam-se, mas, muitas vezes, constroem suas

casas próximas às casas dos pais (ou da esposa ou do marido), permitindo que as

famílias se encontrem com frequência, principalmente nos momentos das refeições.

Além disso, na ausência dos pais, os parentes mais próximos, a irmã ou o irmão mais

velho, ficam responsáveis por auxiliar no cuidado das crianças menores.

Existe também, entre estas famílias, uma forte presença de ajuda mútua.

Quando um membro da família adoece, os amigos sempre se disponibilizam a ajudar.

Esta ajuda envolve levar a pessoa adoecida para sua própria casa, ou realizar visitas

diárias à casa de quem está adoecido para fazer curativos, ajudar no banho, entre

outras ações. Além disso, é comum mandarem comida preparada, pesca e produtos da

roça para a família. Estas pessoas passam de amigos para compadres e comadres e,

segundo os relatos locais, de tão amigo, se torna até família e, muitas vezes, mais

família do que quem tem seu próprio sangue (Dona Vena, Fevereiro de 2012). Fato

que pode indicar que família e parentesco nesta região não possuem o mesmo

significado.

A certeza da importância da vida em comunhão não vem só da ajuda mútua

entre vizinhos e amigos. Como falamos na parte da organização do trabalho, é comum

produtores se organizarem para trabalhar nas terras de algum homem que adoece.

Outro exemplo significativo da ajuda comunitária foi a criação de um Banco

! "+'!
Comunitário pelo professor Maciel, após uma grande cheia que resultou na destruição

de toda a plantação nas áreas de várzea.

O banco é uma história muito legal porque foi tipo uma estratégia
dele mesmo. Eu demorei para entender. Eu tinha na época uns 8, 9
anos... por aí. Teve uma cheia que foi uma das maiores. Nazaré não
tinha funcionário público. Era só pesca e agricultura, mas bem
mais agricultura. O pessoal tava ainda começando a plantar
melancia, que é o que hoje em dia dá mais grana. Eu me lembro que
banana, melancia, milho, eles plantavam muito e essa enchente
acabou com tudo. O pessoal tava meio desiludido e começaram a ir
embora. O pai começou a ficar preocupado assim... ele gostava
muito da comunidade e muito das pessoas que moravam aqui. Ele
ganhava muito bem na época. Ele era funcionário federal, né. Aí ele
pensou assim: poxa, eu vou entregar parte do meu dinheiro e fazer
um banco. E assim, ele tinha um grupo muito bom. Era um grupo
da igreja, mas que não era só da igreja, eles trabalhavam pra fora
[...]Ele pegou uma parte do dinheiro e comprou umas coisas de
mercearia e perfumaria. Ele pegava o dinheiro e comprava as
coisas e deixava o dinheiro no banco para o pessoal emprestar e
tinha uma moedinha própria que chamava guri. Tem um pessoal
que ainda tem tudo. O pessoal fazia tudo certinho. Eles foram
emprestando guri para comprar as coisas que eles precisavam,
porque a cheia destruiu tudo mesmo e não tinha como o povo ficar
aqui e não tinha de onde eles tirarem dinheiro. Então emprestavam
guri e os produtos eram baratos, aí eles podiam comprar as coisas.
Aí, conforme tudo foi melhorando, as pessoas foram pagando de
volta aos pouco e o banco fechou. Foi assim, o negócio tava indo
muito bem. Foi na época que nós tava terminando a quarta série.
Ele teve que sair para levar a gente pra estudar. Aí, como já tinha
feito o objetivo ele de ajudar as pessoas a ficarem aqui, ele fechou o
banco.
(Timaia, Fevereiro de 2013)

É preciso compreender com mais cuidado como as divisões de terras foram

feitas em Nazaré, como já apontado anteriormente. Neste pesquisa não foi possível a

compreensão detalhada de como ocorreram as divisões dos grupos que moram em

determinados espaços de casas. Porém, é possível pensar que a escolha de onde

construir as novas casas em Nazaré não é feita aleatoriamente. Assim, para qualquer

conclusão mais aprofundada, seria necessário maior investigação sobre o assunto.

! "+(!
O território da comunidade, como já dito anteriormente, é dividido por uma

ponte que, segundo os moradores locais, possibilita a locomoção nas áreas “de dentro

e de fora” da comunidade na época de cheia do rio. Porém, é possível notar grande

diferença entre as duas áreas ou, como dito por alguns dos habitantes, “bairros” da

comunidade. Esta ponte segue paralela ao igarapé e, desta forma, a parte da

comunidade que fica mais próxima do rio é chamada de “lado de fora” e a área mais

distante de “lado de dentro”, ou de “terra seca”, pois não alaga nas cheias do rio.

Ponte

Mapa do distrito de Nazaré feito pela equipe do projeto NAPRA (para mais informações
www.napra.org.br)

Foi possível observar que as diferenças das regiões está muito além da simples

proximidade com o rio. A parte de fora da comunidade é justamente a área em que

seu Nanã se estabeleceu e construiu seu barracão, além de incluir a parte da

! "+)!
comunidade que, anteriormente, pertencia ao patrão da comunidade vizinha. Desta

forma, esta foi a área ocupada inicialmente na comunidade.

Neste local existe um calçadão, que facilita o uso de carrinhos de mão para o

transporte de objetos, alimentos, entre outros. As casas, em sua maioria, possuem

água canalizada e pintura do lado de fora das paredes de madeira. Além disso,

encontram-se os principais comércios da comunidade e as famílias possuem, em

média, maior renda familiar. Está também localizada nesta região a igreja de Nossa

Senhora de Nazaré (construída ainda na época do seu Nanã), além de igrejas

evangélicas, a Unidade Básica de Saúde, a sede da EMATER e a futura sede da

administração e, segundo entrevista com Jeferson (morador local) em fevereiro de

2012, a futura sede da “Associação de produtores, moradores e amigos de Nazaré”.

Igreja do lado de fora da comunidade

Na “parte de dentro” da comunidade, as casas são em sua maioria mais

simples, sendo que muitas delas ainda não possuem sistema de encanamento e, por

! "+*!
isso, têm os banheiros do lado de fora (com o sistema de buraco negro). Existe nesta

região uma igreja católica construída principalmente pela família de Timaia, com

ajuda de amigos, como seu Manduca, por exemplo. Nesta área, encontram-se a escola

municipal e, até fevereiro de 2012, estava em processo de construção a escola

estadual de ensino médio. Encontra-se também a sede do Programa de Erradicação do

Trabalho infantil (PETI), os motores de geração de energia, o piseiro, uma grande

área para a realização de festejos e, segundo relato do Timaia, as futuras instalações

do “Instituto Minhas Raízes”.

Considero importante fazer uma breve reflexão sobre a existência do

Programa de Erradicação do Trabalho Infantil em comunidades tradicionais, como

por exemplo, em Nazaré. Se a própria tradição e a cultura popular, como dita por

Alfredo Bosi (1992), é passada nas lições aprendidas no cotidiano da vida em

comunidade e do trabalho, como a pesca, a coleta de produtos florestais e a caça, a

erradicação destas atividades feitas pelas crianças poderia, portanto, causar um

impacto nas formas de vida tradicionais. Não defendo aqui a exploração do trabalho

infantil, porém, atividades do contra turno escolar, focados apenas em questões da

educação formal, podem dificultar a transmissão das tradições.

! ""+!
Igreja do lado de dentro da comunidade

Foi possível observar que há uma divisão na organização dos eventos

realizados na comunidade entre os moradores da área de dentro e da área de fora. Isso

não exclui a presença de todos durante os eventos, além de ajudas pontuais, porém o

trabalho maior de organização e logística é separado por estes grupos. Como por

exemplo, o festejo de Junho, que é organizado, principalmente pelo Timaia, Anauá e

os integrantes do Minhas Raízes (moradores da área de dentro); enquanto, a festa da

melancia, também importante evento da comunidade, é organizado pela associação de

produtores, sendo que o presidente reside na área de fora e recebe mais ajuda das

pessoas que moram em sua volta.

Por pertencer ao distrito de Porto Velho, Nazaré tem um administrador local,

que é indicado pela prefeitura a cada quatro anos ou após sua demissão (voluntária ou

involuntária). Os moradores algumas vezes relataram que, pelo fato deste

administrador comunitário não ser votado por eles, ele não os representa. Em

contrapartida, alguns relatos indicam as dificuldades enfrentadas por este

administrador. Segundo os relatos, por ele ser indicado pela Prefeitura (que determina

sua permanência ou não em seu cargo), a possibilidade de discordância do

administrador com o que e é decidido em Porto Velho fica quase que impedida.

Existem também alguns líderes informais que são respeitados pela

comunidade. Como exemplo, o caso de Timaia e Anauá, que possuem bastante

influência e respeito dos moradores, principalmente pelos trabalhos realizados com

! """!
relação à educação formal e não formal, às manifestações artísticas e eventos

religiosos.

Ao mesmo tempo, existem intrigas e brigas por poder. A organização política

de Nazaré, junto de seus diferentes líderes (administrador, presidente da associação de

produtores, moradores e amigos, presidente da igreja católica, catequistas,

professores, entre outros) merece, sem dúvidas, uma observação mais detalhada, que

não foi possível de ser feita no tempo de duração do mestrado.

Nos percursos desta pesquisa muitas indagações sobre as disputas de poderes,

divisão de trabalho e da diferenciação entre os dois “bairros” da comunidade (como

os próprios moradores identificam) não foram respondidas. Certamente foi possível

notar que as relações políticas da comunidade são extremamente complexas e

entrelaçadas e necessitam um período maior de análise para o seu entendimento.

Com relação às questões políticas, em Abril de 2011, ao chegar em Nazaré,

pude acompanhar uma reunião organizada pelos moradores da comunidade para pedir

que fosse aberta uma sala do EJA (Educação de Jovens e Adultos) em Nazaré. Alguns

moradores haviam organizado uma lista com todos os nomes das pessoas que

gostariam de concluir seus estudos, mas que não tinham condições ou que não

queriam se mudar da comunidade. Eles levaram esta relação para o atual diretor da

escola, que se comprometeu a conversar com a diretora do ensino rural da Secretaria

Municipal de Educação de Porto Velho. O ponto mais interessante de observar nesta

reunião foi a participação das pessoas na condução da conversa. Todos falavam

livremente, respeitando o espaço e a participação do outro. As pessoas discordavam e

concordavam umas com as outras e iam discutindo os problemas da escola junto do

diretor37.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
37
Ao voltar para a comunidade em Janeiro de 2012, perguntei ao diretor o que havia acontecido com o pedido para
a secretaria de educação e ele falou que foi recusado, com a justificativa de que o governo estadual estaria

! ""#!
Dias antes deste encontro, havia acontecido na igreja da comunidade uma

reunião com um representante da Secretaria de Agricultura do município de Porto

Velho. Segundo a convocação divulgada na comunidade, era do interesse da

Secretaria saber as “demandas locais” vividas pelos moradores.

Ao iniciar a reunião, o representante da Secretaria disse querer ouvir os

produtores locais e suas demandas, contudo, em nenhum momento abriu espaço para

que as falas acontecessem livremente e, quando as pessoas da comunidade não iam de

acordo com o que ele já tinha interesse em realizar, elas eram interrompidas. Sua ideia

era a construção de uma “agroindústria familiar” para o beneficiamento do açaí. A

verba para esta implementação viria dos projetos de compensação ambiental da

barragem de Santo António.

Depois de ouvir a explicação do projeto, um produtor disse que não era do

interesse dele ter uma agroindústria no local, pois eles tinham outras necessidades

mais urgentes. Ao ouvir isso, o representante da Secretaria respondeu que caso eles

não aceitassem a agroindústria, o poço artesiano para o acesso de água potável não

seria construído. Com esta resposta, um outro produtor se levantou e disse que não

achava justo que eles só tivessem água potável caso aceitassem a agroindústria. Após

esta fala, o representante da Secretaria disse que a agroindústria era uma prioridade da

Prefeitura e que deveria acontecer e, a partir deste momento, não permitiu que

ninguém mais pudesse fazer comentários.

A diferença entre as reuniões era clara. Numa havia o encontro entre iguais,

entre cidadãos discutindo em parceria como melhorar o acesso à educação. Havia o

encontro de rostos e vozes, que juntos reconheciam o sofrimento que viviam por não

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
construindo uma escola que iria atender até o final do ensino médio, portanto não havia necessidade de investir em
um programa do EJA na localidade. Desta forma, ignorando as diferenças entre o programa de Educação de
Jovens e Adultos e o ensino médio regular.

! ""$!
poderem finalizar seus estudos, mas que unidos tentavam lutar pela garantia de seus

direitos.

No outro, havia uma figura de autoridade, que em suas palavras indicava o

caminho de ação, impunha o projeto elaborado nos gabinetes, reforçando a diferença

de classes e destruindo a dignidade dos habitantes de Nazaré que, para terem o acesso

a algo tão básico como água potável, precisariam se submeter às vontades do

dominador, que não enxerga naquelas pessoas homens e mulheres, mas sim corpos

que, com sua força de trabalho paga com salários irrisórios, vão gerar capital para o

estado e garantir assim a riqueza de poucos.

Embora seja claro o possível ganho em ter formas de beneficiar produtos

florestais não madeireiros dentro da comunidade (pois agrega valor ao produto

comercializado pelo ribeirinho), a proposta foi passada de forma vertical, não abrindo

possibilidade para o diálogo junto dos produtores, que não puderam indicar a forma e

com qual produto gostariam de trabalhar. No final da reunião, muitos dos presentes se

juntaram em pequenos grupos afirmando a recusa em aceitar a determinação do

representante da Secretaria e a importância da própria gestão do ritmo de trabalho.

Contudo, muitos ponderavam sobre os benefícios do acesso à água tratada.

Algumas pessoas, ao final da reunião diziam que precisavam da água e que,

desta forma, precisariam fazer o que fosse necessário, já que eles não poderiam arcar

com os custos da construção do poço artesiano. Pensar nisso, me faz lembrar da

semelhança com o que Simone Weil escreve em seus diário de fábrica, quando ouviu

de uma colega a seguinte frase: “É preciso ser mais conscienciosa quando se tem a

vida a ganhar” (WEIL, 1979, p. 91). O cidadão pobre, que vive na linha de frente os

problemas de uma sociedade de classes, precisa submeter seu tempo, espaço e forma

de trabalho à condições impostas por interesses alheios, pois eles precisam também se

! ""%!
preocupar com a existência básica do dia a dia. Existe uma vida a ganhar e o preço

disso, numa sociedade de classes, em muitos casos, é autorizar que o outro faça a

gerência de sua vida. Weil, ao falar sobre os impactos de não possuir o direito de

gerência do próprio tempo e espaço, afirma: Que bom seria poder depositar a alma, à

entrada, no cartão de ponto e retomá-la intacta à saída! (Simone Weil, op. Cit. P.

86)

Atualmente, com a construção da barragem e as promessas das obras de

compensação ambiental, muitos movimentos políticos têm acontecido na

comunidade. Timaia apresentou suas reflexões sobre as obras do posto de saúde,

assim como o Anauá, quanto às possíveis atividades de uma rádio comunitária, como

já citados anteriormente.

Algumas das pessoas da comunidade têm se juntado em grupos para ir até

Porto Velho e exigirem a garantia de seus direitos. Sobre isso, Jeferson, em Fevereiro

de 2012, fala:

O governador prometeu que com a construção da Santo Antônio


todas as comunidade teriam água boa para beber. Isso da água,
eles prometem faz é anos. Desde que sou menino. Você mesma viu
da outra vez que veio aqui que eu estava doente com infecção
urinária por causa da água e tive que correr para o hospital. Isso
acontece sempre e não sou só eu. Muita gente fica doente por causa
da água contaminada... A gente percebeu que sozinho não faz
diferença. Que tem que ir em grupo reclamar. Fizemos aqui na
comunidade uma comissão e fomos reclamar com o governador.
Falamos com o governador mesmo, não com outra pessoa e
cobramos isso da água. Com mais gente ele atendeu. As coisas
funcionam assim. Agora ele assinou um termo de que vai fazer...

As brigas políticas na comunidade são antigas. Seu Artêmis conta, em nossa

primeira entrevista (em março de 2011), como foi que Nazaré se tornou colégio

eleitoral:

! ""&!
Quando eu cheguei eu fiquei preocupado pela seguinte forma,
porque as coisas faltavam e ninguém sabia por onde começar a
procurar. Aí, na época de campanha eleitoral me nomearam para
ser mesário em Calama. Eu fiquei de levar o pessoal. Eram só 21
eleitores para Calama e o pessoal passou reto e deixou a gente aí
na beira. Eu fiquei revoltado com a falta de cuidado com o povo.
Eu peguei um sábado a tarde antes da próxima eleição para
governo mesmo. A eleição era dia 15 de novembro. Daí peguei
minha rabetinha e falei para a esposa que não sabia quando
voltava. Fui até o curicacas e voltei com 101 títulos. Além disso,
começamos um trabalho de alfabetizar o povo aqui, para poder
votar. Eu cheguei a Porto Velho e fui falar com os candidatos para
ajudar... Esse povo vê que tem eleitor e ajuda, querendo é votos. Ai
já me levaram no TRE e quando voltei tava garantida a urna em
Nazaré! Já trouxe a gasolina para o povo transferir o titulo para cá
e depois vir votar. É obrigatório votar, mas o povo tinha é que
gastar dinheiro com gasolina para ir até Calama. Isso trouxe
benefício para a comunidade. Porque aí tivemos saúde,
comunicação, escola melhor.

A história de Nazaré é repleta de movimentos políticos feitos em parceria

entre seus moradores. Iniciados nos finais das rezas na igreja, nos bares da

comunidade, em visitas de casa em casa, ou até mesmo em simples encontros entre

amigos.

A saída e a chegada dos barcos de linha são momentos de encontros na

comunidade. Não apenas de encontrar aqueles que chegam de outras localidades, mas

também de ir conversar com quem já estava em Nazaré, mas está esperando o barco.

As pessoas que voltam são recebidas pelos moradores que ficaram na comunidade e

as conversas acontecem atualizando o que aconteceu em Nazaré e em Porto Velho.

As pessoas trazem informações daqueles que não puderam voltar e daqueles

que se mudaram para outros locais. Os limites da comunidade e da vida comunitária

se afastam cada vez mais dos limites físicos e geográficos da região. As relações

antigas continuam se estabelecendo em Porto Velho, com as notícias que circulam e

os encontros que acontecem.

! ""'!
Como dito por John Comerford (s/d), podemos considerar que a vida

comunitária está para além da migração e da oposição rural-urbano. Para o autor,

existe uma espécie de mapeamento da comunidade produzido nas conversas que se

deslocam constantemente. Para isso, existe um quadro interpretativo relativamente

compartilhado que pressupõe conhecer anteriormente os estados das relações, o que

configura uma “comunidade moral”, pois cada um se posiciona por relação ao outro,

por meio de códigos morais comuns, que faz com que os limites da comunidade

estejam sempre “em processo”, embora existam de fato os limites geográficos.

Contudo, é possível ver em Nazaré, como indicado pelo autor em seu artigo,

que não necessariamente as famílias se encontram integralmente na localidade. Pelo

contrário, elas, muitas vezes, estão espalhadas, o que reforça a ideia de que os limites

ultrapassam aqueles meramente delimitados pelo espaço físico. As pessoas se

deslocam o tempo todo entre uma localidade e outra, deslocamentos que não são

necessariamente visitas curtas, mas podem se prologar por diferentes motivos, como

estudos, trabalho e etc.

Para o autor, “Essa ligação entre pessoas dispostas por toda uma rede de

lugares “rurais” e “urbanos” não parece ser efêmera ou temporária, sem que tampouco

seja permanente ou fixa” (Commeford, op cit, p. 9). Portanto, ao contrário de

simplificarmos estes fluxos como “processos de urbanização”, podemos considerar

que estamos frente a casas em constante movimentação, que ultrapassam a distinção

“rural-urbano” e se apropriam de diferentes espaços e possibilidades de vida, fazendo

com que estes espaços se tornem lugares morais, transformado-os em possibilidade de

acesso à renda e à educação formal, cuidado à saúde, laços afetivos, entre outros.

É comum em Nazaré os jovens se deslocaram para outras regiões, em casas de

parentes ou compadres, por exemplo, para terminarem seus estudos. Ao chegar em

! ""(!
Porto Velho, eles encontram outras pessoas de sua região de origem e, ao

movimentarem-se entre esta rede de casas, as pessoas vão construindo,

automaticamente, algo como uma comunidade interdependente, pois os padrões de

movimentação vão fazendo com que as pessoas se atualizem, troquem informações e

se apoiem no enfrentamento daquilo que é diferente ao vivido em sua comunidade de

origem.

Um destes aspectos de diferença, que pode ser considerado como de extrema

importância para a compreensão de um retrato etnográfico da comunidade de Nazaré,

é a relação de seus moradores com o tempo. Em algumas conversas com jovens da

comunidade, eles citaram a diferença entre os ritmos da comunidade e os da cidade.

Embora de extrema importância, este item foi, infelizmente, o menos desenvolvido

nesta pesquisa, devido as mudanças de foco durante o seu curso. Neste momento,

portanto, vou descrever um pouco da experiência com relação ao tempo ao chegar na

comunidade.

A diferença da relação temporal vivida entre São Paulo e Nazaré foi e tem sido

um dos pontos mais desafiadores desde a primeira vez em Rondônia, ainda na

graduação. Em meu diário de campo, em 2006, eu relato:

Chegamos em São Carlos do Jamari e uma das primeiras coisas


que eu pude notar é como o tempo é diferente. Parece que a vida em
São Paulo conta com uma pressa de existir, mas que é um existir
sem nos conhecermos, sem vivermos os momentos. Faz três dias que
chegamos e as coisas ainda não estão conforme planejadas. Mas,
na verdade, como estariam, se não nos conhecemos? Parece que a
gente quer forçar algo.... conhecer as pessoas vem com o tempo.
Sem isso, o trabalho fica com caráter opressor. Mas para mudar
isso é preciso mudar a forma toda dele. Na essência, o que é
preciso é respirar e construir uma relação que segue o ritmo real.
Mas, as vezes, esse tempo angustia. Parece que muitos de nós em
São Paulo somos criados para atingir metas e resultados, seja como
for, simplesmente fazer acontecer... isso faz com que, sem pensar,
possamos ter atitudes dominadoras.

! "")!
A diferença dos ritmos é clara e desafia o próprio corpo quando tentamos

ignorá-la. O que conhecemos como monotonia ganha outro significado na Amazônia,

aonde o tempo é vivido de forma completamente diferente da de São Paulo. As horas

na comunidade, na maioria das vezes, não são contadas por relógio, mas sim pela

força do sol. Geralmente, os dias começam mais frescos, chegando a uma temperatura

muito forte entre o meio dia e, mais ou menos, três da tarde. Desta forma, caminhar

pela comunidade próximo à hora do almoço é uma tarefa bastante difícil.

Porém, nos primeiros dias da viagem de campo, durante esta pesquisa, era

bastante angustiante ficar “sem fazer nada” após o almoço. Assim, eu insistia em sair

para caminhar pela comunidade, o que, em todas as vezes, resultava em dores de

cabeça e outros sintomas de exaustão. Ao chegar em casa, Betinho e Jaque, as pessoas

que me hospedavam, sempre riam e diziam: Sabia que logo você voltava. Com esse

sol, é preciso ficar em casa.

Outra vez, no restaurante da comunidade, um profissional da área da saúde,

que era de outro estado do país, chegou e pediu para sentar-se conosco. Ele começou

a dizer sobre um trabalho que estava desenvolvendo com alguns colegas para a

região, a fim de aumentar a colheita de produtos florestais não madeireiros e, por sua

vez, aumentar a geração de renda dos produtores locais. Em seu discurso ele falava o

quanto o dinheiro trazia dignidade para as pessoas e que era isso que o povo dali

precisava.

Após um tempo de conversa, os homens das comunidades que estavam no

local começaram a ficar impacientes, até que, em um momento, este senhor

(estrangeiro) fala: o povo daqui é preguiçoso. Eles trabalham de manhã, descansam

de tarde, para trabalhar de novo só depois. Nunca vi gente que gosta tão pouco e

! ""*!
trabalhar. Um dos produtores, então responde: olha, mas o senhor já foi carregar

castanha no sol forte para ver? Então vá, depois a gente conversa. Momentos como

este, explicitam a necessidade de conhecer de perto as razões pelas quais as pessoas se

organizam da forma como fazem. Mostra a necessidade de compreender as ações

junto dos ambientes em que estão colocadas.

Desta forma, é quase que rotineiro os encontros serem marcados “quando o sol

baixar”. As pessoas não marcam uma hora para que isso aconteça, é preciso sentir a

força do sol. Todas as entrevistas foram marcadas desta forma, as pessoas sempre

diziam: “Vá até a minha casa quando o sol tiver fraco” e quase todos continuavam: “e

então podemos merendar”. As conversas aconteceram, em sua maioria com muita

comida. Foi preciso aprender que chegar na casa das pessoas antes do sol baixar é

extremamente mal educado, pois geralmente, estas pessoas estão descansando (e

evitando o extremo calor que faz próximo ao meio dia), para retomar o ritmo de

trabalho de tarde. Não demora muito para você compreender o porquê da necessidade

de deitar na rede, na sombra, por algum tempo após almoçar.

Contudo, as diferenças dos ritmos não se dão apenas por causa do sol e das

quentes temperaturas. As conversas se alongam na beira do igarapé e as pessoas

contam umas das outras diferenciando os colegas, amigos, família e amigos que de

tão queridos, se tornam família e, junto disso, contam do tempo passado e das

amizades. Às vezes elas também contemplam o silêncio, ficam por horas observando

a natureza ou pescando, apenas na companhia do silêncio do amigo e dos sons da

floresta.

Desta forma, os primeiros dias em Nazaré durante esta pesquisa sempre foram

usados para me adaptar às diferentes concepções de tempo e de pressa. Era preciso

cuidar para que a velocidade das interações e das atividades que estamos acostumados

! "#+!
em muitas tarefas em São Paulo, não desrespeitasse e atrapalhasse a vida cotidiana

dos interlocutores. Neste sentido, as horas de viagem de barco para chegar na

comunidade acabam sempre contribuindo um pouco para a inserção em uma nova

organização temporal.

Foto tirada em uma tarde, na qual duas horas antes eu passei pelo igarapé e observei estas três pessoas
sentadas em silêncio. Depois, ao voltar para casa, elas ainda estavam ali. Não sei se passaram as duas
horas em silêncio, mas fiquei um tempo as observando do comércio em frente a este banco e elas apenas
contemplavam o igarapé, trocavam algumas palavras, mas não pareciam tentar evitar o silêncio.

! "#"!
5) Discussão final – Reflexões sobre o enraizamento na
comunidade de Nazaré

O sapo na mata se põe a contar


Avisa o canário que foge do lar
É fogo, é queimada, um pranto de dor
Do gato do mato e da flor que secou
Os peixes pulando na beira do rio
Surgiu o desespero: a represa se abriu

Sou da beira eu sou, sou filho eu sou


Da mata, do lago, do rio que secou

Minhas Raízes - Timaia

As lembranças dos depoentes sobre a formação de Nazaré alcançam o

momento em que a família de seu Nanã estabelece uma fazenda naquele território. Os

primeiros moradores chegam para formar a mão-de-obra empregada nessa grande

propriedade rural. As condições de trabalho, como vimos, é ambígua: em alguns

pontos lembram uma condição análoga à escravidão, por outro lado, o patrão é

reconhecido pelos trabalhadores como um bom empregador, sujeito preocupado com

o bem-estar e com o desenvolvimento de condições dignas de vida para os primeiros

trabalhadores da região e que garantiu, por exemplo, o acesso à educação da crianças

que ali viviam.

Essa memória coletiva da formação da comunidade nos apresenta uma

primeira pergunta interessante: quais foram os critérios de distribuição da propriedade

da terra na região amazônica? Como se formou essa estrutura social dividida entre o

grande proprietário de terras e o grupo de trabalhadores que não tiveram acesso à

propriedade, restando-lhes unicamente a possibilidade de venda da força de trabalho

aos grandes fazendeiros?

! "##!
As características da ocupação inicial do território amazônico seguiram

amplamente a tendência mais geral de ocupação do território durante o período

colonial, mas com uma diferença: a estrutura básica é a de um empreendimento

comercial baseado na grande propriedade, mas o caráter da produção é mais

extrativista do que o de uma agricultura baseada na monocultura. Dessa origem da

estrutura fundiária monopolizadora e da economia extrativista, as lembranças dos

depoentes carregam muitas marcas: a memória antiga do trabalho é a da entrada na

floresta para coleta de bens que posteriormente seriam vendidos, com o privilégio da

exclusividade, ao patrão, o dono das terras. Essa organização econômica do início da

formação de Nazaré reproduz os elementos fundamentais da organização econômica

do período colonial: a grande unidade produtora, seja agrícola, mineradora ou

extrativa, e que é a base da grande concentração de riquezas e de poder político

herdada do período colonial (PRADO JR, 2011).

O povoamento inicial da região também se amolda às contingências da

colheita florestal (PRADO JR, 2011, p.224) e este fato é repleto de consequências.

Como a organização social do trabalho está apoiada inicialmente sobre a coleta de

bens nativos, observa-se uma certa dispersão da ocupação e a atração exercida pelos

rios. Esta atração dos rios não se justifica apenas pela água em si, mas pelo caminho

que oferece (PRADO JR, 2011, p.224). Como afirma o autor:

Numa forma de atividade em que as fontes de produção se dispersam


irregularmente, sem pontos de concentração apreciável, não são elas, como se deu
na agricultura ou na mineração, que fixam o povoador; mas sim a via de
comunicação.
(PRADO JR, 2011, p.224)

Nas lembranças dos depoentes, é possível notar como a estrutura inicial de

Nazaré reproduz a tendência de concentração da terra, das riquezas e do poder

político. O passado colonial está por trás da concentração de poder nas mãos do

! "#$!
proprietário da terra. No vasto território amazônico, como se formou o contingente

populacional que não teve direito à terra e que não teve outra opção além da venda da

força de trabalho nas grandes propriedades rurais? A história de formação da

comunidade nos faz pensar que seu ponto de partida é exatamente a expressão do

desenraizamento gerado pela organização da exploração colonial. Simone Weil já

havia notado que o grande mal da colonização é o desenraizamento, pois ela priva de

seu passado os grupos oprimidos. Privando os povos de sua tradição, de seu passado,

por conseguinte, de sua alma, a colonização os reduz ao estado de matéria humana

(Weil, 1996, p.231)

Porém, logo em seguida da chegada dos trabalhadores da seringa e da solva em

Nazaré, houve a morte de seu Nanã e, então, estes homens e mulheres tiveram que se

readaptar a uma vida que não dependia das ordens de alguém. Uma nova organização

social se estabeleceu, novos líderes foram surgindo e a floresta passou a ser sua

própria dona, partilhada por todos que ali moravam.

Podemos pensar que a morte de seu Nanã e a falta de herdeiros em Nazaré pode

ter contribuído para que as pessoas pudessem construir uma nova organização social,

que passa a ser orientada pela busca da experiência de enraizamento. Todos os

elementos das culturas dominadas (tradições indígenas, religiões de matriz africanas,

entre outros), que configuram fortes traços de resistência, passam a amparar uma

busca por esta experiência. O sincretismo religioso, os aspectos culturais dos grupos

indígenas catequisados na região, todos esses elementos que configuram uma cultura

de resistência, são elementos que vão apoiar e sustentar uma busca por enraizamento.

Segundo Weil (1996), o enraizamento, que é talvez a necessidade mais importante

e desconhecida da alma humana, se dá a partir da participação real, ativa e natural na

existência de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e certos

! "#%!
pressentimentos do futuro. Lideranças informais, como professor Maciel, professor

Artêmis, seu Manduca, entre outros, começaram a trabalhar para garantir melhorias

na vida do habitantes da, então, comunidade38 de Nazaré. Podemos pensar que a

desaparição dos olhos ferozes de quem controlava o tempo e o espaço dos

trabalhadores da floresta possibilitou com que houvesse uma real participação ativa na

vida comunitária e, portanto, política em Nazaré.

A partir disso, as possibilidades de criação de espaços de contação de histórias,

música, teatro e momentos que celebrassem o passado e o vínculo com a história de

seus ancestrais foram garantidas. Foi possível a construção de uma forma de vida

comunitária que possibilitasse o engajamento político e a resistência contra a

dominação. Segundo Gonçalves Filho (2005), um processo político no qual as pessoas

deixam de se perceber como inferiores, mas sim como cidadãos que foram aviltados.

junto disso, intrigas e disputas políticas foram se formando, que são naturais em

espaços coletivos. Porém, neste momento, as pessoas não precisavam ser exiladas de

suas próprias tradições. Na realidade, a maneira como a religiosidade, as lendas e as

manifestações culturais se integram à vida comunitária podem representar uma forma

de reelaboração do passado. Este processo permite que as pessoas não repitam

docilmente informações sem relação com as experiências vividas, situação esta, que

para Simone Weil (1996) é um dos elementos responsáveis pelo desenraizamento.

Porém, este é apenas o início da história da comunidade. Nazaré está inserida

dentro de uma sociedade de classes, na qual opressão e dominação são praticadas e

valorizadas cotidianamente, desta forma, outras tantas pressões para o

desenraizamento foram colocando à prova a força das tradições.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
38
Comunidade em oposição a como a região era conhecida na época de seu Nanã: Freguesia da Boca do Furo.

! "#&!
Neste trabalho prestamos atenção as discussões a partir de uma pressão atual, a

construção do complexo hidroelétrico do rio Madeira (composto das barragens de

Santo Antônio e de Jirau), com foco na barragem de Santo Antônio, que apresenta

impactos diretos à comunidade de Nazaré. Como já dito, tanto o planejamento da

obra, quanto construção e circulação das informações com relação aos impactos

socioambientais foram omitidos e negados aos cidadãos em geral e, principalmente,

aos moradores das áreas afetadas (que possuem, teoricamente, o direito de deliberação

protegido por lei).

Neste processo, comunidades ribeirinhas foram realocadas para áreas a

quilômetros de distância do rio, além dos impactos, como já apresentado

anteriormente, nas formas de trabalho e práticas cotidianas das pessoas que vivem na

beira do rio. Houve, também, um enorme fluxo migratório nestas comunidades, que

pode ser compreendido como um outro grande problema da construção da barragem

(e, em geral, de muitas das obras que possuem grande impacto ambiental).

No caso específico de Nazaré, houve a chegada de novas pessoas, aumentando

o tamanho da população e a saída de jovens para trabalhar em Porto Velho,

diminuindo a força de trabalho local. As pessoas que chegaram na comunidade

vieram ou das localidades que tiveram que ser desapropriadas, ou que moravam em

Porto Velho e, com o aumento do custo de vida da cidade, foram “empurradas” para o

interior.

Como já citado neste trabalho, existem autores que discutem as motivações

para a construção destas barragens (Santo Antônio e Jirau) e que afirmam que o

processo de decisão desta obra envolveu muito mais interesses políticos e econômicos

nas alianças formadas entre o governo brasileiro, grandes construtoras e outros

empreendimentos de navegação, do que o próprio potencial energético do rio

! "#'!
Madeira. Não seria visível, nas motivações que levaram à construção da barragem e

nas formas politicas que sustentam estas decisões, o prosseguimento e até mesmo o

desenvolvimento de uma nova forma de colonização? Será que a história de Nazaré,

até certo ponto, não representa de forma emblemática a luta entre a aspiração pelo

enraizamento e as constantes reatualizações das formas de colonização?

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