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VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM

ISSN 2177-9866 MESTRADO


VI SELINFRAN
SEMINÁRIO DE PESQUISA
EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

LINGUÍSTICA DO TEXTO E DO DISCURSO


Movimentos do Sentido

ANAIS

18 e 19 de setembro de 2015

FRANCA - SP

ISSN 2177-9864
ANAIS

VI SELINFRAN
SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN
LINGUÍSTICA DO TEXTO E DO DISCURSO: MOVIMENTOS DO SENTIDO
ISSN 2177-9864
Setembro de 2015

ORGANIZAÇÃO DO VOLUME: Camila de Araújo Beraldo Ludovice, Fernando Aparecido


Ferreira, Juscelino Pernambuco.

PROJETO GRÁFICO E EDITORAÇÃO: Núcleo de Design - UNIFRAN

PARECERISTAS
Prof. Dr. Jean Cristtus Portela - UNESP/Araraquara
Profa. Dra. Margibel Adriana de Oliveira - FATEC-SP
Profa. Dra. Renata Coelho Marchezan- UNESP/Araraquara
Profa. Dra. Maria Cecília Souza-e-Silva - LAEL/PUC-SP
Profa. Dra. Joana Plaza Pinto - UFG

AVALIADORES DE PAINÉIS
Arguidores: Prof. Me. Acir de Matos Gomes, Profa. Ma. Ana Cláudia Ferreira da Silveira, Prof. Me. Eval-
do Baviera, Profa. Dra. Marilurdes Cruz Borges, Prof. Ma. Renata Cristina Duarte, Profa. Ma. Rosana
Letícia Pugina
COMISSÃO ORGANIZADORA
Profa. Dra. Camila de Araújo Beraldo Ludovice
Prof. Dr. Fernando Aparecido Ferreira
Profa. Dra. Glenda Cristina Valim de Melo (colaboradora - UNIRIO)
Prof. Dr. Juscelino Pernambuco
Profa. Dra. Luciana Carmona Garcia Manzano
Profa. Dra. Maria Flávia Figueiredo
Profa. Dra. Maria Sílvia Rodrigues-Alves (colaboradora – bolsista PNPD CAPES)
Profa. Dra. Marília Giselda Rodrigues
Profa. Dra. Naiá Sadi Câmara
Profa. Dra. Vera Lúcia Rodella Abriata

MONITORES
Alan Ribeiro Radi, Augusta Cássia Schwtner David, Caio Gomes Ribeiro, Eduardo Zenon de Faria e
S. Gouveia, Farnei Santos, Graziele de Almeida Ferreira, Jessica Cristina Celestino, Juliana Tito Rosa
Ferreira, Luiz Henrique Pereira, Rita de Cássia Devós e Silva, Rodrigo Ziviani, Tarcia Caires Saad

REALIZAÇÃO: Universidade de Franca - UNIFRAN


PROGRAMA DE MESTRADO EM LINGUÍSTICA
APRESENTAÇÃO

O programa de Mestrado em Linguística da Uni- trandos sobre o desenvolvimento de suas pesquisas,


fran, com o objetivo de divulgar e promover as pes- mostrando-lhes ainda outros possíveis caminhos de
quisas de seus discentes e manter intercâmbio com realização de seus projetos. Os mestrandos que se
pesquisadores de outras Universidades, criou o seu dedicam às pesquisas sobre as reflexões e desco-
já consagrado “Seminário de Pesquisa em Linguísti- bertas de Bakhtin e seu Círculo, que podem servir
ca da Unifran” (SELINFRAN), que está em sua sexta não só aos estudos do discurso mas também à área
edição. Para promover o intercâmbio entre pesquisa- da configuração, organização e compreensão ativa
dores da área de Linguística, além de conferências e e criadora do texto nos seus mais diversos gêneros,
mesas-redondas, acontece no Seminário a realização puderam contar com a contribuição valiosa da Pro-
de sessões de apresentação de painéis destinados fa. Dra. Renata Coelho Marchezan, da UNESP/Arara-
ao debate de projetos de alunos do primeiro ano do quara. As pesquisas dos mestrandos em Análise do
mestrado que estejam na fase inicial de desenvol- Discurso contaram com a contribuição da Profa. Dra.
vimento de suas pesquisas. E também a seção de Maria Cecília Souza-e-Silva, do LAEL/PUC-SP, que
comunicação oral destinada ao debate das pesqui- dialogou com cada um deles sobre seus projetos,
sas em andamento dos alunos do segundo ano do dando-lhes ricas sugestões para o desenvolvimento
mestrado, que se encontram em fase de exame de de seus trabalhos. Para a área de Pragmática, a con-
qualificação. vidada foi a Profa. Dra. Joana Plaza Pinto, da UFG
que arguiu e refletiu com os mestrandos dessa área
Neste ano o SELINFRAN busca evidenciar o pa-
de estudos sobre o estágio de suas pesquisas e apre-
norama das pesquisas realizadas atualmente no Pro-
sentou a eles sugestões importantes para a continui-
grama, apontando, sobretudo, para a pluralidade dos
dade de seus trabalhos.
gêneros estudados, que incluem obras literárias, tex-
tos midiáticos, verbais ou sincréticos bem como prá- Para a arguição dos painéis dos alunos ingressan-
ticas didáticas, práticas de leitura e de escrita e seus tes contamos com a participação dos egressos do
diferentes suportes e as novas tecnologias. programa Acir de Matos Gomes, Ana Cláudia Ferrei-
ra da Silveira, Evaldo Baviera, Marilurdes Cruz Bor-
Existe a preocupação dos organizadores deste
ges, Renata Cristina Duarte, e Rosana Letícia Pugina.
evento científico em dialogar com outros pesqui-
sadores de instituições já consolidadas no cenário As duas linhas de pesquisa do programa do Mes-
da Linguística nacional, inseridos em Programas de trado em Linguística da Unifran: Discurso: sentido,
Pós-graduação tradicionais o que, além de forta- comunicação e representação e Processos e práticas
lecer a pesquisa que se realiza no nosso Mestrado textuais: caracterizações e abordagens teóricas, bem
em Linguística, permite também que os mestrandos como os dois Grupos de Pesquisas: GTEDI (Grupo
ampliem suas possibilidades, podendo assim dar de Estudos do Texto e do Discurso) e Grupo de Pes-
continuidade a seus estudos e ao ensino em outros quisa em Argumentação e Retórica (PARE), consti-
centros de pesquisa. Dessa maneira, o SELINFRAN tuídos por discentes e docentes do Programa, são
cumpre um segundo objetivo, o de dar espaço para contemplados nos textos destes Anais do VI SELIN-
o florescimento de novas pesquisas e parcerias com FRAN e travam um interessante diálogo pela apro-
outras instituições. ximação de suas reflexões que se concentram em
uma incursão pelos diferentes caminhos do texto e
Esta edição do SELINFRAN contou com a pre-
do discurso e suas possíveis leituras. Nestes Anais, o
sença de professores arguidores de diferentes e con-
leitor se defrontará com os trabalhos de nossos mes-
sagradas universidades brasileiras, sendo eles: Prof.
trandos em fase de redação de suas dissertações a
Dr. Jean Cristtus Portela, da UNESP/Araraquara, que
serem apresentadas em exame geral de Qualificação
debateu e deu sugestões para as pesquisas dos alu-
para o Mestrado.
nos de Semiótica e ainda proferiu a brilhante con-
ferência intitulada “Texto e discurso: questões teó- Franca, setembro de 2015
rico-metodológicas”. Para os projetos de pesquisas Profa. Dra. Camila de Araújo Beraldo
da área de Retórica e Linguística do Texto contamos Ludovice
com a presença da Profa. Dra. Margibel Adriana de Prof. Dr. Fernando Aparecido Ferreira
Oliveira, da FATEC-SP, a qual dialogou com os mes- Prof. Dr. Juscelino Pernambuco
TEXTOS

7 A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO OPERADOR DE NE-


GÓCIOS PELO DISCURSO DA REVISTA HSM MANA-
GEMENT
125 AS RELAÇÕES ENTRE PLANO DE EXPRESSÃO
E PLANO DE CONTEÚDO EM “POEMA”, DE
MANOEL DE BARROS
Adilson do Nascimento Gomes Jéssica Cristina Celestino
Luciana Carmona Garcia Manzano Vera Lucia Rodella Abriata

17 AS PERFORMANCES DISCURSIVAS DE GÊNERO


E LIDERANÇA NA REPORTAGEM DA REVISTA
EXAME SOBRE COTAS PARA EXECUTIVAS NA
139 NARRATIVA E INTERAÇÕES EM ASSASSIN´S
CREED REVELATIONS
Jessica de Amorim Barbosa
CÚPULA DAS EMPRESAS
Naiá Sadi Câmara
Adriana Faria de Alcântara Dias
Glenda Cristina Valim de Melo

28 A POLÊMICA COMO INTERINCOMPREENSÃO


REGRADA: AS IGREJAS DO ATEU OSCAR NIE-
152 A TRAJETÓRIA TEXTUAL E AS
ENTEXTUALIZAÇÕES DE DUAS CAMISETAS
ESPORTIVAS EM TEMPOS DE COPA DO MUNDO
MEYER Juliana Tito Rosa Ferreira
Aline Monteiro Campos Garcia Glenda Cristina Valim de Melo
Marília Giselda Rodrigues

38 DO LIVRO PARA OS QUADRINHOS


– UM ESTUDO DO PROCESSO DE
165 CARNAVAL NA REPÚBLICA DO MEDO (1968-
1979): IRONIA E PARÓDIA EM LETRAS DO
CANCIONEIRO DE GONZAGUINHA - UM
RETEXTUALIZAÇÃO NA GRAPHIC NOVEL “O ESTUDO BAKHTINIANO
ALIENISTA”, DE FÁBIO MOON E GABRIEL BÁ Rafael Menari Archanjo
Ana Sandra Gonçalves Faccini Camila de Araújo Beraldo Ludovice
Fernando Aparecido Ferreira

49 DO MÍSTICO AO POLÍTICO: UMA LEITURA


BAKHTINIANA DO ROMANCE QUARUP DE
ANTONIO CALLADO
178 METODOLOGIAS DO ENSINO DE LÍNGUA
ESTRANGEIRA – INGLÊS: UM ESTUDO
DO PROGRAMA TELEVISIVO EDUCATIVO
Andre Plez Silva TELECURSO
Juscelino Pernambuco Rita de Cassia Carvalho
Naiá Sadi Câmara

63 UM AUTOR E SUAS FACES: A BUSCA DA


CONSTITUIÇÃO DO ETHOS RETÓRICO EM
CONTOS DE MACHADO DE ASSIS
Andréia Carla Melegati Rodrigues Alves 193 PERFORMANCES IDENTITÁRIAS DE RAÇA E
GÊNERO E AS ORDENS DE INDEXICALIDADE
NO DESABAFO DE UMA MULHER NEGRA NO
Maria Flávia Figueiredo
YOUTUBE
Romilda Pinto da Silveira

76 REGIMES DE INTERAÇÃO NO PROGRAMA CAS-


TELO RÁ-TIM-BUM
Carolina Mazzaron de Castro
Glenda Cristina Valim de Melo

206
Naiá Sadi Câmara AULAS DE INGLÊS ONLINE: O ETHOS
RETÓRICO DO PROFESSOR

87 MEDIADORES DA FÉ: ANÁLISE DO ETHOS DE


PREGADORES
Daniele Giacomo Eleutério
Stelamaris Dias Milhim Van Doren
Maria Flávia Figueiredo

Maria Flávia Figueiredo

101 “SOMOS TODOS MACACOS”: A TRAJETÓRIA


TEXTUAL E ENTEXTUALIZAÇÃO DO SLOGAN
216 AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NA PRIMEIRA
PROPAGANDA ELEITORAL DE DILMA
ROUSSEFF EM 2014
NA MIDIA ONLINE Talita Cristina Bartolomeu
Erika Pereira Vilela Camila de Araújo Beraldo Ludovice
Glenda Cristina Valim de Melo

114 O LUGAR DA ARTE: UMA ANÁLISE RETÓRICA


DO DISCURSO VERBO-VISUAL DO ARTISTA
229 OS POSTS E “A VOZ SOCIAL” DA JUVENTUDE:
POSICIONAMENTOS INTERACIONAIS E
ORDENS DE INDEXICALIDADE DE GÊNERO E
PLÁSTICO NELSON LEIRNER SEXUALIDADE NO BLOG “INTEGRA”
Fabiola Gonçalves Giraldi Valeria de Rezende Pereira
Fernando Aparecido Ferreira Glenda Cristina Valim de Melo
SELINFRAN
A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO OPERADOR DE NEGÓCIOS PELO
DISCURSO DA REVISTA HSM MANAGEMENT
Adilson do Nascimento GOMES
Luciana Carmona Garcia MANZANO

RESUMO
A globalização e o avanço nas tecnologias de informação são propulsores da-
reconfiguração dos modelos corporativos ao redor do mundo. Em função de-
les, os acordos financeiros e as demandas existentes em escala internacional
alteraram as negociações e as práticas corporativas para atender às demandas
do mercado globalizado. À luz das reflexões de Michel Foucault, serão obser-
vados, na revista HSM Management, os processos discursivos que caracterizam
o executivo no mundo corporativo e o constroem como “novo líder”. Conside-
rando o lugar institucional que a revista ocupa no espaço social e os discursos
representantes do discurso corporativo que são postos em circulação na mídia,
a revista constrói um sujeito executivo de negócios desejado para a contempo-
raneidade.
PALAVRAS-CHAVE: Análise do discurso; mundo corporativo; sujeito; prática
discursiva.
ABSTRACT
Globalization and the progress of information technology are drivers of busi- 7
ness models reconfiguration around the world. Due to them, financial arrege-

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ments and the existing demands on an international level changed negotiations
and business practices to meet the demands of the globalized market. In light
of the reflections of Michel Foucault, it will be observed in HSM management
magazine, the discursive process that caracterize the executive in the corpora-
te world and built it as “new leader”. Considering the institutional place the ma-
gazine occupies in the speeches, representatives of corporate. Speech which
are put into media circulation the magazine builds a business executive subject
desired to contemporaneity.
KEYWORDS: Discourse analysis; corporate world; subject; discursive practi-
ce.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO corporativo atual. Considerando


o lugar institucional que ocupa
A globalização, que se configura
no espaço social e, também, que
“ [...] pela intensificação em escala
esses discursos são consumidos
mundial de fluxos econômicos fi-
por um público que se orienta,
nanceiros, culturais, religiosos, as-
profissionalmente, por essas leituras
sociativos e reivindicatórios [...]”
que são colocadas em circulação
(MODESTO, 2006, p. 1), alterou as
pela revista, ela constrói um sujeito
práticas sociais dentro dos escritó-
executivo de negócios desejado e
rios ao redor do mundo. Os acordos
necessário, discursivamente, para a
financeiros e as demandas existen-
contemporaneidade.
tes em escala internacional alteram
o formato das negociações, das prá-
ticas sociais e discursivas e do co- OBJETIVOS
tidiano corporativo para atender às Esta pesquisa objetiva: observar
demandas do mercado globalizado os processos de constituição do
e altamente competitivo. sujeito executivo, operador de
O tratamento das informações negócios, por meio do linguístico e
que circulam no mundo, de forma do imagético, verificando como os
quase instantânea, também altera discursos existentes na mídia sobre
as relações no mundo corporativo. o espaço social das corporações, na
O apagamento geográfico das fron- atualidade, estruturam um modelo
teirasmercadológicas, promovido de executivo ideal para o mercado;
pela globalização, a diminuição das verificar como esse profissional se
distâncias e o acesso mais rápido à constrói por meio desses discursos
informação modificaram sensivel- assumindo práticas sociais que o
mente as relações entre povos, go- constituem. Espera-se, com esta
8 vernos e afetaram significativamen- pesquisa, que se insere no campo
te as companhias. dos estudos discursivos, ampliar
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

o entendimento das coerções e


Para perceber as questões prescrições formais e não formais
pertinentes à constituição do sujeito que constituem parte das práticas
operador de negócios, que está discursivas que norteiam o trabalho
no centro dessas alterações, serão do executivo de negócios no mundo
observados nos textos veinculados corporativo na contemporaneidade.
pela revista HSM Management,
especializada em gestão
empresarial e formação de gestores, ARCABOUÇO TEÓRICO
o modo como ocorrem os processos Os enunciados irrompem a partir
discursivos que caracterizam de coerções sociais e históricas e
o sujeito executivo no mundo se (re)atualizam, emergindo em
SELINFRAN
diferentes momentos históricos, o problema de seus próprios
ora retornando inalterados, ora limites, de seus cortes, de
retornando modificados, pois “os suas transformações, dos
enunciados, diferentes em sua modos específicos de sua
forma, dispersos no tempo, formam temporalidade. (FOUCAULT,
um conjunto quando se referem 2008, p. 132-133).
a um único e mesmo objeto” Esse processo de transposição
(FOUCAULT, 2008, p. 36). ou de fixação de enunciados,
ao emergir dentro de uma
Esses enunciados trabalham
determinada formação discursiva,
de forma a contribuir com o
trata de constituir um “indivíduo
processo de subjetivação do
moderno, produto de um saber e
sujeito, levando-o a internalizar
resultado das relações de poder,
determinados discursos. Fernandes
marcado pela docilidade e utilidade
(2012) afirma que Foucault (2015)
que justificam o processo de sua
se mostra “interessado em proceder
constituição” (FONSECA, 2011, p.
a uma análise visando a explicitar
a constituição do sujeito pelos 72), constituindo esse indivíduo
discursos, na trama da história” em um sujeito dócil politicamente
(p. 52). O sujeito, deste modo, é e útil economicamente.
histórico, produzido em diferentes Os discursos presentes nos
períodos históricos, constituído enunciados tratam de enquadrar
de formas diferentes ao longo o sujeito dentro de um perfil
do tempo, ou, dizendo de outro esperado, desejado e aceitável para
modo, o sujeito é produto de uma a sociedade em que está inserido.
determinada época.
Para Foucault (2008, p. 118-
Sendo o sujeito produto do 119), “O enunciado, ao mesmo
processo histórico e constituído tempo em que surge em sua 9
pelos discursos de determinada materialidade, aparece como um

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


época, compreendemos que status, entra em redes, se coloca em
o sujeito se constrói no e pelo campos de utilização, se oferece
discurso, já que o discurso também a transferências e a modificações
é histórico e: possíveis, se integra em operações
[...] é constituído de um número em estratégias onde sua identidade
limitado de enunciados para se mantém ou se apaga”.
os quais podemos definir um
Quando da constituição do
conjunto de condições de
sujeito, nos processos disciplinares
existência [...] é de parte a parte
histórico – fragmento de história, que buscam tornar o homem
unidade e descontinuidade na dócil e útil economicamente, os
própria história, que coloca enunciados desempenham um
SELINFRAN

papel de construtor de práticas com textos teóricos da Análise


sociais, resultado da constituição do Discurso e com as reflexões,
do sujeito por meio da linguagem. nucleares para esta pesquisa, de
Os discursos tratam de enquadrar o Michel Foucault para compreender a
sujeito dentro de um perfil esperado constituição do sujeito operador de
e aceitável para a sociedade em negócios na contemporaneidade.
que vive e em que está inserido.
Michel Foucault, em “O sujeito DESCRIÇÃO E ANÁLISE PILOTO
e o poder” (1995, p.231), afirma DO CORPUS
que o objetivo central de sua
obra era “criar uma história dos A revista HSM Management
diferentes modos pelos quais, em é uma publicação bimestral da
nossa cultura, os seres humanos editora HSM destinada à gestão
tornaram-se sujeitos: empresarial e tenta, através
de seu discurso, formatar um
[...] desse modo, diremos que modelo ideal de executivo para
não se trata de transmissãode a contemporaneidade. Por meio
informação apenas, pois, no
de discursos que coadunam com
funcionamento da linguagem,
o momento sócio histórico da
que põe em relação sujeitos e
sentidos afetados pela língua e
economia mundial e com as novas
pela historia, temos um complexo demandas sociais e profissionais
processo de constituição desses dentro dos escritórios das grandes
sujeitos e produção de sentidos empresas, busca construir o “novo
(ORLANDI, 2000, p 21). líder” em resposta aos anseios
do mercado em relação a esses
profissionais.
METODOLOGIA
10 No ano de 2014, entre as edições
Os procedimentos metodológicos
103 e 107, e 2015, na edição 108, a
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

adotados nesta pesquisa centram-


revista se intitulava a “revista do
se no inventário bibliográfico da
novo líder” e buscou, em suas
Análise do Discurso e de textos de
reportagens, transmitir um discurso
circulação e interesse no mundo
de construção desse “novo líder”
dos negócios. Foram selecionadas
demonstrando, na sessão de
reportagens da sessão “Liderança
Liderança e pessoas, reportagens
e pessoas” da Revista HSM
com temas contemporâneos que
Management, de 2014, período em
objetivam construir esse líder
que a revista se intitulava a “Revista
com base na observação das
do Novo líder”. Para proceder
características sociais que emergem
à análise, a pesquisa irá contar
dentro das empresas na atualidade.
SELINFRAN
Em uma análise inicial, os
discursos da revista HSM constroem
um modelo de executivo ideal para
as demandas do mundo corporativo
na atualidade.
A formatação ou construção de
um executivo ideal para o mundo
corporativo na contemporaneidade
permeia vários espaços da
publicação. Esse processo
de constituição se percebe,
inicialmente, quando a editora
elenca como seu principal produto a
Educação Executiva e, através desse
mote, faz emergir no conteúdo de
suas reportagens (nos enunciados
linguísticos e imagéticos)
microelementos que trabalham de Figura 1 - Capa da revista HSM – Dossiê Educação
modo a criar um efeito de sentido Executiva, n° 107. 2014.
de construção de um “novo líder”.
A capa, como se pode observar
O caráter educacional da revista na figura 1 está composta de forma
é reforçado na edição 108 que a criar no leitor efeitos de sentido
demonstra o foco na formatação, que remetem ao período escolar
capacitação e por vezes de pelos recursos visuais empregados
transformação do executivo na constituição da imagem. A capa
contemporâneo presente nos traz o desenho de um homem de 11
artigos da revista HSM Management perfil, desenhado e colorido a lápis

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


que segue a mesma linha editorial de cor e, possivelmente giz de cera
da empresa. Essa característica e colagens de jornal em um fundo
figura de forma bastante explícita na branco.
capa da edição 107, que traz como Ela constrói efeitos de sentido
matéria de capa o dossiê: “Educação que coadunam com a palavra
executiva – Abordagens inovadoras “educação” quando a imagem é
farão com que os gestores aprendam formada a partir de elementos
a liderar, empreender e lidar com a escolares, a forma como a capa está
incerteza”. constituída (colorida) e as colagens
de jornal, reforçando um efeito de
SELINFRAN

sentido de um trabalho escolar educacional. O lápis de colorir,


composto por técnicas diferentes. as colagens de jornal e o papel
A observação da imagem branco de fundo imprimem a
isoladamente poderia refutar a imagem de um executivo que se
ideia presente na reportagem (re)constrói, visto que os termos
de capa: “Educação Executiva presentes nos anéis que circulam o
– Abordagens inovadoras farão globo trazem temas e expressões
com que os gestores aprendam do universo corporativo. A união
a liderar, empreender e enfrentar dessas expressões às educacionais
a incerteza”, porém o enunciado nos dá a ideia de continuidade
linguístico se apoia no visual e nas da construção desse profissional,
colagens de jornal, para completar o que sugere a inscrição sobre o
o efeito de sentido que o enunciado nome da revista: a revista do novo
faz emergir. líder, ou seja, um líder reatualizado.
A capa, através desse discurso
O homem tem o seu olhar
que busca constituir um profissional
direcionado para o globo que
ideal para o mundo corporativo
segura, que por sua vez está
contemporâneo, coloca os
envolvido por anéis, formados por
indivíduos em contato com a
colagens, que trazem inscrições
discursivização de práticas sociais
como: Novas tecnologias,
e discursivas do executivo atual,
experiências práticas, amplo
demonstrando que a publicação
repertório, ou seja, com palavras
favorece o leitor neste processo de
e expressões relacionadas com o
atualização que a revista se propõe,
ambiente corporativo. Expressões
sem que o leitor perceba que
relacionadas ao ambiente escolar
ele está prestes a ser formatado
como: professor, ser, saber,
12 de acordo com os discursos que
ambientes de aprendizado, prática
a revista julga, desde o lugar
docente, entre outros, compõem
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

institucional que ocupa, serem as


a imagem e reforçam a ideia da
mais adequadas.
construção desse executivo em
bases sólidas que aliam técnicas, A capa da edição nº 107, assim
habilidades e conceitos diversos. como as demais se configuram
como a identidade discursiva da
A imagem do homem nos remete
revista e, consequentemente, da
à figura do executivo, visto que a
empresa. É nesta direção que
revista está direcionada para este
os discursos da/na revista HSM
público.
Management constroem um
Nota-se que a revista constrói o modelo de executivo ideal para as
seu executivo, novo líder, a partir demandas do mundo corporativo
de elementos diversos e pelo viés na atualidade. Um líder focado nas
SELINFRAN
constantes alterações de mercado, mas que a reportagem faz emergir
lincado1 com as inconstâncias da neste momento de constituição
economia mundial e atento às como alguém com “capacidade
alterações sócio-históricas. de fazer diagnóstico, resolução
A reportagem “A vez dos de problemas e maior equilíbrio
veteranos está chegando?”, emocional”, como percebemos no
divulgada na edição número 106 de excerto:
2014, discursiviza por meio de um O pior é que deixam ir embora
questionamento inicial a presença um profissional que elas mesmas
do profissional idoso no mercado reconhecem como altamente
de trabalho. O discurso constrói valioso. Cerca de 90% das
organizações no País acreditam
um perfil de idoso de acordo
que os “veteranos” possuem mais
com as verdades deste tempo: capacidade de fazer diagnóstico
essas verdades estabelecem que e resolver problemas do que os
o idoso contemporâneo teve sua outros, além de maior equilíbrio
configuração social alterada. emocional (ANAZ, 2014, p. 108).
Por viver mais e melhor, do A constituição desse sujeito na
discurso da reportagem, emergem reportagem é dupla. Busca constituir
efeitos de sentido de que esse o sujeito idoso a permanecer mais
idoso ainda tem muito a oferecer tempo no mercado de trabalho
com o seu trabalho, pois vive elencando qualidades adquiridas
mais, melhor e não sofre os efeitos ao longo da vida e o empregador
da idade como anteriormente. para que retenha esse profissional
A valorização desse idoso como por mais tempo na empresa, como
“veterano”, desloca-o de um lugar percebemos na figura 3:
constituído historicamente como As empresas deveriam estar
“idoso” cansado, ultrapassado e contratando mais profissionais
esperando a aposentadoria, por já veteranos, porque seu 13
ter contribuído com a força do seu desempenho no trabalho é melhor

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trabalho para a construção do país, do que odos trabalhadores
mais jovens em praticamente
e o coloca em um novo lugar: o
todas as dimensões”, observa
lugar do “veterano” que, de acordo Peter Cappelli, professor
com as necessidades históricas daWhartonSchool, em entrevista
desse momento, é um sujeito que o a HSM Management(ANAZ, 2014,
artigo constitui como alguém com p. 108, grifo no original).
capacidades que poucos enxergam, Os enunciados inserem
1 A expressão “estar lincado com” é sintomática dessa forma de cons- o executivo no centro das
tituição do sujeito de negócios: um sujeito que incorpora um modo de
ser múltiplo e multifacetado, de modo análogo ao funcionamento da transformações históricas e sociais.
internet. Do mesmo modo, como será visto adiante, o uso do verbo Faz com que o olhar desse operador
“formatar” também coloca esse sujeito num universo de dados e en-
grenagens próprias da computação. de negócios não fique preso
SELINFRAN

apenas a questões burocráticas e lidar com “problemas do que outros,


financeiras dentro dos escritórios. além de maior equilíbrio emocional”.
O discurso busca inserir o executivo Qualidades e características que se
em situações que emergem na conseguem, como o vinho, somente
sociedade e que, aos poucos, vão com o passar do tempo, com a
emergindo também nos espaços maturidade.
sociais onde os indivíduos circulam Verifica-se assim no discurso um
como sujeitos profissionais. sujeito já constituído e cristalizado
A imagem que abre o artigo que emerge ao longo do artigo, o
traz uma garrafa de vinho que sujeito “velho” que se desmotiva e
enche uma taça (Figura 2). Essa perde o comprometimento quando
imagem trabalha juntamente com já pode se aposentar. A reportagem
os enunciados linguísticos na resgata discursos sedimentados
constituição dos sentidos, quando sobre os mais “velhos” para assim,
remontam à ideia de que o melhor constituí-lo como novo sujeito,
momento para consumir o vinho como “veterano”, pois tenta rejeitar a
é na sua maturidade, quando seu imagem que se tem do sujeito velho
sabor e fragrância são muito mais na sociedade para (re)constituir a
aprazíveis. partir desse discurso discordante,
na atualidade, um novo sujeito idoso
no mercado de trabalho.
Desta forma o discurso, através
dos enunciados cristalizados
que emergem no artigo, vão
constituindo o sujeito “veterano”
colocado sempre em oposição
14
ao sujeito “velho”. Esse discurso
já formado e carregado de (pré)
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

conceitos, acaba por caracterizar e


colocar em foco as características
que a sociedade necessita no
momento, constituindo-o a partir
das singularidades desse discurso
cristalizado.
Figura 2 – Reportagem: “A vez dos veteranos está A discursivização do tema traz
chegando?”(ANAZ, 2014, p. 107) à tona a constituição do sujeito
O “velho” que se (re)configura desde dois momentos históricos
no mundo do trabalho está, na sua do profissional com mais de 50
maturidade, muito mais apto para anos: aquele que estava presente
SELINFRAN
no mercado de trabalho esperando encontra maior aderência, do alto
ansioso pela aposentadoria e a deseu lugar institucional para dizer
constituição do sujeito que, ainda o que diz e por estar amparada por
jovem para os parâmetros atuais uma instituição.
de expectativa de vida, ainda tem
muito o que oferecer à sociedade e Segundo Fernandes (2012, p. 52)
à empresa. Foucault se mostra “interessado em
proceder a uma análise visando a
O sujeito da reportagem, se explicitar a constituição do sujeito
constitui pela linguagem. Ele é pelos discursos, na trama da história”
criado pela linguagem e a linguagem o que nos leva a compreender que o
faz com que esse sujeito “idoso” sujeito é produzido pelos discursos
que já vem em um processo de (re) que permeiam a sociedade e que
significação, de (re)constituição de estes discursos constroem sujeitos
sua situação de idoso, (re)configure- de um determinado tempo, ou seja,
se em diversos espaços onde está sujeitos diferentes para diferentes
inserido. Brandão (2013, p. 46-47) momentos históricos.
explica que:
Neste momento histórico em
Essa interpelação ideológica que a expectativa de vida se
consiste em fazer com que
amplia, o sintagma “novo” permeia
cada indivíduo (sem que ele
tome consciência disso, mas vários momentos da revista, seja
ao contrário, tenha a impressão quando os enunciados elencam o
de que é senhor de sua própria indivíduo “novo”, coadunando-se
vontade) seja levado a ocupar com as posturas que devem ser
seu lugar em um dos grupos alteradas de acordo com as “novas”
ou classes de uma determinada demandas que a historicidade
formação social. exige, seja nos momentos em que, 15
Esse discurso sobre o novo idoso por meio dos discursos faz emergir

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


no mercado de trabalho é aceito efeitos de sentido do “novo” como
com maior aderência, pois faz emergir nesta reportagem sobre
[...] o discurso é o espaço em o idoso apresentando um “novo”
que saber e poder se articulam, idoso que está (re)configurado
pois quem fala, fala de algum pelos discursos que permeiam a
lugar, a partir de um direito
sociedade e agora os que permeiam
reconhecido institucionalmente.
Esse discurso que passa por
os ambientes de trabalho buscando
verdadeiro, que veicula saber (o constituir o sujeito “idoso” e o
saber institucional) é gerador de sujeito empregador das qualidades
poder. (BRANDÃO, 2013, p. 37) e ganhos de se manter o idoso
no mercado de trabalho por mais
A revista HSM Management então
tempo.
se coloca como quem de direito
SELINFRAN

CONSIDERAÇÕES FINAIS Todo discurso reserva uma


posição ao sujeito que precisa
O percurso inicial da pesquisa qualificar-se para ocupá-la.
indica que as coerções formais O grau de facilidade desta
e informais que sofre o sujeito ocupação varia, necessitando de
executivo, em momento de todo um ritual, modos e espaços
constituição e (re)constituição, de circulação daquele que fala.
estão presentes além do ambiente O fato de haver publicações e
divulgações amplas do saber não
empresarial. Publicações, cada
nos livra de sistemas institucionais
vez mais especializadas, como é o normatizantes. (ARAUJO, 2008,
caso do corpus selecionado, que se p.71)
configura como um representante
do discurso corporativo, tratam de Esses discursos presentes
compor o conjunto de materialidades em diversos veículos e que são
que impelem o profissional operador disponibilizados em postos em
de negócios junto com os avanços circulação pela revista HSM
tecnológicos, científicos, culturais e normatizam um modelo de executivo
religiosos nos quais esse profissional ideal para este momento sócio-
está inserido. Isso porque, segundo histórico, ou seja, um momento
Araújo (2008): de acirrada competitividade,
de avanços tecnológicos e de
comunicação.

REFERÊNCIAS
ANAZ, S. “A vez dos veteranos está chegando?”.HSM Management. São Paulo, n.106, p. 106-112, set/out.
2014.
16
ARAUJO, I. L. Foucault e a crítica do sujeito. Curitiba: Editora UFPR, 2008.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

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FONSECA, M.A. Michel Foucault e a constituição do sujeito. São Paulo: Educ, 2011.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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linguística. Revista Eletrônica do Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto Brasileiro de Direito
Público, n° 7, ago/set/out de 2006. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br. Acesso em:
18 de abril de 2015.
ORLANDI, E. P. Análise de discurso. Campinas/SP: Pontes, 2000.
SELINFRAN
AS PERFORMANCES DISCURSIVAS DE GÊNERO E LIDERANÇA NA
REPORTAGEM DA REVISTA EXAME SOBRE COTAS PARA EXECUTIVAS
NA CÚPULA DAS EMPRESAS

Adriana Faria de Alcântara DIAS


Glenda Cristina Valim de MELO

RESUMO
No contexto em que vivemos, cresce o número de mulheres que participam ati-
vamente no mercado de trabalho. O cotidiano não é fácil para mulheres.Con-
siderando que a Modernidade privilegiou alguns corpos em detrimento de ou-
tros (SANTOS, 2004), este estudo traz para o centro as mulheres que ocupam
lugares de poder na sociedade. Esta pesquisa tem como objetivo analisar as
performances identitárias de gênero e de liderança da revista Exame na repor-
tagem publicada na revista Exame, do dia 10 de junho de 2015. A investigação
se embasa na perspectiva de gênero proposta pelas teorias queer (BUTLER
2003 e LOURO 2004) e na concepção de linguagem como atos de fala perfor-
mativos (AUSTIN,1962; DERRIDA,1972). Para a análise das performances dis-
cursivas de gênero e de liderança, utilizamos as pistas indexicais, propostas por
Wortham (2001).
PALAVRAS-CHAVE: Performances discursivas; gênero; liderança; mulheres
17
executivas.

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


ABSTRACT
In the context we have lived, the number of women who actively participate
in the job market grows. The everyday life isn’t easy for women. Considering
that the Modernity privileged some bodies over others (SANTOS, 2004), this
study brings women, that occupy places of power in the society, to the center.
This research has the aim to analyze the identity performances of gender and
leadership in the reporter published by Exame magazine, on June 10th of 2015.
The investigation is based in the perspective of gender proposed by queer the-
ories (BUTLER 2003 and LOURO 2004) and in the conception of language as
performative speaking acts (AUSTIN, 1962; DERRIDA, 1972). To the analysis of
discursive performances of gender and leadership, we use the indexical clues,
proposed by Wortham (2001).
KEYWORDS: Discursive performances; gender; leadership; business women.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO das para casar (PINSKY, 2014 p.49).


A maternidade, o zelo com a casa,
Estamos vivendo momentos de
os afazeres domésticos, o servir e o
grandes transformações na socieda-
agradar o esposo eram qualidades
de e em nossas vidas. Se observa-
bem vistas e requisitadas nas e para
mos a sociedade atual, os conceitos,
moças e mulheres dessas épocas. Se-
as normas, as formas de agir e de
gundo a autora, além disso, o casa-
pensar dos indivíduos estão sofren-
mento e a procriação eram grandes
do mudanças rapidamente. Este mo-
conquistas e marcas da realização
mento é denominado por Bauman
pessoal para as mulheres deste pe-
(2008) como Modernidade Líquida
ríodo. Aos poucos as mulheres vêm
e, segundo o autor, os líquidos e os
mudando esse cenário que sempre
gases, diferentemente dos sólidos
se repetia e se cristalizava ao longo
da Modernidade, mudam sua forma
da história por meio da linguagem.
quando estão pressionados. Pode-
Elas começaram, aos poucos a ocu-
mos, então, entender que estamos
par setores, como o meio empresa-
mais livres e mais ousados para mu-
rial, acadêmico, etc. que até então
dar e/ou experimentar possibilidades
não cediam espaço a elas, ou melhor,
outras além daquelas tradicionais e
não combinavam, no senso comum,
padronizadas.
com as características femininas dos
Esse momento tão incerto e ao anos 40, 50 etc.
mesmo tempo tão marcante, convi-
Atualmente estamos inseridos em
da a sociedade a fazer uma reflexão
uma época em que criatividade, ino-
sobre si mesma (GIDDENS, 2002).
vação e comprometimento ocupam
Neste sentido, tratar e repensar so-
um espaço significativo no mercado
bre as questões de gênero tem sido
de trabalho e na vida contemporânea.
algo observado nas redes sociais e
Carreiras vão surgindo com a finali-
na mídia. Na web, espaço do híbrido
18 dade de atender às necessidades de
e do controverso, encontramos, de
uma sociedade que busca se inovar,
um lado, vários movimentos sociais
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

com qualidade e em um curto espa-


que lutam contra ações misóginas;
ço de tempo. Nesse contexto, cresce
por outro lado, no mesmo espaço
o número de mulheres que partici-
encontramos ainda muitas agressões
pam ativamente do mercado de tra-
às mulheres, que são o centro desta
balho e que têm atuado com êxito
pesquisa.
nos cargos de liderança em algumas
É pertinente dizer que no perío- empresas. Essas mulheres que ence-
do histórico-social atual, as mulheres nam várias performances parecem
vêm conquistando espaços na socie- motivadas a buscar algo mais e rein-
dade. Recordando, por exemplo, os ventar-se. Assim, por razões diversas,
anos 40, 50 e até mesmo os anos 60, elas partem para conquistar um es-
conhecidos como “Anos dourados”, paço novo e mostram que também
as mulheres eram educadas e forma- são capazes de atuar, contribuir com
a sociedade, por meio de suas habili-
SELINFRAN
dades e competências. na diferença dos salários pagos de
Segundo De Mari (2013), a entra- acordo com o nível de escolaridade
da em massa das mulheres no mer- do empregado. Em 2009, quem tinha
cado de trabalho talvez seja uma das ensino superior ganhava de 225% a
maiores mudanças que o Brasil já vi- mais, em média. Em 2010, essa dife-
veu nos últimos tempos. Elas marca- rença passou para 230,4%.
ram sua presença na sociedade por Quando nos voltamos para o setor
meio da educação. Hoje, as mulheres empresarial, ainda nos deparamos
se encontram bem mais preparadas com poucas executivas, contudo,
para atuar em áreas diversas por cau- elas estão contribuindo para contes-
sa da formação acadêmica. tar construções discursivas machis-
Mesmo com esse grande passo tas e misóginas que colocam as mu-
dado, refletindo diversos sinais no lheres como inferiores e em lugares
mercado de trabalho, ainda encon- determinados. Considerando que a
tramos traços significativos de pre- Modernidade privilegiou alguns cor-
conceito. Um deles é a desigualdade pos em detrimento de outros, esta in-
salarial. A diferença nos salários pa- vestigação traz para o centro de suas
gos a homens e a mulheres aumentou investigações as mulheres que ocu-
em 2010, segundo dados do Cadas- pam cargos no mercado empresarial.
tro Central de Empresas, do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística OBJETIVO
(IBGE). Se, em 2009, os homens ga- Este estudo tem como objetivo
nhavam, em média, 24,1% a mais que analisar as performances discursivas
as mulheres, em 2010 essa diferença de gênero e de liderança da revista
subiu para 25%. Segundo o IBGE, em Exame apresentadas na reportagem
2010, a média salarial dos homens “Cotas para mulheres?” publicada na
era 3,5 salários mínimos, enquanto revista Exame, número 11, do dia 10 de
que a das mulheres era 2,8 salários junho de 2015. 19
mínimos. Enquanto isso, as mulheres, Com base no objetivo citado te-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


que respondiam por 41,9% do pesso- mos as seguintes perguntas de pes-
al ocupado em 2009, passaram a re- quisa:
presentar 42,1% da força de trabalho
nas empresas e outras organizações •Que performances identitárias de
brasileiras. De acordo com Kátia Me- gênero são observadas na reporta-
deiros de Carvalho, analista de esta- gem “Cotas para as Mulheres?”, apre-
tísticas do cadastro de empresas do sentada na revista Exame, do dia 10
IBGE, o que se percebe é uma con- de junho de 2015?
centração muito grande de mulheres •Quais as performances de lide-
nas empresas menores, que pagam rança observadas na reportagem em
os salários mais baixos1. Os dados questão?
também apresentam um aumento
1 Para maiores informações acesse: http://memoria.ebc.com.br/agen- JUSTIFICATIVA
ciabrasil/noticia/2012-05-16/ibge-diferenca-salarial-entre-homens-e-
-mulheres-cresceu-em-2010 A escolha dessa reportagem como
SELINFRAN

objeto de estudo decorre da minha põe que os atos de fala são divididos
função como gestora de uma insti- em constatativos e performativos.
tuição educativa e à minha visão do Os primeiros são os atos de fala que
mercado empresarial. descrevem e são considerados mal
Para a realização desta pesquisa ou bem-sucedidos; enquanto que os
levamos em conta os princípios teó- segundos são aqueles que ao serem
ricos da linguagem como atos de fala proferidos, uma ação é realizada; es-
performativos (AUSTIN,1962,1990; ses são vistos como felizes, se o con-
DERRIDA,1972) e conceito de gê- trário acontece tais atos são caracte-
nero proposto pelas Teorias Queer rizados como infelizes.
(BUTLER, 2003,2004; LOURO, 2001) De acordo com as teorias des-
e nos conceitos de liderança suge- se filósofo, para que os atos de fala
ridos por Vergana (2007), Morais performativos realizassem uma ação,
(2008) e Costa Reis et al. (2013). eram necessárias condições espe-
ciais, ou seja, ao enunciar, por exem-
LINGUAGEM COMO PERFORMA- plo, o ato de fala performativo “eu os
CE declaro marido e mulher”, quem o
profere, deve ter condições especiais
O desenvolvimento deste trabalho
para fazê-lo ou o ato não seria consi-
está fundamentado na perspectiva da
derado satisfatório ou feliz.
linguagem como performance; para
tal, torna-se imprescindível iniciar- Austin inova ao considerar a lin-
mos pela concepção de linguagem guagem como social e ação; além
sugerida por Austin (1962 [1972]). O disso, ele mesmo percebe problemas
filósofo da linguagem, nascido em em sua teoria e reformula os atos de
26 de março de 1911, em Lancaster, fala, considerando-os todos como
Reino Unido, trouxe contribuições re- performativos, exceto as estiolações.
levantes para o campo dos estudos Ele ainda classifica os atos de fala em
20 três níveis.
linguísticos, como veremos a seguir.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Austin revolucionou não só a Filo- Os atos de fala locucionários são


sofia Analítica como questionou tam- vistos como aqueles que produzem
bém a Linguística. Ele promoveu uma sons e articulações da língua (envol-
grande discussão na época por pro- vem funções semânticas). É o ato de
por o estudo da linguagem ordinária, se pronunciar.
ou seja, do cotidiano. Ao fazê-lo, ele Os atos ilocucionários são enten-
também questiona as fronteiras en- didos como ato de realizar uma ação
tre Filosofia e Linguística. Para o au- quando são pronunciados e, os atos
tor, a linguagem não é compreendida de fala perlocucionários: produzem
como descritiva. Segundo ele, em ou- efeitos sobre o outro, podendo pro-
tras palavras, há momentos em que a duzir uma reação diferente em quem
linguagem não apenas descreve uma ouve.
situação, e sim uma ação é realizada
ao proferir. Assim, o estudioso pro- Nas análises de Derrida todos os
SELINFRAN
atos de fala são performativos em e teorias queer fazem um uso das si-
qualquer circunstância, inclusive nas tuações que não estão sob controle
estiolações. Derrida em uma leitura para desconstruir noções e expec-
de tais atos sugere que eles são sedi- tativas. Judith Butler é um exemplo
mentados pela iterabilidade e pela ci- desses teóricos. Ao mesmo tempo
tacionalidade, ou seja, pela repetição em que ela apresenta determinados
e indica que não há condições espe- discursos sobre a sexualidade, men-
cíficas para que tais atos de fala per- ciona outras concepções de sexo,
formativos sejam enunciados, pois sexualidade e gênero (LOURO,2001).
para o estudioso, todos os atos de Ela afirma que a linguagem constrói
fala são performativos. Pela iterabili- corpos. Esses corpos são criados por
dade e citacionalidade, eles ganham normas que regulamentam a socie-
a ideia de substância. Para apresentar dade e essas têm um poder de de-
as questões de gênero e de liderança terminar o sujeito de acordo com os
na pesquisa proposta vamos nos em- seus padrões (LOURO, 2001).
basar nas teorias queer. Essas normas são performativas
e limitam os desejos do ser humano,
GÊNERO, LIDERANÇA E TEORIAS pois não permitem que o ser humano
QUEER decida sobre o sexo que irá ou não
Conforme Louro (2001), queer assumir; na verdade, as normas regu-
pode significar estranho, ridículo, latórias de uma sociedade impõem
excêntrico, raro, extraordinário. Mas a maneira que ele deve assumir e se
essa palavra pode também apresen- apropriar. (LOURO,1990, p.549).
tar sentidos pejorativos para desig- Segundo Butler (2003, 2004), a
nar homens e mulheres homoafeti- construção do sexo e do gênero são
vos. Para a autora, queer representa efeitos de discursos, práticas e insti-
o diferente, o que não está de acordo tuições. E não somos nós que cria-
com os padrões estabelecidos por mos os discursos e as práticas, mas 21
isso, não são tolerados pela socie- são os diversos setores da socieda-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


dade e são vistos como perturba- de que nos criam ao definir nosso
dores, aqueles que não conseguem sexo, sexualidade e gênero. De acor-
se ajustar nos moldes estabelecidos do com a estudiosa, gênero indepen-
(LOURO, 2001). As teorias Queer es- de do sexo. Ela diz que se o sexo é
tão ligadas ao pensamento ocidental construído culturalmente, quanto ao
contemporâneo que, no decorrer do gênero, talvez o sexo fosse gênero
século XX. Que no decorrer do sécu- desde sempre. Para ela, sexo e gêne-
lo questionam os conceitos de sujei- ro foram construções que um siste-
to, identidade e de identificação. ma sustentou para que esse padrão
Na medida em que queer aponta de comportamento não perdesse tal
para o “anormal”, para o que está fora identidade (SALIH,2012).
do centro, seria incoerente afirmar As análises de Butler nos levam a
que a teoria se reduzisse apenas a al- refletir como se dá o efeito-sujeito e
gumas ideias fundadoras. Os teóricos não como o sujeito poderia ser. Ela
SELINFRAN

afirma que o sujeito, desde que nas- se refere aos cargos de liderança nas
ce está inserido em um contexto que empresas e no mercado empresarial.
o constrói. E que o sujeito pode ser Sabemos também que essa distân-
construído de maneira diferente, sob cia, mesmo de maneira lenta, está
formas que não o limitem e que não diminuindo. Conforme Carly e Eagly
reforcem o poder já existente. (2001), na década de 90 as mulhe-
Para a estudiosa, gênero é com- res começaram a conquistar alguns
preendido como um conjunto de atos cargos na hierarquia das empresas.
realizados a todo momento e a iden- Esse fato representa que a conquista
tidade de gênero é também constru- feminina nesse setor da sociedade é
ída pelo discurso. Butler afirma que recente. Essa diferença entre homens
identidade de gênero é uma suces- e mulheres na cúpula das empresas
são de atos e que não existe nenhum pode ser reflexo de alguns fatores,
sujeito pronto, já idealizado. Isso não como : os indivíduos que se consi-
quer dizer que não exista um sujei- deram mais competentes do que as
to, mas, muitas vezes ele não encena mulheres, por isso, o número de líde-
o que gostaríamos que acontecesse. res masculinos é maior do que a lide-
Para a estudiosa o sujeito é um ser rança feminina; na própria estrutura
inacabado e que é reconhecido não sócio-ambiental das empresas que,
pelo que ele é, mas pelo que faz ou de acordo com sua organização, com
pelo que constrói. (SALIH,2012). seus princípios, valores e na forma de
considerar as características adequa-
Quanto à liderança, podemos tam- das para cargos de liderança passam
bém considerá-la uma construção a contratar mais homens para cargos
discursiva, social e performativa. De de chefia e de confiança (KRUSE;
acordo com Moscovisci (1986), não WINTERMANTEL, 1986).
existem pesquisas que apresentem
diferença no exercer a função entre De acordo com algumas pesquisas
22 as mulheres e os homens; para o au- em ciências sociais, destaca-se a rela-
tor, o que existe é uma cultura em ção entre o comportamento (perfor-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

que homens e mulheres criam diver- mance identitária) de líder e sua efici-
sos estilos de comportamento (per- ência na liderança. Deve-se levar em
formance) e de liderança. Segundo conta a relação que ele/a tem com
Mugny, Kaiser, Papastamou e Peres sua equipe de trabalho. Essa relação
(1981), determinados indivíduos, mes- já foi comprovada não como uma re-
mo não sendo tão influentes, conse- lação passiva, na qual a equipe aceita
guem exercer certa influência em um as orientações e executa o que lhe é
determinado grupo transformando- pedido. Mas trata-se de uma relação
-o. Nesse tipo de relação pode-se de interação que necessita de troca
destacar o seu estilo de performance de experiências (BERGAMINI,1997).
é o seu principal fator de sucesso.
De acordo com Corsini (2004),
METODOLOGIA E CONTEXTO DE
há uma grande distância entre ho- PESQUISA
mens e mulheres quando o assunto Nesta pesquisa, o instrumento de
SELINFRAN
geração de dados é uma reportagem formances de gênero e de liderança
oriunda da Revista Exame, edição apresentadas na reportagem da Re-
1091, ano 49, nº11 do dia 10 de junho vista Exame, nº 11, do dia 10 de junho
de 2015. Nela foi selecionada a repor- de 2015, sobre cotas para mulheres
tagem com o título que está apresen- na cúpula das empresas. Esta revis-
tado na capa “As mulheres executi- ta foi criada desde 1967, pela editora
vas precisam de cotas?” Optamos Abril e está direcionada ao público
pelos dados da reportagem, porque que atua no mercado empresarial e
eles abordam a temática mulher no que possui interesses em negócios.
mercado de trabalho. A revista Exa- O objetivo da revista é informar seus
me também foi selecionada porque leitores sobre o cenário econômico
apresenta um alto nível de reconhe- do Brasil e do mundo. Sua divulgação
cimento por seus leitores e pelo con- é impressa e online.
teúdo nela encontrado. A reportagem está organizada em
Para a análise das performances quatorze páginas, destacando algu-
discursivas e performances de gê- mas mulheres que estão em evidên-
nero e de liderança, embasamo-nos cia no mercado empresarial nacional,
nas pistas indexicais, propostas por devido suas competências e sucesso
Wortham (2001): referências, predi- no mercado de trabalho e, com de-
cação, citação e índices avaliativos poimentos de mulheres que estão li-
que serão abordados ao longo des- derando alguns setores da sociedade
te estudo. As primeiras são enten- e de executivas internacionais que
didas como elementos que existem estão na cúpula das empresas.A re-
no mundo os quais o narrador cita portagem também consta de fotos
ou a eles se refere; já a citação é a dessas mulheres executivas, de grá-
apresentação da fala de outra pessoa ficos apresentando a evolução das
para criar um momento de diálogo; mulheres na área da educação no
os índices avaliativos são as formas mercado de trabalho, nos últimos 23
apresentadas pela gramática, sota- anos e fazendo comparações entre

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


que, etc., que são predominantes em homens e mulheres nas funções as-
diversos grupos sociais; e descritores sumidas na empresa.
metapragmáticos são compreendi- A capa da reportagem coloca em
dos como os verbos utilizados pelo destaque as mulheres que residem no
narrador que indicam alguma refe- Brasil e que são referência no merca-
rência ou característica sobre o que é do empresarial. Nela, figura 1, temos
narrado na história. as fotos das seguintes executivas .
São elas: Adriana Machado (GE), Lui-
ANÁLISE DAS PERFORMACES za helena Trajano (Magazine Luiza),
DISCURSIVAS DE GÊNERO E DE Andrea Menezes (Standart Bank),-
LIDERANÇA Chieko Aoki (Blue Tree); Sylvia Couti-
Neste trabalho, analisamos as per- nho (UBS), Andrea Marquez (Bunge),
Marise Barroso (Marisa),Cláudia Sen-
der (TAM):
SELINFRAN

as cotas são a solução?” (REVIS-


TA EXAME, 2015).
Nele podemos observar a presença
de duas perguntas. Na primeira, te-
mos as referências (cotas, mulheres,
avanços, topo, empresas), a predica-
ção (minoria), os verbos no presente
do indicativo (é, são) que sinalizam
uma situação atual, ainda presente
Figura 1: Capa da Reportagem
no cenário brasileiro. Na segunda,
é possível destacar os verbos (será,
As fotos dessas empresárias que são). Um deles está indicando dúvi-
estão expostas na capa da reporta- da, pois está no futuro e, isso repre-
gem as caracterizam como profis- senta incerteza,ou seja, não se sabe
sionais bem-sucedidas, olhar firme e o que poderá acontecer. E o outro
seguro, sóbrias, inteligentes. Enfim, verbo “são” nos indica que a neces-
as imagens apontam para mulheres sidade de obtermos a solução desse
corajosas que enfrentam qualquer desafio é agora, no tempo presente.
barreira e conseguem mostrar bons
resultados na produtividade. Essas palavras comprovam os mo-
tivos das executivas pedirem o siste-
As cores predominantes na capa ma de cotas temporário para que as
são o azul marinho e preto. Elas nos mulheres tenham a chance de atuar
lembram seriedade e sofisticação. nas empresas nos cargos de lideran-
Todas as executivas têm o mesmo ça. Nesse título podemos observar
padrão em relação à maneira de se que os avanços em relação ao espaço
vestir. Suas roupas são elegantes, que a mulher ocupa atualmente são
seus casacos representam os ternos de fato visíveis na sociedade, mas,
24 masculinos que os gestores e gran- para que o número maior de mulhe-
des empresários usam no trabalho. res conquiste a gerência do mundo
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Essas executivas expressam em sua empresarial ainda precisa ser revisto.


maneira de se posicionar na foto e em
seus rostos muita segurança e deter- O trecho “mas será que as cotas
minação. E elas, que já estão no topo são a solução? indica que esse recur-
das empresas em que atuam, querem so de cotas não é um sinal de que o
mais: a oportunidade de mais mulhe- mercado dará certo com o ingresso
res assumirem os cargos de liderança de um número maior de mulheres no
no mercado empresarial, por meio de alto escalão empresarial. Esse ques-
cotas. A reportagem analisada apre- tionamento apresenta incerteza, dú-
senta o seguinte título: vida, que são constatadas no verbo
será .
“Cotas para mulheres? É fato:
apesar de todos os avanços, as
mulheres ainda são minoria no PERFORMANCES DISCURSIVAS
topo das empresas. Mas será que DE GÊNERO
Optamos por fazer, em primeiro lu-
SELINFRAN
gar, as análises das performances dis- com a sua missão de mãe. Diferente
cursivas de gênero, de alguns trechos dos homens, que são pais, mas não
da reportagem em questão, porque o assumem esta responsabilidade. Essa
gênero está em destaque no assun- “verdade”, de que a responsabilidade
to abordado no material de geração da formação e da educação dos fi-
de dados, começando pela foto, no lhos é da mãe, que se cristalizou du-
início da reportagem. Em seguida, fa- rante décadas, ainda permanece em
remos a análise das performances de nossa sociedade, muitas vezes va-
liderança que estão relacionadas às loriza a caminhada das mulheres ao
performances de gênero. longo da história desde que elas não
Logo depois de terminar o MBA deixem de atender às necessidades
e voltar para o mercado de tra- do lar.
balho, homens e mulheres ga- Em várias partes do mundo, a
nham a mesma coisa. Mas entre o maternidade é o ponto de infle-
16º ano de carreira, os homens já xão na carreira das executivas.
estão ganhando quase o dobro. “Muitas mulheres não conse-
(EXAME,2015, p. 37). guem conciliar a vida familiar e a
carreira.(EXAME,2015, p.37)
Mesmo com as tentativas de igual-
Entre continuar pisando fundo
dade de gênero no mercado de tra-
no trabalho e pegar leve para
balho, os preconceitos ainda existem
passar mais tempo com os filhos
e eles são caracterizados pelas se- enquanto eles são pequenos, um
guintes referências mercado, traba- número grande de mulheres es-
lho, carreira, homens, dobro. colhe a segunda opção_ e, nes-
As mulheres começam a receber o ses casos, as apostas de sucesso
mesmo salário dos homens quando profissional acabam sendo depo-
sitadas no marido.(Exame,2015,
ocupam os mesmos cargos, mas com
p.37).
o passar do tempo elas estão rece-
bendo menos e cumprindo a mesma Tendo em vista todos esses moti- 25
carga horária do colega de trabalho. vos que impedem determinadas mu-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


Isso significa que as mulheres ainda lheres de assumir sua carreira pro-
precisam lutar para obterem os mes- fissional, elas depositam toda a sua
mos direitos. admiração e respeito nos maridos,
que são os mais indicados e os mais
No trecho a seguir, destacamos as preparados para assumirem o merca-
pistas indexicais que são indicadas do. Essas mulheres, por sua vez, não
nas palavras “Maternidade, carrei- se sentem dignas de trabalhar fora de
ra, vida familiar, trabalho” (EXAME, casa e contribuir , com suas habilida-
2015, p.37). Várias mulheres ainda des, para a construção da sociedade
ficam inseguras quando necessitam em que estão inseridas. As palavras
dividir o tempo com seus filhos e o de referência encontradas para ilus-
seu emprego. Elas se sentem culpa- trar essas considerações são: pisan-
das quando pensam que trabalhan- do, trabalho, tempo, filhos, opção,
do fora de casa deixarão de cumprir apostas, sucesso, marido. E as pala-
SELINFRAN

vras que exemplificam as categorias Tendo em vista o trecho:


de predicação são fundo, leve, pe- Em 2013, o número de mulheres
quenos. que concluíram cursos de gradu-
ação em direito e administração
PERFORMANCES DISCURSIVAS em todo o país foi superior ao de
homens. Este avanço é percebi-
DE LIDERANÇA
do nas empresas. Em 1995, elas
Destacamos os seguintes trechos ocupavam 12% dos cargos de
da reportagem que apresentam ca- média gerência. Hoje esse per-
tegorias e pistas indexicais referentes centual é quase três vezes maior
à liderança. (EXAME,2015, p 36)
As mulheres que aparecem nas Destacamos a categoria de refe-
páginas que abrem esta reporta- rência nas seguintes palavras: su-
gem chegaram lá. Elas atuam em perior, avanço, gerência. Isso nos
setores distintos, têm currículos aponta para o cenário de que as mu-
diferentes, mas todas ocupam lheres realmente estão superando as
cargos no topo da hierarquia das
expectativas e se apropriando cada
empresas nas quais trabalham.
(EXAME, 2015,p.34)
vez mais de cargos que eram contro-
lados por homens.
Destacamos performances de lide-
ranças no trecho acima que são des- As pistas indexicais que o trecho
tacadas nas expressões “elas chega- nos apresenta são as de que as mu-
ram lá” e “ocupam cargos no topo lheres, mesmo encenando várias per-
da hierarquia das empresas”. formances (mães, donas de casa,
educadoras, esposas) assumem ou-
As referências apresentadas no tras funções na sociedade a que per-
parágrafo são: mulheres, topo, hierar- tencem e demonstram competência
quia, empresas. Esses substantivos para trabalhar na função que esco-
reforçam a atuação sólida, segura e lheu. Isso é comprovado nas seguin-
26 competente dessas profissionais E tes expressões: “Em 1995, elas ocu-
apontam sinais que encorajam outras pavam 12% dos cargos de média
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

mulheres a enfrentarem esse desafio. gerência. Hoje esse percentual é


As expressões “... chegaram lá e quase três vezes maior”.
“... todas ocupam cargos no topo da
hierarquia das empresas nas quais CONSIDERAÇÕES FINAIS
trabalham”, remetem o leitor às se- A partir dessa pesquisa observa-
guintes pistas indexicais: pensar que mos que as performances discursivas
as mulheres são capazes de assumir o de gênero e de liderança apresenta-
topo das empresas e que estão pron- das na reportagem em questão con-
tas para enfrentar qualquer desafio tribuíram para a desconstrução de
que o mercado de trabalho apresen- alguns discursos que ressaltam a in-
ta. Tais expressões nos levam a refle- ferioridade das mulheres e a falta de
tir sobre o espaço que as mulheres credibilidade no que se refere à com-
estão conquistando na sociedade. petência das mesmas no mercado de
SELINFRAN
trabalho. As análises apontam também às conquistas no espaço empresarial,
devido as performances que determinadas mulheres encenam.

REFERÊNCIAS
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990 [1962].
BUTLER, J. Performative acts and gender constitution: an essay in phenomenology and feminist theory. In:
BIAL, H. (Org). The performance studies reader. New York, 2004.
_____. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Trad.:Aguiar, Renato. RJ: Civilização
Brasileira, 1999/2003.
CARLY, L. & Eagly, A. (2001). Gender, hierarchy and leadership: an introduction. Journal of Social Issues,
57(4), 629-636.
CORSINI, L. & Souza Filho, E. A. (2001). “Socialite linha-dura”: uma análise de representações sociais. Revista
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polis: Editora da UFSC (pp. 175-182).
DERRIDA, J. Signature event context. Limited inc. evanston. Northwestern University Press, pp 1-23, 1988
[1972].
GIDDENS, A. Modernidade e Identidade. Tradução Plínio Denzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
HILTS, E. Mulheres poderosas no trabalho. São Paulo: Editora Academia, 2013, p.28-42.
STEFANO, Fabiane. Cotas para mulheres?? Revista Exame. São Paulo: Editora Abril, 2015, p. 32.
WORTHAM, S. Narratives in action. NY: Teacher College Press.

ANEXO I

27

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Figura 1: Capa da Reportagem apresentada pela revista Exame do dia 10 de junho de 2015.
SELINFRAN

A POLÊMICA COMO INTERINCOMPREENSÃO REGRADA: AS IGREJAS


DO ATEU OSCAR NIEMEYER

Aline Monteiro Campos GARCIA


Marília Giselda RODRIGUES

RESUMO
O arquiteto Oscar Niemeyer, que viveu entre os anos de 1907 e 2012, declara-
va-se comunista e ateu, e foi autor de projetos de várias igrejas, dentre elas a
Catedral Cristo Rei, em fase inicial de construção na cidade de Belo Horizonte,
bem como a Catedral de Brasília e a Igreja de São Francisco no conjunto da
Pampulha, também em Belo Horizonte. Nossa pesquisa analisa uma polêmica
que se instaurou em torno da construção dessa nova catedral, opondo aqueles
que defendem o projeto, tido como mais um marco da arquitetura modernista
de Niemeyer, e aqueles que execram a escolha da diocese de Belo Horizonte.
Para a pesquisa, baseamo-nos nos pressupostos da Análise do Discurso de li-
nha francesa, sobretudo aqueles apresentados por Maingueneau (2008b), em
que se destaca a noção de polêmica como interincompreensão regrada.
PALAVRAS-CHAVE: Arquitetura; discurso católico; polêmica; interincompre-
ensão regrada.
ABSTRACT
28 The architect Oscar Niemeyer, who lived between the years 1907 and 2012,
always declared himself a communist and atheist, and was the author of pro-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

jects of several churches, among them the Catedral Cristo Rei, at the initial
stage of construction in the city of Belo Horizonte, as well like Catedral de Bra-
sília and the Igreja de São Francisco, in Pampulha, also in Belo Horizonte. Our
research focuses on a controversy that has been established around the cons-
truction of the new cathedral, opposing those who defend the project, seen
as another milestone of modernist architecture of Niemeyer, and those who
decry the choice of the diocese of Belo Horizonte. For this research, we rely on
assumptions of the french line Discourse Analysis, especially those presented
by Maingueneau (2008b), which highlights the notion of controversy as ruled
interincomprehension.
KEYWORDS: Architecture; catholic discourse; controversy; ruled interincom-
prehension.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO errado, do culpado, do falível. Para
construir e preservar sua identidade
Oscar Niemeyer, arquiteto, declara-
no espaço discursivo, o discurso não
damente comunista e ateu, projetou
se relaciona com o Outro enquanto
várias igrejas, espaços destinados à
tal, mas somente com o simulacro
vivência da fé, sendo as mais conhe-
que dele constrói (Cf. MAINGUENE-
cidas a Igreja da Pampulha e a Cate-
AU, 2008b). Assim tais formações
dral de Brasília. Em torno do projeto
discursivas buscam delimitar-se reci-
de uma nova catedral para a cidade
procamente, por meio de uma rela-
de Belo Horizonte, a Catedral Cristo
ção de concorrência, o que significa
Rei, projetada por Niemeyer e com
tanto afrontamento aberto, quanto
obras em andamento, instaurou-se
aliança ou neutralidade aparente.
uma polêmica interdiscursiva, que re-
toma também as demais igrejas cria- Espera-se que, além da compreen-
das pelo arquiteto: de um lado, aque- são do próprio objeto tomado para
les que defendem as obras inspiradas estudo, a pesquisa possa se constituir
do gênio criador Niemeyer; de outro, em uma contribuição para o campo
aqueles que afirmam ser impossível da AD, na medida em que estuda-
entendê-las e viver, naqueles espa- remos e aplicaremos pressupostos
ços, as experiências de oração, de teóricos que foram ainda pouco tes-
inspiração de fé e de contato com o tados em objetos discursivos de do-
divino. Se existe a polêmica em tor- mínios outros que não o linguístico,
no das obras religiosas de Niemeyer sobretudo o domínio da arquitetura.
é porque há um ponto nevrálgico que
lhe dá origem, isto é, um ponto mais OBJETIVOS
importante que instaura a discussão. Investigar as relações interdiscur-
Assim a partir dos pressupostos teó- sivas e intersemióticas no espaço
rico-analíticos da Análise do Discurso discursivo compreendido entre o dis-
de linha francesa (doravante AD), que curso religioso católico e o discurso
29
embasam a pesquisa, compreende- arquitetônico modernista, que fun-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


mos a polêmica como interincompre- dam as principais igrejas projetadas
ensão regrada, onde cada discurso por Niemeyer, nos modos como, en-
se baseia em um conjunto de semas quanto prática discursiva, a obra é
repartidos em “positivos” ou reivindi- posta a circular/funcionar como gê-
cados, e “negativos” ou rejeitados, tal nero discursivo, cuja função social é
como propõe Maingueneau em seu a vivência da fé católica.
livro Gênese dos Discursos (2008b).
Compreender a interação en-
A relação com o Outro é função tre dois posicionamentos acerca da
da relação que um discurso mantém arquitetura religiosa católica criada
consigo mesmo, na medida em que, por Niemeyer como um processo de
para que ele construa a sua identida- tradução, de interincompreensão re-
de, é preciso relegar o Outro ao in- grada.
terdito, ao espaço do não-dizível, do
SELINFRAN

METODOLOGIA O historiador Carlo Ginzburg pro-


põe que as ciências humanas, pela
A partir da leitura e fichamento do
especificidade de seus objetos, pos-
livro Gênese dos Discursos, de Do-
sam tomar como modelo o paradig-
minique Maingueneau (2008b), nos
ma indiciário, por meio do qual deter-
apropriamos do arcabouço teórico
minados sinais, indícios, tidos muitas
da pesquisa, mais especificamente
vezes como insignificantes, uma vez
de noções como interdiscurso, inte-
interpretados pelo analista, permitem
rincompreensão regrada, relações in-
acesso ao conhecimento do objeto
terdiscursivas e intersemióticas, con-
(que é, no entanto, sempre parcial).
ceitos formulados no interior da AD.
Considerar o método indiciário
Além dos pressupostos teóri-
numa pesquisa que tem a AD como
cos e analíticos da AD, encontramo-
base teórica implica trabalhar com
-nos em fase de leituras que visam
elementos de toda sorte, mesmo os
recuperar a historicidade do concei-
aparentemente insignificantes, acei-
to de espaço sagrado. Apoiamo-nos
tando a multiplicidade e a comple-
nos estudos de Frade (2007) e Eliade
xidade da linguagem. As pistas, tais
(1992). Buscamos também recuperar
como um texto aqui, outro acolá, de-
a trajetória de Niemeyer na história
terminados modos de nomear um
da arquitetura brasileira e mundial,
objeto e não outro, enfim, todo um
de modo a situar, nesse contexto, as
conjunto de elementos, podem ser
igrejas projetadas por ele. Esse per-
apenas aparentemente aleatórios, se
curso nos permitirá vislumbrar o mo-
olhados com mais cuidado em busca
mento em que irrompe, na trajetória
de indícios de um fenômeno do qual
do arquiteto e na imensa produção
já se tem suspeita. Em nosso caso,
discursiva de comentários sobre sua
esse fenômeno equivale à polêmica
obra, a polêmica que analisamos.
instaurada por enunciadores coloca-
30 Para a análise, faremos a leitura dos em campos diferentes do univer-
e seleção de sequências verbais, de so discursivo, acerca da construção
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

comentários de arquitetos, de repre- da Catedral Cristo Rei. Dessa forma,


sentantes do clero e de leigos católi- o paradigma indiciário foi importan-
cos em dois sites na web, bem como te para o trabalho com o arquivo, um
entrevistas em que Niemeyer fala so- corpus de referência, para a seleção
bre suas obras e sobre sua vida, além das sequências discursivas que com-
de textos e reproduções de fotos e põem o corpus de análise, e que es-
maquetes do livro As igrejas (NIE- tão devidamente detalhadas no capí-
MEYER, 2011), compondo um arquivo, tulo respectivo.
uma massa de enunciados verbais e
Para Maingueneau (2015, p. 39),
imagéticos, do qual se extrairá então,
“os analistas do discurso não estu-
com base em hipóteses fundamen-
dam obras, eles constituem corpora,
tadas na história e seguindo o para-
eles reúnem os materiais que julgam
digma indiciário de Ginzburg (1991), o
necessários para responder a esse ou
corpus de análise da pesquisa.
SELINFRAN
àquele questionamento explícito, em construção (ou reelaboração) da te-
função das restrições impostas pelos oria, feita a partir da confirmação ou
métodos aos quais recorrem”. infirmação das hipóteses seleciona-
Na AD, segundo Pêcheux (1975, das. Trata-se, portanto, de uma con-
apud MAINGUENEAU, 2008a), a lín- jectura acerca da realidade que pre-
gua é concebida como tendo uma cisa ser validada por meio de testes.
materialidade própria. Assim, os si- Em nosso caso, esse fenômeno a ser
nais deixados pelo encontro entre observado equivale à polêmica ins-
materialidade linguística e materia- taurada por enunciadores colocados
lidade histórica permitem ao analis- em campos diferentes do universo
ta formular hipóteses acerca de um discursivo, acerca da construção da
certo funcionamento discursivo, “[...] Catedral Cristo Rei.
de articular um funcionamento dis- No trabalho de Maingueneau
cursivo e sua inscrição histórica, pro- (2008b), os indícios encontrados na
curando pensar as condições de uma análise dos discursos católicos devo-
‘enunciabilidade’ possível de circuns- tos da França no séc. XVI possibili-
crever-se historicamente” (MAIN- taram a construção de um modelo
GUENEAU, 2008a, p. 17). semântico para cada um dos discur-
Segundo SILVA (2006, p. 49), a sos estudados. Contudo, o autor re-
correlação entre os estudos feitos conhece que o tipo de análise que ele
por Maingueneau e o paradigma indi- propõe é decorrência de suas opções
ciário fica clara quando o autor critica teóricas e metodológicas. Por isso,
as abordagens indutivas, afirmando até mesmo a seleção dos corpora fi-
que elas buscam fazer generaliza- gura no nível das possibilidades:
ções através de conclusões obtidas Os corpora que, em um momen-
em estudos regionais. Para Maingue- to dado, são objeto de análises,
neau (apud SILVA, 2006, p. 49), ao por tudo o que excluem, defi-
invés de continuar a acumular frag- nem obliquamente os interesses 31
de uma coletividade, de uma
mentos de saber errático, é melhor

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


conjuntura; eles não podem ter
nos esforçarmos para validar ou refu- a pretensão de resultar de uma
tar proposições sobre funcionamen- tomada de posse metódica de
tos discursivos. Assim, os argumen- um espaço claramente baliza-
tos de Maingueneau assemelham-se do. Comparado ao universo dos
aos apresentados pelos defensores possíveis, o campo dos discursos
do paradigma indiciário. Para esses, a recortados e estudados por uma
abdução consiste, primeiramente, na área social dada é apenas uma
observação atenta dos fenômenos ilhota de resíduos de uma exigüi-
envolvidos em uma questão. Apenas dade extrema (MAINGUENEAU,
a partir dessa observação é que as 2008b, p. 25).
hipóteses explicativas do fenômeno Entretanto, isso não significa que
observado são formuladas. O último as conclusões obtidas a partir das
passo de uma pesquisa abdutiva é a análises dos discursos devotos não
SELINFRAN

possam ser generalizadas, servin- ço discursivo.


do como base para a análise de ou- Esta tríade proposta por Main-
tros modelos semânticos. Do mes- gueneau (2008b) confere à noção
mo modo, a opção pelo paradigma de interdiscurso um caráter menos
indiciário não impossibilita conclu- vago, porque mais delimitado his-
sões mais gerais sobre determinado toricamente e metodologicamente
tema, pois, como dito anteriormente, mais operacional, na medida em que
a construção da teoria constitui um tanto os recortes quanto as relações
dos estágios desse paradigma. estabelecidas pelo analista são mini-
As pesquisas realizadas por Domi- mamente regulados pelos limites do
nique Maingueneau possibilitaram a campo discursivo. Ao postular, por-
construção de um conjunto de hipó- tanto, o primado do interdiscurso, o
teses que, após serem comprovadas autor não está concebendo o discur-
pela análise dos corpora, conduziram so como uma “dispersão de ruínas”,
a resultados que permitiram a cons- para utilizarmos uma expressão do
trução de um modelo de análise de próprio Maingueneau (2008b, p.19).
discursos por meio do sistema de Ao contrário, postula, para além da
restrições semânticas. heterogeneidade dos tipos de tex-
tos, dos autores, de sua dispersão no
ARCABOUÇO TEÓRICO tempo e no espaço, a existência de
uma zona de regularidade semântica
Em Gênese dos discursos, Domi-
que estrutura o modo de coesão dos
nique Maingueneau (2008b), a partir
discursos.
da noção de semântica global, des-
creve para o leitor um guia de traba- A noção de semântica global es-
lho que apresenta uma metodologia trutura-se sobre esse postulado da
que pode ser seguida em pesquisas existência de uma zona de regulari-
sobre outros corpora, que não o re- dade semântica a partir da qual to-
32 dos os planos da discursividade es-
ligioso, analisado no livro pelo autor.
Parte da tese do primado do interdis- tão submetidos ao mesmo sistema
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

curso, em que o interdiscurso prece- de restrições globais. Esse sistema é


de o discurso, do que decorre que a concebido como um filtro que fixa os
unidade de análise pertinente não é critérios que, em uma formação dis-
o discurso, mas as relações interdis- cursiva determinada, distinguem o
cursivas que se dão num espaço de que é possível ou não de ser enun-
trocas entre vários discursos de um ciado do interior daquela formação.
mesmo campo. O sistema de restrições deve ser con-
cebido, mais especificamente, como
Ao elaborar o quadro teórico, um
um modelo de competência inter-
dos conceitos sobre o qual Main-
discursiva, o que supõe a aptidão de
gueneau (2008b) se debruça num
sujeitos em reconhecer a incompati-
trabalho de reformulação é o de in-
bilidade semântica de enunciados de
terdiscurso, substituindo o termo in-
outras formações do espaço discur-
terdiscurso por uma tríade: universo
sivo que constituem seu Outro.
discursivo, campo discursivo e espa-
SELINFRAN
É em função desse sistema de res- autor propõe não restringir ao domí-
trições que se organizam todas as re- nio textual a validade do sistema de
lações de um discurso com os demais restrições semânticas próprias de um
discursos com os quais é posto em discurso, mas afirma que tal sistema
relação no espaço discursivo. Main- recai sobre outros tipos de estruturas
gueneau compreende essa interação semióticas.
entre os vários discursos de um mes- Em outras palavras, a noção de
mo espaço discursivo como um pro- prática discursiva como prática in-
cesso de tradução, de interincompre- tersemiótica supõe que quaisquer
ensão regrada: cada um introduz o manifestações simbólicas de uma
Outro em seu fechamento, traduzin- sociedade estão inseridas e são con-
do os seus enunciados nas categorias dicionadas pelas mesmas condições
do Mesmo e, assim, sua relação com de produção, que são histórico-ide-
esse Outro se dá sempre sob a forma ológicas. Por isso a possibilidade de
do simulacro que dele constrói. Desse estabelecer coesão entre os dois do-
modo, para construir e preservar sua mínios, o essencialmente linguístico e
identidade no espaço discursivo, o os constituídos em outras semioses,
discurso não se relaciona com o Ou- o que não significa que esses domí-
tro enquanto tal, mas somente com nios sejam isomorfos em seu modo
o simulacro que dele constrói, pois de estruturação, mas somente que o
não há dissociação entre o fato de sistema da formação discursiva deve
enunciar conforme as regras de sua restringir esses modos de estrutura-
própria formação discursiva e de não ção, quaisquer que eles sejam. Nessa
compreender os sentidos dos enun- perspectiva, o princípio de compe-
ciados do Outro; trata-se de duas tência interdiscursiva deve ser com-
facetas do mesmo fenômeno. Não preendido como uma rede de regras
existe, portanto, o discurso absoluto de que os enunciadores se dispõem
que num espaço homogêneo regula- para tratar os materiais significantes. 33
ria todas as traduções de um tipo de Assim, o pintor e o músico, por exem-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


discurso para outro, mas uma rede plo, dado que participem da mesma
de relações constantemente aberta. prática discursiva, dispõem desta
Maingueneau afirma que a prática mesma rede de regras e são, como
discursiva deve também ser conside- os enunciadores de um discurso ver-
rada uma prática intersemiótica, que bal, capazes de reconhecer a incom-
integra tanto as unidades de um con- patibilidade das produções de seu
junto de enunciados, quanto as pro- Outro, assim como a coincidência de
duções que relevam de outros domí- tais produções com as regras de sua
nios semióticos, como o musical, o própria formação discursiva.
pictórico, por exemplo. Apresentan-
do o modo da formação discursiva UMA ANÁLISE-PILOTO DO COR-
como um sistema de restrições que PUS
recai sobre as organizações de senti-
As sequências verbais que consti-
do e não como uma gramática desti-
tuem o corpus de análise seleciona-
nada a compor apenas enunciados, o
do para este texto foram retiradas de
SELINFRAN

um fórum na web chamado Skyscra- dos estatutos de enunciador legítimo


perCity, também conhecido pela si- e destinatário preconizado, o funcio-
gla SSC. É um site mantido por uma namento da polêmica como simula-
organização independente, focado cro age deslegitimando o adversário,
em temas de arquitetura, urbanismo, buscando interpor razões pelas quais
construção civil e desenvolvimento não se pode aceitar seus argumen-
urbano. Os membros do fórum po- tos. Não se pode vencer o antagô-
dem divulgar fotos de quaisquer ci- nico como ele é, será preciso desa-
dades que tenham fotografado, mos- creditá-lo, construindo para ele uma
trando as diversidades urbanísticas, figura alterada.
de forma que os restantes membros, Como as regras de interincom-
o público em geral, possam conhecer preensão derivam da estrutura do
os vários espaços e comentar sobre modelo semântico de cada um dos
eles. O SkyscraperCity é o resultado discursos analisados, pretendemos
da junção de diversos fóruns pré- mostrar como se estabelece a polê-
-existentes, e está no ar desde 11 de mica entre o leigo católico e o arqui-
setembro de 2002. Dele fazem par- teto por meio da análise dos traços
te cerca de 700.000 membros e se semânticos desses posicionamentos.
podem contar mais de 23 milhões de A análise, ainda em fase inicial, tem
comentários. O criador e administra- apontado para a oposição entre os
dor principal é Jan Klerks, originário semas modernidade e tradição. Nes-
de Roterdã. se sentido, a polêmica que se estabe-
Na polêmica entre um leigo ca- lece parte, justamente, da oposição
tólico e um arquiteto, a criação de entre esses semas.
simulacros surge como decorrente Aqui, analisamos comentários
da interincompreensão regrada en- de um arquiteto e de um leigo católico,
tre os dois posicionamentos discur- retirados do fórum SkycraperCity,
sivos. Nesse sentido, os simulacros que apresentou a notícia e o novo
34 podem ser considerados um dos projeto da Catedral para a cidade
efeitos da competência interdiscur- de Belo Horizonte. As sequências
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

siva dos enunciadores de cada dis- apresentadas a seguir, datadas de


curso. A competência está relacio- novembro de 2013, parecem vir de
nada à capacidade que o enunciador dois posicionamentos diferentes
de um determinado discurso tem de acerca da obra anunciada, e instauram
traduzir os discursos outros no inte- a polêmica no fórum.
rior da grade semântica específica Para iniciar, vejamos o que diz o
de seu discurso. No caso do leigo leigo católico (LC) sobre o projeto da
católico (discurso católico) e do ar- Catedral Cristo Rei:
quiteto (discurso arquitetônico), essa
tradução do discurso Outro ocorre S1 LC: Como católico, posso afir-
sempre como simulacro, pois o dis- mar sem hesitar: essa catedral é
curso católico não reconhece o dis- francamente horrenda. Niemeyer
pode ter sido o gênio do moder-
curso arquitetônico tal como esse se
nismo, mas como bom comunis-
apresenta (e vice-versa). Além disso,
ta que era, não sabia bulhufas de
operando em termos de definição
SELINFRAN
arquitetura litúrgica. [...] Se bem quitetura religiosa. E isso se mos-
que no pé em que a Igreja está, trou em inúmeros templos que
em profunda e inexorável deca- projetou, sendo que acredito ser
dência cultural e espiritual, esse justo julgar seu mérito como ar-
trambolho será louvado como quiteto no período quando ele de
uma “benção” para a arquidio- fato foi vanguarda mundial. Não
cese, inaugurada com uma missa é necessário buscar algum traba-
show do padre Fábio de Mello. lho obscuro, a Igrejinha da Pam-
pulha está aí em BH, para provar.
Neste excerto, ao dizer “como ca-
tólico, posso afirmar”, o enunciador Neste trecho, o leigo católico é ad-
atribui a si um estatuto que legitima jetivado pelo arquiteto como arro-
seu dizer. Ele considera a catedral gante. Ao utilizar o termo “vanguarda
como horrenda, um trambolho, con- mundial”, refere-se ao Modernismo.
trapondo-se à arquitetura moderna. A expressão “não é necessário bus-
O enunciador, ao proferir: “mas como car algum trabalho obscuro, a Igreji-
bom comunista que era”, mostra re- nha da Pampulha está aí em BH, para
jeição ao dado da vida do autor e dei- provar” constitui sugestão de que o
xa entrever uma concepção de obra católico apela para o obscurantismo.
(projeto arquitetônico) como reflexo O leigo católico replica:
da vida do autor. O leigo faz também
uma crítica à Igreja contemporânea – S2 LC: E repito: como bom co-
“a Igreja está em profunda e inexo- munista não sabia BULHUFAS de
rável decadência cultural e espiritual” arquitetura litúrgica. E isto não é
uma opinião arrogante, é um fato
– o que mostra o lugar desse leigo no
comprovado na experiência de
interior do discurso católico, como
quem já esteve em mais de uma
defensor de um movimento tradicio- igreja projetada por Niemeyer.
nalista no interior do catolicismo. O E todas elas são rigorosamente
termo “missa-show” é um simulacro disfuncionais diante das exigên-
construído pelo enunciador, que se cias do serviço litúrgico. [...] Vê- 35
contrapõe ao movimento Renovação -se que você é completamente

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


Carismática no interior da Igreja Ca- ignorante quanto ao espaço que
tólica, posto que faz alusão ao padre a litúrgica ocupa na espirituali-
Fábio de Mello, um representante da dade católica. Confunde liturgia
RC. com estilo [...]. O seu exemplo da
Capela da Pampulha é perfeito,
Em relação às acusações feitas pois expõe com clareza o desvão
no comentário do leigo católico, o ar- que existe entre um estilo histori-
quiteto (A) responde: camente informado e adequação
S1 A: [...] Agora, dizer que “como desse estilo às funções as quais
bom comunista que era, não sa- se sujeitam o edifício.
bia bulhufas de arquitetura re- O uso de maiúsculas na palavra
ligiosa”, me mostra uma arro-
“bulhufas” serve de reforço ao que
gância de sua parte, até porque
um arquiteto formado na Escola
foi dito anteriormente pelo católico e
Nacional de Belas Artes em 1934 conota irritação. O termo “experiên-
com certeza estudou a fundo ar- cia” remete à vivência da fé, por parte
do leigo. O enunciador afirma que a
SELINFRAN

arquitetura religiosa modernista não GUISA DE CONCLUSÃO


atende às exigências do serviço litúr- Com base no que foi apresentado
gico. A polêmica, nesse caso, mate- até o presente momento, e de todo
rializa-se na contestação da prova, material já explorado em livros e na
criada pelo discurso arquitetônico, web, pode-se afirmar que essa po-
ao exemplificar outros espaços reli- lêmica interdiscursiva em torno dos
giosos criados pelo mesmo arquiteto espaços sagrados criados pelo ar-
em questão. Mas, pelo que pudemos quiteto Niemeyer apresenta diver-
analisar na sequência anterior, o leigo sos pontos que podem ser tomados
católico defende a ideia da tradição, como objetos de análise. Longe de
sendo esse o traço semântico prin- esgotar a questão, a presente pes-
cipal de seu posicionamento. Desse quisa pretende descrever e compre-
modo, a ideia de um templo católi- ender uma parte de aspectos relacio-
co que tenha o modernismo arquite- nados a esta polêmica.
tônico em sua concepção não pode A análise até aqui depreendida
agradá-lo. permite afirmar que o leigo católico
apresenta-se como defensor de um
O arquiteto novamente defen-
movimento tradicionalista dentro da
de o projeto:
igreja católica, contrapondo-se ao
S2 A: [...] E Oscar fez isso, sem modernismo. E o arquiteto mostra-se
dúvida alguma para qualquer defensor do movimento modernista,
pessoa que saiba um mínimo de ao mesmo tempo, e por isso talvez,
arquitetura. Você descreveu uma execrando o tradicionalismo dentro
miríade de equipamentos litúrgi- da igreja católica. Assim, ambos abo-
cos que muitas vezes nem usados
minam o posicionamento de seu Ou-
são. O mundo não está parado
tro e travam uma “batalha” em busca
no século passado! Existe muitas,
senão a maioria, de igrejas sendo
da legitimação de sua posição e da
construídas hoje nas quais pou- obtenção, para ambos, de um estatu-
36 to de verdade.
co disso estará presente ou fará
falta. Assim o uso dos simulacros para
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

O arquiteto, ao dizer que qualquer desconstruir o discurso do oponen-


pessoa que saiba um mínimo de ar- te é um recurso que merece desta-
quitetura entende a arquitetura mo- que, além da posição do enunciador
dernista de Niemeyer, rebaixa o ad- dentro de seu campo discursivo. Diz
versário na polêmica. Ao afirmar que Maingueneau (2010, p. 196): “para
a maioria dos equipamentos litúrgi- que haja polêmica, é necessário que
cos citados pelo leigo católico mui- sujeitos que ocupam certo lugar per-
cebam tais ou tais enunciados como
tas vezes nem são utilizados, dialoga
intoleráveis do ponto de vista desse
com um posicionamento no interior
lugar, a ponto de julgarem necessá-
do discurso católico que não é o po-
rio entrar em conflito com a suposta
sicionamento do leigo com o qual
fonte desses enunciados”.
polemiza.
A análise mostra como isso acon-
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES À tece nos excertos analisados. Cada
enunciador se manifesta segundo
SELINFRAN
o lugar que ocupa em determinado Além disso, a análise permite pro-
campo discursivo e utiliza os recur- por a tese de que o leigo católico de-
sos que julga eficientes para refutar testa as igrejas projetadas por Nie-
enunciados tomados como intolerá- meyer por ele ser um arquiteto que
veis. Entretanto, um pouco diferen- se declara como comunista e ateu,
temente do que Maingueneau afirma o que demonstra, por parte do lei-
em Gênese dos Discursos (2008) – go católico, uma concepção de obra
que a polêmica mobiliza um espaço (projeto arquitetônico) como reflexo
discursivo, espaço de trocas entre da vida do autor, concepção que é
dois discursos no interior de um mes- bastante conhecida nos estudos de
mo campo discursivo – esta pesquisa literatura e das artes em geral, o que
tem mostrado que a polêmica pode nos motiva para a continuação desta
mobilizar dois campos diferentes, pesquisa em outra frente, tomando
neste caso, o campo religioso cató- como arcabouço teórico o conceito
lico e campo arquitetônico. Essa é de autoria, e a noção de paratopia,
uma questão que forçosamente pre- tais como propostos no livro Discur-
cisaremos explorar em nossa pesqui- so Literário, também de Dominique
sa, ainda em andamento. Maingueneau (2006).

REFERÊNCIAS
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2014. Disponível em:
http://uol.amaivos.com.br/amaivos09/noticia/noticia.asp?cod noticia=18969&cod canal=44. Acesso em
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t=1460840&page=11. Acesso em 4.set.2014.
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GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e his-
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SILVA, E. G. Os (des)encontros da fé: análise interdiscursiva de dois movimentos da Igreja Católica. 2006. Tese
(Doutorado em lingüística) - Departamento de Lingüística do Instituto de Estudos da Linguagem da Universi-
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SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília; ROCHA, Décio. Por que ler Gênese dos discursos? ReVEL, vol.7, n. 13, 2009.
Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em 1.jul.2014.
SELINFRAN

DO LIVRO PARA OS QUADRINHOS – UM ESTUDO DO PROCESSO DE


RETEXTUALIZAÇÃO NA GRAPHIC NOVEL “O ALIENISTA”, DE FÁBIO
MOON E GABRIEL BÁ

Ana Sandra Gonçalves FACCINI


Fernando Aparecido FERREIRA

RESUMO
Esta pesquisa se propõe a analisar a versão em quadrinhos da obra “O alienista”
de Machado de Assis, produzida por Fábio Moon e Gabriel Bá. O objetivo é in-
vestigar o processo de retextualização empreendido pelos autores, buscando,
na comparação com o texto-fonte, revelar se novos efeitos de sentido foram
construídos. A análise se fundamenta nas noções de texto e de produção de
sentido apresentadas por teóricos como Cavalcante (2013), Marcuschi (2008,
2012) e Koch (2003), e nos estudos realizados por Dell’Isola (2007) acerca da
retextualização de gêneros escritos. No sentido de auxiliar a leitura dos qua-
drinhos considerando as especificidades de sua linguagem, os trabalhos de
estudiosos como Ramos (2012) e Eisner (1999, 2013) também foram evocados.
Este estudo se propõe a contribuir com os estudos da linguagem que visam
compreender não só a dinâmica da retextualização, mas também o processo
de produção de sentido no texto verbo-visual.
PALAVRAS-CHAVE: Histórias em Quadrinhos; Machado de Assis; texto; retex-
38 tualização.
ABSTRACT
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This research aims to analyze the comic book version of O Alienista by Macha-
do de Assis, produced by Fabio Moon and Gabriel Bá. The aim is to investigate
the retextualization process undertaken by the authors, seeking, in comparison
with the source text, whether new meaning effects were built. The analysis is
based on the notions of text and meaning production presented by theorists
such as Cavalcante (2013), Marcuschi (2008, 2012) and Koch (2003) and in
studies by Dell’Isola (2007) about retextualization of written genres. In order
to help the reading of the comic books considering the specificities of their
language, work from scholars such as Ramos (2012) and Eisner (1999, 2013) are
also evoked. This study aims to contribute to the language studies that seek to
understand not only the dynamics of retextualization, but also the process of
meaning production in verbal-visual text.
KEYWORDS: Comics; Machado de Assis; text; retextualization.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO simples e “fácil”, mas que na verdade
A Linguística Textual surgiu na se revela rica e complexa, necessitan-
Europa na década de 1960, espe- do ser estudada seriamente para ser
cialmente na Alemanha. Ao longo apreendida em toda a sua potencia-
do desenvolvimento de suas fases lidade.
(transfrástica, gramática textual e Como palavras e imagens são dois
teoria do texto) tornou-se uma fer- importantes elementos das histórias
ramenta de grande utilidade para a em quadrinhos, tanto seu emprego,
compreensão, interpretação e produ- enquanto meio de expressão, como
ção de textos. sua compreensão requerem um con-
As escolas de ensino fundamen- junto de habilidades e experiências
tal e médio precisam utilizar os me- tanto do quadrinista (o autor de his-
canismos da Linguística Textual para tórias em quadrinhos) como do leitor.
o ensino da produção e compre- Neste trabalho propomos analisar
ensão textual, tendo a escola como a versão em quadrinhos da obra “O
sua principal aliada. Os Parâmetros alienista” de Machado de Assis, re-
Curriculares Nacionais de língua por- textualizada por Fábio Moon e Ga-
tuguesa procuram difundir e buscar briel Bá.
uma nova metodologia para um ensi- Buscando compreender o proces-
no mais prazeroso e eficaz, mas essa so de retextualização empreendido
teoria ainda não é suficientemente por Fábio Moon e Gabriel Bá, da obra
conhecida pelos professores de lín- de Machado de Assis, estabelecemos
gua portuguesa em geral. E esse é como recorte o primeiro capítulo de
um dos propósitos desta pesquisa. “O Alienista” para os quadrinhos. O
Desde o seu surgimento, as histó- texto de Machado de Assis será con-
rias em quadrinhos são vistas como frontado com o texto e as imagens
um gênero popular, de acesso fácil da versão quadrinizada. 39
e de apelo ao grande público. Nesse Esta análise busca investigar o

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


sentido, há um senso comum de que processo de retextualização empre-
elas atendem às necessidades da- endido por Moon e Bá, buscando, na
queles que estão iniciando seu pro- comparação com o texto-fonte, reve-
cesso de leitura, bem como daqueles lar se (e quais) novos efeitos de senti-
menos propensos a leitura de clássi- do foram construídos, considerando
cos, ou livros “difíceis”. Entretanto, a não só as supressões sofridas pelo
riqueza do aspecto visual dos qua- texto original de Machado de Assis,
drinhos, com suas possibilidades de mas também os sentidos advindos
interpretação, envolvendo a relação do acréscimo de elementos não-ver-
imagem-texto, o uso expressivo das bais, próprios da linguagem dos qua-
cores, a fragmentação e organização drinhos, a saber: o balão, os requa-
de narrativas em quadros, entre mui- dros, a gestualidade e o design dos
tos outros aspectos, revelam uma lin- personagens, o timing 1, etc.
guagem que só na superfície parece 1 Segundo Eisner (1999, p. 26) o timing “é o uso dos elementos do
SELINFRAN

Para atingirmos esse objetivo nos dem numa unidade de sentido; pode
amparamos no referencial teórico da ser também uma composição que
Linguística Textual, utilizando autores utilize somente imagem. Sendo o pri-
como Koch (2003), Marcuschi (2008 meiro, configura-se como um texto
e 2012), Cavalcanti (2013), Dell’Isola sincrético, já sendo o segundo, como
(2007), Costa (2014) e Fiorin (2012). um texto não sincrético. Conforme
Para os estudos específicos dos qua- explica Fiorin (2012, p.150):
drinhos, consideramos os trabalhos Existe uma primeira tipologia de
de autores como Eisner (1999 e 2013), textos: os não sincréticos, que
Ramos (2012), Vergueiro e Ramos são a manifestação de um dis-
(2009) e Barbosa (2007). Para tanto, curso por uma só linguagem, ou
algumas definições são relevantes. mais precisamente, por uma só
substância de expressão (um tex-
DO TEXTO À RETEXTUALIZAÇÃO to escrito, uma fotografia, uma
pintura, etc.), e os sincréticos,
Como tratamos, neste trabalho, da que manifestam um discurso por
retextualização do conto “O Alienis- várias linguagens, ou, mais tecni-
ta” para as histórias em quadrinhos, camente, por diferentes substân-
torna-se fundamental, para a análise cias de expressão (o cinema, a
do nosso objeto de estudo, os concei- ópera, o jornal, etc.).
tos de texto, gênero e, naturalmente, Como neste trabalho tratamos da
a noção de retextualização. retextualização de “O Alienista” para
Essas conceituações inclusive re- os quadrinhos, cabe, então, também
forçarão a relevância da Linguística definirmos esse conceito. Confor-
Textual para o estudo da linguagem me Dell’Isola (2007, p.10), a retextu-
e para a compreensão do processo alização pode ser entendida como a
que envolve a construção de senti- transformação de uma modalidade
dos através do texto. textual em outra modalidade, tornan-
40 do evidente o funcionamento da lin-
Segundo Koch (2003, p.30):
guagem nesse processo. Nessa ação,
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Um texto se constitui como tal que envolve a passagem de um texto


no momento em que os parcei- para outro, é sempre possível haver
ros de uma atividade comunica- interferências muito ou pouco acen-
tiva global, diante de uma mani-
tuadas; dependendo de como cada
festação linguística, pela atuação
gênero se organiza.
conjunta de uma complexa rede
de fatores de ordem situacional, Dell’Isola destaca que na retextu-
cognitiva, sociocultural e intera- alização, o processo de formatação
cional, são capazes de construir, característico de cada gênero deverá
para ela, determinado sentido. ser respeitado. Esse processo deve
O texto também pode ser uma levar em conta o conteúdo do texto
combinação de texto verbal e não original e as alterações também não
verbal, onde texto e imagem se fun- devem ser muitas, devendo ocorrer
tempo para a obtenção de uma mensagem ou emoção específica”.
uma modificação quando o gênero
SELINFRAN
assim o exigir, pois cada gênero pos- tirinhas, as charges, os cartuns, to-
sui necessidades estruturais e linguís- dos eles fazem parte desse universo
ticas, que diferem entre si. e como sua classificação é um tanto
Dell’Isola (2007, p.22) define gêne- confusa, sua compreensão torna-se
ro como modelos que correspondem problemática, pois cada um deles
“a formas sociais reconhecíveis nas tem um propósito comunicativo.
situações de comunicação em que Nos gêneros que se utilizam da
ocorrem”. Tem relativa estabilidade, linguagem dos quadrinhos, há predo-
de acordo com o momento histórico mínio da sequência textual narrativa,
social em que “surge e circula”. podendo ocorrer em um quadrinho
Cabe então considerarmos aqui ou mais, variando de acordo com
as características dos gêneros conto cada gênero, tendo maior tendência
e histórias em quadrinhos. Segundo em usar imagens desenhadas, oca-
Costa (2014, p. 86), o conto, assim sionalmente podendo ser imagens
como o romance, é um gênero tex- fotográficas.
tual narrativo. No entanto, o que o Costa destaca que as histórias
difere do romance, é que “o conto é em quadrinhos de diferenciam pelo
mais curto (short story, em inglês), uso de:
isto é, de configuração material pou- [...] alguns recursos icônico-ver-
co extensa”. E também traz, em de- bais próprios ou muito recorren-
corrência da sua extensão reduzida, tes, com uma morfossintaxe e
em relação ao romance, as seguintes sintaxe discursivas específicas:
características: o desenho, o requadro (contor-
no do quadrinho ou vinheta), o
(i) número reduzido de persona-
balão, a figura, o uso de onoma-
gens ou tipo; (ii) esquema tem-
topeias ou legendas, a elipse, a
poral e ambiental econômico,
página ou prancha, conjugando
muitas vezes, restrito; (iii) uma ou
discursos verbal e pictogramas 41
poucas ações, concentrando os
(COSTA, 2014, p. 142)
eventos e não permitindo intri-

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gas secundárias como no roman-
ce ou na novela, e (iv) uma unida- DESCRIÇÃO E ANÁLISE PILOTO
de de técnica e de tom (fracção DO CORPUS
dramática, sedutora, em que “O Alienista” de Machado de Assis
tempo, espaço e personagem conta a história de um médico, o Dr.
se fundem, muitas vezes) que o
Simão Bacamarte, que aos quarenta
romance não mantém. (COSTA,
2014, p. 87)
anos casou-se com D. Evarista, que
não lhe deu filhos. Mergulhado intei-
Já as histórias em quadrinhos pode ramente no estudo e na prática da
ser definida como um hipergênero, medicina, Bacamarte dedicou-se a
como afirma Ramos (2012, p. 20), já um dos recantos de sua profissão que
que muitos são os gêneros que se lhe chamou especialmente a aten-
utilizam da linguagem dos quadri- ção – o recanto psíquico, o exame de
nhos. As histórias em quadrinhos, as
SELINFRAN

patologia cerebral. Estabelecido na Inicialmente percebe-se que na


cidade de Itaguaí, na qual ninguém transposição do primeiro capítulo do
cuidava dos dementes, Bacamarte texto original de Machado de Assis –
entendeu desde logo a necessidade intitulado “De como Itaguaí ganhou
de reformar tal costume. Pediu licen- uma casa de Orates” – para os qua-
ça à Câmara para agasalhar e tratar, drinhos, ocorre a manutenção literal
no edifício que ia construir, todos os dos dois primeiros parágrafos e de
loucos de Itaguaí e das demais vilas parte do terceiro. O segundo perío-
e cidades. A Casa Verde foi o nome do do terceiro parágrafo, os períodos
dado ao asilo. Passados quatro me- posteriores, o quarto e parte do quin-
ses, a Casa Verde era uma povoação. to parágrafos foram suprimidos.
Auxiliado pelo servil farmacêutico O 3º parágrafo, suprimido, em par-
Crispim, Bacamarte, envolvido em te, na HQ, traz a descrição de D. Eva-
suas pesquisas sobre os problemas rista que, de acordo com Massaud
psíquicos, inverte os conceitos sobre Moisés (2007, p.129), retrata com hu-
a loucura, e passa a internar na Casa mor a esposa de Bacamarte. Já na
Verde aqueles que antes estavam retextualização para os quadrinhos, a
dentro de sua sanidade. Isso provo- ausência dessa descrição decorre do
ca revolta entre os moradores de Ita- tom mais sério que parece ter sido
guaí. Liderados pelo barbeiro Porfírio, adotado por Moon e Bá.
a população promove uma rebelião
para derrubar a Casa. Porfírio tem o Os quadrinhos também dão ênfa-
mando supremo da câmara e, como se maior no relato biográfico do pro-
suas intenções não eram na verdade tagonista, o que torna o personagem
pelo povo, não consegue destruir a de Bacamarte ainda mais relevante,
Casa Verde, sendo destituído do car- deixando de lado a esposa, pelo me-
go. Simão Bacamarte mantém-se im- nos nesse primeiro momento, no qual
passível. Após a queda do barbeiro, o contexto da narrativa e o seu per-
42 sonagem principal são apresentados.
a desenfreada internação dos “de-
mentes” continua. Por fim, Bacamar- Dessa ausência descritiva da perso-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

te, levado por suas pesquisas, coloca nagem de D. Evarista, podemos tam-
todos os loucos na rua e se tranca na bém supor a necessidade de uma re-
Casa Verde para estudar a cura de si dução na passagem do tempo, para
mesmo, morrendo pouco depois. que esse primeiro momento se de-
Na retextualização do primeiro ca- senvolva mais rapidamente, manten-
pítulo de “O Alienista” para os quadri- do-se somente o marcador temporal
nhos, Fábio Moon e Gabriel Bá fazem “Aos trinta e quatro anos”, presente
algumas coerções do original para a em ambos os textos, excluindo “Aos
nova versão. Nessas alterações, ainda quarenta anos” nos quadrinhos.
que mantendo muito da narrativa ori- Conforme exposto, como a confi-
ginal, supressões são feitas, para se guração geral da história em quadri-
adequar ao gênero verbo-visual das nhos apresenta uma sobreposição de
HQs. imagens e palavras, é preciso que o
SELINFRAN
leitor acione suas habilidades de in- sões, mas não no estilo. A variação
terpretação visual e verbal para uma dá ritmo para a leitura e cria ênfases.
boa leitura. Moon e Bá adotam um modelo neu-
A história é apresentada em qua- tro do balão, sendo este formado por
drinhos que diferem nas suas dimen- uma linha preta e contínua (curvilí-
nea).

43

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Fig. 1: Primeira página da versão em quadrinhos fechado (próximo ao rosto do per-


de “O Alienista”
Fonte: (MOON; BÁ, 2007)
sonagem) refletindo sobre a função
de médico psiquiatra que exerceria
A primeira página da retextuali- em Itaguaí. O requadro dá destaque
zação do capítulo 1 (Fig. 1), inicia-se e aproxima o leitor de Bacamarte.
com Simão Bacamarte em um plano
SELINFRAN

A descrição do médico de imediato configurações visuais, indo ao encon-


nesse requadro, tira-o do contexto. tro da relação observada por Proen-
Segundo Eisner (1999, p. 21), “expres- ça (2001). Naturalmente um conhe-
sões faciais que afetam a narrativa cedor da obra de Cervantes pode
exigem close-ups” estabelecer relação entre uma obra
O último quadro, e o maior da pá- e outra. Nesse caso, além do conhe-
gina, é decomposto, fragmentado cimento linguístico, o conhecimen-
em dois quadros: o quarto e o quinto. to enciclopédico, também, pode ser
Cada um representa uma cena de um acionado, pois quanto maiores forem
ponto de vista diferente. os tipos de conhecimento que o lei-
tor possui, maior será a produção de
Na mesma página, acompanhado sentido empreendida na análise.
de seu amigo Crispim Soares, vemos
Bacamarte diante da câmara dos ve- Na segunda página (Fig. 2), no 1º
readores, solicitando às autoridades quadrinho, num contexto geral, Baca-
um espaço específico para cuidar dos marte e Crispim aparecem em primei-
doentes. O requadro é amplo e domi- ro plano e D. Evarista, em segundo,
na a página, ocupando praticamente acompanhada do padre Lopes. No 2º
sua metade. O plano é geral (mostra quadrinho, padre Lopes e D.Evarista
todo o contexto da cena – a relação conversam sobre seu marido, estan-
dos personagens com o ambiente). do agora em primeiro plano, para dar
A amplitude do requadro possibilita ênfase ao diálogo de ambos.
uma inserção maior de textos, que os Este trecho, no texto-fonte, padre
autores distribuem de forma dinâmi- Lopes é apresentado na narrativa
ca, fazendo o leitor percorrer toda a através do discurso indireto e, como
cena com o olhar. Isso faz com que nos quadrinhos, a imagem mostra
o leitor se detenha mais no requa- o padre que pode ser identificado
dro. Essa parece ser a intenção dos como tal pelo uso de uma batina, não
44 autores, que dão um ritmo mais len- há necessidade da descrição em pa-
to para essa cena mas, ao contrário, lavras do vigário. Em ambas as passa-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

usando uma imagem síntese, que re- gens, o sentido permanece o mesmo,
vela o esforço de Bacamarte para a a mudança do discurso indireto para
autorização do tratamento dos “lou- o discurso direto ocorreu, porque o
cos” de Itaguaí. gênero história em quadrinhos pos-
A imagem, de forte simbolismo, sui maior quantidade de diálogos, o
representa Bacamarte e Crispim de que acarreta a mudança, necessária
costas, submissos, diante da câma- para adequação ao gênero.
ra, que é disposta no alto e nas som- Na segunda página da HQ de Moon
bras, reforçando seu poder e papel e Bá (Fig. 2), o 3º, 4º e 5º quadros, es-
julgador. Também cabe notar que as treitos e de igual tamanho, represen-
figuras de Bacamarte e Crispim, nes- tam o ritmo das cenas, a velocidade
ta primeira página, remetem ao Dom com que o diálogo entre Bacamar-
Quixote e Sancho Pança em suas te e sua esposa acontece e também
SELINFRAN
marcam quão distantes eles estão na adaptação, o discurso direto aparece
intimidade. O que Machado de Assis por meio do balão de fala.
dá a entender em palavras, Moon e Ainda na página 2 (fig. 2), de acor-
Bá reforçam em imagens. do com Eisner (1999, p.19), “as mu-
danças de cenário servem para mos-
trar a locação” dos personagens (na
rua e depois dentro de casa) e que
naturalmente envolve a passagem do
tempo, pois no gênero história em
quadrinhos tempo e espaço têm es-
treita relação, o que pode ser confir-
mado através das imagens.

Fig. 2: Segunda página da versão em quadrinhos


de O Alienista
Fonte: (MOON; BÁ, 2007)
45
No 3º requadro, Bacamarte e D.

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Evarista são representados em um
plano geral, fazendo uma refeição,
cada qual sentado em uma extremi-
dade da mesa. A cena é seguida por
dois requadros que apresentam D.
Evarista e Bacamarte em close. Os
quadros separados reiteram a distân-
cia de ambos, e também contrasta a
expressão “fria” de Bacamarte com a Fig. 3: Terceira página da versão em quadrinhos
reação de decepção de D. Evarista. de O Alienista
Fonte: (MOON; BÁ, 2007)
No terceiro quadrinho, há também
uma alteração no texto. Nesse tre- Na terceira página (Fig. 3) há três
cho, no texto-fonte, o discurso apa- quadrinhos2, representados de di-
rece como indireto. No entanto, na 2 Descartamos o quarto quadrinho nesta análise, pois o mesmo dá iní-
SELINFRAN

ferentes tamanhos, atribuindo ain- Somente no 2º quadro, o texto gra-


da significativo sentido à passagem vado no frontispício sofre alteração e
de tempo. No primeiro e segundo tem seu sentido alterado, no texto-
quadrinhos o ritmo se mantém por -fonte, “Maomé declara veneráveis
terem tamanho quase iguais. O se- os doídos, pela consideração de que
gundo faz parte do terceiro, o qual é Alá lhes tira o juízo para que não pe-
decomposto, fragmentado. Mais uma quem” e no texto adaptado aparece,
vez, Bá e Moon apresentam cenas de “Veneráveis são os doidos. Deus lhes
pontos de vista distintos. O close fei- tira o juízo para que não pequem”.
to no segundo quadro, enfatiza o tex- Nessa passagem, notamos que a
to gravado por Bacamarte no frontis- necessidade de alteração no texto,
pício da Casa Verde: “Veneráveis são pode ter ocorrido devido ao fato de
os doidos. Deus lhes tira o juízo para que Bacamarte atribuiu a frase árabe
que não pequem”. a um papa. O termo “Alá” foi substitu-
Já no terceiro quadro, longo e esti- ído por “Deus”, pois, nos quadrinhos,
cado, é representada uma visão mais o médico parece não expor tanto a
ampla da Casa Verde, para mostrar sabedoria do vigário aos moradores
que sua construção foi feita na rua da pequena Itaguaí.
mais bela de Itaguaí e, também, o Também percebemos, nas três pá-
longo tempo que duraram as come- ginas analisadas, que os quadrinistas
morações de inauguração da casa de focam na construção do personagem
orates que foi uma semana, reforça- Simão Bacamarte, que é represen-
da no texto “ao cabo de 7 dias expi- tado como um homem sério, sagaz,
raram as festas públicas, Itaguaí tinha determinado. Em alguns quadros
finalmente uma casa de orates”. Esse aparecem suas mãos com os dedos
quadrinho, também pode ser maior, entrelaçados ou com as mãos para
por fazer parte do último parágrafo trás, sempre num gesto pensativo, re-
46 do primeiro capítulo do texto-fonte e, flexivo. Essa constante atitude de Ba-
provavelmente, não cabe ao gênero camarte, está associada à sua postu-
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história em quadrinhos ceder espaço ra, como um homem da ciência, que


na mesma tira, para um outro quadro, não se deixa levar pelas emoções.
o qual corresponde ao segundo capí-
tulo do texto original, o que justifica Esse caráter gestual está associa-
o tamanho do requadro. do ao que Eisner chama de “anato-
mia expressiva”. Segundo ele (1999,
Na página analisada, ainda é possí- p. 100), a memória é responsável pelo
vel observar que, na retextualização, armazenamento codificado dos “ges-
o texto-fonte foi suprimido em gran- tos de origem emocional e das suas
de parte, mas com pouca ou quase posturas expressivas”, “formando um
nenhuma alteração permanecendo o vocabulário não-verbal de gestos”.
mesmo sentido em quase sua totali- Nas histórias em quadrinhos, o re-
dade. quadro faz parte de sua tecnologia,
cio à retextualização do capítulo 2 do texto-fonte, não abordado aqui. não ocorrendo o mesmo com as pos-
SELINFRAN
turas adotadas pelo homem. Essas meos Moon e Bá o mantiveram com
posturas fazem parte da memória da muita habilidade, conservando quase
experiência, e são empregadas pelo tudo do texto original.
autor para expressar a sua ideia. Ao comparar as obras valorizou-
Ramos (2012, p.115) afirma: -se ainda mais a riqueza do texto de
As expressões faciais e as metá- Machado de Assis. Quando retextu-
foras visuais se somam aos ges- alizado, verificou-se o quanto seus
tos dos personagens e à postura sentidos podem ser explorados. As
do corpo. Ambos têm de estar formas linguísticas suprimidas, os
em perfeita sintonia com a ima- discursos transpostos do direto para
gem representada, de modo a re- o indireto, bem como o inverso, suge-
forçar o sentido pretendido. riram novos sentidos.
Todos esses elementos icônicos, Foi possível verificar que o conto
o balão, os requadros, a gestualida- se transformou em uma história em
de, etc., que caracterizam a história quadrinhos, não só pela criação de
em quadrinhos, ancorados ao texto imagens dispostas nos requadros e a
verbal, podem direcionar, induzir, su- inserção do texto verbal nos balões,
gerir sentidos ao texto. Cada leitor, a mas de diálogos e descrições supri-
partir de seus conhecimentos, sejam midos substituídos por outros.
eles provenientes de sua vivência, do
Como pôde ser visto, a descrição
domínio linguístico e/ou do conheci-
de D. Evarista ficou ausente nas pá-
mento interacional empreender um
ginas analisadas da graphic novel,
nível de leitura e interpretação, cons-
cedendo espaço à apresentação do
truindo os diversos sentidos que o
protagonista, mas cada palavra tem
texto pode suscitar.
sua razão de ser na narrativa de tal
forma que uma substituição ou alte-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
ração pode afetar o conto. 47
A análise comparativa da obra de
Nos quadrinhos, a relação tempo

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Machado de Assis com a graphic no-
e espaço está estreitamente ligada,
vel de Fábio Moon e Gabriel Bá, a
ao protagonista e a outras persona-
princípio pareceu revelar uma simples
gens que aparecem, mas em diferen-
refacção textual, transformando um
tes lugares: a cidade que aloja todos
texto verbal em um texto verbo-visu-
os espaços, a casa de Bacamarte, a
al. No entanto, ao longo das análises,
câmara, a rua, a Casa Verde. Essas
os sentidos advindos das alterações
mudanças de espaço confirmam a
foram confirmando a nova autoria da
passagem do tempo na versão ana-
obra retextualizada.
lisada.
Dell’Isola em sua teoria sobre re-
No conto, os acontecimentos nar-
textualização de gêneros textuais
rados se dão num curto espaço de
escritos afirma que se deve manter
tempo e restringe-se a poucos luga-
a essência do texto original. Os gê-
res, visto a necessidade de o gênero,
SELINFRAN

por sua objetividade, em sustentar a ocorra, como é o caso do diálogo,


dramaticidade num só local. Quando sem sua presença, não há desaven-
ocorre de, no conto, as ações ocorre- ças, nem ação no conto.
rem em diversos lugares nesse caso, A adaptação de Fábio Moon e Ga-
é porque os outros espaços são va- briel Bá mostra e confirma, através
zios de dramaticidade. das imagens, que a mudança estrutu-
Também não se pode deixar de ral transformou um gênero em outro
notar, mesmo que com pouca fre- descaracterizando o conto para se
quência, a alteração ou ausência do tornar uma graphic novel, cumprindo
discurso indireto para o direto ou o o propósito dos contadores de histó-
oposto que se transformaram, sendo rias, ao buscar a renovação com cria-
tão necessários para que o conflito tividade.

REFERÊNCIAS
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48 MARCUSCHI, L. A. Linguística do texto – o que é e como se faz? São Paulo: Parábola, 2012.
______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 3ª Ed. São Paulo. Parábola Editorial, 2008.
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VERGUEIRO, W.; RAMOS P. Muito além dos quadrinhos: análise e reflexões sobre a 9ª arte. São Paulo: Devir,
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______. Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. São Paulo: Contexto, 2009.
SELINFRAN
DO MÍSTICO AO POLÍTICO: UMA LEITURA BAKHTINIANA DO
ROMANCE QUARUP DE ANTONIO CALLADO

André Plez SILVA


Juscelino PERNAMBUCO

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo analisar o processo estilístico do ro-
mance Quarup (1967), de Antonio Callado, que se insere no quadro da litera-
tura produzida pós-64, a qual explora e expressa o meio social de seu tempo.
Consideramos que a construção do estilo não se trata de uma escolha indivi-
dual e isolada, pois está ligada à estilística sociológica, ressoando o diálogo
social no próprio discurso e em todos os seus elementos, tanto em nível formal
quanto de conteúdo. Para tanto, analisaremos dialogicamente o percurso do
herói Nando, sob o viés das relações dialógicas de Bakhtin. Verificou-se que o
gênero romanesco está inserido em uma estratificação interna da linguagem,
revelando a diversidade social e a divergência de vozes sociais que ele encerra,
elencando uma realidade plurilinguística, pluridiscursiva e plurivocal.
PALAVRAS-CHAVE: Estilo em Bakhtin; relações dialógicas; Quarup; Antonio
Callado.
ABSTRACT
The present work has as objective analyzes the stylistic process of the romance 49
Quarup (1967), of Antonio Callado, that interferes in the picture of the produced

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literature powder-64, which explores and expresses the social way of your time.
We considered that the construction of the style is not treated of an individual
and isolated choice, because it is linked to the sociological stylistic, tuning the
social dialogue in the own speech and in all your elements, so much in formal
level as of content. For so much, we will analyze dialogically the course of the
hero Nando, under the inclination of the dialogical relationships of Bakhtin. It
was verified that the romantic gender is inserted in a bedding it interns of the
language, revealing the social diversity and the divergence of social voices that
he contains, demonstrating a reality plurilinguistic, pluridiscursive and plurivo-
cal.
KEYWORDS: Style in Bakhtin; dialogical relations; Quarup; Antonio Callado.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO Justifica-se o estudo devido à am-


plitude que a obra assume diante do
O presente artigo tem como foco
cenário político no Brasil, como reve-
uma investigação bakhtiniana no dis-
lador do ângulo dialógico do estilo,
curso romanesco da obra Quarup, de
que vai do verbal ao extraverbal, com
Antonio Callado, inserido na chamada
o intuito de revelar a alma do brasilei-
literatura de resistência dos anos 60.
ro, sendo o estilo realmente definidor
É-nos possível tal análise mediante a
da obra.
revelação do diálogo vivo que a obra
estabelece com a cultura e a história, O objetivo da pesquisa é analisar
uma vez que se mostra como uma os modos de constituição do estilo
literatura engajada e de denúncia, do romance, verificando a organiza-
surgida em uma época de ebulições ção do plurilinguismo social, de suas
políticas e de grande fragmentação formas exteriores, seus gêneros in-
intelectual, revelando-se como uma tercalados, o autor-pessoa e o autor-
arte que visava à resistência, por es- -criador, o cronotopo, ou seja, a ar-
tar inserida no contexto dos anos de quitetônica do romance, segundo os
chumbo, ou seja, na Ditadura Militar preceitos filosóficos de Bakhtin.
no Brasil. As transformações que o herói
Lançado em 1967, Quarup reflete Nando sofre ao longo da narrativa
um contexto sócio-histórico contur- revelam um movimento dialógico em
bado, e seu enredo multifacetado re- direção à alteridade, pois a partir das
vela os percursos do autor-pessoa, relações do protagonista com as de-
sendo Antonio Callado um jornalis- mais personagens, sua concepção de
ta em busca da identidade do Brasil, mundo se altera, sempre a partir da
fato que culminou em diversas repor- presença deste outro, que o remete
tagens constantes no livro Tempo de a um movimento de busca e de re-
Arraes, que se mesclaram ao roteiro conhecimento de si mesmo por meio
50 destas interações agonísticas. O he-
do romance em estudo.
rói, neste caso, mostra-se num pro-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

A importância histórica da obra re-


cesso contínuo de transformação, de
cai no fato de resgatar as raízes so-
(re)valoração de conceitos, não se
ciais e os construtos políticos e ide-
limita a um quadro esquemático de
ológicos de um Brasil marcado por
personalidade, mas vivamente inseri-
conflitos, tais como a opressão e re-
do dentro de situações que mostram
pressão política na ditadura militar,
como a identidade é dialógica, ou
os movimentos guerrilheiros, a teo-
seja, formada a partir das vozes dos
logia da libertação, a liberdade sexu-
outros.
al, o uso de drogas, a luta dos povos
indígenas para a preservação de sua Como arcabouço teórico, segui-
cultura; ou seja, um amálgama de si- mos Bakhtin em seus conceitos de
tuações ideológicas que cercam uma dialogismo, alteridade, estilo, crono-
perspectiva discursiva de estilo. topo, exotopia, autor-pessoa e au-
tor-criador ([1926]; 1993; 2009; 2011;
SELINFRAN
2013), além de seus comentadores, em miniatura onde se entrecruzam e
tais como Fiorin (2011), Brait (2012), lutam os valores sociais de orientação
Faraco (2013), Machado (1990), Mar- contraditória. A palavra revela-se, no
chezan (2015). A metodologia da momento de sua expressão, como o
pesquisa consistiu em levantamento produto da interação viva das forças
qualitativo de cunho bibliográfico das sociais” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
obras do filósofo russo, além do mé- 2009, p. 67).
todo indutivo, que consistiu no uso e A partir desses pensamentos,
aplicação dos métodos de Bakhtin e podemos afirmar que, para Bakhtin e
de seu Círculo para chegar ao geral, seu Círculo, a língua somente atinge
reforçando a importância das obras a sua totalidade em seu uso real, ou
de Bakhtin e de seu Círculo e sua seja, em sua propriedade dialógica.
contribuição para os estudos da lin- Todos os enunciados no processo de
guagem e do romance. comunicação são dialógicos. A pala-
vra é sempre repassada pela palavra
O DIALOGISMO EM BAKHTIN do outro, dessa forma, para se cons-
O dialogismo não é meramente tituir um discurso, leva-se em conta
uma teoria científica, mas uma filo- o discurso de outrem, utilizando-o de
sofia perpetuada por conceitos que alguma maneira no seu discurso. Esse
abrangem o ato de existir, sendo que seria o funcionamento real da lingua-
a vida, para Bakhtin, se mostra dialó- gem, pois absorver o discurso alheio
gica por natureza e o diálogo figura no próprio enunciado torna possível
como a participação do homem com o dialogismo. Conforme Bakhtin/Vo-
o existir, que se manifesta por meio lochínov:
de respostas. É precisamente essa comuni-
Segundo o filósofo russo, a cação dialógica que constitui o
enunciação se mostra como uma ré- verdadeiro campo da vida da lin-
guagem. Toda a vida da lingua- 51
plica do diálogo social, firmando-se
gem, seja qual for o seu campo
como discurso interior, ou seja, um

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de emprego (a linguagem coti-
diálogo consigo mesmo, ou com o diana, a prática, a científica, a ar-
exterior. Assim, a enunciação sendo tística, etc.) está impregnada de
social, torna-se ideológica, pois pre- relações dialógicas (BAKHTIN/
sume-se que não exista fora de um VOLOCHÍNOV, 2009, p. 183).
contexto social.
Dessa forma, Bakhtin concebe o
Dessa forma, podemos auferir dialogismo como constitutivo da lin-
que as relações dialógicas são um guagem e condição de sentido do
diálogo que não tem fim, pois vincu- discurso, sendo que a verdadeira es-
la a reação do eu ao outro, ou seja, sência da língua não pode ser abstra-
uma viva reação da palavra à palavra ta – objetivismo -, ou monológica, ou
do outro, gerando assim um embate seja, isolada – individualismo -, mas
entre valores e forças sociais, o que constituindo-se na interação verbal
Bakhtin denomina como uma “arena que se realiza na enunciação.
SELINFRAN

A enunciação, que “está na frontei- Assim, prevemos que a noção de


ra entre a vida e o aspecto verbal do estilo que defendemos nesse estudo,
enunciado”, transporta para o discur- não pode se confundir com a estilís-
so verbal a “energia de uma situação tica clássica, ou seja, com a concep-
de vida” (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, ção tradicional, que toma este recur-
[1926], p. 14), conferindo o seu cará- so expressivo como algo meramente
ter único a esse momento de intera- monológico, individual, particular.
ção. Dessa forma, o enunciado reflete Quando se investiga a questão de
a interação social, e seu sentido está estilo nos estudos bakhtinianos, per-
determinado pela interação dessas cebe-se que tal levante possui uma
vozes, que representam posições so- especificação bem mais abrangente,
ciais e ideológicas na sociedade. O pois não considera somente os as-
dialogismo é, portanto, uma condi- pectos composicionais do texto, mas
ção constitutiva do sentido. o que se revela nos interstícios do
Portanto, configurou-se que o dia- discurso, em suas interrelações entre
logismo não se apresenta apenas o autor, o herói e o ouvinte. Portanto,
como uma categoria de análise, mas seguiremos as indicações de Bakh-
como uma visão de mundo, sendo en- tin/Volochínov acerca dessa questão:
tendido como o encontro das vozes, O estilo do poeta é engendrado
o entrecruzamento, o duelo de vozes do estilo de sua fala interior, o
dos enunciados, das mais variadas qual não se submete a controle,
atividades humanas, que se comple- e sua fala interior é ela mesma o
mentam, discordam e se questionam produto de sua vida social intei-
mutuamente, levando a reconhecer o ra, “O estilo é o homem”, dizem;
interior dos discursos, identificando mas poderíamos dizer: o estilo
respostas a outros discursos; sendo é pelo menos duas pessoas ou,
mais precisamente, uma pessoa
o encontro de enunciados que se re-
mais seu grupo social na forma
52 fletem e se refratam, dialogando com
do seu representante autorizado,
vozes de outros enunciados, forman- o ouvinte – o participante cons-
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do assim uma cadeia verbal, ou seja, tante na fala interior e exterior de


as relações dialógicas. uma pessoa. (BAKHTIN/VOLO-
CHÍNOV, [1926], p.23)
O ESTILO DIALÓGICO - ELEMEN- Portanto, podemos considerar que
TOS DE UMA ESTILÍSITICA SO- a construção do estilo dá-se não so-
CIOLÓGICA NO ROMANCE mente por escolhas individuais e iso-
Quando pensamos em estudar o ladas, mas que está indissoluvelmen-
estilo na visão de Bakhtin, partimos te ligada à vida social do discurso, ao
do princípio de que, para o filósofo que chamamos de relações dialógi-
russo, a linguagem é pautada na re- cas, sendo o discurso que um autor
lação dialógica, ou seja, sempre traz estabelece com outros discursos, de
em si a voz do outro, a presença mar- outras obras e autores, em uma ca-
cante da alteridade como constituti- deia ininterrupta de interações so-
va do sujeito. cialmente interpenetradas.
SELINFRAN
A ARQUITETÔNICA DO ROMAN- ficação interna da linguagem, a
CE E SEUS VALORES diversidade social de linguagens
e a divergência de vozes indivi-
Ao firmarmos pressupostos teóri- duais é que constituem a verda-
cos que visem analisar o percurso de deira premissa da prosa roma-
Bakhtin acerca da formação do ro- nesca. (PERNAMBUCO, 2012, p.
mance como gênero em devir, deve- 185-186)
mos reiterar as importantes concep- Ao verificarmos a presença das
ções já elencadas nessa dissertação, interações dialógicas nas esferas
quando falamos sobre o dialogismo da atividade humana, sobretudo na
e o estilo sociológico. Dessa for- constituição dos gêneros discursivos,
ma, não podemos compreender as que para Bakhtin são infinitos, per-
abordagens do filósofo russo sobre cebemos que o gênero romanesco é
o romance somente pelo viés da lin- o único capaz de explicitar o caráter
guística, pois Bakhtin compreendia o de uma época e seu desdobramento
discurso literário como um fenôme- futuro. Machado salienta ainda que
no estético plenamente articulado ao o romance é o único gênero capaz
contexto cultural mais amplo. de sintetizar as “representações cul-
Para Bakhtin, a constituição do turais formadas ao longo do tempo,
romance possui um caráter pluridis- como também um embrião de pro-
cursivo, firmando na relação com o cedimentos para composições fu-
outro a exemplificação de que a arte turas”, num diálogo “transtemporal”
participa de um movimento rumo à que, representando o tempo presen-
alteridade, em suas relações intrín- te, “descobre um tempo que não é o
secas e extrínsecas entre a vida indi- seu” (MACHADO, 1990, p. 135).
vidual e o todo social, criando nessa Assim, percebemos que o romance
interação um enlevo entre o roman- se mostra como um gênero em devir,
ce e outros gêneros, tanto textuais graças a seu inacabamento, sendo
quando artísticos, criando redes plu- 53
que esta tendência composicional
rilinguísticas que revelam a interde- define-o poeticamente como um gê-

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pendência entre o eu e o outro, dia- nero em que se reúnem esteticamen-
logicamente imbricadas no contexto te uma gama significativa de diferen-
histórico a que pertencem. tes línguas e vozes sociais, trazendo
Recorremos a Pernambuco ao romance característica plurivocal.
(2012) , que nos revela:
[...] o romance se caracteriza A REPRESENTAÇÃO DIALÓGICA
como um fenômeno pluriestilísti- DO TEMPO NO ROMANCE QUA-
co, plurilíngue e plurivocal e que RUP
é graças ao plurilinguismo social O termo cronotopo tem ligação
e ao plurivocalismo que ele orga- restrita com o tema de Einstein em
niza o concerto de todos os seus
sua teoria da relatividade, servindo
temas, seu mundo objetal, se-
mântico, figurativo e expressivo.
como metáfora para as relações en-
Descobre também que a estrati- tre espaço e tempo na literatura, con-
SELINFRAN

tudo, fugindo das abstrações mate- da teoria bakhtiniana sobre o roman-


matizadas dos estruturalistas. ce e sobre as relações dialógicas que
Para Fiorin, o mundo se confi- envolvem cada plano do todo artís-
gura por meio de cronotopos, servin- tico, buscando no percurso do herói
do como ponte entre o mundo real Nando as marcas da dialogicidade
e o mundo representado, interagindo que levam o sujeito, a partir da inte-
reciprocamente, firmando uma cos- ração com o outro e seu excedente
movisão que determina a imagem do de visão, a assumir uma nova condi-
homem na literatura. Salienta ainda ção de percepção do mundo, a par-
que “a relação entre espaço e tempo tir do conceito de alteridade, sendo
é indissolúvel” (FIORIN, 2011, p. 107). esta um atributo da identidade. Bus-
Assim, o estudo da cronotopia nos caremos traçar tal caminho, tentando
revela que o tempo e o espaço são identificar nas mudanças de identi-
categorias que fazem parte da nossa dade do herói, as transformações po-
realidade premente, mostrando que líticas do próprio Brasil, uma vez que,
o romance nos permite conhecer e segundo a concepção declarada nos
reconhecer o mundo e a linguagem, capítulos precedentes, o gênero ro-
sendo esta representação, uma rea- manesco revela uma diversidade de
lidade dialógica, o que nos permite vozes sociais, que emergem plurilin-
intuir, a partir da teoria de Einstein, guisticamente, mostrando as diver-
que a construção do romance e da gências em tais relações.
realidade nele imbricado, está funda- Os sete capítulos do romance
da na relatividade. formam o todo arquitetônico da nar-
Diante de tal relativismo percebe- rativa, sendo deveras repleto de nú-
mos que o romance não tem lingua- cleos de ação e personagens, o que
gem própria, pois integra em si todos justifica uma análise detalhada, reple-
os outros gêneros, romancizando-os, ta de situações de interpretação.
54 assumindo a peculiaridade de cada Para tanto, reorganizaremos todo
um; além de promulgar a heteroglos- o percurso construído por Callado,
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sia, o dialogismo, o plurilinguismo, com o objetivo de demonstrar que


sempre encetado na diversidade de a deseducação de Nando segue um
vozes sociais. Diante de tal riqueza esquema dialético de representação,
multifacetada, o romance inaugura- uma vez que objetivamos organizar
-se como um gênero em devir, sem- seus embates em tese, anti-tese e sín-
pre inerente à mudança, por isso re- tese; sendo que a tese apresentaria o
presenta, de forma salutar, a própria herói imbuído fortemente pelas ideo-
cadência da vida, com seus contra- logias religiosas, em seu papel como
pontos e incorporações, para firmar padre, o que comporta os capítulos
o acontecimento no ato do existir, de “O Ossuário, “O Éter” e “A Maçã”.
forma responsiva e diversificada. A antítese seria o seu avesso, ou
Portanto, nossas expectativas de seja, o seu desligamento da Igreja e
análise a partir dessas concepções sua tentativa em firmar sua identida-
SELINFRAN
de livre das ideologias que o consti- -PESSOA E O AUTOR-CRIADOR
tuíam, doravante se encontrando sem
Mostra-se pertinente antes de ini-
profissão e numa tentativa fremente
ciar a breve análise, uma rápida dis-
de engajar-se no social; tais tramas
cussão bakhtiniana sobre a concep-
compõem os capítulos “A Orquídea”,
ção de autor e de autoria, com suas
“A Palavra” e “A Praia”.
peculiaridades que transcendem
Para finalizar, chegaremos à sínte- as considerações clássicas sobre o
se, onde esperamos encontrar a nova tema, pois Bakhtin, que concebeu
identidade de Nando, plenamente uma teoria voltada para a construção
constituída como guerrilheiro, assu- de uma estética geral, elaborou tais
mindo sua voz responsiva-ativa dian- reflexões sob um viés filosófico.
te do mundo, ou seja, “d’O Mundo de
Francisca”, último capítulo da obra. A concepção de autor para Bakh-
tin divide-se em dois campos, sendo
Contudo, como o presente artigo
o autor-pessoa um componente da
não permite uma análise minuciosa
vida real, de certa forma distante da
(devido ao número de páginas), fir-
relação entre o autor e o herói; e o
maremos alguns pontos da análise
autor-criador o elemento constituti-
sugerida acima, para que os concei-
vo da obra, tendo relação com o(s)
tos bakhtinianos ora apresentados
herói(s) e o ouvinte. O autor-criador,
sejam aplicados à análise do discur-
portanto, é o que dá forma ao objeti-
so romanesco, visando compreender
vo estético, assumindo uma “posição
como a teoria das relações dialógi-
estético-formal”, materializando cer-
cas de Bakhtin se ajusta às inúmeras
ta “relação axiológica com o herói e
transformações vividas pelo herói
seu mundo” (FARACO, 2013, p. 38).
Nando, a partir das interações socioi-
deológicas que trava com as diversas A busca por Bakhtin pela identi-
personagens ao longo do romance, ficação da voz que escreve, parte
para compreender como isso se ajus- para um posicionamento valorativo, 55
ta à nossa própria trajetória, pois a fi- que dá ao autor-criador a força para

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


losofia de Bakhtin, sendo ele um filó- constituir o todo, pois a partir do seu
sofo do movimento, reflete e refrata excedente de visão que se criará o
a própria vida, o nosso próprio existir, herói e todo seu mundo constitutivo,
que também se delineia bakhtiniana- dando-lhe um acabamento estético.
mente de forma dialógica. Também O autor-criador, dessa forma, tor-
nos compete asseverar que a cons- na-se responsável pelo acabamento
trução do estilo se deve à fusão com estético da obra, ampliando o escopo
o período histórico, pois o diálogo de participação deste tipo de autor,
vivo, como concebe Bakhtin, se esta- incluindo o herói e seu mundo, tanto
belece entre a cultura e a história. em relação material quanto compo-
sicional, pois, para Bakhtin, “a grande
A AUTORIA COMO ACONTECI- força que move o universo das práti-
MENTO ARTÍSTICO: O AUTOR- cas culturais são precisamente as po-
SELINFRAN

sições socioavaliativas postas numa de dados que coletou durante suas


dinâmica de múltiplas interrelações várias andanças pelos brasis, que foi-
responsivas” (apud FARACO, 2013, p. -se, conforme suas palavras, “se avo-
38). lumando com as mudanças políticas
do país”. (LEITE, 1982, p. 6)
ANTONIO CALLADO: UMA FU- Tais declarações reafirmam o que
SÃO ENTRE O JORNALISTA E O pensou Bakhtin, quando analisa o
ESCRITOR autor-pessoa, elemento do aconteci-
Antonio Callado nasceu em Niterói mento ético e social da vida: “O au-
– RJ, em 1917, ano da Revolução Rus- tor-criador nos ajuda a compreender
sa, época de fortalecimento do capi- também o autor-pessoa, e só pos-
talismo e quando é anunciada uma teriormente suas declarações sobre
primeira proposta de sociedade co- sua obra ganharão significado eluci-
munista. Callado se mostra infiltrado dativo e complementar” (BAKHTIN,
em uma época de grandes conflitos 2011, p. 6, grifos nossos).
sociais, que emoldurariam sua vida e Assim, podemos traçar um pa-
enalteceriam sua carreira como jor- ralelo entre o percurso de Callado
nalista, profissão que assumiu por como jornalista e escritor, revelan-
vocação literária. do que a obra Quarup insere-se em
Para Antonio Callado, sempre exa- um aprofundamento do Brasil, como
geraram a relação que ele mantinha um retrato de seu tempo. Analisan-
entre literatura e jornalismo, firman- do posteriormente sua obra, garantiu
do para distingui-las, pois não ad- esta premissa, que assevera a junção
mitia que ambas tivessem influência do contexto histórico que vivenciou
recíproca. Porém, no ano de 1953, como jornalista e a criação estética
Callado lança o livro de reportagens posterior, como junção de todos os
Esqueleto na Lagoa Verde, resulta- elementos místicos e políticos inseri-
56 dos em sua obra.
do de sua viagem ao Xingu em 1952,
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quando participou de uma expedição A relação revelada por Callado so-


junto com Brian Fawcett. bre a situação dos padres em Per-
Ora, essa busca pela verda- nambuco, quando criou as séries
de jornalística, pelo fato, levava-o de reportagens no livro Tempo de
de forma sucinta a descobertas da Arraes, denota sua condição de ex-
identidade nacional, de tipos sociais, pectador das mudanças sociais, que
de elementos místicos e políticos da se tornaram mote para a criação de
nossa cultura e herança ideológica, Quarup, mais precisamente do seu
que marcou profundamente sua obra herói Nando, que assume essa pos-
ficcional. tura emancipatória do padre que se
Temos na obra Quarup uma li- distancia das ideologias repressivas
teratura engajada, pois conforme de- da igreja para tornar-se, conforme o
clarou Callado, que tirou dois anos de próprio autor anunciou na entrevista,
férias para escrevê-lo, estava nutrido como um sujeito “metido na revolu-
SELINFRAN
ção” (LEITE, 1982, p. 6). revelam como exemplos de tempo e
A publicação do seu terceiro ro- de espaço, buscando na intersecção
mance em 1967, Quarup, que é nosso dos passos de Nando, um percurso
objeto de estudo, insere-se na arte de pela historicidade do Brasil.
resistência ao golpe militar de 1964, O primeiro capítulo, “O Ossuá-
internalizando as representações his- rio”, inicia-se com Nando, um jovem
tóricas e culturais de seu tempo, sen- padre do interior de Pernambuco,
do imbuído pelo utopismo da trans- que foi incumbido de uma missão:
formação político-social do país. catequizar os índios do Posto Capi-
O romance traz temas ligados às tão Vasconcelos, no alto Xingu. Logo
reportagens de Antonio Callado, no início percebemos uma resistência
como a criação das Ligas Campone- de Nando ao empreender tal viagem,
sas, o surgimento dos sindicatos de revelando um conflito interior de
trabalhadores rurais no Brasil, o apa- cunho moral, uma vez que teme não
recimento dos movimentos de cultu- resistir à nudez das índias, infringindo
ra popular, o governo de Miguel Arra- o seu celibato, pecando contra o voto
es em Pernambuco, buscando neste de castidade. Ainda no mosteiro, no
ínterim uma identidade nacional, a ambiente denominado de ossuário,
partir de discussões como a influên- Nando tem contato com Levindo,
cia estrangeira, a promoção da igual- um jovem guerrilheiro que trabalha
dade social a partir da implantação em defesa das Ligas Camponesas,
de projetos de esquerda, a mescla de relacionando-se também com sua jo-
paisagens urbanas de Pernambuco vem namorada, Francisca, por quem
e Rio de Janeiro com as terras míti- o padre inicia uma paixão platônica.
cas da selva brasileira, no Xingu; ten- Começa a se envolver com um ca-
do todos esses motes um pano de sal de protestantes ingleses, Leslie e
fundo extremamente auspicioso, o Winifred. Nando acaba por confessar
segundo governo de Getúlio Vargas, seu temor em relação às índias para 57
passando por Juscelino Kubitscheck Winifred que, compadecendo-se de

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e pela passagem de Jânio Quadros, Nando, inicia-o na vida sexual, livran-
até o governo de João Goulart, inter- do-o do medo de partir rumo ao Xin-
rompido pelo golpe militar de 1964, gu. O jovem padre acaba por partir
estabelecendo a ditadura no país. rumo ao Rio de Janeiro, a fim de en-
contrar o grupo que o acompanharia
ao parque indígena.
QUARUP: A DIALÓGICA CONE-
XÃO DO SUJEITO COM O SOCIAL A segunda parte, denominada
“Éter”, mostra o padre Nando duran-
O romance Quarup, de Antonio
te sua estada no Rio de Janeiro, junto
Callado, foi publicado no ano de 1967,
aos integrantes do Serviço de Prote-
dividindo-se em sete partes: “O Os-
ção ao Índio, chefiados pelo ministro
suário”, “O éter”, “A maçã”, “A orquí-
Gouveia: Ramiro, chefe de gabinete
dea”, “A palavra”, “A praia” e “O mun-
do ministério; Vanda, sua sobrinha e
do de Francisca”. Tais capítulos se
SELINFRAN

secretária; Olavo e Lídia, ligados ao um pedido de afastamento, devido


Partido Comunista; Falua, um jorna- a seu comportamento transgressivo,
lista; Sônia, uma mulher cosmopolita levando-o de volta ao Xingu, e liber-
e sensual; e Fontoura, chefe do Ca- to das amarras da ideologia religiosa,
pitão Vasconcelos. Junto a esse gru- assume-se mais livre em seu relacio-
po, Nando se envolve com o lança- namento com os índios. Depois de
-perfume, droga em voga na época, muitos anos, todos se reencontram
erigindo verdadeiros elogios ao uso no Xingu, com a surpresa da presen-
do éter; envolve-se sexualmente com ça de Francisca, integrando a expe-
Vanda, adquirindo experiência sexu- dição rumo ao Centro Geográfico do
al. Brasil. O noivo de Francisca, Levin-
Ao começar o terceiro capítu- do, fora morto pela polícia, devido a
lo, intitulado “A Maçã”, vemos Nando razões políticas. Nando e Francisca
partir rumo ao Posto Capitão Vas- iniciam um romance, em meio às or-
concelos, no parque do Xingu. Fon- quídeas da floresta imensa. Durante
toura recebe o padre Nando com a trajetória rumo ao Centro do Brasil,
uma brincadeira que relembra o mito os integrantes sofrem vários proble-
de Adão e Eva, figurando na maçã o mas, como a fome, e o encontro com
símbolo do pecado original. Todos do tribos de índios doentes e famintos.
Serviço de Proteção ao Índio (antiga Chegando ao Centro Geográfico do
FUNAI) preparam-se para a vinda do país, fincam um marco, junto ao cor-
presidente Getúlio Vargas, que inau- po de Fontoura, que morre com o
guraria o Parque Nacional do Xingu, rosto fincado junto a um enorme for-
oficializando a preservação das ter- migueiro, miticamente localizado no
ras indígenas. Nando então procura Centro do país.
conhecer os índios, ajudando-os na “A palavra” inaugura o quinto
preparação do ritual do kuarup. Em capítulo, mostrando Nando e Fran-
58 meio ao clima de preparações ritu- cisca, que retornam a Pernambuco,
alísticas, ouvem pelo rádio a notícia com o intuito de dar continuidade
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

do suicídio de Getúlio Vargas, desfa- ao trabalho iniciado por Levindo, ou


zendo a expectativa de se inaugurar seja, envolvem-se com os movimen-
efetivamente o Parque Xingu. Duran- tos campesinos, onde Francisca pas-
te essa efervescência política, Sônia sa a trabalhar com a alfabetização
foge com o índio Anta para o interior dos camponeses do Movimento Cul-
da mata. tura Popular. Nando, que renunciara
O capítulo que segue denomi- ao sacerdócio, vive em uma peque-
na-se “A Orquídea”, e nos transporta na casinha de praia que herdara de
temporalmente para anos no futu- sua família, tornando-se um aliado
ro. Nando, ainda habitando o Xingu, de Januário, um líder dos campone-
parte para Recife, pois seu mentor ses. Ocorre o Golpe Militar de 1964, e
espiritual D. Anselmo falece, e des- Nando é preso e torturado.
cobre que o padre Hosana abando- A partir do sexto capítulo, cha-
na o ofício sacerdotal. Nando recebe
SELINFRAN
mado de “A Praia”, vemos Nando li- até tornar-se um combatente contra
vre da prisão, voltando a viver em sua o regime opressor outorgado pelo
casa da praia. Francisca partira para Estado; diante de tal amálgama, po-
a Europa, a fim de proteger-se do re- demos inferir que a busca do jovem
gime autoritário. O ex-padre Nando Nando por emancipação, é também
inicia o seu “apostolado do amor”, uma revelação da busca do próprio
envolvendo-se com mulheres caren- país por sua identidade.
tes e desejosas de amor, ensinando Assim, podemos elencar a no-
a pescadores e outros moradores lo- ção de respondibilidade, pois Nando
cais a arte do amor. Antigos amigos aponta para o devir e o inacabamen-
de Nando, que o procuram para iniciar to. A imprevisibilidade das situações
um movimento revolucionário contra históricas, os conflitos de ordem so-
o golpe militar, escandalizam-se com cial e política, a dinamicidade das
as atitudes perniciosas de Nando. No relações, trazem ao discurso roma-
décimo aniversário da morte de Le- nesco da obra Quarup a questão do
vindo, Nando resolve organizar um papel do outro na constituição do eu,
banquete em sua homenagem, como uma vez que o herói Nando se “dese-
um simulacro do kuarup, devorando- duca” a partir do seu contato com os
-o antropologicamente. No auge da diferentes personagens e suas ideo-
festividade, Nando é atacado e bru- logias.
talmente agredido, quase chegando O herói Nando, revestido das mar-
à morte. cações dialógicas que o constituem,
Na última parte da obra, intitu- que o ressignificam, caminha por di-
lada “O mundo de Francisca”, Nando, ferentes regiões do país, reconfigu-
que perdera a visão de um olho, re- rando o topos como uma forma de
cupera-se dos ferimentos, decidindo deslocamento de sua própria subje-
partir para o sertão, onde passa a as- tividade que, transgredindo as ideo-
sumir a identidade de Levindo, inte- logias que o personificam, trava uma 59
grando-se à luta revolucionária. verdadeira batalha juntamente com

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Percebemos, diante dessa bre- os Brasis que acompanha; seja no in-
ve elocução, o caráter multifacetado terior de Pernambuco, ladeado pela
da obra, que revela nas interações Igreja Católica e seus valores; seja no
do herói, o seu processo dialógico Rio de Janeiro, envolvendo-se com o
de construção identitária, que parte éter e com devaneios de ordem mís-
de Pernambuco rumo ao Rio de Ja- tica e mundana; seja no parque do
neiro, imergindo no Parque Xingu; Xingu, o qual miticamente reinstau-
como forma de resgatar diferentes ra o paraíso perdido; além do regime
momentos históricos, fragmentados ditatorial, imposto pelos militares no
em diferentes regiões do Brasil, o que país.
permite alcançar as diferentes lutas, Porém, todos esses lugares, que se
demonstrando através do tecido so- fundem com a dimensionalidade sub-
cial, a identidade do padre que vai jetiva do herói, também resgatam os
se livrando das ideologias religiosas,
SELINFRAN

conflitos políticos da nação, uma vez Bakhtin nos lembra acerca dessa
que em Pernambuco, percebemos a “arena”, desse campo de réplicas que
crise da igreja, nas figuras dos padres transformou o herói, conforme já ci-
Hosana e André; também percebe- tado: “Sabemos que cada palavra se
mos o coronelismo ainda açoitando apresenta como uma arena em mi-
os trabalhadores, que iniciam, de for- niatura onde se entrecruzam e lutam
ma tímida, uma luta por seus direitos; os valores sociais de orientação con-
no Rio de Janeiro, adentramos na cor- traditória. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV,
rupção das funcionalidades públicas, 2009, p. 67, grifos nossos)
onde a burocracia se mostra como Percebemos que as relações dialó-
um ingrediente que leva à corrupção; gicas exercem um tônus fundamental
e no Xingu, assistimos a índios que na constituição do herói, que transige
têm seus costumes deturpados, sen- do místico ao político, a partir da sua
do condenados, drasticamente, ao relação com o outro, a partir do inter-
esquecimento e ao extermínio; além câmbio de ideais, sejam políticos ou
da tortura sofrida por Nando e seus meramente sexuais.
companheiros, nos porões da ditadu-
ra.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nando, portanto, ao participar do
Percebemos que o todo arquite-
conjunto histórico (crono) e do ge-
tônico da obra Quarup, de Antonio
ográfico (topos), revela e forma sua
Callado, foi concebido a partir da vi-
subjetividade, sua consciência, rede-
são que o autor-pessoa teve na ten-
senhando sua forma de interação e
tativa de encontrar o Centro do Bra-
de interpretação do mundo, a partir
sil.
do encontro com outras persona-
gens e com situações conflitantes es- A partir dessas perspectivas, rei-
boçadas nesses cantos diversos do teramos que o romance Quarup
60 Brasil, porém, percebemos que suas carrega em sua multiplicidade de si-
mudanças se darão, frequentemente, tuações, um conteúdo cultural e es-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

na esfera da dialogia, no lidar com o tilístico com marcas de brasilidade,


outro, no assumir-se como outro a representando a identidade brasileira
partir da interação, a partir desse ex- de seu tempo, num recorte da visão
cedente de visão, num processo de de Callado em sua tentativa de dar
alteridade que o leva a rever seus va- respostas ao seu tempo, pois, como
lores, em cada ato de fala, em cada jornalista engajado com os movimen-
enunciação, percebemos que sua tos de esquerda, a construção arqui-
consciência abandona aos poucos as tetônica da sua obra dialoga viva-
temências da religião, para incrustar- mente com o período da repressão,
-se na problemática social, onde po- e Nando representa a maturação, a
deria, de fato, ajudar ao próximo, seja deseducação do país, que perde suas
pregando o “amor”, seja envolvendo- raízes coloniais para agir diante da
-se na revolução esquerdista. repressão.
SELINFRAN
Dessa forma, reconhecemos a nária, tanto com seu corpo, quanto
importância do cronotopo da estrada, com sua alma. Já não vivia apenas
que marca a peregrinação de Nando, para Francisca, pois que ela já estava
que transige por vários brasis, numa em tudo. Estava feita a fusão entre a
tentativa de firmar não apenas a sua tese e a nova tese, entre o sagrado e
identidade como sujeito em proces- o profano, entre o espírito e o gozo,
so de desconstrução, mas de marcar entre a alma e o corpo. Houve, por-
a própria trajetória do país em uma tanto, nesse processo, a peregrina-
tentativa de reafirmar-se mediante as ção de Nando, que migrou do místico
intempéries políticas. É no cronotopo ao político.
que “os acontecimentos do enredo E nos meandros da trama discursi-
se concretizam, ganham corpo e en- va, o autor-pessoa remonta o Brasil,
chem-se de sangue” (BAKHTIN, 1993, em seu tumultuado momento histó-
p. 355). rico, caracterizando o romance com
Assim sendo, podemos afirmar um estilo realmente definidor do seu
que Nando representa o período po- cronotopo, que vai ao extraverbal
lítico e histórico do país, não apenas para falar com a alma do brasileiro.
de um Brasil cercado pela Ditadura E nas relações dialógicas, marcadas
Militar, mas um país gigantesco, que pela religiosidade e o amor, encontra-
permite que sejam reveladas muitas mos as vozes sociais, personificadas
faces, em um processo dialógico que pela voz discursiva do autor-criador.
se confunde com as transformações Desta forma, reconhecendo o autor-
do herói. Dessa forma, o tempo e o -pessoa, nos ajuda a compreender
espaço são aliados não apenas no o autor-criador. O que Bakhtin nos
percurso do herói, mas em sua trans- mostra é que o autor-criador é um
formação, em sua deseducação. componente que ajuda a criar a obra,
E marcadamente nos três primei- e este não se abdica de sua autori-
ros capítulos, temos a tese, ou seja, o dade de criador, pois está inserido 61
espírito. Nos próximos três capítulos, no discurso romanesco, sendo que a

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


uma nova tese (antítese), o erótico. pretensão de Callado era descobrir a
E no sétimo e último capítulo, deno- identidade brasileira, em um momen-
minado “O Mundo de Francisca”, ve- to histórico cuja aspiração dos artis-
mos inaugurar um novo rompante do tas revolucionários, era na confiança
feminino, que revela bem essa nova de uma luta armada, de uma busca
imagem que a mulher oferece ao he- pela liberdade. O brasileiro, tal como o
rói, sendo esta a representação da espírito captado na obra, busca tam-
mulher que revelava a síntese entre bém a sua identidade. O percurso do
as duas vertentes: o religioso e o eró- herói é um percurso do autor-pessoa,
tico. que por sua vez delega a voz para o
próprio brasileiro: ambos em busca
Da mesma forma cumpriu o herói: de liberdade e de identidade.
ofereceu-se ao mundo, ao Brasil que
carecia de uma resposta revolucio- Portanto, percebemos que o au-
SELINFRAN

tor-criador dispõe em sua obra as dência com a identidade do país e do


diferentes falas e linguagens de um sujeito dialogicamente constituído. E
Brasil multifacetado, imbricado em dentro dessa multiplicidade, encon-
seu universo literário e extraliterário, tramos as línguas e as vozes sociais
uma vez que permite, nas relações que constroem o estilo sociológico.
interativas do herói, uma correspon-

REFERÊNCIAS
BAKHTIN, M./VOLOSHINOV, V. N. Discurso na vida e discurso na arte: sobre poética sociológica. Trad. para
uso didático da versão inglesa de 1976: C. A. Faraco; C. Tezza. Circulação restrita. [1926]. Disponível em
<http://www.uesb.br/ppgcel/Discurso-Na-Vida-Discurso-Na-Arte.pdf> Acesso em: 10 dez 2014.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. Tradução de Paulo Bezerra. 15. ed. São Paulo: Hucitec, 2009.
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2011.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução Paulo Bezerra. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense Uni-
versitária, 2013.
______. Questões de literatura e de estética. A teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. 3.
ed. São Paulo: Hucitec, 1993.
BRAIT, B. Estilo. In.: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2013. p. 79-102.
CALLADO, A. Quarup. 14 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
FARACO, C. A. Autor e autoria. In.: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2013.
p.37-60.
FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2011.
LEITE, L. C. M. Antônio Callado. Coleção: Literatura Comentada, São Paulo: Abril Educação, 1982.
MACHADO, I. A teoria do romance e a análise estético-cultural de M. Bakhtin. Revista USP, p. 135-142, mar/
mai 1990. Disponível em: http://www.usp.br/revistausp/05/19-irene.pdf. Acesso em: 17 jun. 2015.
MARCHEZAN, R. C. A noção de autor na obra de M. Bakhtin e a partir dela. Bakhtiniana, São Paulo, 10 (3):
x-x, Set./Dez. 2015. (no prelo)
PERNAMBUCO, J. O Filho Eterno, de Cristovão Tezza: um acontecimento. Organon (UFRGS), v. 53, p. 183-
62 197, 2012.
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SELINFRAN
UM AUTOR E SUAS FACES: A BUSCA DA CONSTITUIÇÃO DO ETHOS
RETÓRICO EM CONTOS DE MACHADO DE ASSIS

Andréia Carla Melegati Rodrigues ALVES


Maria Flávia FIGUEIREDO

RESUMO
Neste trabalho, teremos, como arcabouço teórico, estudos advindos do âmbito
da linguística, mais especificamente da área de Retórica e Argumentação. A
partir dessa área, contaremos com os conceitos de ethos, de figuras de retó-
rica e também com os conceitos do segundo pilar do discurso retórico, a dis-
posição. A análise, que tem como corpus o conto “O enfermeiro”, do escritor
Machado de Assis, objetiva averiguar a constituição do ethos do contista, além
das estratégias argumentativas utilizadas pelo orador, com vistas à adesão do
auditório/leitor. Para tanto, efetuamos uma análise qualitativa do conto, a fim
de apreender os ethe evidenciados. Com essa análise, esperamos contribuir
com a ampliação do estudo em torno da constituição do ethos retórico no
conto “O enfermeiro”.
PALAVRAS-CHAVE: Retórica; ethos; Machado de Assis; conto.
ABSTRACT
In this work, we have, as a theoretical framework, studies from the scope of
linguistics, specifically in the area of Rhetoric and Argumentation. From this 63
area, we will have the concepts of ethos, of the rhetorical figures and concepts

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


of the second pillar of the rhetorical discourse, the disposition. The analysis,
whose corpus is the tale “The nurse”, from the writer Machado de Assis, aims
to investigate the constitution of the ethos of the storyteller, it also seeks to
observe the argumentative strategies used by the speaker, in order to get the
auditorium’s/reader’s adhesion. Therefore, we made a qualitative analysis of the
tale, to grasp the evidenced ethe. With this analysis, we hope to contribute to
the expansion of the study about the constitution of rhetorical ethos in the tale
“The nurse”.
KEYWORDS: rhetoric; ethos; Machado de Assis; tale.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO A RETÓRICA
O objetivo do presente trabalho é O estudo da retórica possui a fun-
averiguar e analisar o ethos retórico ção, dentro de seu escopo de utilida-
do contista/orador Machado de As- des, de colaborar com o processo de
sis no conto “O Enfermeiro”, o qual interpretação de textos. É na retórica
constitui o corpus deste trabalho. que se dá o encontro dos homens e
Para tanto, observar-se-ão as estra- da linguagem na exposição de suas
tégias argumentativas adotadas por diferenças e de suas identidades.
ele com vistas à adesão de seu leitor/ Portanto, pode-se dizer que a retóri-
auditório. ca é a negociação da distância entre
Para empreender a análise retóri- os homens a propósito de uma ques-
ca, foram selecionados os seguintes tão, de um problema.
autores: Abreu (2009), Aristóteles Segundo Aristóteles, a retórica é
(2005), Eggs (2005), Ferreira (2010), uma questão de discurso, de racio-
Fiorin (2014, 2015), Meyer (1993, nalidade, de linguagem; é um dis-
2007), Perelman e Tyteca (2005) e curso que um orador possui e que é
Reboul (2004). Acerca da constitui- adequado a persuadir um auditório.
ção dos gêneros textuais com vistas A retórica possui, então, um relacio-
à compreensão do gênero “conto”, namento estreito com a linguagem,
selecionamos Marcuschi (2010) e pois é através desta que a comuni-
Costa (2012). cação e a argumentação acontecem.
No que se refere aos procedi- Sempre que falamos e/ou escre-
mentos metodológicos utilizados, vemos, levantamos uma questão, daí
efetuou-se, em primeiro lugar, uma não nos manifestarmos sobre aquilo
revisão bibliográfica dos teóricos que é evidente, ou seja, sobre o que
mencionados; em seguida, proce- não suscita uma questão, consoante
deu-se à seleção do corpus, a partir Meyer (1993).
64
da obra machadiana, com vistas à Ainda segundo o autor, a Retórica
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

análise do ethos, assim como de sua também pode ser entendida como
relação com as demais provas retó- a arte de bem falar, e este advérbio
ricas. “bem” carrega consigo uma carga
rica de sentidos, dos quais podemos
Com esta pesquisa, espera-se: pro- citar alguns: persuadir, convencer,
mover a ampliação da discussão em criar o assentimento, seduzir ou ma-
torno do ethos retórico, sobretudo nipular, sugerir, criar um sentido figu-
em sua relação com o gênero textual rado, descobrir as intenções daquele
ao qual o corpus selecionado perten- que se exprime.
ce, isto é, o conto; revelar os recursos
discursivos utilizados pelo contista/ De acordo com Aristóteles, esse
orador no conto em questão, com campo de estudos é sustentado por
o intuito de constituir os seus ethe; um tripé constituído por orador/audi-
mostrar as figuras de retórica adota- tório/discurso. O orador é simboliza-
das por ele com vistas à adesão de do pelo ethos (credibilidade de quem
seu leitor/auditório. fala para ganhar a adesão do auditó-
SELINFRAN
rio), o auditório refere-se ao pathos esforço de seu interlocutor para que
(jogo com as paixões e emoções dos as palavras sejam interpretadas de
ouvintes) e o discurso é simboliza- acordo com o que ele quis dizer. Para
do pelo logos (meio para se atingir a tanto, o contexto em que o texto foi
persuasão do auditório). expresso também deve ser conside-
O orador, que deve inspirar con- rado, (PERELMAN; OLBRECHTS-TY-
fiança, busca sempre agradar, persu- TECA, 2005).
adir, seduzir e convencer seu públi- Ainda sobre a noção de ethos, te-
co, não se importando com a forma mos a seguinte contribuição:
utilizada para atingir tais objetivos o étos é o caráter que o orador
(MEYER, 1993). Se as afirmações da- deve assumir para inspirar con-
das pelo orador são verdadeiras ou fiança no auditório, pois, sejam
não, isso pouco importa, pois o que quais forem seus argumentos ló-
se faz necessário é que elas passem gicos, eles nada obtêm sem essa
para o auditório a sensação de ver- confiança: [...] é um termo moral,
dade e de verossimilhança, como nos “ético”, e que é definido como o
diz Ferreira (2010). É por isso que caráter moral que o orador deve
aquilo que o orador considera como parecer ter, mesmo que não o te-
nha... (REBOUL, 2004, p. 48).
sendo verdadeiro tem pouca impor-
tância, pois o que realmente se faz Surge, daí, a ideia de que a equida-
relevante é o parecer de seu auditó- de é a prova que surte maior efeito
rio, de acordo com Perelman (2005). na argumentação.
A eficácia de um discurso está A partir do seu discurso, o orador
muito ligada à autoridade atribuí- suscita no auditório várias emoções,
da ao orador, o qual também pode paixões e sentimentos, e isso é o que
acrescentar ao seu discurso o seu chamamos de patos. O ethos, então,
modo de ser, de agir e de ver o mun- está relacionado ao orador; o patos,
do, segundo Ferreira (2010). O autor ao auditório; e o logos, ao discurso, 65
prossegue dizendo que, para que o isto é, à argumentação apresentada

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


orador tenha nas mãos o seu público, através do discurso.
o seu auditório, é preciso que ele faça Segundo Meyer (2007), ethos, pa-
uso correto da técnica e da arte para thos e logos assumem uma posição
provocar assentimento às suas teses. de igualdade. Ele também nos diz
Ademais, sua habilidade pode ser que, para os gregos, ethos é a ima-
medida por sua capacidade de im- gem de si, o caráter, a personalidade,
pressionar, de ativar as paixões/emo- os traços de comportamento, a esco-
ções nos seus ouvintes e de atrair e lha de vida e dos fins (daí a palavra
prolongar a atenção deste público, ética).
buscando sempre estabelecer um
acordo com aqueles que o ouvem/ O ethos não tem objeto próprio de
leem. estudo, mas se liga à pessoa, à ima-
gem que o orador passa de si mes-
O orador, e também o autor, deve mo, e que o torna exemplar/modelo
contar com a boa vontade e com o aos olhos do auditório, e é só assim
SELINFRAN

que este auditório se dispõe a ouvi-lo -lo ou colocá-lo a distância.


e a segui-lo. “O ethos é uma imagem do autor,
Ao ethos do orador é conferida não é o autor real; é um autor dis-
uma autoridade por suas virtudes, cursivo, um autor implícito.” (FIORIN,
por sua conduta; esta autoridade li- 2015, p. 70).
ga-se ao que ele é e ao que ele re- A partir de uma releitura de Aris-
presenta. Uma criança que pergunta tóteles, Fiorin (2015, p. 71) nos recor-
ao pai “por quê?” diversas vezes, não da que há três espécies de ethe que
está tão interessada nas respostas, podem surgir a partir da descrição
mas quer estar segura de que o pai do ethos do orador: a phronesis, que
é capaz de responder e de que ela significa o bom senso, a prudência,
pode se apoiar nele; o ethos é, então, a ponderação, ou seja, que indica se
o ponto final do questionamento. o orador exprime argumentos pon-
Assim, o ethos não pode, de ma- derados e opiniões razoáveis; a are-
neira simplista, ser associado ao ora- te, que demonstra a honestidade e
dor, uma vez que a dimensão que a a sinceridade do orador; e a eunoia,
palavra ethos abrange é bem maior. na qual o orador se mostra solidário
Ethos é um domínio, um nível, uma e amável com o auditório. Essa visão
dimensão, por isso ethos não pode tripartite de ethos será de grande re-
ser resumido a um orador que fala a levância para a análise a ser empre-
um auditório e nem a um escritor que endida.
fala através de um texto. Uma vez definidas as considera-
O orador pode ser prudente ou fin- ções acerca da teoria que norteia o
gir, mascarar-se ou revelar-se, tudo presente trabalho, passaremos às
depende da problemática que ele vai breves considerações acerca das fi-
enfrentar. O objetivo principal do ora- guras retóricas.
66 dor é mostrar para o outro que este
pode confiar nele (orador), conforme FIGURAS DE RETÓRICA
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Meyer (2007).
Perelman (apud MEYER, 1993, p.
Podemos dizer, então, que o ethos 106) dizia que “o objectivo das figu-
nada mais é que a capacidade de pôr ras é evocar uma presença, reforçá-
termo a uma questão que parece infi- -la ou atenuá-la, fazer ver melhor ou
nita. Para tanto, o orador deve provar de um modo diferente aquilo que de
que tem um saber sobre o assunto outra maneira poderia permanecer
que ele está abordando. É importan- despercebido ou percebido como
te que locutor e interlocutor com- inessencial.” Através da figura, a acei-
partilhem do mesmo saber. Tal sa- tação do argumento pode ser facili-
ber compartilhado nada mais é que tada, pois a figura relaciona-se com o
o contexto (conjunto de respostas delectare, isto é, com a fruição.
que supostamente orador e auditório
Segundo Fiorin (2014), a retórica,
compartilham). Sempre há alguém
ao voltar-se para o estudo das figu-
que fala/escreve e que se dirige a ou-
ras, passa a considerar os tropos, os
trem, buscando convencê-lo, agradá-
SELINFRAN
quais indicam uma mudança de sen- sua intensidade. (FIORIN, 2014, p.
tido. No tropo, cuja unidade básica 70).
é a palavra, o sentido literal de um
termo é substituído por um sentido FUNÇÕES DA RETÓRICA
figurado, e é por isso que os tropos Segundo Reboul (1998), a retórica
podem ser chamados de figuras de criou uma estética da prosa bastante
palavra. objetiva, funcional, que diz que aqui-
Uma figura que aparece no conto lo que não tem importância deve ser
em análise é a prosopopeia ou per- descartado, inutilizado, pois qualquer
sonificação. Por meio dela, busca-se artifício pode ser entendido como
“um alargamento do alcance semân- preciosismo ou vulgaridade e pode
tico de termos designativos de entes prejudicar a persuasão.
abstratos ou concretos não humanos Reboul considera que três pon-
pela atribuição a eles de traços pró- tos devem ser conservados para que
prios do ser humano.” (FIORIN, 2014, haja uma conservação do estilo retó-
p. 51). A prosopopeia pode ter a di- rico. Estes três pontos correspondem
mensão de um sintagma (substanti- aos três polos do discurso, que são o
vo e adjetivo) ou de um texto. assunto, o auditório e o orador.
Nesse corpus, também percebe- O estilo mais eficaz, mais conve-
mos que há uma inversão semântica niente, aquele que pode chegar à
do que foi dito. Trata-se, portanto, de persuasão é o que melhor se adapta
uma ironia. ao assunto. Portanto, o estilo não é
Segundo Fiorin (2014) a ironia (do algo rígido, mas se moldará confor-
grego eironéia, que significa “dissi- me o assunto em questão.
mulação”) ou antífrase (do grego an- Os latinos distinguiam três gêne-
típhrasis, que quer dizer “expressão ros de estilo: o nobre (grave), o
contrária”) é uma figura que consis- simples (tenue) e o ameno (me- 67
te num alargamento semântico. Com dium), que dá lugar à anedota e

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isso, o sentido é intensificado. ao humor. O orador eficaz adota
o estilo que convém a seu assun-
A ironia apresenta uma atitude
to: nobre para convencer (move-
do enunciador, pois é utilizada
re), sobretudo na peroração; o
para criar sentidos que vão do
simples para informar e explicar
gracejo até o sarcasmo, passan-
(docere), sobretudo na narração
do pelo escárnio, pela zombaria,
e na confirmação; o ameno para
pelo desprezo, etc. Na verdade,
agradar (delectare), sobretudo
são duas vozes em conflito, uma
no exórdio e na digressão. (RE-
expressando o inverso do que
BOUL, 1998, p. 62).
disse a outra; uma voz invalida o
que a outra profere. Assim, a iro- Esse esquema tem o intuito de di-
nia é um tropo em que se estabe- recionar, de criar um norte, pois não é
lece uma compatibilidade predi- possível enquadrar o estilo dentro de
cativa por inversão, alargando a um esquema, uma vez que a palavra
extensão sêmica dos pontos de é fugidia. Ao discursar, o orador deve
vista coexistentes e aumentando
sempre buscar a clareza, a coerência,
SELINFRAN

a elegância e, sobretudo, a simplici- Essa expressão, “gênero textual”, re-


dade, pois o estilo simples é sempre fere-se a textos materializados que
muito apropriado quando se busca são encontrados em nossa vida diária
convencer, consoante Ferreira (2010, e que possuem características socio-
p. 119). comunicativas definidas por conteú-
dos, propriedades funcionais, estilo e
GÊNEROS RETÓRICOS composição característica, de acor-
Segundo Aristóteles, surgiram três do com Marcuschi (2010). Segundo o
grandes gêneros em retórica, a partir autor, Bakhtin e Bronckart, na esteira
da necessidade de o orador adaptar- dos autores que tratam a língua em
-se a três espécies de auditório. Esses seus aspectos discursivos e enuncia-
gêneros têm, então, características tivos, afirmam que a comunicação
específicas que vão ao encontro das verbal só é possível a partir de algum
necessidades de tais ouvintes, con- gênero textual.
forme Reboul (2004, p. 45). O gêne- Os gêneros textuais “são produtos
ro epidíctico, também chamado de histórico-sociais de grande heteroge-
gênero laudatório, tem estilo atraen- neidade, em função dos interesses e
te, tematiza acerca do belo e do feio das condições de funcionamento das
e, nele, o auditório (composto por formações sociais” (COSTA, 2012, p.
espectadores) desempenha impor- 24).
tante papel pelo louvor, aclamação Marcuschi (2011) diz também que
ou censura, podendo manifestar-se os gêneros não devem ser entendi-
pelo “gosto/não gosto”, “concordo/ dos como modelos estanques ou
discordo”. No gênero judiciário, cujo como estruturas rígidas, mas, sim,
auditório é o tribunal, determina-se como formas culturais e cognitivas
se uma ação é justa ou não, a partir de ação social corporificadas na lin-
do ato cometido por alguém. No gê- guagem.
68 nero deliberativo (político), que tem
como auditório os membros de uma Miller (apud MARCUSCHI, 2011)
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assembleia, decide-se agir pelo útil identifica os gêneros como ações re-
ou pelo prejudicial. tóricas recorrentes, pois acredita que
a identificação de um gênero não re-
O propósito comunicativo do gê- side na similaridade de formas, mas
nero judiciário é atacar ou defender nos atos praticados com recorrência.
alguém, ver o que foi justo ou não; o Sendo assim, é a partir da ação que
deliberativo tem como objetivo acon- as estruturas são criadas.
selhar ou desaconselhar e o epidícti-
co tem como finalidade a censura ou Portanto, como os gêneros estão
o elogio. em constante movimento (alguns
desaparecem, outros ressurgem sob
CONTO: CONSIDERAÇÕES GE- novos formatos e, ainda, surgem no-
RAIS ACERCA DO GÊNERO vos gêneros), torna-se difícil estabe-
lecer demarcações entre eles.
Para o nosso objeto de estudo, se-
lecionamos o gênero textual conto. O conto é um exemplo de gênero
SELINFRAN
textual que possui uma linguagem rarmos uma amostragem suficiente
simples, acessível, direta e dinâmica. para demonstrar como a imagem do
De acordo com Costa (2012), esse orador se constrói por meio do dis-
gênero se caracteriza por ser uma curso, e por não haver trabalhos re-
narrativa curta e é escrito em prosa. alizados na área da Retórica que se
Ele possui uma configuração mate- reportem à constituição do ethos do
rial narrativa pouco extensa, com um orador nos contos machadianos.
número reduzido de personagens; os Uma vez postas as considerações
acontecimentos são breves; o enredo gerais sobre o gênero, bem como
apresenta um único drama, um úni- considerada a justificativa da escolha
co conflito, uma só história e uma só do corpus, passemos às suas especi-
ação, não sendo possível intrigas se- ficidades.
cundárias, como ocorre no romance
e na novela; o tempo e o espaço são OBJETO DE ANÁLISE
reduzidos, ou seja, o conto apresen-
ta um esquema temporal e ambiental A) O CONTO E SEU ESCRITOR
econômico e/ou restrito. O presente trabalho terá como
A pequena extensão e a síntese do corpus o conto de Machado de Assis,
conto se justificam pelas origens do intitulado “O enfermeiro”.
mesmo, o qual teve início nos “causos No conto, a atenção do leitor/audi-
populares”, com função lúdica e mo- tório é capturada a partir da identida-
ralizante. Pode-se dizer, então, que o de que o mesmo cria com a narrativa
conto tem suas raízes na cultura oral. e com o encadeamento dos fatos, os
Edgar Alan Poe, em seu livro “A fi- quais, por sua vez, dão sentido à tra-
losofia da composição”, dá-nos pis- ma e envolvem o leitor. Para isso, a
tas acerca do funcionamento do gê- verossimilhança dos fatos narrados
nero textual conto, afirmando que a faz-se imprescindível.
69
relação efeito e extensão é um princí- A trama do conto é objetiva e line-
pio do conto, pois este não pode ser

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ar. Os acontecimentos são narrados
muito longo e nem demasiadamente a partir de uma sequência lógica e
curto. Efeito, extensão e desfecho devem proporcionar ao leitor a ideia
são os elementos que definirão um de proximidade com a realidade, ou
escrito como pertencente ao conto seja, os fatos devem reportar o inter-
ou não. Podemos dizer, então, que a locutor a situações verossímeis, isto
eficácia do conto está mais relacio- é, passíveis de acontecerem.
nada com a intensidade da narrativa O diálogo também é fundamental
do que com a extensão da mesma; no conto, pois é a partir dele que a
neste gênero, o final é inesperado. discordância e o conflito evidenciam-
O presente trabalho terá como -se na história.
corpus o conto de Machado de Assis, Dentro da obra machadiana, os
intitulado “O enfermeiro”. A escolha contos não são menos importantes
desse conto se justifica por sua po- que os romances, uma vez que abor-
pularidade, pelo fato de o conside- dam temas fundamentais vividos
SELINFRAN

pela sociedade brasileira. tava irado, acabou jogando um prato


No conto, a ação humana está sub- de mingau em Procópio, que conse-
metida aos costumes da sociedade, guiu desviar. Mais tarde, o ancião ar-
aos sentimentos e aos interesses in- remessou-lhe uma moringa e acer-
dividuais das personagens, de acor- tou-lhe o rosto. Procópio, enfurecido,
do com John Gledson (2006). acabou esganando o velho.
Segundo Antonio Cândido (1995), O enterro se deu sem que ninguém
Machado tinha um modo peculiar de desconfiasse do ocorrido, pois Felis-
deixar as coisas no ar, criando, inclu- berto já era muito doente.
sive, perplexidades não resolvidas, Certo dia, quando Procópio já se
o que o torna moderno e instigante encontrava no Rio de Janeiro, rece-
até hoje. Em seus contos, é possível beu uma carta do vigário dizendo
perceber a relevância de sua obra, a que o testamento do falecido fora
partir da crítica neles presente e pela achado e que Procópio era o único
atualidade dos temas que são foca- herdeiro. Procópio, a princípio, pen-
dos; daí podermos afirmar que sua sou em recusar a herança; depois,
obra é contemporânea. decidiu aceitá-la com a condição de
doá-la aos pobres.
B) “O ENFERMEIRO”
Por fim, fez apenas algumas ca-
Vejamos, de forma sucinta, a trama
ridades e ficou com a herança, pois
que envolve o conto selecionado:
conseguiu convencer a si próprio de
No conto “O Enfermeiro”, Procó- que Felisberto não tardaria a morrer
pio conta um episódio de sua vida e que ele havia apenas se defendido
quando está à beira da morte. O dos ataques do enfermo.
fato ocorreu quando ele foi trabalhar
como enfermeiro na casa do coronel ANÁLISE DO CONTO “O ENFER-
70 Felisberto, um homem insuportável, MEIRO”
rabugento e mau. Vários enfermeiros
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haviam trabalhado na casa, mas nin- A) NA INSTÂNCIA DO LOGOS


guém suportava Felisberto.
Daremos início à nossa análise a
Nos primeiros dias de trabalho partir da instância do logos.
de Procópio, o coronel comportou-
-se bem, mas, passados alguns dias, Como nos diz Meyer (1993), uma
o ancião começou a ofender e até a questão surge sempre quando há
agredir fisicamente o enfermeiro, que uma causa a defender, ou seja, um
decidiu abandonar o emprego. problema se levanta e, com ele, tam-
bém aparecem respostas. A partir
Felisberto pediu insistentemente daí, uma discussão se inicia e busca-
para que Procópio não saísse, e ele, mos respostas para o problema le-
então, decidiu ficar. Depois, por vá- vantado.
rias vezes, o enfermeiro tentou sair
do emprego, mas não conseguiu. Para expor a resposta ao proble-
ma, o orador faz uso da disposição,
Certa noite, quando o doente es- pois ela o ajuda a estruturar e a colo-
SELINFRAN
car as ideias em ordem. A disposição mau, deleitava-se com a dor e a
é o segundo pilar do discurso retóri- humilhação dos outros;
co, e abarca o exórdio (introdução), Crime ou luta? Realmente, foi
a narração (desenvolvimento), a con- uma luta em que eu, atacado, de-
firmação e a peroração (conclusão). fendi-me, e na defesa... Foi uma
luta desgraçada, uma fatalidade.
No presente conto, observamos
que o orador, através da disposição, E a peroração é constatada na
faz um plano para conduzir o auditó- passagem:
rio, dispondo seu discurso da melhor Os anos foram andando, a me-
maneira possível para persuadir esse mória tornou-se cinzenta e des-
auditório. maiada. Penso às vezes no co-
ronel, mas sem os terrores dos
O trecho responsável pelo exórdio,
primeiros dias. Todos os médicos
que busca atrair a atenção do leitor,
a quem contei as moléstias dele
é: foram acordes em que a morte
Parece-lhe então que o que se era certa, e só se admiravam de
deu comigo em 1860 pode en- ter resistido tanto tempo. Pode
trar numa página de livro? Vá que ser que eu, involuntariamente,
seja, com a condição única de exagerasse a descrição que en-
que não há de divulgar nada an- tão lhes fiz; mas a verdade é que
tes da minha morte. ele devia morrer, ainda que não
fosse aquela fatalidade.
A narração ocorre em primeira
pessoa: Nesse conto, averiguamos que a
atenção do leitor/auditório é cap-
•Procópio (o enfermeiro) conta
turada a partir da identidade que o
que foi trabalhar em casa do coronel
mesmo cria com a narrativa e com o
Felisberto;
encadeamento dos fatos.
•O coronel era insuportável e mal-
O diálogo foi fundamental no con- 71
tratava os enfermeiros;
to, pois foi a partir dele que os fatos

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•Procópio esganou o coronel; evidenciaram-se na história.
•Felisberto deixou sua herança Observamos que a ação humana
para o enfermeiro. foi submetida aos sentimentos e aos
A confirmação é evidenciada em: interesses individuais de cada perso-
nagem.
Era um homem insuportável, es-
túrdio, exigente, ninguém o atu- Em “O enfermeiro”, o orador tam-
rava, nem os próprios amigos. bém faz uso da figura de retórica
Gastava mais com enfermeiros chamada prosopopeia, buscando
que remédios. A dois deles que- facilitar a aceitação do argumento e
brou a cara; possibilitando ao leitor o delectare.
Tinha perto de sessenta anos, e Eis algumas passagens que de-
desde os cinco toda a gente lhe monstram a presença dessa figura no
fazia a vontade. Se fosse só ra-
conto:
bugento, vá; mas ele era também
SELINFRAN

•Gastava mais enfermeiros que re- subjetiva de uma questão vista pelo
médios; ângulo do prazer e do desprazer e,
•riso maligno; enquanto resposta, torna a questão
em algo particular, subjetivo. Dessa
•feições que eram duras; forma, o esquema prazer/desprazer
•as relações foram se tornando é ultrapassado.
melindrosas; A paixão transfere o problema
•escassa dose de piedade; para o plano da resposta; ela cria uma
identidade entre pergunta e resposta
•fermento de ódio e aversão;
e, neste caso, a pergunta passa a ser
•delírio vago e estúpido; tratada como resposta, e isso anula
•Parecia-me que as paredes ti- toda problematicidade. Quanto mais
nham vultos; estivermos na paixão, mais teremos
resposta para o que está em ques-
•escutava umas vozes surdas; tão, e isso nos leva a cair na ilusão. A
•O mesmo som do relógio, lento, paixão é retórica justamente por en-
igual e seco, sublinhava o silêncio e a terrar as questões nas respostas que
solidão; fazem crer que elas estão resolvidas,
conforme Meyer (2007 p. 36-38).
•a memória tornou-se cinzenta e
desmaiada. Meyer (2007), retoricamente fa-
lando, também nos diz que lidar com
A figura de retórica ironia está pre-
as paixões é mais útil, pois elas são
sente também. Ela pode ser eviden-
muito importantes para mobilizar o
ciada no fato de Procópio ir trabalhar
auditório.
na casa do coronel Felisberto com o
objetivo de ajudá-lo a cuidar de sua Na recepção de uma mensagem,
saúde, mas o enfermeiro acaba pro- sempre há uma lógica que pode ir do
72 vocando sua morte. Como se isso prazer retórico à convicção funda-
não bastasse, toda a herança do co- mentada na razão. Muitas vezes, essa
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ronel acaba nas mãos de Procópio. lógica se mistura com o prazer e já


não é mais possível distinguir paixão
B) NA INSTÂNCIA DO PATHOS e razão.
Mas na lógica das paixões há
O pathos é fonte de questões, as
mais do que uma vontade de
quais podem estar relacionadas às
saber fazer. Frequentemente há
paixões, às emoções ou às opini- uma preocupação de se conven-
ões. E o que é “paixão” em retóri- cer a si mesmo da solução esco-
ca? Quando temos uma questão a lhida entre todas aquelas que a
ser respondida, há pelo menos duas indeterminação da questão au-
respostas possíveis, o sim e o não e, torizava. (...) Ao longo de um ra-
em retórica, esse sim ou não pode ciocínio somos levados a invocar
ser expresso em prazer ou despra- argumentos implícitos, nos quais
zer. A paixão começa pela expressão acreditamos, aliás, para chegar à
SELINFRAN
conclusão de que estamos con- Todos os médicos a quem con-
vencidos ou de que vamos con- tei a moléstia dele foram acordes
vencer-nos. (MEYER, 1993 p. 144- em que a morte dele era certa, e
145). só se admiravam de ter resistido
tanto tempo.
A citação acima é observada no
conto “O enfermeiro”. A atitude mais Nesses trechos, fica claro que o
intensa apresentada na narrativa narrador-personagem não consegue
ocorre no momento em que Procó- distinguir paixão e razão, pois busca
pio, o enfermeiro, estrangula o coro- convencer a si próprio de que a atitu-
nel Felisberto. A atitude do enfermei- de que tomou não foi tão ruim assim.
ro está totalmente dominada pela ira, Ele acaba fazendo uso de diversos
ou seja, o narrador age impulsionado argumentos para chegar a uma des-
pela paixão, pela emoção. culpa satisfatória e convincente para
Após esse fato fatídico, Procópio seu ato.
busca vários argumentos que se-
jam capazes de justificar sua atitu- C) NA INSTÂNCIA DO ETHOS
de, como observamos nas seguintes No texto em análise, verificamos,
passagens: também, o que chamamos de ethos.
Crime ou luta? Realmente, foi O ethos liga-se à imagem que o ora-
uma luta em que eu, atacado, de- dor passa de si mesmo e que lhe per-
fendi-me, e na defesa... Foi uma mite tornar-se exemplar diante do
luta desgraçada, uma fatalidade. auditório.
Fixei-me nessa idéia. E balance-
ava os agravos, punha no ativo No conto “O enfermeiro”, o ora-
as pancadas, as injúrias... Não era dor argumenta com honestidade e
culpa do coronel, bem o sabia, sinceridade, apresentando-se como
era da moléstia, que o tornava as- alguém simples e sincero, expondo
sim rabugento e até mau... Mas eu seus pontos de vista com bastante
perdoava tudo, tudo... O pior foi a franqueza. 73
fatalidade daquela noite... Consi-

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derei também que o coronel não
O orador desse conto constrói suas
podia viver muito mais; estava provas muito mais com os recursos
por pouco, ele mesmo o sentia do ethos.
e dizia. Viverei quanto? Duas se- Faz, portanto, uso da arete, que é
manas, ou uma; pode ser até que a virtude do ethos, na qual o orador é
menos. Já não era vida, era um
digno de crédito; a honestidade con-
molambo de vida, se isso mesmo
se podia chamar ao padecer con-
tribui muito para a persuasão.
tínuo do pobre homem... E quem Vejamos as seguintes passagens
sabe mesmo se a luta e a morte da narrativa que demonstram nosso
não foram apenas coincidentes? ponto de vista:
Podia ser, era até o mais provável;
não foi outra coisa. Fixei-me tam- Quando tudo acabou, respirei.
bém nessa idéia; Estava em paz com os homens.
Não o estava com a consciência e
SELINFRAN

as primeiras noites foram natural- CONSIDERAÇÕES FINAIS


mente de desassossego e aflição;
Consideramos que seja importan-
Outro fenômeno interessante, e te salientar que foi necessária a rea-
que talvez lhe possa aproveitar, lização de uma análise retórica acer-
é que, não sendo religioso, man-
ca do tripé retórico, constituído pelo
dei dizer uma missa pelo eterno
descanso do coronel, na igreja
ethos, pathos e logos, para que che-
do Sacramento. Não fiz convites, gássemos à essência do ethos retóri-
não disse nada a ninguém; fui ou- co apresentado no conto machadia-
vi-la sozinho, e estive de joelhos no em estudo.
todo o tempo, persignando-me a Em “O enfermeiro”, o orador mos-
miúdo. Dobrei a espórtula do pa-
tra-se simples, honesto, franco e
dre, e distribuí esmolas à porta,
tudo por intenção do finado. Não
constrói suas provas, preponderante-
queria embair os homens, a prova mente, com os recursos do ethos; o
é que fui só; que lhe atribui o ethos de arete.
Quer que lhe diga? Eu, a princí- Esperamos, também, com esse es-
pio, ia ouvindo cheio de curiosi- tudo, ter contribuído com a amplia-
dade; depois, entrou-me no co- ção da discussão em torno da cons-
ração um singular prazer, que eu, tituição do ethos retórico no conto
sinceramente, buscava expelir... E “O enfermeiro”, bem como com a
o prazer íntimo, calado, insidio- expansão da observação das estra-
so, crescia dentro de mim, espé- tégias argumentativas que o orador
cie de tênia moral, que por mais
utiliza ao buscar a adesão do leitor/
que a arrancasse aos pedaços,
recompunha-se logo e ia ficando.
auditório.

Nesse conto, observamos também O exórdio teve um papel impor-


a preponderância do gênero judiciá- tante, uma vez que foi o responsável
rio, pois a história narrada dá margem por tornar o auditório atento e pre-
74 disposto a ler.
a um julgamento da atitude da per-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

sonagem Procópio. O auditório, for- O orador fez uso das figuras retóri-
mado pelos leitores do conto, pode cas, as quais facilitam a aceitação do
tanto defender o enfermeiro como argumento, pois elas se relacionam
condená-lo pela atitude apresentada com o delectare, com a fruição.
na narrativa, pois Procópio estrangula Observamos também, dentro das
o coronel Felisberto. O tempo verbal funções da retórica, que o orador
utilizado na história é o tempo pas- adotou o estilo ameno, que busca
sado, bastante comum nesse gênero. agradar (delectare), e o simples (do-
Na análise desse conto, tratamos cere), bastante comum na narração e
de apresentar as provas retóricas na confirmação e muito apropriado
(ethos, pathos e logos) utilizadas quando se busca convencer.
pelo orador com vistas à adesão de
seu auditório/leitor.
SELINFRAN
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SELINFRAN

REGIMES DE INTERAÇÃO NO PROGRAMA CASTELO RÁ-TIM-BUM

Carolina Mazzaron de CASTRO


Naiá Sadi CÂMARA

RESUMO
Este artigo tem como objetivo analisar o programa educativo audiovisual Cas-
telo Rá-Tim-Bum, série que mescla educação e entretenimento e se mantém no
ar desde 1994. Tendo em vista as novas formas de produção e sociabilização
dos saberes que os avanços tecnológicos promovem e que mudam significa-
tivamente as formas de vida contemporâneas, iremos analisar como se esta-
belece a relação de interação entre enunciador e enunciatário nesse programa
considerado, neste trabalho, como um gênero didático pedagógico do proces-
so de educação não formal midiática. Nossas análises serão fundamentadas
pelos pressupostos da teoria semiótica francesa, com o uso dos regimes de
interação, a fim de identificar quais as estratégias de interação e persuasão que
o Programa estabelece.
PALAVRAS-CHAVE: Castelo-ra-tim bum; gênero didático pedagógico; regi-
mes de interação.
ABSTRACT
This article aims to analyze the audiovisual educational program Castelo Ra-
76 -Tim-Bum, series that combines education and entertainment and still remains
on the air since 1994. The new forms of production and socialization of know-
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ledge that technological advances promote and significantly changes contem-


porary forms of life. Analyzing how strong the relationship of interaction sche-
mes between the subjects and no formal mediatic education process, that can
establish motivation and adherence to educational practices proposals. The
analysis will be supported by assumptions of the French semiotic theory, using
interaction regimes, in order to present what interaction and persuasion strate-
gies the program offers.
KEYWORDS: Castle; semiotics; pedagogical didactic genre; interaction Sche-
mes.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO 2014, houve um aumento de 52
minutos, uma evolução do tempo
Ao considerar com Câmara (2014) dedicado à TV (canais abertos e
o processo de ensino e aprendizagem fechados). A idade pesquisada varia
como um processo de interlocução de 4 a 17 anos em todas as classes
discursiva em que a relação ensino sociais2. Os dados coletados em 2015
aprendizagem se organiza como indicam que a tendência do tempo
uma prática comunicativa entre de exposição à TV é subir ainda mais.
educador e educando, partimos do Até maio de 2015, foram registrados
pressuposto de que, o contexto de 5h35, o mesmo tempo obtido no ano
imersão cada vez maior dos sujeitos inteiro de 2014.
contemporâneos no ambiente
virtual/digital determinam que os Já que a televisão ocupa uma
problemas no processo de ensino e posição fundamental tanto para
aprendizagem sejam causados por o entretenimento quanto para
problemas de interação entre escola/ a educação no país, e tendo em
professor e aluno ou, como afirma vista a necessidade de as escolas
Câmara (2014, p.855), um problema de assumirem os avanços tecnológicos
letramento transmidiático, ou seja, um que influenciam e determinam novas
problema que impede a atualização relações com o saber (Levy, 1999),
do profissional da educação, “e escolhemos analisar um dos mais
impede a interação com os alunos, importantes programas educativos
uma vez que esses profissionais não audiovisuais televisivos produzidos
conhecem, não compreendem o até hoje, o programa Castelo Rá-
universo multimidiático com o qual Tim-Bum, série da TV Cultura que
os jovens convivem na atualidade”. mescla educação e entretenimento,
ganhadora de inúmeros prêmios e
Pesquisando acerca da relação que se mantém no ar desde 1994.
77
entre educação e mídia, verificamos Interessa-nos observar como se
firma a relação de interação entre os

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que a mídia televisiva no Brasil,
segundo a Pesquisa Brasileira de Mídia sujeitos nesse processo de educação
2015 (PBM 2015)1, ainda predomina não formal3 midiática que consegue
apesar do avanço da internet, pois estabelecer motivação e adesão
a porcentagem de brasileiros que às práticas educativas propostas,
assistem à televisão chega a 95% da ou seja, pensando nas formas
população. Quando especificamos de representação de programas
qual o tempo médio por dia que televisivos de massa, intriga-nos
crianças e adolescentes passam em saber como um programa televisual
frente à televisão, uma pesquisa do
2 EBC. Tempo de crianças e adolescentes assistindo TV aumenta
Painel Nacional de Televisão, Ibope em 10 anos. Disponível em: <http://www.ebc.com.br/infantil/para-
Media, aponta que, entre 2004 e -pais/2015/06/tempo-de-criancas-e-adolescentes-assistindo-tv-au-
menta-em-10-anos>.
3 Neste trabalho, consideramos educação formal as práticas educati-
1BRASIL. Televisão ainda é meio de comunicação predominante
vas realizadas nas escolas regulares e educação não formal as práticas
entre os brasileiros. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/gover-
educativas realizadas fora dos muros escolares, em ambientes midi-
no/2014/12/televisao-ainda-e-o-meio-de-comunicacao-predominan-
áticos.
te-entre-os-brasileiros>.
SELINFRAN

educativo modaliza os sujeitos, Cultura, atingindo até médias de 14


em que dimensões ele atua? Que pontos em reprises de episódios.
estratégias de interação e persuasão O Castelo Rá-Tim-Bum foi parcial-
estabelece? mente inspirado em Vila Sésamo e
A fim de identificarmos e anali- Rá-Tim-Bum5, e deu origem a uma
sarmos essas estratégias, nosso tra- franquia televisiva da qual também
balho fundamenta-se em conceitos fazem parte Teatro Rá-Tim-Bum e
teóricos da semiótica standard e nos Ilha Rá-Tim-Bum. Foi criado para o
regimes de interação pressupostos público infanto-juvenil, com faixa etá-
de Landowski (2005). ria que se amplia da idade pré-esco-
lar até 10 anos.
DESCRIÇÃO DO CORPUS O programa configura-se como um
O Castelo Rá-Tim-Bum , produ- 4 gênero híbrido pela intersecção entre
zido pela TV Cultura de São Paulo a narrativa de ficção que envolve a
em 1994, não se enquadra no mode- vida dos moradores do castelo e os
lo clássico de programa educativo. quadros pedagógicos que proporcio-
Segundo Carneiro (1999, p.32), “Sua nam diversos tipos de aprendizado,
estrutura é tecida pelo reencontro com diversos formatos, e fundamen-
da intenção pedagógica com ma- ta-se predominantemente entre as
trizes culturais, formatos industriais, oposições: realidade versus fantasia
padrões comerciais. Constitui-se em e sensível versus inteligível. Segundo
entretenimento educativo”. Carneiro (1999), o programa estrutu-
ra-se como um conto de fadas, con-
Criado por Flávio de Souza e Cao siderado pela autora como o gênero
Hamburguer, o programa configura- educativo mais ancestral que existe.
se como uma narrativa seriada com
90 episódios e mais um especial, BREVE CONSIDERAÇÃO TEÓRI-
78 produzidos entre os anos de 1994 a CA
1997, que até hoje são transmitidos Landowski (2005) elabora uma
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por 25 canais na América Latina) e semiótica da experiência, centrada


também na Península Ibérica. No nos discursos e nas práticas sociais,
Brasil foi exibido pela TV Brasil e em que a produção do sentido se dá
também pela TV Rá-Tim-Bum até pela interação, proposta teórica que
2012, e atualmente, é transmitido de abre caminhos para uma semiótica
segunda a sábado às 19h40 pela TV do sensível. Esse percurso culmina
Cultura), e já marcou audiência média com o desenvolvimento de uma
de 12 pontos, a maior de qualquer gramática narrativa, um modelo que
outro programa educativo da TV tem, como afirma o autor, o objetivo
4 Castelo Rá-Tim-Bum: produção da TV Cultura de São Paulo. No ar de dar conta das relações entre
desde 9 de maio de 1994. Número de 90 episódios de 25 min. Dire- sujeito e objeto.
ção: Cao Hamburger. Idéia original: Cao Hamburger, Flávio de Souza.
Consultona pedagógica: Zélia Cavalcanti Lima. Sobre o programa: 5 Rá-Em-Bum: produção da TV Cultura, 1990. Número de 190 epi-
MUYLAERT, R. As funções da Televisão Educativa. (Entrevista). Co- sódios de 30 min. Direção: Fernando Meireles. Autores: Flávio de
municação & Educação. São Paulo: CCA-ECA-USP, Noderna, n.2, Souza, Cláudia Dalla Verde e Tacus. Coordenação pedagógica: Célia
jan.abr. 1995. p.76-87. Marques.
SELINFRAN
Segundo Landowski, enquanto Nesse regime, tanto o sujeito como
toda gramática narrativa postulada os objetos agem conforme um com-
por Greimas como um modelo da or- portamento determinado por papéis
dem sintagmática da significação ( temáticos ou posições sociais.
Oliveira, 2012) é presidida pelo regi-
me da junção, que pressupõe a exis- Há diversas formas de programa-
tência de actantes que mantêm re- ção que são baseadas em condições
lações com outros por conta de um de papéis temáticos e socioculturais
objeto de valor, o que culminaria na que são as práticas rotineiras. Lan-
alternância de estados de um sujeito dowski refere-se a essa ordem como
(eufórico ou disfórico), por causa de o comportamento simbólico adotado
estratégias de persuasão vistos nos pela sociedade, como “boas manei-
programas narrativos, a gramática ras”, “papéis de autoridades”, “com-
que postula de uma perspectiva so- portamentos automatizados”, entre
cial é presidida pelo regime da união outros.
e explica os regimes de interações Regime da Manipulação: segun-
compreendidos pelo “ coeficiente do do o autor, a manipulação exige um
risco que o sujeito empreende em sujeito do “querer e/ou dever” fazer,
suas ações de construção do senti- um sujeito que é capaz de avaliar os
do” (OLIVERA, 2012, P. 237), e per- valores colocados pelo manipulador,
mite descrever as relações intersub- de acordo com seus interesses e pai-
jetivas não mediadas. xões.
Landowski, em sua obra Les inte- Nesse regime, a manipulação de-
ractions risquées (2005), afirma que pende de um contrato entre os actan-
os regimes de interação são os mo- tes, a mobilização de competências
dos de agir dos sujeitos do discurso, cognitivas, segundo as modalizações
os quais ele nomeia: regimes da pro- do poder e saber, que determina o
gramação, manipulação, ajustamento fazer-querer. Assim, o enunciatário, 79
e do acidente. através de um poder-saber, adquire

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Regime da programação: é mar- competência cognitiva que o impul-
cado pela continuidade e não pres- siona a querer transformar o seu es-
supõe a transformação do sujeito, tado. Este é guiado por um regime de
pelo contrário, o comportamento se intencionalidade, que prevê a trans-
mantém regular, por conta de um formação do sujeito, mediante a con-
programa narrativo que preserva sua junção ou disjunção dele com o seu
identidade por meio da repetição de objeto de valor.
um mesmo papel temático. Segun- Regime do Ajustamento: esse re-
do Landowski (2005), esse regime é gime também prevê o encontro dire-
centrado na ordem social e é fundado to dos sujeitos, porém esse encontro
nas regularidades de comportamen- é marcado pela reciprocidade, por
tos de todos os tipos de atores pos- um conjunto de sentidos como: tato,
síveis (humanos ou não-humanos). olfato, visão, paladar, audição e a pró-
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pria percepção que o sujeito tem do A INTERAÇÃO POR MEIO DA EX-


espaço. Na soma desses sentidos é PERIÊNCIA
que se dá essa interação.
A) O REGIME DA PROGRAMAÇÃO
O sujeito, nessa interação por ajus- NO CASTELO-RÁ-TIM-BUM
tamento, não busca mais, unicamen-
te, fazer o sujeito fazer, busca-se, A regularidade do Castelo Rá-Tim-
agora, fazer com que os sujeitos sin- -Bum remete tanto às relações no ní-
tam. Segundo Landowski (2005), o vel da enunciação quanto no nível do
sentido depende da intervenção de enunciado. As coerções sociais tradu-
um sobre o outro enquanto corpo e zidas no nível do enunciado manifes-
como corpo (co-presença). Sendo tam-se principalmente no conteúdo
assim, a interação não é mais pelo fa- pedagógico voltado para hábitos de
zer crer e sim pelo fazer sentir, não higiene, como o quadro do ratinho;
se trata mais de persuasão entre um regras de condutas sociais, como
sujeito e outro e sim o contágio de exemplo as lições que o Tio Victor
ambos. ensina para o Nino, o que ele tem que
fazer e como fazer, sempre baseado
Para o autor, a transformação de em noções básicas de convivência;
estados ocorre por meio de senti- nos papéis temáticos pré-determina-
mentos (emoções e sensações) na dos, Tio Victor com o pape temático
hora do ato da interação, não neces- de pai, Nino com o papel temático de
sitando de qualquer ação e sim do filho e aprendiz, Morgana com o pa-
ajustamento de um sujeito para o ou- pel temático de mãe.
tro que se identificam com a recipro-
cidade no instante do ato. Do ponto de vista da enunciação
identificamos a programação na or-
Regime do acidente: vem de or- ganização sintagmática do progra-
dem contrária ao da programação, ma: mesma sequência narrativa e de
80 esse regime é guiado pela descon- inserção e exibição dos quadros edu-
tinuidade, pela irregularidade, pelo
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cativos como podemos ver a seguir:


caótico, no qual ocorre um risco dos
acontecimentos. O efeito de sentido Bloco 1:
ocorre por conta do encontro do su-
a) Saída do Dr. Victor para o tra-
jeito com o objeto ou com outro su-
balho;
jeito, em uma relação que não tem
como medida objetos de valores. b) Chegada das crianças: Biba, Pe-
Trata-se de uma interação que ocorre dro e Zequinha, que são recebidos
pela dimensão do sensível. pelo porteiro. Ele pede que elas cum-
pram uma tarefa como senha, que
Esse regime, segundo Landowski,
se cumprida possibilita a entrada no
está ligado à ruptura de regularidades
Castelo. Dentro do Castelo, encon-
de qualquer ordem e manifesta-se
tram-se com Nino;
pela coincidência, pelo surpreenden-
te, aquilo que não está programado.
SELINFRAN
c) Chegada de um dos visitantes B) A MANIPULAÇÃO DO CASTE-
– Dr. Abobrinha, Etevaldo, Penélope, LO RÁ-TIM-BUM
Bongô ou Caipora);
O regime de manipulação no Cas-
d) Início do conflito; telo Rá-Tim-Bum não opera direta-
mente sobre o fazer do sujeito, e sim
Bloco 2: sobre a sua competência para que
a) Desenrolar do conflito do ele possa ter uma percepção sensível
episódio; e cognitiva sobre os valores apresen-
tados pela relação entre enunciação
b) Reparação do conflito;
e o enunciado. Consiste em proce-
c) Saída do visitante; dimentos persuasivos por meio dos
d) Chegada do tio. quais o Castelo Rá-Tim-Bum age so-
bre o telespectador, levando-o a que-
Essa sequência demonstra que os rer e/ou dever fazer alguma coisa, a
91 episódios seguem uma mesma or- decidir segundo seus interesses e
dem paixões (FECHINE, 2006, p.6).
A sua estrutura é feita por dois De volta a Landowski (2005, p.25),
blocos, entrecortados pelo interva- vemos que a manipulação do Caste-
lo da emissora. No primeiro temos a lo Rá-Tim-Bum se constrói com base
sequência inicial, em que surgem os numa intencionalidade que determi-
conflitos relacionados ao tema do na o querer assistir pelo lúdico e pela
dia e, no segundo, esses conflitos são fantasia.
solucionados. De acordo com Vânia
Lúcia Quintão Carneiro (CARNEIRO, O principal mecanismo utilizado
1999, p.122-135): pelo Castelo Rá-Tim-Bum para atingir
o êxito da manipulação é a inspiração
Ainda é possível observar a regu- na fantasia dos contos de fadas:
laridade do Programa como objeto
Os contos de fadas oferecem fi- 81
de comunicação que obedece a uma
guras nas quais a criança pode
grade de programação do canal te-

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externalizar o que se passa na
levisivo no qual é exibido, com dias e
sua mente, de modo controlável.
horários pré-determinados. Os contos de fadas mostram à
O ato de assistir ao Castelo Rá- criança de que modo ela pode
-Tim-Bum está associado a algum personificar seus desejos destru-
momento do dia e do interesse do te- tivos numa figura, obter satisfa-
ções desejadas de outra, iden-
lespectador. Assim, o fato de o sujeito
tificar-se com uma terceira, ter
manter a televisão ligada em deter-
ligações ideais com uma quarta, e
minado programa pode produzir por daí para diante, como requeiram
si só um sentido que não depende suas necessidades momentâne-
mais da disposição em “assistir algo”, as. (BETTELHEIM, 2000, p.82)
depende da experiência de “ver TV”,
mesmo que seja para “passar o tem- Observamos a fantasia já na vinhe-
po” segundo Fechine (2006). ta de abertura:
SELINFRAN

Figura 1 - No nível da enunciação, podemos obser- espaço de refúgio, da arte, da magia,


var esse contraste visual na abertura do Programa.
Um Castelo localizado em São Paulo, em meio a
da imaginação, e portanto como um
prédios e casas de um mundo real.6 espaço de rupturas. É através de um
castelo Mágico, ou seja, de uma pas-
Quando o telespectador aluno se
sagem para o mundo encantado dos
depara com uma árvore que cresce
contos de fadas que o telespectador
e joga sementes mágicas no chão,
82 aluno faz a ponte entre o seu imagi-
das quais vão brotando pilares, pare-
nário e o imaginário contido na nar-
des, portas, janelas e uma torre, e em
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rativa e acreditamos que é por essa


questão de segundos surge um Cas-
intersecção que o telespectador é
telo. De dentro dele sai uma mão me-
convocado a interagir e se apropriar
cânica, a qual sobe e finca na ponta
dos conteúdos transmitidos.
da torre uma bandeira com a inscri-
ção Castelo Rá-Tim-Bum. A música Acreditamos que esse contraste
é “Bum, bum, bum, Castelo Rá-Tim- do Castelo dentro da cidade de São
-Tum! Bum, bum, bum, Castelo Rá- Paulo também assegura a coerência
-Tim-Bum!...”., como um anúncio para veridictória do discurso apresentado,
a entrada ao mundo da fantasia, a en- criando o efeito de sentido de reali-
trada no Castelo ,embora inserido em dade. Consideramos que esse é um
meio às construções “modernas” da procedimento de manipulação criado
cidade “real de São Paulo”, como um para atrair a confiança do enunciatá-
rio e garantir o “dizer verdadeiro” do
6 Imagem retirada da internet.
discurso.
SELINFRAN
O AJUSTAMENTO NO CASTELO pela transformação de seu estado,
“ao ligar a televisão para colocar-se
Acreditamos que a compreensão
em contato com o fluxo televisual,
e apreensão dos efeitos de sentido
operação na qual se produz um pra-
do nosso objeto passa por um outro
zer ou uma forma de ‘gosto’ identifi-
processo interativo, que não se daria
camos aqui a própria experiência de
apenas pela programação e manipu-
fruir a mesma programação” (FECHI-
lação, mas por relações com o mun-
NE, 2003, p.105).
do natural que dão cotidianamente a
experiência. Estamos nos referindo Pressupomos que o jogo interativo
aos procedimentos de ajustamento, entre o actante e quem assiste à TV é
cuja interação entre os sujeitos en- colocado pela figura do enunciador, e
volvidos ocorre pelo contato, ou seja, ele faz crer um enunciatário que par-
antes a interação era fundada num ticipa da própria construção do sen-
fazer crer e agora se funda num fazer tido do texto, que se faz no ato e em
sentir, baseado pelo contágio e pela situação. Assim, mesmo que os sujei-
sensibilidade. tos se encontrem em espaço e tempo
diferentes, há um efeito de sentido
Dessa maneira, entendemos que
por meio da partilha de um mesmo
quando o telespectador aluno vai em
espaço e tempo: o da história. Nesse
frente à TV para assistir ao Castelo
caso, o Castelo Rá-Tim-Bum funciona
Rá-Tim-Bum, ele participa de uma
para a criança como a sua passagem
relação interativa proposta. Essa re-
para o mundo do imaginário, a forma
lação do telespectador com a TV
televisiva (sobretudo os efeitos es-
ocorre como parte do ambiente do-
téticos proporcionados pela lingua-
méstico conhecido por ele. Segun-
gem audiovisual do programa) como
do Landowski (2005), essa relação
os contos de fadas, no seu imaginá-
entre ser humano e objeto inanima-
rio, mundo no qual as crianças estão
do é possível, pois alguns nos fazem
imersas quase constantemente. 83
conhecê-los a partir da prática deles.
A interação com esses objetos, por- O ajustamento também ocorre

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tanto, ocorre com frequência, já que com o processo de identificação e
há prazer nessa realização mútua, convocação do telespectador aluno,
uma sensibilidade reativa que possi- ou seja, apreende o mundo do Caste-
bilita dentro dessa reação a geração lo por causa da semelhança de suas
de sentido e de valor. Nessa geração formas de vida com as dos persona-
de efeitos de sentido e de valor entre gens do Castelo. Os conflitos abor-
seres humanos e objetos inanimados, dados pela narrativa são parecidos
conhecidos por nós por suas práticas, com os conflitos vividos pela crian-
como é o caso da TV, o ajustamento ça, que, ao observar a similaridade
ocorre por meio do fazer junto, estar das formas de vida dos personagens,
junto. compartilha das mesmas experiên-
cias e vive junto os momentos ima-
Acreditamos como Fechine (2003,
ginários.
p.105) que o sujeito é o responsável
SELINFRAN

Trata-se da acepção de simulacros


ção, quanto do enunciado, já que, em
não apenas da ordem do visível, mas
diversas cenas, os personagens que
da ordem da experiência do sujeito
integram o Programa utilizam os pro-
com o que lhe é mostrado. Isso re-
nomes “nós” e “você”.
flete numa questão do imaginário, do
que o enunciatário gostaria de ser,
O REGIME DO ACIDENTE E A
morar num Castelo, e estar rodeado
do impossível, já que em um mundo QUEBRA DAS REGULARIDADES
real não se encontram fadas, bruxas Entendemos que na medida em
e um menino de 300 anos que ainda que o Castelo Rá-Tim-Bum se realiza
é criança. na ordem da rotina, do hábito e da
Esse “assistir com” que configura, experiência vivida, presentifica uma
em nosso ponto de vista, o regime do possibilidade de ruptura das regula-
ajustamento é reforçado com as es- ridades veridictórias, que se configu-
tratégias de convocação do enuncia- ram na ordem do saber. Alguns ato-
tário-aluno para adentrar ao castelo res, em sua configuração dos papéis
como pode-se observar nas cenas temáticos, demonstram essa ruptura
do primeiro episódio “Tchau Não, Até na regularidade com a quebra dos
Amanhã” no qual essa convocação estereótipos, nas formas de vida e
é configurada no plano visual pelo das crenças e trazem uma nova con-
olhar do ator Nino diretamente para cepção no que tange à apreensão de
o telespectador , por um olhar que novos sentidos:
se dirige para um espaço fora do ato
enunciativo que é complementado
com a expressão fática ““Tchau Não,
Até Amanhã”.

84
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Figura 2 - Nino despedindo-se do telespectador


no final do Episódio 1.7

É com a criança que o texto dialo-


ga e que, portanto, está interagindo.
É como se Nino estivesse convidan-
do o telespectador a acompanhar os
demais episódios, em uma breve des-
pedida entre eles. Como se ambos Figura 3 - Cobra Celeste habita a “árvore-mãe”.8
fossem se encontrar no outro dia. Figura 4 - A Bruxa Morgana.9
Isso ocorre tanto no nível da enuncia- 8 Ibidem.
7 Imagem retirada da internet. 9 Ibidem.
SELINFRAN
simbolizando, assim, o poder do mal,
a força, a magia13.
O sentido disfórico também é dado
ao rato, visto na sociedade como
sujo, causador de doenças, entre ou-
tras coisas. E que na série apresenta
quadro educativo sobre hábitos de
higiene. Essa quebra também pode
ser observada no ator “Mau”, um
Figura 5 - O Rato.10
monstro de bom coração”, roxo que
mora nos encanamentos do castelo
Esses exemplos mostram que os
conceitos preconizados pela socie-
dade, que vem desde os primórdios,
com o cristianismo, por exemplo, são
colocados em um processo de resse-
mantização no programa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Figura 6 - Monstro Mau.11
A partir dessas concepções basea-
Observamos então que a Cobra das nos pressupostos dos regimes de
Celeste, a bruxa Morgana, o Rato e interação propostos por Landowski
o Mau estão ligados à ruptura de re- (2005), percebemos, neste estágio
gularidades da crença social. Há uma de nossas pesquisas, que a adesão
releitura com textos bíblicos e cren- ao Programa Castelo Rá-Tim-Bum é
ças populares nesses personagens. concretizada pela troca de experi-
A cobra Celeste no Castelo repre- ências do enunciador e enunciatário 85
senta o início de tudo, já que ela mora que parece se estabelecer entre os

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na árvore que deu origem ao Caste- regimes da programação e do ajus-
lo. Na concepção do cristianismo, se- tamento, convocando o enunciatário
gundo o dicionário de símbolos12, a aluno a inserir-se em um universo de
serpente representaria o pecado, um fantasia, onde o conteúdo educativo
animal traidor, associada ao demônio. é transmitido num formato lúdico-e-
Já a Morgana possui papel temático ducativo, provocando uma apreen-
de mãe, porém, em crenças popula- são que se estabelece, parece-nos,
res, bruxas são figuras dos submun- por enquanto, com ênfase no sensí-
dos, que se conectam com os maus vel.
espíritos e fazem poções poderosas, A partir da identificação dos re-
10 Ibidem. gimes de interação, pretendemos
11 Ibidem.
12 DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Significado dos Símbolos e Sim- 13 DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Significado dos Símbolos e Sim-
bologias. Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/ bologias. Disponível em: http://www.dicionariodesimbolos.com.br/
serpente. bruxas/
SELINFRAN

dar continuidade às nossas análises pela identificação das estratégias de


complementando e confirmando es- intersecção entre o conteúdo narrati-
ses resultados pela análise dos níveis vo e o conteúdo educativo.
narrativo e discursivo do programa e

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VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

nos>. Acesso em: 06 nov. 2015.


SELINFRAN
MEDIADORES DA FÉ: ANÁLISE DO ÉTHOS DE PREGADORES

Daniele Giacomo ELEUTÉRIO


Maria Flávia FIGUEIREDO

RESUMO
A “pregação religiosa” é de um gênero estritamente oral, produzido por um líder
religioso e que tem, como destinatários, fiéis pertencentes a um grupo comum.
Para aprofundar nesse tema, buscaremos descrever o desempenho do ethos
do orador em pregações religiosas, refletindo sobre seu alcance persuasivo no
referido gênero. Contaremos com a conceituação tripartite de éthos proposta
por Aristóteles: phronesis, arete e eunoia. Com vistas a empreender a análise
proposta, recorreremos a Aristóteles, Perelman e Olbrechts-Tyteca, Meyer, Re-
boul, Eggs e Fiorin. Como consequência de um novo formato de evangelização
do século XXI, selecionamos como corpus de análise a pregação dos Padres
Fábio de Melo, Léo e Mons. Jonas Abib. A análise por nós empreendida visa
contribuir para o entendimento das implicações retóricas do éthos do prega-
dor dentro do gênero “pregação religiosa”.
PALAVRAS-CHAVE: Retórica; ethos; gênero textual; pregação religiosa.
ABSTRACT
The “religious preaching” is a strictly oral genre, produced by a religious leader
and that has a target audience composed by faithful people that belong to a 87
common group. In order to reflect on this topic, we will seek to describe the

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


speaker’s ethos performance in religious preachings, reflecting on its persua-
sive force in the referred genre. We will count on the tripartite ethos proposed
by Aristotle: phronesis, arete and eunoia. In order to undertake the proposed
analysis, we will refer to Aristotle, Perelman and Olbrechts-Tyteca, Meyer, Re-
boul, Eggs and Fiorin. As a result of a new evangelization format of the XXI
century, we selected, as corpus, preachings of the Fathers Fabio de Melo, Léo
and Mons. Jonas Abib. The analysis undertaken by us aims to contribute to the
understanding of the rhetorical implications of the preacher ethos within the
genre “religious preaching”.
KEYWORDS: Rhetoric; ethos; textual genre; religious preaching.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO que têm, como destinatários, fiéis


pertencentes a um grupo comum.
É oportuno recordar a grandiosi-
Com um tempo mínimo de duração,
dade das mudanças que a sociedade
muitas vezes previamente estabele-
vem sofrendo ao longo do tempo no
cido, elas são produzidas em comu-
que se refere às questões religiosas.
nidades que apresentam referenciais
As religiões vêm tentando se ade-
escritos e utilizam tais parâmetros
quar às situações contemporâneas
em sua composição. Em geral, seu
para buscar uma legítima apresenta-
propósito comunicativo é conservar
ção de amparo e sedução aos seus
os fiéis, moldar seu caráter e conver-
seguidores.
ter novos adeptos.
Nas últimas três décadas, a Igre-
Por essas características, selecio-
ja Católica no Brasil tem propagado
namos o gênero “pregação religio-
uma nova forma de evangelização li-
sa” para compor o corpus de nossa
derada pela Renovação Carismática
pesquisa. Como divulgadores dessa
Católica: o catolicismo midiático, re-
modalidade discursiva, escolhemos
presentado por vários sacerdotes da
os Padres Fábio de Melo, Léo e Jonas
atualidade.
Abib; todos eles considerados repre-
Grande é a quantidade de segui- sentantes da Renovação Carismática
dores que se prostram diante desses Católica da atualidade no Brasil.
novos sacerdotes, sejam nas atuais
Esses sacerdotes fazem uso de di-
comunidades nas quais eles estão in-
ferentes mídias para aproximar o pú-
seridos para a evangelização, seja nos
blico na sua missão evangelizadora
diversos meios de comunicação que
e trazem, em seus discursos, modos
veiculam seus trabalhos. Em função
peculiares de reforçar, de estimular,
da notável força persuasiva desses
ou mesmo, de despertar a crença em
discursos é que o presente trabalho
seus expectadores. Por essa razão,
88 se dedicará a desvelar parte dos re-
tais padres produzem CDs, DVDs,
cursos argumentativos neles encon-
livros e pregações, além de apre-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

trados.
sentarem-se constantemente em
Uma das formas de propagação programas televisivos por meio da
da fé escolhida pelos religiosos en- Comunidade Católica que represen-
volvidos no catolicismo midiático é o tam.
proferimento de “pregações religio-
sas” em mídias de amplo alcance de OBJETIVO
fiéis, tais como a TV e o rádio.
A escolha dos pregadores se deu
As “pregações religiosas”, tais pela expressividade dos escritos e
como descritas por Figueiredo et al. discursos de Padre Jonas Abib, Pa-
(2009) em artigo intitulado “Prega- dre Léo e Padre Fábio de Melo. Cada
ção religiosa: uma caracterização à um desses sacerdotes apresenta seu
luz da teoria dos gêneros”, consti- estilo contemporâneo de evangeliza-
tuem um gênero estritamente oral, ção que leva à fidelização de seus se-
produzido por um líder religioso e guidores. São missionários da religião
SELINFRAN
católica, praticantes e divulgadores Reboul (2004), Meyer (1998, 2007),
dos carismas da Renovação Carismá- Ferreira (2010), Tringali (1988), Abreu
tica Católica e, como mencionado, (2009), Fiorin (2015) e Eggs (2005).
fazem uso de diferentes mídias para Outros estudiosos também farão
aproximar o público na sua missão parte desta pesquisa: para nos ajudar
evangelizadora. nas reflexões sobre a teoria dos es-
Sendo assim, este trabalho propõe tudos prosódicos, contaremos com
um estudo sobre os aspectos per- Figueiredo (2006) e Cagliari (2007),
suasivos e os recursos argumentati- no que concerne ao gênero prega-
vos utilizados por esses oradores em ção, nos valeremos das proposições
suas pregações. Partimos da premis- de Figueiredo et al. (2009), e, no que
sa de que os mecanismos persuasi- se refere ao discurso religioso, conta-
vos presentes nos discursos desses remos com Orlandi (1987a e 1987b).
líderes religiosos se devam ao intuito
de garantir a adesão de um auditório METODOLOGIA
específico que se compõe da comu- Em termos metodológicos, proce-
nidade de fiéis. demos a uma revisão da literatura no
Por meio da análise empreendida, que consiste a bibliografia supraci-
buscaremos descrever o ethos retóri- tada, isto é, as obras de renomados
co dos pregadores Jonas Abib, Léo e autores da Retórica. Além disso, fize-
Fábio de Melo, por meio de suas pre- mos um levantamento acerca o gêne-
gações religiosas. Assim, averigua- ro a ser analisado, isto é, a “pregação
remos a forma como se manifesta o religiosa”. Em um segundo momento,
ethos desses pregadores por meio partimos para a seleção do material
das estratégias argumentativas en- que comporia o corpus. Essa seleção
contradas nessa modalidade de dis- foi feita por meio do acesso às pre-
curso religioso: a pregação. Assim, gações disponíveis em CD e DVD que
deteremos nossa atenção sobre os estão à venda pela Internet. Selecio- 89
diferentes tipos de ethe: phronesis, namos, então, três pregações de três

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


arete e eunoia, identificados em cada sacerdotes vinculados ao segmento
orador. de evangelização denominado Reno-
vação Carismática Católica.
ARCABOUÇO TEÓRICO
DESCRIÇÃO E ANÁLISE PILOTO
A fundamentação teórica desta
pesquisa consiste nos estudos de
DO CORPUS
Argumentação e Retórica e no trata- Os sacerdotes selecionados são
mento do gênero textual selecionado representantes de um grande cen-
como corpus. tro de evangelização, a Comunidade
Para efetivar tal empreitada, utili- Canção Nova, onde as pregações fo-
zaremos as contribuições dos estu- ram proferidas. O procedimento para
dos retóricos desde Aristóteles até a a escolha das pregações se deu por
Nova Retórica, por meio dos autores meio de uma busca entre as prega-
Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005), ções disponíveis no portal Canção
Nova. Com vistas a garantir uma
SELINFRAN

uniformidade temática entre as pre- A PREGAÇÃO RELIGIOSA DO


gações, selecionamos aquelas que PADRE LÉO
se encontravam listadas sob o tema
O discurso religioso se constitui
“Aprofundamento”, conforme a orga-
por meio de uma ação entre a lin-
nização interna do site. As pregações
guagem e a religião. Essa relação se
selecionadas foram proferidas em
manifesta a um auditório por meio
acampamentos de oração e dirigidas de um orador, que, segundo Orlan-
a públicos diversos. Todas elas foram di (1987), é aquele que se apresenta
efetuadas no auge de popularida- como um ser marcado de sabedoria
de de cada um dos sacerdotes (isso e conhecimento, um mensageiro, um
pode ser comprovado pelo número canal direto entre o ser sagrado e o
de fieis que compareceu em cada um ser humano.
dos eventos).
Um dos oradores desta pesquisa é
Realizamos, então, a transcrição Padre Tarcísio Gonçalves Pereira, co-
de cada uma das pregações. Em se- nhecido como Padre Léo. O sacerdo-
guida, demos início à análise qualita- te é um representante da Igreja Cató-
tiva do corpus para, finalmente, reali- lica Apostólica Romana, que dedicou
zarmos uma análise comparativa de sua vida à evangelização. Dentre to-
todo o material coletado. As prega- dos os seus feitos, o que lhe conce-
ções selecionadas foram: deu o reconhecimento em vida foi a
1) Pregação: “Vou proporcionar- fundação da Comunidade Bethânia
-lhes abundância de felicidade” – Pa- (uma casa de acolhida a dependentes
dre Léo, realizada no dia 16 de julho químicos e portadores do vírus HIV e
de 2005, no Acampamento de Cura que tem como missão a restauração
e Libertação da Canção Nova. desses jovens). Em 2007, padre Léo
2) Pregação: “Sou salvo e salvo faleceu, vítima de um câncer; contu-
vidas” – Padre Jonas Abib, realiza- do, suas publicações continuam a ser
90 da no dia 3 de fevereiro de 2008, no divulgadas e comercializadas.
Acampamento de Carnaval da Can- Durante sua vida sacerdotal, pa-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

ção Nova. dre Léo sempre esteve presente nos


3) Pregação: “Grande é o poder eventos organizados pela Canção
da misericórdia divina” – Padre Fábio Nova. A pregação em análise foi re-
de Melo, realizada no dia 15 de abril alizada, para uma expressiva quanti-
de 2012, no Acampamento da Miseri- dade de pessoas presentes no Acam-
córdia da Canção Nova. pamento de Cura e Libertação e
também para os telespectadores do
O trabalho na íntegra contém a Brasil inteiro por meio da transmissão
análise dessas três pregações, po- da Rede Canção Nova de Televisão.
rém, para compor o presente traba- Ainda hoje, é possível ter contato
lho, selecionamos apenas uma delas com essa pregação por meio de CDs
que servirá de referencial para a aná- e DVDs disponíveis nos meios católi-
lise piloto aqui apresentada. Assim, cos de comércio.
no item que segue, apresentaremos
nossas considerações acerca da pre- A pregação proferida por Padre
Léo, nomeada “Vou proporcionar-
gação proferida por padre Léo.
SELINFRAN
-lhes abundância de felicidade”, du- para nós... primeiro VOU pen-
rou 52’07’’ (cinquenta e dois minutos sar-lhes as feridas... depois nos-
e sete segundos). Ele apresenta seu so segundo passo... pra que que
discurso de maneira alegre e desen- DEUS pensa... pra que Deus pen-
volta, utiliza-se de vários exemplos sa? Para que que Deus olha em
concretos e simples do dia-a-dia, em nossa feridas?... para cuRÁ-las...
penso que ficou bem claro para
que expõe um modelo de vida seme-
nós que a vontade de Deus é a
lhante ao do auditório que o assiste. O
nossa CURA. (LÉO, 2005, 34’’).
orador conhece seu auditório e sabe
que ele é composto por pessoas que Ao iniciar a sua pregação, o orador
partilham da mesma crença religiosa busca recursos bíblicos que o apoiem
pautada no catolicismo, ou seja, tra- em toda a sua fala. Ele faz a leitura
ta-se de um auditório particular que, de um versículo bíblico, buscando já
de acordo com Reboul (2004, p. 93), iniciar seu discurso por meio de uma
é “diferente de outros auditórios. Pri- interação com o seu auditório.
meiro pela competência, depois pelas
Vemos que o orador de antemão
crenças e finalmente pelas emoções”.
enfatiza o tema de sua pregação: a
Para efeitos de análise, apresenta- felicidade. Além disso, apresenta as
remos, a seguir, trechos da pregação bases religiosas que fundamentarão
do sacerdote que evidenciam a pre- o seu discurso por meio do anún-
sença do ethos. Faremos inicialmente cio do texto bíblico: Jeremias (33,6).
a classificação do tipo de ethos de- Esse texto representa, portanto, sua
monstrado. Em seguida, investigare- tese principal. Corroborando uma ca-
mos a presença dos ethe (phronesis, racterística do gênero “pregação re-
arete e eunoia) dentro dos ethe clas- ligiosa”, a fala do orador em questão
sificados. Além de destacarmos essa se fundamentará em textos e ensina-
presença teórica, recorreremos aos mentos bíblicos.
elementos prosódicos como recursos
de comprovação argumentativa. A grande MEta de Deus para nós... 91
---lembra do que eu falava hoje-
Os excertos analisados estão

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


--... que nós precisamos ter ME-
transcritos de acordo com as normas -ta, pro-PÓ-si-to e o-bje-TI-vo...
de transcrição propostas pelo proje- quando nos FAlta esses três ele-
to NURC. Destacados em negrito es- mentos nós não atingimos ne-
tão tanto os trechos relevantes para nhum deles... nem a meta... nem
o entendimento do ethos, quanto os o propósito nem o objetivo...
aspectos prosódicos que os corrobo- pois a bíblia diz... que esse tex-
ram. to nos garante... que Deus tem
um propósito uma meta e um
Passemos à análise: objetivo para mim e para você...
VOU pensar-lhes as feridas... proporcioNAR-nos abundân-
segunda parte... e cuRÁ-las... cia de felicidade... gente... essa
terceira parte agora... e:::... pro- é a verdade mais fundamental
porcionar-lhes abunDÂNcia de que o mundo precisa descobrir
felicidade... e:::::... . segurança... ACERCA de DEUS e vai descobri
é uma promessa tripla de Deus olhando para a SUA própria his-
tória. (LÉO, 2005, 1’ 36’’)
SELINFRAN

Um recurso argumentativo pre- hoje---... que nós precisamos ter


sente na pregação do padre Léo é a ME-ta, pro-PÓ-si-to e o-bje-TI-
construção de um ethos de autori- -vo... quando nos FAlta esses três
dade, ao se apresentar como um sa- elementos nós não atingimos ne-
nhum deles... nem a meta... nem
cerdote fiel, dotado de autoridade e
o propósito nem o objetivo... pois
competência para discorrer sobre os
a bíblia diz... que esse texto nos
ensinamentos e as vivências humanas garante... que Deus tem um pro-
diárias. Ele se coloca, portanto, como pósito... uma meta e um objetivo
um conhecedor das misérias huma- para mim e para você... propor-
nas e, por isso, com autoridade para cioNAR-nos abundância de feli-
dar a elas um novo direcionamento. cidade... gente... essa é a verdade
mais fundamental que o mundo
Com a posição de autoridade que
precisa descobrir ACERCA de
lhe é concedida perante as ordens DEUS e vai descobri olhando
da religião, o sacerdote apresenta, para a SUA própria história (LÉO,
ao longo de seu discurso, passagens 2005, 1’ 36’’).
que lhe conferem essa conduta, isto Em negrito estão os elementos em
é, daquele que fala em nome de ou- que a entonação do orador se desta-
tro. Dessa maneira, evidencia-se a re- ca. Vemos, assim, a autoridade com
lação de Deus com o homem, típica que o sacerdote se coloca diante de
do discurso religioso. Por meio dessa seus fiéis, demonstrando também
estratégia, o orador constrói gradati- que tem a missão de se comprome-
vamente seu ethos autoridade. Como ter com a vida humana.
afirma Meyer (2007), esse ethos es-
tabelece, no discurso, uma estrutura, De acordo com Fiorin (2015),
uma dimensão de superioridade. o orador que se vale do ethos de
phronesis apresenta-se como sensato,
Observamos, portanto, uma assi- ponderado e constrói suas provas
metria na relação orador/auditório. muito mais com os recursos do logos.
92 O orador se apresenta como uma Ao longo da pregação, o orador aqui
personalidade reconhecida no plano
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

analisado apresentam, como vimos,


espiritual, como intermediário entre um discurso de autoridade. Para isso,
Deus e os homens. Como nos expli- expõe seus argumentos por meio do
ca Orlandi (1987a), Deus surge como discurso, do logos.
um sujeito único, infalível e absoluto
Deus não me criô... como alguém
e o povo, como sujeitos às vontades
ou algo... --- põe o pé aqui que
de Deus. cê filma pra parecê na televisão
Muitas vezes, o acento frasal que ---((risos)) Deus não me criô...
incide sobre as palavras pronuncia- como algo do passado... nesse
das pelo orador estabelece o foco livro eu vou mostrando... Deus
temático daquilo que está sendo está me sustentando... Deus está
anunciado e evidencia características me criando agora... sabe quando
desse orador. a gente comete um pecado ((ri-
sos)) não sei se vocês já come-
A grande MEta de Deus para
nós... ---lembra do que eu falava
SELINFRAN
teram pecado na vida ((risos)) nesse livro eu vou mostrando...
muito pecado?... alguns aqui já Deus está me sustentando...
cometeram pecados mortais? Deus está me criando aGOra...
Eu já... graVÍssimos. (LÉO, 2005, sabe quando a gente comete um
2’57’’) pecado ((risos)) não sei se vocês
já cometeram pecado na vida
Como já mencionamos, ethos é a
((risos)) muito pecado?... alguns
imagem criada por meio de um dis- aqui já cometeram pecados mor-
curso, é uma imagem que se constrói tais? Eu já... graVÍssimos. (LÉO,
no próprio ato de dizer. “O orador, ao 2005, 2’57’’)
mesmo tempo que enuncia uma in-
Esse volume alterado e essa fala
formação, ele transmite uma imagem
direta conduz o auditório a um en-
de confiabilidade, de competência,
tendimento mais facilitado acerca
de franqueza” (FIORIN, 2015). Por as-
daquilo que o orador está afirmando,
sim dizer, compreendemos as marcas
Deus o sustenta, o ampara, mesmo
argumentativas que nos permitem
ele sendo um pecador.
compor o ethos de franqueza do sa-
cerdote, ao se apresentar como um Ao conceituar os ethe, vemos que
ser humano pecador, que comparti- o padre volta-se para o eu, volta-se
lha das fraquezas humanas. para o ethos; ao afirmar que ele tam-
bém é um pecador, mesmo estando
O orador utiliza com frequência a
em uma condição de superioridade,
variação do elemento prosódico cha-
ele se mostra também um ser de fra-
mado volume, para marcar com em-
gilidades. A esse respeito, se tomar-
penho as sílabas tônicas de palavras
mos as proposições de Fiorin (2015,
que anuncia em seu discurso. E até
p.71) de que “aquele se que vale da
mesmo aumenta o volume de sua voz
arete se apresenta como desboca-
em determinados trechos possibili-
do, franco, temerário e constrói suas
tando uma variação com um alto vo-
provas muito mais com os recursos
lume, similar a gritos. Essas são fortes 93
do ethos”, veremos que o orador em
marcas persuasivas, quando compre-
questão vale-se também da arete ao

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


endemos que o falar alto sinaliza uma
apresentar suas provas com os recur-
atitude de autoridade e superiorida-
sos do ethos.
de, assim como o falar baixo pode si-
nalizar timidez ou respeito, conforme Que poder você tem sobre a
expõe Figueiredo (2006). sua unha... só o poder de cor-
tar... e desde quando cortar é
Vejamos algumas sinalizações de um poder?... até um imbecil
ocorrências de elementos prosódi- sabe fazê... ((risos))... determi-
cos: na para sua unha... eu não quero
Deus não me criô... como al- que você cresça mais... ((risos))
guém ou algo... --- põe o pé aqui partir de hoje eu determino...
que cê filma pra parecê na tele- você é minha... você está gru-
visão ---((risos)) Deus não me dada no meu dedo... então você
criô... como algo do passado... me obedeça... continue fazendo
isso... não demora muito... nós va-
SELINFRAN

mos visitar em um hospício ((ri- trecho citado, foi exatamente esse


sos)) você não tem poder sobre o recurso utilizado pelo orador. Ele
sua::::... unha, sobre seu cabelo... construiu suas provas, por meio de
Encontrava hoje de manhã um exemplos extraídos das limitações
irmão... que agora não penteia
comuns da vida humana, o que cons-
o cabelo mais com pente... usa
titui uma comicidade. Esse recurso
escova... porque falaram para
ele... que para parar de cair o se torna, portanto, argumentativo, já
cabelo... não deve pentear com “que ninguém duvida do valor persu-
o pente... deve pentear com a asivo do cômico” (TRINGALI, 1988, p.
escova... porque aí não cai... fica 80). Podemos dizer, então, que o ora-
grudado na escova ((risos))... dor apresentou um ethos de eunoia
agora ele tem que ficar... ((risos no trecho analisado.
e aplausos)) aí tem que ficar
Que Deus vai dar uma felicida-
com a escova grudada ali... né::::...
de... pra mim e pra você... que
((aplausos)). (LÉO, 2005, 5’ 24’’)
não há NINguém de fora de nós
Esse trecho evidencia característi- que pode arrancá-la de nós...
cas de um orador próximo a seu audi- Romanos onze vinte e nove... os
tório: um homem simples, de origem dons e:::... a graça de Deus são
humilde, falante de uma linguagem I-RRE-VO-GÁ-VE-IS... não tem
que se aproxima de um dialeto típico como tirar... Deus determinou
para VOCÊ... que você TEM que
dos moradores da zona rural e, para
ser uma pessoa FELIZ... aliás
muitos, um verdadeiro contador de você que é batizado na igreja...
causos em suas pregações. Daí a ma- você que tem um carim:::bo... o
nifestação do auditório por meio do catecismo da igreja... chama de
riso. Sobre o riso, Tringali (1988, p. 78) MARCA... gente... quando a gente
afirma que “o orador se serve do riso lê isso... e fica ---lembrando lá na
como uma arma. O riso possui força roça... quando alguém comprava
persuasiva, concilia os ânimos, des- um boi... primera coisa a fazer era
94
contrai e, quando inteligente, atrai colocar a marca... uma tatuage...
com a iniciais... hoje quase não
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

admiração sobre o orador”. Em geral,


Pe. Léo se vale de um estilo cômico e fazem isso... hoje... hoje bem me-
nos... não hoje bem... só os fazen-
espirituoso para ilustrar seus pontos
deirinho de quinta que faz isso
de vista. Aborda as consequências ((risos))... é:::... hoje põi um anel...
comuns da vida por meio das pala- um brinco na oreia da vaca... coi-
vras ou das situações que resultaram sa é coisa mais chique... mas esse
no risível. Dessa maneira, apresenta negócio de marcá o boi... a socie-
um ethos cômico. dade protetora dos animais não
deixam não... faze tatuage em
Para Fiorin (2015), o orador que
boi... meu pai fazia tatuage nos
se vale do ethos de eunoia apresen- boi dele... JP... esquentava aquele
ta suas provas com os recursos do ferro lá no fogo... onde tava bem
pathos, ou seja, para apresentar um vermeio... aí lá na anca da vaca
ethos de eunoia, o orador precisa marcava... xiiiii::::... assava... olha
munir-se de provas que vão atingir o essa é do fulano e o povo respei-
auditório, o pathos. Como vimos no tava... também porque ninguém
SELINFRAN
pensava em vendê logo a vaca... roça... quando alguém comprava
comprava a vaca e ficava a vida um boi... primera coisa a fazer era
inteira com ela em casa... (LÉO, colocar a marca... uma tatuage...
2005, 7’ 07’’) com a iniciais... hoje quase não
fazem isso... hoje... hoje bem
O orador utiliza uma linguagem
menos... não hoje bem... só os
simples e popular, aproxima o seu re- fazendeirinhos de quinta que faz
gistro de fala a uma linguagem muito isso ((risos))... é:::... hoje põi um
familiar aos falantes rurais. Além de anel... um brinco na oreia da vaca...
contar casos e trazer à baila as vivên- coisa é coisa mais chique... mas
cias do universo rural. Apresenta, ao esse negócio de marcá o boi... a
longo do seu discurso, um ethos de sociedade protetora dos animais
simplicidade e pobreza. Lembra os não deixam não... faze tatuage
fatos de infância em que viveu com em boi... meu pai fazia tatuage
sua família na zona rural em uma pe- nos boi dele... JP... esquentava
aquele ferro lá no fogo... onde
quena cidade. Faz referência a uma
tava bem vermeio... aí lá na
linguagem figurada a fim de manter
anca da vaca marcava... xiiiii::::...
uma aproximação e comoção do seu assava... olha essa é do fulano
auditório, como aquele que viveu das e o povo respeitava... também
mazelas humanas. porque ninguém pensava em
Prosodicamente, o orador aumen- vendê logo a vaca... comprava a
ta o volume e a velocidade de sua vaca e ficava a vida inteira com
ela em casa... ( LÉO, 2005, 7’ 07’’)
fala no início do trecho em questão,
obtendo, assim, a função pragmá- A velocidade e o volume são apre-
tica que, de acordo com Figueiredo sentados no discurso, ao sinalizar, por
(2006), indica maior valor a algo que vezes, momentos de empolgação em
se diz e, ao mesmo tempo, demons- evidenciar o tema central de sua pre-
tra a condição superior do orador, gação: a felicidade. Assim, o orador
como aquele comprometido a anun- evidencia seu papel de direcionador 95
ciar a palavra do “Senhor” e dar ênfa- de vida a partir da aprovação e da

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


se à ideia que está sendo defendida. afirmação do sagrado.
Que Deus vai dar uma felicidade... Pela descrição Aristotélica dos
pra mim e pra você... que não ethe, podemos compreender que,
há NINguém de fora de nós nesse trecho, há a presença da eu-
que pode arrancá-la de nós... noia, pelo fato do ethos se apresen-
Romanos onze vinte e nove... os tar “cheio de benevolência e de ben-
dons e:::... a graça de Deus são
querença e erigir suas provas muito
I-RRE-VO-GÁ-VE-IS... não tem
como tirar... Deus determinou
mais com base no pathos” (FIORIN,
para VOCÊ... que você TEM que 2015, p. 71). É possível compreender
ser uma pessoa FELIZ... aliás que o orador, ao se valer de exem-
você que é batizado na igreja... plos que correspondem a fatos corri-
você que tem um caRIM:::bo... o queiros do universo rural, explora as
catecismo da igreja... chama de emoções do auditório que se identifi-
MARCA... gente... quando a gente ca com essa realidade.
lê isso... e fica ---lembrando lá na
SELINFRAN

Muitas e muitas pessoas hoje... to a ajudar seu auditório” (REBOUL,


PEnsa que felicidade... é golpe 2004, p. 48). Levando tais aspectos
de sorte... que felicidade... e aí em consideração, vemos que o ethos
tem o Erro da concePção da de orientador, apresentado por padre
felicidade... feliciDAde como
Léo, segue essas características: ele
algo que vem de FOra para
se mostra sensato, sincero e simpá-
dentro... felicidade como ALgo
que eu não tenho... eu fico tico. Seu discurso não está vinculado
espeRANdo conseguir ALgo de ao caráter punitivo ou apelativo pelo
FOra para preENCHER-me... e não cumprimento da doutrina, mas,
por isso não serei feliz nunca... sim, atado a uma orientação de vida.
a felicidade é muita mais do que Se essa é a posição afirmativa que
algo de fora para dentro... é ao
o orador quer apresentar, ele, então,
contrário... a felicidade... ela tem
que brotar primeiro ela tem
aumenta a intensidade do seu discur-
que brotar primeiro AQUI... no so, enfatizando o tema principal de
meu coração... tem que ser uma sua pregação: a “felicidade”. Dessa
CER:::teza do meu coração... tem maneira, conduz os seus fieis a uma
que ser uma DETERMINAÇÃO orientação e uma comoção. Obser-
do meu coração... a primeira vemos a prosódia:
coisa para ser feliz... é acreditar
Muitas e muitas pessoas hoje...
na possibilidade da FE-LI-ci-da-
PEnsa que felicidade... é golpe
de. (LÉO, 2005, 14’ 18’’)
de sorte... que felicidade... e aí
Antes de analisar esse trecho, vale tem o Erro da concePção da fe-
recordar que a missão central dos licidade... feliciDAde como algo
propagadores da fé é difundir a re- que vem de FOra para dentro...
ligião por meio do discurso. Os mis- felicidade como ALgo que eu
não tenho... eu fico espeRANdo
sionários de vida consagrada, como
conseguir ALgo de FOra para
os padres, são considerados os inter-
preENCHER-me... e por isso não
96 mediários entre os cristãos e Deus. serei feliz nunca... a felicidade é
Por essa razão, têm a missão de levar, muita mais do que algo de fora
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

aos cristãos, as condições imprescin- para dentro... é ao contrário... a


díveis para seguir os ensinamentos e felicidade... ela tem que brotar
a doutrinação da Igreja Católica. As- primeiro ela tem que brotar pri-
sim, cabe aos evangelizadores, a di- meiro AQUI... no meu coração...
vulgação dos preceitos divinos com tem que ser uma CER:::teza do
vistas à conversão dos cristãos. meu coração... tem que ser uma
DETERMINAÇÃO do meu cora-
O orador, portanto, deve preen- ção... a primeira coisa para ser
cher as condições de credibilidade, feliz... é acreditar na possibili-
apresentar-se como “sensato, since- dade da FE-LI-CI-DA-DE. (LÉO,
ro e simpático. Sensato: capaz de dar 2005, 14’ 18’’)
conselhos razoáveis e pertinentes. Pelo trecho em análise, identifica-
Sincero: não dissimular o que pensa mos intensidade do volume de voz
nem o que sabe. Simpático: dispos- nos trechos negritados, o que evi-
SELINFRAN
dencia o desejo, por parte do orador, conhecimentos sobre fatos científi-
de ser ouvido e compreendido. cos e citações de passagens bíblicas,
Aqui encontramos um orador que servem de suporte para a sua
cheio de benevolência e solidarie- construção discursiva.
dade, pautando-se nos argumentos É por meio desse saber específico
patéticos “que suscitam paixões nos que o orador, na condição de saber
ouvintes para conduzir-lhes a mente bem sobre aquilo que está profe-
e arrastar-lhes a vontade” (TRINGA- rindo, evidencia “um ethos compar-
LI, 1988, p. 77). Há uma preocupação tilhado por todos, em que cada um
do sacerdote em despertar, no seu deve poder se reconhecer e ao qual
auditório, uma inspiração à vida nova, pode se identificar” (MEYER, 2007, p.
a um novo pensar sobre a felicidade, 34). Essa sabedoria está em saber se
pela presença do ethos de eunoia. expressar dentro dos seus conheci-
Pesquisas sérias hoje... provam... mentos, como uma virtude em geral,
--- aliás em nova York... tem a qual, ao ser manifesta, poderá ser
estado em um museu de Nova compartilhada por todos.
York... as fotografias de um As provas voltadas para o logos
grande pesquisador... vivo ain-
“querem persuadir, convencendo a
da... professor de universida-
mente através de raciocínios e exem-
de... ele criou um mecanismo de
fotografar a cabeça... o cérebro plo” (TRINGALI, 1988, p. 70), por as-
da pessoa e as reações dentro sim dizer, o ethos aqui se preocupa
do cérebro... passam na televi- em comprovar sua argumentação,
sãozinha deles lá:::... ...--- hoje a exprime suas opiniões competentes
ciência sabe por com-pro-va-ção e razoáveis baseadas no seu discur-
de que a felicidade humana ela é so, phronesis.
CONSRUÍDA da determinação... Pai santo, pai querido e pai
da vontade... portanto é fruto da amado... muitas e muitas vezes
in-te-li-gên-cia. (LÉO, 2005, 32’ 97
eu fiz como a grande maioria...
19’’) a grande maioria das moças na

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


“Não é preciso admitir [...] que a hisTÓria do imperador... muitas
epieíkeia (equidade) do orador que e muitas vezes... para conquis-
não contribui em nada para a per- tar a felicidade que o mundo...
propõe... eu também fui atrás
suasão; muito ao contrário, o ethos
das coisas falsas... eu também
constitui praticamente a mais impor- fui atrás da felicidade da apa-
tante das provas” (EGGs, 2005, p. rência... eu achei que... essa
36). Para tanto, o conhecimento e a era a estrada da felicidade para
sabedoria do orador são provas im- mim... e no entanto pai... depois
portantes para garantir a persuasão de buscar tanto fora... hoje...
de seu discurso. Representando um hoje... eu me convenço... que a
ethos de sabedoria, o missionário, em felicidade é um presente do seu
sua pregação, mostra marcas do seu amor... que está aqui sendo der-
saber ao trazer, para o seu auditório, ramada em meu coração... e que
SELINFRAN

hoje eu quero tomar posse... pai Figueiredo (2006), os níveis mais


amado... pai santo e pai queri- graves podem indicar maior razão
do... hoje eu quero tomar posse e autoridade por parte daquele que
das promessas que o senhor me profere o discurso. Vários são os mo-
faz... nesse acampamento... vou
mentos marcados por essa tessitura;
pensar-lhes as feridas... curá-las...
ademais, a oração final da pregação
e proporcionar-lhes felicidade e
segurança. (LÉO, 2005, 47’ 06’’) é marcada pela tessitura grave. Ob-
servemos:
“Deus não fala, dado ser uma re-
alidade imaterial; quem fala em seu Pai santo, pai querido e pai ama-
nome não é dono do discurso: o pas- do... muitas e muitas vezes eu fiz
como a grande maioria... a grande
tor é apenas veículo, porta-voz, no
maioria das moças na hisTÓria do
máximo um ‘interpretador’ da palavra
imperador... muitas e muitas ve-
do Senhor” (CITELLI, 2005, p. 48). O zes... para conquistar a felicidade
padre conclui o final de sua pregação que o mundo... propõe... eu tam-
com um momento de oração, sua fala bém fui atrás das coisas falsas...
é em nome de um Deus ausente, que eu também fui atrás da felicida-
pelo momento de súplica à piedade, de da aparência... eu achei que...
se projeta em um Deus presente. essa era a estrada da felicidade
Ao final da pregação, isto é, na pe- para mim... e no entanto pai... de-
pois de buscar tanto fora... hoje...
roração, padre Léo insere uma ora-
hoje... eu me convenço... que a
ção final marcada pela exposição das felicidade é um presente do seu
experiências humanas. Ele conduz amor... que está aqui sendo der-
uma oração para que os fiéis repitam ramada em meu coração... e que
e se coloquem compromissados com hoje eu quero tomar posse... pai
as mesmas palavras. Nela, faz uso de amado... pai santo e pai queri-
vocativos e de imperativos para mar- do... hoje eu quero tomar posse
car a necessidade de se redimir dian- das promessas que o senhor me
98 te de Deus. Dessa maneira, evidencia faz... nesse acampamento... vou
um ethos de pecador, mas, ao mes- pensar-lhes as feridas... curá-las...
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

mo tempo, um ethos de confiante e proporcionar-lhes felicidade e


segurança. (LÉO, 2005, 47’ 06’’)
em relação ao poder e à bondade de
Deus. Em todo esse trecho, o sacerdote
utiliza uma voz aveludada, branda, e
Pelos recursos prosódicos, pode-
demonstra seu cuidado de líder para
mos apresentar as ocorrências da
com os fiéis, no intuito de conduzi-
tessitura em níveis mais graves. O
-los a um momento de conversa, de
sacerdote instaura a posição de pre-
intimidade com Deus.
gador ao evidenciar que quem emite
a palavra é um representante capaz De acordo com Tringali, o orador,
de tomar propriedade da palavra di- como “consequência da imagem que
vina, de falar com seriedade e como- desperta nos ouvintes, desperta, ao
ver o auditório, conduzindo-o aos va- mesmo tempo, os sentimentos cor-
lores apresentados. De acordo com respondentes” (TRINGALI, 1988, p.
SELINFRAN
75-76). No trecho analisado, o ora- nhão entre as paixões despertadas
dor, valendo-se dop ethos de arete, no auditório (pathos) e os ethe de-
apresenta sinceridade e franqueza ao monstrados pelo orador.
expor os seus sentimentos, o que lhe Padre Léo se mostra um sacerdote
permite despertar no auditório o de- que se preocupa com a missão que
sejo de cumplicidade para com Deus lhe foi atribuída, uma vez que toma
nesse momento de intimidade. sua evangelização com compromis-
Pelo que pudemos observar a par- so e assume a posição de autorida-
tir dos trechos aqui analisados, é pos- de ao proferir um discurso que liga o
sível compreender que os recursos homem a Deus. Além disso, o orador
linguísticos encontrados nessa “pre- anuncia os versículos bíblicos com
gação religiosa” funcionam como es- propriedade e neles se ampara, per-
tratégias argumentativas e, portanto, mitindo que esses assumam a fun-
persuasivas. ção retórica de persuadir o auditório,
já que o discurso bíblico representa,
Ao longo da análise, pudemos ave- para os fiéis, uma verdade que não
riguar os recursos linguísticos que pode ser contestada. Ele também se
apoiam o orador na busca de atingir coloca à frente de uma multidão de
seu objetivo final: a persuasão do au- cristãos como um orador sincero e
ditório. O sacerdote, por meio de sua franco que, mesmo ocupando uma
argumentação, busca assegurar a co- posição de superioridade, se apre-
moção do auditório e, assim, levá-lo senta como um homem como qual-
a uma mudança de hábitos, de modo quer outro e que se vale de uma lin-
que passe a ter uma vida condizente guagem comum ao auditório. Esse
com o caminho de fé proposto pelo comportamento evidencia seu esfor-
orador. ço constante de interação e de apro-
ximação com o seu auditório. Tudo
CONSIDERAÇÕES FINAIS isso é corroborado pelo uso de pia-
99
Neste trabalho, buscamos descre- das, exemplos e brincadeiras acerca
ver o desempenho do ethos do ora-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


da limitada natureza humana.
dor em uma das pregações religio- Mesmo tendo origem simples, o
sas que compõem o nosso corpus. orador não deixa de evidenciar que
Buscamos refletir sobre seu alcance conseguiu se aprimorar nos conheci-
persuasivo e suas implicações para a mentos. Ele o faz por meio da apre-
constituição retórico-argumentativa sentação de fatos científicos e in-
do referido gênero. formativos. Ademais, faz alusão, ao
Ao observamos os elementos que longo da pregação, aos seus livros
constituem o ethos do orador, é pos- publicados.
sível dizer que eles logram estabele-
Por meio da classificação dos ethe
cer o vínculo necessário como o au-
resultantes das análises, pudemos
ditório no que concerne o caminho
detectar as seguintes características
da persuasão. Os trechos analisados
do orador: ele se apresenta como
evidenciaram mostras de uma comu-
SELINFRAN

simples e sincero, expõe com fran- corroboram a intenção argumentati-


queza os seus argumentos, eviden- va do orador.
cia, com predominância, o ethos de Por fim, observamos que o orador
eunoia, ao demonstrar benevolência se mostra conhecedor de seu audi-
e simpatia pelo auditório, é um mis- tório, sábio das misérias e dificulda-
sionário que tem compromisso com des humanas e pronto a mostrar um
a solidariedade e a humanidade, suas caminho para que os fiéis consigam
provas apresentam-se, portanto, liga- adotar uma nova postura de vida.
das ao pathos.
Os traços prosódicos identificados

REFERÊNCIAS
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2004.
SOU SALVO e salvo vidas. Direção: Monsenhor Jonas Abib, 2008. 1 CD/DVD (60 min), NTSC, color. Dolby
digital 2.0. Produzido pela Canção Nova.
VOU PROPORCIONAR-LHES abundância e felicidade. Direção: Padre Léo, 2005.1 CD/DVD (60 min), NTSC,
color. Dolby digital 2.0. Produzido pela Canção Nova.
SELINFRAN
“SOMOS TODOS MACACOS”: A TRAJETÓRIA TEXTUAL E
ENTEXTUALIZAÇÃO DO SLOGAN NA MIDIA ONLINE

Érika Pereira VILELA


Glenda Cristina Valim de MELLO

RESUMO
Esta pesquisa visa analisar a trajetória textual do slogan “Somos Todos Maca-
cos” em textos na mídia online. As teorias que embasam o estudo são os atos
de fala performativos, Austin ([1962] 1990) e Derrida ([1972] 1988), e a concep-
ção de raça proposta pelas Teorias Queer (SOMMERVILLE, 2000; SULLIVAN,
2003; BUTLER, ([1999] 2003); BARNARD, 2004; LOURO, 2004, WILCHINS,
2004). A pesquisa é de caráter etnográfico (Hine, 2000) e utiliza os construtos
teórico-analíticos de trajetória textual (BLOMMAERT, 2006, 2010) e de entex-
tualização (BAUMAN; BRIGGS, [1990] 2008), além das pistas indexicais indica-
das por Wortham (2001). A relevância deste trabalho está na medida em que
aborda as relações raciais contribuindo para uma reflexão sobre a raça como
uma construção histórica, social, discursiva e performativa.
PALAVRAS-CHAVE: Somos todos Macacos; trajetória textual; raça; teorias
queer; mídias sociais e online.
ABSTRACT
This research aims at analyzing the textual trajectory of the slogan “We Are 101
All Monkeys” in online media. The theories that underlie the study are the per-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


formative speech acts suggested by Austin ([1962] 1990) and Derrida ([1972]
1988) and the concept of race proposed by Queer Theory (SOMMERVILLE,
2000; SULLIVAN, 2003; BUTLER, [1999] 2003; BARNARD, 2004; BAY 2004,
WILCHINS, 2004). The research is ethnographic (HINE, 2000) and theoretical
and analytical constructs are textual trajectory (BLOMMAERT, 2006, 2010), en-
textualization (BAUMAN, BRIGGS, [1990] 2008) and indexical clues indicated
by Wortham (2001). The relevance of this work iso to contribute to a reflection
about race as a historical, social, discursive and performative construction.
KEYWORDS: We are all monkeys; textual trajectory; race; Queer theory; social
online media.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO lizações oriundas de discursos, tais


como da ciência da raça, democracia
Na contemporaneidade, o adven-
racial, miscigenação, negritude, entre
to da internet e consequente surgi-
outros.
mento das redes sociais viabilizaram
o acesso a diversos canais, que pos- Para ancorar este estudo, utiliza-
sibilitaram ao sujeito comum, novas mos a noção de linguagem como
ferramentas para expressar suas opi- performance Austin ([1962]1990) e
niões. Neste momento, denominado Derrida ([1972]1988), a concepção
por Bauman (2000) como Moderni- de raça proposta pelas Teorias Que-
dade Líquida, observamos que as no- er (SOMMERVILLE, 2000; SULLI-
ções de tempo e espaço ganham no- VAN, 2003; BUTLER, ([1999] 2003);
vos sentidos. Tempos como esses são BARNARD, 2004; WILCHINS, 2004),
propícios para a reflexividade da vida os construtos teórico-analíticos
social, entendida por Giddens (1991) de trajetória textual propostos por
como uma constante avaliação das Blommaert (2006, 2010) e os proces-
práticas sociais, que podem ser exa- sos de entextualização (BAUMAN;
minadas e reformadas à luz de novas BRIGGS, [1990]2008).
informações sobre elas. Como conse- De acordo com Melo e Moita Lo-
quência desses tempos de fluidez e pes (2013), discutir a questão racial
reflexividade, as redes sociais vêm se pelas Teorias Queer significa abordar
tornando um meio de interação so- desde a escravidão, a abolição, ciên-
bre muitos assuntos que, de acordo cia da raça à democracia racial (SO-
com Castells (2013), se constituem DRÉ, 1999; MUNANGA, 1986; TELLES,
em espaços de “agenciamento”, além 2003) e os efeitos semânticos desses
do controle do governo e empresas discursos nas práticas sociais, consi-
que, historicamente, monopolizaram derando que muitas vezes estas con-
os canais de comunicação na socie- testam discursos normalizadores so-
102 dade. bre raça, principalmente aqueles que
Nesse contexto, a temática racial, remetem à desqualificação e infe-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

defendida há anos pelo Movimen- riorização dos negros como sujeitos


to Negro, vem conquistando espa- sociais. Na compreensão desses au-
ço na esfera pública, onde debates tores, tais discursos têm sido propa-
sobre políticas raciais e de inclusão, gados ao longo dos anos pela mídia,
por exemplo, se tornaram frequentes. pelo governo e outras instituições,
Além disso, determinados aconteci- consequentemente, assimilados e re-
mentos também vêm chamando a produzidos pela sociedade brasileira,
atenção para a questão racial, dentre cujos efeitos semânticos são percep-
eles destaca-se a campanha “Somos tíveis nas práticas sociais.
Todos Macacos”, iniciada por um jo- A relevância deste trabalho está na
gador de futebol em resposta aos medida em que aborda as relações
atos de racismo praticados nos está- raciais e, consequentemente, o racis-
dios de futebol europeus. Esse fato, mo, temas de grande interesse social,
que gerou grande polêmica, trouxe que contribuem para a reflexão sobre
a público sedimentações e norma-
SELINFRAN
a raça como uma construção históri- tre “linguagem” e “mundo”, “porque
ca, social, discursiva e performativa. o que consideramos a “realidade” é
constituído exatamente pela lingua-
OBJETIVOS gem que adquirimos e empregamos.”
(AUSTIN (1990 [1962], p. 10)
Considerando o contexto da comu-
nicação online, mais precisamente, a Para Derrida ([1972]1988), esses
estreita relação entre a produção de atos performativos são naturalizados
conteúdos a partir do diálogo com as pela iterabilidade e pela citacionalida-
redes sociais, o histórico racial bra- de, que remetem à repetição desses
sileiro e a concepção de raça como atos de fala nas práticas sociais e sua
uma construção social, histórica, dis- sedimentação através dos Discursos
cursiva e performativa, este trabalho de diversas instituições como a mí-
visa analisar a trajetória textual do dia, a ciência, a religião, entre outros.
slogan “Somos Todos Macacos” no Segundo Pinto (2007), o enuncia-
meio online. Além disso, propõe-se a do iterável traz a propriedade que
investigar o processo de entextuali- caracteriza o rito como um momento
zação do slogan mobilizado durante repetido, repetível e submetido à al-
essa trajetória textual, em artigos vei- teridade. Para Derrida, a repetição é
culados na mídia online. um importante fator na constituição
da linguagem, e é ela quem abre es-
LINGUAGEM COMO PERFOR- paço para a criatividade e inovação
MANCE, TEORIAS QUEER E RAÇA tornando essa repetição, mais do que
Este estudo está ancorado na te- uma cópia. Dessa forma, a repetição,
oria dos atos de fala performativos condição de possibilidade dos enun-
proposta por Austin ([1962]1990) e ciados, tem como função estabelecer
Derrida ([1972]1988), mas também a relação com um repertório já sedi-
na concepção de raça proposta pe- mentado, repetido exaustivamente,
de maneira tal, que aparenta uma es- 103
las Teorias Queer (SOMMERVILLE,
sência anterior ao discurso. O autor

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


2000; SULLIVAN, 2003; BUTLER,
([1999] 2003); BARNARD, 2004; considera a repetição como fator vi-
LOURO, 2004, WILCHINS, 2004). tal no uso da linguagem.
Em Austin (1990 [1962]), reflexões Como uma das mais importantes
importantes sobre como fazemos expoentes da perspectiva Queer, te-
coisas com a linguagem levaram à mos a filósofa e autora de Problemas
concepção do uso performativo da de Genêro, Judith Butler, cuja obra
linguagem, da teoria dos atos de fala. questiona a heterossexualidade com-
Decorre daí a concepção de que a pulsória e problematiza as categorias
linguagem é uma prática social con- de sexo, gênero e identidade. Queer
creta, que não apenas descreve um é um termo da língua inglesa cuja tra-
estado de coisas, mas age sobre o dução significa estranho, ridículo, ex-
mundo social, ou seja, é performati- cêntrico, raro, extraordinário. Nos Es-
va. Assim, compreende-se que não tados Unidos, a expressão também é
há mais uma separação radical en- utilizada como uma forma pejorativa
SELINFRAN

para se referir a homossexuais. raça branca sobre as demais. Os au-


Na perspectiva das teorias Queer, a tores citam, como exemplo, os estu-
raça também é compreendida como dos da Ciência da Raça e também de
um traço performativo interseccio- Eugenia oriundos do discurso cientí-
nado por gênero, sexualidade, classe fico que alimentou, por muito tempo,
social, entre outros (SOMMERVILLE, a superioridade dos corpos brancos,
2000, SULLIVAN, 2003 E BARNARD, considerando as características físi-
2004), sendo compreendidas como cas e/ou psicológicas que lhes são
uma construção histórica, social, dis- atribuídas.
cursiva e performativa. Dessa forma,
CONSTRUTOS ANALÍTICOS
compreende-se que a trajetória dos
atos de fala performativos construída De acordo com Bauman e Briggs
em torno das classificações raciais, ([1990]2008), a performance ofere-
fez com que negros fossem inferio- ce um enquadre que convida a uma
rizados ao longo dos séculos, e ain- reflexão crítica sobre os processos
da hoje, que os efeitos de tais atos comunicativos. Nesse sentido, uma
de fala performativos naturalizados dada performance está ligada a vá-
e sedimentados causem sofrimentos rios eventos de fala que a procedem
a seus corpos, conforme assinalado e sucedem. Para proceder a análise
por Butler ([1999] 2003) em relação neste trabalho, são utilizados cons-
ao gênero, mas aplicável também à trutos teóricos de trajetória textual
raça. e entextualização (BAUMAN E BRI-
GGS, [1990]2008; BLOMMAERT,
Compreender a raça pelo viés das 2006). Este último compreende que
teorias Queer implica dizer que tanto textos são materializações de discur-
a concepção de raça quanto seus de- sos construídos sociohistoricamente,
rivados são construções que ocorrem que podem viajar de um contexto a
no âmbito da linguagem, velando ou outro e ainda ser replicado em novos
104 evidenciando relações hegemônicas contextos. Assim, quando um texto é
que operam no mundo social, daí a
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

extraído e transportado para um ou-


importância da desconstrução para a tro contexto, não se trata mais de um
desnaturalização de valores que de- texto original, sendo assim, o objeto
terminam lugares e são repetidos e deixa de ser o texto e torna-se a tra-
citados ganhando aparência de subs- jetória deste.
tância.
Segundo Bauman e Briggs (2008,
Conforme nos lembra Melo e Moi- p. 206), a entextualização consiste
ta Lopes (2013), os atos de fala per- no “processo de tornar o discurso
formativos sobre os sujeitos sociais passível de extração, de transformar
viajam pelas mídias de cada época e um trecho de produção linguística
marcam os corpos, sendo repetidos, em uma unidade – um texto – que
propagados e compartilhados. Ao pode ser extraído de seu cenário in-
considerar, em especial, a diversida- teracional.” Nessa perspectiva, um
de racial na sociedade ocidental, ve- texto é discurso tornado passível de
rificamos textos viajantes que há sé- descontextualização e, dessa forma,
culos perpetuam a superioridade da
SELINFRAN
a entextualização pode incorporar guns questionamentos ocorridos no
aspectos do contexto de maneira tal ambiente online, tais como: as experi-
que o texto resultante mantenha ele- ências vivenciadas na rede, como são
mentos de seu uso. Na compreensão as performances de identidade neste
de Blommaert (2006), textos e dis- espaço, entre outras, o que significa
cursos circulam pela rede, carregan- que não se propõe a buscar verdades
do novos sentidos, ou seja, viajam de universais e tão pouco, ideias genera-
um contexto a outro. lizadas, mas focamos em um contex-
A trajetória textual considera como to específico.
a entextualizações de textos percor- Contextualizando a pesquisa, no
rem o tempo e o espaço. A partir dos dia 27 de abril de 2014, o jogador
construtos propostos por Blommaert brasileiro, Daniel Alves, chamou a
(2006, 2010), é possível observar que atenção da imprensa ao descascar
esses textos e discursos circulam e e comer uma banana atirada em sua
viajam no ambiente online, carregan- direção por um torcedor europeu,
do suas características históricas e durante uma partida de futebol na
agregando novos sentidos. Espanha. A atitude do jogador gerou
Para a análise da trajetória tex- tanta repercussão que serviu como
tual, são utilizadas as categorias de “gancho” para o lançamento de uma
Wortham (2001) que, segundo Melo campanha iniciada no mesmo dia, a
e Moita Lopes (2014), sinalizam inter- partir do slogan “Somos Todos Ma-
pretações na construção de sentidos cacos”, lançado por Neymar, outro
emergentes. São pistas indexicais jogador que também se tornou alvo
como referência, que são elementos de racismo na Espanha.
ao qual o narrador se refere; citação, No período definido entre 27 de
ao fazer uso da fala do outro; índi- abril de 2014 a 4 de maio de 2014, fo-
ces avaliativos que são constituídas ram coletados textos publicados no
por expressões ou modos de falar; meio online sobre o slogan. A primei- 105
descritores metapragmáticos, que ra referência ao slogan foi publicada

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


são verbos de enunciação; modali- no Instagram, Facebook e Twitter em
zações epistêmicas e deônticas, que, 27 de abril, pelo jogador Neymar e
no primeiro caso, exprimem o grau trazia a foto do jogador segurando
de veracidade, ou seja, o julgamento uma banana (fruta), enquanto o filho
de valor e de verdade, já o segundo segurava uma pelúcia no formato de
diz respeito ao valor social, indicado banana, com a hashtag #somosto-
como permitido ou desejável. dosmacacos, traduzida em diversos
idiomas, conforme (ANEXO A). O
METODOLOGIA E CONTEXTO DE endereço eletrônico da postagem foi
PESQUISA disponibilizado também no Twitter e
Facebook. A segunda postagem do
A metodologia de pesquisa aqui
jogador (ANEXO B) trouxe além de
destacada é de cunho etnográfico
texto e hashtag, um vídeo que expli-
virtual e que, de acordo com Hine
cava a campanha, acompanhado do
(2000), nos permitiria responder al-
seguinte texto:
SELINFRAN

É uma vergonha que em 2014 campanha por Neymar, em solidarie-


exista o preconceito. Tá na hora dade ao jogador Daniel Alves, apon-
da gente dizer um chega pra isso! tado como vítima de racismo, duran-
A forma de me expressar para te a partida de futebol na Espanha.
ajudar que um dia isso acabe de
Manchetes como “Neymar defende
uma vez por todas, é fazer como
Daniel Alves após caso de racismo:
o @danid2ois fez hj !! Se vc pensa
assim também, tire uma foto co- “Somos todos macacos””; do Globo
mendo uma banana e vamos usar Esporte; “Neymar manifesta apoio a
o que eles tem contra a gente a Daniel Alves e inicia ‘campanha’ con-
nosso favor (NEYMAR, 2014). tra racismo: ‘Somos todos macacos’”,
do ESPN; “Neymar apoia Dani Alves,
Em um primeiro momento, para
come banana e lança campanha”, da
delimitar o objeto da pesquisa, fo-
Revista Fórum, por exemplo, sinali-
ram catalogadas as notícias e textos
zam para o foco dessas notícias.
sobre o slogan “Somos Todos Ma-
cacos”, no espaço temporal de uma Na segunda-feira, 28 de agosto de
semana após o ocorrido, 27 de abril 2014, as matérias davam ênfase ao
de 2014 a 4 de maio de 2014, com a apoio dessas celebridades à campa-
proposta de registrar, justamente, o nha. “Banana pra dar e vender: famo-
período em que as notícias estavam sos e fãs fazem #somostodosmaca-
“quentes” e as discussões mais re- cos bombar”, na Globo.com; “Hoje
centes. A pesquisa desse material foi em Dia entra na onda da campanha
feita pelo buscador do Google que #somostodosmacacos e ensina recei-
registrou 77 textos sobre o slogan no ta com banana”, no portal R7; “Lucia-
período pesquisado, desconsideran- no Huck pega carona no movimento
do notícias republicadas na íntegra. ‘Somos Todos Macacos’”, no portal
Os resultados encontrados foram ca- Exame; “Aguero se junta a Marta para
talogados por veículo, editoria, título apoiar Dani Alves”, na Fox Esportes,
106 da notícia, interface com as redes so- declarações de apoio constituem as
ciais, comentários, data de publica- manchetes do dia.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

ção, se notícia assinada, tipo de no- Na mesma data, 28 de abril de 2014,


tícia, etc. uma outra notícia chamou a atenção,
durante a pesquisa: “MP defende Da-
ANÁLISE PILOTO: A TRAJETÓRIA niel Alves e muda hashtag de campa-
TEXTUAL DO SLOGAN “SOMOS nha no Face: “vamos dar uma bana-
TODOS MACACOS” na para o racismo”, pede o órgão. A
hashtag mencionada é “Somos Todos
As primeiras notícias sobre o slo-
Humanos”, lançada na página do Mi-
gan “Somos Todos Macacos” foram
nistério Público Federal (ANEXO C).
publicadas no mesmo dia, 27 de
Em alusão ao slogan “Somos Todos
agosto de 2014, em que ele foi pos-
Macacos”, há a substituição do ter-
tado por Neymar nas redes sociais.
mo “macacos” por “humanos”. Aqui,
De acordo com a leitura desse ma-
o processo de entextualização do
terial, as reportagens dessa data fa-
slogan, aponta para a rejeição ao ter-
ziam referência ao lançamento da
mo macaco, referenciando à igualda-
SELINFRAN
de do “Somos todos” para humanos, cia, a polêmica e o racismo”, no oglo-
destacando, como ponto podemos bo.com; “Neymar não se acha negro”:
perceber o Discurso de igualdade e canalhice ou desinformação?, no Glo-
democracia racial. bo Esporte; “Para a Revista “Time”,
Ao acompanhar a trajetória, é pos- estratégia de Marketing de Neymar
sível perceber que as manchetes pu- com antirracismo foi brilhante”, na
blicadas em 29 de abril de 2014 são Revista Veja.com; Mulher Maçã fala
diversificadas, demonstrando como sobre racismo: “Eu não sou macaco e
o slogan é entextualizado em dife- como a fruta que eu quiser”, no por-
rentes atos performativos: apoio ao tal ClicRBS.
combate do racismo; reprodução de De 2 a 4 de maio de 2014, a reper-
racismo; no slogan do MPF, “Somos cussão da campanha continua: “So-
Todos Humanos”; em questionamen- mos todos macacos? Na verdade, so-
to à campanha. Dessa forma, temos mos todos hipócritas!”, no Diário da
como destaques: “Apresentador Manhã; “Daniel Alves rejeita campa-
come banana na “Redação SporTV” nha ‘somos macacos’: ‘Somos huma-
em apoio a jogador vítima de racis- nos e todos iguais’”, de Purepeople;
mo”, no portal Imprensa; “Para mo- “O negro e macaco - ‘não somos to-
vimento negro, campanha “#somos- dos macacos’”, em MomentoVerda-
todosmacacos” reproduz racismo”, deiro. “Os fortes que perdoam” diz
na Acrítica.uol; “Daniel Alves: somos Daniel Alves sobre ato racista de tor-
todos humanos”, na Globo.com, en- cedor na Globo.com.
tre outros.
O ARTIGO: “A AULA DE DANIEL
No dia 30 de abril de 2014, alguns
dos focos das notícias são os desdo-
ALVES E NEYMAR DE COMBATE
bramentos da campanha: “Congres- AO RACISMO, OU: TAMBÉM SOU
so brasileiro vai averiguar casos de MACACO!”
racismo no futebol”, no portal Terra. A análise considera o artigo veicu- 107
com; “Atirador de banana em Daniel lado na Veja.com: “A aula de Daniel

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


Alves é detido, interrogado e solto Alves e Neymar de combate ao racis-
sob fiança”, na Globo.com. Mas te- mo. Ou: Também sou macaco!” publi-
mos também, manchetes como “So- cado na coluna do Reinaldo Azevedo,
mos Todos Macacos?”, no portal Bra- em 28 de abril de 2014, conforme en-
sil247.com; “Daniel Alves: é hipocrisia dereço: http://veja.abril.com.br/blog/
negar racismo e criticar campanha”, reinaldo/geral/a-aula-de-daniel-al-
na BBC.com; “Lázaro Ramos sobre ves-e-neymar-decombate-ao-racis-
campanha contra racismo: “Somos mo/. O autor do artigo é jornalista da
Todos Humanos””, no diário 24 horas. área de política, cuja orientação é de-
Essas últimas tratam do conteúdo da claradamente conservadora.
campanha de forma mais crítica e re- A Veja.com representa a Revista
flexiva. Veja no universo digital, a publicação
No feriado de 1 de maio, os textos pertence ao Grupo Abril, editora líder
publicados trazem como manchete: na publicação de revistas no Brasil. A
“Somos todos primatas: sobre a ciên- Veja, segundo os dados da editora,
SELINFRAN

é a maior revista de informação do Está de parabéns o jogador bra-


Brasil e a segunda maior revista des- sileiro Daniel Alves, do Barcelona.
sa categoria no mundo. Assim como, E não apenas porque é um atleta
a maioria dos veículos impressos, a muito competente. Aos 30 minu-
tos do segundo tempo, quando
Veja tem presença online, e enquanto
o time enfrentava o Villarreal, um
a revista é publicada semanalmente,
torcedor jogou ontem uma bana-
o site é atualizado instantaneamente. na no campo, em direção a Dani,
A trajetória textual do slogan “So- que é negro — de fato, ele é mes-
mos Todos Macacos”, no artigo de tiço ou o que o IBGE define como
Reinaldo Azevedo, “A aula inaugural pardo (AZEVEDO, 2014).
de Daniel Alves e Neymar de comba- O jornalista usa a predicação (ne-
te ao racismo. Ou: também sou ma- gro) para, num primeiro momento,
caco!” aponta para o slogan, como indicar a raça do jogador e faz uso
combate ao racismo. Invocando da modalização epistêmica “de fato”
Discursos da Igualdade e Democra- para certificar a classificação racial
cia Racial, ao ratificar a postura de do jogador através da predicação
Neymar na defesa da campanha. Essa (mestiço), (parda), conforme indi-
posição pode ser verificada logo no cação da referência (IBGE). As duas
título do artigo: categorias indicam como, no Brasil, a
A aula de Daniel Alves e Neymar classificação de raça não é unânime,
de combate ao racismo. Ou: tam- sendo uma categoria fluida.
bém sou macaco! (AZEVEDO, Reinaldo Azevedo sintetiza três
2014).
opções de agência para o jogador
O jornalista entextualiza a concor- diante do fato: na primeira, o silen-
dância com o Discurso do jogador, ciamento está indexicalizado na pre-
ao utilizar a predicação (também dicação (ignorar o ato); o segundo,
sou macaco!), ele alude ao slogan de acordo com o jornalista, agradaria
108
em primeira pessoa, para marcar sua ao agressor, a opção está sinalizado
posição em relação a esse Discurso. na predicação (mostrar-se ofendido,
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

As referências (aula, Daniel Alves, indignado e ferido); a última é tida


Neymar, combate, racismo) sinalizam como a ideal, sintetizada na predi-
para atitude positiva dos jogadores, cação (reagir com bom humor su-
que são consideradas como uma “li- perior), considerando a predicação
ção” sinalizada pela referência (aula). (submetendo o agressor ao ridículo)
Por meio da predicação (para- confirmamos a aprovação da atitude
béns), o jornalista exalta a atitude de do jogador por parte do jornalista.
Daniel Alves, endossando o jogador, Nesse trecho, o jornalista elenca
tanto em suas qualidades como atle- apenas três possibilidades de reação
ta, quanto pela atitude tomada dian- do jogador, como se não existisse,
te da banana arremessada em sua di- por exemplo, a opção de denunciar
reção. Pela predicação (competente) o ato, paralisar o jogo, o que já ocor-
podemos verificar a qualificação atri- reu em outras situações. Essa opção,
buída a Daniel. que é acatada pela Federação Inter-
SELINFRAN
nacional de Futebol (FIFA), em ca- da gente dizer um chega pra isso!
sos de racismo durante o jogo, mas A forma de me expressar para
não foi considerada no texto. Dessa ajudar que um dia isso acabe de
forma, são entextualizados discursos uma vez por todas é fazer como
o @danid2ois fez hj !! Se vc pensa
de passividade diante de situações
assim também, tire uma foto co-
como essa, ao exaltar a atitude do
mendo uma banana e vamos usar
jogador. A predicação “bom humor” o que eles tem contra a gente a
sinaliza isso, o que para o autor do nosso favor. #somostodosmaca-
artigo é uma atitude que submete o cos #weareallmonkeys #somos-
agressor ao ridículo. Ele utiliza a pre- todosmonos #totssommonos”
dicação “melhor” para qualificar a (AZEVEDO, 2014).
atitude do jogador durante a partida.
A respeito da citação, o jornalis-
Daniel tinha três atitudes e to- ta qualifica os atletas pela predica-
mou a melhor: ignorar o ato; ção (bons jogadores), esclarecendo
mostrar-se ofendido, indignado, que estes não se apresentam como
ferido, o que certamente deixaria intelectuais, que é sinalizado pela
satisfeito o imbecil que jogou a
predicação (pensadores profundos),
banana; reagir com o bom humor
superior, submetendo o agressor
mas Reinaldo faz um comparativo
ao ridículo. E foi o que ele fez. do pensamento dos jogadores com
Abaixou-se, pegou a banana e… intelectuais, que são desqualificados
comeu. No Twitter, ainda brincou, pela predicação (alguns intelectu-
assim: (AZEVEDO, 2014). ais de miolo mole), avaliando, dessa
forma, os jogadores pelo predicativo
Ao comentar a atitude de Neymar,
(mais sábios) que aqueles classifica-
sobre a postagem do slogan, Reinal-
dos pelo predicativo (intelectuais). As
do Azevedo avaliou positivamente a
referências (rapazes), (bola), (miolo)
iniciativa do jogador ao lançar a cam-
e os predicativos (sábios), (intelec-
panha, por meio da predicação (fez a
tuais), (profundos), (pensadores), 109
coisa certa). Em seguida, o jornalista
(bons), (mais), (mole) apontam para
faz novamente uso de citação, refe-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


essa observação.
renciando a postagem do jogador no
Instagram com a reprodução do tex- Esses rapazes, que não se que-
to publicado por ele. rem pensadores profundos — são
mesmo é bons de bola, graças a
Por falar em Neymar, ele também Deus —, são mais sábios do que
fez a coisa certa. Publicou uma alguns intelectuais do miolo mole.
foto no Instagram, comendo uma É claro que acho que manifesta-
banana, ao lado do filho. Aque- ções racistas, quando flagradas,
la que vocês veem lá no alto. O têm de ser punidas. Mas a histeria
garotinho segura uma banana politicamente correta só alimen-
de pelúcia. Fez circular ainda a ta os idiotas. O racismo tem, sim,
seguinte mensagem: “SOMOS de ser combatido. Mas, acima de
TODOS IGUAIS, SOMOS TODOS tudo, tem de ser submetido ao ri-
MACACOS. RACISMO NÃO!!!!! dículo (AZEVEDO, 2014).
É uma vergonha que, em 2014,
exista o preconceito. Tá na hora Reinaldo, ao final do artigo, se posi-
SELINFRAN

ciona favorávelmente à punição que, macaco”.


em sua opinião, deve ser dada às si-
tuações flagradas de racismo. A mo-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
dalização (é claro) postula essa po-
sição acompanhada das referências
A história dos negros no Brasil é
(manifestações), das predicações
marcada por Discursos que em mui-
(racista), (punidas) e categoria de-
tas circunstâncias contribuíram para
ôntica (devem ser). Em seu raciocí-
o estabelecimento do branco como
nio, o jornalista explica que (a histeria
padrão para a sociedade. O branco
politicamente correta só alimenta os
foi tratado, nos diversos meios dis-
idiotas). A predicação “politicamente
cursivos, como um representante
correta” faz alusão aos procedimen-
natural da espécie. Dessa forma, as
tos e atitudes mais radicais contra o
características do branco se firma-
racismo que, nesse caso, para o jor-
ram como norma de humanidade im-
nalista, serve apenas aos (idiotas).
posta à sociedade. A naturalização e
Nesse caso, o bom humor e a al- universalização da condição do bran-
tivez são muito mais eficientes. co se relacionam ao público a que
Enquanto esse tipo de compor- as mensagens, normalmente, se diri-
tamento gerar reações histéri-
giam. Em diversos meios midiáticos
cas, mais os cretinos se sentirão
o público foi discursivamente consti-
estimulados. Entro na campanha
de Neymar. Também sou macaco tuído como supostamente branco ou
(AZEVEDO, 2014). submetido aos discursos, relaciona-
dos à naturalização das relações as-
Na conclusão do autor, o racismo sim constituídas.
deve ser combatido, mas, acima dis-
so, ridicularizado. Aqui, o autor refe- Dessa forma, muitos discursos fo-
rencia a atitude dos jogadores, em ram construídos com base na cons-
110 suas predicações (mais eficientes) tituição das relações raciais entre
contra o racismo, indicado pelas pre- brancos, negros e indígenas. Histori-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

dicações (bom humor) e (altivez). camente submetida à escravidão, a


Destacando pela referência (compor- população negra foi subjugada e in-
tamentos), (reações) junto da predi- feriorizada pelas diversas instituições
cação (racistas), (histéricas) o apon- que compõem a nossa sociedade.
tamento do jornalista é que atitudes Desde o discurso religioso, acadêmi-
mais essencialistas e radicais estimu- co, científico, político, cultural, social,
la e agrada aos racistas. Nesse ponto, entre outros contribuíram para a hie-
é possível verificar o silenciamento rarquização da sociedade em clas-
sobre as desigualdades raciais que ses, nas quais os negros estão quase
observamos na sociedade brasileira. sempre nas camadas inferiores, o que
Para finalizar o artigo, o apoio do jor- reforça binarismos e naturalizações.
nalista é declarado ao slogan Somos
Todos Macacos. Para isso, o jornalis- O lançamento da campanha So-
ta entextualiza o slogan em primeira mos Todos Macacos, por parte do
pessoa, na expressão “Também sou jogador Neymar, nas redes sociais,
SELINFRAN
chamou a atenção para a temática o artigo, aponta para a atitude do
racial e a forma como lidamos com jogador como combate ao racismo,
as construções raciais na sociedade. acionando Discursos de igualdade e
Especificamente no texto analisado, democracia Racial com “bom humor
é possível perceber ecos do silencia- e altivez”. Dessa forma, o jornalista
mento proposto por discursos tradi- declarou apoio à campanha, até mes-
cionais, da passividade, do deixar de mo cumprindo a solicitação na pos-
lado, levar com “bom humor”, impe- tagem de Neymar, publicando uma
rando o discurso da igualdade e da foto com banana.
democracia racial. Embora haja o re-
conhecimento de que casos de racis- Podemos verificar, pela pesquisa,
mo devem ser punidos, não é essa a como os Discursos de democracia
mensagem do jornalista, mas o seu racial e igualdade ainda estão muito
apoio e engajamento à campanha presentes nas construções de raça
que considera mais efetiva que “re- no contexto brasileiro. Nesse sentido,
ações histéricas”, talvez as que pro- é preciso queerizar essas expressões
põem paralisações de jogo, punições que, de forma ingênua ou explicita,
duras e discussões feitas por figuras contribuem para sedimentar cons-
indexadas como “intelectuais de mio- truções que mascaram o racismo e
lo mole”. as diferenças raciais, muitas vezes,
diluídas no discurso, mas continuam
O slogan Somos Todos Macacos presentes nas práticas sociais, discri-
foi entextualizado no artigo do jorna- minando e inferiorizando sujeitos e
lista Reinaldo Azevedo, quando afir- constituindo atos de fala performati-
mou: “Também sou macaco”. A posi- vos que contribuem para a normali-
ção do jornalista defendida, durante zação de tais práticas.

111
REFERÊNCIAS

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


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Anexo A

112
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Fonte: Instagram
Anexo B
Anexo B

Fonte: Facebook
Fonte: Instagram

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


113

SELINFRAN
SELINFRAN

O LUGAR DA ARTE: UMA ANÁLISE RETÓRICA DO DISCURSO VERBO-


VISUAL DO ARTISTA PLÁSTICO NELSON LEIRNER

Fabíola Gonçalves GIRALDI


Fernando Aparecido FERREIRA

RESUMO
Quando vida e obra não mais se separam, a arte passa a não mais “nascer” das mãos,
mas, principalmente, da mente do artista, que se sente à vontade para inclusive
se apropriar de qualquer objeto mundano. Objetos do cotidiano inserem-se no
circuito da Arte e os conceitos dessas apropriações passam a ser argumentos.
Nesse contexto, o artista paulistano Nelson Leirner vem problematizando a lógica
e a racionalidade que ordenam os modos de produção, de institucionalização e de
inserção social da prática artística. Selecionada a série Sotheby´s como corpus,
buscamos desvelar as estratégias argumentativas como recursos empregados pelo
orador (o artista) para angariar a atenção e a adesão de seu auditório à sua visão
crítica e engajada sobre o conceito e o lugar da arte e o contexto sócio-econômico
em que ela se insere. A presente pesquisa fundamentar-se-á nas exposições
de Barthes (1990) acerca da retórica da imagem, nos pressupostos teóricos da
Argumentação e Retórica, expostos por Aristóteles, Reboul (2004), Meyer (2007),
Ferreira (2010) e Fiorin (2014) e em noções advindas da Linguística Textual com
contribuições de Koch e Cavalcante (2008).
PALAVRAS-CHAVE: Arte; argumentação; intertextualidade; retórica; texto
sincrético.

114 ABSTRACT
When life and work no longer separate, the art is no longer “born” from hands, but
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

mainly from the mind of the artist, who feels comfortable to even take ownership
of any mundane object. Everyday objects fit into the art circuit and the concepts of
this appropriation become arguments. In this context, the São Paulo artist Leirner
is questioning the logic and rationality ordering modes of production, institutio-
nalization and social inclusion of artistic practice. Selected the Sotheby’s series as
corpus, we seek to uncover the argumentative strategies as resources used by the
speaker (the artist) to raise attention and adherence of his audience to his critical
and committed vision of the concept and the place of art and socio-economic
context in which it is inserted. This research will be supported by Barthes (1990)
exhibitions about the image rhetoric, the theoretical assumptions of Argumenta-
tion and Rhetoric, exposed by Aristotle, Reboul (2004), Meyer (2007), Ferreira
(2010) and Fiorin (2014) and notions from Textual Linguistics with contributions
from Koch and Cavalcante (2008).
KEYWORDS: Art; argumentation; intertextuality; rethoric; sincretical text.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO nas de alegorias sobre paradoxos da
arte e do mundo contemporâneo, do
Brasil, anos 1970, crise da teoria
banal e do genial.
modernista no campo da Arte. Re-
definição da função artística e muta- Leirner, utilizando-se desse seu ar-
ção histórica do estatuto do artista. senal de objetos e ideias, transforma
Opera-se o deslocamento do fazer o jogo de apropriações e assembla-
artístico da produção de objetos, gens1 da arte em armadilhas visuais,
subsumindo especialização e noção questionando os paradoxos do mun-
de originalidade e unicidade da obra, do da arte, indagando seus lugares e
para a constituição de uma rede de suas condições de ser arte.
significações, com a exploração sis- Por que arte, artistas, curadores,
temática da combinação de diferen- mercadores e críticos fazem parte
tes meios, artísticos ou não, e a con- de indagações constantes em seus
taminação entre as artes. trabalhos, tanto visuais e sincréticos
Objetos do cotidiano inserem- quanto em suas considerações re-
-se no circuito artístico e os concei- gistradas em textos verbais. Nelson
tos dessas invenções manifestados Leirner, desde o início da sua traje-
também através do verbo tornam-se tória, ainda nos anos 1960, ocupa-se
parte constituinte do objeto artístico, em apontar as contradições e a mis-
seja para comentá-lo, interpretá-lo, tificação que sempre rondou o meio
defini-lo, contestá-lo ou valorizá-lo. artístico como, por exemplo, as cons-
tantes visitas de um grande público a
Deixa de existir, de um lado, a obra
um museu mais por causa do prédio
e, de outro, os discursos sobre ela. Os
considerado arquitetonicamente um
diferentes domínios materiais, técni-
motivo de apreciação do que pela
cos e simbólicos e suas interpenetra-
arte contemporânea propriamente
ções são também artes do dizível, o
dita ali exposta (exemplo disso foi
que contribui para a abertura desse 115
sua exposição “Por que museu”, no
complexo pensamento visual que ex-
Museu de Arte Contemporânea de

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


prime a exterioridade e a intimidade
Niterói, entre 15 de outubro de 2005
do artista. O trabalho de arte pensa e
a 26 de março de 2006).
faz pensar.
Para Leirner, cujos trabalhos são
Nesse contexto, situa-se Nelson
frequentemente estruturados em sé-
Leirner, artista paulistano, que, como
ries e instalações, apropriando-se de
descreve Vergara (2005), “é um cole-
objetos comuns, artesanatos, triviali-
cionador excêntrico de coisas peque-
dades industrializadas ou arte trans-
nas que variam desde imagens da
formada em mercadoria de consumo,
cultura popular, santos e divindades
a discussão sobre a figura do artista e
de todas as crenças até brinquedos
a natureza da obra, indagando sobre
e estampas infantis”, que faz, desse
autenticidade e originalidade, é par-
imenso banquete do imaginário po-
1 Assemblage ou assemblagem é um termo francês que foi trazido à
pular, irônicas metáforas visuais, ple- arte por Jean Dubuffet em 1953. É usado para definir colagens com
objetos e materiais tridimensionais.
SELINFRAN

te de sua trajetória artística. Leirner tualidade das obras com depoimen-


produz sua obra refletindo, com hu- tos, bem como com outros trabalhos
mor e ironia, sobre a sobredetermi- do artista e com outras obras de arte,
nação da figura do artista e da natu- será considerada.
reza da obra pela história, pelo modo Os fundamentos teóricos esco-
como estão enredados num vaivém lhidos para a análise aqui proposta
de definições. Assim, vem problema- incluem os estudos de Roland Bar-
tizando a lógica e a racionalidade que thes (1990) expostos em “Retórica
ordenam os modos de produção, de da imagem”, que trata da eloquên-
institucionalização e de inserção so- cia do imagético (suas denotações
cial da prática artística. e conotações) e das funções que o
Entre tantos de seus trabalhos, verbal exerce para “frear” essa polis-
para essa discussão, foram escolhi- semia; os pressupostos teóricos da
das suas assemblagens da série So- Argumentação e Retórica, expos-
theby´s, realizada entre 2003 e 2012. tos por Aristóteles, Reboul (2004),
Essa série consiste em interferências Meyer (2007), Ferreira (2010) e Fiorin
do artista sobre capas dos catálo- (2014); e a intertextualidade advinda
gos da Sotheby´s, uma instituição da Linguística Textual com contribui-
londrina que lida, através de vendas ções de Koch e Cavalcante (2008).
por leilão, não apenas com imóveis,
RETÓRICA DA IMAGEM
mas também com o lucrativo merca-
do global da arte. A série de Leirner Dos trabalhos da Série Sotheby´s,
resulta em jogos lúdicos e instigan- escolhemos inicialmente a assem-
tes a partir de sobreposições visuais blagem do catálogo de setembro
irônicas que se associam ao nome da de 2004 (fig. 4), mas, outras quatro
instituição, às imagens e aos títulos (figuras 1, 2 e 3), que também serão
dos catálogos. analisadas, aqui são colocadas para
que se tenha uma ideia mais ampla
116 Considerando então a obra de Lei-
do corpus desta pesquisa:
ner um texto sincrético e um discur-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

so persuasivo, buscamos desvelar


quais estratégias argumentativas são
empregadas pelo orador (o artista)
para angariar a atenção e a adesão
de seu auditório à sua visão crítica e
engajada sobre o conceito e o lugar
da arte no contexto sócio-econômi-
co em que ela se insere. A intenção
é compreender como Leirner organi-
za e apresenta visualmente os seus
argumentos em suas obras, relacio- Fig. 1 - Nelson Leirner, Sotheby´s, (2003/2012)
nando-os posteriormente com seus Fonte: <http://3.bp.blogspot.com/-EyCvDbjxry8/
UesOWFIkMlI/AAAAAAAAA2M/FvZPMeWypQI/
discursos verbalizados em textos e s400/Sotheby+-+Leirner.jpg>. Acesso 25 jun.2015
entrevistas. Nesse sentido, a intertex-
SELINFRAN
Nesse momento, então, será anali-
sada a imagem a seguir:

Fig. 2 – Nelson Leirner, Sotheby´s, (2003/2012)


Fonte:<http://www.bestnetleiloes.com/media/lot-
s/3235/2868_a.jpg>. Acesso 25 jun.2015 Fig. 4 - Sotheby’s série, 2005, Assemblagem em
moldura de acrílico, 28,3 x 22,2 x 10,3 cm, Nelson
Leirner
Fonte:<http://sculpture-and-performance-at-gu-
denau-castle.de/images/blog/full/Sothebys_6.
jpg>. Acesso 10 jul.2015

Nesse trabalho da série Sotheby´s


do artista paulistano Nelson Leirner
(1932) de 2005, temos a imagem de
um dos catálogos da Sotheby´s, uma
instituição londrina que lida, através
de vendas por leilão, não apenas com 117
imóveis, mas também com o lucrati-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


vo mercado global da arte, sobrepos-
ta por uma figura que representa um
indígena e acrescida da assinatura do
Fig. 3 – Nelson Leirner, Sotheby´s, (2003/2012) artista seguida de 1999+6. Toda a sé-
Fonte:<http://www.nelsonleirner.com.br/portu/
comercio5.asp?flg_Lingua=1&flg_Tipo=SY>. Aces-
rie consiste em sobreposições visuais
so em: 20 maio 2015 irônicas que se associam ao nome da
Primeiramente as obras serão ana- instituição, às imagens e aos títulos
lisadas considerando a perspectiva dos catálogos resultando em jogos
teórica de Roland Barthes, para de- lúdicos e instigantes.
pois serem identificadas figuras de Refletindo sobre as questões le-
retóricas e traços de intertextualida- vantadas por Barthes, (1990, p. 32),
de, objetivando desvelar algumas es- “toda imagem é polissêmica e pres-
tratégias argumentativas. supõe, subjacente a seus significan-
SELINFRAN

tes, uma ‘cadeia flutuante’ de signi- repressivo em relação à liberda-


ficados, podendo o leitor escolher de dos significados da imagem;
alguns e ignorar outros.” compreende-se que seja ao ní-
vel do texto que se dê o inves-
Essa escolha feita pelo leitor de- timento da moral e da ideologia
pende de como cada sociedade de- de uma sociedade. (BARTHES,
senvolve as técnicas destinadas a 1990, p. 33)
“fixar” essa polissemia, essa cadeia
Essa última função é mais comum
flutuante de significados, para que
em fotografia jornalística e em pu-
não haja o risco dos signos incer-
blicidade, mas não apenas (como no
tos, das interpretações errôneas. A
exemplo analisado neste trabalho). O
mensagem linguística é uma dessas
revezamento é encontrado, sobretu-
técnicas; “trata-se de uma descrição
do, em charges e histórias em quadri-
denotada da imagem, [...] correspon-
nhos, em que a palavra e a imagem
de a uma fixação de todos os senti-
têm uma relação de complementari-
dos possíveis (denotados) do objeto”
dade.
(BARTHES, 1990, p. 32), permitindo
que o leitor possa adaptar e orientar No caso deste trabalho, nessa ima-
seu olhar e seu intelecto à imagem gem temos uma mensagem linguísti-
a ser interpretada a partir do que se ca cuja função é a de ancoragem pois
queira significar. contribuem para a fixação do sentido
idealizado pelo criador, nesse caso,
Segundo Barthes (1990), essa
pelo artista. As palavras impressas
mensagem linguística pode ter duas
acomodam o intelecto, direcionam
funções: de ancoragem (fixação) ou
a certas leituras, que é variável se-
de revezamento. A primeira, e mais
gundo os indivíduos, dependendo de
frequente, consiste em utilizar-se da
seus diferentes saberes.
nomenclatura para a fixação de to-
dos os sentidos possíveis, e orienta a Assim, temos as seguintes men-
118 leitura da imagem através de legen- sagens linguísticas: Sotheby´s, Est.
das, títulos e outras palavras que a 1744, Fine Chinese Ceramics & Works
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

acompanham; dessa maneira, “o tex- of Art, New York September 22&23,


to conduz o leitor por entre os signi- 2004, “Assinatura de Leirner e data
ficados da imagem, fazendo com que (1999+6)”.
se desvie de alguns e assimile outros, Diante desse contexto, podemos
[...] ele o teleguia em direção a um encontrar alguns signos, algumas
sentido escolhido a priori” (1990, p. representações, pois, como Barthes
33). Ademais, para o autor, nos leva a ver (1990), conotações
O texto é realmente a possibi- impregnam as imagens. No caso da
lidade do criador (e, logo, a so- obra em análise, a capa do catálo-
ciedade) de exercer um controle go da Sotheby’s conota valor das
sobre a imagem: a fixação é um relíquias (cerâmicas chinesas) como
controle, detém uma responsabi- objetos de notável valor econômico,
lidade sobre o uso da mensagem, instituições e sistema da arte, valor
frente ao poder de projeção das
do objeto artístico, apropriações, in-
ilustrações; o texto tem um valor
SELINFRAN
fluência e intervenção da cultura nor- Ao sobrepor ao catálogo a ima-
te-americana, consumismo. gem de um indígena americano re-
As mensagens conotadas que tirada de um objeto da cultura po-
essa imagem carrega podem variar pular, um bibelô, o artista intenciona
de acordo com os indivíduos que lhe ressignificar o catálogo da Sotheby’s.
têm acesso. Diante dos signos iden- Ao apropriar objetos da cultura de
tificados podemos perceber que o massa transportando-o para o uni-
objeto que apresenta o catálogo é verso da arte, além de questionar os
uma imagem facilmente reconhecida símbolos da cultura, estabelece um
como arte. Conhecedores da cultura diálogo entre o que é arte e qual seu
chinesa logo percebem sua impor- valor. O consumo de arte pode en-
tância histórica reconhecendo assim tão ser comparado, ironicamente, ao
seu valor. Sua supervalorização vai consumo dos objetos populares nor-
além do preço, cabe nesse caso tam- te-americanos.
bém seu reconhecimento. Além disso, Questões estéticas relacionadas a
tem seu valor por ser uma obra única, outros contextos históricos da arte
feita num período antigo e provavel- são postos em cena, retomados. A
mente pertencente a um prestigiado Arte Pop é um exemplo, com obje-
acervo pessoal, o que nos traz à me- tos populares, de consumo cotidiano,
mória o possuir bens de valor para saem de seus lugares de origem e to-
indicar status e poder2. Um atrativo mam espaços de galerias e museus. O
para qualquer comprador e apre- próprio catálogo é um objeto “para”
ciador de arte, afinal, segundo Cau- consumo, uma vez que ali estão os
quelin (2005, p. 68), “se a galeria em produtos ofertados. Os ready-mades,
questão faz parte da rede, o produto de Marcel Duchamp são lembrados
que ela vai lançar só pode ser bom. quando o produto artístico é execu-
Não é preciso ir até lá olhar de perto”. tado sobre um objeto pronto4.
Não à toa o fato de Leirner utilizar es- 119
ses catálogos, os de uma casa tão re- A leitura, portanto não se esgo-
ta. Deixa rastros de interpretações e

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


nomeada, refletindo inclusivamente
sobre a desmitificação da obra única. indícios de ideologias e fixações de
sentidos. Mas, como vimos no início,
E intensifica sua ironia quando diz cada leitor/expectador escolhe al-
que, guns e não outros significados.
A série Sotheby’s é a mais procu-
Diante de símbolos construídos e
rada. É o best seller. Adorei quan-
do a própria Sotheby’s vendeu reconstruídos pelos homens, imersos
um catálogo Sotheby’s. Tenho o nessa liberdade de escolher seus sig-
catálogo em que esse trabalho nificados, o verbo conquista sua legi-
estava sendo vendido. Essas são Acesso em 20 mar.2015)
as coisas que realmente me di- 4 Duchamp (1887–1968) é um dos artistas mais comentados, estu-
vertem e gratificam.3 dados e referenciados do mundo da arte devido à, segundo Gom-
pertz (2013, p. 21), “sua nova forma de fazer arte”, a que chamou de
2 Fato recorrente há muitos séculos desde quando galerias e gabinetes ready-made: uma escultura já pronta. Objetos são retirados de seus
de palácios eram usados para guardar acervos valiosos pertencentes lugares corriqueiros, de uso cotidiano e levados ao status de objetos
aos monarcas e outras pessoas de poder. de arte. Tais escolhas libertam a arte do fazer manual (artesanal) e
3 Leirner em entrevista.( Disponível em: < http://www.select.art.br/ conectam-na a uma ideia, a um saber mental que o artista detém sobre
article/reportagens_e_artigos/quero-ser-nelson-leirner?page=unic>. sua criação.
SELINFRAN

bilidade e possibilita que os próprios nha começo e fim e apresente certa


homens identifiquem-se, reconhe- unidade de sentido”, podemos con-
çam-se, afastem-se ou aproximem- siderar que a manifestação discursi-
-se. A palavra, desse modo, confirma va, conforme expõe Fiorin (2014, p.
as escolhas e opiniões do homem 12-14), constrói nossa maneira de ver
diante de suas percepções do mun- a realidade e dela podemos extrair
do. Pensar em como e para quem as a originalidade, a individualidade e
palavras são ditas, além de buscar a subjetividade do sujeito que a faz
entender como esse dizer pode ser pretendendo persuadir (convencer
eficaz e compreendido, é o objeto de ou comover).
estudo da retórica. Ao fazer uma análise pelo viés da
retórica, é importante notar que “o
ESTRATÉGIAS RETÓRICAS objeto dessa teoria é o resultado das
Mesmo sendo a arte considerada técnicas discursivas que permitem
uma obra aberta, os textos e discur- provocar ou aumentar a adesão dos
sos verbais a acompanham e, segun- espíritos às teses que lhes apresen-
do Umberto Eco (apud CITELLI, 1995, tam ao assentimento.” (PERELMAM;
p. 68): OLBRECHTS-TYTECA, 1996, p. 4).
Não tende a nos definir a realida- Sempre que há uma questão po-
de de modo unívoco, definitivo, lêmica no âmbito da linguagem, ou
já confeccionado, pois precisa- seja, uma questão que foge de cer-
mos fazer um esforço para com- tezas ou evidências lógicas, pode-se
preendê-las, para torná-las fami- explorar discursivamente o campo
liares, precisamos intervir com
do verossímil, das possibilidades, dos
atos de escolha, construir-nos a
realidade sob o impulso da men-
conhecimentos prováveis e é, então,
sagem estética, sem que esta que aquele que melhor se expressa
nos obrigue a vê-la de um modo sobre tal assunto se sobressai, o que
120 nos leva a dizer que ele domina me-
predeterminado, essa se apoia
em fragmentos verbais que nos lhor a linguagem. De acordo com Luiz
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

possibilitam perceber indícios de Antônio Ferreira, “nesse espaço do


um discurso que nos leva não a dizer, em que a habilidade no manejo
pensar de forma única mas nos do discurso se impõe potentemente
direciona a desejar, compreen- para que o orador consiga mover seu
der, temer, querer e não querer, auditório a favor de suas causas, ha-
concordar ou discordar.
bita a retórica.” (FERREIRA, 2010, p.
Todo discurso é, por excelência, 14-15).
uma construção retórica, uma vez
A definição da retórica é conheci-
que procura conduzir o auditório
da: é a arte de bem falar, de mostrar
numa direção determinada e proje-
eloquência diante de um público para
tar um ponto de vista. Sendo discur-
ganhar a sua causa. Isso vai da persu-
so, nas palavras de Reboul (2004, p.
asão à vontade de agradar (MEYER,
XIV), “toda produção verbal, escrita
1993, p. 17).
ou oral, constituída por uma frase ou
por uma sequência de frases, que te- Para os antigos, a retórica englo-
SELINFRAN
bava tanto a arte de bem falar como diante de uma questão ou tese a ser
o estudo do discurso ou as técnicas colocada em reflexão, que pode ser
de persuasão e até mesmo de mani- por meio de um texto verbal, visual
pulação (modos de exprimir, estilo, e ou sincrético, há um orador tratando
a justeza das teses defendidas, a jus- com um auditório, alguém que se re-
tiça). vela e se expõe a outra pessoa esta-
Ainda de acordo com a tradição, belecendo uma relação que pode ser
a retórica foi definida como a arte não necessariamente de persuasão,
de bem falar e, segundo Aristóteles, mas de algo que convence, agrada,
“a capacidade de descobrir o que é estabelece a distância, comunica.
adequado a cada caso com o fim de Segundo Michel Meyer (1993, p.
persuadir” (2005, p. 96), mas, a par- 27):
tir de sete objetivos básicos sugeri- Veicular o implícito não é neces-
dos por Meyer (1998, p. 31), pode ser sariamente sugerir uma conclu-
assim redefinida: são para convencer quem quer
1. persuadir e convencer, criar o que seja, mas pode simplesmente
assentimento; querer significar qualquer coisa a
alguém, informá-lo do que pen-
2. agradar, seduzir ou manipular, samos sobre uma questão que é
justificar (por vezes a qualquer colocada expressamente ou não.
preço) as nossas ideias de forma
a fazê-las passar por verdadeiras, A contemporaneidade nos alimen-
quer o sejam, quer acreditemos ta com questões e seus problemas. Os
que o sejam; homens definem seus valores aproxi-
3. fazer passar o verossímil, a mando-se de uns e afastando-se dos
opinião e o provável com boas outros a partir do quanto esses deba-
razões e argumentos, sugerindo tes diante dos diversos argumentos e
inferências ou tirando-as por ou- teses que lhes são apresentados in-
trem; terferem em suas colocações. 121
4. sugerir o implícito através do Como menciona Meyer (1993, p.

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


explícito; 29):
5. instituir um sentido figurado, Segundo Aristóteles, não nos in-
através de figuras de estilo e ‘his- terrogamos sobre o problemá-
tórias’, inferidas ou decifráveis do tico: discutimos teses opostas
sentido literal; sobre as quais uma maioria de
pessoas ou de sábios com auto-
6. utilizar uma linguagem figura-
ridades estão em desacordo, e a
da e estilizada, o literário;
propósito das quais eles formam
7. descobrir as intenções daque- portanto um novo acordo. Estas
le que fala ou escreve, conseguir teses só são defensáveis se a sua
atribuir razões para o seu dizer, verdade já é provável e mais ou
entre outras coisas, através do menos assegurada.
que é dito.
Dessa forma, a retórica trata de
Diante disso, a retórica não pode- causas ou teses a defender – mas to-
ria se limitar à arte de persuadir, pois, das são questões –, bem como atua
SELINFRAN

na identidade e na diferença entre in- conseguisse atingir seu objetivo.


divíduos por meio de questões pon- Temos então a metáfora e metoní-
tuais que estabelecem sua distância. mia: uma, por similaridade, por unir
E, ainda segundo Meyer, “[...] quan- traços comuns a dois significados
do tratamos de uma questão, qual- que coexistem, dando tonicidade ao
quer que seja ela, pronunciamo-nos sentido, outra, por contiguidade, pro-
sempre indirectamente sobre ela e, ximidade, por estabelecer uma com-
ao mesmo tempo, aceitamos que patibilidade entre os dois sentidos.
ela se coloque ou que seja recusa-
da; resumindo, exprimimos de facto Ao utilizar os catálogos da Sothe-
uma opinião sobre a sua pertinência.” by´s, Leirner coloca seu trabalho à al-
(MEYER, 1993, p. 38). tura daqueles mostrados nas capas,
Nelson Leirner apresenta-nos uma comparando-os, indagando posições
questão e, fazendo uso de figuras artísticas. Cria uma espécie de com-
de retórica – recursos de linguagem paração entre o que há de mais va-
enunciativa para intensificar o sen- lioso em relação àquilo que ele pre-
tido de certos elementos do discur- tende valorizar. Ainda, a imagem da
so – como a metáfora, a metonímia, Sotheby´s, metonimicamente, esta-
a ironia e o paradoxo, - e do empre- belece uma relação com o universo
go da alusão e da paródia, formas de instituições de arte trazendo refle-
intertextualidade, busca angariar a xões acerca de quanto um espaço
atenção e a adesão de seu auditório museal pode interferir na interpreta-
à sua visão crítica e engajada sobre o ção, fruição e na própria produção da
papel da arte e o contexto sociopolí- obra de arte.
tico no qual ela se insere. Também a ironia e o paradoxo. Se-
gundo Fiorin, “a ironia é um tropo em
QUESTÕES DE LEINER: O SISTE-
que se estabelece uma compatibili-
MA DA ARTE dade predicativa por inversão, alar-
122
Quando Nelson Leirner escolhe os gando a extensão sêmica dos pontos
catálogos da Sotheby´s e cada um
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

de vista coexistentes e aumentando


dos objetos inseridos nos mesmos sua intensidade” (2014, p. 70). Geral-
para expor suas reflexões acerca do mente tem o objetivo de criticar. Fin-
universo artístico, não o faz aleato- ge dizer uma coisa para dizer com-
riamente, por pura provocação. Suas pletamente o oposto.
questões estão ligadas ao contexto
em que vivia. Está aí a base da arte Quando Leirner escolhe utilizar o
conceitual da qual faz parte seu fazer, objeto “indígena americano”, trans-
arte que se preocupa primeiramente formando-o em arte, indaga sobre o
com a ideia e depois qual a melhor quanto a “alta cultura” simbolizada
forma de expressá-la. pela Sotheby´s pode ter de seme-
lhança com qualquer objeto com-
Analisando suas estratégias, pode- prado num camelô. Quanto vale uma
mos identificar alguns recursos utili- obra de arte do século XIX? E um ob-
zados pelo artista (orador) para que
SELINFRAN
jeto produzido em série? Isso pode tidiano em seu trabalho, aproprian-
ser arte vendável? Ao apresentar di- do-os, remete tanto ao artista Marcel
ferentes materiais industrializados, Duchamp quanto à Arte Pop, trazen-
itens que saem de seus lugares ori- do-nos essa função linguística como
ginais e vêm incorporar obras “de va- uma estratégia retórica significativa,
lor”, Nelson, ironicamente deixa uma ainda que não explícita.
pergunta: isso é arte? A brincadeira
incomoda alguns, mas não deixa de A paródia é uma forma de intertex-
fazer parte do sistema de arte. tualidade por derivação, é “um recur-
so bastante criativo que se constrói a
Assim, paradoxalmente e, lembran- partir de um texto-fonte retrabalha-
do mais uma figura, o paradoxo, que do – ou seja, há uma transformação
reúne ideias contraditórias em uma de um texto-fonte - com o intuito de
mesma imagem, Leirner brinca com atingir outros propósitos comunicati-
o mundo da arte dizendo: “Adorei vos.” (CAVALCANTE, 2013, p.155) Es-
quando a própria Sotheby’s vendeu ses propósitos podem ser humorísti-
um catálogo Sotheby’s. Tenho o ca- cos, críticos, poéticos, entre outros.
tálogo em que esse trabalho estava
sendo vendido.” Leirner, ao utilizar o catálogo da
Sotheby´s, emoldurando-o numa
Quanto à intertextualidade, pode- caixa de acrílico, retomando valores
mos identificar a alusão: da alta cultura, e aliando-os a figuras
Uma espécie de referenciação in- próprias do consumo popular, ressig-
direta, como uma retomada im- nifica a instituição Sotheby´s.
plícita, uma sinalização, para o
coenunciador que, pelas orienta- Essa ressignificação, do ponto de
ções deixadas no texto, ele deve vista da argumentação, tem como
apelas à memória para encontrar efeito retórico, o humor: a crítica feita
o referente não dito[...], a alusão pelo humor facilita a adesão do audi-
não apresenta marcas diretas e, tório. 123
portanto, seu reconhecimento

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


demanda maior capacidade de
inferência por parte do enuncia-
CONSIDERAÇÕES FINAIS
dor. Nem sempre um coenuncia- Explorando os conceitos de Bar-
dor detém as informações ne- thes sobre a retórica da imagem,
cessárias para o reconhecimento constatamos que toda imagem é re-
dos indícios intertextuais da refe- pleta de significados e que, ao se uti-
rência e, principalmente, da alu-
lizarem mensagens linguísticas, pela
são, mas essa possibilidade não
ancoragem, o orador, freia essa polis-
faz com que o fenômeno deixe
de existir, pois se um leitor não semia e orienta seu auditório direcio-
conseguir alcançar a intertextua- nando-o àquilo que ele se propõe a
lidade, outro, certamente, o fará. demonstrar. Leirner escolhe e associa
(CAVALCANTE, 2013, p.152) palavras, imagens e objetos para que
seus pensamentos ideológicos sobre
Leirner, ao utilizar objetos do co- a condição da arte cheguem até ao
SELINFRAN

seu auditório. tituição artística e econômica, que


Metáfora, metonímia e ironia são determina valores e status de arte, e
figuras de retórica percebidas devido questionar o lugar e o fazer da arte
aos seus caracteres argumentativos desmistificando, inclusive, a figura do
reconhecidos na maneira em que o artista, são questões levantadas por
discurso da obra de arte se estrutu- Leirner que, além dessas estratégias,
ra. Fazer referência a uma forte ins- faz alusão a importantes nomes e re-
ferências da própria história da arte.

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dez.2014.
SELINFRAN
AS RELAÇÕES ENTRE PLANO DE EXPRESSÃO E PLANO DE CONTEÚ-
DO EM “POEMA”, DE MANOEL DE BARROS

Jéssica Cristina CELESTINO


Vera Lucia Rodella ABRIATA

RESUMO
Este trabalho analisa o texto “Poema”, de Manoel de Barros do livro Tratado Geral
das Grandezas do ínfimo, por meio do referencial teórico da semiótica francesa
com o objetivo de descrever as relações entre o plano de conteúdo e o plano de
expressão do poema para mostrar que o conceito de semissimbolismo deve ser
ampliado, conforme Fiorin (2003), buscando-se correlações entre categorias da
expressão e categorias do conteúdo em todos os níveis do percurso gerativo e não
apenas nos seus níveis mais profundos. Aplicamos também ao texto elementos do
percurso gerativo de sentido para observar a construção do sujeito poético, simu-
lacro do enunciador, que assume em “Poema” o papel de sujeito apaixonado pela
palavra poética. Desse modo, temos por objetivo desvelar o caráter metadiscursivo
do texto.
PALAVRAS-CHAVE: Semiótica francesa; plano de conteúdo; plano de expressão;
Manoel de Barros.
ABSTRACT
This paper analyzes “Poema”, by Manoel de Barros, from the book Tratado Geral das
Grandezas do ínfimo by means of the theoretical frame of French Semiotics aiming
at describing the relations between the content plane and the expression plane of
this poem in order to show that the semi-symbolic concept must be expanded, ac- 125
cording to Fiorin (2003), seeking correlations between the expression categories

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and the content categories in all the levels of the generative process and not only in
its deepest levels. Elements of the generative process of meaning are also applied
to the text in order to observe the construction of the poetic subject, simulacrum of
the enunciator who assumes in “Poema” the role of passionate subject by the poetic
word. This way, we intend to unveil the metadiscursive character of the text.
KEYWORDS: French semiotics; aesthesis; poetry; Manoel de Barros.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO estrutura elementar da significa-


ção (GREIMAS; COURTÉS, 2008,
Este artigo analisa “Poema”, de Ma- p.455).
noel de Barros, da obra Tratado geral
Para exercer a função de apreen-
das grandezas do ínfimo, publicada
der os efeitos de sentido dos textos,
em 2001, com base nos pressupos-
a semiótica se vale inicialmente de
tos teóricos da semiótica francesa.
uma estrutura elementar da significa-
Temos por objetivo revelar o caráter
ção que é vista como uma “rede re-
metadiscursivo do poema, na me-
lacional”, caracterizada por relações
dida em que no texto, o enunciador
simples, ou seja, relações entre dois
reflete sobre seu papel temático de
termos. Com base nas oposições di-
sujeito poético e, como um sujeito
cotômicas saussurianas, surge uma
apaixonado, sobre seu próprio papel
tipologia das relações que estabele-
actancial acerca do fazer poético.
ce um percurso entre os termos.
A teoria semiótica é um projeto de Para operacionalizar os conceitos
investigação científica cujo interesse da estrutura elementar de significa-
é “o parecer do sentido”, por isso, ela ção, A. J. Greimas propõe um primei-
se vale das formas de linguagem para ro “modelo semiológico” nomeado
apreendê-lo (BERTRAND, 2003, p.11). como “quadrado semiótico que se
Nesse sentido, a semiótica se define inscreve no exato prolongamento do
como uma teoria da significação e projeto saussuriano” , segundo Hé-
busca desvelar, principalmente nos nault, (2006, p. 49). Tal quadrado é
textos de caráter poético, as relações representativo da estrutura elemen-
entre formas do conteúdo dos tex- tar que retrata de maneira precisa
tos e suas formas de expressão. as tipologias das relações entre dois
Segundo o “Dicionário de Semi- termos opostos, como, por exemplo,
ótica”, vemos que, tendo em vista o vida versus morte, que mantêm uma
126 plano de conteúdo: relação primeiramente de oposição
A semiótica deve apresentar-se (relação simples) para depois se des-
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inicialmente como o que ela é, dobrar em relações: de contradição


ou seja, como uma teoria da sig- (vida/ não-vida; morte/ não-morte),
nificação. Sua primeira preocu- e, de complementariedade (vida /
pação será, pois, explicitar, sob não-morte; morte/ não-vida). Des-
forma de construção conceitual, sa maneira, a estrutura elementar de
as condições de apreensão e da significação “fundamenta a ‘diferen-
produção do sentido. Dessa for-
ça’ entre os valores, mas a diferença
ma, situando-se na tradição saus-
para ter sentido, só pode repousar
suriana e hjelmsleviana, segundo
a qual a significação é a criação sob a ‘semelhança’ que situa os va-
e/ou a apreensão das “diferen- lores um em relação ao outro” (GREI-
ças”, ela terá que reunir todos MAS; COURTÉS, 2008, p. 184).
os conceitos que, mesmo sendo A semiótica tem suas bases, por-
eles indefiníveis, são necessários tanto, nos estudos saussurianos,
para estabelecer a definição da
SELINFRAN
pois, assim como vimos, a estrutu- tos a semiótica propõe o percurso
ra elementar de significação, busca gerativo de sentido. Segundo Ber-
o sentido através da relação de dife- trand (2003, p.49), o percurso gera-
rença. Por ser um projeto de inves- tivo de sentido se estratifica “em ca-
tigação científica que visa apreender madas relativamente homogêneas” e
a construção da significação de di- vai de “formas concretas e particula-
ferentes linguagens, ela determina o res”, que se manifestam na “superfí-
texto como seu objeto de estudo e cie do texto” às formas mais gerais e
o interpreta inicialmente a partir de abstratas, dispostas em “múltiplos ní-
dois pontos de vista: a) como objeto veis de profundidade”, os níveis fun-
de significação: para a apreensão dos damental, narrativo e discursivo.
efeitos de sentidos construídos nos O nível das estruturas fundamen-
textos a partir de sua estruturação tais é aquele em que se encontram
interna; e b) como objeto de comuni- as oposições semânticas que estão
cação entre o enunciador (simulacro na base do texto. Já no nível das es-
do autor) e o enunciatário (simulacro truturas narrativas, um dos termos
do leitor). Nesse sentido, o texto é da oposição semântica do nível fun-
considerado como um objeto cultural damental é assumido como valor por
determinado por “formações ideoló- um sujeito; no nível das estruturas
gicas”. Barros (2001, p. 4), refletindo discursivas há a projeção pelo enun-
sobre a co-presença do social e do ciador de figuras que concretizam
individual no discurso, afirma: temas, de isotopias entre as quais se
[...] nele, coexistem a invariável destacam as figuras dos atores, tem-
sistêmica social e as variáveis, pos e espaços que concretizam os
também sociais, de realização, actantes do nível narrativo (cf. BAR-
forjadas pelas determinações só- ROS, 1990).
cio-ideológicas. Se a significação
nasce da variação, como pro- Por outro lado, utilizamos no texto
puseram Barthes (1964 e 1966) conceitos da semiótica das paixões 127
e Greimas (1966), é da relação que surgiu da necessidade de explo-

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entre a invariante do sistema e a rar, além das dimensões cognitiva e
variação social que surge o senti- pragmática, a dimensão patêmica
do do discurso. A articulação do dos textos. Para isto, arquitetou-se
discurso com a formação social “uma semântica da dimensão pas-
não é, por conseguinte, fortuita e sional nos discursos” (BERTRAND,
ocasional ou secundária e aces- 2003, p.357). Dessa forma, os sujei-
sória.
tos que operam as ações em busca
Dessa forma, partimos da concep- de objetos-valores que dão sentido
ção de texto como objeto de signifi- a sua existência, também vivenciam
cação e como objeto de comunica- estados de alma. Assim, enquanto o
ção entre enunciador e enunciatário. percurso gerativo de sentido ocupa-
Com a finalidade de delinear a -se dos estados das coisas e, portan-
construção da significação dos tex- to, rege um fazer que leva à trans-
SELINFRAN

formação de estados do sujeito em pressão, destacamos as figuras, as


busca de objetos-valores que dão unidades lexicais, as estruturas sintá-
sentido a sua existência, a semiótica ticas, que se manifestam sob a forma
das paixões se ocupa dos estados de traços reiterados da expressão e
de alma dos sujeitos que vivenciam contribuem para a criação do ritmo
paixões, entendidas como efeitos de do poema. Aplicamos ainda ao texto
sentido inscritos e codificados na o conceito de semissimbolismo. Lem-
linguagem, de acordo com Bertrand bramos que, nas relações semissim-
(2003, p. 358). bólicas se estabelecem homologias
Outro objetivo deste trabalho é entre categorias do plano da expres-
observar o modo como no texto se são e categorias do plano de conteú-
revela a irrupção da estesia, tal como do dos textos.
Algirdas Julien Greimas entende esse Refletindo sobre a função estética,
conceito em sua obra Da Imperfeição Fiorin (2003, p. 78) observa que nes-
(2002) em que o semioticista lituano sa função a expressão ganha maior
elabora, de acordo com Barros (1999), importância, uma vez que o enuncia-
“uma leitura semiótica da percepção dor não revela apenas o mundo, mas
estética ou do prazer estético”. recria-o por meio das palavras. Para
Essa reflexão sobre a percepção ele não importa apenas aquilo que
estética, que a poesia manifesta, é se diz, mas a maneira como se diz. O
um tema perceptível em grande par- enunciador, assim, recria o conteúdo
te dos poemas de Barros, que apre- na expressão e, por outro lado, ao ar-
sentam um caráter metadiscursivo. ticular os dois planos, contribui para
Nossa hipótese é que o enunciatá- a significação total do texto. É o que
rio-leitor, ao entrar em contato com pretendemos depreender na análise
os textos do poeta pantaneiro, depa- de “Poema”
ra-se com um evento extraordinário
128 inserido na cotidianidade (GREIMAS, O PLANO DE CONTEÚDO EM
2002, p. 30), o que é caraterístico da “POEMA”
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estesia, e isso se revela nas relações


de similaridade entre elementos do Em “Poema” o sujeito poético se
plano de expressão e do plano de volta especialmente para a reflexão
conteúdo. metadiscursiva sobre o fazer poético,
além de revelar algumas característi-
Nos textos de Manoel de Barros
cas da poética da modernidade. Va-
encontramos ainda outras marcas da
mos ao texto:
estesia, tais como a ruptura de isoto-
pia semântica, que instaura uma fra- Poema
tura e o estatuto particular do objeto A poesia está guardada nas pala-
inserido na cotidianidade, conforme vras – é tudo que
Greimas apresenta em Da imperfei- eu sei.
ção (2002, p. 30).
Meu fado é o de não saber quase
Quanto à análise do plano de ex- tudo.
SELINFRAN
Sobre o nada eu tenho profundi- seu ponto de vista sobre a linguagem
dades. poética no presente da enunciação.
Não tenho conexões com a rea- Esse presente é o presente omnitem-
lidade. poral ou gnômico que, segundo Fiorin
Poderoso para mim não é aquele
(1996, p. 150), é utilizado para enun-
que descobre ouro. ciar “verdades eternas” e no qual o
momento de referência, assim como
Para mim poderoso é aquele que o momento do acontecimento, é ili-
descobre as
mitado. Evidencia-se ao enunciatário,
Insignificâncias (do mundo e as simulacro do leitor, que o enunciador
nossas). em “Poema” tem por meta enunciar
Por essa pequena sentença me uma verdade que se eterniza, e essa
elogiaram de imbecil. verdade diz respeito a sua concepção
Fiquei emocionado e chorei. de poesia e de vida.
Sou fraco para elogios. Em “Poema”, o eu reflete, portanto,
sobre seu saber sobre a palavra poé-
Notamos que “Poema” é caracteri- tica e também sobre seu saber sobre
zado pelo metadiscurso, uma vez que, o mundo, acerca do qual observa que
logo no primeiro verso, o enunciador sua competência é relativa. Assim,
projeta um eu, simulacro de um poe- como sujeito cognitivo, revela que
ta, que tece reflexões sobre a poesia não tem um saber sobre quase tudo,
num texto que se constitui como uma mas sim, tem “profundidades sobre
poesia. Ele exalta nesse verso inicial o nada”, desvelando, dessa forma, o
do poema a palavra como lugar em fado que a ele estaria destinado como
que se pode encontrar a poesia: “A sujeito poético.
poesia está guardada nas palavras”.
Tendo em vista os significados da fi- No entanto, as profundidades so-
gura lexemática “guardada”, aí pre- bre o nada que o eu considera ser o
seu pouco saber sobre tudo, relacio- 129
sente, observamos que a que mais
nam-se, na verdade, às coisas que

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se adequa ao contexto do poema é
aquela segundo a qual guardar tem têm significação para ele, como afir-
como sinônimo “conservar, manter, ma nos versos: “Poderoso para mim
guardar na memória” (FERREIRA, não é aquele que descobre ouro/ Para
2010, p. 1062, grifo nosso). mim poderoso é aquele que descobre
as insignificâncias (do mundo e as
Com base nesse sentido, nota-se nossas)”.
que o eu considera que as virtualida-
des de sentido poéticas estão guar- Tais versos, em que ele categorica-
dadas na memória das palavras da mente assume um ponto de vista so-
língua e são elas que ele, como sujei- bre o mundo, parecem contradizer o
to competente para o fazer poético, sentido do verso anterior em que ele
explora em seu texto. afirma não ter “conexões com a rea-
lidade”. Na verdade, porém, tal “rea-
É importante destacar também lidade” com a qual ele afirma não se
que, nesse verso, o sujeito manifesta
SELINFRAN

conectar é aquela relacionada ao uni- “por essa pequena sentença me elo-


verso dos valores pragmáticos, das giaram de imbecil”.
coisas que não têm significância para
ele. Portanto, o que é significante para É importante ressaltar que o apa-
o sujeito poético, aquilo a que ele atri- rente paradoxo1 que se manifesta no
bui verdadeiramente valor é o que enunciado “me elogiaram de imbecil”
para os outros é insignificante, desti- se desfaz, na medida em que para o
tuído de valor. Sua competência di- sujeito poético não faz sentido ter co-
ferencia-se, pois, da competência do nexão com uma realidade na qual os
outro, daquele que descobre ouro. sujeitos valorizam o ouro. O eu consi-
dera, portanto, um elogio ser conside-
Observa-se que a figura “ouro”, me- rado um imbecil por aqueles que dão
tonímica, tematiza não só os valores valor a objetos-valores pragmáticos.
de ordem pragmática a que ele não Nota-se, pois, a tensão entre os va-
atribui importância, pois considera lores que para ele são significantes e
que sua competência, seu saber, de aqueles que considera insignificantes.
ordem cognitiva, consiste em atribuir Vemos que a ironia nasce desta opo-
valor às “insignificâncias do mundo e sição, pois o eu brinca com a sanção
as nossas”, mas também sensível, ten- negativa recebida, encontrando nela
do em vista a sensibilidade como uma um sentido outro: como se ele des-
forma de conhecimento. denhasse do elogio, tonificando a sua
insignificância, ao mesmo tempo em
Nesse aspecto, observando as figu- que encontra um sentido outro, signi-
ras do texto, apreendem-se no poema ficante, que o emociona.
dois percursos temático-figurativos
antagônicos: o primeiro concretiza o Como o texto se denomina “Poe-
tema relacionado ao universo de va- ma”, e seu primeiro verso faz alusão
lores pragmáticos, recoberto pela fi- ao fato de as palavras serem consi-
130 gura “ouro”. O segundo concretiza o deradas o lugar da poesia, conclui-se:
tema relativo ao universo de valores o enunciador, ao atribuir valor eufó-
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cognitivos que se manifesta por meio rico às “insignificâncias do mundo e


de figuras que compõem os versos “a as nossas”, leva o enunciatário a per-
poesia está guardada nas palavras – é ceber que essas insignificâncias, ver-
tudo que eu sei”, “Sobre o nada eu te- dadeiramente significantes para ele,
nho profundidades”, “descobre”. constituem o tema de sua poesia
Nessa perspectiva, o enunciador Nota-se ainsa em “Poema” que
leva o enunciatário a refletir sobre o o sujeito poético tece seus pontos de
valor que se deve atribuir aos objetos- vista por meio de um discurso apai-
-valores: aquilo que é eufórico para o xonado, e o tom passional do texto se
sujeito poético é destituído de valor manifesta através da ironia. Assim, o
para o Outro, manifestado de forma 1 Nesse aspecto a poesia de Manoel de Barros revela influências do
precursor da modernidade, Charles Baudelaire, que segundo Friedrich
generalizante e indeterminada na fi- (1978, p.46), apresenta como uma de suas características a dissonân-
gura “elogiaram”, presente no verso cia possibilitada pelo oxímoro, ou seja, pela aproximação de elementos
normalmente incompatíveis.
SELINFRAN
que ele afirma como aparentemente ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SO-
verdadeiro nos versos “Não tenho co- BRE O PLANO DE EXPRESSÃO EM
nexões com a realidade”, “Meu fado é “POEMA”
o de não saber quase tudo”, “sobre o
nada eu tenho profundidades” se re- “Poema” está estruturado em um
vela mentiroso para o enunciatário- único grupo de onze versos livres,
-leitor no contexto do poema, onde uma “inovação modernista” a que o
se torna perceptível que, para ele, ser poeta pantaneiro geralmente adere, o
caracterizado como alienado, imbecil que contribui para a criação do ritmo
passa a ser um elogio. do texto, caracterizado pela imprevi-
sibilidade (GOLDSTEIN, 1985, p.11), em
Observamos, portanto, no texto um consonância com seu plano de con-
sujeito apaixonado pelo fazer poéti- teúdo. Como podemos ver, em seus
co cujos objetos modais são as pala- versos há variações entre cinco, sete,
vras da língua e é por meio delas que dez, onze, nove e vinte e seis sílabas
ele alcança seu objeto valor que é a poéticas. É possível perceber uma as-
própria poesia. Modulado pela pai- simetria marcada pelo “distanciamen-
xão pela palavra poética, o eu defen- to das regras da métrica tradicional”
de seu ponto de vista sobre o que é (GOLDSTEIN, 1985, p.16).
matéria de poesia: as “Insignificâncias Por meio de uma abordagem estru-
(do mundo e as nossas)”, e assim, num tural procuramos apreender os efeitos
discurso polêmico, confronta seus va- de sentido poéticos do texto, partin-
lores cognitivos com os valores prag- do de noções dos níveis: fônico, mor-
máticos estereotipados do Outro, in- fológico, lexical, sintático e semântico
determinado e generalizante, aqueles (GREIMAS, 1975, p.67):
que o elogiaram de imbecil. Tal postu-
ra revela um sujeito modalizado pelo a) Nível fônico: para melhor enten-
saber-ser. dermos a análise do nível fônico, va-
mos nos valer da seguinte tabela: 131
Em relação à modalização do ser,
Identificamos no texto a predomi-

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identificamos o saber como a moda-
lidade diretriz que domina o querer e nância de fonemas consonantais oclu-
o poder-ser do sujeito. Nesse sentido,
temos um sujeito de direito que, num
tom passional, defende o lugar da
palavra poética como forma de co-
nhecimento sensível e crítico sobre o
mundo, lugar onde se reflete sobre o
verdadeiro valor que se deve atribuir
aos objetos valores. Assim, o enuncia-
dor, por meio do fazer poético, tem o
objetivo de sensibilizar o enunciatá- sivos, enquanto os fonemas fricativos,
rio-leitor acerca das grandezas do ín- laterais e vibrantes aparecem em me-
fimo. nor número no texto. Esta recorrência
SELINFRAN

dos fonemas oclusivos se nota tam- lábios) e centrípeto - forma de resso-


bém nas sílabas tônicas de cada verso nar (LOPES, 1976, p.112-113). Portanto,
em que a aparecem os fonemas con- embora haja um ponto de congruência
sonantais oclusivos (desvozeados) entre /a/ e /e/ (a posição dos lábios),
/k/ e /t/ num maior número de vezes. a forma do ressonador revela que os
/k/ surge oito vezes nos seguintes le- fonemas são diferentes: enquanto /a/
xemas: “conexões”; “aquele” (2); “des- se distancia do eixo de rotação, e por
cobre” (2); “insignificâncias”; “peque- isso caracteriza-se como aberto, /e/
na” e “fiquei”. E /t/ está cinco vezes se dirige para o eixo de rotação, logo
representado por meio das palavras: é classificado como fechado. Desse
“tudo” (2); “tenho” (2) e “sentença”. modo, temos /e/ ≠ /a.
Devemos lembrar que, como Desta relação identificamos a
define Lopes (1976, p.102), os fone- seguinte oposição no poema em ter-
mas oclusivos são caracterizados por mos vocálicos: fechado vs. aberto. O
um bloqueio total da corrente de ar texto apresenta, de um modo geral
que se dá de forma momentânea. uma predominância de fonemas vo-
Essa interrupção promove uma des- cálicos fechados, pois além das nove
continuidade no ritmo do poema. Por aparições do fonema /e/ surge tam-
outro lado, os fonemas fricativos, e vi- bém o fonema /i/ (sete vezes) e o fo-
brantes, que são contínuos, por apre- nema /o/ (seis vezes). Em contraste
sentarem um prolongamento em sua com o que se afirmou, “Poema” se
pronúncia, aparecem menos vezes no inicia com um verso em que predomi-
poema: os fonemas fricativos surgem na a assonância do fonema a: “A poe-
quatro vezes nos lexemas: “poesia”; sia está guardada nas palavras”. Essa
“sei”; “fado” e “fraco”, os fonemas vi- abertura gera um efeito de impacto,
brantes aparecem quatro em “saber”; pois o poema se inicia, tendo em vista
“poderoso” (2) e “chorei”, ambos em o plano de conteúdo, com um ponto
132 segundo plano. de vista metadiscursivo sobre o lugar
Em relação aos fonemas vocá- da poesia que, inaugurando o texto,
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licos, de um modo geral, reconhece- não guarda, por sua vez, relação com
mos a predominância das vogais orais os versos que se seguem. A abertura,
fechadas. Porém, nas sílabas tônicas concretizada nas dez vogais a, indica
encontramos a repetição do fonema um ritmo sem impedimentos, fluido,
/a/ e do fonema /e/: ambos aparecem que remete à necessidade de desco-
nove vezes. Sabe-se que o fonema /a/ brir a poesia guardada nas palavras,
é classificado como central (zona de de descobrir o que de fato é signifi-
articulação), baixo (altura da língua), cante, aberto, portanto. Tal abertura
não-arredondado (posição dos lábios) cria tensão tendo em vista o fecha-
e centrífugo (forma de ressonar); já o mento de vogais predominantes nos
fonema /e/ é anterior ou palatal (zona versos seguintes; este fechamento,
de articulação), médio (altura da lín- por sua vez, pode referir-se ao que
gua), não- arredondado (posição dos parece insignificante, para o sujeito
SELINFRAN
poético, no sentido de ser automati- as rimas agudas são formadas por pa-
zado, fechado, portanto. Assim, te- lavras agudas ou oxítonas como ocor-
mos: abertura vs. fechamento em que: re em fiquei/ chorei e imbecil/elogios;
descobrir é expandir (abrir); e guardar rimas graves são formadas por pala-
é concentrar (fechar).No nível fônico vras graves ou paroxítonas, como em
isso constitui uma rima. Sabe-se que profundidades/ realidade; No texto
as rimas podem aparecer no final, no em questão, as rimas agudas do pla-
interior ou em várias outras posições no sonoro que aproximam imbecil de
no verso (GOLDSTEIN, 1985, p.44). elogios revelam a ironia do enuncia-
Em “Poema”, encontramos três rimas dor em relação aos valores esteroti-
consoantes (semelhança de consoan- pados daqueles que consideram que
tes e vogais), que se manifestam nos ele não tem conexões com a realida-
seguintes versos: de, demonstrando, portanto, que eles
são os verdadeiros alienados. É inte-
Sobre o nada eu tenho profundi- ressante observar ainda a oposição
dades.
entre os fonemas vocálicos fechados
Não tenho conexões com a reali- (predominantes) e fonemas vocálicos
dade. abertos (em menor número). Esse fe-
chamento, predominante no plano de
expressão, parece se associar à alie-
Por essa pequena sentença me
elogiaram de imbecil. nação que o sujeito poético ironiza no
plano de conteúdo, quando se refere
Fiquei emocionado e chorei. aos valores pragmáticos estereotipa-
Sou fraco para elogios dos daqueles que o consideram im-
becil Já a abertura dos fonemas vo-
Observemos a primeira rima: ela
cálicos, em menor número no poema,
ocorre no final do verso a partir da
parece se relacionar à função da poe-
semelhança das vogais e consoantes
sia, que propõe valores de conscienti-
ADE/ADE, em que a vogal tônica tam- 133
zação por meio do belo.
bém é o /a/; a segunda rima também

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aparece no final do verso com a re- b) Nível morfológico e lexical:
dundância do fonema /i/ na vogal tô- neste nível analisaremos as classes
nica. Tal rima, embora esteja grafada gramaticais presentes no texto. De
de maneira diferente, possui a mesma início, observamos a predominância
realização, a do ditongo /iu/. dos verbos. De dez verbos emprega-
dos seis deles estão no presente do
A última rima, por sua vez, está
indicativo: “está guardada”; “é”; “sei”;
marcada pelo primeiro e o último fo-
“tenho”; “descobre” e “sou”. Três deles
nemas de dois verbos do mesmo ver-
estão no pretérito perfeito do indica-
so: “fiquei” e “chorei”, com a repeti-
tivo: “elogiaram”; “fiquei emociona-
ção dos ditongos /ei/. De acordo com
do” e “chorei”. E apenas um na forma
Norma Goldstein (1985, p.47- 48), as
nominal, “saber”. Vale ressaltar que o
rimas são classificadas em relação a
tempo verbal presente é o presente
sua acentuação tônica, por exemplo,
que Fiorin (1996, p. 150-151) classifi-
SELINFRAN

ca como presente omnitemporal ou Ainda na questão do emprego ver-


gnômico, em que o momento de re- bal no texto, observamos uma su-
ferência é ilimitado, como o momento cessão de verbos no presente que se
do acontecimento. Esse é o presente estende do primeiro verso ao oitavo,
que enuncia verdades eternas ou que mas que sofre uma quebra de sequên-
se pretendem eternas revelando, por- cia no nono verso no qual se observa
tanto, o ponto de vista do sujeito po- a ocorrência do pretérito perfeito. Tal
ético sobre o caráter da poesia que é ruptura em relação ao uso dos tempos
imutável. Por outro lado, o emprego verbais do indicativo ocorre também
da primeira pessoa do singular (eu) no verso seguinte (o décimo), porém
explícito nos verbos: sei, tenho e sou, o presente é retomado no último ver-
e o modo indicativo, por ser o modo so. Dessa maneira, identificamos uma
da certeza, revelam o saber do sujei- tensão temporal entre presente e pre-
to poético sobre o fazer poético. Em térito que, em termos morfológicos,
relação aos verbos, também notamos reitera oposição entre continuidade
um jogo entre ser/ estar e ter. Depois vs. descontinuidade.
do verso inicial que inaugura o poe- Quanto ao uso da pessoa gra-
ma, temos os versos dois, três, seis e matical, observa-se que a debreagem
sete com o emprego dos verbos ser enunciativa cria o efeito de subjeti-
e estar e entre eles os versos quatro vidade, na projeção da primeira pes-
e cinco com o verbo ter. Na estrutura soa do singular, em maior número na
do texto percebemos que o verbo ser maioria dos versos, e do plural, no
aparece duas vezes antes e duas ve- seguinte verso: “Insignificâncias (do
zes depois do verbo ter: esta predo- mundo e as nossas)”. Assim, além de
minância do ser correlaciona-se com reiterar sua subjetividade em vários
os valores defendidos pelo enuncia- versos, o sujeito poético faz referên-
dor que diferem dos valores de ordem cia também ao enunciatário-leitor, por
pragmática, ou seja, da ordem do ter. meio do pronome de primeira pessoa
134
Assim, como vemos nos versos abai- do plural. A partir do emprego da pri-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

xo: meira pessoa do singular e do plural


– é tudo que eu sei. cria-se a tensão entre individualização
Meu fado é o de não saber quase subjetiva (eu) e generalização subje-
tudo tiva (nossas) que remete à oposição
do conteúdo entre individualização e
Sobre o nada eu tenho profundi-
dades. generalização.

Não tenho conexões com a reali- A palavra nada pode ser conside-
dade. rada, segundo Ferreira (2010, 1448)
como um pronome indefinido subs-
Poderoso para mim não é aquele
tantivado, com o significado de “ni-
que descobre ouro.
nharia”: “Sobre o nada eu tenho pro-
Para mim poderoso é aquele que fundidades”. Assim, o sujeito poético
descobre as afirma ter profundidades sobre o que
SELINFRAN
os outros pensam ser as “ninharias”, Insignificâncias (do mundo e as
as insignificâncias. Como já foi men- nossas).
cionado anteriormente, o primeiro Dos versos em que há “enjambe-
verso abre o poema com uma afirma- ment”, o primeiro se inicia depois do
ção que, ademais de ser impactante, travessão. Nota-se que o enjambe-
conduz todo o sentido do texto. Par- ment do primeiro verso está constitu-
tindo, então, da afirmação: “a poesia ído por três palavras “é tudo que”. Tal
está guardada nas palavras” repara- período está incompleto, tensionado
mos que o sujeito poético faz menção pela quebra da sequência da oração,
à potencialidade das palavras, isto o que instaura uma espera pelo com-
é, alude à capacidade de a palavra, plemento. A ruptura em “que” é res-
de seu ponto de vista, transformar o ponsável pelo retardamento da ação
nada em palavra poética. e pelo surgimento de expectativa, en-
c) Nível sintático: analisamos a or- quanto o verso seguinte “eu sei” alivia
ganização sintática do texto, partindo a tensão e completa o verso anterior.
da pontuação. Logo no início do po- No exemplo seguinte, ocorre o mes-
ema, identificamos dois períodos di- mo, o artigo “as” marca a quebra de
vididos por uma cesura (simbolizada sequência e cria a tensão, e o verso
com um travessão), sendo o primeiro seguinte complementa seu sentido. A
simples e o segundo composto. De um partir da construção destas estruturas
ponto de vista geral, os onze versos especiais reconhecemos uma oposi-
do poema se intercalam entre perío- ção entre tensão vs. distensão, a qual
dos simples (5) e períodos compostos enfatiza os termos que se seguem
(5), todos concluídos com um ponto após a tensão. Assim, “eu sei” reafir-
final. Observamos, também, uma pre- ma o modo da certeza e a construção
dominância de períodos curtos, tor- de um sujeito cognitivo, ao mesmo
nando o texto dinâmico. Verificamos tempo em que “Insignificâncias (do
dois períodos com uma construção mundo e as nossas)” configura os va- 135
especial chamada de “enjambement”: lores que o enunciador considera im-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


ela tem a função de ligar um verso ao portantes.
seguinte com a finalidade de comple- Ainda no nível sintático encon-
tar o seu sentido, pois o primeiro ver- tramos uma figura de linguagem que
so se não ligado ao outro carecerá de consiste na inversão da ordem das
sentido e de complementação sintáti- palavras em frases diferentes que
ca (GOLDSTEIN, 1985, p.63). Vejamos possuem entre si uma relação de
os versos que se seguem: oposição, trata-se da figura quiasmo
A poesia está guardada nas pala- (FIORIN, 2014, p.125). Nos dois exem-
vras – é tudo que plos seguintes encontramos duas in-
eu sei. versões; no primeiro verso em rela-
ção ao segundo ocorre a inversão das
Para mim poderoso é aquele que
palavras “tudo” e “sei”; já nos outros
descobre as
dois versos são as palavras “podero-
SELINFRAN

so” e “para mim” que invertem de po- cação eufórica. Dessa forma, além de
sição: utilizar a ironia, o enunciador, renova a
ondem sintática e manifesta, por meio
– é tudo que eu sei.
de seu fazer, a descoberta da poesia
contida nas palavras.
d) Nível semântico: o nível se-
Meu fado é o de não saber quase tudo. mântico já foi explorado nas consi-
derações sobre o plano de conteúdo.
Poderoso para mim não é aquele que des-
Porém, vale ressaltar que, em relação
cobre ouro.
às figuras de oposição (GOLDSTEIN,
1985, p.66), encontramos a ironia ma-
nifestada, mais fortemente, nos ver-
Para mim poderoso é aquele que desco- sos finais:
bre as
Por essa pequena sentença me
Essas inversões presentes no texto,
elogiaram de imbecil.
por meio da mudança da ordem sintá-
tica das palavras, concretizam a inver- Fiquei emocionado e chorei.
são de valores manifestada no plano Sou fraco para elogios.
de conteúdo, pois ao invés de valo- Tal figura retoma todos os elemen-
rizar “aquele que descobre ouro”, o tos que configuraram essa oposição
enunciador valoriza “aquele que des- de pontos de vista, enquanto o enun-
cobre as insignificâncias (do mundo ciador valoriza as coisas desimpor-
e as nossas)”. Portanto, o enunciador tantes o outro valoriza o “ouro”. Essa
segue em direção contrária ao saber divergência é simbolizada nos outros
estereotipado daqueles que valori- níveis: a predominância das consoan-
zam o dinheiro, metaforizado pela fi- tes oclusivas, por exemplo, caracteriza
gura “ouro”. a ruptura na pronúncia, assim como
136 A nova forma de olhar o mundo, ocorre uma ruptura com o senso co-
voltando-se para o que é tido como mum através do estabelecimento de
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sem importância, é reforçada, no pla- novos valores; a inversão sintagmáti-


no de expressão, por meio da criação ca também revela esse rompimento.
de uma regência para o verbo elogiar.
No verso “Por essa pequena senten- CONSIDERAÇÕES FINAIS
ça me elogiaram de imbecil”, identi- No poema de Barros observamos
ficamos na construção elogiaram de o tema que exalta a grandeza daquilo
uma referência ao verbo “chamaram que é tido como inútil, mas que é con-
de”. A nova forma de expressão, com siderado de valor para o enunciador e
o verbo elogiar no lugar de chamar, cria um efeito de sentido de ficciona-
consiste em um chamar positivamen- lidade que é verossímil para o enun-
te alguém por meio de uma qualifi- ciatário, como ocorre nos versos em
SELINFRAN
que o sujeito poético afirma que para dos daqueles que o consideram im-
ele não é poderoso aquele que desco- becil. Já a abertura dos fonemas vo-
bre ouro, mas sim aquele que desco- cálicos, em menor número no poema,
bre “as insignificâncias (do mundo e parece se relacionar à função da poe-
as nossas)”. sia, que propõe valores de conscien-
Nos sistemas semissimbólicos tização por meio do belo, ou seja, a
as categorias do plano da expressão abertura remete ao descobrir a poesia
se homologam às categorias do pla- guardada nas palavras.
no de conteúdo. Assim, como obser- Em “Poema”, identificamos, portan-
vamos no nível fônico, a presença de to, um enunciador que reflete sobre o
oclusivas em “Poema” contribui para fazer poético e observa que não tem
a criação de um ritmo truncado, pois competência relativa ao fazer prag-
o bloqueio característico destes fone- mático sobre o mundo, contrapondo
mas gera a descontinuidade. Nesse seu saber ao saber do Outro que o
sentido, tal termo da oposição do pla- sanciona de forma negativa por essa
no da expressão se relaciona a outro, incompetência. Nesse sentido, o jogo
a continuidade, típica dos fonemas entre os verbos ser e ter representa,
fricativos e vibrantes. Tal categoria da no plano de expressão, esse conflito
expressão se relaciona, por sua vez, de valores pragmáticos (ter) e cog-
por semelhança à categoria do plano nitivos (ser), e, como vimos, o ser se
de conteúdo insignificância vs. signifi- sobrepõe ao ter.
cância. Assim, o enunciador é irônico, pois o
Desse modo, a descontinuida- que ele afirma como sujeito do enun-
de correlaciona-se com as insignifi- ciado, aparentemente assumindo a in-
câncias; visto que estas representam competência que o Outro lhe atribui,
a descontinuidade com o senso co- é negado na instância da enunciação2
mum, valorizá-las é, portanto, romper em que revela que seu saber é, na ver-
com o estabelecido. Com isto, o plano dade, sobre a palavra poética onde a 137
de expressão concretiza esse ato de poesia e o mundo estão armazena-

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ressignificação por meio do descon- dos. Dessa forma, leva o enunciatário
tínuo, manifesto também na ruptura a apreender seu discurso apaixonado
ocasionada pelo uso dos tempos ver- pela palavra poética, como revela o
bais e na sintaxe do poema. verso inicial do poema, que, marcado
Com relação à oposição entre as pelas vogais abertas, manifesta a sen-
vogais fechadas e abertas, observa- sibilização do enunciador.
mos que o fechamento, predominante
no plano de expressão, se relaciona à
alienação que o enunciador ironiza no
plano de conteúdo, quando se refere 2 Conforme Fiorin (2011, p. 56), “quando se afirma no enunciado e
se nega na enunciação, estabelece-se a figura que a retórica denominou
aos valores pragmáticos estereotipa- antífrase ou ironia”.
SELINFRAN

REFERÊNCIAS
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estética. São Paulo: EDUC/Puebla: UAP, 1999.
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BARROS, M. Tratado geral das grandezas do ínfimo. São Paulo: Leya, 2013.
FERREIRA, A.B.H. Dicionário Aurélio da língua portuguesa. 5 ed. Curitiba: Positivo, 2010.
FIORIN. J. L. As astúcias da enunciação. São Paulo, Ática, 1996.
______.Três questões sobre a relação entre expressão e conteúdo. Itinerários (Araraquara), n. 20, p. 77-89,
2003. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/itinerarios/article/view/2673/2379. Acesso em: 16 de novem-
bro de 2015.
_____. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
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GOLDSTEIN, N. Versos, sons, ritmos. São Paulo: Ática, 1985.
GREIMAS, A. J. (Org.). Ensaios de semiótica poética. São Paulo: Cultrix, 1975.
______. Da imperfeição. São Paulo: Hacker, 2002.
GREIMAS, A. J; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008.
HÉNAULT, A. História concisa da semiótica. São Paulo: Parábola Editorial, 2006.
LOPES, E. Fundamentos de linguística contemporânea. São Paulo: Cultrix, 1976.

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SELINFRAN
NARRATIVA E INTERAÇÕES EM ASSASSIN´S CREED REVELATIONS

Jéssica de Amorim BARBOSA


Naiá Sadi CÂMARA

RESUMO
A presente pesquisa tem como objetivo fazer uma análise dos regimes de intera-
ção do jogo Assassin´s Creed Revelations por meio da intersecção entre os pres-
supostos teóricos da sociossemiótica e o modelo de análise do percurso gerativo
de sentido. Por se tratar de um texto digital, que apresenta um conteúdo dinâmico,
imersivo e que permite formas de interação diferenciadas, decidimos investigar
como ocorre a produção e apreensão de sentido em uma narrativa que é cons-
truída em ato. Neste caso, no ato de jogar. Com base nos preceitos da semiótica
francesa, em estudos realizados por autores como Fiorin (2005), Bertrand (2003)
e Landowski (2014), nossa pesquisa busca compreender como uma narrativa com-
plexa audiovisual produz seus efeitos de sentido e mantém a adesão do enuncia-
tário jogador.
PALAVRAS-CHAVE: Jogo; digital; game; narrativa; percurso.
ABSTRACT
This research aims to analyze the game interaction schemes Assassin’s Creed Re-
velations through the intersection of the theoretical assumptions of sociossemi-
ótica and the analysis model of the generative sense route. Because it is a digital 139
document, in a dynamic, immersive content and allowing differentiated forms of

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interaction, we decided to investigate how does the production and apprehension
of meaning in a narrative that is built into the act. In this case, the act of playing.
Based on the precepts of French semiotics, in the studies by authors such as Fiorin
(2005), Bertrand (2003) and Landowski (2014), our research seeks to understand
as a audiovisual complex narrative produces its effects of meaning and maintains
the adhesion of enunciatee player.
KEYWORDS: Play; digital; game; narrative; way.
SELINFRAN

O JOGO memórias de Altair para os conflitos


Assassin´s Creed Revelations é o da Terra Santa no século XII.
nome de um jogo eletrônico para No segundo jogo, Desmond aces-
console, que faz parte de uma fran- sa as memórias de outro ancestral, do
quia que conta, até o momento do italiano EzioAuditore da Firenze que
desenvolvimento desta pesquisa, com também é descendente de Altair, atra-
16 jogos. Por se tratar de um produto vés de uma nova Animus, e as aventu-
transmídia, a partir do primeiro jogo, a ras se passam na Itália do século XV
franquia desenvolveu outros produtos durante o Renascimento. Depois da
lançados de forma seriada, entre eles, morte do pai e seus irmãos em praça
aplicativos para celular, mangás, qua- pública, o jovem Ezio descobre que é
drinhos online, jogos específicos para filho e irmão de assassinos de templá-
PC, seis livros, três filmes e um longa- rios e entra para a ordem dos assas-
-metragem que está em produção na sinos com seu tio Mario para vingar a
época da confecção deste artigo. morte dos familiares.
Apesar dessa diversidade de pro- No terceiro jogo, chamado Assas-
dutos, escolhemos para análise, sob sin´s Creed Brotherhood, EzioAudi-
os preceitos da semiótica francesa, tore já é um mestre assassino. Depois
apenas o quarto jogo da série lançado do roubo da Maçã do Éden e do as-
em 2011 para as plataformas console sassinato do seu tio Mário por templá-
PlayStation 3 e Xbox 360: o Assas- rios, Ezio procura pelas ruas de Roma,
sin´s Creed Revelations. Os jogos da com Nicolau Maquiavel, rapazes para
franquia Assassin´s Creed, desenvol- entrar para a ordem dos assassinos e
vidos pela empresa Ubisoft de Mon- o ajudar a recuperar a maçã.
treal, são caracterizados como uma
No quarto jogo, Assassin´s Creed
série de jogos de ficção/ ação e aven-
Revelations, Desmond acessa nova-
tura, centrados em histórias de lutas
140 mente as memórias de Ezio, agora já
através de séculos entre assassinos e
senhor, pois se passaram alguns anos.
cavaleiros templários,
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Nesse jogo, Ezio está à procura de um


O quarto jogo, nosso objeto de es- tesouro que está escondido na biblio-
tudo, é o desfecho das histórias dos teca de Altair, seu antepassado. Aqui
três primeiros jogos (Assassin´s Cre- é possível jogar com os três persona-
ed, Assassin´s Creed II e Assassin´s gens e é o encerramento da saga Des-
Creed Brotherhood). No primeiro, co- mond, Altair e Ezio.
nhecemos a história de um bartender
Através da narrativa, conhecemos
chamado Desmond Miles, que revive
a história, e antes de começar os as-
a história de seu ancestral Altair Ibn-
sassinatos e a busca do objeto-valor,
-La’Ahad, que era um assassino e aju-
o jogo faz um tipo de treinamento
dava na caça aos templários. Ele volta
com o intuito de fornecer inúmeras
no tempo na mente do seu ancestral
instruções de como o jogador deve
através de uma máquina chamada
usar o controle para dar comandos ao
Animus, que o transporta através das
SELINFRAN
personagem, conseguir armas, passar perama). Por esse motivo, o “game”,
por civis sem derrubá-los, matar tem- como chamamos informalmente, é
plários quando identificá-los, entre hoje um dos fenômenos tecnológicos
outros. Esse treinamento configura- de maior interdisciplinaridade e com-
-se, no jogo, como um gênero instru- plexidade para se estudar (NESTE-
cional, organizando, com os gêneros RIUK, 2009, p. 272).
narrativos e do jogo, o hibridismo do
Os jogos podem ser de dois tipos:
game. os estruturais e os narrativos. Nos es-
truturais, como o “Tetris”, por exem-
JOGOS DIGITAIS COMO OBJETO plo, não há uma história que seja o fio
DE ESTUDO condutor da ação do sujeito no jogo.
A indústria dos jogos digitais já ul- O jogador simplesmente precisa en-
trapassou a do cinema e é a primeira caixar peças em seus devidos lugares
do mundo que mais fatura no seg- conforme elas caem para o jogador
mento de entretenimento. Além disso, pontuar e passar de fase, apenas com
é a terceira indústria que mais lucra do mudança de quantidade e intensida-
mundo, só perdendo para o setor béli- de para tornar o jogo mais desafiador.
co e automobilístico. O setor já possui Já nos jogos com estrutura narra-
inúmeras feiras mundiais, prêmios e tiva, com verossimilhança cinemato-
diversos lançamentos de sequências gráfica, há geralmente um persona-
de jogos mais esperadas que sequên- gem no jogo que pode se apresentar
cias de filmes no cinema. no campo de presença do interlocutor
Segundo a Associação Comercial, de duas formas: por debreagem enun-
Industrial e Cultural de Games, Aciga- ciativa (em primeira pessoa), quando
mes, o mercado de games deve subir o jogador participa do jogo sob seu
o faturamento em 20 bilhões de dó- ponto de vista; por debreagem enun-
lares em até três anos. Uma pesquisa civa (em terceira pessoa), quando o
141
divulgada em 2012, no site de notícias jogador consegue visualizar o perso-
nagem no cenário. No caso do Assas-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


G1, revelou que o brasileiro passa sete
dias por semana e duas horas por dia sin´s Creed Revelations, ele se apre-
em frente a um videogame. A mes- senta em debreagem enunciva.
ma pesquisa, realizada pela empresa Observando alguns games, verifica-
de mídia e marketing InsideComm mos que os do tipo narrativo têm es-
(2012), aponta que os jogadores no tabelecido um lugar enunciativo cada
Brasil, juntos, passam 40 bilhões de vez maior para o jogador, permitindo,
horas jogando por ano, em média. nesse universo, estabelecer liberdade
Os jogos digitais se dividem em enunciativa ao jogador e maior poder
quatro plataformas: jogos para conso- de coautoria na narrativa. Ao inserir
le, conforme já foi citado, jogos para a narrativa no universo dos games, o
computador, para plataformas móveis jogo passa a ser participativo e histó-
como smartphones e minigames e rias com esse formato envolvem o jo-
jogos para arcades (máquinas de fli- gador de uma maneira diferente.
SELINFRAN

LINGUAGEM E ORGANIZAÇÃO A passagem de um estado con-


NARRATIVA juntivo para um estado disjuntivo, ou
vice-versa, chamamos de narrativida-
No nível narrativo do percurso ge- de. A essa transformação de estado
rativo de sentido, a sintaxe fundamen- chamamos sintagma elementar, que
tal é substituída pela sintaxe narrativa. representa uma narrativa mínima que
É possível compreender toda a cons- denominamos programa narrativo.
trução da estrutura narrativa por uma
análise mais detalhada nesta primeira O ato de linguagem é o lugar em
fase de investigação da teoria, a qual que nascem as modalidades simples
é denominada semiótica da ação ou que permeiam as ações do sujeito na
estândar. estrutura narrativa, de acordo com
Greimas (2014, p.79). Essas modalida-
Na relação entre dois actantes na des auxiliam a mudança de estado do
sintaxe narrativa, encontramos dois sujeito. Há, portanto, uma diferença
enunciados elementares: enunciados entre modalização e modalidade.
de estado, que estabelecem uma re-
Na perspectiva da semiótica, as
lação de junção (conjunção ou disjun-
modalidades resultam da con-
ção) do sujeito em relação ao objeto-
versão da categoria tímico-fóri-
-valor dentro da estrutura narrativa; ca fundamental, [...]e alteram, na
enunciados do fazer, que mostram a instância narrativa, as relações
transformação do enunciado de es- do sujeito com os valores. A mo-
tado em enunciado do fazer. Fiorin dalização, por sua vez, deve ser
(2009, p.22) alerta que não se pode entendida como a determina-
confundir sujeito com pessoa e objeto ção sintática de enunciados: um
com coisa material. enunciado, que será denominado
modal, modifica um enunciado
Sujeito e objeto são papéis narra- dito descritivo. O enunciado mo-
tivos que podem ser representa- dal pode ser tanto um enunciado
142 dos num nível mais superficial por de estado quanto um enunciado
coisas, pessoas ou animais [...] Os de fazer, e modalizar enunciados
textos não são narrativas míni-
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de estado ou de fazer, indiferente-


mas. Ao contrário, são narrativas mente. A natureza do enunciado
complexas, em que uma série de modalizado é um primeiro critério
enunciados de fazer e ser (de es- de classificação das modalidades,
tados) estão organizados hierar- distinguidas, assim, em modalida-
quicamente (FIORIN, 2009, p. 22). des de fazer e de ser (BARROS,
A junção determina o estado e a 2002, p. 50).
situação em que o sujeito está em As modalidades (o querrr, o dever, o
relação ao objeto e se manifesta de saber e o poder-fazer) são condições
duas formas: conjunção e disjunção. primordiais para a transformação de
Na conjunção, há a obtenção do ob- estado dos sujeitos. Uma narrativa
jeto-valor; na disjunção, não há a ob- complexa se estrutura em quatro fa-
tenção do objeto, mas, mesmo assim, ses para que o sujeito adquira o ob-
existe um modo de relação juntiva. jeto-valor: manipulação, competência,
SELINFRAN
performance e sanção. rece um objeto-valor positivo e des-
perta o querer-fazer do destinatário.
Essas fases, em que o sujeito ad-
Exemplo:esposa promete um jantar
quire as modalidades, seguem uma
delicioso um jantar delicioso ao mari-
ordem de realização em que uma de-
do, caso ele suporte três horas de filas
pende da outra para examinarmos o
no shopping com ela.
texto. No nível da performance, por
exemplo, só é possível realizar a ação Após ser manipulado (querer-fazer)
se o sujeito tiver a competência e an- por alguma dessas formas, o sujeito
tes tiver passado pelo processo de passa para a fase da competência,
manipulação, onde o destinador te- que significa que ele precisa adquirir
nha instigado o destinatário a querer- a competência para agir por meio do
-fazer ou dever-fazer algo. A sanção poder-fazer ou saber-fazer a ação.
só se concretiza quando o sujeito pas- Munido da competência, o sujeito
sa pela performance. Vamos ver como realiza a performance, que é quando
se manifesta cada uma dessas fases. se dá a transformação na narrativa,
A manipulação só é possível quan- ou seja, o sujeito passa do estado de
do o destinador e o destinatário com- disjunção para o estado de conjunção
partilham os mesmos valores e haja com o objeto-valor, ou vice-versa.
uma certa cumplicidade entre ambos: Após a realização da performance,
para isso, é preciso que o destinador chega o momento da sanção, quando
manipule o destinatário usando pelo o sujeito será julgado pela transfor-
menos uma forma de manipulação das mação de estado. Existem dois tipos
quatro previstas pela teoria. São elas: de sanção: a cognitiva e a pragmáti-
a) sedução: cria-se uma imagem posi- ca. A sanção cognitiva é o reconhe-
tiva do destinatário, levando-o a que- cimento da realização da ação do
rer-fazer algo. Por exemplo: elogiar a sujeito, bem como seus valores, que
bondade de uma pessoa para fazer podem ser definidos como verdadeiro
com que ela lhe empreste dinheiro; 143
(parece e é), falso (não parece e não
b) provocação: cria-se uma imagem

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é), mentiroso (que parece, mas não é)
negativa do destinatário levando-o a ou secreto (não parece e é). Segundo
dever-fazer. Aqui, um exemplo seria Fiorin (2009), é nessa fase da sanção
duvidar que uma pessoa consiga es- cognitiva que muitas máscaras caem
tacionar o carro em uma vaga peque- e muitos segredos são revelados.
na. Assim, a pessoa se sente desafiada
e ela sente que deve realizar a ação; c) Na sanção pragmática, o sujeito
Intimidação: neste caso, o destinador- pode ser julgado pelo destinador-jul-
-manipulador oferece um objeto-va- gador de forma positiva e receber
lor negativo ao destinatário, fazendo uma recompensa, ou de forma nega-
com que ele deva-fazer. Exemplo: um tiva e receber uma punição.
ladrão armado pede o dinheiro e ame- A sanção pragmática é um juízo
aça o sujeito de morte; d) tentação: epistêmico, proferido pelo des-
aqui o destinador-manipulador ofe- tinador-julgador sobre a confor-
SELINFRAN

midade dos comportamentos e, estabelecidos no início da ação, con-


mais precisamente, do programa forme foi explicado anteriormente.
narrativo do sujeito performante
em relação ao sistema axiológi- A organização desses três percur-
co [...] implícito ou explícito pelo sos resulta no que a semiótica de-
menos tal como foi atualizado no nomina esquema narrativo canônico:
contrato inicial (GREIMAS; COUR- “[...] modelo hipotético da estrutura-
TÉS, 1983, p. 389). ção geral da narrativa [...] a partir da
A um enunciado de fazer, que rege qual são examinadas as expansões e
hierarquicamente um enunciado de variações e estabelecidas as compa-
estado, define-se o programa narrati- rações entre as narrativas” (BARROS,
vo, que constitui a relação entre su- 1994, p. 36).
jeito e objeto que envolve estados e A fim de conhecermos melhor este
transformações. Cada programa é objeto, decidimos analisar o game As-
uma partícula mínima que, encadea- sassin´s Creed Revelations, cuja nar-
da em diversas ações, resulta em um rativa se constrói em coautoria com o
percurso narrativo que pode ser se- enunciatário- jogador no percurso do
parado em três tipos: o percurso do jogar, por meio de pressupostos da
sujeito, o percurso do destinador-ma- teoria semiótica de linha francesa e de
nipulador e o percurso do destinador- pesquisas da área da comunicação e
-julgador. do entretenimento.
O percurso do sujeito é constituí- Murray (2003, p. 149) levanta a
do pelos programas de competência questão de até que ponto somos auto-
e de performance. “A atribuição de res da obra que vivenciamos. A autora
competência modal ao sujeito, para explica que autoria nos meios eletrô-
levá-lo a fazer,constitui a manipulação nicos é procedimental, o que significa
propriamente dita e pressupõe o con- escrever as regras pelas quais os tex-
144 trato fiduciário” (BARROS, 2002, p. tos aparecem, tanto quanto escrever
37). os próprios textos.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

O percurso do destinador-mani- Significa escrever as regras para o


pulador é a etapa inicial da ação. É o envolvimento do interator, isto é,
destinador-manipulador que determi- as condições sob as quais as coi-
na os valores que o destinatário bus- sas acontecerão em respostas as
ações dos participantes. Significa
cará, bem como os valores modais
estabelecer as propriedades dos
que ele utilizará para a obtenção do
objetos e dos potenciais objetos
objeto-valor. no mundo virtual, bem como as
O percurso do destinador-julgador fórmulas de como eles se relacio-
é a etapa final da ação, a quem com- narão uns com os outros. O autor
pete julgar, no final, a transformação procedimental não cria simples-
de estado, se a performance do sujei- mente um conjunto de cenas, mas
um mundo de possibilidades nar-
to receberá sanção cognitiva ou prag-
rativas. (MURRAY, 2003, p. 149)
mática, de acordo com os contratos
SELINFRAN
O jogo eletrônico Assassin´s Creed a figurativização do actante sujeito da
Revelations é exemplo disso, pois e narrativa.
considerado um gênero midiático es- Nesse caso, o jogo Assassin´s Cre-
truturado pela linguagem audiovisu- ed Revelations é o destinador mani-
al, por isso produzido como um texto pulador, que através da manipulação
sincrético, sua narrativa se constrói por sedução, faz com que o jogador
em coautoria com o enunciatário- jo- (destinatário) seja modalizado pelo
gador no percurso do jogar. Os textos querer-fazer jogar o game para par-
sincréticos, segundo Médola (2009, p. ticipar da narrativa. Por sua vez, o
401-402) são “...constituídos pela utili- destinatário é modalizado pelo que-
zação de duas ou mais linguagens de rer e dever-fazer , pois ele quer jogar
manifestação que interagem, forman- e deve seguir as regras do jogo para
do um todo de significação” . passar pelos obstáculos e concluir as
Os jogos eletrônicos podem ser missões euforicamente. Caso o su-
analisados pelos estudos semióticos, jeito jogador não consiga cumprir as
principalmente por serem textos ver- missões que lhe são destinadas atra-
bovisuais ou multimodais, imbricados vés das instruções, sua experiência de
em estruturas complexas que formam jogo será disfórica e ele não obterá o
um único enunciado dotado de sen- objeto-valor, que é zerar o jogo com
tido (FIORIN, 2008, p. 77). Segundo sucesso.
Fiorin, a semiótica discursiva e narra- Através de uma relação entre dois
tiva se ocupa de manifestações dis- actantes na sintaxe narrativa, encon-
cursivas em textos de diversas lingua- tramos dois enunciados elementares:
gens. enunciados de estados, que estabe-
lecem uma relação de junção (con-
O PERCURSO NARRATIVO DE junção ou disjunção) do sujeito em
EZIO AUDITORE relação ao objeto-valor da estrutura
narrativa; enunciados do fazer, que 145
A partir do ato de jogar, que pode-
mos considerar uma prática semióti- mostram a transformação do enun-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


ca, entendemos que o jogador (sujei- ciado de estado ou enunciado do fa-
to virtual) realiza uma performance zer. Fiorin (2009, p. 22), entretanto,
(jogar) manipulado pelos valores im- alerta que não se pode confundir su-
postos pelo destinador-manipulador jeito com pessoa e objeto com coisa
(regras/ jogo digital) para obter um material.
objeto-valor e a sanção positiva do Sujeito e objeto são papéis narra-
destinador (concluir o jogo seguindo tivos que podem ser representa-
um conjunto de regras). Nas narra- dos num nível mais superficial por
tivas de jogos digitais, chamamos o coisas, pessoas ou animais [...] Os
ator herói jogável de avatar e os de- textos não são narrativas míni-
mas. Ao contrário, são narrativas
mais personagens, os coadjuvantes,
complexas, em que uma série de
de NPC´s (Non Player Character). O
enunciados de fazer e ser (de es-
avatar, dessa forma, é como se fosse tados) estão organizados hierar-
SELINFRAN

quicamente. de Ezio, sujeito virtual que viaja para


Grande parte da narrativa no jogo Masyaf (local onde se passa a histó-
é manifestada através das cutsscenes ria do primeiro jogo) para descobrir o
ou cinematics, termos em inglês que segredo que se esconde na Bibliote-
são definidos como “a brief, non- ca de Altair, o seu ancestral.Ezio está
interactive interlude in a game. Usually figurativizado como um homem mais
used between levels to advance a velho, andar mais lento e encurvado,
game´splot”1 (ORLAND; STEINBERG; barba e cabelos brancos e armadura
THOMAS, 2007, p. 22), que são cenas com capuz, que impõe respeito, típi-
não jogáveis que mostram pequenas ca da ordem dos assassinos. Durante
narrativas para que acompanhemos o jogo, é possível trocar a armadura
o enredo. Quando estamos em modo com um capuz e que também traz
jogador, quando o sujeito-jogador uma máscara para que ele se esconda
comanda os movimentos do avatar, em missões secretas.
também é possível compreendermos Como sujeito virtual, o ator Ezio,ac-
o desenvolvimento narrativo pelos tante instalado na categoria de pessoa
diálogos e as missões. da enunciação, ainda em disjunção
Antes de conhecermos o percur- com objeto-valor, sofre manipulação
so de Ezio, devemos lembrar que ele em dois momentos pontuais na nar-
está nas memórias de Desmond Mi- rativa. Antes de iniciar a história, Ezio
les, sujeito de estado que está preso é manipulado pelo que neste nível de
à máquina Animus, destinador-mani- análise denominamos destinador-jo-
pulador, para tentar descobrir os se- gador que está de posse do controle
gredos que envolvem a Maçã do Éden do console.
pelas memórias de seus ancestrais. Se Desmond manipula Ezio, que está
começamos o jogo no Modo História, acessando suas memórias, e por esse
a primeira cena é uma cutscene em motivo, Ezio é manipulado por sedu-
146 que estão os atores Desmond Miles e ção para desenvolver performances
16, antecessor de Desmond. Através no jogo (cumprir as missões) para
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

dessa cena sabemos que a mente de adquirir competência (saber/poder


Desmond está se fragmentando e se fazer - coletar itens, vidas, munições,
ele não acordar poderá se perder para assassinos) para o cumprimento da
sempre. Para isso, modalizado por in- performance e no fim ser sancionado
timidação, Desmond deve-fazer a reu- por Desmond.
nião das memórias para conseguir sair
Quando Ézio chega a Masyaf, des-
da Animus.
cobre que a cidade está tomada por
Nesse momento do jogo, mani- templários. Descobre também que
pulado pela máquina Animus, o ator seu ancestral Altair havia criado uma
Desmond Miles acessa as memórias biblioteca e lá esconde um segredo
de EzioAuditore e assume opapel que os templários querem roubar, e
esse segredo pode conter informa-
1 “Uma cena não interativa em um jogo. Usualmente utilizada entre os
níveis do jogo para avançar”. ções sobre a Maçã do Éden.
SELINFRAN
Logo no início do jogo, quando Ezio ser sancionado euforicamente na si-
entra na tumba de Masyaf seguindo tuação de jogo.
o fantasma de Altair, porque ele guia Na Sequência II – A encruzilhada
os primeiros passos de Ezio para en- do mundo, por exemplo, Ezio encon-
sinar como ele pode se movimentar tra Yusuf, o líder local dos assassinos,
no jogo, encontra um rapaz que está que lhe ensina como usar a arma bi-
em na porta cheia de fechaduras, mas co-de-águia e por um tempo Ezio tem
não possui as chaves para abrir. Ele que seguir Yusuf pelo vilarejo para
conta a Ezio que um diário misterio- aprender o caminho. Assim, como o
so trouxe os templários até o local e a ator Yusuf, que é um NPC (Non Player
primeira missão é encontrar o capitão Character), ensina as regras para o
templário e roubar o livro. sujeito atualizado Ezio, ele também
A partir daí, Ezio sabe que, para ensina para o sujeito jogador que irá
acessar esses segredos na biblioteca manipular os botões do controle para
de Altair, irá precisar dos cinco discos que a ação possa ser concluída. Muni-
chave e que um deles está escondido dos de informações e instruções para
abaixo do palácio do sultão Otomano cumprir as tarefas, o jogador desti-
e do restante em Constantinopla. Ezio natário interfere na organização da
viaja até Constantinopla, que é o ce- narrativa a todo momento para usar
nário principal do jogo, e é recebido o modo instrucional e dotar o avatar-
por YusufTazim, líder dar Ordem dos -destinatário (Ezio) de competência
Assassinos do local e também conhe- para concluir as missões. O jogo pos-
ce um jovem estudante. Ezio, desco- sui nove sequências e, ao final de cada
bre que essas chaves foram escondi- missão concluída, Ezio sobe na torre
das por Nicolau Polo (pai de Marco para liberar a fumaça alaranjada pelo
Polo), então se dirige ao antigo posto território conquistado como domínio
comercial Polo onde conhece Sofia dos assassinos.
Sartor, uma jovem viajante italiana e Além de Yusuf, Ezio conta com a 147
colecionadora de livros pela qual pos- ajuda de Sofia Sator e também conhe-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


teriormente se apaixona. ce um estudante no cais, que logo ele
Ezio, como sujeito de estado atu- descobre ser filho do Sultão, chama-se
alizado, possui competência para o Solimão e tem 17 anos. Ezio enfrenta
cumprimento das tarefas, pois ele diversas missões para ajudar Solimão,
sabe e pode realizar a ação. Sua com- principalmente quando ouve uma
petência vem modalizada pelo saber/ conversa e desconfia que TarikBalerti,
querer/fazer do sujeito jogador, que, capitão dos janízaros, está traindo o
munido das informações através do sultão ao negociar armas com Manuel
quadro instrucional que lhes é apre- Paleólogo. Ezio descobriu a ligação
sentado, atua na narrativa através da entre as facções Templários/Bizan-
ação de comandos no controle para tinos e que Manuel estava formando
dar competência ao avatar para de- um exército na Capadócia e negocia-
senvolver situações performáticas e va armas com o Tarik. Na Capadócia,
SELINFRAN

Ezio também descobre que Manuel, Éden.


junto com seu tenente Shahkulu, está Sancionado positivamente por
iniciando o treino dos soldados com Desmond, e por si mesmo, Ezio nesse
as novas armas. Após a destruição das momento se sente com missão cum-
armas, Manuel tenta fugir pelas docas prida e começa a tirar a armadura.
da cidade, porém, não consegue e luta Essa cena figurativiza a sua saída da
com Ezio, que acaba matando Manuel ordem dos assassinos para viver uma
e recuperando, assim, a quinta chave vida normal ao lado de Sofia.
de Masyaf. Ao final, Ezio descobre que
quem estava por trás de tudo era o tio Após acessar todas as memórias de
de Solimão, Ahmet, que queria desti- Ezio e Altair e enfim localizar a Maçã
tuir o irmão e ficar com o trono. do Éden, Desmond ainda tem um en-
contro com o deus Júpiter, que explica
Conhecer os segredos da bibliote- a ele que no começo dos tempos ele,
ca de Altair e o paradeiro da Maçã do com a ajuda de Juno e Minerva, cons-
Éden instauram o querer na transfor- truíram a Maçã do Éden para proteger
mação de estado de Ezio, que cumpre os seres humanos mas uma explosão
cada missão até encontrar as cincos quase dizimou a civilização. Depois,,
chaves. Cada chave traz memórias de foi reconstruído o mundo com os so-
Altair, que Ezio consegue acessar e a breviventes e a Maçã do Éden deve
cada fragmento de história, ele toma ser levada a um cofre para salvar a
mais conhecimento do que aconteceu humanidade quando for preciso.
no passado.
Para finalizar o percurso de Ezio NARRATIVAS E INTERAÇÕES
Auditore, quando ele possui todos os
O jogo Assassin’s Creed Revelations
cinco discos chave que levam à biblio-
é o destinador manipulador, que, por
teca, Ahmet, tio de Solimão, assume o
meio da manipulação por sedução, faz
papel actancial de manipulador e ma-
148 com que o jogador (destinatário) seja
nipula Ezio por intimidação ao forçá-
modalizado pelo querer-fazer (jogar
-lo a entregar as chaves, caso contrá-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

o jogo) para participar da narrativa.


rio, ele mataria Sofia. Modalizado pelo
Além disso, o destinatário é modali-
dever fazer e pelo contrato estabele-
zado pelo querer/dever, pois ele deve
cido, Ezio leva as chaves até o castelo
passar pelos obstáculos e concluir as
e as entrega a Ahmet, e lá ele desco-
missões euforicamente para adquirir
bre que a moça que ele prendia e es-
competências. Caso o sujeito jogador
tava encapuzada não era Sofia. Ezio
não consiga cumprir as missões que
avista Sofia presa por uma corda e a
lhe são destinadas pelas instruções,
liberta. Depois disso, vai atrás de Ah-
sua experiência de jogo será disfórica
met e recupera as chaves de Masyaf.
e ele não obterá o objeto-valor, que é
Com elas, Ezio agora sujeito realizado,
zerar o jogo com sucesso.
abre a porta e encontra na biblioteca
o esqueleto do próprio Altair, sentado Além da motivação pela diversida-
na cadeira e, ao lado dela, a Maçã do de de papéis temáticos e actanciais,
SELINFRAN
outras motivações modalizam a mu- pois as combinações binárias deter-
dança de estado dos sujeitos e os minadas pelo programador já previam
levam a agir, porque eles estão sob “acidentes”.
efeitos manipulatórios, pautados na Dentro de um jogo como o Assas-
intencionalidade. Aqui, há o imbrica- sin’s Creed Revelations, ou qualquer
mento entre as modalizações mani- outro, o acidente é uma das estraté-
pulatórias do nível narrativo e o re- gias de adesão que fazem o jogo fazer
gime da manipulação proposto por sentido como jogo e como entreteni-
Landowski. Ambos transformam esta- mento imersivo. Quando o jogador
dos de alma por meio da persuasão, e, se propõe a jogar, ele quer fazer seu
na interação, a manipulação também próprio jogo, desenhar seus caminhos
segue o mesmo princípio da relação e, para isso, conta com a imprevisibi-
entre sujeitos e entre sujeito e objeto lidade que ele pretende encontrar em
no nível narrativo do percurso gerati- sua prática.
vo de sentido.
Os imprevistos dentro do jogo so-
O regime da manipulação parte da mente acontecem quando o jogador
pressuposição de que o sujeito tem erra o golpe, aciona o botão errado,
uma intencionalidade ao agir, e suas entra em um cenário nulo, golpeia um
ações são pautadas também pela re- personagem desnecessariamente, faz
gularidade. O sujeito manipulado e um caminho diferente do que previa,
modalizado pelo querer/fazer ou de- encontra NPC’s onde supunha que
ver/fazer realiza uma ação em que não teria, deixa de adquirir os itens
ocorre uma mudança de estado. É um por não fazer as sidesquests2, entre
intercâmbio de valores. O manipula- outros casos. O que chamamos de
dor convencerá o manipulado a cum- imprevistos/acidentes aqui, na verda-
prir o programa que lhe for aplicado e de, efeitos de sentido no nível do pa-
tentará seduzir o manipulado, incutin- recer, ou seja o regime do acidente é
do-lhe uma motivação para realizar a usado como se fosse um truque para 149
ação. dar a sensação de coautoria no jogo,

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


O efeito de sentido de liberdade e mas, na realidade, ele é falso, não exis-
coautoria também podem ser viven- te, é pressuposto e funciona porque é
ciados quando o jogador explora os pautado em outro regime: o da pro-
cenários por quanto tempo quiser, gramação.
para descobrir como se movimentar, Afinal, é por isso que os jogadores
que caminho tomar, o que o cenário querem jogar, para participarem da
traz em termos de design e em ter- narrativa. Não que ele não contribua
mos de jogabilidade também. Cami- para essa produção textual, pois a re-
nhar com o avatar por onde ele quiser alização do jogo é única para cada jo-
manifestará no jogo o efeito de sen- gador, mas ele acessa caminhos pro-
tido de imprevisibilidade, característi- gramados, sempre.
cas do regime do acidente, que se es-
tabelece somente no nível do parecer, 2 Sidequests são as missões paralelas do jogo para aquisição de compe-
tências, mas não necessariamente obrigatórias.
SELINFRAN

A partir do momento do jogo em si, uma temporalidade e espacialidade


quando já estamos de posse do con- diferentes dentro da história.
trole e envolvidos com a narrativa e O regime da programação, apesar
as missões, o regime de interação que da estabilidade e regularidade que
nos acompanha primordialmente e, beiram o óbvio em termos de organi-
arriscamos até dizer, logicamente, é zação textual e social, pode ser con-
o regime da programação. Nenhum siderado o regime de interação com
regime se encaixaria tão bem. A pro- uma das melhores estratégias de ade-
gramação pressupõe a regularidade são ao jogo. Juntamente com o regime
como princípio fundamental, ou seja, do acidente, ele faz um contraponto
a constância de relações, as repeti- interessante entre o efeito de sentido
ções, a rotina, o regular. de autoria e a realidade de jogo pro-
Na programação não há riscos, im- gramada. Entendemos melhor quan-
previstos, surpresas, pois, como o pró- do situamos os papéis temáticos.
prio nome diz, está tudo programado,
em alguns tipos de texto, chegando CONCLUSÃO
até a insignificância, de tão previsível.
O jogo eletrônico, aqui neste artigo
O papel temático, por regular vidas
especificado como jogo para console,
estáveis, rege a programação, diferen-
é um texto sincrético, transmidiático e
temente dos papéis actanciais, que
traz em sua constituição enunciativa
possuem certa flexibilidade por conta
aspectos da narrativa contemporânea
das modalizações e não são estáticos.
como hibridismo e complexidade. Ob-
Para que um sujeito atue sobre servamos que ao fazer uma análise de
um objeto, é preciso que esse obje- sua estrutura narrativa básica, com os
to esteja programado, como explica fundamentos do percurso gerativo do
Landowski (2014, p. 22). Ele nos dá o sentido, conseguimos compreender
exemplo do conto popular, onde a re- não só como a narrativa se organiza,
150 gularidade pode ser bem compreen- mas também como é possível identifi-
dida por meio dos papéis temáticos car o papel do jogador, que participa
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

funcionais de cada personagem, os da narrativa como sujeito do fazer, e,


quais sempre permanecerão os mes- ao atuar no jogo, destinador manipu-
mos. Por exemplo: um rei será somen- lador. O jogador só consegue interagir
te rei, um pescador, pescará, entre ou- através da narrativa, pois tratando-se
tros (2014, p. 23). de uma interação em ato, sua cons-
Assim como no conto, alguns pa- trução de sentido sofre interferência
péis temáticos nos jogos digitais tam- direta de quem a manipula em todo
bém são os mesmos, exceto por um o percurso narrativo. Durante o jogo,
detalhe quando falamos sobre As- o sujeito-jogador assume o papel de
sassin’sCreedRevelations: neste jogo, destinador-manipulador, pois ele co-
o sujeito jogador pode assumir três manda os movimentos dos perso-
papéis temáticos distintos entre si, e nagens dentro do jogo. E da mesma
cada papel temático está inscrito em forma é destinatário, porque é ma-
SELINFRAN
nipulado pelas regras do jogo para nifesta sua significação no ato de jo-
cumprir as missões e transformar a gar, que é o cerne principal de nossa
narrativa em ato. A partir dessa es- pesquisa.
quematização, é possível investigar
mais a fundo os regimes de interação
e como uma narrativa complexa ma-

REFERÊNCIAS
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______. Semiótica e comunicação. In: DINIZ, M. L. V. P.; PORTELA, J. C. (orgs.). Semiótica e mídia: textos,
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______. Elementos de análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2009.
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LANDOWSKI, E. As interações arriscadas. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2014.
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SCHUYTEMA,P. Design de games: uma abordagem prática. Tradução de C. M. Behassof. São Paulo: Cenga-
ge Learning, 2008. 472 p.
151

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


SELINFRAN

A TRAJETÓRIA TEXTUAL E AS ENTEXTUALIZAÇÕES DE DUAS CAMI-


SETAS ESPORTIVAS EM TEMPOS DE COPA DO MUNDO

Juliana Tito Rosa FERREIRA


Glenda Cristina Valim de MELO

RESUMO
As mulheres brasileiras, em tempos de Copa do Mundo 2014, foram retratadas em
dois objetos de consumo polêmicos que geraram protestos e se espalharam na
web. Nossos objetivos são os de identificar a trajetória textual e analisar algumas
entextualizações em contextos online/digital. Para isso, esta pesquisa se emba-
sa nos atos de fala performativos (AUSTIN ([1962] 1990), na releitura de Derrida
([1972] 1988), nos estudos de gênero e sexualidade das Teorias Queer (LOURO,
2004; BUTLER, 1997, 2003), no conceito de trajetória textual (BLOMMAERT, 2010)
e nas entextualizações propostas por Baumam e Briggs (1999) e Melo e Moita Lo-
pes (2015). O instrumento de geração de dados são os dois textos publicitários e
os textos encontrados nas mídias digitais/online. As categorias de análise são as
pistas indexicais propostas por Wortham (2001).
PALAVRAS-CHAVE: Gênero e brasilidade; camisetas da Copa do Mundo;
trajetória textual; entextualização; teorias queer.
ABSTRACT
152 The Brazilian Women, during the 2014 World Cup organization, were presented in
two polemical consumer objects that caused protests which spread on the web.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Our objectives are to identify the textual trajectories and analyse some entextua-
lizations in online contexts. In order to do it, this research is based on the
performative speech acts (AUSTIN ([1962] 1990; DERRIDA ([1972] 1988), in
gender and sexuality Queer Theories (LOURO, 2004; BUTLER, 1997, 2003), on the
concept of textual trajectory (BLOMMAERT, 2010) and on the definition of entex-
tualizations proposed by Baumam and Briggs (1999) and Melo and Moita Lopes
(2015). The data generation instrument are the two advertising texts and the texts
found on digital/online media. The analysis categories are indexical clues proposed
by Wortham (2001).
KEYWORDS: Gender and Brazilianness; T-shirts of the 2014 World Cup; Textu-
al trajectory; Entextualization; Queer Theory.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO novo capitalismo, que necessita
de novos conhecimentos para en-
A sociedade que entra no século frentá-lo. Como os pesquisadores
XXI é caracterizada por um tipo de da área da linguagem podem pro-
Modernidade diferente da que en- duzir conhecimento sem se envol-
trou no século XX. Nesse período de verem com essas questões? Se o
um século a outro aconteceram duas fizeram em tempos passados, as
grandes guerras mundiais, que muda- mudanças que vivemos, no mo-
ram o cenário tecnológico, deixando mento atual, não nos deixam es-
os sujeitos sociais mais confusos em paço para respirar: é tempo de
relação às suas crenças, ideologias, repensar os percursos epistemo-
lógicos que têm nos orientado.
valores e aumentando os conflitos
(MOITA LOPES, 2004, p.162).
existenciais. Desta forma, o sujeito
se percebe perdido dentre tantas re- Além de não ser mais possível essa
ferências, confuso diante de tantas e crença de que há um afastamento te-
tão rápidas mudanças, cético quanto órico necessário, em tempos Moderni-
à estabilidade de valores. dade Tardia (GIDDENS, 1990) também
se desvenda a crença de neutralida-
Neste cenário, a Modernidade Re-
de nas pesquisas. Para Moita Lopes
flexiva (GIDDENS, 1991) nos propor-
(2004, p.159), as Ciências Humanas
ciona a mudança de olhar do centro
e Sociais estão vivendo uma “grande
para a margem, possibilitando deba-
ebulição”, que:
tes sobre temáticas apagadas na Mo-
dernidade, tais como gênero, raça, se- [...] se explica por uma série de
xualidade e classe social. Intrínseca a mutações experienciadas na vida
ela está a possibilidade de reflexivida- contemporânea que requerem
teorias e metodologias novas e
de sobre nós mesmxs1, ou seja, refle-
que, portanto, põem em xeque
tir sobre corpos considerados abjetos modos de produzir conhecimen-
na perspectiva de Butler (2003), que to que não dão conta dessas mu- 153
são mulheres, negrxs, transgêneros, danças. Além disso, fala-se cada
deficientes, etc. É neste contexto de

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


vez mais, sobre hibridismo teórico
inserção do sujeito social que a plura- metodológico, sobre o fim do ide-
lidade aparece, mas em grande parte al de neutralidade e objetividade
ainda ocupa a margem da sociedade. na produção do conhecimento,
Para Moita Lopes (2004), estamos vi- sobre a obrigação de questionar
vendo todas as práticas do ponto de vis-
ta ético (inclusive aquelas de pes-
[...] tempos em que muitas cer- quisa) e sobre a responsabilidade
tezas estão sendo questionadas para com os outros. (MOITA LO-
em um mundo de risco iminente PES, 2004, p. 159).
(ecológicos e outros), de incerte-
zas (de seres pós-orgânicos, por Estamos vivenciando uma nova
exemplo) e em um mundo eco- construção de pesquisador, este do
nômico que muitos chamam de contemporâneo, que questiona e re-
1 Utilizamos a letra x para desmarcar gênero masculino e feminino das flete sobre o que faz. Dentro do con-
palavras.
SELINFRAN

texto de fim do ideal de neutralidade, necessária a formação de mais médi-


impossibilidade de distanciamento te- cos, para educação, a qualificação de
órico, reflexividade sobre nós msmxs, professores, enfim, argumentos prós
hibridismo teórico metodológico, per- e contras bombardearam as redes
cebe-se que estamos em um momen- sociais em posições binárias. Nesse
to em que fazer pesquisa implica em momento, juntamente com a ebulição
fazer política. dos protestos, emergiram assuntos di-
Esta investigação compreende ain- versos, tais como questões sobre pre-
da que para fazer pesquisa é neces- conceitos, direitos de igualdade, cotas
sário a busca de conhecimentos em para mulheres no senado e também o
outras áreas, além da Linguística, bus- turismo sexual em território brasileiro.
cando assim um caráter interdiscipli- Nesta ebulição característica de
nar. Segundo Bronckart (1999, p.31), é nossos tempos, há no senso comum
preciso compreender “as ações huma- uma construção discursiva, perfor-
nas em suas dimensões sociais e dis- mativa e cristalizada de que a mulher
cursivas constitutivas”. Questões que brasileira é vista como objeto sexual,
envolvem práticas sociais incluindo disponível, acessível, fácil, mercadoria
gênero, raça e classe social, são com- que se vende ou troca. Ouvimos nos
plexas demais para serem analisadas noticiários que mulheres brasileiras
apenas sob a perspectiva teórica de são abusadas sexualmente; a publici-
uma única área. dade reforça a imagem da mulher que
se vende por dinheiro ou renuncia a
Considerando, especificamente, as seus valores morais por um cartão de
questões de gênero, nesta investiga- crédito sem limites, trocando sua inte-
ção trazemos para o centro as mu- gridade por sapatos, bolsas, joias, etc.
lheres brasileiras, que em tempos de Vemos nas mídias diversas a veicula-
Copa do Mundo 2014, foram homena- ção de discursos que a mulher brasi-
geadas em duas camisetas que gera- leira tem um certo borogodó, algo de
154 ram polêmica e protestos online em quente, tropical, sedutor, que mostra
diversas partes do mundo.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

o corpo curvilíneo para atrair atenção,


Nesse período, antecedente à Copa o desejo; afinal, o senso comum já di-
do Mundo no Brasil, protestos foram zia: tudo que é bonito deve ser mos-
feitos por parte da população brasi- trado.
leira, que saiu às ruas contra a Copa Essas construções discursivas e
do Mundo, já que os investimentos em performativas já cristalizadas sobre as
estádios, infraestrutura, etc. seriam al- mulheres brasileiras fomentam nossa
tos, além dos superfaturamentos di- vontade de pesquisar essa temática.
vulgados em vários jornais. Nas ma- Ao nos depararmos com as camisetas
nifestações, os participantes pediam sobre o evento mundial com o intuito
investimentos em saúde, educação, de homenagear esses corpos, tivemos
e outros quesitos básicos que estão a certeza de que esses textos publici-
em falta no Brasil. Outros eram a favor tários fariam parte do corpus de nossa
do evento e diziam que para saúde é pesquisa, porque nos indignamos, em
SELINFRAN
pleno século XXI, com construções LINGUAGEM COMO PERFORMAN-
ofensivas mascaradas pela beleza dos CE
corpos das mulheres brasileiras.
Nesta seção, apresentamos um dos
OBJETIVOS pilares desta pesquisa, a linguagem
O lançamento das camisetas des- como performance, proposta inicial-
tinadas ao público norte-americano mente por Austin ([1962] 1990), que
gerou uma polêmica que se materiali- se preocupava com a linguagem ordi-
zou em protestos e se espalharam na nária, ao contrário da filosofia da lin-
web em várias línguas e países. guagem tradicional. Para o estudioso,
não havia fronteiras entre a Filosofia e
Com base neste contexto, nosso
a Linguística, pois ambas fazem par-
objetivo geral é: identificar a trajetó-
te de um mesmo campo. Nas palavras
ria textual brasileira de dois objetos
dele:
de consumo (camisetas para a copa
do mundo 2014). Nosso objetivo es- Onde está a fronteira? Há uma em
pecífico é: analisar as entextualiza- alguma parte? Você pode colo-
car esta mesma questão nos qua-
ções dos objetos de consumo em três
tro cantos do horizonte. Não há
textos diferentes: o jornal O Estado de
fronteira. O campo está livre para
São Paulo, o site de variedades UOL e quem quiser se instalar. O lugar é
o blog Mulheres contra o feminismo: do primeiro que chegar. Boa sorte
orgulhosas e felizes de sermos mulhe- ao primeiro que encontrar algu-
res. ma coisa (AUSTIN, [1962] 1990, p.
Sendo assim, apresentamos as se- 134).
guintes perguntas de pesquisa: qual é
Nas primeiras conferências do estu-
a trajetória textual brasileira dos ob-
dioso, ele nos mostra que a linguagem
jetos de consumo camisetas para a
está para além da descrição e apre-
Copa do Mundo? Que entextualiza-
senta a proposta dos atos de fala que
ções sobre as mulheres brasileiras são 155
são compreendidos como atos de fala
observadas durante a trajetória textu-
constatativos, aqueles que descrevem

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


al dos textos analisados?
algo, sendo verdadeiros ou falsos, ou
Para responder tais questionamen- atos de fala performativos, podendo
tos, embasamos nos estudos dos ser bem ou mal sucedidos, indicando
atos de fala performativos propos- uma ação que é realizada. Para o au-
tos por Austin ([1962]1990) e Derri- tor:
da ([1972]1988), nos trabalhos sobre
o termo “performativo” será usa-
gênero e sexualidade propostos pelas
do em uma variedade de formas
Teorias Queer (LOURO, 2000, 2001, e construções cognatas, assim
2004; BUTLER, 2003), na proposta como se dá com o termo “impe-
de trajetória textual de (BLOMMAERT, rativo”. Evidentemente que este
2010) e nas entextualizações (BAU- nome é derivado do verbo inglês
MAN e BRIGGS, 1990; BLOMMAERT, to perform, verbo correlato do
2005; 2006 e MELO e MOITA LOPES, substantivo “ação”, e indica que
2013, 2014 e no prelo). ao se emitir o proferimento está
SELINFRAN

se realizando uma ação, não sen- proferimento de certas palavras,


do, consequentemente, conside- por certas pessoas e em certas
rado um mero equivalente a dizer circunstâncias: e além disso, que
algo. (AUSTIN, [1962] 1990, p. 23). as pessoas e circunstâncias par-
ticulares, em cada caso, devem
Austin rompe com o conceito de lin-
ser adequadas ao procedimento
guagem até então estabelecido. Para específico invocado. O procedi-
o autor, no momento de uma enun- mento tem de ser executado, por
ciação, está acontecendo mais do que todos os participantes de modo
uma simples fala, ou seja, alguém pro- correto e completo. (AUSTIN,
fere algo, uma ação acontece. A de- [1962] 1990, p. 31)
rivação do verbo to perform cunha Contudo, esse mesmo padre esta-
o termo performativo, portanto, atos ria impossibilitado de proferir um ato
de fala performativos são aqueles que de fala performativo sentenciando um
expressam uma ação no momento de réu à condenação, porque, conside-
sua enunciação. rando Austin, ele não preencheria as
Ainda na proposta do filósofo da condições especiais, como por exem-
linguagem, seriam necessárias condi- plo ser juiz de uma vara criminal.
ções especiais para que esses atos de Posteriormente, ao refletir sobre
fala performativos se realizassem, tais sua própria teoria de atos de fala, o
como uma pessoa adequada, um pro- próprio Austin ([1962] 1990) reconsi-
cedimento convencionalmente aceito, dera e “[...] desconstrói esta dicoto-
uma circunstância adequada. Nas pa- mia entre performativo/ constatativo
lavras de Austin ([1962] 1990, p. 31): ao considerar todos os atos de fala
“o procedimento deve ser executado, como performativos, excluindo, con-
por todos os participantes de modo tudo, a estiolação, ou seja, o uso da
correto e completo”. Sem estas con- linguagem no palco, na ficção, etc.”
dições, ao proferir, não se realiza. Para (MELO; MOITA LOPES, no prelo).
156 entendermos melhor essas condições,
pensemos em um juiz de paz ao afir- Já Derrida ([1972] 1988) mostrou
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

mar a um casal heteronormativo: “Eu não ser necessário existir pessoa es-
vos declaro marido e mulher”, ou um pecífica, nem ação prévia, para repe-
padre, representante do catolicismo, tir esses atos de fala performativos.
ao dizer: “Eu te batizo em nome do Sendo assim, ele existe, ganha força,
Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Nas se sedimenta e se torna uma verda-
duas situações ambos fazem um pro- de, porque é repetido e citado inú-
ferimento que ao ser enunciado reali- meras vezes através da iterabilidade e
za-se e atendem às condições espe- da citacionalidade. Para o autor, é im-
ciais sugeridas por Austin: possível recuperar o primeiro ato de
verdade dentro deste emaranhado de
Deve existir um procedimento
atos de fala que são repetidos. Derri-
convencionalmente aceito, que
apresente um determinado efei- da questiona de quem é a responsa-
to convencional e que inclua o bilidade já que não se consegue recu-
perar o primeiro ato de fala proferido.
SELINFRAN
Portanto, embasados nessa teoria de gênero são múltiplas, proporcio-
dos atos de fala performativos, nesta nando diversas maneiras de encená-
pesquisa, a linguagem é vista como -las. Além disso, para a autora, uma
ação. Ao enunciarmos, uma ação está mulher é um conjunto, um plural e
sendo realizada. Estes pressupostos não singular. No caso específico das
são importantes para compreender- mulheres brasileiras, observamos que
mos também as Teorias Queer, gênero a nacionalidade perpassada por gê-
e brasilidade, como veremos a seguir. nero constrói uma mulher brasileira
hipersexualizada. Compreendemos,
GÊNERO E BRASILIDADE PELO então, que tais construções discursi-
VIÉS DAS TEORIAS QUEER vas, históricas, sociais e performativas
sobre as mulheres brasileiras são re-
Nesta seção, apresentaremos o ou-
petidas na web, na tv, na mídia nacio-
tro pilar teórico de nossa investigação,
nal e internacional ao longo de anos,
as Teorias Queer, que são bastante
e enfatizam uma mulher brasileira, hi-
recentes e buscam contestar as dico-
persexualiza, com corpo curvilíneo, da
tomias e/ou binarismos que trazem
pele morena à negra, disponível para
sofrimentos e mitigam as pessoas.
o sexo.
Esses binarismos privilegiam no lugar
que representam, nas práticas sociais, É sob a ótica dessa teoria que
a supremacia do primeiro em relação olharemos essas intersecções de gê-
ao segundo, por exemplo: homem vs. nero e nacionalidade que apontam
mulher, branco vs. negro, masculino para Discursos de sexualidade sobre
vs. feminino, rico vs. pobre. as mulheres brasileiras representadas
nos dois objetos de consumo. Esses
Segundo Salih (2012) e Louro
textos viajaram pela internet, segui-
(2004), as Teorias Queer se origina-
ram uma longa trajetória textual e se
ram de uma aliança entre três movi-
entextualizaram em diferentes sites.
mentos: teorias feministas, teorias
157
pós-estruturalistas da linguagem e
INSTRUMENTAL TEÓRICO - ANA-
teorias psicanalíticas, que se questio-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


navam sobre o sujeito. “[...] o queer LÍTICO
não está preocupado com definição, Para Fabrício (2013, p. 144), vive-
fixidez ou estabilidade, mas é transi- mos em um momento de rapidez, li-
tivo, múltiplo e avesso à assimilação.” quidez contemporânea, onde textos
(SALIH, 2012, p. 19). Ou seja, o termo viajam rapidamente no tempo de um
queer não se restringe apenas aos clique ou um toque, “são encontros, e
que assumem uma homonormativi- desencontros, de toda ordem, promo-
dade, mas é muito mais abrangente, vidos pela tecnologia informacional,
criticando xs que colocam à margem midiática e digital, cujos tentáculos se
todxs aquelxs que são excluídxs por espraiam pelos quatro cantos do pla-
estarem fora do padrão considerado neta. [...]”.
central. Segundo a autora (p. 158) a traje-
Para Butler (2003), as identidades tória textual conecta “[...] diferentes
SELINFRAN

interlocutores em contextos distintos novo texto.


[...]”. Juntamente com o processo de
trajetória textual está o processo de METODOLOGIA E CONTEXTO DE
entextualização, pois, é por meio dela PESQUISA
que os textos viajam diferentes per-
A Copa do Mundo é um campeona-
cursos.
to internacional, no qual o país sede
Melo e Moita Lopes (2015), emba- atrai públicos de diferentes países,
sados em Blommaert (2010), compre- os olhares midiáticos se voltam mais
endem que: atentamente para o local que sedia
[...] tais textos e Discursos cir- o evento. Atualmente, em tempos de
culam e viajam velozmente pela Copa do Mundo 2014, duas camisetas
rede, carregando suas caracterís- esportivas, uma verde e a outra ama-
ticas históricas, agregando novos rela, que simbolizam as cores predo-
sentidos e promovendo a sociali- minantes da bandeira do Brasil, foram
zação de pessoas por meio de vá-
lançadas pela patrocinadora do even-
rios recursos semióticos [...]
to.
Nas palavras de Bauman e Briggs
(1990, p. 22) entextualização é “ [...] o A verde, feminina, tem uma figu-
processo de tornar o discurso passível ra ambígua, amarela, que pode ser
de extração, de transformar um trecho compreendida como um coração ou
de produção linguística qualquer em também como uma nádega com bi-
uma unidade – um texto – que pode quíni fio dental, e diz “I ‘Love’ Brazil”;
ser extraído do seu cenário interacio- a outra, em primeiro plano, traz o es-
nal”. Para os autores, a entextualiza- tereótipo difundido de uma brasileira
ção de um texto implica no descen- de biquíni e a expressão pejorativa
tramento de discursos, ou seja, é um “lookin’ to score Brazil”, no cenário do
processo transformacional em que Rio de Janeiro, conforme observamos
sentidos novos emergem, ideologias, na imagem a seguir:
158
poder, Discursos, são descentrados e
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

entextualizados.
Segundo Blommaert (2005) en-
textualização é o processo de retirar
um texto ou um pedaço dele do con-
texto e colocá-lo em outro contexto,
ou seja, materializá-lo. Nas palavras
de Blommaert (2006, p. 5): “[...] dis-
cursos retirados de seu ambiente de
interação e transmitidos em conjunto
com novas sugestões de contexto”.
Neste estudo, compreendemos, en- Figura 1- objetos de consumo camisetas

tão, entextualização como colocar um Nossos instrumentos de geração


trecho de um texto ou um texto em de dados são as duas camisetas e os
outro contexto, originando assim um
SELINFRAN
três textos que as entextualizaram: “[...] em algumas horas podemos cru-
“Camisas da Adidas tem duplo senti- zar o Atlântico, e em poucos minutos,
do e provocam revolta no governo”, textos, Discursos e línguas percorrem
no jornal Estadão; “Adidas lança ca- trajetos inimagináveis no passado. ”
misetas sobre a Copa com conotação Nossa pesquisa é de cunho etnográ-
sexual e causa polêmica”, no site de fico virtual, porque estamos em con-
variedades UOL; “Carnaval-Copa do texto online e retiramos nossos dados
mundo: Mulher brasileira é prostituta, da Internet. O processo se iniciou em
Brasil é terra de bundas e as camisas novembro de 2014 e se estendeu até
da Adidas”, no blog “Mulheres contra agosto de 2015 incluindo pesquisas
o feminismo: orgulhosas e felizes de sobre textos que entextualizaram as
sermos mulheres”. camisetas. Os seguintes critérios fo-
De acordo com Castells (2003, ram utilizados para selecionar os tex-
p. 8) “a internet é o meio de comuni- tos para análise das entextualizações:
cação que permite, pela primeira vez, sites em Língua Portuguesa brasileira,
a comunicação de muitos com muitos, porque as entextualizações podem
num momento escolhido, em escala apontar para os Discursos brasilei-
global. [...]”. Ou seja, a conexão entre ros sobre os textos em análise; as 10
pessoas e a trajetória de informações primeiras páginas do Google, porque
mundiais, só é acessível com a criação contemplava o período analisado de
da internet, especificamente na Web 24 de fevereiro de 2014 a 6 de março
2.0. Nesse sentido: do mesmo ano; o primeiro jornal que
a web constituída de blogs, redes
mostra a camiseta tal como aparece
sociais, grupos, etc. é também um no site da Adidas, o jornal O Estado de
espaço das “pequenas histórias”, São Paulo; um site de variedades com
nas quais temos a possibilidade algo diferente dos outros sites, UOL,
de tornar visíveis vidas que ainda que fez uma enquete sobre a retirada
se encontram à margem e com- das camisetas de circulação, obtendo 159
preender os posicionamentos in- 5003 votos, sendo 68% favoráveis a

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


teracionais nessas narrativas [...] retirada; um blog cuja audiência é fe-
(MELO, 2015, p. 162) minina, pois aponta para construções
A internet como espaço híbrido, discursivas para este público, “Mulhe-
no qual textos percorrem trajetórias res contra o feminismo: orgulhosas e
infinitas, pessoas comentam, curtem, felizes de sermos mulheres”.
descurtem; um espaço de convergên- Para análise da trajetória textual e
cia, pensamentos e posições propor- das entextualizações, utilizamos as
ciona debates sobre temáticas apa- pistas indexicais propostas por Wor-
gadas. Novas histórias são contadas, tham (2001), elas nos proporcionam
histórias antigas são recontadas, posi- entender o que o outro diz pela língua.
cionamentos são criados, acionados, Dentre as pistas indexicais sugeridas
a necessidade de ver e ser visto é ine- utilizaremos: referência, predicação,
rente a esse espaço diferente. Nas pa- citação, índices avaliativos e descrito-
lavras de Melo e Moita Lopes (2015),
SELINFRAN

res metapragmáticos. Os objetos de consumo percorre-


ram uma longa trajetória textual. O
A referência se trata do nome, do marco zero, ou seja, o lançamento pela
referencial, ou seja, o sujeito, o subs- multinacional foi apagado, então, não
tantivo que está ali, nas palavras de é possível encontrá-lo. Porém, esse
Melo e Moita Lopes (no prelo) as re- ato não impediu que os textos viajas-
ferências “[...] são os elementos do sem para outras línguas, tais como a
mundo ao qual o narrador se refere.” espanhola, a italiana, a francesa, a in-
A predicação caracteriza e qualifica glesa, etc.
os objetos, para Melo e Moita Lopes
(no prelo), a predicação é “[...] a ca- Encontramos marcas inicias da tra-
racterização de elementos menciona- jetória textual em Língua Portuguesa
dos pelo narrador”. A citação acon- em 24 de fevereiro de 2014. Ela teve
tece quando se puxa o discurso de seu ápice no dia 25 de fevereiro de
outro e coloca em sua própria fala; de 2014. A trajetória textual dos textos
acordo com Melo e Moita Lopes (no publicitários percorreu sites de jornais
prelo), a citação está sempre “[...] re- de grande circulação, tais como, no
lacionada a citação da fala do outro dia 24, O Globo, Estadão, no dia 25,
para recriar um momento de intera- Folha de São Paulo, etc.; jornais esta-
ção”. Os índices avaliativos são mar- duais e regionais: Paraná online, Jor-
cadores, conectivos, conjunções, que nal do Commercio, Correio Lageano,
sinalizam um determinado modo de Diário de Pernambuco, etc. Ainda nes-
falar; nas palavras de Melo e Moita Lo- ta trajetória textual, no dia 25, os dois
pes (no prelo), são “[...] itens lexicais, textos publicitários também viajaram
construções gramaticais, sotaque etc. para revistas: Brasileiros, Infomoney,
que caracterizam socialmente grupos Carta Capital, Rolling Stones, etc. A
sociais ou sujeitos sociais”. Os descri- trajetória textual também pode ser
tores metapragmáticos mostram que observada em blogs, no dia 25, “Di-
160 tipo de ação está no texto, os verbos ário do Nordeste”, blog do torcedor,
do dizer que são expressados, para “I (love) beach style”, no dia 26, “Mu-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Melo e Moita Lopes (no prelo) são lheres contra o feminismo”, no dia 05
“[...]usados pelo narrador para se re- de março, “A Cortesã”, etc. Durante
ferir ou predicar o que é contado na a Copa foram criadas páginas espe-
história.” cíficas para notícias da Copa, os tex-
A seguir apresentamos a análise tos também as percorreram, no dia
piloto da trajetória textual e especifi- 25, “Lance nete Copa 2014”, “Folha
camente da entextualização no blog na Copa”, etc. A trajetória textual dos
Mulheres contra o feminismo: orgu- textos publicitários também percor-
lhosas e felizes de sermos mulheres. reu, no dia 25, os sites de variedades:
Uol, R7, Ig, G1, Terra, etc.
ANÁLISE PILOTO DA TRAJETÓRIA Os múltiplos textos presentes na
TEXTUAL trajetória textual trazem à tona posi-
SELINFRAN
cionamentos através das entextua- ra, prostituta, de bundas, da Adidas)
lizações. Neste artigo, mostraremos e entrelaçadas pelo verbo de ligação
uma das entextualizações durante a (é), no presente do indicativo, suge-
longa trajetória textual, a de um blog rem uma imagem do Brasil em con-
que contesta o feminismo. texto mundial, na qual as mulheres
brasileiras são construídas como unas,
ANÁLISE PILOTO DO BLOG “MU- singulares, com ênfase na construção
LHERES CONTRA O FEMINISMO: sexual, apagando sua pluralidade. O
ORGULHOSAS E FELIZES DE SER- título do blog indexa sentidos de que
MOS MULHERES” as mulheres que vivem no país das
bundas são prostitutas e foram re-
O artigo de opinião foi intitulado tratadas pelas camisetas da Adidas.
“Carnaval – Copa do mundo: Mulher Tais construções discursivas apontam
brasileira é prostituta, Brasil é terra de para além da entextualização dos ob-
bundas e as camisas da Adidas”, pu- jetos de consumo, indicam a entextu-
blicado em 24 de fevereiro de 2014. alização da mulher brasileira.
Ao explorar o blog, observamos que
como plano de fundo há imagem de Os objetos de consumo são en-
uma mulher sentada lendo e a frase textualizados logo no início do artigo
em inglês “ladies against feminism”, de opinião, alinhado à esquerda, ante-
sinalizando o vínculo internacional cedido pela frase:
com mulheres que combatem o femi- Como muitos já sabem, a Adidas
nismo. O blog tem uma página tanto resolveu fazer camisas “homena-
no Facebook como no Twitter, porém, geando” a nossa cultura. Claro,
nossa pesquisa não olha redes so- com bundas. Vejam a imagem
abaixo: (BLOG, 2014)
ciais. Há um conjunto de textos, víde-
os, imagens, história em quadrinhos, As referências (Adidas, camisas,
ora produzidos pelxs participantes do cultura, imagens) e a predicação (com
próprio espaço, ora escritos por outr- bundas) sinalizam que, para o blog, há 161
xs, eles têm em comum críticas ao fe- uma única ótica pela qual o Brasil é

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


minismo e a culpa da mulher por qual- visto, que são as bundas. A caracte-
quer ação preconceituosa que sofre. rística que emerge quando se fala em
Apresentamos a seguir um trecho da Brasil, é intensificada pela figura de lin-
análise que se refere aos objetos de guagem ironia (claro, com bundas) e
consumo em estudo, a começar pelo também pelo advérbio de intensidade
título: (muitos). Além disso, o índice linguís-
Carnaval-Copa do Mundo: Mulher tico (claro), também indexa o sentido
Brasileira é prostituta, Brasil é ter- de que nos eventos mundiais citados
ra de bundas e as camisas da Adi- acima (Carnaval, Copa do Mundo), o
das (BLOG, 2014) corpo da brasileira é sempre exposto.
As referências (Carnaval, Copa, A entextualização das camise-
Mulher, Brasil, terra, camisas), aliadas tas é seguida pela frase:
às predicações (do mundo, brasilei- Ou seja, o estrangeiro enxerga o
SELINFRAN

Brasil assim e o Brasil se VENDE das. (BLOG, 2014)


assim pois ser brasileiro ou bra-
Neste trecho observamos a referên-
sileira é “adorar carnaval, futebol,
samba e praia”. (BLOG, 2014) cia (camisetas), indicando que o blog
abordará o assunto. As referências
Percebemos através das aspas que (governo, fato, ataque), juntamente
o blog utiliza uma citação (adorar com as predicações (das camisetas,
carnaval, futebol, samba e praia). A ci- brasileiro, de histeria), unidas pelo
tação mostra que esses atos de fala verbo “fingiu” no pretérito perfeito, in-
performativos já foram repetidos em dexam sentidos de falsidade, descaso
outras situações, criando uma ideia e falta de preocupação.
de verdade já cristalizada. Ainda atra-
vés da citação, emergem ideologias O blog faz novamente uso de cita-
construídas para serem encenadas ção “Isso não. Somos o império brasi-
por brasileirxs e apreciadas por es- leiro agora na moda com a Copa aqui
trangeirxs, sugeridas pelas referências no nosso quintal”, juntamente com as
(estrangeiro, Brasil, brasileiro, brasilei- referências (patrulha, ufanismo), as
ra). Isto pode ser percebido e intensi- predicações (politicamente correta,
ficado pelo uso de letras maiúsculas das emoções) e, ligados pelo descri-
(VENDE), que sugere gritos e agressi- tor metapragmático (bradou), suge-
vidade nas redes sociais. rem que muitxs acreditam que está
tudo bem.
E sobre as camisetas? O governo
brasileiro fingiu um ataque de his- O blog chama atenção através do
teria com tal fato das camisetas. negrito às referências (bunda, mulher,
A patrulha politicamente correta atrativos) e às predicações (feminina,
saiu da toca, deixou o ufanismo to- brasileira, no exterior, grandes, na-
mar conta das emoções e bradou: cionais, no mercado, de turismo in-
“Isso não. Somos “o império brasi- ternacional, prostituta, vulgar, fácil)
leiro agora na moda com a Copa que indexam sentidos direcionados à
162 aqui no nosso quintal”. Mas o fato
construção de sexualidade exacerba-
é: A bunda feminina brasileira é
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

da, fruto da intersecção entre gênero


um dos grandes atrativos nacio-
nais no mercado de turismo in- (mulher) e nacionalidade (brasileira).
ternacional, Mulher brasileira no Ainda com ênfase, escrito em negri-
exterior é vista prostituta vulgar to, o blog afirma através das referên-
e fácil. Todos sabem disso basta cias (todos, procura, obra) junto com
uma rápida procura na internet. as predicações (rápida, na internet),
E não é obra que se constrói em com os índices avaliativos, advérbios
pouco tempo não... Enquanto al- de negação (não), de tempo (pouco
guém viaja para o exterior para ver tempo) e o verbo no presente do indi-
a natureza, fazer compras, provar cativo (constrói), que a construção de
novos pratos, etc, o turista estran-
mulher brasileira fácil, acessível, vul-
geiro na sua maioria sabe que o
gar, prostituta vem sendo repetida no
Brasil é terra de bundas, sexo com
certa facilidade, futebol, carnaval, transcorrer da emancipação cultural.
praias, turismo sexual e mais bun- Ele faz uma comparação binária en-
SELINFRAN
tre o turista que vai para o exterior e porciona o entendimento de como
o turista que vem do exterior. Quando acontece a construção de diversas
utiliza a referência (alguém), o verbo práticas sociais, incluindo as que
(viaja) e a referência de lugar (para o constroem corpos até então consi-
exterior), a característica é composta derados abjetos. É através dos atos
pelas atitudes (para ver a natureza, de fala performativos que vem sendo
fazer compras, provar novos pratos), sedimentados os discursos sobre as
todavia, para a referência (turista), mulheres brasileiras. Nesta perspecti-
a predicação (estrangeiro), o verbo va de construção, a linguagem é en-
(sabe) e a referência de lugar (Brasil), tendida por nós, como ação.
as características se alteram para: é Neste sentido, o blog analisado di-
terra de bundas, sexo com certa faci- reciona a culpa dessa construção de
lidade, futebol, carnaval, praias, turis- mulher brasileira - fácil, acessível, dis-
mo sexual e mais bundas. Isso sinaliza, ponível para o sexo, “prostituta” (nas
para o blog, mais uma vez, que o olhar palavras do próprio blog) – para a
sobre a mulher brasileira é singular, própria mulher brasileira. Porém, elas
ela é vista conforme expresso no títu- fazem uma divisão binária das mu-
lo, como prostituta. lheres brasileiras: as que são contra
o feminismo como elas, criticam e
CONSIDERAÇÕES FINAIS culpam as mulheres brasileiras com
Atualmente, em tempos de Copa do ideias feministas, e a todas as outras
Mundo 2014, as construções discursi- mulheres, por elas chamadas de femi-
vas e performativas sobre as mulheres nistas, de acordo com o blog, propa-
são as mesmas das proferidas durante gam e sedimentam essas construções
a ditadura, as mulheres brasileiras são discursivas. Ou seja, para elas, a cul-
vistas como unas, singulares, apaga- pa da sedimentação desses atos de
-se o plural e foca-se na ótica sexual. fala performativos sobre as mulheres
Com a escravidão, essas construções brasileiras são das próprias mulheres 163
discursivas e performativas são sedi- brasileiras, exceto as que são contra o

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


mentos pela citacionalidade e iterabi- feminismo.
lidade (DERRIDA, [1972] 1988) sobre Além disso, o que tentamos trazer
o corpo das mulheres, especificamen- com o auxílio das Teorias Queer, é que
te a mulher negra abrasileirada. Um a intersecção entre gênero e naciona-
exemplo é o corpus desta pesquisa: lidade é que aciona essas construções
as camisetas lançadas nesse período. discursivas e performativas, direcio-
Para Pinto (2014, p. 219), “o ato de fala nando através da citacionalidade e
é um ato corporal, e assim a identida- da iterabilidade a encenação de per-
de é tomada como performativa. [...]”. formances das mulheres brasileiras,
As mulheres brasileiras são efeitos de não por uma opção, mas por uma se-
atos de fala performativos sedimenta- dimentação. Em outras palavras, está
dos a respeito de tais corpos. sendo repetido ao longo dos anos
A linguagem, na perspectiva per- que a mulher brasileira é fácil, acessí-
formativa (AUSTIN, [1962] 1990), pro- vel, disponível, boa de cama, sensual,
SELINFRAN

sedutora, e todas as outras caracterís- se cristalizaram, sendo assim, no sen-


ticas ligadas a sexualidade dessa mu- so comum, não se questiona.
lher. Essas construções discursivas já

REFERÊNCIAS
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer: Palavras e ação. Tradução de Danilo Marcondes. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1990 [1962].
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SELINFRAN
CARNAVAL NA REPÚBLICA DO MEDO (1968-1979): IRONIA E
PARÓDIA EM LETRAS DO CANCIONEIRO DE GONZAGUINHA - UM
ESTUDO BAKHTINIANO

Rafael Menari ARCHANJO


Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE

RESUMO
Com a investigação em curso, propomo-nos a identificar as relações dialógicas
entre letras do compositor Gonzaguinha e o discurso ufanista do Estado totalitário
instaurado em 1964. Para tanto, interessam-nos formas da esfera carnavalesca, a
saber, a polêmica velada (ironia) e a paródia. Dentre as colunas teóricas, o refe-
rencial bakhtiniano é o responsável pelo principal aporte ao exercício heurístico. A
análise será estruturada em metodologia de revisão bibliográfica de cunho qualita-
tivo, acompanhada da aplicação de teoria analítica.
PALAVRAS-CHAVE: Relações Dialógicas; carnavalização; ironia; paródia; letras
de música.
ABSTRACT
With this investigation, we aim at identifying the dialogical relations between Gon-
zaguinha’s lyrics and the proud discourse of the totalitarian Estate established in 165
1964. For this purpose, we are interested in forms of the carnival area, specifically,

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


the hidden polemic (irony) and the parody. Among the theoretical bases, the Bakh-
tinian theoretical frame is responsible for the main contribution to the heuristic
process. The analysis is structured in a qualitative bibliographic review method,
along with the application of the analytical theory.
KEYWORDS: Dialogical relations; carnivalization; irony; parody; song lyrics.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO truções que desmitificam ideologias


e símbolos ortodoxos - são veemen-
As relações dialógicas são próprias
temente combatidas pelos regimes
da linguagem. Por extensão, nenhum
totalitários. Tais recorrências, tidas
discurso pode ser considerado puro,
como manifestações florescidas no
livre de relações com outros discursos
seio da cultura popular, rompem com
(BAKHTIN, 2011), bem como os regi-
o aspecto sério característico desses
mes de exceção, reforçam, por meio
períodos, propiciando a abertura da
de seu discurso, os significados que
pluridiscursividade, destituindo os
cristalizam sua ideologia oficial como
símbolos e ideologias oficiais consi-
coro uníssono, preconizando um con-
derados intocáveis. Essas vertentes
texto monológico em que os sentidos
do gênero sério-cômico são prove-
em circulação são parcialmente ou
nientes da “cosmovisão carnavalesca”
totalmente silenciados por restrições
– que, por sua vez, também é dialó-
que defendem os interesses de seus
gica, responsável por propor um rei-
enunciadores (FIORIN, 2009; 2012).
no cindido pela inversão dos papéis
Um contexto monológico coíbe as – principalmente entre governantes e
relações dialógicas, tornando-se pos- governados, entre opressores e opri-
sível restabelecê-las por meio de es- midos (BAKHTIN, 1987, 1997).
tratégias enunciativas que abram as
Bakhtin (1987, 1997) reflete que a
interdições. A palavra da canção, aqui
concepção carnavalesca desafia os
tratada como palavra literária, por sua
dogmas e o discurso oficial, por meio
dissidência do gênero lírico, foi ampla-
da irrupção do riso – do insólito; em
mente utilizada pelos artesãos da mú-
uma contemplação do reino do pos-
sica popular brasileira, para veicular
sível, da liberdade, da “praça pública”.
sentidos em oposição aos do regime
O alargamento semântico provocado
implantado no Brasil a partir do golpe
pela licenciosidade do riso carnava-
civil-militar de 1964. À época, princi-
166 lesco tende a amplificar significados
palmente pela ação da Assessoria Es-
e carnavalizar a ideologia da história
pecial de Relações Públicas (AERP), o
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

oficial. Na “praça pública carnavales-


Estado edificou o discurso nacionalis-
ca”, nada é proibido. As hierarquias
ta de um país emergente beneficiado
são rompidas e o rei é destronado.
pelo crescimento econômico (FICO,
Injúrias, blasfêmias e gargalhadas cir-
1996), e o campo sêmico da canção
culam livre e dialogicamente em uma
tornou-se uma ampla arena axiológi-
esfera única, sem ribalta (BAKHTIN,
ca (WISNIK, 1979), palco de embates
1987, 1997).
dialógicos e ideológicos.
Ao invés da polissemia plurissigni-
A história oficial é um discurso e,
ficativa propiciada pela liberdade da
como tal, visto sob o referencial de
“praça pública”, em que circulam ecos
Volochínov e Bakhtin (2006), está im-
e sentidos, o discurso de propagan-
pregnado de ideologia. A mesma his-
da de um Estado totalitário se impõe
tória demonstra que a recorrência ao
como voz única, tentando minar as ré-
cômico, ao paródico, ao riso – cons-
SELINFRAN
plicas dialógicas (FIORIN, 2009, 2012), cem relações dialógicas, com discur-
impõe-se juridicamente e, quando ne- sos de propaganda pró-militar, como
cessário, pela violência ostensiva. Já o os que têm sido amplificados nas re-
espaço da festa carnavalesca é uma des sociais durante os últimos anos,
contraproposta a esse tipo de discur- principalmente entre 2014 e 2016.
so oficial e autoritário, que se caracte- Cita-se também o fato histórico das
riza como portador de uma verdade dissonâncias do riso ainda gerarem
absoluta. desconforto aos Estados e ideologias
No Brasil, com a aplicação do gol- extremistas (FIORIN, 2009, 2012).
pe civil-militar, em 1964, deu-se início O aporte analítico tem em Bakhtin
à instauração de jurisdições respon- (1987, 1997) a sua principal sustenta-
sáveis por restringir a circulação de ção. Por meio das obras, chegamos
discursos contrários ao próprio regi- aos conceitos de “carnavalização”,
me (ARAÚJO, 2003; GASPARI, 2002, “paródia” e “polêmica velada” (ironia).
2002a; KUSHNIR, 2004; NAPOLITA- Hutcheon (1985) também contribuiu
NO, 1998), ao passo que instaurou no tratamento dos conceitos de “iro-
uma intensa campanha publicitária de nia” e “paródia”. Outras contribuições
cunho nacionalista pró-regime, com de referenciais da Ciência Linguística
a exaltação do “milagre econômico” e de outras áreas que foram necessá-
e o apagamento das contradições rias para nos aproximar da cena enun-
de classe (FICO, 1996). Nesse cená- ciativa também foram utilizadas.
rio, surge o compositor Gonzaguinha, O plano de análise se apoia subs-
que se notabilizou também, por com- tancialmente na metodologia qualita-
por canções de enfrentamento aos tiva de revisão bibliográfica, acompa-
valores do Estado totalitário (SOUZA, nhada da aplicação de teoria analítica.
1988). A opção se justifica pelo corpus em
Na investigação proposta, cabe- exegese; embora o objeto de estudo
-nos observar como os enunciados da situe-se abarcado pelo gênero can- 167
canção Desenredo, de Gonzaguinha, ção – formado por letra e harmonia,

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


estabelecem relações dialógicas com as observações se restringiram ao ar-
o discurso da propaganda ufanista e tefato escrito.
do autoritarismo disciplinador - cor-
rente após o golpe militar de 1964, RELAÇÕES DIALÓGICAS E CAR-
analisando como a paródia e a ironia NAVALIZAÇÃO: DIÁLOGOS
– comuns à esfera carnavalesca, fo-
ram empregadas como estratégias de As relações dialógicas são próprias
subversão ante a interdição da pala- a todo discurso, independentemente
vra no contexto de silenciamento. da esfera em que este se materializa.
No estrato discursivo da língua falada,
O exercício heurístico a que nos da escrita, dos macros e micros diálo-
propomos se justifica devido aos ecos gos – toda comunicação/interação é
discursivos do Estado totalitário que permeada por relações dialógicas. A
ainda reverberam sentidos e estabele- palavra é interativa e interdiscursiva –
SELINFRAN

portanto, social. Um enunciado não é gia como um tempo de trégua diante


emitido no vazio, ao contrário, vigora da verdade e do regime dominantes.
em uma situação histórica e social – A anterior perpetuação da sociedade
ativa, na relação entre sujeitos. Pela ordinária abria uma senda por onde se
palavra, o sujeito se define e se esten- podia aspirar a um tempo futuro lon-
de ao outro, o seu interlocutor: ge das restrições da cultura e normas
Na realidade, toda palavra com- oficiais. O cômico passava a perme-
porta duas faces. Ela é determi- ar todas as esferas, desconstruindo o
nada tanto pelo fato de que pro- tom rude do monologismo institucio-
cede de alguém, como pelo fato nalizado.
de que se dirige para alguém. Ela O mundo infinito das formas e
constitui justamente o produto da manifestações do riso opunha-
interação do locutor e do ouvinte. -se à cultura oficial, ao tom sé-
Toda palavra serve de expressão rio, religioso e feudal da época.
a um em relação ao outro. Atra- Dentro de sua diversidade, essas
vés da palavra, defino-me em re- formas e manifestações – as fes-
lação ao outro, isto é, em última tas públicas carnavalescas, os ri-
análise, em relação à coletividade. tos e cultos cômicos especiais, os
A palavra é uma espécie de ponte bufões e tolos, gigantes, anões e
lançada entre mim e os outros. Se monstros, palhaços de diversos
ela se apóia sobre mim numa ex- estilos e categorias, a literatura
tremidade, na outra apóia-se so- paródica, vasta e multiforme, etc.
bre o meu interlocutor. A palavra – possuem uma unidade de esti-
é o território comum do locutor e lo e constituem partes e parcelas
do interlocutor. (VOLOCHÍNOV; da cultura cômica popular, princi-
BAKHTIN, 2006, p. 117). palmente da cultura carnavalesca
O carnaval é um acontecimento una e indivisível. (BAKHTIN, 1987,
dialógico. Desde seus primeiros estu- p. 03-04).
168 dos sobre o tema, Bakhtin (1997) es- Dentre as formas características
clarece que o “carnaval” é um espetá- do riso carnavalesco, podemos citar a
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

culo complexo sincrético de estrutura paródia e a ironia. Para o filósofo, na


ritualística, com variados matizes. Sua paródia:
força foi capaz de criar uma linguagem
[...] o autor fala a linguagem do
característica constituída por “[...] for- outro [...], reveste essa linguagem
mas concreto-sensoriais simbólicas” de orientação semântica diame-
(BAKHTIN, 1987), responsáveis pela tralmente oposta à orientação do
abertura de uma cosmovisão. No en- outro. A segunda voz, uma vez
tanto, apesar de oriundo dos gêneros instalada no discurso do outro,
populares, o carnaval não deve ser entra em hostilidade com o seu
visto simplesmente como “[...] um fe- agente primitivo e obriga a servir
nômeno boêmio e banal” (FÁVERO, a fins diametralmente opostos. O
2003, p. 51). discurso se converte em palco de
lutas entre duas vozes. Por isso
Na Idade Média, o “carnaval” sur- é impossível a fusão de vozes na
SELINFRAN
paródia, [...]; aqui as vozes são para um acordo, mas que se repe-
apenas isoladas, separadas pela lem, como depreendemos do próprio
distância, mas estão em oposição Bakhtin (1997, p. 196):
hostil. (BAKHTIN, 1997, p. 194).
[...] a polêmica velada está orien-
A partir do sentido tratado, enten- tada para um objeto habitual,
demos a paródia como uma relação nomeando-o, representando-o,
dialógica de sentidos, ideias e valores enunciando-o, e só indiretamen-
em contradição. A ação digladiadora te ataca o discurso do outro, en-
da incursão paródica, como discur- trando em conflito com ele como
so que se constrói “diametralmente que no próprio objeto. Graças a
isto, o discurso do outro começa
oposto” a um outro discurso é refe-
a influenciar de dentro para fora o
renciada por Bakhtin (1997, p. 94).
discurso do autor. É por isso que
Para o pesquisador, “[...] o parodiar é o discurso polêmico oculto é bi-
a criação do ‘duplo destronante’, do vocal, embora neste caso, seja es-
mesmo ‘mundo às avessas’” (BAKH- pecial a relação recíproca entre as
TIN, 1997, p. 126) – que aponta para a duas vozes. A idéia do outro não
instauração carnavalesca do utópico. entra “pessoalmente” no discurso,
apenas se reflete neste, determi-
Hutcheon (1985) também aponta
nando-lhe o tom e significação. O
para a ambivalência do gênero “paró- discurso sente tensamente ao seu
dia”, reconhecendo nela, a propensão lado o discurso do outro falando
à subversão, por meio do jocoso, prin- do mesmo objeto [...].
cipalmente pela recorrência à “ironia”:
E são essas relações de colisão,-
Com efeito, o que é notável na confronto entre duas vozes, é que
paródia moderna é o seu âmbito
buscaremos nos enunciados da letra
intencional do irônico jocoso ao
de Desenredo (1973), canção grava-
desdenhoso ridicularizador. [...]
A paródia é, pois, uma forma de da somente em 1979, pelo compositor
imitação caracterizada por uma Luiz Gonzaga Junior, o Gonzaguinha. 169
inversão irônica, nem sempre às

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


custas do texto parodiado. [...] A DESENREDO (1973): UMA OUTRA
paródia é, noutra formulação, re- “HISTÓRIA” (!?)
petição com distância crítica, que
marca a diferença em vez da se- A ciência historiográfica atesta que
melhança. (HUTCHEON, 1985, p. durante os anos 1960/1970, vivia-se
17). no Brasil uma atmosfera de profun-
da densidade ideológica (SCHWARZ,
Já a ironia – que é análoga ao em-
1978; NAPOLITANO, 1998; REIS FI-
prego da paródia como contracanto
LHO, 1998; GASPARI, 2002, 2002a).
aparece pela primeira vez na teoria
Os discursos acalorados pela divisão
bakhtiniana como “polêmica velada”
maniqueísta entre Estado, emissor do
(BAKHTIN, 1997). Dotada de bivoca-
discurso hegemônico da época, au-
lidade, a polêmica velada se constitui
to-intitulando-se como uma legítima
a partir de uma tensão entre discur-
“força do bem”, e pelos opositores,
sos antagônicos que não convergem
SELINFRAN

segundo o estatuto discursivo totali- protesto” (NAPOLITANO, 2001), tida


tário, considerados os “terroristas”, in- como de teor mais panfletário, de
dicavam a continuidade e crescimento embate direto, floresceu a chamada
de uma força centralizadora presente “canção de fresta”1 (VASCONCELLOS,
em vários âmbitos da vida nacional. 1977). Essa última apresentava uma
Os embates axiológicos infiltraram-se enunciação próxima do domínio do
na esfera do cotidiano, nas manifes- gênero lírico, dotada de uma lingua-
tações artísticas, no movimento es- gem mais elevada. A paródia e a ironia
tudantil, nas igrejas e diversos outros (polêmica velada) vigoravam entre os
setores da sociedade brasileira. recursos enunciativos empregados
A esfera da comunicação cultural, pelos compositores.
por consequência, foi substancial- Por outra via, o Estado Ditatorial
mente permeada por conflitos histó- tecia um discurso monofônico e ufa-
rico-ideológicos. O período de maior nista propagando, dentre algumas
repressão política do regime militar ideias, que o Brasil seria o “país do fu-
coincide com o da fase de consolida- turo” (FICO, 1996). Ainda segundo o
ção de uma cultura de massa e a con- autor, uma das investidas do discurso
sequente expansão da indústria fono- laudatório nacionalista do regime vol-
gráfica (WISNIK, 1979; ORTIZ, 1988, tava-se à cristalização de referências
1991; ARAÚJO, 2003). “históricas”. Nessas incursões, o ele-
No cronotopo da letra em análise, a mento estrangeiro, o europeu, parti-
canção popular crescia em alcance e cipante do processo de colonização
repercussão. O momento econômico acabava por ser blindado com a ima-
que se consolidava favorável à indús- gem do civilizado herói, principalmen-
tria fonográfica (WISNIK, 1979; ARAÚ- te nos livros didáticos de história, e na
JO, 2003; ORTIZ, 1991, 1994), aliado disciplina de Educação Moral e Cívica.
à expansão das telecomunicações e Com o intuito de despertar o senti-
170 consequentemente da acessibilidade mento patriótico nos estudantes, re-
de parte da sociedade civil à progra- cuperando o discurso do “ethos épi-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

mação dos canais televisivos em as- co” – refletido por Wisnik (2007), em
censão, responsáveis por transmitir a datas comemorativas escolares e em
Era de Ouro dos Festivais (VILARINO, eventos cívicos prestavam-se home-
2006), por um viés contrário, angaria- nagens aos “heróis” da nacionalidade.
va para a mesma canção, os holofotes É justamente contra a versão unívoca
da vigília do Estado autoritário. da história oficial, à voz hegemônica
que cristaliza essas referências, e às
Para cercear discursos em colisão próprias referências, que se volta a
com os valores do regime, instituiu-se voz que instaura o riso paródico na le-
uma rígida censura (KUSHNIR, 2004). tra de Desenredo:
O recrudescimento gradativo da cen-
sura fomentou a criação de enuncia- 1 Vasconcellos (1977), a partir da letra de Festa Imodesta, de Caetano
Veloso, criou o conceito até hoje empregado em estudos sobre a canção
ções mais elaboradas na esfera da do período, chamado “linguagem de fresta”. A expressão passou a re-
música popular. Aliada à “canção de presentar a comunicação astuta, a constituição de um universo crítico
de decodificação política que, no contexto, reforçava, consideravelmen-
te, o laço ideológico entre os artistas e seu público.
SELINFRAN
No dia em que o jovem Cabral em seu sentido comum aos dicioná-
chegou por aqui, ô ô rios, teremos a conotação de “desen-
Conforme diversos anúncios na lace”, “desfecho”, a “conclusão da tra-
televisão ma” (CUNHA, 1997). Entretanto, em
Havia um coro afinado da tribo uma leitura prévia dos enunciados,
tupi é perceptível que a enunciação trata
Formado na beira do cais cantan- de um episódio bem conhecido dos
do em inglês brasileiros, que ao contrário de “des-
Caminha saltou do navio asso- fecho”, marca o “início” de um ciclo, o
prando um apito em free bemol “início” oficial de “nossa” história (ou o
Atrás vinha o resto empolgado da início de nossa “história oficial” – que
tripulação ignora a história indígena anterior) – a
Usando as tamancas no acerto da partir da introdução do elemento eu-
marcação ropeu, o que provoca uma incoerên-
Tomando garrafas inteiras de vi- cia – “início” e “desfecho” (“desenre-
nho escocês. do”). Partindo do pressuposto de que
o corpus em investigação é de autoria
Partiram num porre infernal por de um autor-criador satírico, traço ar-
dentro das matas, ô ô quitetônico da obra que se configura
Ao som de pandeiros, chocalhos como pista enunciativa para desvela-
e acordeão mento de sentidos, é coerente supor
Tamoios, Tupis, Tupiniquins, Aca- que a escolha do termo foi proposital
rajés ou Carijós, sei lá! a fim de engendrar as disjunções se-
Chegaram e foram formando
mânticas.
aquele imenso cordão, meu Deus Por outra via, se observarmos o sig-
“quibão” no “desenredo” como um neologismo
E então de repente invadiram a formado pelo prefixo latino “des” –
Avenida Central, mas que legal que significa “negação”, somado ao 171
E meu povo vestido de tanga substantivo “enredo”- que significa

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


adentrou ao coral “trama narrativa” (CUNHA, 1997), te-
Um velho cacique dos pampas sa- remos, ao invés do significado ante-
cou do pistom riormente aludido, um enunciado que
E deu como aberto, em decreto indica uma construção irônica de um
mais um carnaval, ah que bom! enredo “às avessas”, uma narrativa
“ao contrário”, ou contada (narrada)
E assim, a Vinte e Dois daquele de uma outra forma. Tal interpreta-
mês de Abril ção é sugestiva para inferirmos que a
Fundaram a Escola de Samba
enunciação de Desenredo se articula
Unidos do Pau-Brasil. como um “contracanto”, que ressoa
por outra voz, ecoando paralelamente
(GONZAGUINHA, 1979, n.p.). ao coro oficial, em desacordo.
Se tomarmos o termo “desenredo”
Nesse mesmo viés de análise,
SELINFRAN

observamos que os enunciados de das tônicas da exortação à união na-


Desenredo abordam a colonização cional para a construção do “país do
brasileira de uma perspectiva carna- futuro” embasado em um “ethos épi-
valesca. Ao longo das duas estrofes co” – como visto em Wisnik (2003). É
iniciais, elementos citadinos e mo- válido citar também que o enunciado
dernos (“avenida central”, “avião”, “E meu povo vestido de tanga aden-
“televisão”) e “primitivos” (“Tamoios, trou ao coral” (GONZAGUINHA, 1979,
Tupis, Tupiniquins, Acarajés ou Cari- n.p.) também alude à nudez comum
jós”, “velho cacique”, “povo vestido ao cronotopo do carnaval.
de tanga”, “Caminha saltou do navio”)
Na esfera carnavalesca de Desen-
(GONZAGUINHA, 1979, n.p.) são aglu-
redo, a “tribo tupi” canta em “inglês”
tinados, carnavalizados em liberda-
(“Havia um coro afinado da tribo tupi.
de na “praça pública”, em um espaço
/ Formado na beira do cais cantando
sem ribalta, sem a vigilância moral do
em inglês”) - ironia à influência cultu-
que Bakhtin (1987, p. 09) chama de
ral dos EUA sobre o Brasil, um “velho
“verdade dominante”. Em Desenredo,
cacique” toca “piston” (“um velho ca-
Modernidade e “primitivismo”, coloni-
cique dos pampas sacou do pistom”)
zadores e colonizados caminham jun-
e os “acordeons”, “chocalhos” e “pan-
tos em atmosfera de festa contínua,
deiros” se misturam à “orquestra” for-
em que não há relações hierárquicas
mada por colonizadores e coloniza-
entre índios e portugueses. Como na
dos (“Ao som de pandeiros, chocalhos
festa carnavalesca da Idade Média,
e acordeons”) (GONZAGUINHA, 1979,
como visto em Rabelais (BAKHTIN,
n.p.). Na enunciação, o autor-criador
1987, 1997), não há divisões, todos “vi-
estabelece uma relação dialógica com
vem o carnaval”, formando um corpo
os princípios da “Poesia Pau Brasil”,
único, público e festivo.
criada por Oswald de Andrade a par-
Ao contrário da colonização real à tir do manifesto lançado em 1924, que
172 qual o Brasil é submetido, em Desen- prezava, dentre outras coisas, pela
redo, a exploração do espaço geográ- releitura da história do Brasil, relacio-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

fico brasileiro ocorre como um desfile nando primitivismo e modernidade,


feliz, amigável e contínuo, de um povo em tom de irreverência marcado, den-
único (“mesmo cordão”), como o des- tre outros recursos estilísticos, pela
file de uma escola de samba2 (“E meu ironia e pela paródia.
povo vestido de tanga adentrou ao
Não seria descabido pensar na es-
coral”). Percebe-se, nesse caso, uma
tratégia antropofágica, também ori-
recuperação dialógica irônica do au-
ginada das reflexões de Oswald. Mas
tor-criador, do discurso histórico cris-
esta, ao contrário da proposta Pau
talizado de afirmação sobre o “bom
Brasil, passava a ver com bons olhos a
relacionamento entre as raças”, uma
influência da cultura estrangeira, que
2 Faz-se importante citar que os desfiles modernos de Escolas de Samba na estética Pau Brasil já permeava a
apresentam similaridades e distanciamentos se comparados com o con-
ceito concebido por Bakhtin (1987; 1997) em sua análise sobre a obra forma composicional. Ao zombar do
de Rabelais. Uma delas é a divisão hierárquica estabelecida por alas e, elemento estrangeiro pela via cômica
principalmente pelos carros alegóricos.
SELINFRAN
paródica, essa segunda voz caracte- É importante destacar as relações
risticamente irônica, que se instaura dialógicas irônicas incididas sobre
na massa de discursos trazidos nas aculturação promovida pelas influ-
letras do autor-criador da obra de ências culturais estrangeiras – prin-
Gonzaguinha, como veremos mais cipalmente a americana, que vão se
precisamente em Bié, Bié Brasil, a ser acentuando na sociedade brasileira
analisada ainda no presente capítulo, após a primeira metade do século
marca posição em contracanto à acul- XX, causando impactos no consu-
turação por via da influência estran- mo, nos comportamentos, na língua,
geira, e à consequente desculturação com a introdução da televisão e com
de expressões regionais, locais. Em a solidificação da indústria cultural. A
Desenredo, apesar da aparente har- confusão identitária causada por essa
monia entre europeus e brasileiros, o “interação” aparece no “coro tupi que
apito que soa em “free bemol” consti- canta em inglês”, na “tripulação por-
tui uma referência velada ao interes- tuguesa que consome vinho escocês”,
se arrivista do colonizador: “Caminha no “cacique que toca pistom”, no “api-
saltou do avião tocando um apito em to de Caminha em free bemol”.
free bemol” (GONZAGUINHA, 1979,
n.p.), ou seja, “o Brasil é free”. A data comemorativa tratada pela
história oficial como “descobrimento”
No ambiente carnavalesco de
também é alvo da irreverência pa-
Desenredo, todos integram o “imenso
ródica, uma vez que o “carnaval” de
cordão”. Não há divisões entre
Desenredo se inicia em 22 de abril,
“atores” e “plateia” – assim como no
na data histórica do “descobrimento”,
carnaval de Rabelais (BAKHTIN, 1987;
e não em fevereiro – mês em que se
1997b), compartilham da mesma festa
costuma celebrar o carnaval: “E assim,
farta e (“Partiram num porre infernal
a Vinte e Dois daquele mês de Abril. /
por dentro das matas”). Essa aparente
Fundaram a Escola de Samba Unidos
harmonia entre os elementos europeus 173
do Pau-Brasil”. Em 22 de abril, inicia-
e americanos, entre “civilizados” e
-se o “porre dentro das matas” que

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


“selvagens”, entre “brancos” e “índios”
se estenderá ao longo da história do
(“usando as tamancas no acerto da
país. É possível observar ainda que a
marcação”) (GONZAGUINHA, 1979,
comparação de uma “nação” a uma
n.p.), pode ser observada pelo jogo
escola de samba (“Escola de Samba
característico entre ditos e não ditos
Unidos do Pau-Brasil”) (GONZAGUI-
responsáveis por construir a ironia.
NHA, 1979, n. p.) causa um efeito de
Os não ditos articulados pelo autor-
dissimulação irônica, agora voltado à
criador implodem o riso sobre a versão
organização (“desorganização”) da
da história oficial, ou seja, o discurso
sociedade brasileira, que na atmosfe-
narrativo que tende a sepultar a
ra de Desenredo, vive uma “festa con-
ambiência violenta e conflituosa da
tínua”.
expansão do domínio do colonizador
sobre os colonizados é ridicularizado. O “milagre econômico” é aborda-
do por meio da presença das teleco-
SELINFRAN

municações3, representada metonimi- negro, um índio e um amarelo, com a


camente pela “televisão” - importante enunciação: “Esse é um país que vai
colaboradora das propagandas ufa- pra frente. / De uma gente amiga e
nistas, da criminalização dos movi- tão contente”. Na figura 3 temos pra-
mentos contrários ao regime, e propa- ticamente a mesma imagem, seguida
gadora dos hábitos de consumo que da enunciação “De mãos dadas é mais
se formavam com a ilusão propagada fácil”. Dialogicamente a enunciação
pelo “milagre” (“conforme diversos de Desenredo, recupera esse discur-
anúncios na televisão”) (GONZAGUI- so cívico, subvertendo-o jocosamente
NHA, 1979, n.p.), além da manipulação pelo riso. Novamente, a destituição do
da informação, sujeita à “enformação” sério, tida em Bakhtin (1987).
do enunciador, em uma possível crí-
tica ao poder de influência da mídia
televisiva.
O ambiente de embriaguez, de car-
naval – desencadeado pela derrisão
paródica de Desenredo, subverte o
tom unilateral da história oficial, do tí- Figuras 1 e 2: Vinheta da AERP.
pico discurso tido como neutro, como Fonte: Youtube (s.d.).
visto em Brait (1996)4. Pelo dizer indi-
reto, o clima amigável entre coloniza-
dores e nativos identificado na letra da
canção também é uma ironia à versão
ufanista do discurso oficial responsá-
vel por opacificar o processo violento
da incursão “civilizatória”, pelo qual
passou o Brasil, durante sua coloniza-
174 ção. Em uma das vinhetas criadas pela
AERP, da qual retiramos as figuras 1 e
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

2, temos um grupo de crianças que se


apresentam de mãos dadas. Dentre
elas podemos identificar um menino
e uma menina brancos, um menino
3 Ortiz (1991), esclarece que, no Brasil, a televisão se consolida como Figura 3: Peça publicitária desenvolvida pela AERP.
veículo de massa ainda na década de 60 (séc. XX). A partir do golpe mi-
litar de 1964 houve uma expansão significativa das telecomunicações, Fonte: Arquivo Público do Estado do Rio de Janei-
com destaque para a televisão. Linhas de crédito oriundas do “milagre ro (APERJ, s.d.).
econômico” também favoreciam a aquisição de televisores. Segundo
dados do autor, “Em 1970 existiam 4 milhões, 259 mil domicílios com Por extensão, a relação harmônica
aparelhos de televisão, o que significa que 56% da população era atingi- entre europeus e índios identificada
da pelo veículo; em 1982 este número passa para 15 milhões, 855 mil,
o que corresponde a 73% do total de domicílios existentes” (ORTIZ, na enunciação de Desenredo, des-
1991, p. 130). contrói dialógica e parodicamente o
4 Segundo o estudo de Fico (1996), no Brasil, toda a produção de livros
didáticos de história da época, era imbuída de uma aura de civismo discurso cristalizado que se refere ao
que opacificava as grandes tensões e contradições do nosso processo povo brasileiro como alegre, pacato e
de colonização.
SELINFRAN
conciliador, retomado pela propagan- irônicas tratadas na presente análise.
da da AERP (“Esse é um país que vai Essa outra voz que entra no discurso
pra frente. / De uma gente tão amiga introduz a perspectiva bivocal. Ainda
e tão contente” – figuras 1 e 2). Um nessa perspectiva, entendemos que
tom irônico sugestivo para um cro- ocorre a carnavalização do gênero –
notopo em que violências de toda uma vez que o gênero epistolar de
ordem, como torturas, assassinatos, A Carta – documento “sério” da his-
sequestros e ocultação de cadáveres, tória oficial, é estilizada de modo a
no conflito entre regime e opositores, adequar-se ao gênero letra de músi-
eram proibidas pelos órgãos de re- ca, no qual é reintroduzida intertextu-
pressão, de serem publicadas pelos almente a partir de uma perspectiva
veículos de comunicação (KUSHNIR, irreverente. Nisso percebemos outra
2004). relação com o estilo da enunciação.
Temos a paródia moderna, a recodi-
Cabe-nos fazer um registro acerca
ficação que introduz a diferença na
do estilo. “A Carta” – documento re-
semelhança, como visto em Hutcheon
digido em primeira pessoa pelo via-
(1985). O riso inaugurado pela apro-
jante Pero Vaz de Caminha, tornou-se
priação paródica permite a abertura
o discurso oficial entre os primeiros
do diálogo ao plurilinguismo, em que
contatos entre portugueses e índios.
outra voz passa a integrar o discurso
A enunciação de Desenredo, ao sub-
antes unívoco, constituindo uma rela-
verter parodicamente o emprego da
ção tensa entre vozes.
primeira para a terceira pessoa, incor-
pora uma outra voz ao discurso, que- Como podemos constatar na figura
brando a monofonia da história oficial. 4, a circulação da letra foi interditada
A paródia5 constrói um novo acento pelo DCDP, tendo a censora vetado
apreciativo sobre a enunciação ofi- por alegação de “Texto irreverente à
cial, apresentando-se como canto nacionalidade. Anti cívico. Sátira à co-
paralelo, a se notar pelas incidências lonização, à sociedade e à Confedera-
175
ção Estatal”.
5 Ainda que nossa proposta de análise se restrinja às letras das canções, Figura 4: Parecer sobre “Desenredo” (1973).

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


é válido registrar uma ocorrência com relação à harmonia de Desenre-
do. Nesta, a paródia não ocorre somente com a enunciação verbal, mas
também no campo da melodia. Desenredo recupera um fragmento da
harmonia de Aquarela do Brasil, canção esta de Ary Barroso que traz
em sua letra uma mensagem de exaltação à pátria brasileira. Do ponto
de vista harmônico, ambas as canções citadas apresentam cromatismos
modulares de “três notas”. Em Aquarela do Brasil, a passagem apresenta
cromatismo modular com “três notas ascendentes em sol, sol sustenido
e lá”, o que é repetido duas vezes, e posteriormente se resolve em novo
cromatismo modular ascendente em “lá, lá sustenido e si”, que também
é repetido duas vezes. Em parte da introdução de Desenredo, há uma
passagem melódica que apresenta a mesma intenção harmônica de
Aquarela do Brasil com um cromatismo ascendente em “sol sustenido,
lá e lá sustenido” (a mesma harmonia de Aquarela do Brasil, porém,
com um tom acima) e, logo após, novo cromatismo ascendente em “lá,
lá sustenido e si”, contudo, o autor-criador resolve essa harmonia com
dois cromatismos modulares descendentes de “si, lá sustenido e lá”, com
“lá sustenido, lá e sol sustenido”. O cromatismo modular ascendente
suscita “alegria”, “otimismo”. Já o “cromatismo modular descendente”
Fonte: Arquivo Nacional (Rio de Janeiro).
empregado em Desenredo suscita “tristeza”. Há, portanto, uma subver-
são de sentidos por meio da recuperação de um intertexto musical.
SELINFRAN

Cabe citar que, por meio de pes- porciona a palavra bivocal - ampliado-
quisa em documentação disponível ra do campo semântico, desencadea-
no Arquivo Nacional, identificamos dora do riso paródico e irônico.
por meio dos pareceres sobre a le- Em Desenredo, o discurso sério da
tra, que o compositor enviou os mes- história oficial é recuperado sob um
mos enunciados por três vezes ao novo acento apreciativo, desencade-
DCDP, somente alterando o enuncia- ador das disjunções semânticas. Os
do-título da canção, provavelmente sentidos da enunciação presente na
uma outra estratégia do autor-pes- letra, e o discurso do Estado, não con-
soa para driblar a vigilância censória: vergem para um entendimento, mas
“Escola do Coco Unidos do Pau Brasil estabelecem relações dialógicas em
(12/01/1973)”, “Unidos do Pau-Brasil” colisão. Observa-se a instauração do
(04/04/1973), e por fim, “Desenredo” duplo destronante carnavalesco, tra-
(19/08/1978). tado por Mikhail Bakhtin (1987; 1997).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A paródia engendrada por Gon-


zaguinha, construída diametralmente
O percurso analítico nos permi- oposta ao discurso do Estado tota-
te afirmar que as relações dialógi- litário, subvertendo-o, rompe com o
cas presentes em Desenredo, dão-se medo característico dos regimes de
principalmente pela via da dialogia exceção, o que a aproxima do campo
paródica, incidindo sobre referências carnavalesco. Seu grito pluridiscursivo
históricas ufanistas cristalizadas pelo se digladia no fio tenso da enunciação,
discurso do Estado ditatorial, por em contracanto ao discurso ufanista
meio da inserção de uma outra voz, de exaltação aos símbolos da ideolo-
que paralela ao discurso oficial, pro- gia oficial, desconstruindo nestes, seu
caráter monológico.
176 REFERÊNCIAS
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VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

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177

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


SELINFRAN

METODOLOGIAS DO ENSINO DE LÍNGUA ESTRANGEIRA – INGLÊS:


UM ESTUDO DO PROGRAMA TELEVISIVO EDUCATIVO TELECURSO

Rita de Cássia CARVALHO


Naiá Sadi CÂMARA

RESUMO
Este trabalho se propõe a analisar as aulas de Língua Inglesa do programa te-
levisivo-educativo Telecurso. Acreditamos que ao analisar as características que
configuram esse programa e as estratégias criadas pelo enunciador para levar o
enunciatário a aderir ao processo de ensino e aprendizagem de Língua Inglesa
proposto o enunciatário-aluno, identificaremos estratégias de interação de um gê-
nero educativo, poderemos contribuir para o processo de ensino e aprendizagem-
da língua inglesa do ensino médio nas escolas públicas. Escolhemos como base
teórica a Semiótica Francesa, e nosso foco é observar as estratégias de interação
responsáveis pelo estabelecimento do contrato fiduciário entre o enunciador (au-
tores, diretores, equipe de produção etc) e o enunciatário-aluno, por meio da ex-
plicitação das estratégias de adesão realizadas na configuração da relação entre o
conteúdo educativo e o narrativo do programa.
PALAVRAS-CHAVE: Telecurso; semiótica francesa; metodologias de ensino;
contrato fiduciário; língua inglesa.
178 ABSTRACT
This study aims to analyze the English classes of television - education program
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Telecurso. We believe that by analyzing the characteristics that make up the pro-
gram and the strategies created by the enunciator to take enunciatee to join the
process of teaching and learning English language proposed the enunciatee stu-
dents, identify strategies of interaction of an educational genre , we can contribute
to the teaching process and aprendizagemda English high school in public scho-
ols. Chosen as theoretical basis the French Semiotics , and our focus is to observe
the interaction strategies responsible for establishing the trust deed between the
enunciator ( writers , directors, production staff etc. ) and the enunciatee student ,
through the explanation of membership strategies performed in the configuration
of the relationship between the educational content and the narrative of the pro-
gram.
KEYWORDS: Telecurso; french semiotics; teaching methodologies; trust deed;
English language.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO gias de interação são utilizadas no te-
lecurso que o mantém na mídia por
Na atualidade, a educação passa
tanto tempo? Como esse gênero se
por mudanças significativas, sobretu-
configura? Que estratégias de motiva-
do pelo avanço tecnológico, tais como
ção e adesão estabelecem?
a escola não ser mais o único espaço
de acesso ao conhecimento (CAMA- Trata-se de uma pesquisa analítico-
RA, 2014), o crescimento do ensino -descritiva sobre os episódios de au-
a distância; a inserção cada vez mais las de inglês voltadas para o Ensino
expressiva da tecnologia nas escolas, Médio do Telecurso e será fundamen-
entre outras que determinam modifi- tada no referencial teórico da semió-
cações principalmente nas estratégias tica francesa a partir do conceito de
metodológicas utilizadas em todas as contrato fiduciário que, segundo Grei-
etapas do ensino. mas e Courtés (2008, p. 85-86):
[...] consiste na relação de con-
Considerando que o processo de fiança que o sujeito do estado
ensino e aprendizagem organiza-se mantém com o sujeito do fazer na
como uma prática comunicativa, nos- espera fiduciária, um contrato de
sa pesquisa se propõe a analisar as confiança, de veridicção. Instala-se
aulas de Língua Inglesa do Telecurso, no discurso um fazer persuasivo,
programa educativo televisivo, a fim um fazer-crer e um fazer interpre-
de compreendermos um gênero didá- tativo na relação entre enunciador
tico pedagógico tecnológico bem su- e enunciatário, por meio de valo-
cedido, já que se mantém em exibição res epistêmicos e pelo comparti-
lhamento de crenças (GREIMAS;
desde os anos oitenta.
COURTÉS, 2008, p. 85-86).
Com base em conceitos teóricos da A teoria semiótica francesa foi es-
semiótica francesa acreditamos que, colhida como base teórica do trabalho
ao identificarmos as características por fornecer subsídios para a análise
dos gêneros utilizados nessa prática, de diferentes formas de manifesta- 179
estaremos também identificando as ção textual. Textos verbais, orais ou

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


metodologias que orientam o proces- escritos (um poema, um conto, um
so educativo. Da perspectiva semió- romance), visuais ou gestuais (uma
tica, uma prática comunicativa esta- escultura, uma gravura, uma dança)
belece-se por meio de um contrato ou sincréticos de mais de uma expres-
fiduciário entre um fazer persuasivo são (um filme, um anúncio publicitá-
de um destinador e um fazer interpre- rio, uma história em quadrinhos, uma
tativo de um destinatário. canção ou um programa educativo).
Interessa-nos identificar que meto- O Telecurso é um texto criado por um
dologias um gênero didático pedagó- meio de comunicação televisivo, logo,
gico televisivo estabelece que modali- é um produto de linguagem e, portan-
za diferentes gerações e faixas etárias to, pode ser analisado por uma teoria
dos sujeitos aprendizes a querer assis- linguística como a semiótica, a teoria
tir e a querer aprender. As perguntas da significação.
que nos orientam são: quais estraté-
SELINFRAN

ARCABOUÇO TEÓRICO A semiótica se interessa pelo “pare-


cer do sentido”, que se apreende por
Essa base teórica apresenta um
meio das formas da linguagem e dos
procedimento que propõe articular a
discursos que o manifestam. Segundo
apreensão de sentido através de um
Bertrand (2003, p. 20-21), é da feno-
percurso que vai das formas mais con-
menologia, no campo da filosofia, que
cretas e complexas que se manifestam
é extraída uma parte importante da
na superfície do texto às formas mais
significação. “Ela define o estatuto das
abstratas e gerais dispostas em níveis
formas significantes como um espaço
gradativos de profundidade, que vão
intersticial entre o sensível e o inteli-
se complexificando da profundidade à
gível, entre a ilusão e a crença com-
superfície em um percurso de signifi-
partilhada, na relação reciprocamen-
cação que se organiza e simula a ge-
te fundadora entre sujeito sensível e
ração de sentido, assim é concebido o
objeto percebido, destacando-se no
plano de conteúdo (BARROS, 2002).
horizonte da sensação” (BERTRAND,
Realizaremos a análise do programa 2003, p. 21).
Telecurso Ensino Médio Língua Ingle-
sa como uma enunciação, a relação Nesse contexto, Greimas e Courtés
de manipulação estabelecida entre o (2008) apresenta um procedimento
enunciador e enunciatário, os contra- que propõe articular a apreensão de
tos propostos, os meios empregados sentido através de um percurso que
para a persuasão e a interpretação e vai das formas mais concretas e parti-
suas metodologias. culares que se manifestam na superfí-
cie do texto às formas mais abstratas
O desenvolvimento da semiótica
e gerais dispostas em camadas, em ní-
integrou as pesquisas de Émile Ben-
veis gradativos de profundidade, que
veniste sobre a linguística da enuncia-
vão se complexificando da profundi-
ção, na apreensão do sentido através
dade à superfície, mostrando como o
das descontinuidades, produção e in-
180 percurso de significação se organiza
terpretação do discurso por sujeitos
e simula a geração de sentido. Esse
distintos. Nosso trabalho tem como
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

percurso gerativo distingue as estru-


foco de análise a enunciação, as rela-
turas em que se encontram os valores
ções entre enunciador e enunciatário
axiológicos, inscritos no quadrado se-
e a crença que os une através do con-
miótico, as mais profundas; as estru-
trato fiduciário que se propõe.
turas com os dispositivos modais, a
A análise vai além da dimensão da sintaxe actancial e o esquema narra-
palavra ou da frase e se preocupa com tivo, as semionarrativas; e as estrutu-
a organização global do texto; exami- ras discursivas onde são encontradas
na as relações entre a enunciação e o as figuras do espaço, de tempo e dos
discurso enunciado e entre o discurso atores, as tematizações e as figuras,
enunciado e os fatores sócio-históri- as projeções da instância da enuncia-
cos que o constroem (BARROS, 2003, ção no discurso-enunciado e das rela-
p. 188). A semiótica se preocupa com ções entre enunciador e enunciatário
a organização global do texto. e, principalmente, os procedimentos
SELINFRAN
utilizados pelo enunciador para levar Segundo Fiorin (1992, 2005), um
o enunciatário a crer e a fazer. enunciado é sempre produzido para
Segundo Fiorin (1992), discurso é ser comunicado a alguém e, por isso,
uma unidade do plano de conteúdo. o sujeito produtor do discurso desdo-
Quando um discurso é manifestado bra-se num enunciador e num enun-
por um plano de expressão qualquer ciatário. Através de dispositivos em-
seja ele de natureza verbal, pictórica pregados na produção do discurso,
ou gestual, temos então um texto. ou seja, o conjunto de procedimentos
Um mesmo plano de conteúdo pode argumentativos, o enunciador realiza
ter manifestações textuais diferen- um fazer persuasivo com a finalidade
tes, através de planos de expressão de convencer sobre a veracidade do
diferentes, por exemplo, a aula do Te- seu texto, enquanto o enunciatário
lecurso através do programa de TV realiza um fazer interpretativo. Entre
ou a aula através da apostila dispo- o enunciador e o enunciatário é esta-
nibilizada como material de apoio, belecido um acordo fiduciário quan-
um mesmo plano de conteúdo apre- do um enunciado é produzido.
sentado por planos de expressão di- O estatuto veridictório de um tex-
ferentes. É claro que cada plano de to estabelece a verdade e a mentira,
expressão traz consigo alterações de a realidade e a ficção, considerando
adequação, considerando as palavras que há contratos enunciativos de
de José Luiz Fiorin “que um plano de identidade e de contrariedade, de-
expressão não apenas veicula um pendendo do estabelecido entre o
conteúdo, mas recria-o”. ser (dizer) e o parecer (dito). Cabe
ao enunciatário, no seu fazer inter-
As projeções da enunciação no pretativo, a atribuição do estatuto de
enunciado, os recursos de persuasão verdade (/ser/ e /parecer/), de falsi-
utilizados pelo enunciador para ma- dade (/não-ser/ e não-parecer/), de
nipular o enunciatário, o revestimen- mentira (/não-ser/ e/parecer/) ou
to figurativo dos conteúdos narrati- 181
de segredo (/ser/ e não-parecer). O
vos abstratos são aspectos da análise

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enunciador utiliza mecanismos dis-
discursiva. As estruturas narrativas cursivos, estratégias de persuasão e
assumidas pelo sujeito da enuncia- consegue dar efeitos de franqueza e
ção tornam-se estruturas discursivas. de dissimulação.
Pessoa, espaço, tempo, figuras são
aspectos atribuídos pelo sujeito da O enunciador coloca-se como
enunciação. Enunciação é o ato de destinador-manipulador, responsá-
linguagem, uma instância pressupos- vel pelos valores do discurso e capaz
ta pelo enunciado e caracteriza-se de levar o enunciatário, seu destina-
como instância de mediação entre tário, a crer e a fazer. O fazer mani-
estruturas narrativas e discursivas. pulador realiza-se no e pelo discurso,
Para analisar o discurso, é necessá- como um fazer persuasivo. O fazer
ria a determinação das condições de interpretativo do enunciatário ocor-
produção do texto. re também no discurso-enunciado
(BARROS, 2002. p. 92-93).
SELINFRAN

O enunciatário, através de pro- lador que instaura o sujeito virtual, le-


cedimentos argumentativos utiliza- vando-o a querer ou a dever-fazer; e
dos pelo enunciador como destina- o que faz o sujeito atual, pela atribui-
dor-manipulador, é levado a admitir ção do saber e do poder-fazer. São
como verdadeiro o sentido produzi- dois fazeres distintos.
do. A relação de manipulação esta- O fazer persuasivo do enunciador
belecida entre enunciador e enun- depende da imagem construída de
ciatário será analisada através dos si mesmo e do enunciatário, que é a
contratos propostos e assumidos, os quem se destina o discurso. A ima-
meios empregados para a persuasão gem do enunciatário é importante
e a interpretação e os diferentes fa- para que o enunciador saiba o que
zeres pretendidos. ele pensa, sente e espera, para então,
Na manipulação, está previsto persuadir. Segundo Fiorin (2008),
um contrato fiduciário. No nível do “essa imagem consubstanciada num
discurso, o contrato fiduciário é um papel patêmico, tem uma dimensão
contrato de veridicção que valida o cognitiva: de um lado, ideológica, da
status veridictório do discurso. O tipo ordem do saber, de outro, da ordem
de discurso, a cultura e a sociedade do crer; uma dimensão patêmica e
são fatores que determinam o esta- uma dimensão perceptiva”(FIORIN,
tuto de verdade ou falsidade. 2008, p. 88).
O enunciador não produz discur- O enunciador, ao utilizar alguns
sos verdadeiros ou falsos, mas procedimentos, pode influenciar de
constrói discursos que criam alguma maneira o enunciatário, por
efeitos de sentido de verdade ou exemplo, ao implicitar ou explicitar
de falsidade, que parecem verda- conteúdos utilizando pressupostos
deiros. O parecer verdadeiro é in- ou subtendidos que levam o enun-
terpretado como ser verdadeiro, ciatário a interpretar o discurso da
182 a partir do contrato de veridic- forma que o enunciador pretende,
ção assumido (BARROS, 2002, criando um efeito de sentido que sur-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

p. 94).
ge na interpretação e que resulta do
A proposta de um contrato pelo reconhecimento das razões do enun-
enunciador e a interpretação do di- ciador em dizer o que disse. A prá-
zer-verdadeiro de um enunciatário tica de certos atos linguísticos para
se baseia em contratos anteriores re- atingir determinados fins, a lingua-
lativos à cultura, formação ideológi- gem não é apenas um instrumento
ca e da concepção de discurso e de de dizer o mundo, mas uma forma
seus tipos. O enunciatário não é um de nele agir, permite caracterizar o
ser passivo, é um ser que interpreta, sujeito da enunciação por seus atos
avalia, e pode, inclusive, rejeitar signi- de linguagem, cuja escolha é bastan-
ficações. te marcada do ponto de vista socio-
Na operação de manipulação há cultural. Persuadir, impressionar, con-
dois tipos de manipulador: o manipu- vencer, informar, ameaçar, prometer,
jurar e argumentar.
SELINFRAN
São condições prévias da argu- percurso temático. Para conhecer e
mentação e caracterizam o ‘con- explicar este fazer e apreender a ins-
tato dos espíritos’: a língua co- tância da enunciação é através da
mum a enunciador e enunciatário, análise interna e imanente do texto.
o fato de manterem relações so-
ciais, o desejo do enunciador de A enunciação como comunicação
entrar em comunicação e, em pode ser observada no discurso atra-
resposta, a atenção e o interesse vés do fazer emissivo e persuasivo do
do enunciatário (BARROS, 2002, enunciador e do fazer receptivo e in-
p. 107). terpretativo do enunciatário, o cará-
O enunciatário não adere ao dis- ter manipulador do discurso, a inten-
curso apenas pelo conjunto de ideias. cionalidade narrativa e a finalidade
Para a eficácia do discurso, o enun- argumentativa-discursiva que falam
ciatário se identifica com um sujeito do sentido. A enunciação como ins-
da enunciação (caráter, corpo, tom). tância de mediação entre estruturas
O modo de dizer é tão importante semio-narrativas e discursivas
quanto o que é dito, o conteúdo. E, O enunciador e enunciatário, sin-
assim, são construídos os sujeitos da cretizados no sujeito da enunciação,
enunciação, o enunciador e o enun- são produtores do discurso-objeto
ciatário, através do discurso, dos me- e responsáveis pela construção do
canismos sintáticos que promovem sentido.
esta relação.
Segundo Barros (2002, p. 141) “os
Os efeitos de realidade, que ga- objetos são construídos com duas
rantem a relação entre o discurso e o finalidades: suprir as carências ou
mundo, são construídos pelo investi- responder aos anseios do receptor”.
mento figurativo dos conteúdos pela Quando pensamos no programa em
semântica discursiva e estes efeitos análise, o Telecurso, observamos que
colaboram para convencer e persua- a carência de um programa educa- 183
dir. A conversão dos percursos nar- cional que atendesse à população
rativos em percursos temáticos, o

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


com maior dificuldade de acesso ao
revestimento figurativo são descritos ensino regular ocasionou a sua pro-
pela semântica discursiva. O sujei- dução e efetivou o seu uso pelo de-
to da enunciação é responsável pela senvolvimento em adequações às
disseminação discursiva dos temas e necessidades de seu público.
pela figurativização, provendo o dis-
curso de coerência semântica. O PROGRAMA TELEVISIVO EDU-
O enunciador (destinatário-mani- CATIVO TELECURSO
pulador), responsável pelos valores e Educação a distância pode ser
capaz de levar o enunciatário (desti- definida como uma modalidade de
nador-sujeito) a crer e a fazer. O enun- educação mediada por tecnologias
ciatário interpreta esse fazer persua- em que alunos e professores não
sivo realizado no discurso enunciado. estão fisicamente presentes em um
A enunciação é manifestada por este
SELINFRAN

ambiente físico de ensino-aprendiza- exibição até os dias de hoje através


gem, ao mesmo tempo e no mesmo dos canais educativos(TUDO SOBRE
lugar, apenas virtualmente. Essa al- TV, 2015).
ternativa de ensino possibilita aces-
O Telecurso 2000, lançado em
so à educação às pessoas em turnos
1995, englobou os dois segmentos,
e horários flexíveis e só se tornou
ensino fundamental e ensino médio,
mais abrangente devido à evolução
e desta veza Fundação Roberto Ma-
tecnológica. Exige do aluno discipli-
rinho fez parceria com a Federação
na, dedicação, organização e moti-
das Indústrias do Estado de São Pau-
vação, mas, ao mesmo tempo pos-
lo, a Fiesp, Senai e Sesi. Sob a dire-
sibilita a conciliação entre trabalho e
ção de Marcelo Tas, o elenco passa
estudo e outros afazeres que a pes-
a ser composto de atores até então
soa possa ter. Essa flexibilidade tem
anônimos, “sujeitos comuns”. A apre-
atraído cada vez um número maior
sentação das aulas ganha nova me-
de adeptos porque dá oportunidade
todologia, as aulas expositivas dão
de crescimento pessoal e profissio-
lugar às aulas apresentadas através
nal. Essa modalidade de ensino tem
de narrativas, que passam a ser ence-
tido incentivo do governo em Univer-
nadas. As aulas predominantemente
sidades Públicas, para a profissionali-
temáticas dão lugar a aulas figurati-
zação e especialização daqueles não
vas, marcando uma significativa mu-
podem pagar por este serviço.
dança de enfoque.
Embora o ensino a distância tenha
As parcerias feitas pela Funda-
se expandido com o advento da in-
ção Roberto Marinho, estabelecem-
ternet, há muito tempo mídias são
-se como importantes estratégias de
utilizadas com fins educativos.Desde
adesão, uma vez que apresentam um
1923, quando Roquette Pinto criou a
forte argumento de autoridade e por-
Rádio Sociedade do Rio de Janeiro
tanto de credibilidade. O telespecta-
184 que a educação no Brasil diversificou
dor que tem intenção de assistir às
de formato utilizando mídias para al-
aulas e avançar nos estudos confia na
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

cançar quem não tinha acesso à es-


Rede Globo, uma vez que essa emis-
cola física como também o Instituto
sora é uma das mais importantes do
Universal Brasileiro que utilizou os
país, e nas entidades com as quais as
Correios e, na TV, em 1961, o progra-
parcerias são feitas, que mantêm a
ma pioneiro foi um curso de alfabeti-
Fundação Roberto Marinho, e na TV
zação de adultos pela TV Rio, com a
Cultura, ligada à Fundação Padre An-
participação da professora Alfredina
chieta e depois a parceria com a Fun-
de Paiva e Souza. Desde então cente-
dação Bradesco, reconhecimento do
nas de programas educativos foram
MEC e avaliação pela Universidade
produzidos utilizando a mídia televi-
de Brasília. Conforme Barros (2002),
siva tanto para crianças como tam-
o argumento de autoridade tem por
bém para adultos. E para a educação
finalidade provocar ou aumentar a
de jovens e adultos, o Telecurso, cria-
adesão dos espíritos às teses apre-
do em 1978, que tem-se mantido em
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sentadas. do programa apoiam as explicações
As aulas de inglês do programa dos professores envolvidos. O as-
Telecurso Ensino Médio organizam- sunto é introduzido numa conversa-
-se como uma narrativa seriada com- ção, explica-se a estrutura utilizando
posta por 40 teleaulas que apresen- lousas, frases curtas e um vocabulá-
tam para o estudante um conteúdo rio repetitivo que facilita a memori-
condensado, se comparado ao con- zação. Através do narrador a seção
teúdo do ensino regular, consideran- “Vamos pensar um pouco...” reforça a
do que o programa é voltado para temática desenvolvida na aula e a se-
ensino supletivo, hoje chamado de ção “Revisão” retoma as explicações
EJA1 (Educação de Jovens e Adul- dos professores em cena, utilizando
tos). Utilizando tecnologias midiá- as mesmas imagens da aula.
ticas, audiovisuais, proporciona ao As aulas, por se tratarem de uma
telespectador que quer aprender in- narrativa seriada, mantêm uma certa
glês, uma aprendizagem de conteú- ordem, uma sequência que se repete
dos que servem de base para o en- em cenários em ambientes internos
volvimento com a língua estrangeira. e externos, de maneira regular: in-
Toda a composição do programa foi trodução do conteúdo → resumo do
pensada para proporcionar interação que vai acontecer na aula → conver-
e identificação desse público que sação → explicação do conteúdo em
aprende enquanto assiste ao progra- lousas → uma outra conversação →
ma televisivo. Isso ocorre, por exem- seção de turismo → seção de revisão
plo, pela caracterização das perso- → encerramento. Ação → reflexão →
nagens na mesma classe social dos ação, ou seja, conversação (uso) →
telespectadores (trabalhadores em explicação (lousas) → conversação
busca de escolarização)2, situações (uso).
cotidianas de trabalho, ambientes
domésticos etc. CONTEÚDO NARRATIVO 185
Todas as aulas têm mais ou menos Trata-se de uma família americana

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


o mesmo tempo de duração, em tor- que se muda para o Brasil, David Car-
no de 10 minutos cada. A aula mais ter, sua esposa Beth e o filho do casal
longa conta com 13 minutos e a mais Bob. David trabalha como técnico
curta 9 minutos. A sequência das en- em uma fábrica (não especificam em
cenações pode alterar de uma aula qual área), Beth trabalha como secre-
para outra, mas elas acontecem em tária em uma agência de viagens, e
todas as aulas. Em todas as teleaulas, por isso contratam Diana para cuidar
o conteúdo é apresentado na agên- de Bob. O ambiente familiar é bas-
cia de viagens, na residência dos Car- tante explorado pelo programa, prin-
ter, no cinema, etc. Algumas seções cipalmente, no café da manhã e no
jantar. A residência dos Carter é o es-
1 Para jovens e adultos que estão com defasagem idade-ano e preten-
dem retomar os estudos. paço em que cria-se uma proximida-
2 O próprio site revela que o programa é voltado para a camada da de com o espectador-aluno quando
população menos favorecida.
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aparecem pessoas fazendo ativida- Travel Agency, o próprio cenário é


des cotidianas (lavando louça, fazen- persuasivo, com imagens de lugares
do bolo, colocando a toalha na mesa turísticos, do Aeroporto Internacio-
ou tomando café da manhã). Neste nal de Cumbica. Neste espaço acon-
ambiente acontecem muitas conver- tecem contextualizações de muitas
sações e contextualizações das aulas, aulas, as conversas em inglês acon-
é um espaço de harmonia da família tecem entre os funcionários e sua
com amigos recebidos por eles. clientela, e entre os funcionários.
Diana, babysitter da casa dos Beth é americana e Virginia, a dona
Carter, cuida de Bob, um garoto de da agência, conversa com ela basica-
oito anos, que é brasileiro e filho dos mente em inglês. Ney é um aprendiz
americanos Beth e David Carter. Bob da língua inglesa muito curioso e está
é fluente nos dois idiomas e ajuda sempre tirando suas dúvidas com
Diana nos estudos de inglês. O intui- seus colegas de trabalho.
to dela ao trabalhar nesta residência É neste local também que a seção
é adquirir fluência na língua inglesa de turismo é apresentada através de
através da conversação entre os dois. slides manuais. Virginia e Ney mos-
Diana, como empregada, fazendo ati- tram lugares onde a língua inglesa é
vidades domésticas, estabelece um falada e que o aluno pode visitar e in-
fazer-crer com enunciatário-teles- teragir ao apropriar-se do objeto-va-
pectador que almeja terminar o en- lor que é aprender inglês. A primei-
sino médio (somos da mesma classe ra imagem que aparece na abertura
social e se ela pode, também posso). desta sessão é a frase “Let’s travel to-
Ela é simples e estudante de inglês, gether” convidando o aluno a “viajar”
pessoa comum, assim como o traba- enquanto assiste à exposição de ima-
lhador ou a trabalhadora que assiste gens de lugares turísticos pelo mun-
ao programa no intuito de aprender do. Uma manipulação por tentação.
186 o conteúdo das aulas. Estabelecen- A agência de viagens é um am-
do, assim, a crença de também po- biente onde o uso do inglês é cons-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

der-aprender/adquirir o saber. tante e, além de ser um ambiente de


A família Carter sempre está en- trabalho, é um ambiente que retrata
volvida em conversações em torno o acesso ao mundo através das via-
do café da manhã e do jantar. Bob gens, do turismo. A imagem de outros
e Diana sempre conversam enquan- países vista nos pôsteres e também
to ela cuida da alimentação dele, projetada na “Seção de Turismo” do
dos afazeres da casa e nos passeios programa persuade o aluno a que-
que fazem no parque. No ambiente rer conquistar a aprendizagem para
de trabalho de Beth, Sunshine Travel poder viajar e conhecer o mundo ou,
Agency, ela se relaciona com seus até mesmo, trabalhar em uma agên-
colegas de trabalho e com a dona da cia de viagens. De uma forma ou de
agência, Virgínia. outra, este saber conduz à ascensão
Na agência de viagens, Sunshine social e ao prestígio.
SELINFRAN
Ney, que trabalha como office-boy dos das aulas e que são comentadas
na agência de viagens Sunshine, não pelos ocupantes do cinema. A con-
domina ainda o inglês com fluência versação entre eles é natural e facilita
e é auxiliado por Virginia, a dona da o fazer do telespectador-aluno que
agência, e por Beth, sua colega de assume o papel temático de apren-
trabalho americana. Conversando diz modalizado pelo querer-saber, é
com seus companheiros de trabalho um dos momentos de conversação
vai aprendendo e, enquanto aprende, da aula. É um espaço bastante explo-
conversa com o telespectador sobre rado e faz parte de quase todas as
o que acabou de aprender. Ney é sim- aulas.
ples, humilde e divertido, sempre de Tom, David, Beth e Bob, falam in-
bom humor cantarola músicas que glês com maior desenvoltura, de-
contextualizam o conteúdo ministra- monstrando ao enunciatário (o teles-
do nas aulas. A linguagem coloquial pectador-aluno), o ato de falar inglês
usada por Ney estabelece um para- com fluência, realizando um querer-
lelo com o telespectador, simulando -fazer, aprender o idioma estrangeiro
igualdade social por meio da variante para realizar um fazer-fazer (falar in-
linguística empregada por ele. glês com fluência). O destinador pro-
Tom é um personagem importante, põe um contrato de aprendizagem
é um repórter americano, amigo da e tenta convencer o destinatário a
família Carter e que também trabalha aceitá-lo pela persuasão. O fazer-in-
no Brasil. Ele visita a casa do casal, terpretativo e o crer do destinatário
a agência de viagens e também a no fazer-persuasivo ou o fazer-crer
oficina de consertos de eletroeletrô- do destinador equivale na aceitação
nicos que pertence ao pai de Diana, ou na recusa do contrato durante a
Washington. Tom aparece fazendo manipulação. Se o manipulado com-
suas reportagens em ambientes ex- partilhar com o manipulador o siste-
ternos (ruas, parques e lugares públi- ma de valores em que a manipulação 187
cos em geral), visitando os amigos e, está inserida, esta será, então, bem

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


às vezes, em seu escritório, falando sucedida e a aprendizagem começa
de suas reportagens. a acontecer.
Um outro ambiente, bastante ex- O fazer transformador do sujeito
plorado pelo programa para contex- que ensina, agindo sobre o mundo do
tualizar as conversações, é o cinema. sujeito-aluno, que aprende ao assistir
Esse é um espaço que não mantém às aulas e transforma seu estado de
elo de convivência com os demais não saber e não poder para um sa-
ambientes, nele as conversas são en- ber e poder, interagir em inglês com
tre Vicente, um cliente fixo, e Gil, o o mundo, e sai da condição de sujeito
lanterninha. Também aparecem as virtual para sujeito realizado. A partir
conversas das personagens dos fil- do momento em que se estabelece
mes mudos que passam na tela do um contrato entre um destinador e
cinema contextualizando os conteú- um destinatário, acontece a comuni-
SELINFRAN

cação e o objeto-valor (aprender in- e assim uma adesão. “Uma etapa im-
glês) é compartilhado. portante do fazer interpretativo do
enunciatário acontece quando ele
A ESTRATÉGIA DA INTERAÇÃO identifica o universo do discurso (ou
parte deste universo) com seu pró-
PROXIMIDADE E IDENTIDADE prio universo” (GREIMAS; COURTÉS,
2008, p. 224).
Conforme Fiorin (2008), “a eficá-
cia do discurso está diretamente li- Os cenários, as personagens e a
gada à questão da adesão do enun- composição das imagens corrobo-
ciatário ao discurso.” É preciso que ram para o fazer interpretativo do
o enunciatário se veja constituído enunciatário e, consequentemente,
como sujeito, identificando-se com o sua adesão. Logo na primeira aula,
enunciador. O enunciador em ques- em que a apresentação começa na
tão é formado por todo o corpo da cozinha dos Carter, com Diana ali-
produção, desde quem dirige, quem mentando Bob, enquanto interage
escreve, quem produz, enfim, o cole- com o público, o processo de identi-
tivo da produção, mas sob o ponto de ficação se instala.
vista da significação, ele se constitui
numa imagem unitária do enunciador RECURSOS/LINGUAGENS
e assim a significação pode ser apre- As aulas do Telecurso apresentam-
endida em sua totalidade. -se como um texto predominante-
O termo ‘sujeito da enunciação’ mente narrativo, demonstra sempre
não diz respeito apenas ao enun- de maneira concreta as temáticas
ciador, mas cobre de fato as duas desenvolvidas. A escolha por apre-
posições actanciais de enuncia- sentar as aulas através de narrati-
dor e de enunciatário”, conside- vas é uma forma de concretização
rando o fazer do enunciatário um
do sentido segundo Fiorin (1992), e
188 ato de significar e não apenas
o destinatário da comunicação
essa é uma estratégia de interação e
de metodologia de aprendizagem. O
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p.


150). uso do texto figurativo para ensinar
atinge os enunciatários alunos mais
A imagem do enunciatário passa a facilmente pelo fato de ser mais con-
ser co-enunciador, porque determina creto e remeter ao mundo natural e
a constituição do discurso e portanto criar efeito de realidade.
o programa. Considerando que “o lei-
tor é também e sobretudo um ‘centro As narrativas das teleaulas contex-
do discurso’, que constrói, interpreta, tualizam o conteúdo da aula em uma
avalia, aprecia, compartilha ou rejei- conversação, depois são feitas expli-
ta as significações”. O Telecurso foi cações desse conteúdo em lousas e
criado considerando esta imagem novamente o conteúdo é contextua-
do enunciatário (jovem trabalhador lizado através de conversações (uso
de classe social menos privilegiada), → reflexão → uso).
para que houvesse uma identificação
SELINFRAN
Conforme Bertrand (2003, p. 296), cinema.
o contrato “designa mais fundamen- Um exemplo bem evidente da fi-
talmente o campo da factitividade: o gurativização foi o trabalho de Bob
fazer-fazer, que pressupõe um fazer- ilustrar um texto descritivo feito por
-crer, um fazer-querer ou dever, um Diana3. A metodologia usada para es-
fazer-saber e um fazer-poder”. Se o tudar este conteúdo foi do concreto
destinatário da manipulação, o aluno, para o abstrato, mostrando primeiro
crê poder aprender, através do pro- o trabalho de Bob e a correspondên-
grama que chega no interior de sua cia dele com o texto de Diana e, só
casa, movido por um querer ou por depois, é feito o levantamento das
um dever, ele adquire um saber que características. Diana escreveu uma
serve de base para poder usar o idio- redação descritiva para o curso de
ma nas suas relações sociais. inglês que ela faz. Tom é amigo dela
Diferentes linguagens podem ser e ela pediu para ele ler a redação e
usadas para a manifestação de um dar sua opinião. Tom transcreve a re-
texto, por exemplo, um texto pode dação em seu computador. Ele lê a
utilizar a linguagem escrita como for- redação em voz alta, mostrando o
ma de expressão (um livro, um texto texto escrito para o telespectador da
em prosa ou em versos), e esse mes- tela de seu computador. O aluno-te-
mo texto pode ser manifestado em lespectador lê o texto junto, enquan-
outra linguagem (música, peça de to aprende a pronúncia das palavras.
teatro, filmes). Para isso, os recursos Diana leu a redação para Bob e ele
utilizados podem variar muito, por fez desenhos ilustrando o texto, pas-
exemplo, uso de desenhos, de rádio, so a passo. Diana lê o mesmo texto
lousas, cinema etc. novamente e, desta vez, o aluno-ex-
Nas aulas, uma diversidade de lin- pectador acompanha a leitura atra-
guagens é utilizada para esclarecer vés dos desenhos de Bob.
os conteúdos. Por exemplo, na pri- Na figura abaixo, Diana segura a 189
meira aula do curso, o conteúdo é sua história enquanto os desenhos

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


o uso do verbo to be. Diana inicia a de Bob estão colados pela cozinha,
aula conversando em inglês, se apre- cena a cena.
sentado e apresentando Bob (uso
da linguagem oral e escrita na tela),
depois ela utiliza este conteúdo para
preencher um cupom para Bob con-
correr a um prêmio de um produto
americano. Em seguida, o narrador
utiliza este conteúdo para apresentar
as personagens do programa e pre-
encher fichas com as informações. Fonte: Telecurso, 2015.
Depois, são feitas explicações em Esta estratégia pode ser usada
lousas e ainda é contextualizado em 3 Aula 5, trata-se de uma aula de revisão e o texto é utilizado para
uma conversa entre Gil e Vicente no retomar o conteúdo das aulas 1 a 4.
SELINFRAN

para avaliar a habilidade de entendi- a aprendizagem ocorrem de manei-


mento do aluno a partir da leitura de ra espiralada: os alunos têm contato
um texto. Dependendo das habilida- com o objeto de estudo diversas ve-
des que o professor queira avaliar, o zes, em momentos e contextos dife-
aluno pode ter ou não contato com rentes”, nas aulas do Telecurso este
o texto verbal. O gênero descritivo é recurso metodológico também é uti-
estudado e as características que o lizado. Por exemplo, o “Simple Pre-
compõe também. sent” é ensinado no primeiro bloco
Quando o conteúdo sobre o uso de aulas (aula 1 a aula 5) e retoma-
de adjetivos em inglês é ensinado do em várias oportunidades, na aula
na aula 6, imagens são usadas para 8, em especial, Tom faz a leitura de
a compreensão do vocabulário. As depoimentos sobre a frequência com
mesmas imagens são reutilizadas que os entrevistados fazem certas
na aula 7, para a explicação dos ad- atividades e ressalta o uso do tempo
vérbios. O uso dessas imagens se verbal com detalhes. Depois, em au-
justifica para explicar o processo de las de revisão, o tempo verbal é nova-
formação dos advérbios a partir dos mente explicado e seu uso aplicado e
adjetivos e não há confusão entre salientado pelos professores.
o uso de um e de outro porque são Essas retomadas, além de contex-
dados muitos exemplos. Vicente, na tualizar o conteúdo em situações di-
sessão de cinema, levanta a hipótese ferentes, ajudam a fixar pela repeti-
da confusão e as explicações são fei- ção.
tas a partir dessa dúvida através da
seção “Vamos Pensar um Pouco...”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através do uso das mesmas imagens,
o programa aproveita para explicar o Nossa pesquisa objetivou reali-
processo de derivação das palavras, zar um estudo acerca do programa
conteúdo que está inserido no currí- televisivo Telecurso a fim de identi-
190
culo do 2º ano do Ensino Médio re- ficarmos e compreendermos as es-
tratégias de interação utilizadas no
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

gular.
O uso de músicas é incentivado processo de ensino e aprendizagem
pela figura da personagem Ney, que da língua inglesa, pois considerando
cantarola alguma música de vez em o programa como uma prática co-
quando, contextualizando o uso de municativa, acreditamos que essas
algum conteúdo. Na aula 11, por exem- estratégias fundamentam as meto-
plo, Ney introduz a música “Let’s try dologias utilizadas, foco de nossa
again” de Frank Sinatra, ilustrando o pesquisa.
uso da expressão usada para fazer A utilização de mídias torna o
sugestões. aprender lúdico e prazeroso, diversifi-
cando a forma de interação do aluno
METODOLOGIA DA REPETIÇÃO,
com o conteúdo. O inglês, como lín-
DA ROTINA, ESPIRALADA
gua presente em noticiários interna-
O Currículo do Estado de São Pau- cionais e eventos culturais de grande
lo (2008, p. 111) fala que “o ensino e
SELINFRAN
parte do mundo, pode ser aprendi- metodologia Telessala aplicada des-
do, em sala de aula, ouvindo a pro- de 1995, a partir do Telecurso 2000,
núncia do falante nativo e em tempo fez e faz parcerias com governos
real, através do uso da internet, por e prefeituras, com o exército, com
exemplo, ou através de excertos de presídios, com iniciativas privadas e
filmes, séries, músicas, games e tex- públicas e leva esta aula onde quer
tos midiáticos diversos com os quais que precise de um professor para im-
os alunos convivem, revelando que o plantar uma sala de aula e erradicar a
material utilizado pode ir muito além distorção. Qualquer lugar do mundo
do material impresso, sem dispensá- em que a língua portuguesa é falada
-lo, é claro. A persistência de Paulo tem a possibilidade de ter uma teles-
Freire, em 1960, para o uso de recur- sala, corrigindo a defasagem na mo-
so tecnológico (o projetor de slides), dalidade EJA ou até como recurso de
e o sucesso do programa de alfabe- ensino regular, em algumas regiões.
tização implantado naquela época, O aluno é modalizado pelo dever
confirmam a eficiência da diversifica- concluir o ensino médio como funda-
ção de recursos. mental para a sua interação social, a
No dizer de Arlindo Machado: “À conquista de um espaço na socieda-
medida que o mundo natural, tal de, numa empresa.
como conheceram as gerações de Através da proximidade e identi-
outros séculos, vai sendo substituí- dade, adequando a linguagem para
do pela tecnosfera - a natureza cria- promover a interação, uso de várias
da ou modificada pela ciência, novas linguagens e textos diversos, diver-
realidades se impõem” (MACHADO, sificando a utilização de recursos
2010, p. 31). midiáticos, estratégias que atraem a
O modo de se relacionar, de cir- atenção do aluno persuadindo e pro-
cular, de perceber, de existir e de re- vocando a adesão ao ensino propos-
presentar o mundo sofreram mudan- to e proporcionando a possibilidade
191
ças profundas. As novas tecnologias de aprendizagem. O professor pro-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


penetraram em todos os espaços do põe um contrato de fidúcia e o fazer
planeta e interferiram na vida de to- interpretativo do aluno avalia confor-
dos os povos, tanto para o bem quan- me sua crença aderindo ou não.
to para o mal. Com a aceleração tec- Concluímos que a diversificação
nológica, a exigência de atualizações metodológica proposta pelo progra-
é capaz de mudar a nossa vida. Os ma sobre o uso de tecnologias pode
que se adaptam com facilidade são atualizar e enriquecer o trabalho do-
valorizados e aqueles que não conse- cente e, consequentemente, otimizar
guem acompanhar são muitas vezes o ensino e a aprendizagem. As ino-
descartados. vações que o programa apresenta
A metodologia do Telecurso so- sobre o uso de estratégias midiáticas
brevive até hoje pelo caráter midiá- nos fazem concluir que a aula que
tico e pelo seu caráter narrativo. A tem movimento tende a manter o
aluno atento.
SELINFRAN

O estudo da língua inglesa deve gem. A aprendizagem de uma língua


dar suporte para o educando tornar- estrangeira facilita experiências que
-se membro de diferentes comunida- definem a identidade linguística e
des discursivas, ou seja, estabelecer cultural do indivíduo e colabora para
relações com diferentes grupos so- a formação e exercício da cidadania
ciais, usando o idioma como lingua- dos estudantes.

REFERÊNCIAS
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hommage spour Algirdas Julien Greimas. Amsterdam: John Benjamins, 2003.
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diação. In. ABRIATA, V. L. R. (Org). Leitura: a circulação dos discursos na contemporaneidade. Franca/SP:
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www.tudosobretv.com.br/educa/importancia.htm>. Acesso em: 20 dez. 2015.

192
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN
SELINFRAN
PERFORMANCES IDENTITÁRIAS DE RAÇA E GÊNERO E AS ORDENS
DE INDEXICALIDADE NO DESABAFO DE UMA MULHER NEGRA NO
YOUTUBE

Romilda Pinto da SILVEIRA


Glenda Cristina Valim de MELO

RESUMO
Esta pesquisa pretende, especificamente, analisar as performances discursivas de
raça e gênero e as ordens de indexicalidade mobilizadas no desabafo gravado por
uma mulher negra, ao tecer críticas sobre a minissérie de televisão “Sexo e as Ne-
gas”. Para realizar esta investigação, embasamo-nos na linguagem como atos de
fala performativos e nas concepções de raça e gênero como construções sociais,
históricas, discursivas e performativas segundo as Teorias Queer. Esta pesquisa é
de cunho etnográfico virtual, realçando a preocupação com a visão dos participan-
tes no contexto social. Para análise das performances discursivas de raça e gênero
e ordens de indexicalidade, faremos usos das categorias de análises sugeridas por
(WORTHAM, 2001). A análise piloto mostra que as performances identitárias da
advogada oscilam entre uma postura queer e performances essencializadas.

PALAVRAS-CHAVE: Raça e gênero; teorias Queer; performances discursivas;


ordens de indexicalidade; mulheres negras. 193
ABSTRACT

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


This research aims at analyzing, specifically, the discursive performances of race
and gender, and the indexicality orders mobilized in ta unburdening recorded by
a black woman to criticize he TV serie “Sexo e as Negas”. Based on that, in this
research, we consider language as performative speech acts and the concepts of
race and gender as social constructions, historical, discursive and performative
according to the Queer Theories. This investigation is a virtual ethnographic,
highlighting the concern with the view of the participants in the social context. For
the discursive performance of race and gender and the indexicality orders analysis,
we will use the indexical clues suggested by (WORTHAM, 2001). The pilot analysis
shows that the lawyer’s identity performances oscillate between a queer posture
and essentialised performances.
KEYWORDS: Race and gender; Queer theory; discursive performances; in-
dexicality orders; black women.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO tos negrxs que lutam em prol da va-


lorização dx negrx e uma gama de
De acordo com Rampton (2006),
discussões online sobre racismo e
na Modernidade Recente, ou Moder-
muitas demonstrações de repúdio a
nidade Reflexiva proposta Giddens
insultos raciais. Nesse contexto, ques-
(1991), o foco das pesquisas está na
tões como raça e gênero têm sido
reflexividade sobre nós mesmos,
discutidas nas redes sociais. Citamos
uma característica que define a ação
como exemplo o caso da jornalis-
humana, nas práticas sociais, na mo-
ta Maria Júlia Coutinho, a Maju, que
nitoração do comportamento e seus
apresenta as condições climáticas no
contextos. Considerado um período
Jornal Nacional, vítima de comentá-
de transformação, transição, contes-
rios preconceituosos recentemente
tação, mutações, mudança de pensa-
na internet. Além disso, essas ques-
mento, etc., no campo das pesquisas
tões são também abordadas na TV,
científicas, a Modernidade Reflexiva,
como pode ser observado, na minis-
como alguns teóricos no campo das
série “Sexo e as Negas”, um progra-
Ciências Humanas e Sociais a deno-
ma de televisão que problematizou
minam, tem cada vez mais reconhe-
a questão racial e propiciou debates
cido a grande representatividade da
fervorosos nas redes sociais.
linguagem na compreensão da vida
social na contemporaneidade. Assim, elucidando brevemente a
gênese das minisséries e suas evolu-
Além disso, podemos observar
ções, na década de 1980, mais preci-
que esse período refere-se comu-
samente na emissora Globo de Tele-
mente à pós-modernidade – em opo-
visão, ocorreu a primeira transmissão
sição ao tradicional – que em sentido
de uma minissérie. Estruturalmente,
geral corresponde a estar vivendo
essas produções possuem caracterís-
uma “nítida disparidade do passado”
ticas específicas, por exemplo, menor
e “que nada pode ser conhecido com
194 quantidade de capítulos, não tem du-
alguma certeza”; ou seja, o conheci-
ração estipulada, podem ter inúme-
mento pode ser revisado através de
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

ras temporadas, o uso da linguagem


novas práticas sociais, que uma nova
é mais coloquial, geralmente a trans-
geração está sendo reinventada, se-
missão ocorre após às 22h e abordam
gundo proposta de Giddens (1991, p.
temáticas variadas, como: drogas,
45). Contudo, nos tempos atuais é
traição, questão racial, homossexua-
desafiador pensar novas formas que
lidade, etc., tendo a intenção de cau-
colaborem com essas práticas sociais
sar impacto social e entretenimento
na era da globalização “que trouxe à
(POMA; VIÉGAS, 2009). Entretanto,
tona diversas transformações na vida
as minisséries recentes apresentam
pessoal, criando novas demandas e
um novo estilo de abordagem. O que
ansiedades” (SILVA JUNIOR, 2014, p.
antes se constituía em uma adapta-
2).
ção criada para manter uma conexão
No Brasil, estamos presenciando o com as obras literárias, a minissérie
crescimento constante de movimen- “Sexo e as Negas”, transmitida no
SELINFRAN
dito “horário nobre” da emissora Glo- pela perspectiva das Teorias Queer
bo em setembro de 2014, levou ao te- como construções sociais, históricas,
lespectador uma discussão próxima à discursivas e performativas (LOU-
realidade da vida cotidiana de alguns RO, 2000; BUTLER, 2003, 2004;
grupos sociais brasileiros. Como pro- BARNARD, 2004; WILCHINS, 2004;
tagonistas, o programa trouxe atrizes MELO, MOITA LOPES, 2013).
e atores negrxs encenando perfor-
mances identitárias do cotidiano de OBJETIVOS
algumas comunidades cariocas.
Neste sentido, tendo como foco
Neste estudo, optamos pelo desa- as questões de linguagem, raça e gê-
bafo em vídeo de uma mulher negra, nero, o objetivo geral deste estudo é
advogada e de classe média porque,- analisar as performances discursivas
segundo dados do IBGE, há poucas de raça e gênero em um desabafo
mulheres negras que ocupam cargos gravado por uma mulher negra e di-
de destaque na perspectiva do senso vulgado no YouTube, ao tecer críticas
comum (MELO; MOITA LOPES, 2013). sobre a minissérie de televisão intitu-
Além disso, conforme Ribeiro (2009), lada “Sexo e as Negas”. Já como ob-
a propagação do machismo e do ra- jetivo específico, pretende-se iden-
cismo produz diversos “estigmas de tificar as ordens de indexicalidade
objeto sexual, serviçal e subservi- observadas no desabafo. Dessa for-
ência” sobre essas mulheres. Perce- ma, a presente investigação pretende
be-se, portanto, a necessidade de responder às seguintes perguntas:
um estudo aprofundado sobre essa
1. No texto desabafo, veiculado
questão de raça e gênero, pela rele-
no YouTube, que performances dis-
vânciapara a valorização das mulhe-
cursivas de raça e gênero são obser-
res negras e por proporcionar maior
vadas?
visibilidade àquelas que cotidiana-
mente rompem barreiras para serem 2. No texto em análise, que ordens 195
reconhecidas como sujeitos sociais. de indexicalidade de raça e gênero

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


são mobilizadas nas performances
Nessa investigação, para estudar
discursivas observadas?
as questões de raça e gênero, temas
centrais desta pesquisa e também
ARCABOUÇO TEÓRICO
os Discursos sobre os mesmos, con-
sideramos a linguagem como atos Para realizar esta investigação,
de fala performativos na perspecti- consideramos a linguagem como
va de Austin (1962/1990) e Derrida atos de fala performativos na pers-
(1972/1988), os quais afirmam que pectiva de Austin (1962/1990). O ter-
ao proferir, produz-se. Derrida ainda mo performativo, cunhado por ele,
acrescenta que tais atos de fala per- surge a partir de suas reflexões de
formativos ganham a ideia de subs- como fazemos coisas com a lingua-
tância pela iterabilidade e pela cita- gem e agimos através da linguagem.
cionalidade. Além de raça e gênero O autor postula de maneira inédita a
SELINFRAN

questão da linguagem cotidiana em tivos para considerar a articulação de


uso. Segundo o estudioso os atos de três importantes níveis dos atos de
fala eram divididos em constatativos fala performativos: os atos locucio-
e performativos. No primeiro caso – nário, ilocucionário e perlocucionário.
constatativo – há enunciados que são Sintetizando o conceito desses atos,
ou verdadeiros ou falsos, por exem- Austin afirma que dizer algo é fazer
plo, “hoje está chovendo”, na prática algo corresponde a um ato locucio-
estamos fazendo uma descrição; no nário, porque trata da produção dos
segundo caso – performativo – na sons pelo falante; o ato ilocucionário
declaração “prometo que lhe pagarei consiste na realização do dizer algo –
amanhã” uma ação acontece. Des- produz-se, então, a ação; e o ato per-
se modo, o enunciado não pode ser locucionário – por dizer algo fazemos
analisado a partir de verdadeiro ou algo – caracteriza-se como o efeito
falso, como acontece no constata- sobre x outrx, isto é, a consequência
tivo, pois não é uma descrição, nem gerada pelo ato de dizer algo.
está relatando ou constatando nada, Vale destacar segundo Otto-
pois segundo Austin (1962/1990) o ni (2002) que na argumentação de
performativo é um fazer. Em outras Austin, de modo especial, o perfor-
palavras, ao enunciarmos, uma ação mativo, o ato de fala e o ilocucionário
é realizada pela linguagem, ou seja, é estão vinculados e se complemen-
performativa. Austin ainda diz ser ne- tam, ou seja, um serve para explicar
cessário existir condições especiais o outro. Ainda sobre as questões de
para que um ato performativo se rea- constatativos e performativos, a di-
lize, citamos um clássico exemplo de cotomia entre estes atos foi descons-
suas conferências: eu te batizo, neste truída posteriormente pelo próprio
caso somente um padre estaria legi- Austin e também por Derrida, pois
timado a exercer a ação de batizar consideram performativos todos os
alguém, nas concepções austinianas atos de fala.
196
este ato seria anulado ou sem efei-
Derrida (1972/1988) faz uma relei-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

to caso fosse proferido por qualquer


outra pessoa. Em outro exemplo tra- tura dos atos de fala de Austin e julga
dicional quando se diz: eu prometo não haver necessidade de condições
sem ter a intenção de cumprimento especiais para que o ato de fala per-
da ação, realizou-se uma falsa pro- formativo se realize. Derrida questio-
messa. Nesse caso, duas das três na acrescentando que tais atos de
forças estariam sendo atribuídas ao fala performativos ganham a ideia de
enunciado performativo: a força ilo- substância pelas noções de iterabili-
cucionária e perlocucionária. dade e citacionalidade, ou seja, por
meio da repetição de tais atos nas
Retomando as questões das forças práticas sociais e sua propagação
dos atos de fala vale destacar que institucionalizada. Nesta perspectiva,
Austin (1962/1990) volta às bases ressaltamos que nas concepções der-
das questões fundamentais dos pro- ridianas, a intenção não existe fora do
ferimentos constatativos e performa-
SELINFRAN
discurso, para ele a intenção se dá na tos de iterabilidade e citacionalidade
interação. postulados por Derrida (1972/1998),
Embasamo-nos, também, nas a construção discursiva e performati-
concepções de raça e gênero como va de raça acontece a efeito dos atos
construções sociais, históricas, dis- de fala performativos da escravidão,
cursivas e performativas, segundo da abolição, da Ciência da Raça, de
as Teorias Queer (LOURO, 2000; democracia racial e miscigenação
BUTLER, 2003, 2004; BARNARD, (HENRIQUE, 2007; MUNANGA, 1986;
2004; MELO, MOITA LOPES, 2013), TELLES, 2003) que de um lado pre-
teorias que contestam e desconstro- conizam a inferioridade dos corpos
em atos de fala que trazem sofrimen- ébanos e de outro a inexistência do
tos performativos. As Teorias Queer racismo e destaque na igualdade de
colocam a diferença em questão e oportunidades equivalentes para os
questiona tudo que traz sofrimentos. brasileiros, independente das ques-
Essas Teorias propõem desestabilizar tões raciais.
as regras, normas, as práticas regula- Portanto, em relação à mulher ne-
doras e podem ser entendidas como gra em contexto brasileiro, depara-
de oposição e contestação, ou seja, mos com práticas sociais que as co-
colocar-se contra normalizações “ve- locam em situações de inferioridade
nha ela de onde vier”. (LOURO, 2001, no momento em que as consideram
p. 546). Ainda de acordo com Louro, como objetos sexuais, subserviência,
“Queer representa claramente a di- de grande resistência física, que só
ferença que não quer ser assimilada se encaixam em serviços domésticos.
ou tolerada e, portanto, sua forma De acordo com Melo e Moita Lopes
de ação é muito mais transgressiva e (2014, p. 243), as Teorias Queer con-
perturbadora”, portanto, uma teoria testam esses conceitos da chamada
que critica também binarismos e es- ciência da raça, ou seja, “a ideia de
sencialismos nas práticas sociais. que a raça é determinada biologi- 197
Já a raça é compreendida como camente e de que as características

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


uma construção histórica, social e físicas/psicológicas são únicas de-
performativa nas perspectivas das Te- terminantes na constituição do su-
orias Queer. Segundo Sullivan (2003) jeito, desconsiderando as influências
ser negrx, brancx ou amarelx, por sociais, históricas e discursivas nas
exemplo, seria resultado dos diver- práticas sociais”. Essas construções
sos atos de fala performativo a que acontecem pela iterabilidade e cita-
são cotidianamente expostos desde cionalidade, ou seja, transformam-se
seu nascimento, ou seja, sujeitos so- em substâncias através das repeti-
ciais constituídos performativamen- ções em vários espaços, por exem-
te. Levando em conta a concepção plo, escola, igreja, novelas etc.
de linguagem como performance Ao discutirmos sobre raça e gêne-
proposta por Austin (1962/1990) e ro para as Teorias Queer não é bio-
Derrida (1972/1988) e dos concei- lógico e sim uma construção social,
SELINFRAN

discursiva e performativa. Vale ressal- performances”.


tar que Butler aceita o biológico, ela
não nega a materialidade, mas pre- INSTRUMENTAL TEÓRICO-ANA-
ocupa-se com o social, assim como LÍTICO
o faz com gênero, a autora também
Nesta investigação, por sermos su-
entende gênero como um ato de
jeitos históricos, sociais e culturais, é
fala performativo. Ela problematiza
relevante observar como nossos Dis-
e conceitua o termo gênero em sua
cursos são construídos nas práticas
obra Problemas de gênero: feminis-
sociais. Segundo Pontes (2009, p.
mo e subversão da identidade. Ela
28)
também discute a questão da duali-
dade sexo/gênero, ponto de partida O modo como usamos a lin-
para a desconstrução: sexo é distinto guagem, enquanto conjunto de
de gênero. recursos simbólicos que entra
na constituição do sistema so-
Dessa forma Butler (1990/2014, p. cial e a representação individual
59) argumenta, alinhada à teoria da de mundos reais ou possíveis, e
desconstrução através dos conceitos como atribuímos determinado
derridianos de iterabilidade e citacio- valor aos objetos, aos quais nos
nalidade, que referimos existencialmente em
determinadas situações comuni-
O gênero é a estilização repetida cativas, evidencia a capacidade
do corpo, um conjunto de atos humana de indexicar significados
repetidos no interior de uma es- através da linguagem.
trutura reguladora altamente rí-
gida, a qual se cristaliza no tem- Alguns conceitos de indexicali-
po para produzir a aparência de dade são discutidos por Guimarães
uma substância, de uma classe (2014). De acordo com a pesquisa-
natutal de ser. dora, para Silverstein e Urban (1996),
198 Sendo assim, o gênero para Butler indexicalidade “é a propriedade do
é culturalmente construído e impos- signo linguístico de apontar para
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

to por práticas reguladoras. Portanto, projeções semiótico-textuais, que in-


ao discutirmos a questão da mulher dicam a interpretação de um ato co-
negra, em contexto brasileiro, per- municativo ao ser localmente e cul-
cebemos diversos discursos natura- turalmente contextualizado” e ainda
lizados, sedimentados e cristaliza- ressalta que para Bloommaert (2014,
dos social, cultural e historicamente. p. 4) “indexicalidade é a dimensão
De acordo com Melo e Moita Lopes do significado em que caracterís-
(2014, p. 545), “transformar a mulher ticas textuais apontam (indexam)
negra em sujeito social envolve des- significados recuperáveis contextu-
construir tais discursos cristalizados almente”. Nesse sentido, entende-se
de raça na sociedade, assim como os que indexicalidade são palavras que
discursos solidificados sobre gênero apontam para valores que categori-
e sexualidade, possibilitando outras za, também são signos que apontam
para o significado, ou seja, indexica-
SELINFRAN
lidade é esse fenômeno que aponta sociais promovidas pela globaliza-
para os Discursos que são construí- ção. Segundo Milton Santos (2000),
dos coletiva, social e historicamente. o mundo globalizado é também um
Ainda conforme Rocha (2013, p. 127), lugar onde tudo passa pelo discurso.
o fenômeno da indexicalidade nos si- Diante disso, gera-se a necessida-
nalizaria que “[...] não há cisão entre de de expor nossos sentimentos, de
escalas micro e macrossociais, prin- transgredir e de contestar, como é o
cipalmente porque essa classificação caso da advogada negra, que utilizou
por vezes se dá a partir de conven- o Youtube para fazer seu desaba-
ções estabelecidas na teoria social”. fo, aliviar-se e desoprimir-se. Temos,
A ordem indexical constrói cate- portanto, os diversos meios de co-
gorias no mundo social que podem municação, que nos propiciam essas
cristalizar ao longo do tempo e da possibilidades de exposição, citamos
história, construindo assim “modos aqui a Internet (Web 2.0), pois segun-
essencializados e específicos para do Melo e Moita Lopes (2014, p. 543),
certos sujeitos e grupos sociais” “os sujeitos sociais contemporâneos
(MELO; MOITA LOPES, 2014). Já as se apropriam das diversas TICs e de
ordens de indexicalidade, compre- recursos da web 2.0 e, ao assim fa-
endidas de acordo com Guimarães zerem, encontram outras possibilida-
(2014), obedece uma hierarquia, são des de contar histórias sobre quem
sistemas de valoração e normativida- são [...]”. Vale destacar também que
des institucionalizados nos proces- a internet é um lugar do híbrido e de
sos interacionais. coexistências de discursos. Sendo
Para entender como esse proces- assim, no ambiente online, os sujeitos
so de construção acontece optamos sociais diversos, como é o caso das
pelas ordens de indexicalidade, pro- mulheres negras, encontram menos
postas por Blommaert (2010, p. 32) dificuldades para as discussões so-
que verifica como “os valores, as bre raça, gênero etc. (PARREIRAS,
199
crenças ou normas que são hierarqui- 2009).

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


zados, estratificados e apontados no A presente pesquisa tem um
processo de indexicalização de Dis- cunho etnográfico virtual, realçando
cursos por meio de escalas locais e a preocupação com a visão dos
translocais”. Essas escalas represen- participantes no contexto social
tam o deslocamento de mensagens (CAVALCANTI; MOITALOPES,
ou pessoas no espaço e no tempo si- 1991). De acordo com o Laboratório
multaneamente, regidos por normali- de Etnografia e Estudos em
zações, valores e códigos. Comunicação, Cultura e Cognição
da Universidade Federal Fluminense
METODOLOGIA E CONTEXTO DE (2002): “A pesquisa etnográfica
PESQUISA apresenta e traduz a prática da
Presenciamos nos dias atuais observação, da descrição e da
grandes transformações, reinvenções análise das dinâmicas interativas e
etc., na vida cotidiana dos sujeitos comunicativas como uma das mais
SELINFRAN

relevantes técnicas”. Segundo Hine tenham como desabafo mesmo...”. O


(2000; 2005) e Guimarães (2005), vídeo foi disponibilizado também no
a etnografia necessita ser repensada perfil da advogada no Facebook.
e adaptada para novos contextos, A minissérie estreou no dia 16 de
como exemplo, o ambiente online, setembro de 2014, sendo transmitida
isso se deve a grande demanda do pela emissora Globo às terças-feiras
cotidiano, pois é permeada pelas TICs. após às 22 horas. A partir daí o vídeo,
Ainda segundo Hine (2000, 2005), com pouca duração (1m46s), tomou
por intermédio da etnografia virtual grandes proporções, sendo curtido
seria possível investigar as práticas e e comentado por diversas pessoas,
interações vivenciadas em contexto alguns/mas contra, outrxs a favor,
online e de que forma isso ocorre outrxs com elogios, outrxs se iden-
através das TICs. Esta pesquisa é tificando. A autora do desabafo dis-
caracterizada por etnográfica virtual, ponibilizou o vídeo no site Youtube e
porque acompanhamos a publicação respondeu a alguns dos comentários.
do site por mais de seis meses,
observando os comentários e os O instrumento etnográfico é um
espaços em que era compartilhado desabafo de uma mulher negra cri-
tanto no Youtube como no Facebook. ticando a minissérie “Sexo e as ne-
gas”, disponibilizado no Youtube em
No mês de agosto e início de se- 14 de setembro de 2014, de 1m46s de
tembro de 2014, com o anúncio e duração. A opção pelo vídeo ocor-
divulgação da minissérie “Sexo e as re pelo fato de ele ter se propagado
Negas” na TV, surgiram vários deba- rapidamente pela internet, tomando
tes sobre o tema abordado nessa mi- grandes proporções, sendo curtido e
nissérie nas diversas mídias sociais. comentado por diversas pessoas, al-
Um vídeo, em especial, começou a guns/mas alinharam-se ao desabafo,
ser veiculado nas redes sociais com fizeram elogios, identificaram-se, mas
200 o desabafo de uma mulher negra que houve também quem se opusesse às
ocupa posição profissional de nível críticas presentes no vídeo. A advo-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

superior, ou seja, é graduada em Di- gada respondeu a alguns comentá-


reito, queixando-se das referências rios gerados pelo seu desabafo. A es-
expressas na minissérie em relação colha desse vídeo ocorreu por tratar
às mulheres negras. Esse vídeo nos da questão racial e pela sua grande
chamou atenção pelo discurso de repercussão observada no site do
raça e gênero feito pela autora, bem Youtube que teve 60.783 visualiza-
como pela repercussão e pelo nú- ções, 1.569 curtidas, 63 (des)curtidas,
mero de comentários dele resultan- até 18 de junho de 2015 e 333 co-
tes. O vídeo foi publicado em 13 de mentários até 27 de abril de 2015, e
setembro de 2014, com a seguinte na página da advogada no Facebook
abertura: “Fiz esse vídeo na quinta... foram 2.936.130 visualizações, 18.641
Nunca esperei que alguém quises- curtidas e 116.508 compartilhamen-
se vê-lo nesse canal... Enfim, era um tos, até 27 de junho de 2015.
desabafo! E espero que as pessoas o
SELINFRAN
Para análise das performances voz moderado e que enfatiza seu de-
discursivas e das ordens de indexi- sacordo com as referências sobre as
calidades, faremos uso dos índices mulheres negras que a TV faz.
lingüísticos sugeridos por (SILVERS-
TEIN,1985,2003) entendidos aqui ANÁLISE PILOTO DAS PERFOR-
como marcas lingüísticas que sinali- MANCES DISCURSIVAS DE GÊ-
zam as ações semióticas dos partici- NERO E RAÇA E ORDENS DE IN-
pantes na interação e as categorias DEXICALIDADE NO DESABAFO
de análise de Wortham (2001) enten-
didas da seguinte forma: a referência A autora do desabafo está em pri-
são elementos do mundo ao qual o meiro plano, bem vestida e maquia-
sujeito se refere e a predicação ca- da, sem segundo há uma cafeteira,
racteriza esses elementos mencio- uma escultura representando a jus-
nados. Os descritores metapragmá- tiça, foto, reforçando a performance
ticos descrevem a linguagem usual, identitária de mulher negra bem su-
ou seja, os verbos dos dizeres, como cedida, detentora da verdade.
falar, questionar, afirmar, perguntar, No desabafo realizado pela advo-
entre outros. A citação é a referência gada, através dos índices linguísti-
à citação da fala do outro re-criando cos (resolvi), verbo do pretérito per-
um momento da interação. Os ava- feito do indicativo; (falar), verbo no
liadores indexicais são expressões, presente do indicativoda referência
modos de falar específicos de alguns (parada) e do termo coloquial (aí)
grupos. Já os modalizadores epistê- sinaliza que ela exporá sua opinião
micos indicam supostas verdades. sobre a minissérie em “Sexo e as Ne-
Essas categorias serão essenciais na gas”. Através dos índices linguísticos,
construção de novos sentidos. caracterizados por meio da predica-
Salientamos também que para a ção e referência (negra juíza, negra
análise das imagens presentes no de- promotora, negra defensora, negra 201
sabafo, utilizaremos a proposta de médica), sua performances discur-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


Kress; Van Leeuwen, (1996), pois, aju- sivas de gênero e raça acionam ou-
dam-nos a compreender as perfor- tras possibilidades que podem ser
mances discursivas observadas. Os encenadas pelas mulheres negrasao
recursos semióticos multimodais uti- serem retratada na TV. A advogada
lizados nesse desabafo ajudam-nos a demonstra preocupação na orienta-
identificar as performances discursi- ção negativa indexicalizado pelas re-
vas de raça da advogada, colocando ferências (problema, referência, me-
em destaque sua posição de mulher ninas), além do verbo (crescem) e da
negra bem sucedida. Através da ima- preposição (sem) que indica ausên-
gem projetada, podemos observar o cia de exemplos mais positivos para
ambiente de trabalho bem organiza- a nova geração de mulheres negras.
do, com símbolos que representam É...então, resolvi falar dessa pa-
sua profissão, ela em primeiro plano, rada aí do ‘Sexo e as Negas’. Eu
bem vestida, postura vertical, tom de penso o seguinte: o problema é
SELINFRAN

a referência, as meninas crescem sunto, “vamo” mudar o foco, essa


sem “vê” uma negra juíza, sem coisa “de” da preta que sacode a
“vê” uma negra promotora, sem bunda para ganhar dinheiro, da
“vê” uma negra defensora, sem preta extremamente sexy, gosto-
“vê” uma negra médica. sa, que pega todo mundo, tá cha-
to, tá cansando... Eu sou negra e
No desabafo, observamos ain-
o meu sexo é privado, é assunto
da uma performance identitária de de fôro íntimo, meu trabalho “tá
questionamento de que as mulhe- aqui ó”, é esse aqui, eu faço isso
res negras seriam representadas na para “ganha” a vida. Então por
TV de forma negativa, isso pode ser que “que” toda hora na TV tem
observado pelas referências e pre- essa história de preta gostosa,
dicações (preta na televisão, preta preta com a bunda na laje, pre-
do pagode, preta do samba, preta ta assim...pre...? chega! Miguelito,
do esquenta, preta do funk). Além muda de assunto. Vamos fazer
disso, percebemos uma performan- outra coisa, sabe? Vamos falar de
outra coisa! Eu quero outras re-
ce discursiva preconceituosa já que
ferências, eu quero outro tipo de
há uma hierarquização entre preta e
preta na televisão, não a preta do
negra em seu desabado, o primeiro pagode, não a preta do samba,
compreendido como negativo (preta não quero a preta do esquenta,
que sacode a bunda, preta extrema- não quero a preta do funk, não!
mente sexy, preta gostosa, preta com
A performance discursiva de raça
a bunda na laje, preta assim, preta
encenada pela advogada negra cria
na televisão, preta do pagode, preta
um distanciamento entre ser mulher
do samba, preta do esquenta, preta
negra bem sucedida e ser mulher
do funk) e o segundo como positivo
negra em posição inferior que são
(negra juíza, negra promotora, negra
indexicalizadano uso da predicação
defensora, negra médica, eu sou ne-
(negra) para profissões de status e
202 gra).
da predicação (preta) para referir-se
É...então, resolvi falar dessa pa- a mulher negra em outros ambien-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

rada aí do “Sexo e as Negas”. Eu tes. Dessa forma, de acordo com as


penso o seguinte: o problema
Teorias Queer, que contestam nor-
é a referência, as meninas cres-
cem sem “vê” uma negra juíza,
malizações, essa ideia apaga outras
sem “vê” uma negra promotora, possibilidades de ser de mulher ne-
sem “vê” uma negra defensora, gra, contrariando assim as propostas
sem “vê” uma negra médica. Eu destas teorias (BARNARD, 2004).
não consigo imaginar que em ne- Além disto, a ordem de indexica-
nhum lugar do mundo uma mu-
lidade sugerida através dos índices
lher linda como a Cris Viana, por
linguísticos (consigo, imaginar) ver-
exemplo, longilínea, magérrima,
com aquele sorriso, aquele “ca- bos do presente do indicativo, pelos
belão”, seria empregada domés- marcadores de lugar (nenhum lugar
tica. Só nas novelinhas. Então, do mundo), pelareferência e predica-
“peraí” né? Vamos mudar de as- ção (mulher linda), pelas predicações
SELINFRAN
e referências (longilínea, magérrima, cansando... Eu sou negra e o meu
com aquele sorriso, aquele cabelão), sexo é privado, é assunto de fôro
pelo verbo no futuro do pretérito íntimo, meu trabalho “tá aqui ó”,
(seria) e pela profissão (empregada é esse aqui, eu faço isso para “ga-
nha” a vida. Então por que “que”
doméstica), observa-se aqui uma es-
toda hora na TV tem essa histó-
tratificação onde a advogada com-
ria de preta gostosa, preta com
preende que para ser empregada do- a bunda na laje, preta assim...
méstica não pode ter boa aparência: pre...? chega! Miguelito, muda de
Eu não consigo imaginar que em assunto. Vamos fazer outra coisa,
nenhum lugar do mundo uma sabe? Vamos falar de outra coisa!
mulher linda como a Cris Viana, A advogada menciona que não
por exemplo, longilínea, magér-
tem televisão, por não se ver retrata
rima, com aquele sorriso, aquele
“cabelão”, seria empregada do-
na nos programas. Através dos índi-
méstica. Só nas novelinhas. En- ces linguísticos (na boa), percebe-se
tão, “peraí” né? que em sua performance discursiva
o uso da linguagem é bastante usal
Por outro lado, algumas observa- no meio carioca, não se preocupando
ções na performance discursiva da com termos complexo.
advogada sinalizam como ela ques-
tiona a questão racial abordada pela Aliás é por isso que eu não tenho
(TV?), né? já falei, meus amigos
minissérie no emprego dos descrito-
todos sabem disso. Porque eu
res metapragmáticos (mudar de as-
não me vejo retratada em ne-
sunto, mudar o foco, fazer outra coi- nhum desses programas, então,
sa, falar de outra coisa). Através dos “na boa”? Vam...”Vamo” avan-
índices linguísticos de referências e çar, vamos mudar de assunto e
predicações (preta extremamente aqui...o vídeo é rapidinho porque
sexy, preta gostosa, preta com a bun- eu preciso trabalhar, porque nem
da na laje, preta assim), dos avaliado- toda preta sacode o quadril para 203
res indexicais (tá chato, tá cansando) “ganha” dinheiro. (Beijos).

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


e pela interjeição (chega) significan- A advogada termina seu desaba-
do por um basta, mobilizando uma fo repetindo através dos índices lin-
performance discursiva de reivin- guísticos (vamos mudar de assunto).
dicação e uma apelação para que a Observa-se em sua performance dis-
mulher negra na TV não seja retrata- cursiva ainda em sua fala final, atra-
da apenas com o foco em seus cor- vés dos índices linguísticos (o vídeo
pos, sugerindo outras possibilidades é rapidinho porque eu preciso traba-
de retratar a mulher negra na TV: lhar, porque nem toda preta sacode
Vamos mudar de assunto, “vamo” o quadril para “ganha” dinheiro) que
mudar o foco, essa coisa “de” da ela se coloca como preta, mas usa o
preta que sacode a bunda para termo quadril e não o termo bunda
ganhar dinheiro, da preta ex- como mencionados nos índices lin-
tremamente sexy, gostosa, que guísticos anteriores ao se referir a
pega todo mundo, tá chato, tá mulher preta, sinalizando que não faz
SELINFRAN

uso do corpo para ganhar dinheiro. raça para retratar a mulher negra na
Aqui, ela aciona através dos índices televisão, sugerindo outras possibili-
linguísticos mencionados, a ordem dades, demonstrando preocupação
de indexicalidade da mulher negra e com as referências para a nova gera-
objeto do samba. ção de mulheres negras. Ao mostrar
no vídeo a sua posição profissional
CONSIDERAÇÕES FINAIS através do ambiente, ela encena uma
performance discursiva de orgulho
No desabafo da advogada, veicula-
pela profissão que exerce enquanto
do no YouTube, fica evidente sua per-
mulher negra, indicando que existem
formance discursiva de uma mulher
diversas áreas onde essa mulher pos-
negra que contesta os atos de fala
sa ser retratada. De acordo com as
performativos que sedimentam Dis-
Teorias Queer, esta questão demons-
cursos que constroem as mulheres
tra essencialismo, o que contraria as
negras negativamente e as colocam
propostas desta Teoria de compre-
em posições sociais de desprestígio.
ender as subjetividades raciais como
Ela encena também em sua perfor-
interseccionadas por gênero, raça,
mance discursiva de raça e gênero a
classe social etc (LOURO, 2000;
mulher negra para além desses dis-
BUTLER, 2003, 2004; BARNARD,
cursos de inferiorização. Em seu de-
2004; MELO, MOITA LOPES, 2013).
sabafo, a autora do vídeo sugere que
se dê outra perspectiva de mulheres Dessa forma, espera-se contribuir
negras na TV, com outras referências para a desconstrução e desnaturali-
para “as meninas”. De acordo com o zação dos discursos de inferiorização
seu argumento, os idealizadores da e a falta de visibilidade das mulheres
minissérie reforçam a condição de in- negras, sedimentados histórica e so-
ferioridade das mulheres negras, se- cialmente. Almeja-se também incen-
dimentando os atos de fala que co- tivar a linha de estudos sobre a lin-
204 locam a mulher negra em uma única guagem, raça e gênero tão pouco
situação. explorada cientificamente.Está pes-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

quisa está em andamento, por isto,


Ao longo de sua performance
os dados estão começando a ser
discursiva a advogada mobiliza al-
analisados.
gumas ordens de indexicalidade de

REFERÊNCIAS
AUSTIN, J.L. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Artes Médicas: Porto Alegre,1990.
BARNARD, I. Queer race: cultural interventions in the racial politics of Queer theory. NewYork: Peter
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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. RiodeJaneiro:CivilizaçãoBra-
sileira,2003.
CAVALCANTI, M. C.; MOITA LOPES,L.P. Implementação de pesquisa na sala de aula de línguas no contexto
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DERRIDA, J. Assinatura acontecimento contexto. In: Margens da filosofia. São Paulo: Papirus, 1972/1991.P.
349-373
SELINFRAN
KRESS G, VAN LEEUWEN, T. Reading images: the grammar of visual design. London: Routledge, 1996.
LOURO, G.L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. 2. ed. Autêntica: BeloHorizonte, 2000.
MELO, G.C.V.; MOITALOPES,L.P. As performances discursivo identitárias de mulheres negras em uma co-
munidade para negros na Orkut. DELTA, São Paulo, v. 29, n. 2, p. 237-265. Disponível em: http://dx.doi.
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MELO, G. C. V. de; MOITA LOPES, L. P. da. Ordens de indexicalidade mobilizadas nas performances discur-
sivas de um garoto de programa: ser negro e homoerótico. Linguagem em (Dis)curso– LemD, Tubarão, SC,
v. 14, n. 3, p. 653-673, set./dez. 2014.
PONTES, H. A indexicalidade na construção discursiva de identidades sociais. Revista do GELNE, v. 11, p.
27-40, 2009.
WORTHAM, S. Narratives in action. New York: Teacher College Press, 2001.

ANEXO I trabalho “tá aqui ó”, é esse aqui, eu


faço isso para “ganha” a vida. Então
TRANSCRIÇÃO VÍDEO DA ADVO- por que “que” toda hora na TV tem
GADA, PUBLICADO NO YOUTUBE essa história de preta gostosa, pre-
EM 14 DE SETEMBRO 2014 ta com a bunda na laje, preta assim...
pre...? chega! Miguelito, muda de as-
É... então, resolvi falar dessa para- sunto. Vamos fazer outra coisa, sabe?
da aí do “Sexo e as Negas”. Eu pen- Vamos falar de outra coisa! Eu que-
so o seguinte: o problema é a refe- ro outras referências, eu quero outro
rência, as meninas crescem sem “vê” tipo de preta na televisão, não a pre-
uma negra juíza, sem “vê” uma negra ta do pagode, não a preta do samba,
promotora, sem “vê” uma negra de- não quero a preta do esquenta, não
fensora, sem “vê” uma negra médica. quero a preta do funk, não! Eu quero
Eu não consigo imaginar que em ne- outro tipo de mulher negra retratada
nhum lugar do mundo uma mulher na televisão. Aliás é por isso que eu
linda como a Cris Viana, por exemplo, não tenho (TV?), né? já falei, meus
longilínea, magérrima, com aquele amigos todos sabem disso. Porque
sorriso, aquele “cabelão”, seria em- eu não me vejo retratada em nenhum 205
pregada doméstica. Só nas noveli- desses programas, então, “na boa”?

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


nhas. Então, “peraí” né? Vamos mu- Vam...”Vamo” avançar, vamos mudar
dar de assunto, “vamo” mudar o foco, de assunto e aqui...o vídeo é rapidi-
essa coisa “de” da preta que sacode a nho porque eu preciso trabalhar, por-
bunda para ganhar dinheiro, da pre- que nem toda preta sacode o quadril
ta extremamente sexy, gostosa, que para “ganha” dinheiro. (Beijos).
pega todo mundo, tá chato, tá can-
sando... Eu sou negra e o meu sexo é Disponível em: < https://www.youtube.com/wat-
privado, é assunto de fôro íntimo, meu ch?v=Dg3OalbOVVo>
SELINFRAN

AULAS DE INGLÊS ONLINE: O ETHOS RETÓRICO DO PROFESSOR

Stelamaris Dias Milhim VAN DOREN


Maria Flávia FIGUEIREDO

RESUMO
Em toda enunciação o orador tenta usar mecanismos que favoreçam a construção
de uma imagem de si. Essa imagem do orador, revelada por meio do discurso, é
denominada ethos - “o caráter que o orador deve assumir para chamar a atenção
e angariar a confiança do auditório” (REBOUL, 2004, p. XVII). Para a retórica, os
éthe revelados pelos oradores ao defenderem suas teses são relevantes para o êxi-
to de suas discussões e para a defesa de seus pontos de vista. O presente estudo
será realizado analisando-se o ethos de professores em quatro diferentes aulas de
inglês online, divididas entre níveis básico e intermediário, que serão escolhidas no
site YouTube. Almejamos traçar o perfil dos professores das aulas analisadas. Des-
sa forma, esperamos contribuir para o meio acadêmico através do possível vislum-
bre da relação entre o ethos apresentado e a eficácia retórica da aula ministrada.
PALAVRAS-CHAVE: Retórica; ethos; professor de língua inglesa.
ABSTRACT
In every utterance the speaker tries to use mechanisms that favor the construction
of his/her image. This image, revealed through the speech, is called ethos - “the
206 character that the speaker should assume to draw the attention and raise the con-
fidence of the audience” (REBOUL 2004: XVII.). For the rhetoric, the ethe revealed
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by speakers to defend their theses are relevant to the success of their discussions
and to defend their views. This study will be conducted by analyzing the ethos of
teachers in four different online English classes, divided into basic and interme-
diate levels, which will be on the YouTube site. We aim to trace the profile of the
teachers from these analyzed classes. Thus, we hope to contribute to the academic
environment through the possible glimpse of the relationship between the ethos
presented and the rhetorical effectiveness of the given class.
KEYWORDS: Rhetoric; ethos; English teacher.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO Os ethé revelados na enunciação dos
oradores ao defenderem suas teses
Aulas online, videoaulas e cursos
são relevantes para o êxito de suas
à distância vêm crescendo de forma
discussões e defesa de pontos de
exponencial por todo o Brasil criando
vista.
novas formas de ensinar e de apren-
der e novas interações entre profes- Pensando no novo papel desse
sores e alunos. Tal mudança não se professor virtual, este trabalho visa
dá somente no âmbito universitário, analisar os ethé revelados nos discur-
mas também no aprendizado de lín- sos de 04 professores de língua in-
guas que já conta com variados cur- glesa.
sos desenvolvidos por escolas ou por Este estudo tem relevância no
professores autônomos. meio educacional pois almeja identi-
Como professora de inglês, que ficar quais aulas são mais eficientes e
acompanha as mudanças tecnológi- eficazes retoricamente para o apren-
cas no mundo, sempre me pergun- dizado de inglês através da análise
tava qual o papel do professor de do ethos dos professores nas aulas
Língua Estrangeira Moderna em au- estudadas, proporcionando aos pro-
las online – como deveriam ser suas fissionais da educação, que já atuam
aulas, sua metodologia, os conteúdos em salas virtuais ou que pretendam
apresentados. Mais tarde, em contato começar, um material de pesquisa
com a Retórica, meus questionamen- para uma aula bem dada.
tos passaram a ser:
•de que forma o professor pode OBJETIVO
usar a sua imagem, o seu ethos, para O objetivo do presente trabalho
conseguir a atenção de alunos via in- é analisar o ethos do profissional de
ternet? língua inglesa em aulas online com o
•o ethos tem uma influência direta intuito de vislumbrar a relação entre 207
na eficácia retórica da aula? o ethos apresentado e a eficácia re-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


tórica da aula ministrada.
Em toda enunciação o orador ten-
ta usar mecanismos que favoreçam ARCABOUÇO TEÓRICO
à construção de uma imagem de
si. Essa imagem que o orador reve- O conceito teórico a ser analisa-
la de si mesmo nesse discurso é de- do é o ethos retórico, a imagem que
nominada de ethos. Segundo Meyer o orador passa de si mesmo, e que
(2007, p. 34-35), o ethos pode ser “o torna exemplar aos olhos do au-
compreendido como “uma excelên- ditório, que então se dispõe a ouvi-
cia que não tem objeto próprio, mas -lo e segui-lo” (MEYER, 2007, p. 34).
se liga à pessoa, à imagem que o ora- Segundo Aristóteles (2011), três são
dor passa de si mesmo, e que o torna as causas que inspiram confiança na
exemplar aos olhos do auditório, que personalidade do orador, que nos
então se dispõe a ouvi-lo e segui-lo”. induzem a crer em uma coisa inde-
SELINFRAN

pendentemente de prova qualquer. aludindo a vários objetos: o espaço


São elas: o bom senso, ou prudência, físico, as pessoas envolvidas, o tem-
o bom caráter moral, ou virtude e a po estabelecido para o processo de
boa vontade, ou benevolência, tam- aprendizagem, as tarefas desenvolvi-
bém chamadas de phronésis, areté e das. Contudo, podemos afirmar que
eúnoia, respectivamente. “A confian- a aula é um momento estruturado de
ça suscitada pela disposição do ora- trabalho onde há um processo de en-
dor provém de três causas, as quais sino, pressupondo professor e alunos
nos induzem a crer em uma coisa e um conteúdo.
independentemente de qualquer de- Também podemos dizer que aula
monstração: a prudência, a virtude e é: “exposição oral sobre determinada
a benevolência”. área de conhecimento, feita por pro-
Phronesis significa o bom senso, a fessor e dirigida a um ou mais alunos”
prudência, a ponderação. Arete de- (COSTA, 2012, p. 44)
nota a virtude, “mas virtude tomada A fim de nortear nossa pesquisa,
no seu sentido primeiro de ‘qualida- no que se refere aos estudos retóri-
des distintivas do home’ (latim uir, cos, selecionamos os seguintes au-
uiri), portanto a coragem, a justiça, a tores: Aristóteles (2005, 2011), Eggs
sinceridade” (FIORIN, 2015, p.71). Eu- (2005), Fiorin (2015), Meyer (200,
noia significa a benevolência e a soli- 2007), Perelman e Olbrechts-Tyteca
dariedade. (2005) e Reboul (2004). Na análise
Com base em releituras de Aristó- da prosódia fizemos uso de Cagliari
teles, Fiorin (2015) afirma que quem (2007) e Figueiredo (2006). No que
se utiliza da phronesis exprime opi- tange à retórica da imagem, toma-
niões competentes e razoáveis, se mos Barthes (1990) e Dondis (1997).
mostra sensato, ponderado. Quem se Para o estudo da internet como facili-
utiliza da arete mostra-se como al- tadora do aprendizado de inglês, uti-
208 guém simples e sincero, desbocado, lizamos Leffa (2006) e Levy (1996).
franco, temerário e que constrói suas Para o estudo dos gêneros, Bakthin
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

provas muito mais com os recursos (2003) e Costa (2012).


do ethos. E aquele que lança mão da
eunoia passa uma imagem agradável METODOLOGIA
de si, porque mostra simpatia, solida- O presente estudo será realizado
riedade e bem querer pelo auditório. analisando-se o ethos de professo-
Além de conceituarmos o ethos, res em quatro diferentes aulas de in-
visto que o corpus desta pesquisa é glês online, que foram escolhidas por
constituído de aulas de inglês onli- meio do site YouTube. Neste artigo,
ne, cabe-nos descrever esse gênero. apresentaremos duas das análises
A palavra aula vem do latim “aula’, efetuadas.
do grego “aulé” e remete-se ao pa- Para seleção do corpus, foi
lácio ou sala onde se recebe classe, necessário um levantamento de
lição. Ela abrange vários significados diversas vídeo-aulas disponíveis no
SELINFRAN
site YouTube. Optamos por dividir se finda em apenas 10 ou 20 minutos
nossa pesquisa em dois níveis de A escolha desses cortes se deu por
inglês – básico e intermediário considerarmos que dessa forma con-
com os temas “Greetings and seguiríamos analisar como o ethos
Introductions” e “Present Perfect aparece em diferentes situações com
Tense”, respectivamente. e sem o uso de recursos variados.
Acessamos o site mencionado,
digitando, primeiramente, as pala- DESCRIÇÃO E ANÁLISE PILOTO
vras “Greetings and Introductions” DO CORPUS
e procedemos à escolha dos vídeos Das quatro aulas selecionadas,
apresentados. Como a quantidade duas serão apresentadas na presente
de vídeos disponíveis era muita gran- análise piloto. Vejamos:
de, decidimos lançar mão de alguns
critérios de escolha. Optamos por a) ANÁLISE DO VÍDEO LEARN
quatro vídeos para cada nível de pro- ENGLISH WITH JENNIFER -
ficiência no idioma estudado1. Den- INTRODUCING YOURSELF
tre esses quatro vídeos de cada ní- A vídeo-aula selecionada para
vel, dois deveriam ser apresentados análise inicia-se com uma música de
por professores do sexo masculino, fundo bem suave. Não há letra, há
sendo um vídeo com um homem ao apenas o instrumental em um volu-
centro num formato mais tradicional me baixo. Logo que a aula começa,
e com poucos recursos mediáticos e essa música é interrompida e temos
outro vídeo com um maior nível de a imagem da professora à esquerda
produção. Os outros vídeos deveriam do vídeo e da aluna à direita, uma de
ser apresentados por mulheres, com frente para outra e ambas de lado
os mesmos critérios de escolha. para a câmera. A mesma música é re-
Tal procedimento foi o mesmo para tomada ao final do vídeo. O plano de
o nível intermediário, onde digitei as fundo é um quadro negro decorado 209
palavras “Present Perfect Tense” tam- com uma pista de corrida, com vários

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


bém no site www.youtube.com. carros de cores diferentes e pneus ao
A extensão da aula também foi ou- longo da pista, como constatamos na
tro fator de limitação para a escolha
de nosso corpus. As aulas deveriam
ter entre quatro e 12 minutos, pois,
sengundo uma educadora america-
na, Tracey Tokuhama-Espinosa, em
seu artigo The Scientifically Substan-
tiated Art of Teaching (2011), a capa-
cidade do aluno de reter informações
1 A divisão do conteúdo a ser dado em cada nível está orientada no
Common European Framework of Reference for Languages, Quadro Figura 1 – Learn English with Jennifer
Europeu Comum de Referência para as Línguas, definido pelo Conse- Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=zBNQ-
lho da Europa em 2001, um documento que explica o que se espera de Q0ZFZbg&index=6&list=PL0A0C8CFFE9712B76
um aluno em cada nível.
SELINFRAN

A mensagem linguística, isto é, a preso para trás, deixando o rosto li-


ministração da aula realizada pela vre de qualquer fio caído pela face.
professora, constitui os elementos Nesse sentido, a imagem de pessoa
verbais que, por sua vez, são acom- tradicional foi construída por aspec-
panhados pela mensagem icônica co- tos de ordem física, assim como de
dificada – os elementos que formam traços comportamentais. Além disso,
a imagem em si, que nos lembram o cenário contribuiu na formação do
algo conhecido da realidade: o qua- ethos e do discurso tradicionais.
dro negro ao fundo remetendo-nos
à forma tradicional de se ministrar Ethos de paciente
aulas, bem como a posição em que
Outro ethos que percebemos é o
professora e aluna estão, sugerindo
de paciente. Como já mencionado no
o diálogo. Nesse sentido, tem-se a
item prosódia, o uso da velocidade
mensagem icônica não codificada –
e volume baixos e da pausa tornam
os vários sentidos que a observação
a aula agradável de ser ouvida e
dos elementos imagéticos resgata,
demonstram o caráter paciente da
com base em uma visão cultural de
professora. Além disso, ela repete a
uma sociedade.
mesma frase várias vezes para que a
Os ethe encontrados na nossa aná- aluna consiga reproduzir a pronúncia
lise serão listados nas alíneas subse- e aprender, conforme já mencionado
quentes: anteriormente. Quando a aluna está
se esforçando para construir as frases,
Ethos de tradicional a professora aguarda calmamente.
O ethos de pessoa tradicional foi
evidente em função do próprio ce- Ethos de agradável
nário onde a aula foi ministrada, bem Agradável também é um dos ethe
como dos traços comportamentais da oradora. Somada à sua voz suave,
210
da professora. Mesmo em se tratan- vemos a valorização e a aprovação
do de uma aula gravada em vídeo demonstradas pela professora por
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

para ser exibida online, percebe-se meio de sorrisos diante de todo o es-
o uso de um quadro negro (confor- forço da aluna e, em termos linguísti-
me observado anteriormente), sem cos, por meio das expressões: “Very
nenhum outro recurso midiático. A good”, “Ok”, “It’s OK”, como vemos
vestimenta da professora também nos exemplos abaixo:
salienta esse traço de tradição: um
“J: Listen. What is your name?
típico suéter listrado de gola rolê,
de cores escuras que não chamam a N: What is your name?
atenção para nenhum aspecto físico J: Very good. Again.”
da professora. Não há maquiagem
forte, na verdade, talvez somente “N: My name is... my name is Na-
um batom bem claro nos lábios, nem tasha. What your ... What is ...?
tampouco bijuterias. Seu cabelo está J: Ok, It’s ok. What is. Try again.”
SELINFRAN
“N: What is your? My name is Na- contrário, seu sorriso nos lábios e nos
tasha. What is your name? olhos é facilmente visto. A seriedade
J: My name is Jennifer, ok? And está na forma como conduz sua aula,
then we say: Nice to meet you. com explicação clara, repetição e
preocupação com a atitude respon-
N: Nice to meet you. siva da aluna.
J: OK.”
Meios de persuasão e tipos de
Sobre essas respostas positivas
dadas pela professora, Leffa (2008)
ethe encontrados
nos fala que tal procedimento segue Vale observar que a professora usa,
a teoria do behaviorismo de Skin- em sua aula, os seguintes meios de
ner, que via a língua como um hábito persuasão: o docere (ensinar, instruir)
condicionado que era adquirido por – lado argumentativo do discurso – e
meio de um processo de estímulo e o movere (comover) – lado emotivo
resposta. No caso da aula em ques- do discurso –, visando, nesse sentido,
tão, a professora parece se valer do persuadir o auditório com sua fala.
estímulo para lograr o aprendizado Sobre esse assunto nos explica Re-
por parte da aluna. boul (2004) quando trata dos estilos
Também são suaves os aspectos dos latinos: o nobre (grave), o simples
gestuais que a oradora usa, como o (tênue) e o ameno (médium). Para
movimentar das mãos e da cabeça. uma oratória eficaz, o orador deve
Por meio desses elementos, ela con- escolher o estilo que mais convir. O
segue estabelecer uma comunicação nobre está relacionado ao pathos e
positiva com sua interlocutora. Como tem a função de comover. O simples
Reboul (2004) nos mostra, todos os está ligado ao logos e sua função é
gestos e inflexões da voz do orador a de explicar e informar. Finalmente,
são puramente retóricos. o ameno, ligado ao ethos, tem a fun-
211
ção de agradar. Nossa oradora bus-
Ethos de comprometida cou ensinar e comover a aluna e seu

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


auditório.
O ethos de pessoa comprometida
mantém-se por todo o vídeo. A pro- De acordo com Eggs (2005), en-
fessora repete a mesma frase várias contramos, na Retórica de Aristóte-
vezes e requer da aluna o mesmo les, a afirmação de que os oradores
para que a pronúncia seja apreen- inspiram confiança por três razões:
dida, numa clara demonstração de a prudência/sabedoria prática, que
comprometimento com o ensino e o Aristóteles chamou de phronesis, a
aprendizado da língua inglesa. virtude, por ele nomeada de arete e
a benevolência que recebeu o nome
Ethos de profissional séria de eunoia.
O ethos de profissional séria não Em um processo discursivo,
significa que ela seja austera. Pelo o orador deve mostrar, tanto ao
SELINFRAN

enunciar quanto em seu enunciado, Bianca está sentada em uma ca-


prudência/sabedoria prática (parte deira giratória de couro preto, e na
do discurso relativo ao logos; virtude parede ao fundo tem um painel de
– ser honesto e sincero –, que se madeira com uma estante branca
atrelada ao ethos; a benevolência – nele afixada. Ali se encontra uma ca-
ser solidário e amável –, característica neca de louça branca com o logo do
ligada à dimensão do pathos. (FIORIN, site (Inglês de Bolso) e um copo com
2015, p. 71) várias canetas e lápis.
Pudemos perceber, dentre as três
espécies de ethe, que o ethos de
phronesis – que representa a sabe-
doria prática, o bom julgamento do
orador – foi demostrado na enuncia-
ção da professora, uma vez que ela
demonstra conhecimento. Porém, o
ethos de eunoia é o mais presente
na imagem construída pela oradora,
uma vez que ela demonstra solida-
Figura 2 – Inglês de Bolso
riedade e preocupação em relação
Fonte:https://www.youtube.com/watch?v=kt-
à aluna e ao seu aprendizado. Como ZEPN_RL44
nos mostra Fiorin, a partir da leitura
de Aristóteles, o orador que faz uso Encontramos os seguintes ethe na
da eunoia se mostra solidário com oradora deste vídeo:
seu auditório, de igual para igual para
com ele e benevolente. Ethos de moderna
O ethos de moderna se dá
b) Análise vídeo Inglês de Bolso: não somente pelos dados visuais
212 O vídeo começa com a professora, disponíveis (DONDIS, 1997) como
de nome Bianca, cumprimentando o o corte e cor de cabelo com uso de
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auditório com um sorriso largo. Ela dread, a vestimenta e a maquiagem,


tem cabelos repicados de cor casta- mas também pelo uso da figura de
nha avermelhada com mechas lou- linguagem apóstrofe, vista em vários
ras nas pontas e um dread verde do momentos, em frases como: “Dude”,
lado direito. Usa maquiagem. Traz em “Cara”, “Mano”. Nesse sentido, vale
seu pescoço dois colares, um de cor- lembrar que o ethos retórico é
da com alguns nós e contas pretas e manifestado no discurso mediante
uma estrela de madeira ao meio, es- as escolhas linguísticas feitas pelo
tilo hippie, e um outro de prata com orador (cf. EGGS, 2005). Ainda
uma medalha oval, estilo mais clássi- sobre a figura, Fiorin (2014) mostra-
co. Veste uma regata de cor escura nos que a apóstrofe é caracterizada
e uma jaqueta por cima, de estampa pelo distanciamento da situação de
de cobra, nos tons verde claro e ver- enunciação para conduzir a essa cena
de oliva. enunciativa quem, a priori, não era o
SELINFRAN
interlocutor. Ela também faz uso de tem purê ou não, fazendo uma alusão
gírias como: “dá um nó”; “tipo”; “tá à nova mania nacional de comer hot
ligado”; “nego”. dog com purê, e diz que vai lançar a
polêmica se “hot dog tem ou não tem
Ethos de desmoderada purê”. No livro Anatomia da crítica de
1973, Northorp Frye nos fala que os
Temos, já nos primeiros minutos
três tipos de personagens cômicas
do vídeo, um ethos de desmode-
definidos no Tractatus Coislinianus
rada, que permanece até o final da
foram, provavelmente, baseados na
apresentação. Além das gírias, a lin-
classificação de Aristóteles. São eles:
guagem corporal da apresentadora
o alazón (impostor ou fanfarrão), o
é notadamente usada. O movimen-
eíron (ironista ou autodepreciador) e
to das mãos aparece na maior par-
o bomolóchos (bufão). Este é o que
te do tempo do vídeo, assim como o
melhor caracteriza nossa oradora:
movimento da cabeça para os lados,
exaltação da comicidade, cuja função
para cima e para baixo, e o revirar de
é encorajar à alegria” (cf. FRYE, 1973).
olhos. A articulação labial também é
Sobre o riso, Aristóteles (2005) tam-
bem marcante.
bém nos mostra que ele, assim como
o gracejo, faz parte do caráter do jo-
Ethos de descontraída
vem.
A professora mostra um ethos
de descontraída e, para conseguir a Ethos de negligente
aproximação e consequente adesão A professora se mostrou negli-
de seu auditório, lança mão de uma gente com seu auditório ao utilizar
estratégia que podemos considerar apenas uma parte da letra da músi-
como uma tese de adesão inicial2: ini- ca “Have you ever seen the rain”, e
cia o vídeo cantando, acompanhada traduzi-la para o português, negli-
por um violão. genciando a segunda parte “coming 213
down on a sunny day?” Na aula, ela
Ethos de cômica

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ensina que a frase acima significa
Esse ethos fica claro quando ela “Você já viu a chuva?” e, a partir daí,
usa o humor ao citar a personagem faz piadas e ri satirizando a impossi-
de desenho animado Pikachu, e não bilidade de alguém nunca ter visto a
sabendo como classificá-la, pergunta chuva. Contudo, o conteúdo da mú-
para alguém, (provavelmente a pes- sica, e consequentemente, seu signi-
soa que estava gravando o vídeo), o ficado é mais completo. A letra diz:
que era aquilo. O humor também é “Have you ever seen the rain coming
visto quando ela pergunta se hot dog down on a sunny day?”, que, em por-
2 A tese de adesão inicial é a tese preparatória. Quando o auditório
tuguês, quer dizer: “Você já viu a chu-
concorda com ela, a argumentação ganha estabilidade, pois é fácil par- va caindo em um dia de sol?”, fenô-
tir dela para a tese principal. As teses de adesão inicial fundamentam-
-se em fatos ou presunções. Os fatos fazem o auditório concordar com
meno natural menos comum, mas de
uma tese, já as presunções contribuem com a adesão inicial, pois são grande beleza.
suposições fundamentadas dentro daquilo que é normal ou verossímil
(cf. ABREU, 2009, p.44). Ao agir assim, a professora acabou
SELINFRAN

passando conhecimentos equivoca- lumbrar o comportamento ethico dos


dos aos seus ouvintes, o que pode- professores de aulas de inglês online
rá comprometer o entendimento do e demonstrar que a eficácia retórica
uso desse tempo verbal. está atrelada a esse comportamento.
Pudemos constatar a presença dos
Ethe encontrados ethe de eunoia e phronesis nas duas
Percebemos que a oradora tenta oradoras, mesmo que em escalas di-
persuadir seu auditório, como dis- ferentes. O ethos de arete foi detec-
tingue Cícero (apud Reboul, 2004), tado somente em uma oradora.
usando o docere (ensinar, instruir) – Com base em minha experiência
lado argumentativo do discurso e o como professora, no conhecimento
delectare (agradar) – lado humorís- sobre as metodologias de ensino da
tico, estimulante e agradável do dis- língua inglesa e, frente à compara-
curso. ção efetuada nas análises dos tipos
Pudemos perceber que o tipo de de ethe elencados, percebemos que,
ethos de eunoia foi manifestado no para uma aula online, a maior eficá-
discurso da oradora, uma vez que ela cia retórica é conseguida pelo orador
se mostra solidária ao seu auditório que faz uso da phronesis e/ou da eu-
tentando interagir com ele. Também noia; ou seja, aquele que demonstra
o foi o ethos de phronesis, pois a ora- ser mais sensato, ponderado, mais
dora mostra ter conhecimento acer- preocupado com seu auditório e que
ca do assunto estudado, apesar da demonstra simpatia por ele.
questão já tratada sobre a tradução Imaginamos que isso aconteça por
errônea do significado da música. ser a aula online normalmente de cur-
Contudo, o tipo de ethos mais evi- ta duração e sem a possibilidade de
dente foi o de arete, pois, conforme interação imediata professor / aluno,
Fiorin (2015), o orador que se vale da sem troca de perguntas e opiniões no
214
arete se apresenta como desbocado, momento da fala, não havendo tem-
franco, temerário e constrói suas pro-
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po para que esse aluno se acostume


vas muito mais com os recursos do com um professor que aja muito es-
ethos. pontaneamente, desbocadamente,
como acontece com os oradores que
CONSIDERAÇÕES FINAIS se utilizam da arete. Assimilar com-
Vimos que as oradoras se vale- portamentos diferentes dos conven-
ram de elementos, tanto prosódicos cionais demanda um tempo maior.
como retóricos, na busca da adesão Dessa forma, a ponderação e a ama-
de seu auditório. Percebemos, toda- bilidade se mostram mais neutras
via, algumas divergências nas apre- e, portanto, mais eficazes para uma
sentações das oradoras, sobretudo aula online que objetive alcançar e
no que tange os elementos prosódi- agradar auditórios diferentes.
cos e os ethe demonstrados.
A arete pode ser muito eficaz em
Por meio da retórica, pudemos vis-
SELINFRAN
uma aula tradicional, em que os alu- identificam com um jeito mais infor-
nos podem responder positiva ou mal e espontâneo de falar.
negativamente às atitudes do pro- Esperamos que nosso trabalho
fessor concomitantemente. Todavia, possa, de alguma forma, contribuir
em uma aula online, o alcance desse para o meio acadêmico e fazemos
tipo de ethos fica limitado a um de- um convite para que novos trabalhos
terminado auditório que se simpatize surjam e demonstrem a eficácia
com esse orador específico, uma vez retórica dos professores de língua
que pode ir de encontro aos valores inglesa.
de determinados grupos que não se

REFERÊNCIAS
ABREU, A. S. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. 4. ed. Cotia: Ateliê Editorial, 2004.
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MEYER, M. Retórica das Paixões. Tradução Isis Borges B. da Fonseca. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
215
______. A retórica. Tradução Marli M. Peres. São Paulo: Ática, 2007. (Série Essencial)

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PERELMAN, C.; OLBRECHTS-TYTECA L. Tratado da argumentação: a nova retórica. Tradução Maria Ermen-
tina Galvão G. Pereira. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
REBOUL, O. Introdução à retórica. Tradução Ivone Castilho Benedetti. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
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SELINFRAN

AS RELAÇÕES DIALÓGICAS NA PRIMEIRA PROPAGANDA ELEITORAL


DE DILMA ROUSSEFF EM 2014

Talita Cristina BARTOLOMEU


Camila de Araújo Beraldo LUDOVICE

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo verificar quais discursos e quais respostas
são revelados na propaganda eleitoral de abertura de Dilma Rousseff em 2014,
transmitida pelo Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), e de que forma
foram construídos para tentar seduzir e convencer os eleitores. Os enunciados
proferidos revelam marcas fortemente dialógicas e ideológicas, em virtude de o
enunciador tentar convencer o seu interlocutor a aceitar o seu projeto enunciativo
e a ele responder. Por meio dos conceitos do dialogismo e da ideologia entendidos
por Bakhtin, faz-se uma análise dos discursos proferidos na propaganda abertura
da campanha, e também pela sua concepção de gênero discursivo, por meio da
qual se pode definir e compreender a estrutura composicional, o conteúdo temá-
tico e o estilo da propaganda da presidente.
PALAVRAS-CHAVE: Bakhtin; dialogismo; propaganda eleitoral; Dilma Rousseff.
ABSTRACT
This work aims at verifying which discourses and which answers are revealed in
216 Dilma Rousseff’s opening electoral propaganda in 2014, exhibited by the Brazilian
election propaganda program, and how they were built in order to try to convince
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the electors. The utterances reveal strongly dialogical and ideological traits, once
the one who enunciates tries to convince his interlocutor to accept his utterance
project and to reply to him. By means of the concepts of dialogism and ideology
as regarded by Bakhtin, an analysis of the discourses present in the opening pro-
paganda of the campaign is carried out, and also by his conception of discursive
genres, by which the compositional structure, the theme and the President’s pro-
paganda style can be defined and understood.
KEYWORDS: Bakhtin; dialogism; electoral propaganda; Dilma Rousseff.
SELINFRAN
INTRODUÇÃO uma vez que essas evidências carac-
terizam um discurso heterogêneo,
A presente pesquisa pretende rea-
no sentido atribuído por Bakhtin, ou
lizar uma análise bakhtiniana sobre as
seja, composto por múltiplas vozes
relações dialógicas e, por extensão,
sociais, em que o outro está sempre
ideológicas presentes na propagan-
presente e é elemento imprescindível
da eleitoral de abertura da presidente
na constituição dos sentidos.
Dilma Rousseff em 2014, transmitida
pelo Horário Gratuito de Propaganda Para a composição do corpus, foi
Eleitoral (HGPE) no dia 19 de agosto feita a gravação televisiva da propa-
de 2014, utilizando-se para esta aná- ganda eleitoral de abertura. Assistiu-
lise, também, dos recursos estilísticos -se à propaganda, posteriormente,
intrínsecos ao gênero propaganda realizou-se sua transcrição e, por últi-
eleitoral em questão. mo, fez-se a análise das ocorrências.
A propaganda foi transmitida no dia
Pretendemos verificar quais efei-
19 de agosto de 2014 pelo horário
tos de sentidos produzidos e apre-
eleitoral gratuito.
endidos pelos eleitores são suscita-
dos para construir a imagem de uma Os enunciados desse gênero dis-
mulher presidente do Brasil, cujo cursivo, por terem por princípio con-
discurso está acompanhado e sem- vencer os eleitores sobre o seu pro-
pre perpassado pelos discursos de jeto de governo e a fidelidade da sua
seu antecessor na política, o ex-pre- imagem e ações, de modo a levá-los
sidente Lula, quais discursos e quais a tomar uma atitude responsiva ati-
respostas se entrecruzam nos enun- va em relação ao que se diz e aceitar
ciados produzidos, bem como quais o que se diz, evidenciam que o seu
ideologias eles carregam para tentar conteúdo verbal confere fortemente
convencer seus possíveis eleitores. marcas dialógicas e ideológicas para
atingir o seu objetivo final, o voto.
A análise da propaganda eleitoral 217
da atual presidente Dilma Rousseff Neste trabalho, considera-se o tri-

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apresentada em 2014, propaganda pé sujeito, linguagem e mídia, pois, ao
em que concorria à reeleição para a se utilizar da linguagem para enun-
presidência do Brasil, está alicerçada ciar o que quer que seja, o homem é
em dois conceitos centrais da teoria automaticamente inserido no mundo
bakhtiniana: dialogismo e ideologia. social. É essa capacidade de comuni-
cação, elemento crucial ao existir hu-
Esses conceitos serão aplicados
mano, de que o ser humano é dotado
segundo alguns elementos impor-
que lhe permite atribuir significado a
tantes verificados na propaganda em
tudo, inclusive à própria vida. Portan-
questão, como o discurso do outro
to, o homem é constituído no e pelo
solidificando a fala de Dilma, a res-
seu discurso.
posta de Dilma ao outro em forma
de avaliação do seu governo e a for- Por meio desses enunciados reali-
te presença do ex-presidente Lula, zados na interação verbal pelos su-
jeitos é que se formam diversos gê-
SELINFRAN

neros discursivos. Nesses gêneros é A imagem da presidente Dilma


inerente o princípio dialógico da lin- que se tenta construir na propagan-
guagem, uma vez que nos enuncia- da está muito vinculada à continuida-
dos são construídas as verdadeiras de da imagem que se construiu sobre
intenções comunicativas dos sujei- o ex-presidente Lula durante todo o
tos, que se constituem e são consti- seu percurso político, a qual, segun-
tuídos no momento da interação ver- do Ludovice (2008, p. 9-10), em seus
bal, compondo os seus significados. estudos, evidenciava “uma figura ca-
O gênero propaganda eleitoral, rismática, amiga do povo, parte do
que contempla o corpus deste traba- povo, que compartilha e compreende
lho, é constituído de um ou de vários as aflições e necessidades que a po-
objetivos predeterminados, dentre pulação brasileira enfrenta, por isso,
eles, o interesse em tentar convencer gera empregos, dá condições de es-
e persuadir o eleitorado, por meio de tudo, ajuda na renda familiar e conse-
um conteúdo estrategicamente ver- gue assim se misturar ao povo”.
balizado, de que o voto é a garantia No tópico seguinte, falamos sobre
de mudanças efetivas e de melhores as relações dialógicas segundo Bakh-
condições de vida. tin e sobre discurso político, bases de
Ademais, há a necessidade de se nossa pesquisa.
conhecer o potencial significativo do
gênero propaganda eleitoral sobre a RELAÇÕES DIALÓGICAS E
formação da consciência dos sujei- DISCURSO POLÍTICO
tos envolvidos nesse momento dia- A imagem da presidente Dilma
lógico e ideológico e também por, que se tenta construir na propagan-
nesse gênero, as relações dialógicas da está muito vinculada à continuida-
e ideológicas parecerem estar ainda de da imagem que se construiu sobre
mais marcadas, pelo fato de o sujeito o ex-presidente Lula durante todo
218 tentar seduzir o outro a afirmar o seu o seu percurso político, a qual con-
enunciado no interior de sua cons- quistou, por muito tempo, milhares
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ciência viva, levando esse outro a se de eleitores e consolidou, com o seu


colocar em relação a ele. apoio à Dilma Rousseff, a campanha
Dilma Rousseff é a trigésima sexta política da então presidente.
presidente da República Federativa Para se conseguir chegar aos ob-
do Brasil; ela exerceu o cargo de 1º de jetivos propostos anteriormente, as
janeiro de 2011 a 1º de janeiro de 2014 análises foram fundamentadas em
(primeiro mandato) e exercerá de 1º Bakhtin, especificamente nos con-
de janeiro de 2015 a 1º de janeiro de ceitos de dialogismo e ideologia, no
2018 (segundo mandato). Foi a pri- contexto do diálogo e das suas rela-
meira mulher a assumir a presidência ções dialógicas e, por extensão, ide-
do país e a ocupar o cargo de seu an- ológicas, as quais estão intrinseca-
tecessor político, do mesmo Partido mente ligadas, pois todo ato verbal
dos Trabalhadores (PT), o Lula. é anterior, social e consciente. Para
Bakhtin (1988, p. 88):
SELINFRAN
A orientação dialógica é natural- te do conteúdo do seu enunciado. Tal
mente um fenômeno próprio a atitude é que alimentará a continui-
todo discurso. Trata-se da orien- dade do seu existir no mundo e con-
tação natural de qualquer discur- duzirá infinitamente as relações dia-
so vivo. Em todos os seus cami- lógicas.
nhos até o objeto, em todas as
direções, o discurso se encontra Brait (2005, p. 94-95) ressalta ain-
com o discurso de outrem e não da que, na teoria bakhtiniana, verifi-
pode deixar de participar, com cam-se duas concepções de dialo-
ele, de uma interação viva e in- gismo:
tensa.
Por um lado, o dialogismo diz
Bakhtin e seu Círculo consideraram respeito ao permanente diálogo,
que a linguagem é, por natureza, dia- nem sempre simétrico e harmo-
lógica, e, assim, o dialogismo é o seu nioso, existente entre os diferen-
princípio constitutivo. O diálogo é a tes discursos que configuram
uma comunidade, uma cultura,
forma de manifestação da palavra,
uma sociedade. É nesse sentido
de todo discurso, e este se encontra
que podemos interpretar o dia-
com o discurso do outro, participan- logismo como o elemento que
do da interlocução entre enunciador instaura a constitutiva natureza
e enunciatário. interdiscursiva da linguagem. Por
Por meio do diálogo, são constru- outro lado, o dialogismo diz res-
ídos enunciados que o materializam, peito às relações que se estabe-
reconhecendo a relação recíproca lecem entre o eu e o outro nos
entre o eu e o outro do discurso. Um processos discursivos instaura-
dos historicamente pelos sujei-
enunciado sempre constituirá outro
tos, que, por sua vez, se instau-
enunciado, que é sempre uma res- ram e são instaurados por esses
posta ao que se disse antes, nun- discursos (BRAIT, 2005, p. 94-
ca conclusa e igual, tendo em vista 95).
a amplitude de significações que se 219
Por meio dessas definições, com-
estabelecem nessa relação interacio-

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preendemos o dialogismo como um
nal. Assim, o diálogo é definido da se-
fenômeno natural da linguagem, pelo
guinte forma:
qual os sujeitos estão condicionados
Por sua precisão e simplicidade, e que produz sempre novas formas
o diálogo é a forma clássica da
de significação sobre um objeto, ten-
comunicação verbal. Cada répli-
do em vista diferentes lugares e vo-
ca, por mais breve e fragmentária
que seja, possui uma conclusibili- zes sociais existentes na interação.
dade específica ao exprimir cer- Mas pode ser entendido, também,
ta posição do falante que suscita como as relações de sentido que se
resposta, em relação à qual se estabelecem nos enunciados dos su-
pode assumir uma posição res- jeitos, nos quais penetram desde o
ponsiva (BAKHTIN, 2003, p. 271). contexto histórico de sua produção.
De alguma forma, o falante sempre Para o filósofo russo da linguagem,
tomará uma posição responsiva dian- o que importa não é propriamente o
SELINFRAN

diálogo, entendido como a conversa direciona a enunciação e interfere no


entre duas ou mais pessoas do dis- discurso produzido, na linguagem do
curso, mas as enunciações que ocor- outro. Por isso, o plurilinguismo é ine-
rem em seu espaço, o seu conteúdo, rente a qualquer discurso, “é discurso
os quais levam ao sentido e às signi- de outrem na linguagem de outrem”,
ficações do que ali se está dizendo. que serve para refratar a expressão
Já o segundo aspecto, o da relação das intenções do autor. A palavra
eu-outro, é ainda mais marcante nos serve a duas vozes e a duas inten-
estudos bakhtinianos, uma vez que ções diferentes ao mesmo tempo: a
a presença do outro vai instaurar na intenção do enunciador e a intenção
interação outros discursos e novos refratada do autor. Logo, não há dis-
sentidos. Assim, o dialogismo pode curso único, isento de outras vozes,
ser examinado “como o espaço in- livre de relações dialógicas; é sempre
teracional entre o eu e o tu ou entre bivocal e internamente dialogizado:
o eu e o outro, no texto” (BARROS, todo enunciado é sempre direciona-
1999, p. 3). do a outro e se dá na presença de ou-
De acordo com Fiorin (2006, p. 19), tro.
o outro é, portanto, elemento crucial Se os enunciados são constitutiva-
ao estabelecimento das relações dia- mente dialógicos, são, portanto, his-
lógicas: tóricos. A historicidade dos enuncia-
dos é captada no próprio movimento
[...] todos os enunciados no pro-
linguístico de sua constituição. É na
cesso de comunicação, indepen-
dentemente de sua dimensão, percepção das relações com o dis-
são dialógicos. Neles, existe uma curso do outro que se compreende
dialogização interna da palavra, a história que perpassa o discurso.
que é perpassada sempre pela A análise histórica dos textos não é
palavra do outro, é sempre e ine- uma descrição de uma época, mas
220 vitavelmente também a palavra sim uma análise semântica, que vai
do outro. Isso quer dizer que o mostrando aprovações ou reprova-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

enunciador, para construir o seu ções, adesões ou recusas, polêmicas


discurso, leva em conta o discur- e contratos, deslizamentos de senti-
so de outrem, que está presente
do, apagamentos etc.
no seu. Por isso, todo discurso é
inevitavelmente ocupado, atra- A língua ganha sentido nas rela-
vessado, pelo discurso alheio. O ções dialógicas, não no texto como
dialogismo são as relações de unidade linguística, com os recursos
sentido que se estabelecem en- e elementos gramaticais; os textos
tre dois enunciados. ganham os seus valores por meio dos
Assim, Bakhtin (1998, p. 127, grifos tons, ritmos, valorações, apreciações
do autor) vai dizer que a palavra é e depreciações enunciativas que os
bivocalizada, marcada por duas vo- sujeitos lhes atribuem no espontâneo
zes, a do eu e a do outro, sempre em ato de enunciar, que é essencialmen-
correlação dialógica. O outro é quem te complexo, devido à consciência
dialogizada dos indivíduos.
SELINFRAN
Ao atribuir à língua o caráter social, de conteúdo repleto de vida; caso
já que ela só se concretiza na intera- contrário, se retirada de seu contexto
ção real entre os sujeitos da enuncia- real, nada tem a oferecer.
ção, Bakhtin (2006) vai dizer que, se Todo discurso tem uma intenção
é social, cada classe produzirá ideolo- predeterminada, focaliza um público
gias distintas e estas instituirão dife- específico a partir de um determi-
rentes formações discursivas; assim, nado lugar social e almeja que esse
visto que a ideologia é concebida público entre em acordo com a sua
como algo imanente à realidade, é in- arquitetônica discursiva. Entretanto,
dissociável da palavra. Não há como o campo discursivo em que as rela-
desvincular a ideologia das relações ções ideológicas (e também as re-
dialógicas; estes dois conceitos se lações dialógicas) estão mais forte-
interpenetram na teoria bakhtiniana, mente marcadas é o político, sempre
pois o conceito de ideologia se dará mascaradas por traz dos propósitos
na concretude do acontecimento, na e valores políticos dominantes.
palavra viva, veículo de toda a cria-
ção ideológica. O discurso político possui grande
influência na decisão de voto do elei-
Segundo Bakhtin (2003, p. 31): torado, pois carrega marcas enuncia-
Um produto ideológico faz par- tivas sobre fatos históricos, políticos,
te de uma realidade (natural ou culturais, sociais, religiosos, entre
social) como todo corpo físico, outros, além das entonações, apre-
instrumento de produção ou ciações, emoções, juízos de valor e
produto de consumo; mas, ao
paixões próprios, com a finalidade de
contrário destes, ele também re-
falar e tentar seduzir uma nação de
flete e refrata uma outra realida-
de, que lhe é exterior. Tudo que é sujeitos eleitores.
ideológico possui um significado Na visão de Osakabe (1999, p. 93),
e remete a algo situado fora de si “o ato de argumentar constitui uma 221
mesmo. Em outros termos, tudo espécie de operação que visa fazer
que é ideológico é um signo. Sem

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com que o ouvinte não apenas se in-
signos não existe ideologia.
teire da imagem que o locutor faz do
Depreende-se, portanto, que a ide- referente, mas principalmente que o
ologia é um sistema de representação ouvinte aceite essa imagem”. Assim,
da sociedade e da realidade a partir o locutor não necessariamente co-
de enunciados e símbolos constituí- nhece inteiramente a imagem de seu
dos na interação verbal pelos grupos ouvinte ou concorda com ela, mas
sociais organizados. Só se pode com- aceita o seu discurso, de outro modo,
preender aquilo que se diz e o valor aceita a imagem que esse discurso
do que se diz enquanto algo dotado produz.
de contexto histórico, valores, dirigi-
Sobre essa aceitação da imagem
do a alguém e com uma intenção dis-
revelada no discurso, Charaudeau
cursiva e ideológica. A palavra nesse
(2013, p. 94) defende que é possível
contexto borbulha de significações,
SELINFRAN

perceber que a persuasão de que o pelo gênero, “depende do modo que


político se utiliza está ligada à paixão, locutor percebe e compreende seu
à razão e à imagem, a fim de conven- destinatário, e do modo que ele pre-
cer seu auditório, “na esperança de sume uma compreensão responsiva
despertar-lhe interesse pelas ideias ativa” (BRAIT, 2008, p. 95).
e paixão por defendê-las, ora para a Por meio da teoria apresentada,
construção da imagem de um líder recorremos, no tópico seguinte, às
capaz de conduzir seu rebanho até a análises das relações dialógicas na
terra prometida”. presente propaganda.
Aceitando ou não a imagem do
discurso alheio, o interlocutor é sem- ANÁLISE DA PROPAGANDA ELEI-
pre levado a dar uma resposta, por- RORAL DO DIA 19 DE AGOSTO DE
que a vida é um “eterno responder 2014 (ABERTURA DO 1° TURNO)
ao ato discursivo” (BAKHTIN, 2010),
isto é, a tomada de uma posição de- A propaganda analisada possui 11
terminada, ao qual, de uma forma ou minutos e 24 segundos de duração.
de outra, os sujeitos estão predesti- Os enunciados são proferidos em se-
nados. E é somente nesse e por esse quência, isto é, intercalando ora dis-
continuum, sem álibi, que os sujeitos cursos dos apresentadores, ora da
nunca serão os mesmos, mas sempre presidente Dilma, ora dos cidadãos,
renovados na cadeia viva e pulsante além de dois blocos de enunciados
da comunicação. pronunciados pelo ex-presidente
Lula. Verifica-se, também, a presen-
Ainda segundo o filósofo russo, o ça de um jingle – a ser analisado na
estilo, dentre todas as características dissertação. É possível notar a apre-
que materializam o gênero, é o fenô- sentação rápida e aleatória, de temas
meno capaz de renová-lo, em virtude variados, como crise econômica, ge-
de o enunciador fazer escolhas (indi- ração de emprego e renda, criação
222 viduais e sociais) próprias da ativida- de casas populares, escolas técnicas
de linguística em que ele se insere e
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

e universidades, entre outras mudan-


de sempre se dirigir ao outro. ças realizadas pelo governo atual.
O estilo diz respeito a um modo Analisou-se todo o seu conteúdo
de enformação do conteúdo, o qual, verbal, que é formado por discursos
porém, poderá ser alterado segundo da presidente Dilma, dos apresen-
as necessidades discursivas e inten- tadores e do ex-presidente Lula. As
ções do autor: refere-se “à unidade propostas de governo e as mudan-
de procedimentos de enformação ças realizadas no mandato anterior
e acabamento da personagem e do são apresentados de forma dinâmi-
seu mundo e dos procedimentos, por ca, isto é, com mais exemplos reais –
estes determinados, de elaboração e envolvendo a participação da popu-
adaptação [...] do material” (BAKH- lação, mostrados de maneira rápida,
TIN, 2003, p. 186). Portanto, o estilo em lugar de discurso monológico.
é individual e definido pelo outro e
SELINFRAN
Para proceder às análises desta toricidade é que responde a ideia de
comunicação, é importante ressal- maternidade verificada no enunciado
tar que foi feito o recorte do corpus a seguir:
da pesquisa, realizando-se a análise Este novo ciclo está sendo feito
apenas da propaganda de abertura com o esforço de todos os brasilei-
da campanha eleitoral de 2014. ros e de todas as brasileiras. Mas uma
Como explicamos na teoria, as re- mulher está tendo um papel decisivo
lações dialógicas constituídas são nisso tudo. Uma mulher que acorda
marcadas pelo discurso do outro. cedo, trabalha muito e tenta aprovei-
Essa presença do outro no discurso tar qualquer tempinho que resta para
político é sempre ideologicamente ter uma vida normal, como qualquer
construída nos enunciados para soli- pessoa. Lê e escreve muito, gosta de
dificar o discurso do sujeito político e cozinhar e de tratar do jardim; cuida
aproximar-se dos eleitores: da residência oficial como o esme-
E a outra é a casa do Minha Casa ro de qualquer dona de casa; sente
Minha Vida, eu vou lá entregar a cha- saudade da filha e do neto que mo-
ve, tem a mãe e uma menininha di- ram longe; e compartilha, em todos
zendo pra mim: “Eu vou ter um quar- os instantes, dos sonhos, das apreen-
to com uma cama só minha. (Dilma) sões e das esperanças de milhões de
brasileiros. (apresentador)
Nesse enunciado, a fala da “menini-
nha”, proferida pela própria presiden- Por meio da composição do esti-
ta, gera comoção nos eleitores por lo presente no programa eleitoral em
meio da sensibilidade que esta revela questão, verifica-se a escolha de um
no modo como expõe o conteúdo do estilo mais informal para a fala da
seu enunciado e também pelo uso do presidenta Dilma. Essa informalida-
diminutivo “menininha”. Aqui o efei- de é quase completamente voltada
to de sentido é justamente afastar a para a aproximação do espectador-
-eleitor, pois é preciso se aproximar 223
ideia da política e aproximar-se do
de todo eleitor – e não de qualquer

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


humano, e é isso que sensibiliza. As-
sim, verifica-se um discurso destituí- eleitor ou de um eleitor específico; a
do de conteúdo político e orientado a fala informal permite, portanto, essa
uma ideia de comoção dos eleitores. aproximação.

A Dilma “mãe” também se revela Identificamos esse estilo informal


como uma estratégia de humaniza- a partir de vários elementos linguísti-
ção, o que é um reflexo de sentido, cos (em destaque) que compõem os
historicamente construído, que nos seus enunciados, dentre eles, lexicais
coloca como “filhos” da pátria. Se e gramaticais:
somos “filhos” da pátria, temos, na 1) Cê não pode se abater por uma
visão de um presidente homem, um dificuldade. Todo dia cê tem de ma-
“pai”, e na visão de uma presidenta tar um leão... e, de uma certa forma,
mulher, uma “mãe”. Assim, é essa his- subir e descer o Everest... todo dia.
SELINFRAN

2) O Brasil conseguiu duas coisas rio, porque fiz um segundo governo


importantíssimas: evitou que a crise muito melhor que o primeiro. Por
internacional entrasse porta a dentro isso eu quero falar especialmente pra
da casa dos brasileiros [...]. você que está em dúvida se deve vo-
3) Como não somos uma ilha, a cri- tar ou não na Dilma. Eu lhe peço: vote
se também nos afetou e reduziu um sem nenhum receio. Fique certo que
pouco o nosso ritmo de crescimento você não vai se arrepender. (Lula)
[...]. No primeiro enunciado, é possível
4) Você plantou o que cê vai co- inferir que o presidente Lula faz, pri-
lher no segundo mandato, e tem mais meiramente, referência a si mesmo,
coisas a se plantar. como forma de consolidar o seu po-
tencial político e o do seu governo,
Em outro trecho de enunciados, para só então, a partir do seu reco-
verificamos que são constantes as re- nhecimento pela população – o qual
ferências que Dilma e Lula fazem um ele mesmo parece verificar em sua
ao outro e aos seus governos para consciência axiológica como positi-
afirmar o potencial positivo do atu- vo – inserir Dilma nessa referência, e
al mandato da candidata e para ga- consolidar a imagem da presidenta
rantir que os diálogos suscitados na por meio do percurso e da represen-
campanha possam ser aceitos pela tação política do próprio Lula, que
consciência dos eleitores, que serão parecem inspirar credibilidade nos
levados a responder afirmativamente eleitores naquele momento.
a esses diálogos por meio do voto.
Por meio dessas referências dire-
1) O meu segundo mandato foi tas, a presença de Lula é ressaltada
melhor do que o primeiro. Com Dil- constantemente, em toda a campa-
ma, tenho certeza que vai ser assim nha, na qual a voz de Dilma nunca
também. No meu segundo mandato, está sozinha, ao contrário, ganha afir-
224 eu tive mais segurança, mais experi- mação e consistência pela voz de seu
ência e mais apoio para acelerar pro- antecessor político. Assim, pela pre-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

jetos que “tavam” em andamento e sença do ex-presidente em seu dis-


para lançar muita coisa nova [...]. curso, Dilma também está se autoa-
2) [...] Eu pergunto a você: Já ima- firmando e tentando consolidar um
ginou o prejuízo que o país teria so- discurso “próprio”.
frido se eu não tivesse no segundo No trecho segundo, além dessas
mandato? Se outro qualquer tives- referências, o ex-presidente, para
se chegado querendo [desinventar] convencer os eleitores, coloca-se
a roda e parado quase tudo? Eu sei como o único que poderia ter conti-
que, naquela época, teve gente que nuado, no segundo mandato, todas
votou de novo em mim sem estar as mudanças iniciadas no primeiro,
100% satisfeito, mas tenho convicção instaurando-se o discurso de que
que ninguém se arrependeu por ter somente ele prosseguiria com tudo
me dado o voto de novo; ao contrá- o que já havia sido feito e que outro
SELINFRAN
candidato qualquer, por oposição ou Por meio da construção semântica
por querer instituir outros projetos, de “continuar e ampliar tudo o que já
interromperia o ciclo de mudanças foi feito”, como se verifica no seguin-
que estava acontecendo. Com esse te trecho:
discurso é que ele insere a presidenta Dilma também ampliou todos os
Dilma, para fortalecer a sua segunda programas que herdou de Lula e
candidatura. Isso retoma uma práti- criou ela própria o Pronatec, o Ciên-
ca que não é incomum na alternância cia sem Fronteiras e o Mais Médicos,
de governo; é muito comum que o entre outros. (apresentador)
governo que chega destitua o que já
foi feito na gestão do anterior. Além É possível inferir que a garantia de
disso, esse discurso responde a ou- mudança no governo Dilma se dá pelo
tros sentidos que já estão cristali- reconhecimento do governo Lula,
zados histórico-socialmente, como que se mostra como uma extensão
“em time que está ganhando não se deste último. Assim, o ex-presidente
mexe”; por isso, “é preciso continuar, é a voz de autoridade sempre pre-
pois já estamos ganhando”. sente nos enunciados, já que foi em
seu mandato que se construíram e se
Nas falas a seguir, Dilma posiciona- realizaram quase todos os projetos e
-se de modo a responder por que os programas enfatizados na propagan-
brasileiros não vão se arrepender de da política de Dilma e agora procura
lhe dar o voto novamente. transferir a ela a grande responsabi-
É um orgulho representar o Brasil. lidade de “ampliar e continuar” tais
Primeiro que é o seu país, é o país programas. Assim, projeta-se o dis-
que cê ama, né? O segundo manda- curso de “ampliação e continuidade”
to vai permitir que o Brasil entre num do governo Lula no governo Dilma
novo ciclo; um ciclo de melhoria da para tentar convencer os eleitores de
produtividade do país pra ampliar a que apenas Dilma, apesar de outros
inclusão social e a estabilidade eco- candidatos também dizerem que vão 225
nômica. Faz as duas coisas. continuar o que foi feito, pode dar

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


Nesse excerto é interessante ob- conta de continuar os projetos cria-
servar que Dilma, como uma carac- dos. Além disso, configura um efeito
terística que se revela própria do seu de legitimação de um mandato: Lula
estilo, coloca-se em terceira pessoa. continua passando a faixa presiden-
Com essa estratégia, a presidenta cial para Dilma.
insere os eleitores brasileiros den- As ideologias que se instauram re-
tro da sua avaliação, como forma de velam, então, que apenas Dilma po-
pressupor, com a inserção do outro derá continuar tudo o que já foi feito
no seu enunciado, o seu sentimento e criar ainda mais; sem Dilma, rompe-
pelo país que governa e quer gover- -se o que se construiu nesses 13 anos.
nar novamente, configurando uma A eleição de outro candidato pode-
Dilma patriota. ria significar a não continuidade dos
programas que beneficiam milhares
SELINFRAN

de brasileiros e dos projetos que ain- liação prévia do sujeito do discurso


da estão em andamento. sobre a resposta do outro, na qual
estão contidos os valores que com-
CONSIDERAÇÕES FINAIS põem o seu auditório, a situação da
enunciação e o contexto histórico e
O homem, enquanto ser dotado de
social em que estão envolvidos.
capacidade de comunicação, pode
atribuir significados outros a cada Os enunciados são proferidos em
nova produção verbal. Essa habilida- sequência, isto é, intercalando-se ora
de é o que o faz interagir no mun- discursos dos apresentadores, ora da
do social e nele conquistar e desco- presidenta Dilma, ora dos cidadãos,
brir novos sentidos à sua existência. além de dois blocos de enunciados
De cada lugar em que enuncia e to- pronunciados pelo ex-presidente
mado pelo objetivo primeiro da sua Lula. A temática também é variada,
enunciação, constrói modos de dizer com a apresentação rápida de temas
nunca antes ouvidos, de formas nun- variados, como também se verifica
ca antes conhecidas e com sentidos em quase todas as propagandas. Ou-
nunca iguais. tra característica da propaganda do
dia 19 é a construção da imagem po-
O gênero propaganda eleitoral, lítica da presidente como mãe, cuja
que compõe o corpus deste trabalho, estratégia é a de humanizar para afas-
revela um discurso com intenções e tar o político, colocando os eleitores
estratégias determinadas, por isso, como “filhos da pátria”, historicidade
um discurso que permite uma análi- que responde à ideia de maternidade
se mais atenta dos enunciados que o verificada no enunciado.
compõem, já que seu objetivo prin-
A presença do ex-presidente
cipal é convencer o eleitor sobre sua
Lula e os diálogos com o seu
imagem, levando-o a aceitar o con-
governo, em todas as propagandas
teúdo do seu discurso e a responder
226 analisadas, é outro traço constitutivo
afirmativamente a ele por meio do
dos enunciados de Dilma, tanto no
voto.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

primeiro quanto no segundo turno.


No decorrer deste percurso analíti- Esses elementos perfazem uma
co, observou-se que as relações dia- presidenta que assimilou as marcas
lógicas presentes na propaganda em da enunciação do Lula e cujo governo,
questão e os outros textos nela pre- em virtude do discurso de ampliação
sentes compõem os elos de encade- e continuidade dos mesmos projetos
amentos com esses outros enuncia- que se iniciaram, historicamente,
dos, evidenciando as características com o ex-presidente, pretende ser
de um estilo, ao mesmo tempo, indi- uma extensão do seu governo. Aqui
vidual, mas construído em função da verificamos a bivocalidade da palavra
imagem que o interlocutor pretende que Bakhtin identificou: a voz de Lula
passar e do modo como presume a na linguagem de Dilma, imprimindo
compreensão responsiva ativa de seu nela os seus valores e também o seu
enunciado, pois há sempre uma ava- estilo.
SELINFRAN
O estilo presente em seus enuncia- objetivo predeterminado: convencer
dos permite-nos dizer que Dilma in- e se aproximar do eleitor, levando-o
corporou em seu discurso traços da a aceitar o conteúdo do seu discurso
construção da identidade de Lula na e a responder afirmativamente a ele
política: Dilma “mãe”, Lula “pai” – es- por meio do voto. O outro é elemen-
tratégia para dirigirem-se aos “filhos to substancial para se conseguir con-
da pátria”; Dilma guerrilheira, Lula vencer e persuadir o eleitor, em virtu-
sindicalista; Dilma “mulher do povo”, de: da carga ideológica e das relações
Lula “homem do povo”. Essas cons- de sentido que se podem estabele-
truções de sentido são permitidas cer por meio da sua representação.
devido à estratégia de humanização Os fios ideológicos dos enunciados
do sujeito político que verificamos do sujeito político são conduzidos de
nos enunciados de Dilma, pelo con- forma a fazer com que: os valores ali
teúdo de sua enunciação (contexto suscitados se confundam com os va-
histórico e atual da política) e pela lores dos interlocutores, e que estes
constante presença de Lula na com- os acatem como verdades absolutas,
posição dos seus enunciados. consolidando, assim, uma contínua
As construções dialógicas e ideo- refração da realidade.
lógicas examinadas tendem para um

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228
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN
SELINFRAN
OS POSTS E “A VOZ SOCIAL” DA JUVENTUDE: POSICIONAMENTOS
INTERACIONAIS E ORDENS DE INDEXICALIDADE DE GÊNERO E
SEXUALIDADE NO BLOG “INTEGRA”

Valéria de Rezende PEREIRA


Glenda Cristina Valim de MELO

RESUMO
Neste trabalho, analisamos os posicionamentos interacionais de sexualidade e
gênero dos artigos de opinião do blog Integra e identificamos as ordens de in-
dexicalidade de sexualidade e gênero presentes em tais artigos. O escopo teórico
parte da concepção de linguagem como performance de Austin (1990), Derrida
(1988) e Butler (2003), de letramentos digitais propostos por Davies & Merchant
(2009) e das conceituações de sexualidade e gênero pelas teorias queer (BUTLER,
2003; LOURO, 2004). A pesquisa é de cunho etnográfico virtual (HINE, 2004) e
os instrumentos de geração de dados são artigos de opinião encontrados no blog.
O instrumental analítico se embasa em posicionamentos interacionais propostos
por Goffman ([1979], 1998) e nas ordens de indexicalidade de Blommaert (2008,
2010). As categorias de análise são as cinco pistas indexicais definidas por Wor-
tham (2001).
PALAVRAS-CHAVE: Linguagem como performance; teorias Queer; sexualidade
e gênero; ordens de indexicalidade; posicionamentos interacionais.
229
ABSTRACT

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


In this paper, we analyze the interational positionings of sexuality and gender of
blog opinion articles Integra and identify the indexicality orders of sexuality and
gender present in such articles. The theoretical scope of the design language as
the performance of Austin (1990), Derrida (1988) and Butler (2003), digital lite-
racies proposed by Davies & Merchant (2009) and the concepts of sexuality and
gender by queer theories (Butler 2003; BLONDE, 2004). The research is virtual
ethnographic (HINE, 2004) and data generation tools are opinion articles found
on the blog. The analytic tool was grounded in interactional positionings proposed
by Goffman ([1979] 1998) and the indexicality orders of Blommaert (2008, 2010).
The analysis categories are the five indexicals tracks defined by Wortham (2001).
KEYWORDS: Interactional positionings; indexicality orders; Queer theories;
sexuality and gender.
SELINFRAN

INTRODUÇÃO ser ‘ex-gays’, devido ao que se deno-


minou “cura gay” e querem discutir
Convivendo diariamente com jo-
seu posicionamento e os problemas
vens de origens diversas, percebemos
enfrentados” (COSTA, 2015)2. Assim,
que, por mais singular que possa ser
enquanto um número cada vez maior
a realidade de cada um, comumente
de setores sociais mobiliza-se em
um fator aproxima-os de forma bem
prol do respeito às minorias sexuais,
íntima e coloca-os dentro da mesma
outra parcela de cidadãos brasileiros
realidade, a internet. Nos tempos atu-
investe no repúdio a estes grupos,
ais, em que vivemos, conforme Bau-
bem como em sua marginalização.
man (2001), a “Modernidade Líqui-
É importante refletirmos como po-
da”, não há muros ou distâncias que
sicionamentos sociais e declarações
impeçam a comunicação e a intera-
de juízos de valor, em absoluto, diver-
ção entre as pessoas, entretanto, per-
gentes coabitam um mesmo espaço
cebemos nossxs alunxs1 dividindo um
e, por isso, discutimos neste estudo
espaço escolar que pouco ou quase
como a web 2.0, enquanto contexto
nada trata dos temas que realmente
híbrido, comporta tanto facetas tra-
afligem a juventude e impõe, de for-
dicionais quanto contraditórias a res-
ma velada, um silêncio que sufoca as
peito de discussões políticas, raciais,
dores daquelxs que não se encaixam
misóginas, entre outras.
nas regras formalizadas pelas cate-
gorias de poder e cria uma cortina de Assumindo uma postura partici-
fumaça para demonstrar que tudo pativa nas referidas circunstâncias
vai muito bem. do cotidiano nacional, esta pesquisa
propõe uma contribuição às refle-
A multiplicidade de opiniões, con-
xões sobre a condição daqueles que
dutas e juízos não apenas é possibili-
se veem excluídos dos padrões hege-
tada como também potencializada na
mônicos de sexualidade e gênero no
web 2.0, que nos proporciona a vista
230 país. Corroboramos com a concep-
caleidoscópica da realidade descrita
ção de Rajagopalan (2010) a respeito
por Bauman. Um exemplo desta úl-
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

da pesquisa linguística que se faz no


tima ocorreu no dia 24 de junho de
próprio âmbito da realidade em que
2015: ao mesmo tempo que Carlos
está inserida, logo, os objetivos a se-
Magno Fonseca, presidente da Asso-
guir relatados demonstram em que
ciação Brasileira de Gays, Lésbicas,
sentido tal axioma perfaz-se neste
Bissexuais, Travestis e Transexuais,
estudo.
participava de uma audiência sobre
“Violências Motivadas por Orienta- 2 Desde junho de 2011 discute-se na Comissão de Direitos Huma-
nos da Câmara dos Deputados, presidida pelo deputado Marco Fe-
ção Sexual e Identidade de Gênero”, liciano (PSC-SP), a aprovação o Decreto Legislativo 234, conhecido
na Comissão de Direitos Humanos como “cura gay”, pelo qual se suspende um parágrafo de uma reso-
lução do Conselho Federal de Psicologia que impede os psicólogos
do Senado, a “Comissão de Direitos de colaborar “com eventos e serviços que proponham tratamento e
Humanos e Minorias fazia audiência cura das homossexualidades”. No momento o projeto tramita por
comissões e, caso aprovado, será votado na Câmara dos Deputados.
pública com pessoas que declaram In: BRASIL. Projeto de Decreto Legislativo nº 234/2011, apresenta-
1 O x é utilizado nesta investigação para referir-se às diversas possi- do em02jun2011.Disponívelem:http://www.camara.gov.br/proposi-
bilidades de gênero. coesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415 Acesso: 11 julho
2015.
SELINFRAN
Nesta investigação, embasamo- tões das condições especiais e da
-nos em premissas da pesquisa etno- intencionalidade para a realização
gráfica virtual. dos proferimentos e o performativo
Nela, a análise de textos produzi- como condição essencial de todos os
dos neste ambiente, a princípio, seria atos de fala. A seção “Sexualidade e
contraditória com a interação direta gênero pelas teorias queer” trata da
entre pesquisadorx e pesquisadxs origem das teorias queer (LOURO,
pressuposta pela etnografia, todavia 2004) e em que medida a discussão
Hine (2004, p. 58) lembra que hoje, as sobre gênero e sexualidade realizada
possibilidades de interações media- por Butler (2003) relaciona-se com
das nos permitem repensar o papel elas. Por fim, passaremos ao instru-
da presença física como fundamento mental teórico-analítico, explanare-
da etnografia3. Se considerarmos que mos o contexto de pesquisa, prosse-
os novos meios de interação trazidos guindo então para a metodologia.
com as Tecnologias de Informação e
OBJETIVOS
Comunicação (TICs) reivindicam no-
vas concepções sobre interação, será Valendo-se dos textos produzidos
possível compreender em que medi- no blog Integra, concebido e coor-
da, na etnografia virtual, “as noções denado pelxs alunxs do Instituto Fe-
de presença, espaço e temporalida- deral do Sul de Minas Câmpus Mu-
de são transportadas para o virtual, zambinho, nossa pesquisa tem como
constituindo, assim, novas práticas objetivo geral analisar os posiciona-
sociais e interações” (MELO e MOITA mentos interacionais perante temas
LOPES, 2014). como sexualidade e gênero nos arti-
gos de opinião observados no blog
Nas exposições teóricas posterio-
citado. Em caráter específico, ela visa
res, buscaremos expor brevemente os
a identificar as ordens de indexicali-
preceitos teóricos que orientam este
dade de gênero e sexualidade mobi- 231
estudo, seguindo um percurso do
lizadas nas produções textuais cita-
pensamento acerca da linguagem e

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


das.
da significação nos estudos linguísti-
cos. Assim, em “Linguagem e corpo”, Com base nos objetivos mencio-
partimos da “Teoria dos Atos de Fala” nados, temos o intuito de elucidar
de Austin (1990), na qual se privilegia questões como “Que posicionamen-
a linguagem ordinária em detrimento tos interacionais de sexualidade e gê-
da linguagem ideal, até então toma- nero estão presentes nos textos ob-
da pela filosofia, e propõe-se uma fu- servados no blog?” “Que ordens de
são entre sujeito e objeto na análise indexicalidade de sexualidade e gê-
da linguagem, premissa que ratifica nero são mobilizadas nos artigos de
a linguagem enquanto ato. Também opinião mencionados?”.
refletimos sobre os desdobramentos JUSTIFICATIVA
da teoria austiniana no pensamen-
A prerrogativa essencial desta
to de Derrida, que retoma as ques-
pesquisa é a de que o formato digital
3 Tradução nossa.
SELINFRAN

blog e os famosos posts, enquanto de agenciamento e de transgressão”


modalidades discursivas congruen- (MOITA LOPES, 2010, p 394).
tes com as performances identitárias
LINGUAGEM E CORPO
dessxs jovens, são uma das instân-
Abordamos aqui a questão da lin-
cias na qual a linguagem mais se evi-
guagem sob a concepção de perfor-
dencia no indivíduo enquanto ação,
mance com o intuito de expor como,
sendo, portanto, signo dos paradig-
a nosso ver, linguagem e corpo estão
mas de pensamento da sociedade
intrinsecamente ligados. Ao aprofun-
em questão. Sob esta perspectiva,
dar-se na natureza dos atos de fala,
o cotidiano da sala de aula e as rela-
Austin vale-se inicialmente dos ter-
ções estabelecidas fora dela, nos cor-
mos “constatativo” e “performativo”
redores e pátios do ambiente escolar
para descrevê-los. Enquanto os pri-
são abordados como tema paralelo
meiros são aqueles sujeitos à verda-
às discussões suscitadas no blog In-
de ou falsidade, pois descrevem ou
tegra.
relatam algo, os últimos se caracte-
Não obstante, os Discursos4, bem
rizam por fazerem algo, realizarem
como a maneira pela qual eles im-
uma ação sujeita ao sucesso ou ao
põem os estatutos de convivência e
fracasso de acordo com as circuns-
de sociabilidade na escola, também
tâncias em que é proferida. Assim,
configurarão a contextualização et-
proferimentos como “aceito esta mu-
nográfica da pesquisa, uma vez que é
lher como esposa” (AUSTIN, 1999, p.
ao abrigo deles que se condicionam
24-25) significam realizar uma ação
as metodologias de ensino quando
(etimologicamente remete-se ao ver-
se trata dos temas sexualidade e gê-
bo perform realizar, efetuar) e não
nero. Ainda que se situe no contexto
declarar algo.
online, é possível pensarmos nesta
pesquisa como contribuição às pes- Após realizar a distinção entre os
quisas sobre letramento escolar, uma atos de fala constatativos e perfor-
232 mativos, Austin percebe que alguns
vez que nela comparam-se os Dis-
pontos encontram-se duvidosos e
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

cursos institucionalizados da escola


com os discursos produzidos pelxs obscuros e que, desta forma, tal con-
alunxs em ambientes paralelos a ela. ceituação torna-se insatisfatória uma
Com isso, demonstramo-nos partidá- vez que, em alguns casos, a mesma
rios de condutas que promovem in- sentença, em contextos distintos,
tegração do contexto off-line ao uni- pode ser um proferimento performa-
verso da web, fazendo com que esta tivo ou um constatativo. O filósofo
seja “compreendida como espaço também afirma que o fato de os per-
de discussão, de reinvenção social, formativos necessitarem, para serem
4 É importante ressaltar que, neste trabalho, seguiremos a diferencia- “felizes”, que certas declarações que
ção gráfica “discurso” e “Discurso” proposta por James Gee (2005): en- os compõem sejam verdadeiras é ou-
quanto o primeiro designa os produtos da linguagem praticada no co-
tidiano pelos falantes de uma determinada língua, o segundo “integra tro ponto que obscurece a distinção:
modos de falar, ouvir, escrever, ler, agir, interagir, acreditar, valorizar, “Se o proferimento ‘peço desculpas’
sentir e usar vários objetos, símbolos, imagens, ferramentas e tecnolo-
gias, com a finalidade de ativar identidades e atividades significativas, é feliz, então a declaração de que es-
socialmente situadas” (Gee apud GUIMARÃES, 2014, p.71).
SELINFRAN
tou pedindo desculpas é verdadeira” que a individualidade e os ideais re-
(AUSTIN, 1990, p. 57). Outro fato é o gulatórios relacionam-se: justamente
de que os proferimentos constatati- pelo fato de o sujeito não ser plena-
vos também podem ser felizes ou in- mente consciente e não ter total do-
felizes e não apenas verdadeiros ou mínio de sua intenção é que suas es-
falsos, pois “As considerações de feli- colhas estão no campo do indecidível,
cidade e infelicidade podem infectar do não-calculável (SANTOS, 2008 p.
as declarações (ou algumas delas) e 1560). Butler, por sua vez, corrobora
as condições de falsidade e verdade o pensamento do filósofo franco-ar-
podem infectar performativos (ou al- gelino ao contestar a própria ideia
guns deles)” (AUSTIN, 1990, p. 59). de ritualização da performatividade
Logo, o estudioso, ao repensar sua de Austin. Esta contestação funda-
própria teoria, compreende que, em menta sua argumentação sobre a
última instância, todos os atos de fala constituição do corpo pelo desejo no
seriam, portanto, performativos. processo de incorporação que carac-
Os textos posteriores à oitava terizaremos posteriormente.
conferência de “Quando dizer é fa- Assim sendo, podemos concluir
zer” aprofundam a questão das con- que Derrida (1991) problematiza as
dições de realização de atos de fala condições para realização dos atos
performativos e constatativos, desen- de fala colocadas por Austin, que tor-
volvendo os conceitos “locucionário”, navam estes últimos invariavelmente
“ilocucionário” e “perlocucionário”. performativos em sua essência. Con-
Ao fazê-lo, Austin expõe como todo tra a suposta supremacia dos atos
dizer é de fato um fazer, uma vez que de fala sinalizada por Austin, Derrida
a ocasião de um proferimento reformula as premissas para a reali-
tem enorme importância, e que zação dos atos de fala, como pontua
as palavras utilizadas têm de ser Pinto:
até certo ponto “explicadas” pelo Ao contrário do que se poderia 233
“contexto” em que devem estar esperar das duas primeiras con-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


ou em que foram realmente fala- ferências de Austin, Derrida mos-
das numa troca lingüística. Con- tra que o ato de fala não é um rito
tudo, talvez ainda nos inclinemos planejado e regulado juridica-
demasiado pelas explicações em mente através de regras previa-
termos do “significado das pala- mente acordadas entre falantes
vras”. (AUSTIN, 1990, p. 89) (o contrato social); o ato de fala
Derrida (1991), em sua releitura dos é, como rito, um acontecimento,
atos de fala propostos por Austin, di- na medida em que sua força é
iterável, e sua repetição instaura
reciona um aprofundamento das pre-
sempre uma diferença. (PINTO,
missas sobre as condições para o su-
2009, p.125)
cesso e o insucesso do proferimento,
a intencionalidade e, principalmente, Consequentemente, a reflexão de
vale-se do conceito da iterabilidade Derrida chega à passibilidade dos
para compreender as instâncias em signos à citação e, com isso, à chance
SELINFRAN

do sentido “romper com todo o con- de que o gênero é um construto dis-


texto dado, engendrar infinitamente cursivo, algo que é produzido5” (SA-
novos contextos, de forma absolu- LIH, p. 74). A autora também concor-
tamente não saturável”. (DERRIDA, da com a proposta austiniana de que
1991, p. 362). Assim põe-se em sus- os atos de fala são performativos e
pensão princípios sobre os limiares com o conceito da iterabilidade e ci-
da intencionalidade frente às indis- tacionalidade de Derrida, consequen-
cutíveis marcas citacionais reprodu- temente, ao afirmar que fazemos coi-
zidas nos proferimentos. Discorrere- sas com a linguagem e que isso afeta
mos mais especificamente acerca de o corpo. Este processo é descrito por
tais marcas – também denominadas Butler como incorporação – em re-
Discursos, neste estudo – ao tratar- corrência à teoria psicanalítica freu-
mos das categorias de análise do diana – ou seja, o processo pelo qual o
corpus. Por agora, avaliaremos aqui- corpo conserva ou “recalca” os obje-
lo que Derrida (1991, p. 364) referiu tos em sua superfície. Compartilhan-
“resto” – análogo às concepções de do da perspectiva de que linguagem
“deslocamento” e “diferença” aqui é ação e de que somos efeitos dos
mencionadas – da totalidade enun- Discursos que ouvimos pela citacio-
ciativa. nalidade e iterabilidade e de que tais
Segundo Derrida (1991), haveria um efeitos marcam os corpos, passamos,
transbordamento do conceito de lin- a seguir, às questões de sexualidade
guagem que não estaria mais dando e gênero.
conta de tudo o que foi reunido sob
ele ao longo da história do pensamen- SEXUALIDADE E GÊNERO PELAS
to Ocidental. Em conformidade com TEORIAS QUEER
tal concepção de transbordamento, É relevante lembrarmos, como o
é possível conceber a relação pro- fez Louro (2001), que “a homossexu-
234 posta por Butler (2003) entre corpo, alidade e o sujeito homossexual são
sexualidade e gênero. Com relação invenções do século XIX”, bem como
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

à incompatibilidade do que se tem parte dos juízos de valor instituciona-


por identidade com os atos de fala lizados (e indexados na linguagem)
performativos, a filósofa demonstra nas sociedades desde então. Contu-
como a produção de discursos e suas do, segundo a autora, é apenas na se-
esferas semânticas ocorrem antes na gunda metade do século XX que os
contingência da sua prática do que movimentos em prol de uma politiza-
na abstração conceitual, como nos ção dos discursos sobre sexualidade
lembra Ottoni (2002) a respeito do tomam consistência e articulam-se
pensamento austiniano. às discussões sociais. Mais especi-
Ao construir “aquilo que chama ficamente sobre o contexto de sur-
de ‘uma teorização discursiva da gimento das teorias queer, Miskolci
produção cultural do gênero’ (...) ela descreve:
[Butler] trabalha a partir da premissa
5 Grifo nosso.
SELINFRAN
As origens da Teoria Queer re- to. Assim, podemos perceber que as
montam ao fim da chamada Re- concepções de sexo são conduzidas
volução Sexual, dos movimentos por padrões, produtos de instâncias
liberacionistas feministas e gays de determinada preeminência nos lo-
e do – hoje sabemos – curto perí-
cais onde circulam e constituem, des-
odo de despatologização da ho-
sa forma, uma microfísica de poder.
mossexualidade, retirada da lista
de enfermidades da Sociedade Analogicamente, a sexualidade
Psiquiátrica Americana em 1973. expõe-se nos Discursos como cenas
(MISKOLCI, 2014) persuasivas de um teatro sério; suas
A conceitualização do que seria Verdades – a inexorabilidade entre
uma postura Queer produzida por homem e mulher, o rechaço como
estes teóricos das décadas finais do punição aos “desvios” – circulam por
século XX poderia ser resumida na entre nós e paulatinamente são ti-
assunção da “diferença que não quer das, de fato, como tais. É retomando
ser assimilada ou tolerada, e, portan- Foucault, que Butler problematiza
to, sua forma de ação é muito mais a questão da sexualidade também
transgressiva e perturbadora.” (LOU- como uma forma de imposição de
RO, 2004, p. 38-39). Ao que Louro poderes e negação do desejo.
denomina espírito queering, interes- A autora demonstra que, até en-
sa menos saber como as identidades tão, o Discurso biologista adotado
sexuais hegemônicas são produzidas, pelos constructos sobre sexualidade
e mais, como determinados sujeitos atrelavam gênero (material, definido)
e corpos são nomeados como estra- a “sexo”. Da mesma maneira, aponta
nhos, anormais, esquisitos ou queer. a performatividade como uma forma
Ao mesmo tempo, evidencia-se a ne- de desconstruir aquilo que nos Dis-
cessidade de “empreender uma mu- cursos soa como certo/errado. Lem-
dança epistemológica que efetiva- brando que Austin pondera que se
mente rompa com a lógica binária e “alguém emite um proferimento per- 235
com seus efeitos: a hierarquia, a clas- formativo, e se o proferimento é clas-

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


sificação, a dominação e a exclusão.” sificado como um desacerto pelo fato
(LOURO, 2009, p. 550) de o procedimento invocado não ter
Em sua “História da sexualidade”, sido aceito, trata-se presumivelmen-
ao refletir como a scientia sexualis, te não do falante, mas de uma pes-
concebida a partir do positivismo soa que não o aceita” (AUSTIN, 1990,
do século XIX, tem adquirido feições p. 39), Butler propõe uma leitura do
cada vez mais intransigentes e ba- gênero pelo deslocamento, na qual a
seadas em verdades incontestáveis performatividade permite um discur-
como a ars erótica medieval, Fou- so que vai, além do Eu, para o Outro.
cault (1988) demonstra que o sexo É neste movimento de desloca-
se submete a um paradigma imposto mento derridiano descrito por Dar-
por determinadas instâncias sociais deau (2011), juntamente à concepção
em uma espécie de recrudescimen- da performatividade dos atos de fala
SELINFRAN

desenvolvida por Austin e à “cons- cerá cada vez mais instável. Assim, o
trução discursiva das sexualidades” gênero é radicalmente independente
foucaultiana, que se instaura a con- do sexo (...).” (SALIH, 2013, p. 71). Esta
cepção de “queer”: inicialmente tido distinção é claramente desenvolvida
como “estranho” ou “bizarro”, o ter- por Butler em Problemas de Gênero,
mo passa a remeter-se às pessoas onde deparamo-nos com a seguinte
cujas subjetivações realizam abalos reflexão:
na categoria normatizadora de sujei- Concebida originalmente para
to. Neste aspecto, o pensamento de questionar a formulação de que
Butler aproxima-se das teorias queer, a biologia é o destino, a distin-
ao tratar das concepções de sexuali- ção entre sexo e gênero atende à
dade e gênero, capitais à linguagem tese de que, por mais que o sexo
butleriana. pareça intratável em termos bio-
lógicos, o gênero é culturalmente
Segundo Salih (2013), a sedimen- construído: consequentemente,
tação do gênero sempre se apre- não é nem o resultado causal do
senta como algo natural que ocorre sexo, nem tampouco tão apa-
por meio de práticas instituídas por rentemente fixo quanto o sexo.
normas socialmente hierarquizadas, (BUTLER, 2003, p.24)
procurando moldar os sujeitos e en- Então, passando pela ideia de “po-
quadrá-los num padrão binário. Tudo litização dos corpos” colocada pelas
o que propõe deslocar categorias feministas desde o século XIX, pelos
como macho/fêmea, homo/héte- movimentos gays dos anos 60, por
ro ameaça a característica “natural” Foucault (1988) e discutida no con-
apregoada ao gênero construído por texto do cotidiano escolar por Lou-
uma matriz heterossexual de poder. ro (2000), podemos dimensionar a
Aquilo que se tem usualmente por linguagem enquanto performance/
gênero acontece no interior das leis construção de um sujeito em um
236 que regem os jogos de poder na so- contexto prévio de significações,
ciedade, sendo por elas conformadas. como o faz Butler (2003), e entender,
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

Neste sentido, são as identidades de enfim, até que ponto os artigos pro-
gênero que legitimam os juízos que duzidos no blog Integra são atos de
as fundamentam, na medida em que fala performativos dos sujeitos que
“são construídas e constituídas pela os produzem, mas também produto
linguagem. O que significa que não do contexto social em que os Discur-
há identidades de gênero que pre- sos se constroem, conforme descre-
cedam a linguagem” (SALIH, 2013, ve Silva:
p. 91). Desta prerrogativa conclui-se, A partir dessas considerações,
portanto, que “se aceitamos que o podemos afirmar, então, que as
gênero é construído e que não está, mesmas práticas discursivas po-
sob nenhuma fórmula, ‘natural’ ou dem indexicalizar diferentes dis-
inevitavelmente preso ao sexo, então cursos, operando em diferentes
a distinção entre sexo e gênero pare- ordens de indexicalidade pelo
SELINFRAN
modo como são entextualiza- dos. Ao nos engajarmos em pro-
das e por quem as entextualiza. cessos reflexivos, lançamos mão
Todavia, apesar de serem entex- de recursos semióticos que não
tualizadas e se guiarem por de- se relacionam apenas aos usos
terminadas ordens de indexicali- normativos (nível denotativo).
dade, nossas escolhas semióticas Em conjunto com sentidos refe-
podem ser (re)ordenadas e atua- renciais projetamos também sen-
lizadas de acordo com as regras tidos inferidos em um nível cono-
de outras ordens de indexicalida- tativo ou “interacional” (Agha,
de, dependendo dos processos ibid.: 45). Os sentidos indexicais
de entextualização em jogo. (SIL- apontam para a natureza da rela-
VA, 2015, p. 79) ção entre esses dois níveis, são as
“relações entre forma linguística
Indispensável ressaltar o efeito que
e padrões culturais” (Blommaert,
esses Discursos causam sobre o cor- 2005: 41). (ROCHA, 2013, p. 126)
po nas relações sociais, a ponto de
Se considerarmos, como o fez Fou-
marcá-los de forma indelével. Neste
cault (1987), que processos sociais de
sentido, orientados pelas pesquisas
coconstrução do significado não são
em LA, identificamos a relação dos
livres ou aleatórios, chegamos à con-
“enunciados a momentos, lugares e
cepção de ordens de indexicalidade,
pessoas em determinadas circuns-
que seriam “procedimentos impostos
tâncias, ou seja, o processo de indexi-
ou por qualquer sociedade ou pelo
calidade” (PONTES, 2009, p. 30) nos
próprio discurso que controlam as
textos publicados no blog.
produções discursivas, ora fazendo
Tal processo demarca, a priori, a emergir alguns discursos, ora outros”
natureza ambígua intrínseca à lingua- (BLOMMAERT, apud MELO E MOITA
gem na qual a individualidade dos LOPES, 2014, p. 660).
atos de fala converge com os juízos Os posicionamentos interacionais,
de valor subscritos no cotidiano em por sua vez, também se referem às
que eles se inserem. Vejamos a seguir 237
marcas identitárias que localizam o
qual foi o arcabouço teórico utilizado

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


sujeito na vida social e o posicionam
para a abordagem dos artigos anali- no discurso de modo singular assim
sados. como seus interlocutores. Isto signifi-
ca que em nossa pesquisa preocupa-
INSTRUMENTAL TEÓRICO-ANA- mo-nos com a projeção que o indiví-
LÍTICO duo faz de si mesmo em determinado
Para entendermos as ordens de enquadre, ou seja, “a postura, a posi-
indexicalidade neste estudo, recorre- ção, a projeção do “eu” de um parti-
mos à noção de indexicalidade susci- cipante na sua relação com o outro,
tada por Rocha, que pontua: consigo próprio e com o discurso em
construção” (GOFFMAN apud MELO
A noção de indexicalidade é
importante para compreender
e MOITA LOPES, 2013, p. 252).
como comportamentos linguísti- “As ordens de indexicalidade são
cos replicáveis podem ser altera- ‘padrões estratificados de significa-
SELINFRAN

dos sociais frequentemente denomi- e carências foi uma experiência en-


nados ‘normas’ ou ‘regras’, para os riquecedora para nossa pesquisa. A
quais as pessoas se orientam quando partir de janeiro de 2015, começamos
se comunicam”, (BLOMMAERT, apud alguns contatos com jovens que se
SILVA, 2015, p. 78). Em nosso estudo, identificavam com a causa e queriam
vamos adotar eixos analíticos que falar sobre a referida temática, pas-
movimentam significados de atos de sando a realizar encontros semanais,
fala do local para o translocal. que aconteciam dentro do espaço
Desse modo, podemos estabele- escolar.
cer uma relação estreita entre o uso O grupo apresentava um perfil bas-
de determinados significados pelx tante eclético, contando com jovens
blogueirx – portanto, a assunção de entre 15 a 25 anos, com estudantes
determinados posicionamentos in- desde o ensino médio integrado com
teracionais – não apenas com um o curso técnico até alunxs de gra-
contexto social como também com duação. Deixamos claro nosso ob-
o pertencimento a um grupo social jetivo de analisar como as questões
específico. de gênero e sexualidade, que fogem
do padrão dominante da sociedade
CONTEXTO DE PESQUISA e geram sofrimento àqueles que se
opõem à ordem estabelecida, eram
Ao iniciarmos nossa pesquisa,
tratadas dentro do ambiente escolar.
aprofundando no estudo das teorias
queer, vislumbramos a possibilidade Surgiu, então, a ideia de se criar um
de trabalhar os temas ligados a sexu- blog que funcionasse como espaço
alidade e gênero com um grupo de de expressão e discussão de temas
militância LGBTT no Instituto. Em um como gênero e sexualidade e pudes-
primeiro contato com essxs alunxs, se servir de apoio a jovens que se
sentimos nitidamente uma boa re- identificam com a causa LGBTT e de-
238 mais alunxs do Instituto. Ressaltaram
ceptividade e, até mesmo, a necessi-
dade da existência de um espaço ou que, através do blog, muitos jovens
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

instrumento de articulação da temá- com dificuldade em suas relações in-


tica como necessidade urgente para terpessoais devido à sua subjetivida-
trabalhar a questão. Para nós, ficou de, sentir-se-iam seguros para falar
evidente e comprovado o silencia- de seus receios e suas histórias sem
mento das instituições de ensino em necessariamente se expor. Ao mes-
relação às perspectivas referentes a mo tempo, o blog poderia ser usado
temáticas consideradas dissidentes como corpus para a nossa pesquisa e
normativas. também como veículo de interação e
informação para as pessoas interes-
Compartilhar com xs alunxs do
sadas. Então, em abril de 2015, criou-
IFSULDEMINAS Câmpus Muzambi-
-se o blog “Integra”, denominado por
nho a discussão, já ativa, da temá-
eles como “uma iniciativa conjunta
tica LGBTT e dividir com elxs suas
dos alun@s LGBT do IFSULDEMINAS
ideias, vivências, conflitos, angústias
SELINFRAN
Campus Muzambinho, como forma deve ficar claramente isolado e de
de colocar em pauta discussões per- que não se deve permitir que ele con-
tinentes a nós”. tamine o meio pelo qual procuramos
Todo o grupo se propôs a publicar estudá-lo” (RAJAGOPALAN, 2010,
seus textos no blog, e imaginávamos p. 13), acreditamos na sua inevitável
que haveria um leque diversificado imanência àqueles que o abordam.
de artigos e muitas questões a se- Assim sendo, a proposta etno-
rem discutidas. Entretanto, ao tér- gráfica de pesquisa condiz com esta
mino do primeiro semestre de 2015, postura de engajamento do pesqui-
havia quatorze postagens presentes sador uma vez que, como lembram
no blog, sendo todas nitidamente Mattos e Castro (2011, p. 37) “a própria
de uma única autoria. Notamos en- escolha do objeto de estudo pressu-
tão que apenas x alunx que articulou põe estudos anteriores que levem o
toda a criação do blog, desde a esco- pesquisador a entender o campo a
lha do seu nome, a forma de provê-lo partir de um olhar que foi construído
e a garantia das postagens foi x úni- ao longo de sua experiência de vida”.
cx que se manteve perseverante e le- Sobre este aspecto, Hine (2014) ob-
vou o blog adiante. Então, tentamos serva que, em um cotidiano inundado
interpretar porque este fenômeno pelas TICs, é importante considerar
ocorreu e concluímos que realmente o fato de que a interação, por meio
o que dificultou a circulação de uma dos recursos tecnológicos entre se-
variedade maior de autoria de textos res humanos, pode mudar as práticas
no blog, com certeza, foi a falta de sociais. Por isso, nossa pesquisa ca-
domínio ou familiaridade com o letra- racteriza-se como etnográfica virtu-
mento, impedindo assim, que outrxs al, visto que satisfaz alguns princípios
alunxs se manifestassem e expuses- elencados por Hine a respeito desta
sem seus posicionamentos interacio- categoria de estudo. Logo, podemos
nais em relação aos temas gênero e afirmar que a pesquisa seguiu uma 239
sexualidade no blog Integra. orientação etnográfica não apenas

VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN


porque a pesquisadora presenciou
METODOLOGIA as reuniões para a conceitualização e
concepção do blog pelos jovens, mas
É capital discorrermos sobre o
também participou do blog, acom-
caráter subjetivo de nosso estudo,
panhando as postagens, visitando as
muitas vezes definido como “par-
fontes citadas ao longo delas e lendo
cialidade” inconveniente à “pesquisa
os comentários postados.
científica” por determinadas áreas da
linguística. Não só assumimos nosso Sob esta perspectiva, adotamos,
arbítrio sobre a mesma como tam- para a pesquisa, como instrumentos
bém ratificamos um posicionamen- de geração de dados, quatro artigos
to social perante ela, uma vez que, de opinião sobre os temas gênero
díspares da “visão tradicionalmen- e sexualidade encontrados no blog
te aceita de que o objeto de estudo Integra. A opção pelo blog se deu por
SELINFRAN

acreditamos que, nesse contexto, os CONCLUSÃO


jovens possam se reconhecer como
As ordens de indexicalidade e os
coparticipantes, “queerizando” seu
posicionamentos interacionais reco-
cotidiano, recusando a passividade,
nhecidos nos artigos do blog reve-
a indiferença e obediência cega
lam um jovem gay do interior, que
aos padrões estabelecidos pelo
vivenciou as dificuldades de assumir
poder dominante que institui o
sua sexualidade considerada fora do
que é legítimo e ilegítimo para ser
padrão hegemônico pré-estabeleci-
incluído nos currículos escolares. No
do pela sociedade. Além disso, deixa
mundo online, ambiente propício à
nítida a marca de que muitos gays,
manifestação de diversos sujeitos
que vivem nesse ambiente, acabam
sociais, eles também estão protegidos
se resguardando e mantendo-se ca-
de hostilidades face a face e ataques
lados perante a dificuldade de en-
físicos. A web é um espaço híbrido
frentarem tais barreiras. Ao mes-
que oferece a possibilidade não só do
mo tempo, demonstra uma postura
anonimato, mas também da infinitude
consciente e autoconfiante sobre sua
de alternativas para que essxs atores/
subjetividade homoafetiva.
atrizes reinventem e externem suas
subjetividades. Também pudemos concluir que,
apesar de jovem, o blogueiro de-
Para a análise dos posicionamen-
monstra um posicionamento social
tos interacionais e das ordens de in-
engajado e coerente com seus dis-
dexicalidade utilizamos os índices
cursos sobre gênero e sexualidade, o
linguísticos propostos por Silverstein
que deflagra – ainda que permeadas
(2003) e as cinco pistas indexicais
por marcas de Discursos cristalizados
definidas por Wortham (2001): refe-
na linguagem – uma postura queer.
rência e predicação; descritores me-
tapragmáticos; citação; avaliadores
240 indexicais; e modalizadores epistêmi-
cos.
VI SEMINÁRIO DE PESQUISA EM LINGUÍSTICA DA UNIFRAN

REFERÊNCIAS
AUSTIN, J. L.: Quando dizer é fazer. Trad: Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas:
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