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Arnaldo Saraiva O conceito de literatura marginal Quantos textos tem hoje a humanidade ao seu dispor? De quantos tex- tos pode hoje dispor cada um de nés? E quantos textos séo diariamente acrescentados aos intimeros ou inumeraveis que jé existem? Ainda ha muitos homens que prescindem ou sao obrigados a pres- cindir de livros, ainda ha no mundo cerca de 950 milhées de analfabetos: 280 milhées na fndia, 220 milhoes na China, 40 milhdes no Paquistao e no Bangladesh, 18 milhoes no Brasil', e até mais de um milhao em Portugal. Ainda ha muitos homens que, fundamentalistas ou ndo, s6 se guiam por uma biblia, por uma cartilha, com os perigos insinuados na célebre frase atribuida a $. Tomas de Aquino: «timeo hominem unius libri», ou «timeo lectorem unius libri» (Tosi, 1993: 177). Mas nenhum homem sao de nenhum. pais pode prescindir de textos, de uma consideravel quantidade e variedade de textos, nao importa se orais ou escritos. Nao seré facil dizer o que é um texto, como se deduz dos muitos estu- dos que desde os anos 70 tém vindo a ser publicados sobre a teoria do texto literdrio - lembrem-se por exemplo, pela sua relevancia, as obras de Yuri M. Lotman Estrutura do Texto Artistico (1978), e de Walter D. Mignolo Elementos para uma Teoria do Texto Literério (1978) - ou simplesmente sobre a chamada «teoria de texto» ou «linguistica de texto», de que sio paradigmas as obras de Wolfgang Dressler, Einfuhrung in die Textlinguistik (1972) e de Siegfried J. Schmidt, Texthcorie (1973). Na obra Introduccién a la Linguistica del Texto, * A Fotha de S. Paulo, 6 de Junho de 1993. ? & edicdo original foi publicada em Moscovo, pela Editorial Iskusstvo, em 1970. A edigao francesa foi publicada em Paris, pela Gallimard, em 1973. A edigéo espanhola foi publicada em Madrid, pelas Ediciones Istmo, em 1978. Discursos, 10 (1995): 15-23 6 Discursos publicada em 1982, Enrique Bernardez ja dizia que encontrara «mais de cinquenta» definicdes de texto, e propunha, «mais do que uma definigao, um conjunto de caracteristicas do texto» (p. 70). Para ele o texto, que nao se con- funde com a frase ou com a oragdo, e que se aproxima do enunciado e do dis- curso, é uma «unidade linguistica comunicativa fundamental, produto da actividade verbal humana, que possui sempre caracter social», e é «caracteri- zado pelo seu fechamento semantico e comunicativo, assim como pela sua coeréncia profunda e superficial, devida a intengao (comunicativa) do falante lou do escrevente] de criar um texto integro, e A sua estruturagao mediante dois conjuntos de regras, prprias do nivel textual e do sistema da lingua» (Id.: 85). Mas, qualquer que seja 0 conceito — preciso ou impreciso, vago ou rigo- roso que tenhamos de texto, admitiremos sempre sem dificuldade que, ao longo de um dia normal, convivemos ou vivemos com numerosos e variados textos, que recebemos, produzimos, reproduzimos, co-produzimos. Textos orais, textos escritos, textos orais e escritos: audiveis, legiveis, audiveis e legiveis (ou visiveis). Textos breves e textos longos. Textos antigos e textos actuais. Textos literarios e textos no literérios. Textos informativos, forma- tivos, distractivos, apelativos, performativos. Textos sérios e textos jocosos. Textos que nos chegam de diversos modos e em miltiplos suportes: voz humana, directa ou diferida, natural ou com apoio artificial, que a amplifica, deforma ou transforma (funis, microfones, altifalantes, gravadores, discos, cassetes, radios, televisdes, videos, telefones, teleméveis, inimeros aparelhos electro-actisticos e electrénicos, de alta ou baixa fidelidade); papel (jornal, folheto, revista, livro... fabricados por varios tipos de mAquinas, cada vez mais sofisticadas e rapidas); pedra (lpides, paredes, ardésias...); madeira (portas, arvores...); pele (pergaminho); vidro; tela; plastico; pelicula; fita (magnética); disco; disquete, écran; etc. Todos vivemos na dependéncia de textos, que construimos ou recebe- mos, activa ou passivamente; toda a nossa vida é tecida por textos. E se a qualquer hora podemos produzir textos novos, também podemos dispor de um fundo incomensurdvel de textos jé feitos, que teremos de perfazer, na medida das nossas possibilidades. Porque sabemos que o tempo de uma 16 O conceito de literatura marginal longa vida humana, mesmo que seja a de um leitor voraz, jé ha muito nao é suficiente para conhecer simplesmente os chamados classicos. E quase nos assustamos quando nos damos conta da producéo anual de livros em diversas linguas; s6 no ano de 1986, por exemplo, foram publicados 2.702 titulos em Portugal, 36.924 em Franga, 52.000 em Ingla- 3 terra... — ntimeros bem inferiores aos que se obte- riam na Alemanha, nos Estados Unidos e na ex-URSS. Para nos darmos conta da multiplicidade e da quantidade de textos com que lidamos no dia a dia bastara pensar nos que nos chegam logo de manha pela radio, pela televi anincios, entrevistas...) ou pelos jornais (além dos citados, editoriais (cartoons), poemas, contos, anedotas, criticas, ensaios, cartas...), podendo a rua e os salées multiplicar esses textos (telegramas, conversas, didlogos, licées, discursos, (0 (noticias, reportagens, crénicas, comentarios, cancées, pecas, filmes...). E ndo se pense que o homem comum sé recebe textos ou s6 oralmente produz textos; como nos lembra o volume colectivo Ecritures Ordinaires (AA. VV. 1993), quase toda a gente se sente obrigada ao longo do dia ou da semana a escrever notas, bilhetes, cartas, contratos, certidées, requeri- mentos, receitas, didrios, ou a usar agendas, blocos, cadernos, élbun: Ora, entre os muitos textos que diariamente emitimos ou recebemos, ha 0s que logo incluimos intuitivamente no campo da literatura, e hd os que logo excluimos desse campo, colocando-os no campo da ndo-literatura; poucos serdo os que nos péem problemas de arrumacao, jé que tenderemos sempre a enviar para o lado nao-literario os textos que violem alguns dos supostos ou pressupostos canones literdrios, incluindo aqueles que a primeira vista se situam entre o literério e 0 ndo-literdrio, e que sao ditos paraliterdrios, subli- terdrios, infraliterdrios, pseudoliterarios. * Dados fornecidos pela Associagio Portuguesa de Editores ¢ Livreiros, pelo British Council e pelo Syndicat National de I'Edition (cf. Gazeta do Interior, 4 de Janeiro de 1990). De acordo com Robert Escarpit, a taxa anual média do aumento da produgdo mundial de titulos entre 1950 e 1970 foi de 7% (Escarpit, 1972: 32). Cf. também Robert, 1983,

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