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3 0 | d e ze mb ro 2015
ARTE DA ÁFRICA – criação crítica
Roberto Conduru
Situa a produção de Carl Einstein entre os textos que, a partir da segunda década do
século 20, tomaram como objeto de reflexão crítica máscaras e representações es-
cultóricas de divindades africanas, criando o campo de estudos historiográficos sobre
arte da África.
Embora não se possa precisar dia e mês, é certo o AFRICAN ART – CRITICAL CREATION | The text places
ano em que foi criada a arte da África: 1906. Tam- Carl Einstein’s production among the texts that,
bém não há dúvida sobre o local em que ela nas- from the second decade of the twentieth century
on, took masks and sculptural representations of
ceu: Paris. Naquela cidade e naquele ano, Maurice
African deities as objects of criticism, creating the
de Vlaminck, André Derain, Henri Matisse e Pablo field of historiographical studies of African art. | Carl
Picasso mudaram o modo de relacionamento com Einstein, African art, art historiography.
certos objetos provenientes do continente africa-
no. Até então tratados como curiosidades, elementos da cultura material de sociedades consideradas
primitivas, passaram a ser apreciados também do ponto de vista artístico. Três ou quatro anos depois,
isso ocorreu também na Alemanha, com Franz Marc, August Macke e Emil Nolde.1
Em 1910, Roger Fry publicou um texto sobre a arte dos bosquímanos; dez anos depois, analisou a ex-
posição de esculturas africanas realizada naquele ano no Chelsea Book Club, em Londres.2 Em 1912, o
escritor francês Élie Faure (1873-1937) incluiu reflexões sobre a arte da África em um capítulo de um
-
dos cinco volumes de sua história da arte.3 Dois anos depois, o artista e teórico da arte letão Voldemars
Matvejs, cujo pseudônimo era Vladimir Markov (1877-1914), e o escritor e crítico de arte alemão Carl
Einstein (1885-1940) começaram a escrever suas obras sobre esculturas da África, um sem conheci-
mento da ação do outro: Markov morreu naquele ano, e sua obra, Arte negra,4 só foi publicada em
artística, pois, conforme Einstein, “certos proble- da raça branca, dando forma apenas aos senti-
mas que se colocam para a arte moderna provo- mentos.29 Nada semelhante se encontra no livro
caram abordagem mais escrupulosa da arte dos de Markov, assim como no de Carl Einstein, que
povos africanos. Como sempre, aí também, um inicia Escultura negra atacando a visão preconcei-
processo artístico atual criou sua história: em seu tuosa em relação aos africanos, a seu ver forjada
centro elevou-se a arte africana”. 25 na falta de conhecimento.
Entretanto, sendo pensada na maioria desses tex- Assim como o dito ser primitivo estava preso a
tos em função da arte ocidental, a arte da áfrica uma condição pretérita atemporal, a arte da Áfri-
teve nascimento que se pode dizer crítico também ca não tinha história, situando-se em um vácuo
em outro sentido, o qual tem persistido em seu temporal – ausência de história, de funções e sen-
enquadramento artístico, histórico, museológico, tidos sociais que, coerentemente, levaram artistas
cultural. Apesar do valor positivo a ela atribuído, e escritores a se concentrar em questões formais,
ressalta na maioria desses textos uma avaliação desconsiderando aspectos simbólicos e funcionais
negativa das sociedades nas quais as esculturas das obras; apropriações artísticas e reflexões crí-
foram produzidas, pautada em visão evolucionis- ticas abstratas e formalistas que se estenderam
ta e eurocêntrica da arte, da cultura, da história da a publicações, exposições, usos domésticos. Um
humanidade. Segundo Élie Faure, “o homem ne- exemplo entre muitos possíveis: Kwame Anthony
gro é, talvez, entre todos os não evoluídos, aquele Appiah ressalta como, ao participar do grupo de
que mostrou a menor aptidão para elevar-se aci- curadores de uma exposição realizada em 1987
ma dos instintos humanos elementares”; “o negro no Centro de Arte Africana, em Nova York, David
manteve quase a mesma seleção de imagens, as- e da escultura no Ocidente, ela é estudada per
sim como a ausência de legendas. se. Ele começa o texto de Escultura africana in-
formando que sua intenção é “menos estudar
Independentemente das responsabilidades de
a arte negra em função da atividade artística
Einstein por essas ocorrências, é fato que o livro
moderna (...) do que abrir caminho para pes-
Escultura africana e os textos publicados na revista
quisas especializadas em história da escultura e
Documents indicam caminho diverso, com outra
da pintura africana”.37
economia. Nesses textos, como que se inverte a
análise empreendida em Escultura negra, indican- Nesses textos, não há uma África ao mesmo tem-
do o aprofundamento de seus estudos. Em vez da po totalizante e genérica, mas determinados con-
visão geral da arte da África a partir do cubismo textos africanos. Explicitando a incompletude do
A seu ver, alguns desafios se colocam no estudo Para concluir, não posso deixar de dizer duas pala-
da arte da África: a insuficiência da análise por vras sobre a arte da África no Brasil. Primeiro, vale
“zonas de cultura” em função da complexidade indicar que, antes das apropriações artísticas e das
cultural devido às migrações e interações entre os reflexões críticas aqui abordadas, mais exatamen-
grupos sociais; a dificuldade para determinar o te em 1896 e em 1904, o médico e professor Rai-
significado das obras e para estabelecer a datação mundo Nina Rodrigues publicou textos que, não
das obras, e, consequentemente, uma ordem cro- sem preconceito, destacam “a capacidade artís-
nológica para a arte da África. Ele também indica tica dos negros”, especialmente em escultura, e
a necessidade de colecionar pintura arquitetural e incluem suas realizações na tradição das belas ar-
de constituir uma arqueologia da África. tes.42 Por outro lado, é preciso ressaltar, também,
Assim como Escultura negra, o texto “A propósito a incipiência na exibição das coleções de arte da
da exposição na Galerie Pigalle” começa discutin- África existentes em museus públicos no país, es-
do questões metodológicas. Contudo, enquanto pecialmente no Rio de Janeiro. Ao contrário do
no primeiro as “observações sobre o método” Museu Afro Brasil e do Museu de Arqueologia e
partem do preconceito e da insuficiência do co- Etnologia da Universidade de São Paulo, ambos
nhecimento relativo à arte africana para discutir na capital paulista, e do Museu Afro-Brasileiro,
relações entre forma e visão, no último é propos- em Salvador, em que é possível experimentar essa
to um “método para o estudo da arte africana”. arte de modos diversos, no Museu Nacional da
Quando afirma ser “preciso tratar essa arte his- Universidade Federal do Rio de Janeiro, no Museu
toricamente e deixar de considerá-la apenas sob da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro e no
o ponto de vista do gosto e da estética”, ele se
40
Museu Nacional de Belas Artes, instituições com
posiciona criticamente em relação aos textos pro- acervos singulares, importantes, a África e o afro-
duzidos até então, o que inclui autocrítica. Além Brasil estão atualmente relegados à invisibilidade,
2 Fry, Roger. A arte dos bosquímanos (1910). In Vi- 16 Steiner, Christopher B. The taste of angels in the
são e forma (1920). São Paulo: Cosac & Naify, 2002, art of darkness. Fashioning the canon of African art.
11-122; e Negro sculpture at the Clesea Book Club In Mansfield, Elizabeth (Ed.). Art history and its insti-
(1920). In Fry, 2002, op cit.: 123-127. tutions. Foundations of a disicpline. London: Routle-
dge, 2002: 133.
3 Faure, Élie. Os trópicos. In A arte medieval (1912).
São Paulo: Martins Fontes, 1990: 121-152. 17 Goldwater, Robert. Primitivism in modern art
(1966). Cambridge: Harvard University Press, 1986:
4 Markov, Vladimir. Negro art (1913). In Flam, Deuts- 43.
ch, op. cit.: 61-66.
18 Torgovnick, Marianna. Gone primitive. Savage
5 Einstein, Carl. Negerplastik (1915). Florianópolis: intellects, modern lives. Chicago: The University of
Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, Chicago Press, 1990: 82.
2011.
19 Meffre, Liliane. Carl Einstein1885-1940. Itinérai-
6 De Zayas, Marius. Statuary in wood by African sa- res d’une pensée moderne. Paris: Presse de l’Univer-
vages: the root of modern art (1914). In Flam, Deuts- sité Paris-Sorbonne, 2002: 110.
ch, op. cit.: 70-72.
20 Sylla, Abdou. Criação e imitação na arte africana
7 De Zayas, Marius. African negro art; its influence in tradicional (1983). In Araújo, Emanoel (Org.). Áfri-
modern art (1916). In: Flam, Deutsch, op. cit.:. 92-99. ca e africanidades de José de Guimarães. São Paulo:
Museu Afro Brasil, 2006: 47.
8 Apollinaire, Guillaume. Concerning the art of the
blacks (1917). In Flam, Deutsch, op. cit.: 107-110. 21 Flam, Jack; Deutsch, Miriam. Introduction, op.
cit.: 13.
9 Càpek, Josef. Negro sculpture (1918). In Flam,
Deutsch, op. cit.: 113-116. 22 Fry, Roger. Escultura negra (1920). In Fry, 2002,
op. cit.: 123.
10 Flam, Deutsch, op. cit.: 23-116.
23 A esse respeito, ver: Bell, Julian. Uma nova his-
11 Apollinaire, Guillaume. On museums (1909). In tória da arte (2007). São Paulo: Martins Fontes,
Flam, Deutsch, op. cit.: 36.
25 Einstein, 2011, op. cit.: 30. 39 Einstein, Carl. Masques Bapindi. Documents, Pa-
ris, n. 1, 1930.
26 Faure, 1990, op. cit.: 122.
40 Einstein, Carl. A propósito da exposição da Ga-
27 Fry, 2002, op. cit.: 124.
lerie Pigalle (1930). Caleidoscópio, Lisboa, n. 11-12,
30 Appiah, Kwame Anthony. Na casa de meu pai: a 42 Rodrigues, Raimundo Nina. L’animisme fétichiste
África na filosofia da cultura (1990). Rio de Janeiro: des nègres de Bahia (1896). Salvador: Reis & Comp.
Contraponto, 1997: 194. Éditeurs, 1900; As Bellas-Artes nos colonos pretos do
Brazil – A esculptura. Revista Kósmos, Rio de Janeiro,
31 Einstein, 2011, op. cit.: 39-42.
ano I, n. 8, ago. 1904: 11-16.
32 Joyce, Conor. Carl Einstein in Documents and his
collaboration with Georges Bataille. Philadelphia: Xli-
Roberto Conduru é historiador da arte, doutor
bris, 2003: 23.
em história pela Universidade Federal Fluminense
33 Strother, Z. S. À la recherche de l’Afrique dans (UFF) e professor de história e teoria da arte na
Negerplastik de Carl Einstein. Gradhiva, Paris, n. 14, Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
2011: 32. Entre outras obras publicadas sobre arte e arqui-
tetura, co-organizou recentemente Carl Einstein e
34 Idem, ibidem: 39.
a arte da África (Eduerj). É pesquisador do CNPq e
35 Halbertsma, Marlite. The many beginnings and Cientista do Nosso Estado pela Faperj.