You are on page 1of 70
O DESAFIO BIOGRAFICO. ESCREVER UMA viDA Principio, realimenta continuamente 0 desejo do bisgrafo, embora ele saiba no fando Ais, 0 subit 4s encostas escarpadas de uma nova aventura biogrfica, condena-se a0, ‘mesmo movimento de icriador profissional ~ no & bem a massa arquvisica que iré descobrir: “Contssae indispensével: eho medo de arquivos"™*. Ele prefere o contato, © didlogo, aquilo que Ace Farge chama de “gosto do arquivo”. Simon Nora, colaborador de Pere, Mendes Franee; ficou assim literalmentesiderado no momento da publicagio dessa biografia de mais de quinhentas paginas. 6 que, quando abriu a Lacouture seus arquivos pessoais Coteerentes a Mendes, o autor nio os compulsou por mais de quinze minutos, mite cmbora a documentaedo fosseabundante. O primado da oralidade indur biderafo sauando cle lhes enfatiza a capacidade de escapat 20 condicionamento, E o que, fun- damentalmente, 0 caracteriza como biégrafo, mas se mostra verdadeir» também com ‘elasdo a seu metodo, o do parto sem dor por obra do didlogo: “O arto pela entrevis- 1a, eis meu método bisico"™”, Daf o perfil insubstituivel de sua obra, que retoma 0 didlogo com seus in- ‘erlocutores privilegiando a relago inteiramente pessoal que ele mantém, em tais, Seusbes, com 0s informantes. Isso n2o impede que haj alguns angulos morios em ‘sus trabalhos, como o fato de descurar a contextualizagao social das ersonagens © evitar sistematicamente, o que ele de resto 326. dem, p. 84 327. lien, p. 86, we ‘A BIOGRAFIA, GENERO IMPURO setoma a pritica jornalistica e solicita testemunhos, valorizando 0 concreto, 0 vivido. Ao termo de uma longa ¢ perigosa aventura, no curso da qual 0 bidgrafo manteve com ‘© biografado uma relacao de estreita proximidade e convivio obsessivo, 0 autor se sente ‘25 mesmo tempo extenuado e incapaz de descer das alturas exploradas: ‘Confesso humildemente que, depois de abordé-lo com certo medo perseguido com a cansciéncia ‘=o nitda de minha incapacidade de esclarecer bom niimero de fatos desconhecidos, de separar aqui € "a5 © verdadero do falso, de erguer a vista tio alto quanto a personagem exigia ou mesmo de expor com ‘ssstdade um ou outro debate do qual minha prépria carrera me fez pasticipat, nfo pude ver-Ihe o fim sem alguma tristeza, ‘confessa Lacouture no infcio do terceiro volume de sua trilogia™®. Ex-aluno de um colégio de jesuftas, Lacouture consagraré mais tarde dois vo- James a esses religiosos, volumes que classificard de “multibiografia™”. Numa lon- ‘=: jormada pela histéria da Companhia de Jesus, confirma-se 0 gosto do bidgrafo Lacouture pela volta aos tragos de seu passado, segundo uma perspectiva quase au- sebiogrdfica, mas que passa pela identidade do outro a fim de reconquistar seu pré- prio “eu” gracas 2 ascese do trabalho, da pesquisa € da escrita. Com a biografia de ‘Francois Mitterrand, publicada em 1998, um calhamaco de mais de mil paginas em Gis volumes, Lacouture escolhe para personagem aquele que encarna a seus olhos ‘ema ambivalencia tio acentuada que nfo suscita nele nem adesio nem admiracio. Acompanhou sua carreira, mas a distancia. A paixdo implicita no exercicio da escrita ‘Sioenifica ¢ tal que nao podemos lamenté-to e Lacouture vai prosseguindo incansavel- ‘seente em sua busca de heréis. Depois de Francois Mitterrand, escreve Greta Garbo ‘© 8 seguir biografias de Germaine Tillion, Montesquieu e Stendhal™. Essa intimidade com 0 outro, o sujeito biografado, é tao precisa e constitui ta- ssanha fonte de enriquecimento para quem a ela se entrega que acaba por se tornar set sciva vital. O bi6grafo passa a ser entdo um biGfago, absorvido pelo fascinio do ‘eatro, verdadeiramente imantado por esse fascfnio e tributério da grandeza alheia a ‘Sm de firmar sua propria identidade. Na opera¢ao biogrifica, o horizonte de totalidade ‘=scapa inexoravelmente: “No campo da biografia no podemos, é claro, saber ‘tudo’ ‘= respeito de uma pessoa nem dizer ‘tudo’. Uma vida nos agarra € nos escorre por to- ‘dos 0 poros, por todas as veias™, Esse horizonte indefinido, e sempre inacabado por S22 Jean Lacouture, De Gaulle 3. Le souverain, op. cit, p.7 525 Jean Lacouture, Jésuites J. Les conquérants. 2. Les revenants, Le Soul, 1991, 1992. 324 Jean Lacouture, Greta Garbo, la dame aux caméras, op. cits Le témoignage est un combat, Une Diographie de Germaine Tllion, Le Seuil, 000; Montesquieu. Les vendanges de laliberé, Le Seuil, 200%; Stendhal. Le bonheur vagabond, Le Seu, 2004, 325. Jean Lacouture, Profession biographe, op. cit, p. 193. Ra (0 DESAFIO BIOGRAFICO. ESCREVER UMA VIDA com ele estamos sempre no sinuoso, porque nenhuma de suas escolhas € bvia™". O empenho tresloucado do bidgrafo em resgatar © tormento do biografado nao deve ter sido uma aventura sem riscos. Deve ter sido perigosa ¢ sobretudo, como ele proprio confessa, “o livro mais passional que ja escrevi"?!*, A outra biografia de adesio e empenho sem reservas € a de Pierre Mendés Fran- ce: “Se eu tivesse de escrever apenas duas biografias na vida, seriam as de Mauriac e Mendes”, Ante tamanha admiragiio pelo homem e sua politica, Lacouture nega, Perante os que o acusam de néio ter sido suficientemente eritico, ter feito uma hagio- grafia. Reconhece, entretanto, a evidéncia de uma biografia muito subjetiva, cujo parti pris é explicitamente assumido, Encontra em Mendes a mesma ambivaléncia humana, desta feita no plano politico. Mendés € um desarvorado radical entre os socialistas ou um socialista entre os radicais? Eo representante da nova cultura especializada a servigo dos interesses republicanos ou 0 contestador de 68 da reunido de Charléty? Homem do poder, s6 0 exerceu por sete meses. Pelo restante da carreira, permanecerd © politico dos paradoxos. ‘A essas biografias do desejo juntam-se as que Lacouture qualifica de biografias de encomenda. Esse terceiro tipo de escrita faz surgir 0 monumento que € a biografia do general De Gaulle, uma trilogia de 2.400 paginas publicada entre 1983 € 1986". Lacouture eserevera ja um curto ensaio biogrifico sobre De Gaulle em 1965, que Ihe valera uma piada do general: “Receio”, disse ele a Mauriac, “que o teu M. Lacouture nao haja captado a verdadeira dimensio da personagem”™. Seu editor, Paul Flamand, voltou a pressionar Lacouture dez anos apés a morte de De Gaulle, em 1980, ponde- rando-Ihe que ele nao podia dar-se 0 luxo de fugir a essa tarefa. Tocou-the no ponto fraco: nosso bidgrafo nacional langou-se de corpo e alma & aventura. Mas 0 esforco, exigido foi tal que Lacouture mergulhou numa depressiio profunda. Subiu alto demais € perdeu o folego. Confidenciou a uma amiga: “De Gaulle me gerou!” E uma de suas sobrinhas, psicéloga e sutil'analista, Annie-Marie Duchesne, saiu-se com esta frase his- t6rica: “De Gaulle é a mie dele, sem dtivida nenhuma! Foi ela quem, por primeiro, com um orgulho e um impeto exemplares, revelou-se em. 1940, no momento da chamada do. 18 de junho, uma militante gaullista inquebrantavel”". Com essa biografia, Lacouture 315. Idem, p. 124 316. ddem. p. 129. 317, Joan Lacoutute, Pierre Mendes France, Le Seuil, 1981 318, Jean Lacouture, Profession biographe, op. cit. p. 82 319. Jean Lacouture, De Gaulle 1. Le rebelle (1890-1944); 2. Le politique (1944-1959); 3. Le souverain (1959-1970), Le Seuil, 1984, 1985, 1986. 320. De Gaulle, citado por Jean Lacouture, De Gaulle 2. Le politique, Le Seuil, 1985, p. 7. 321. Sylvie Crossman, Jean Lacourure. La biographie du biographe, op. elt, p. 288. 120

You might also like