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Resumo Abstract
Este artigo apresenta experimentos reali- This paper presents some experiments from
zados em pesquisa sobre a produção de co- a dance research about knowledge production
nhecimentos em dança através de práticas through performative practices led by LMA/
performativas conduzidas por ferramentas de BF tools for improvisation. Experiments do not
análise de movimento de LMA/BF através de represent the whole in research, but illustrate
improvisações mais ou menos estruturadas. how new graduate students acknowledge pro-
Os experimentos aqui apresentados não re- cedures of practice - theory. They are led into
presentam o todo da pesquisa, mas ilustram an alternating procedure of dance practice,
como calouros de cursos superiores de dança observation and register. The mediation of im-
entraram em contato com procedimentos que provisation flow and tools turn into strategies
articulam prática e teoria através de proposi- of relationship and become methodological
ções dançantes e alternâncias entre prática, treatment for each experiment. By these ex-
observação e registro. A mediação dos fluxos periments it is possible to say that dance ba-
das improvisações e as ferramentas oferecidas sics are extended. It is also presented the re-
aos experimentos, ainda que não explicitamen- flexivity of the observation and dance reading
te nomeadas como um sistema de análise de by looking at the chosen elements in individual
movimento tornam-se estratégias de relação graphic register. It shows how each participant
e cercam metodologicamente o tratamento is affected by others’ dances.
dado aos experimentos. Conclui-se questões
sobre a ampliação de noções de dança, bem
como sobre a reflexividade das impressões da
observação e leitura de movimento na escolha
do que e como são registrados graficamente
os movimentos pelos quais cada participante
é afetado ao longo de uma improvisação.
Palavras-chave Keywords
Leitura de Dança. LMA/BF. Registros gráficos. Dance Reading. LMA/BF. Graphic Registers.
Experimentos pedagógicos. Improvisação. Pedagogic Experiments. Improvisation.
1 Sistema de Análise Laban/Bartenieff em Movimento desenvolvido principalmente por Rudolf Laban e Irmgard Bartenieff ao
longo do século XX.
cena n. 22
sões como “isso eu não conheço, não enten- ça inicialmente realizados pelos docentes e
do, não me diz nada, logo, isso não me interes- seguida da participação dos alunos não vem
sa”, mesmo quando a dança em questão seja provida de um conhecimento dominado, mas
a mais tradicional demonstração de determi- interage diretamente com as diretrizes apre-
nado gênero claramente identificado. sentadas no início da proposta (LMA/BF) vin-
Esforços são feitos para distinguir, classi- culadas à experiência pessoal de cada um e
ficar, ordenar, possibilitar um encontro mais suas afeições sobre tais práticas performativas
harmonioso entre aquele que se sente estran- dançantes.
geiro ao contexto da dança e aqueles que pro-
duzem, estudam e trabalham com dança em
diferentes instâncias. Apresento aqui, breve- A análise de movimento de
mente, um velho e constantemente atualizado Rudolf Laban e Irmgard Bartenieff -
sistema de leitura do movimento que serviu LMA/BF
de base para escolha de procedimentos para
condução de experimentos pedagógicos em O multiartista Rudolf Laban (1879-1958) nos
dois cursos superiores de dança no estado do presenteou com um sistema de análise de mo-
Rio Grande do Sul (RS), bem como para aná- vimento no início do século XX cuja dimensão
lise dos dados produzidos ao longo da pes- talvez seja incomensurável. Ao mesmo tempo
quisa de doutoramento. A pesquisa teve base em que ele sistematizou elementos para a ob-
em experimentos com práticas performativas servação objetivada de subjetividades do mo-
problematizando diferentes questões relativas vimento, ele manteve aberta a relação desta
à situação de ensino e aprendizagem em dan- observação com as diferentes possibilidades
ça, considerando o estado da arte da dança de leitura destes elementos, de acordo com as
no RS. Este artigo traz um recorte composto tantas variáveis. Podemos citar aspectos cul-
por três experimentos cujo procedimento foi turais, etários, étnicos e convenções grupais
repetido com pequenas variações, feitos nos como elementos que orientem a leitura de um
primeiros dias de aula de cada ano letivo para gesto leve, por exemplo. Isso porque eu pos-
a recepção dos calouros junto a veteranos dos so inicialmente entender como leve tanto uma
cursos, proporcionando uma apresentação pena ou pétala de flor que cai ao vento, quan-
dançante do corpo docente. Foram realizados to o planar de um pássaro no ar, parafrasean-
por três anos consecutivos em duas institui- do temas do artigo de Isabel Marques (2002),
ções de ensino do RS onde foram produzidas inspirado em Italo Calvino, “Do peso de viver
imagens em vídeo e fotografia e solicitados à leveza de criar: função social do ensino de
relatos dos participantes, tanto no formato de dança hoje”. Além de termos imagens diferen-
registro gráfico em tempo real da prática per- tes para um mesmo tema, precisamos analisar
formativa, como em forma de texto entregue elementos de cada imagem para argumentar
uma semana após a experiência, ambos sem sobre a leveza. O texto nos convida a pensar
exigência de identificação pessoal. O texto sobre: o que diferencia a leveza pena da leveza
apresenta alguns destes registros e relatos. A pássaro? Em que contexto melhor se apropria
leitura feita pelos calouros dos gestos de dan- cada imagem? Soma-se a isso, a visão que
eu - que analiso - tenho sobre leveza, peso e Esse insight inicial, a relação corpo-espaço
a força que aplico em meu movimento, como e sua perspectiva sempre relacional que pode
categoria experiencial de uma noção dos ele- ser representada visualmente como esboço de
mentos de análise. desenho de arquiteto de uma relação estrutu-
A complexidade do sistema Laban/Barte- ral em movimento (Miranda, 2008) envolve não
nieff não está tanto naquilo que este propõe apenas a bidimensionalidade do desenho/es-
como parâmetros para a análise, mas sobre- boço mencionado, e sua relação espacial ob-
tudo na possibilidade de articulação com dife- jetiva, mas
rentes elementos que podemos desdobrar do
próprio sistema. O olhar Labaniano é dado a o corpo como […] o primeiro meio de
comunicação do homem em seu pro-
abrir perguntas e agregar possibilidades para cesso e contexto evolutivo, e [Laban]
que escolhas sejam feitas e claramente colo- propôs que, como tal, este corpo pos-
sui uma linguagem que pode ser arti-
cadas como parâmetro. Nada melhor do que culada de diversas maneiras e assim
irmos por partes, mesmo sabendo que soma- produzir diversos significados, sempre
reunidos sob a hegemonia do movi-
das elas não alcançam a dimensão do todo! mento (Miranda, 2008, p. 17).
A vida do Laban é recheada de complexida-
des. Circulação e atualização parecem ter sido A Análise em Movimento desenvolvida por
parte do que o constituiu: filho de militar, in- Laban ao longo de sua vida com a colabora-
gressa no treinamento para oficial do exército ção de diferentes personalidades de campos
Áustro-húngaro na academia militar em Wiener de conhecimento também diversificados pro-
Neustadt, próximo de Viena (Bradley, 2009), o porcionou uma abertura à leitura do gesto no
que inclui coreografar a banda do exército en- campo da dança que foge ao que outros sis-
tre 1899 e 1900, como tarefa militar e circula temas de leitura e registro faziam ao atrelar
o leste europeu aprendendo diferentes danças elementos de leitura e notação aos códigos
e músicas. De conflitos e encantamentos com do gênero de dança em estudo. Considerada
as polarizações como individual e coletivo, uma das mais bem sucedidas propostas de
normativo e singular, liberdade e sub-missão, notação de movimento naquele momento da
Laban transita de um casamento, um ofício e história, a Labanotação e a motif writing1, par-
uma promissora carreira sólida para a liberda- te do legado de Laban e seus colaboradores,
de da arte em plena virada do século XIX para são também uma “alfabetização” do próprio
o século XX em meio à modernidade. Em Pa- sistema de análise que pode ser feita através
ris, estuda Belas Artes, entra em contato com da leitura dos símbolos que compõem uma re-
noções de arquitetura e inicia a jornada que re- presentação dos conceitos de espaço e corpo
laciona o corpo e o espaço tendo o movimento com suas dinâmicas temporais, expressivas e
como balizador de uma grande diferença en- faseamentos. O desafio deste projeto de nota-
tre a fixidez da arquitetura predial (ainda que
exalte a mobilidade das partículas em objetos 1 A Labanotação é uma notação estruturada para o movimen-
to como é uma partitura musical. A motif writing, ou notação
sólidos) e a mobilidade espacial da arquitetura por motivos agrega símbolos que envolvem também a repre-
sentação das qualidades de esforço (ou ímpeto) e forma, ca-
produzida por corpos em movimentos dançan- racterísticas expressivas menos presentes na notação estru-
tes. turada, além de outras formas de representação da partitura
de movimento.
por uma arena no círculo de participantes, com pela aproximação entre agentes dançantes e
elementos como figurinos, objetos, acessórios observadores, estabelecendo um fluxo nas re-
dispostos pela sala dentro e fora do círculo. lações de poder e nos jogos de verdade. To-
Esses elementos eram também estímulos para mamos como referência as idéias de Michel
a interação discente: eles poderiam sugerir Foucault, que nos ajudam ainda a olhar para
que cada um de nós, docentes, utilizasse um as práticas pedagógicas em dança e para a
elemento específico. Eles também poderiam proposta da produção de si a partir do que ele
sugerir composições de solos, duos, trios es- chama de tecnologias de si. As relações de
colhendo os participantes, oportunidade apro- poder, saber e verdade em Foucault dão aporte
veitada por veteranos que desejavam ver em para uma reflexão sobre a tradição disciplinar
ação professoras que eles não imaginavam da dança, sobretudo a partir de seus procedi-
dançando juntas! Havia, ainda, uma caixa - a mentos tradicionais que são problematizados
caixa de Alice - com alguns papéis contendo na tese com a proposição de uma mediação
indicações de movimento em linguagem LMA das singularidades através da alternância pre-
/BF que eles poderiam ou não utilizar. A in- ferencialmente conduzida pelo observador/
teratividade tinha um objetivo muito claro na aluno, em vez de proporcionar uma exposição
proposição: interferir na condição hierárquica concorrente entre as diferentes manifestações
conferida às relações de professor-aluno, pro- de dança a que nos dedicamos a produzir. Por
duzir oportunidade para o discente elaborar, de mediação entende-se que mediar não é con-
forma criativa, uma proposição com elementos trolar, mas criar estratégias de relação.
dados e evocar situações poéticas que eles te- Cada professor tratou de revisar suas no-
riam que descrever sempre que a dança os sur- ções de improvisação, de forma que o mo-
preendesse com algum sentido emergente do mento solo da apresentação inicial pudesse
movimento e suas relações. Além de interagir contemplar materiais que lhes fosse realmen-
e propor tarefas para a improvisação de seus te característicos. Pedi às professoras menos
professores, eles tinham a tarefa de observar habituadas com a exposição de uma improvi-
as qualidades expressivas dos movimentos, sação como fim artístico que preparassem ele-
variações expressivas na velocidade, na inten- mentos coreográficos que lhes fizessem ficar
sidade dos gestos, nas disposições espaciais mais confortáveis. O material de movimento
e nos encontros e desencontros dos docentes inicial era livre para que ninguém se sentisse
dançantes. Esse registro gráfico poderia ser desconfortável dentro do seu campo de co-
feito de diferentes formas: por escrito, dese- nhecimento.
nho figurado, desenho abstrato, escrita poéti-
Podemos começar dizendo que foi
ca, palavras soltas, etc.
uma experiência incrível pelo fato das
É sobre esse aspecto, em especial, que professoras conseguirem nos mostrar
pretendo articular a proposta com a leitura da um “leque”de opções de como se ex-
pressar e sendo na disciplina de im-
prática performativa por um grupo de pesso- provisação e expressão ficou perfeito.
as misto - conhecedores ou não do corte me- É possível notar que precisamos de
algo para nos inspirar, que a improvi-
todológico de LMA/BF. Para isso, foi preciso sação não brota do nada, mas sim, de
ativar relações de alteridade proporcionadas sentimentos, de acessórios, do que
quisermos que esteja ao nosso redor senhos selecionados por docentes, seleção
[sic]. (Relato…, 2012f, s/p)
também mediada pela proponente.
Na última edição destes experimentos, rea-
Enquanto algumas docentes mergulhavam
lizada em instituição diferente das anteriores,
na incerteza da improvisação, a apresentação
ocorreu uma intensificação das propostas dos
de uma sequência codificada durante a pro-
alunos aos professores, não sobrepostas, mas
posta causou ao mesmo tempo admiração e
ininterruptas. Talvez isso tenha ocorrido devido
recuo dos alunos que iniciavam suas intera-
ao fato de que os alunos veteranos estivessem
ções, pois não sabiam o que sugerir quando
mais acostumados com atividades interativas,
um fragmento de dança estava em andamen-
já lidando com elas em alguns exercícios de
to, segundo relatos ao final da sessão. Isso,
composição, incluindo o vocabulário específi-
em verdade, só enriqueceu o jogo das relações
co da análise de movimento Laban/Bartenieff
de poder não só entre professor e aluno, mas
e devido à possibilidade da alternância das re-
entre artistas afetados por diferentes proposi-
lações de poder com tarefas já demandadas a
ções de dança.
eles, que agora eles devolviam a alguns pro-
Quando os alunos propuseram a combina-
fessores.
ção de duos, percebi, num certo momento, a
Este artigo não se ocupa de contextualizar
avidez pelo encontro dos diferentes, tão men-
as instituições onde a experiência foi realizada,
cionado em relatos de forma positiva. Dar-lhes
mas deixo o registro de que a característica de
a oportunidade de ver seus professores tendo
cada curso, o que inclui seu projeto pedagó-
que “[…] procurar soluções inusitadas para as
gico e matriz curricular é também fator a ser
situações criadas pelo jogo” (Houaiss, 2001, p.
considerado como condição para a emergên-
1586), segundo uma das definições para im-
cia das situações que se constituíram em cada
provisação deste dicionário, também conduziu
experimento. Não realizar a descrição de cada
o encorajamento necessário para a interação
instituição não implica em não considerar o
dançante com os alunos, planejada para o final
meio ambiente em que os experimentos foram
da atividade.
realizados, pois isso tornaria incoerente com o
Nas três experiências, a interação ocorreu
que o sistema Laban/Bartenieff de análise em
de forma gradual e organizada, sem muitas
movimento proporciona como ferramentas,
sobreposições entre as sugestões. As etapas
metodologia e classificação experiencial.
eram muito parecidas em cada edição: apre-
sentação dos professores com elementos a
serem sugeridos ou operados pelo comando
Escritas de si na observação do outro
dos discentes (escolha de música, objetos,
figurinos, seleção de participantes da impro- As professoras começaram com a
visação, tarefas da caixinha de Alice), registro improvisação e conforme a dança ia
seguindo e elas iam elaborando movi-
gráfico de elementos relevantes para a leitura mentos diferentes, íamos desenhando
gestual do docente pelo discente, interação nossas sensações e emoções. [...] Po-
díamos inclusive interagir no meio da
entre docentes e discentes e finalmente uma dança e ia ficando cada vez mais in-
composição feita em grupos motivada por de- teressante [sic] (Relato..., 2012c, s.p.).
O procedimento feito nessa prática perfor- Laban – que valorizava a vida a partir da ex-
mativa configura uma forma de sintonizar, de periência dos corpos com seu meio e minimi-
afinar a ideia de observação com a ideia de zava a soberania das palavras, julgando-as in-
registro. É só a partir da construção dessa afi- capazes de traduzir o que o movimento produz
nidade que se começa a trabalhar com os sím- e articula – buscou configurar uma articulação
bolos e formatos das notações de movimento de linguagem intertextual, um volume8 capaz
do sistema Laban/Bartenieff. Essa etapa é fun- de aproximar-nos do que Gumbrecht chama
damental para o aprendizado do registro, seja de cultura da presença. Regina Miranda apre-
ele codificado ou não em LMA/BF. Como não senta suas impressões do uso – em volume –
estamos falando de notação propriamente, do que ela chamou de palavra Laban:
após as primeiras improvisações das docentes
dançantes temos em mãos o material que não A palavra em Laban assume o mesmo
lugar indicativo do signo. Mas que pa-
é a representação pictográfica codificada, mas lavra? A palavra funcional ou poética?
a metáfora misturada com a ilustração, com a A palavra ou o gesto? No espirito que
anima a filosofia labaniana, prefiro não
descrição e com a abstração das impressões ficar no lugar de escolher apenas uma
dos observadores discentes. Temos pistas do conotação ou de afastar a palavra do
gesto de dizê-la ou escrevê-la. Da ma-
que pode ter sido observado por cada parti- neira como percebo, nenhuma palavra
cipante, temos uma criação gráfica que pode é literal, ao se escrever ela se abre aos
olhos do leitor, se esgarça excitando
satisfazer a representação do que cada leitor/ as sensações de quem a lê, para que,
observador criou enquanto estava sendo afe- sobre ela, o novo autor escreva ou-
tros discursos ou a desdobre em no-
tado pelo que via. Temos também um objeto vas versões. Assim percebo a palavra
visual, uma materialidade para compartilhar o Laban como integradora da palavra
dita descritiva com a palavra poética,
modo como aquelas danças os afetaram.
abraçando ambas, sem preconceito
A impossibilidade da palavra, ou mesmo do ou hierarquia, e mais ainda, como pa-
desenho, de dar conta da descrição do movi- lavra-porta, palavra deflagradora, que
se abre como uma fala funcional-poé-
mento faz com que encontremos alguns mo- tica-corporal para a criação de cons-
dos de representá-lo que atravessam as lin- truções a partir dela. (Miranda, 2008,
p. 79-80).
guagens verbal e gráfica. Eles as colocam em
conversa poética, de modo a evocar algo da
Ouso, ainda, dizer que Laban presentificou a
efemeridade do movimento guardada no ges-
aproximação entre movimento e linguagem em
to, na figura, na palavra escrita. O exercício da
sua forma moderna de notação. Por isso, trago
descrição, tão caro às práticas de ensino de
aqui rápidas articulações entre a experiência
LMA/BF é um modo de conferir sentido aos
final da aula-performance, baseada em proce-
“[...] estados do corpo ainda não projetados
dimentos iniciais de LMA/BF, e a materialida-
na esfera da interpretação linguística [...]” (Go-
dard, 2001, p. 32), e é uma ferramenta potente
para a Prática-Pesquisa7. 8 “Diferente do clássico paradigma hermenêutico da ‘expres-
são’ (com sua implicação padrão de que tudo que será ex-
pressado deve ser puramente espiritual), o entendimento da
7 Termo oriundo dos estudos sobre pesquisas guiadas pela linguagem como ‘a casa do ser’ (ou como a casa da presença)
prática apresentados no Manifesto por uma Pesquisa Perfor- nos faz imaginar aquele que habita a casa como possuidor de
mativa do Professor Dr. Brad Haseman em Helsinki, 2011, su- ‘volume’ e que compartilha, assim, o estatuto ontológico das
gerido pela professora Dra. Ciane Fernandes (UFBA). coisas.” (Gumbrecht, 2009, p. 20).
de da comunicação abordada por Gumbrecht, das estruturas de sentido que estas carregam.
apresentada no texto O Campo Não-herme- Desse modo, a atividade de registro serve
nêutico ou a Materialidade da Comunicação, para que possamos tematizar o que foi visto.
de seu livro Corpo e Forma (1998) Um sistema estruturado de notação cumpre
Para falar sobre o campo não hermenêutico essa função, e cada sistema de notação cum-
em que o autor se inscreve, Gumbrecht apre- pre a sua. No caso dessa experiência, ainda
senta algumas premissas do campo hermenêu- sugiro um olhar espelhado para tais registros,
tico que revelam o paradigma hermenêutico de modo que, ao registrar as condições de
do par expressão/interpretação. “Interpretação emergência das estruturas de sentido, eles
cuja necessidade nascia da insuficiência in- possam espelhar as escolhas de registro – de-
trínseca a toda expressão.” (Gumbrecht, 1998, senho, palavra, palavra solta ou texto, palavra
p. 140). O autor, para problematizar a questão solta e desenho, organização espacial do uso
da interpretação no campo não hermenêutico, do papel – para, com isso, obter informações
parte de um princípio dedutivo em que a cen- reflexas sobre o olhar que quem desenhou tem
tralidade da interpretação “[...] estava fundada sobre o que foi observado. Tais informações,
nas premissas de temporalidade, totalidade e por sua vez, não são determinantes das ca-
referencialidade e, se hoje estes conceitos en- racterísticas dessa pessoa. Essa análise não
traram em crise, então pode-se supor que a está circunscrita aos modos de interpretação
crise atinge de fato a centralidade da interpre- hermenêuticos, mas essas pistas conduzem a
tação.” (Gumbrecht, 1998, p. 143). estruturas de sentido que podem ser lidas. Ela
A dança como linguagem artística não lida serve como um caderno de notas a ser exa-
com organizações de sentido de maneira or- minado, que traz tanto informações sobre o
todoxa, linear, narrativa, descritiva, de fácil que foi observado quanto informações sobre
interpretação. Contudo, faz uma formulação o observador. Cabe, ainda, incluir como obser-
capaz de veicular sentidos múltiplos de for- vação a esses procedimentos o fato de que o
ma organizada. Forma, expressão e conteúdo observador, de modo geral, é também atuan-
são elementos intrínsecos ao fazer da dança, te, participante não só da prática performativa,
de complexas definições e difíceis aprecia- mas do contexto da dança. Portanto, o ma-
ções. Analistas de LMA/BF costumam dizer terial produzido como dado de uma pesquisa
que forma é conteúdo (Goldman, 2006; Kaylo, em processo é fruto da interpretação vivida de
2006b). A configuração das formas em dança e cada integrante, refletida e posta em jogo com
o conteúdo expressivo que nelas se configura outros dados do acontecimento presencial da
é material importante para produção de conhe- improvisação, configurando uma materialida-
cimento em dança. Muitos desenhos espaciais de da comunicação.
produzidos pelos corpos em movimento indi- Através do conjunto de procedimentos ve-
cam formas e ritmos corporais e espaciais. A rificamos que os registros ocorrem por meio
relação entre as formas e os ritmos do dese- de escolhas. As escolhas daquilo que cada um
nho e do movimento observado pelos alunos grafou em seu registro produz sentido para seu
durante a atividade proposta, por exemplo, pa- autor e o refinamento das ferramentas de re-
rece apresentar as condições de emergência gistro se faz pela clareza dos elementos a se-
Além disso, evidenciam que a dança pode Figura 2: desenho em palavras. Registro da atividade de
recepção aos calouros do curso de Licenciatura em Dança
acontecer com elementos disparadores sem da UERGS.
uma técnica prioritária ou um rigor de perfei-
ção, mas que expressão e diversidade fazem
parte desse contexto de ensino que precisa
ser valorizado como dança.
É preciso, entretanto, considerar que gran-
de parte dos relatos são pronunciados por ca-
louros, cujo contato com sistemas de análise
de movimento ou com a ideia de produção de
sentido em dança é muito mais intuitivo do que Fonte: Sastre (2014)
categorizado. Nesse sentido, a pesquisa pro-
porciona um olhar sobre os desdobramentos
mais do que encerra uma classificação dentro Reconhecendo o eu coletivo
do sistema LMA/BF, fazendo isso com a ajuda
deste sistema e da articulação conceitual com Com base na sensorialidade da leitura de
objetivos pertinentes ao todo da pesquisa. registros como estes, lancei a proposta de
As figuras que seguem ilustram articulação composição em grupos a partir de alguns dos
entre descrição e interpretação entre desenho, registros coletados e selecionados durante o
palavra, imagem poética. momento extático da festa, palavra utilizada
em relatos para designar o momento da impro-
visação em que todos os participantes dança-
Figura 1: desenho de BP. Registro da atividade de recepção
aos calouros do curso de Licenciatura em Dança da UERGS.
vam juntos. Seleção de material de movimen-
Fonte: autora, 2014. to e organização ficariam, agora, ao encargo
dos participantes novamente empoderados
para colocarem em prática suas liberdades de
criação como atividade formativa. Ainda que
os alunos não tivessem condições de verba-
lizar o que identificavam, era possível verificar
que havia leituras e equivalências claras entre
o motivo coreográfico (registro) e a pequena
sequência criada e apresentada aos demais,
ambos oriundos do material de movimento
Fonte: Sastre (2014) produzido momentos antes naquele espaço e
de suas composições. Isso aconteceu da mes-
ma forma nos três anos em que essa estrutura
foi experimentada.
Algumas composições foram extremamen-
te fidedignas ao motivo coreográfico e em al-
guns casos, os participantes puderam mostrar
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