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AS L8359_JurisTendencia_Volume III.

indb 1 11/10/2013 13:55:14


Diretora Responsável
Giselle Tapai

Diretora de Operações de Conteúdo


Juliana Mayumi Ono

Editores: Danielle Candido de Oliveira, Elisabeth Bianchi, Flávio Viana Filho, Henderson Fiirst e Iviê Adolfo de Macedo Loureiro Gomes

Editorial
Coordenação
Juliana De Cicco Bianco

Analistas Documentais: Bruno Martins Costa, Cristiane Gonzalez Basile de Faria e Rodrigo Domiciano de Oliveira

Técnicos de Processos Editoriais: Maria Angélica Leite e Paulo Alexandre Teixeira


Assistentes Documentais: Roberta Alves Soares e Samanta Fernandes Silva

Capa: Chrisley Figueiredo

Coordenação Administrativa
Renata Costa Palma e Rosangela Maria dos Santos

Assistente: Karla Capelas

Equipe de Jurisprudência
Coordenação
Luiz Carlos de Souza Auricchio

Pesquisa para JurisTendência


Líder de Projeto: Diego Garcia Mendonça
Pesquisa: Caroline Neves da Silva
Analistas Documentais: Fernando Cavazani Damico, Juliana Cornacini Ferreira, Patrícia Melhado Navarra,
Juliana Teles Pontes e Thiago Rodrigo Rangel Vicentini
Assistente Editorial: Maurício Zednik Cassim

Editoração Eletrônica
Coordenação
Roseli Campos de Carvalho

Equipe de Editoração: Adriana Martins, Carolina do Prado Fatel, Gabriel Bratti Costa, Ladislau Francisco de Lima Neto,
Luciana Pereira dos Santos, Luiz Fernando Romeu e Vera Lúcia Cirino

Produção Gráfica
Coordenação
Caio Henrique Andrade
Auxiliar: Rafael da Costa Brito

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Precedentes jurisprudenciais : direito contratual / [diretor] Luiz


Guilherme Marinoni . – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais,
2014. – (Coleção juristendência ; v. 3)
ISBN Coleção 978-85-203-4982-3 (obra completa)
ISBN 978-85-203-4979-3
1. Contratos (Direito civil) 2. Precedentes (Direito) 3. Processo civil
I. Marinoni, Luiz Guilherme. II. Série.
13-10883CDU-347.9

Índices para catálogo sistemático: 1. Precedentes jurisprudenciais :


Direito processual civil 347.9

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Precedentes Jurisprudenciais
Luiz Guilherme Marinoni
Diretor
• Temas de direito contratual

© desta edição [2014]


Editora Revista dos Tribunais Ltda.
Giselle Tapai
Diretora responsável

Rua do Bosque, 820 – Barra Funda


Tel. 11 3613-8400 – Fax 11 3613-8450
CEP 01136-000 – São Paulo, SP, Brasil
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nográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem
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ção. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos, do Código
Penal), com pena de prisão e multa, conjuntamente com busca e apreensão e indenizações
diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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Impresso no Brasil [10.2013]
Profissional
Fechamento desta edição: [10.10.2013]

ISBN 978-85-203-4979-3
ISBN Coleção 978-85-203-4982-3

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APRESENTAÇÃO DA EDITORA

As recentes reformas no sistema judiciário e nas normas que regem o pro-


cesso civil, algumas já implementadas e outras ainda em andamento, marcam
uma clara vocação para a uniformização da jurisprudência e para a valorização do
precedente judicial.
Atenta a essa realidade, a Editora Revista dos Tribunais traz a público sua nova
Coleção: JurisTendência.
Com inspiração no produto JurisTendência disponibilizado on-line, a Cole-
ção traz uma seleção dos principais precedentes jurisprudenciais, organizados por
matéria, a evolução histórica do tema respectivo e a análise doutrinária da lavra de
um especialista.
Muito além de mera compilação da jurisprudência, cada tema abrange:

História Direta: Informações sobre decisões em ins-


tâncias inferiores no processo do
Precedente Jurisprudencial
Precedente Jurisprudencial: Texto completo do julgado repre-
sentativo da atual tendência da cor-
rente jurisprudencial
Análise Doutrinária: Análise da evolução da tendência
jurisprudencial por um autor espe-
cialista
JurisTendência: Os precedentes mais relevantes que
embasaram e que exemplificam,
cronologicamente, a evolução juris-
prudencial
Súmulas Judiciais: Texto das Súmulas Judiciais existen-
tes a respeito do tema
Controle de Constitucionalidade: Seleção das decisões que tratam da
constitucionalidade do tema

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6    Precedentes Jurisprudenciais

Repercussão Geral (STF): Análise da declaração de existência


de Repercussão Geral do tema apre-
ciada pelo Supremo Tribunal Fede-
ral – STF, quando existente
Recursos Repetitivos (STJ): Análise da existência de Recursos
Repetitivos sobre o tema julgada
pelo Superior Tribunal de Justiça –
STJ, quando existentes

Em conjunto com o produto on-line, que ainda disponibiliza todos os julga-


dos na íntegra, a Coleção JurisTendência será ferramenta essencial para o advogado
e para o estudioso da matéria, ao fornecer um panorama completo da evolução
jurisprudencial sobre os temas mais controvertidos do Direito brasileiro.

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NOTA DO DIRETOR

A contraposição entre common law e civil law cedeu lugar à ideia de que estes
sistemas constituem dois aspectos de uma mesma e grande tradição jurídica oci-
dental. Mas o civil law e o common law, tendo surgido em circunstâncias políticas e
culturais diferentes, fizeram surgir tradições jurídicas particulares, caracterizadas por
institutos e conceitos próprios.
A tradição do civil law baseia-se em dogmas, próprios à Revolução Francesa,
que negam postulados que paulatinamente foram sendo fixados durante a transfor-
mação da realidade social e do conteúdo dos Estados que se formaram a partir da
doutrina da separação estrita entre os poderes e da mera declaração judicial da lei.
Contudo, apesar das mudanças que se operaram no âmbito do civil law – inclusive
nas concepções de direito e de jurisdição, marcadamente em virtude do impacto do
constitucionalismo –, há ainda grande resistência – para não se dizer indiferença –
a institutos do common law de fundamental importância ao aperfeiçoamento dos
sistemas judiciais de civil law.
Lembre-se que, embora a autoridade dos precedentes tenha sido fundamental
para o desenvolvimento do common law, o stare decisis – isto é, a eficácia vinculante
dos precedentes – tem sustentação na igualdade e na segurança jurídica. Ainda que
seja costume pensar o stare decisis como aspecto indissociável do common law, a verda-
de é que o primeiro surgiu no curso do desenvolvimento do segundo para, sobretudo,
propiciar a igualdade de todos perante o direito produzido pelas Cortes. Também
é equivocado imaginar que o stare decisis – ou a eficácia vinculante dos preceden-
tes – existe ou tem razão de ser apenas onde o juiz “cria” o direito. Em tempos
recentes,como adverte MacCormick – especialmente em Rethoric and the rule of
law –, mesmo nos países do common law, “direito jurisprudencial puro é relativa-
mente raro. Muito do direito jurisprudencial agora toma a forma de interpretações
explicativas (glosses) da lei”.1 Aliás, considerando-se a hoje fantasiosa suposição de
que o stare decisis existe em decorrência da inação do Legislativo, convém constatar
que, por exemplo, não há déficit de legislação nos Estados Unidos. Ao contrário,

1. MacCormick, Neil. Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford
University Press, 2005. p. 247.

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8    Precedentes Jurisprudenciais

vários Estados americanos têm mais normas legais que muitos países de civil law.2
De modo que é descabida a alegação de que o precedente tem força vinculante por
falta de atuação do legislador.
De outra parte, a tradição do civil law, ancorada nas razões da Revolução Fran-
cesa, foi completamente descaracterizada com o passar do tempo. O juiz, inicial-
mente proibido de interpretar a lei, passou a paulatinamente interpretá-la, logo
caindo em desuso as comissões legislativas, instituídas para resolver as dúvidas de
interpretação, e, logo após, a primeira feição da Cassação, delineada como órgão de
natureza não jurisdicional para cassar as interpretações judiciais incorretas.
A evolução do civil law é a história da superação de uma ideia instituída para
viabilizar a realização de um desejo revolucionário, e que, portanto, nasceu com a
marca da utopia. Como ideologia, esta noção manteve-se viva ainda que a evolução
do civil law a descaracterizasse. A força do constitucionalismo e a atuação judicial
mediante a concretização das regras abertas fez surgir um modelo de juiz comple-
tamente distinto do desejado pela tradição do civil law. A evolução da teoria da in-
terpretação permitiu ver que de um texto legal é possível legitimamente extrair mais
de um significado, o que conduziu à dissociação entre texto legal e norma jurídica.3
As tradicionais Cortes Superiores de civil law - ligadas ao controle da legalidade –
sucumbem quando se admite que a interpretação jamais terá capacidade de revelar
o “sentido exato da lei”, mas apenas de atribuir-lhe significado legitimado por uma
“justificativa apropriada”. É nesse instante que os Tribunais Superiores corporificam
a essência de Corte de Interpretação, a quem cabe atribuir sentido ao Direito me-
diante “razões idôneas”, desenvolvendo-o de acordo com a evolução da sociedade.

2. Merrymann John Henry; Pérez-Perdomo, Rogelio. The civil law tradition: an introduction
to the legal systems of Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 2007, p.
65 e ss.
3. Ao contrário do que sustenta o formalismo teórico, as palavras da lei não têm um sentido próprio;
inexiste significado intrínseco ao texto legal. Assim, não cabe simplesmente averiguar a lei para
descrever a norma. A norma não está no texto legal; não há uma relação de sinonímia entre o
texto legal e o resultado obtido com a atividade interpretativa. O sentido, e não o texto, constitui
a norma, compreendida essa como o significado que é tomado em conta pelo juiz ao decidir. De
acordo com Guastini, “l’operazione intellettuale che conduce dall’enunciato al significato – o,
se si preferisce, l’operazione di identifcazione del significato – altro non è che l’interpretazione.
La disposizione è dunque l ‘oggetto dell’interpretazione, la norma è il suo risultato. O, detto
altrimenti, ‘la disposizione è fonte della norma attraverso l ‘interpretazione”. (Guastini,
Riccardo. Interpretare e argomentare, Milano: Giuffrè, 2011, p. 63 e 64). V. Tarello, Giovanni.
L‘interpretazione della legge. Milano: Giuffrè, 1980, p. 61, 63 e 64; Guastini, Riccardo. Se i
giudici creino diritto. Istituzioni e dinamiche del diritto. Milano: Giuffrè, 2009, p. 395; Jori,
Mario e Pintore, Anna. Manuale di teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1995. p. 205
e ss; Dicioti, Enrico. Interpretazione della legge e discorso razionale. Torino: Giappichelli, 1999,
p. 200 e ss; Sacco, Rodolfo. Interpretazione del diritto. Dato oggettivo e spirito dell’interprete.
Diritto, giustizia e interpretazione. Roma/Bari: Laterza, 1998. p. 111 e ss.

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NOTA DO DIRETOR  |  9

A interpretação capaz de atribuir sentido ao Direito não é uma operação


meramente lógica. As diretivas interpretativas não constituem regras lógicas, mas
critérios que são eleitos e preenchidos mediante valorações e opções do intérprete,
a conduzirem a um resultado-interpretação que expressa a sua vontade. A decisão
judicial, ao atribuir sentido ao Direito a partir de valorações devidamente raciona-
lizadas pela Corte, revela uma “criação” não apenas por fazer surgir algo que não
preexiste à interpretação ou que não decorre logicamente da lei, mas também por
ser expressão de uma “vontade” do Judiciário.4 Portanto, a tão discutida defini-
ção de criatividade pode supor que uma decisão interpretativa é criativa se a sua
formulação não está determinada pelo Direito, mas exige opções valorativas do
intérprete.5 Na verdade, é possível dizer, na linha de Wróblewski6 e Shapiro,7 que
a criatividade própria à interpretação judicial que se ampara na lei muda o Direito
apenas “incrementadamente” (incrementally). De qualquer forma, a decisão que
interpreta a lei agrega algo de novo à ordem jurídica legislada. Isso porque dá
conteúdo a uma ordem jurídica de maior amplitude, preenchida pela legislação e
pelas decisões judiciais das Cortes Supremas.
Esse “algo de novo” se coloca ao lado da lei, integrando uma ordem jurídica
mais ampla, exatamente porque a decisão da Corte Suprema, ao definir o sentido do
Direito, confere-lhe unidade, revelando o “Direito Judicial” que deve regular a vida

4. “Sin adoptar posturas extremas, reconecemos con Carrió, que afirmar que los jueces crean de-
recho es una expressíon ambigua; quizá sea esa ambigüedad la que possibilite el amplio con-
senso existente hoy en día al respecto. Pensamos, sin embargo, que se trata sólo de un consenso
aparente, pues el significante ‘los jueces crean derecho’ encierra múltiples significados que dan
lugar a las más diversas concepciones de la actividad judicial. Desde quienes pretenden asimilar
la actividad de los jueces a la de los legisladores hasta aquellos que hablan de creatividad judicial
en su sentido más débil como una dimensíon necesaria en la tarea de decidir. Como ni uno no
otro extremo nos ofrecen un modelo de actividad judicial que resista su comparacíon con la
realidad, creemos por el contrario que cierto grado de creacíon del derecho es inevitable y que en
instancias tales como el Tribunal Constitucional y el Tribunal Supremo la creatividad judicial se
asimilia a la función del legislador en lo que se ha venido llamando legislación negativa”. (Gil,
Ernesto J. Vidal; Pascual, Cristina García. Creacion Judicial del Derecho. Sentido y razón del dere-
cho – enfoques socio-juridicos para la sociedad democrática. Madrid: Hacer Editorial, 1992. p. 145-
146). V. Carriò, Genaro. Notas sobre derecho y lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1979.
p. 24-51; Tarello, Giovanni. Il “problema” dell’interpretazione: una formulazione ambigua,
Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1966. p. 355.
5. Wróblewski, Jerzy. Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics
and in Law. Law and Philosophy, 1988. p. 325.
6. Wróblewski, Jerzy. Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics
and in Law. Law and Philosophy, 1988. p. 325.
7. Shapiro, M., Stability and change in judicial decision-making: incrementalism or stare decisis?
In Law and the behavioral sciences. Indianápolis-Kansas-Nova Iorque: Ed. L. M. Friedman & S.
Macaulay, 1977.

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10    Precedentes Jurisprudenciais

em sociedade e guiar a solução de casos iguais ou similares.8 De modo que a eficácia


obrigatória do precedente, circunscrita à sua ratio decidendi, é mera consequência da
função da Corte de atribuir sentido e unidade ao Direito, vale dizer, de criar algo de
novo na ordem jurídica vinculante. A obrigatoriedade dos precedentes, nesse senti-
do, destina-se a garantir a igualdade de todos perante o Direito das Cortes.
Quando os Tribunais Superiores assumem a função de definir a interpretação
do texto legal, abandonando a ideia de afirmação do “sentido exato da lei”, também
perde sentido a antiga suposição de que tal afirmação – ou a declaração da norma
contida na lei – é um meio de controle da legalidade das decisões. Se o sentido do
Direito é proclamado pela Corte Suprema, a sua segunda relevante função deixa
de ser de controle da legalidade e passa a ser de garantia da unidade do Direito por
ela enunciado. Com a consequência de que a Corte de Precedentes, ao garantir a
unidade do Direito, almeja tutelar a igualdade e não mais a lei.
O valor constitucional tutelado pelo sistema de precedentes não é a unidade
do Direito objetivo, antigo mito atrás do qual se esconderam instâncias autoritárias
dos mais variados gêneros, porém a igualdade, realizada empiricamente mediante a
vinculação dos tribunais e juízes ao “Direito” delineado pela Corte Suprema, o qual
sempre está na dependência da evolução da vida social e aberto ao dinamismo de
um sistema voltado à atuação de princípios fundamentais munidos de inesgotável
carga axiológica e atento à devida percepção das diferenças.9
O problema é que, nos sistemas de civil law, é preciso desenvolver uma cultu-
ra jurídica apta a identificar o entendimento das Cortes Supremas. O “sentido do
Direito”, até mesmo nos sistemas de common law, pode não depender de um único
julgado. Não é por outra razão que Ronald Dworkin compara o delineamento da
ratio decidendi com um romance que vai sendo escrito em capítulos.10 Num sistema
de precedentes, é preciso, quase que sempre, a percepção da história de um caso ou
da evolução da cadeia das decisões relativas a uma determinada questão de direito
para que se possa compreender o significado que a Corte Suprema atribuiu a um
texto legal ou a solução que efetivamente conferiu a determinado caso.
É que, para se compreender o entendimento da Corte, é preciso individu-
alizar a ratio decidendi (ou os fundamentos determinantes) das decisões e, além
disso, ter em conta que a Corte sempre tem a possibilidade de voltar a analisar

8. Como argumenta Wróblewski, o suposto da criatividade ocorre se e somente se uma deci-


são interpretativa influi de fato na aplicação do direito de maneira análoga às regras legais.
Isso ocorre quando a decisão do tribunal superior é considerada argumento nas atividades
interpretativas futuras dos tribunais inferiores nos sistemas de civil law (Wróblewski, Jerzy.
Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics and in Law. Law
and Philosophy, 1988. p. 328).
9. Silvestri, Gaetano. Le Corti Supreme negli ordinamenti costituzionali contemporanei. Le Corti
Supreme. Milano: Giuffrè, 2001. p. 45.
10. Dworkin, Ronald. Law as interpretation. Texas Law Review. vol. 60. p. 527-560.

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NOTA DO DIRETOR  |  11

uma mesma questão de direito a partir de outros fundamentos e, assim, de agre-


gar novos conteúdos a uma ratio decidendi. Isso quer dizer que a compreensão da
ratio decidendi, a espelhar o entendimento judicial sobre dada questão de direito,
exige a análise da história das decisões judiciais que refletem o desenvolvimento
do pensamento dos tribunais ordinários e, sobretudo, das Cortes Supremas.11
Daí a absoluta relevância da nova obra da Editora Revista dos Tribunais, vol-
tada a permitir a análise do desenvolvimento da discussão judicial, assim como
a identificação do entendimento das Cortes Supremas, a respeito de questões de
direito de grande repercussão jurídica e social. Assim como o Superior Tribunal
de Justiça e o Supremo Tribunal Federal passaram a ser Cortes de Interpretação e,
por mera consequência, Cortes de Precedentes, é preciso apreender a identificar os
precedentes e o pensamento destas Cortes.12 E isso só é possível mediante o auxílio
de obras que, ao invés de retratar de forma dispersa vários e discrepantes julgados
acerca de um mesmo caso, ofereçam ao leitor a possibilidade de compreender o
desenvolvimento do discurso dos tribunais e, especialmente, das Cortes Supremas
acerca das questões jurídicas.
Luiz Guilherme Marinoni
Professor Titular da UFPR. Pós-Doutor pela Universidade de Milão.
Visiting Scholar na Columbia University.

11. Sobre a noção de ratio decidendi, ver Marinoni, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed.
São Paulo: Ed. RT, 2013. Parte 3, itens 1, 2 e 3.
12. A respeito das pautas para a indentificação da ratio decidendi ou dos fundamentos determinan-
tes dos precedentes, ver Marinoni, Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de precedentes. São
Paulo: Ed. RT, 2013. Parte 3, item 3.

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SOBRE O DIRETOR

Luiz Guilherme Marinoni


Professor Titular de Direito Processual Civil da UFPR. Pós-Doutor pela Uni-
versidade Estatal de Milão. Visiting Scholar na Columbia University. Professor Vi-
sitante em várias Universidades da Europa e da América Latina, entre elas a Uni-
versità di Firenze e a Pontifícia Universidade Católica do Chile. Autor de inúmeros
livros publicados no Brasil e no exterior. Premiado com o Jabuti em 2009 e indicado
ao mesmo prêmio nos anos de 2007 e 2010. Consultor Internacional do projeto
Principles of Transnational Civil Procedure, liderado pelo American Law Institute
(EUA) e pelo International Institute for the Unification of Private Law (Itália).
Membro da International Association of Procedural Law, do Instituto Iberoame-
ricano de Derecho Procesal e do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de
Direito Processual. Advogado em Curitiba e Brasília.

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Sumário do Volume

Apresentação da Editora....................................................................................................................................... 5

Nota do Diretor....................................................................................................................................................... 7

Sobre o Diretor........................................................................................................................................................ 13

Direito contratual

Capítulo 1 – Negociação versus Proposta............................................................................................ 19

Capítulo 2 – Boa-fé objetiva...................................................................................................................... 51

Capítulo 3 – Equilíbrio contratual........................................................................................................... 145

Capítulo 4 – Cláusula penal versus Responsabilidade civil........................................................... 201

Capítulo 5 – Contrato de adesão............................................................................................................. 235

Capítulo 6 – Cláusulas abusivas – Consumidor................................................................................. 267

Capítulo 7 – Cláusula de arbitragem...................................................................................................... 317

Capítulo 8 – Cláusula de eleição de foro.............................................................................................. 343

Capítulo 9 – Parte – Representação em causa própria................................................................... 377

Capítulo 10 – Nulidade do contrato – Erro............................................................................................ 411

Capítulo 11 – Nulidade do contrato – Dolo........................................................................................... 443

Capítulo 12 – Resolução do contrato – Devolução de parte do valor pago............................. 463

Capítulo 13 – Contratos coligados............................................................................................................ 499

Capítulo 14 – Ação revisional de contratos........................................................................................... 551

Capítulo 15 – Responsabilidade pós-contratual.................................................................................. 603

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ANÁLISE DOUTRINÁRIA

Contornos doutrinários e jurisprudenciais


da boa-fé objetiva

Venceslau Tavares Costa Filho


Doutor, Mestre e Especialista em Direito Civil pela UFPE. Membro efetivo da Associação Norte-
-Nordeste de Professores de Processo – ANNEP, e do Instituto Brasileiro de História do Direito –
IBHD. Advogado. Secretário-Geral da Escola Superior de Advocacia Professor Ruy Antunes,
da OAB/PE.

Área do direito: Civil


Resumo: O artigo visa demonstrar a Abstract: Article reclaim demonstrate the
problemática em torno das cláusulas gerais e problems surrounding the general clauses and
do controle de assimetria negocial, baseando- the control of asymmetric bargaining, based
se na vontade dos contratantes e a boa-fé on the will of the parties and the objective
objetiva que decorre da lei para a elaboração good faith that the law due to the drafting of
de um contrato. a contract.
Palavras-chave: Boa-fé objetiva – Assimetria Keywords: Boa-fé objetiva – Asymmetry
negocial – Cláusula geral. negotiating – General clause.

Sumário: 1. A problemática das cláusulas gerais e do controle das assimetrias negociais


– 2. Pontes de Miranda e a boa-fé enquanto cânone hermenêutico-integrativo. Dever
de indenizar pelo descumprimento do dever de boa-fé, ainda que ausente a culpa – 3. A
boa-fé objetiva decorre da lei ou da vontade dos contratantes? – 4. Função de controle
da boa-fé objetiva.

1. A problemática das cláusulas gerais e do controle das assime-


trias negociais

Existe como que um Zeitgeist jusprivatista que opta pelo retorno aos códigos
civis, mas não para aqueles mesmos códigos oitocentistas e supostamente “plenos”;

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  97

mas sim para códigos amplamente aparelhados por cláusulas gerais. A boa-fé obje-
tiva contratual, indubitavelmente, é uma das mais notáveis cláusulas gerais postas
hoje à disposição do jurista. As cláusulas gerais, já presentes nas codificações do
século XIX, têm a função de preservar o sistema e compensar a rigidez das regras
excessivamente abstratas, técnicas e especializadas; bem como de oferecer um con-
traponto ao conceitualismo. As cláusulas gerais, então, atuam como espécies de
“válvulas de segurança” em prol da flexibilização de certas regras, adaptando-as para
a obtenção de soluções mais eficientes diante dos casos concretos.1
No mesmo sentido, pode-se dizer ainda que cláusulas gerais (tais como a da
boa-fé objetiva) realizam funções supostamente “assistêmicas”, porquanto permi-
tam construções jurídicas não previstas pelo legislador. É por isto que a boa-fé (as-
sim como as demais cláusulas gerais) funciona como uma regra de “calibração”,
pois ela – assim como se dá com o “termostato da geladeira” – permite a adaptação
das situações jurídicas às circunstâncias, evitando que o sistema incorra em disfun-
ção.2 Ademais, a agilidade das trocas realizadas no ambiente do mercado demanda
expedientes tais como as cláusulas gerais, porquanto permitam que os particulares
“atuem sem a necessidade de a toda hora submeter-se ou aguardar a criação de lei
específica regulando o ato”.3
Esta valorização das cláusulas gerais resulta, também, em uma valorização de
doutrina de direito civil. Nos sistemas romano-germânicos, a doutrina sempre de-
sempenhou uma função fundamental: a de intérprete “natural” da lei, a atuar sobre
o conjunto da comunidade jurídica com um magistério que assume uma posição
privilegiada nos momentos que precedem as codificações.4
Contudo, os juristas sempre encararam as cláusulas gerais com reserva, devido
à “inevitável indeterminação do conteúdo” e ao receio de uma indevida interven-
ção do Estado-juiz nas relações privadas; receio este que já foi mais exacerbado em
épocas pretéritas de predomínio do individualismo liberal. Entretanto, o estado de
permanente mudança social, a imperativa realização da função social dos institutos
jurídicos e a necessidade de um tratamento adequado para o fenômeno da massifi-

1. Pasa, Barbara. Old terms for new concepts in consumer contracts? Jean Monet Working Paper. n.
09 (2007). New York: NYU School of Law, p. 12-13.
2. Castro Junior, Torquato da Silva. A “regra de calibração” da boa-fé enquanto ruptura sistêmica:
crítica à doutrina de Pontes de Miranda. In: Costa Filho, Venceslau Tavares; Castro Junior,
Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil. Recife: Nossa Livraria, 2011. vol. I.
p. 97.
3. Costa Filho, Venceslau Tavares. A morte e a morte da concepção sistemática do direito privado.
Abertura hermenêutica, tópica e cláusulas gerais. Revista de Informação Legislativa. a. 48. n. 189
(jan.-mar. 2011). Brasília: Senado Federal, p. 151.
4. Zenati-Castaing, Frédéric. La proposition de refonte du livre II du code civil: etude critique.
Revue trimestrielle de droit civil, n. 2 (avril-juin 2009). Paris: Dalloz, p. 212.

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98    direito contratual

cação contratual e das assimetrias negociais; fazem com que as cláusulas gerais apre-
sentem-se como “ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis”.5
A ascensão das cláusulas gerais como um expediente jurídico desejável nos có-
digos fez surgir um acalorado debate sobre os limites no uso destes instrumentos,
especialmente quando permitem o controle do conteúdo dos contratos. Até mesmo
porque um das questões cruciais do direito obrigacional contemporâneo reside, exa-
tamente, no tratamento que será dispensado à liberdade contratual, tida como “peça-
-chave” em uma economia de livre mercado. O problema está na legitimação desta
liberdade, porquanto se saiba que os contratantes não negociam necessariamente em
condições de igualdade. Assim, recorre-se a cláusulas gerais (como a da boa-fé, por
exemplo) para restringir a liberdade de contratar, em face da assimetria de informação.6
Ora, pode-se afirmar que o direito dos contratos está assentado basicamente
sob dois pilares fundamentais: a autonomia privada e a confiança. O ordenamento
jurídico conferiu aos particulares a prerrogativa de proceder a modelagem de certas
relações jurídicas, em um dado âmbito restrito. A autonomia privada consistirá jus-
tamente no direito conferido aos particulares de participar diretamente da formação
de suas obrigações e direitos, que serão geralmente impostos em razão da celebração
de contratos, mas também pela celebração de negócios jurídicos unilaterais.7 A tute-
la da autonomia privada assegura, portanto, que o contrato vincule as partes apenas
naquilo que foi efetivamente querido pelos contratantes.8
Ao lado do respeito a autonomia privada como espaço de modelagem das re-
lações jurídicas dos cidadãos, deve caminhar a tutela da confiança. A confiança na
palavra dada é um princípio fundamental do direito dos contratos.9 A fidelidade (ou
respeito) à palavra dada integrará o fundamento da regra dos “pacta sunt servanda”,
ao qual se soma a veracidade, que exclui o engodo da vida contratual. Tais elementos
fundamentam a confiança no comportamento do outro e na fé em relação ao que se
prometeu; de modo que são essenciais ao desenvolvimento pleno do tráfico negocial.10

5. Lôbo, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e o Código Civil. In: Costa Filho,
Venceslau Tavares; Castro Junior, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil:
volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 145-146.
6. Dauner-Lieb, Barbara. Vers un droit européen des obligations? Enseignements tirés de la ré-
forme allemande du droit des obligations. Revue international de droit comparé, a. 56, n. 3 (Juil-
let-Septembre 2004). Paris: CNRS/Société de législation compare, p. 565.
7. Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 71.
8. Barcellona, Pietro; Camardi, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napo-
li: Jovene Editore, 2002. p. 203.
9. Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 72.
10. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p.
146.

AS L8359_JurisTendencia_Volume III.indb 98 11/10/2013 13:55:21


Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  99

A doutrina nacional fundamentará a boa-fé contratual na confiança. No caso


da boa-fé subjetiva, diz respeito à situação daquele que acredita ser titular de deter-
minado direito, quando na verdade não o possui de fato, mas apóia sua crença em
uma situação de aparência. Tal aparência justificará a instauração de um estado de
confiança subjetiva, no que respeita à situação jurídica, alimentando no suposto ti-
tular do direito uma série de expectativas vistas como legítimas por ele. Já na boa-fé
objetiva também será possível identificar uma situação de confiança a ser protegida,
mas que não se baseia em uma crença errônea na titularidade de um direito, mas à
ausência de vícios e à necessidade do cumprimento integral do contrato, porquanto
o contratante tenha a expectativa de que a outra parte se comportou e continuará a
se comportar corretamente e de maneira leal.11

2. Pontes de Miranda e a boa-fé enquanto cânone hermenêutico-


-integrativo. Dever de indenizar pelo descumprimento do dever
de boa-fé, ainda que ausente a culpa
É inegável a influência da doutrina germânica, elaborada a partir e para além
do texto do Código Civil alemão, em relação às construções teóricas nacionais sobre
a boa-fé objetiva. Pontes de Miranda alude expressamente à presença do Treu und
Glauben nos §§ 157 e 242 do Código Civil alemão (BGB). O § 242 do Código
Civil alemão estatui que: “o devedor obriga-se a cumprir a prestação de acordo com
as exigências da boa-fé, tendo em vista os usos do tráfico”.
Para Pontes de Miranda, a boa-fé integra as regras dos usos do tráfico, de modo
que se presta ao preenchimento de lacunas legislativas, além de servir como regra
interpretativa.12 Esta visão de Pontes de Miranda não diverge fundamentalmente
em relação à doutrina alemã da época. Enneccerus e Nipperdey, v.g., advogavam
que a boa-fé exige que os juízes se comportem de modo a resolver a questão como o
faria uma pessoa honrada e ciente de suas obrigações; e que levem em consideração
os usos do tráfico.13
Ora, tal função interpretativa dirige-se à busca do significado mais razoável a
ser indicado pela boa-fé objetiva contratual. Destarte, caso uma determinada cláu-
sula admita diversos sentidos possíveis, a interpretação deve acontecer em prol da
compreensão que efetivamente garanta a preservação do contrato. Trata-se do prin-
cípio da conservação do contrato, ou princípio do favor actus.14

11. Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 132.
12. Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado – Parte Geral. 2. ed. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1954, § 327, vol. III. p. 331-332.
13. Enneccerus, Ludwig; Nipperdey, Hans Carl. Derecho Civil (Parte General). Barcelona: Bosch,
1943. Volumen Primero. p. 216.
14. Noronha, Fernando. Op. cit., p. 155.

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100    direito contratual

É o que verifica em sede de Recurso Especial qualificado como recurso repre-


sentativo de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, quanto à validade de
cláusula de comissão de permanência encartada em contratos bancários sujeitos às
regras do Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Segundo o relator, o princí-
pio da conservação do contrato – que compreende a teoria da conversão do negócio
jurídico (art. 170, do CC/2002) – , exige que deve se proceder com o aproveitamen-
to do ato, sempre que possível, desde que isto não contrarie a vontade das partes,
apesar da aparente nulidade.15
A invocação da boa-fé, contudo, também poderia assumir a eficácia de exceção
dilatória no sistema erigido por Pontes de Miranda. Trata-se de situação gerada em
virtude da alteração das circunstâncias, a tornar a prestação contratual insuportável,
mas não impossível. Inexistindo impossibilidade superveniente - mas uma dificul-
dade excessiva gerada pela alteração das circunstâncias –, não haveria que se falar em
resolução da obrigação, ou extinção, e sim em exceção de boa-fé.16 Esta exceção de
boa-fé corresponderia a uma espécie de exceção dilatória em razão da exorbitância
temporária. Assim, haveria uma espécie de paralisação da pretensão do credor ao
cumprimento da obrigação enquanto se mantivessem as circunstâncias que ense-
jaram a dificuldade; ou seja, a inexigibilidade da prestação neste caso seria apenas
momentânea.
Apesar de não haver sistematizado uma teoria da boa-fé objetiva, Pontes de
Miranda já fazia menção a deveres compreendidos atualmente na cláusula de boa-fé
objetiva, tais como os de cooperação, previsão e proteção nas relações contratuais.
Em sua análise sobre o contrato de empreitada, considerou que o dever de coopera-
ção exsurge deste tipo contratual, e se impõe durante todo o período de execução do
contrato. Caso o empreitante deixe de cumprir tal dever, porque deixou de fornecer
equipamentos necessários à realização da obra, ou não providenciou local para a
hospedagem dos operários; surge para o empreiteiro o direito de obter indenização
quando aos gastos que necessitou fazer em excesso, ou ainda pelo tempo desper-
diçado com a paralisação da obra, “mesmo se não houve culpa do empreitante”.17
Acresce, ainda, que o dever de cooperação acarreta a imposição dos deveres de pre-
visão e cooperação, de modo que o empreitante que descumpre tais deveres ao res-
cindir o contrato de empreitada imotivadamente poderá ser compelido a indenizar
o empreiteiro quanto às despesas e ao trabalho realizado, bem como em relação aos
lucros que poderia perceber caso concluísse a obra.18
Tal entendimento, no sentido de impor o dever de indenizar pelo descum-
primento da boa-fé objetiva, sem demonstração da culpa, guarda relação com os

15. REsp 1.063.343/RS, j. 12.08.2009, rel. p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha.
16. Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 53.
17. Idem, t. XLIV, p. 418.
18. Idem, t. XLIV, p. 420.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  101

atuais contornos da boa-fé objetiva na jurisprudência do STJ. Tome-se, por exem-


plo, demanda que versa sobre as conseqüências jurídicas de um protesto levado a
efeito pela parte demandada (uma instituição financeira) em face do autor da ação.
Alega a instituição financeira que procedeu com o protesto devido ao fato de con-
sumidor haver procedido a pagamento de maneira diversa da pactuada. Em vez de
proceder ao pagamento mediante a apresentação de boleto fornecido pelo credor,
o autor procedeu com o depósito em conta-corrente de titularidade da empresa
demandada. O autor alegou que só procedeu com o pagamento de forma distinta
porque inviabilizado o pagamento mediante a apresentação do boleto após certo
lapso temporal de atraso, pois havia proibição de utilização do boleto após dez dias
de vencimento do débito. Assim, o autor da ação se dirigiu até a concessionária de
veículos onde adquiriu o bem que o levou a celebrar uma operação de crédito junto
à instituição financeira demandada, que informou a ele o número de uma conta-
-corrente da titularidade do Banco para que realizasse o adimplemento da prestação
em atraso. Sob a alegação de que não tinha como realizar o controle efetivo dos
depósitos realizados naquela conta-corrente, a instituição financeira tentou se exi-
mir do dever de indenizar ao demandante em face do protesto indevido. De acordo
com a Ministra Nancy Andrighi, as circunstâncias do caso não permitem aplicar o
adágio popular “quem paga mal, paga duas vezes” ao caso, que deve ceder lugar ao
novo perfil do contrato e das exigências da boa-fé. A aplicação da boa-fé aos con-
tratos acarretaria no aparecimento de deveres anexos ao contrato, entre eles o dever
de cooperação. A violação de qualquer um dos deveres anexos, ainda que ausente a
culpa, constitui espécie de inadimplemento contratual a ensejar o dever de reparar
os danos decorrentes.19
A utilização da boa-fé objetiva como expediente para uma interpretação cons-
trutiva (praeter legem) – ou até mesmo contra legem – , não deve ser compreendi-
da como evidência de um certo tipo de desprezo pelo exame rigoroso das leis e
dos preceitos. Na verdade, impõe uma maior cautela quanto aos aspectos técni-
cos, o que não se traduz em devoção ao tecnicismo apartado do mundo da vida;
ou em uma crença na neutralidade do “jurista lógico, no formalismo conceitual e
esquematizante”.20

3. A boa-fé objetiva decorre da lei ou da vontade dos contratantes?


As funções interpretativa e integrativa da boa-fé objetiva são complementares.
Se a função interpretativa pode “revelar” deveres razoavelmente imputáveis em vista
da relação contratual, pode-se dizer que a função integrativa presta-se também a
evidenciar os deveres que se consideram integrados à relação contratual em virtude

19. REsp 595.631/SC, j. 08.06.2004, rel. Min. Nancy Andrighi.


20. Martins-Costa, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São
Paulo: Ed. RT, 1999. p. 34.

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102    direito contratual

da boa-fé objetiva.21 Graças à influência de Karl Larenz, tornou-se corrente a refe-


rência a deveres de prestação primários e secundários. Deve-se muito do impacto da
obra de Karl Larenz no Brasil à renomada tradução de seu Tratado de Direito das
Obrigações para a língua espanhola, em meados dos anos de 1950. No início dos
anos de 1980, a obra de Harm Peter Westermann é vertida para o português. Isto
reforçará a divulgação da citada teoria dos deveres secundários, ou acessórios; verbis:
“Na ciência, o desenvolvimento de deveres de prestação primários e secundá-
rios na relação obrigacional é expresso por uma comparação da relação obrigacional
com um processo, uma estrutura ou um organismo. Mais claro torna-se isso quan-
do se tem presente que, em quase toda relação obrigacional, ao lado dos deveres
de prestação, podem vir a colocar-se ainda deveres acessórios de diversas espécies.
Estes, geralmente não estão convencionados expressamente; resultam, porém; da
interpretação do contrato. Critérios para a formação de tais deveres acessórios são,
principalmente, o cumprimento do fim contratual e a devida consideração aos inte-
resses do parceiro contratual”.22
As referências a deveres acessórios à boa-fé – ou, ainda a deveres secundários
ou anexos -, são cada vez mais abundantes na doutrina e jurisprudência brasileira
recentes. Tal denominação, entretanto, parece levar à conclusão apressada de par-
cela significativa da doutrina e da jurisprudência a considerar que os deveres de
proteção, lealdade, informação, equidade, etc., decorreriam da vontade das partes,
ainda que presumida. Neste sentido, já decidiu o STJ que a instituição financeira,
ao disponibilizar área para guarda de veículos dos seus clientes assume o dever de
proteger a pessoa do cliente e o patrimônio dele. Tal dever decorre da cláusula geral
de boa-fé objetiva, que vincula a instituição financeira a partir da “relação contratual
de fato assim estabelecida, que serve de fundamento à responsabilidade civil pelo
dano decorrente do descumprimento do dever”.23
Paulo Lobo, contudo, diverge quanto à suposta acessoriedade de tais deveres.
De modo que prefere denominá-los como deveres gerais de conduta, por entender
que tais deveres ganharam a dimensão de princípios normativos, sejam constitucio-
nais ou infraconstitucionais; deixando para trás o caráter acessório ou complemen-
tar em relação ao dever de prestar adimplemento. Aduz, ainda, que estes deveres não
decorrem simplesmente da relação jurídica obrigacional, ou do dever primário de
adimplemento; mas “estão acima de ambos”. Isto porque a cláusula geral da boa-fé
objetiva restou positivada como norma jurídica no Brasil. Assim, conclui que os
deveres extraídos da boa-fé objetiva incidem diretamente nas relações obrigacionais,
sem que haja necessidade da declaração de vontade dos participantes (implícita, ou

21. Noronha, Fernando. Op. cit.


22. Westermann, Harm Peter. Código Civil Alemão; direito das obrigações; parte geral. Trad. de
Armindo Edgar Laux. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1983. p. 16.
23. AgRg no AgIn 47.901-3/SP, j. 12.09.1997, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  103

explícita). Até mesmo porque não se pode olvidar que a aplicação da boa-fé objetiva
não poderá ser obstada por convenção firmada entre as partes contratantes.24
Neste diapasão, decidiu o STJ sobre a desnecessidade da mediação do acordo
de vontades para a incidência dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva. O Minis-
tro relator erigiu o seu raciocínio tomando por base a presença da ordem pública
e do interesse social nas normas de proteção e defesa do consumidor. Isto faz com
que tais normas reputem-se “indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores
básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade
de o consumidor delas abrir mão ex ante e no Atacado”. Ora, o direito à informa-
ção é uma expressão concreta dos princípios da Transparência, da Boa-fé objetiva
e da Confiança nas relações de consumo. O dever de informação que se impõe aos
fornecedores, contudo, não deve levar em consideração apenas o homem médio, ou
a generalidade dos consumidores. Assim, tal dever se aprofunda em relação aos cha-
mados hipervulneráveis, a exemplo da necessidade de advertir sobre a presença do
glúten em determinados produtos e seus efeitos indesejáveis para os portadores de
doença celíaca; ainda que tal elemento não seja prejudicial ao grosso da população.25
Parece-nos que tal entendimento se coaduna, também, com o atual estágio de
desenvolvimento da ciência jurídica alemã, após a ampla reforma empreendida no
âmbito do direito obrigacional.26 Além de alterar as regras sobre a prescrição, a pro-
teção do consumidor, e diversos tipos contratuais; o Código Civil alemão passou a
referir a uma série de situações compreendidas no que se convencionou chamar de
Recht der Leistungsstörungen. Menezes Cordeiro traduziu a expressão por “Direito da
perturbação das prestações”.27
Todavia, consideramos atualmente que esta expressão é demasiadamente
equívoca, apesar de já havermos referido à ela em outro escrito (mas sem qualquer
crítica);28 não obstante o fato da tradução de Menezes Cordeiro ser mais próxima de
uma tradução literal , já que leistung pode ser traduzida como prestação, e o verbo
stören pode ter o sentido de perturbar, ou interferir. Pensamos ser mais adequa-
do traduzir por “Direito da perturbação no desempenho”. Isto porque a expressão

24. Lobo, Paulo. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 77-80.
25. REsp 586.316/MG, j. 17.04.2007, rel. Min. Herman Benjamin.
26. Pedimos vênia para indicar a leitura de alguns dos nossos estudos sobre a mencionada reforma
legislativa: a) Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para a modernização do
direito das obrigações na Alemanha. Revista de Direito Privado. vol. 45. São Paulo: Ed. RT,
jan.-mar. 2011; b) Costa Filho, Venceslau Tavares. Sobre a prescrição e a boa-fé no exercício
da pretensão executiva: breves reflexões a partir da reforma do direito obrigacional alemão. In:
Adonias, Antonio; Didier Jr., Fredie; Cunha, Leonardo Carneiro da (coords.). Execução e
Cautelar – Estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: Juspodivm, 2012.
27. Cordeiro, António Menezes. Da modernização do direito civil, I volume (aspectos gerais). Coim-
bra: Almedina, 2004. p. 100.
28. Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para... cit.

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104    direito contratual

Leistungsstörungen admite duas acepções: I) em acepção restrita, ela compreende a


impossibilidade (absoluta ou relativa), a mora e a violação positiva do contrato; e
II) em acepção ampliada alcança, além dos três institutos supracitados, a culpa in
contrahendo, a alteração das circunstâncias e os contratos com efeito protetor de
terceiros.29
Indubitavelmente, uma reforma deste porte indica um esforço de valorização
do Código Civil no contexto alemão. Mas, isto não nos permite concluir necessa-
riamente em prol da tese que considera a citada reforma como o prenúncio de uma
nova era para o direito privado: a era da recodificação.30
Um dos conceitos centrais da reforma no tocante ao Direito da perturbação no
desempenho é o de violação (ou quebra) de um dever: Pflichtverletzung.31 Este novo
conceito (constante do § 280/I) não se encontrava presente no texto do Código Ci-
vil alemão antes da reforma em comento, e parece haver sido copiado da Convenção
de Viena sobre venda internacional de mercadorias, de modo a fazer compreender
sob a hipótese geral de violação do dever os casos de inexecução e, também, de
execução imperfeita ou defeituosa.32 De acordo com a redação atual do § 280/I do
Código Civil alemão, o escopo do contrato deixa de se limitar às prestações que
decorrem do pacto, e passa a alcançar qualquer “dever proveniente de uma relação
obrigacional”, de modo que a violação de um destes deveres pode ser caracterizada
como incumprimento gerador do dever de indenizar a parte prejudicada pela vio-
lação do dever.
Observe-se, contudo, que o Direito da perturbação no desempenho (Recht der
Leistungsstörungen) não fulmina necessariamente o objeto da relação obrigacional,
ou seja, a prestação. O instituto da alteração das circunstâncias, por exemplo, que
também é compreendido atualmente sob esta égide, não inviabiliza necessariamente
a prestação, mas pode indicar a necessidade de realização da mesma prestação por
outros meios.
Ademais, observe-se a jurisprudência do STJ em matéria de responsabilidade
pré-contratual, ou em virtude da culpa in contrahendo. In casu, trata-se de demanda
proposta por empresa sediada no Estado do Amazonas em detrimento dos represen-

29. Cordeiro, António Menezes. Op. cit., p. 101.


30. Grundmann, Stefan. Leistungsstörungsmodelle im Deutschen und Europäischen Vertragsrecht
– insbesondere Zurückweisung der charakteristischen Leistung. In: Heldrich, Andreas; Prölss,
Jürgen; Koller, Ingo (hrsg.). Sonderdruck aus Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70.
Geburtstag. München: Verlag C.H. Beck, 2007. p. 307.
31. Zimmermann, Reinhard. Breach of contract and remedies under the new german law of
obligations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto
comparato e straniero, p. 08.
32. Lardeux, Gwendoline. Droits civils français et allemand: entre convergence matérielle et
opposition intellectuelle. Revue de la recherche juridique – Droit prospectif, n. 113 (2006-2).
Marseille: Puam, p. 39-40.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  105

tantes de uma montadora de veículos de fama internacional. No caso em comento,


o então presidente da montadora no Brasil contratou a publicação de anúncios na
imprensa convocando novos parceiros interessados a apresentarem candidaturas para
que passassem a integrar a rede de revendedores autorizados de veículos de deter-
minadas marcas. A empresa demandante respondeu ao anúncio, no que teria sido
instada pela representante da montadora a apresentar uma série de documentos ne-
cessários à avaliação de sua candidatura. Após isto, o então presidente da montadora
no Brasil dirigiu-se até a cidade de Manaus para conhecer os sócios do parceiro local
e para comunicar o resultado positivo da avaliação da candidatura, bem como para
convidá-los para comparecerem a reuniões em São Paulo a fim de tratar do futuro
plano de negócios, no que foi atendido. Após isto, a demandante foi comunicada por
determinada empresa de consultoria – supostamente contratada pela requerida para
a avaliação da candidatura da requerente – , da aprovação final de sua candidatura, e
instada a depositar o valor de R$ 75.000, 00 (setenta e cinco mil Reais) referentes ao
processo de contratação. Após isto, a requerente chegou a ser convidada a participar
de uma reunião geral dos revendedores da marca no Brasil. Mais adiante, contu-
do, a requerida informou à requerente o cancelamento do Contrato de Concessão
da Revenda. Entretanto, pouco tempo depois, uma revista de circulação nacional
noticia que o Presidente da marca no Brasil havia sido afastado da sua função em
virtude da prática de fraude na realização de uma campanha de cooptação de novos
parceiros, mas – que após a aprovação da candidatura e do pagamento da quantia
de R$ 75.000,00 (setenta e cinco mil Reais) -, procedia com a comunicação do can-
celamento da contratação, sem qualquer devolução da quantia paga. Ciente disto, a
requerente ajuizou ação perquirindo o pagamento de indenização em face dos preju-
ízos sofridos. Nos autos, a empresa demandada pugnou pela inexistência de nexo de
causalidade entre os danos infligidos e a conduta da requerida, ao argumento de que
não chegou a existir qualquer tipo de relação obrigacional entre as partes; até mesmo
porque não houve a celebração de contrato na forma prescrita pela Lei 6.729/1979.
Ademais, a quantia despendida foi depositada em conta bancária de titularidade de
empresa de consultoria que não guarda nenhum vínculo com a montadora de veí-
culos no Brasil. Para o Ministro Relator, contudo, a responsabilidade civil neste caso
não decorre do fato do rompimento das tratativas, ou da não conclusão do contrato,
mas sim da violação da boa-fé objetiva. O dever de indenizar decorre da violação da
boa-fé objetiva, em virtude da quebra das expectativas legítimas geradas pela reque-
rida em relação à requerente, bem como em virtude do efetivo prejuízo material.33

4. Função de controle da boa-fé objetiva


Além das funções integrativa e interpretativa, a boa-fé objetiva desempenha
também uma função de controle. A boa-fé objetiva estabelece limites ao exercício

33. REsp 1.051.065/AM, j. 21.02.2012, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.

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106    direito contratual

dos direitos subjetivos, das ações, exceções, pretensões, etc. O titular do direito não
pode exceder os limites fixados pela boa-fé, sob pena de incorrer na prática de ato
ilícito (art. 187 do CC/2002).34
Os eventuais direitos e deveres impostos em virtude do contrato podem so-
frer limitações quanto ao exercício tendo em vista os lindes da boa-fé objetiva. No
sentido de explicitar o alcance da relação jurídica obrigacional, especialmente no
tocante aos deveres de lealdade e boa-fé; o legislador alemão promoveu o acréscimo
do seguinte dispositivo no § 241 do Código Civil alemão (BGB): “Pode a relação
obrigacional, de acordo com o seu conteúdo, vincular qualquer das partes a ter o
especial apreço pelos direitos, bens jurídicos e interesses da outra”.
Disto resulta um dever de lealdade, compreendida como “permanente orien-
tação até a alma do outro” (dauernde Hinwendung zur Seele eines andern), a vedar
toda astúcia malévola, todo o dolo; e obriga a levar em consideração os interesses
do outro pólo da relação jurídica. Decorre daí, portanto, um conjunto de deveres
pertinentes à lealdade e boa-fé a incidir sobre as relações jurídicas em geral, a des-
peito do regramento contratual ou de declarações de vontade em sentido diverso.35
Este dever de considerar os interesses do outro contratante, rompe o antigo
paradigma do contrato como uma espécie de relação onde se verifica a presença de
interesses antagônicos, ou ainda, como relação na qual os contratantes só se pre-
ocupam com os seus próprios interesses. Torquato Castro, antigo Catedrático de
Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife e membro da comissão responsável
pelo anteprojeto que originou o Código Civil vigente, pode ser considerado um dos
primeiros civilistas nacionais a defender a necessidade de superação deste suposto
antagonismo. Tal antagonismo deve ceder espaço para o que ele chamava de “visão
global da obrigação”, que impunha a necessidade de coordenação dos interesses do
credor e do dever para a realização de um só interesse considerado comum a ambos:
a realização da prestação.36
Neste sentido, o STJ pacificou a sua jurisprudência tendo em vista a boa-fé
objetiva e sua função de controle. Trata-se do Enunciado 308 da Súmula de Juris-
prudência dominante do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente
financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não
tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Sem sombra de dúvida, um dos
principais fundamentos doutrinários deste enunciado repousa na teoria das redes
contratuais, formulada por Rodrigo Xavier Leonardo. Anos antes da aprovação do

34. Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 167.
35. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p.
146-147.
36. Castro, Torquato. Prefácio. In: Costa Júnior, Olímpio. A relação jurídica obrigacional: situa-
ção, relação e obrigações em direito. São Paulo: Saraiva: 1994, p. XVI.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  107

mencionado enunciado, o aplaudido civilista paranaense fundamentava a ineficácia


da hipoteca na função de controle da boa-fé objetiva contratual. Tendo em vista a
conexão sistemática entre o financiamento concedido pela instituição financeira e o
contrato de compra e venda firmado entre a construtora e o consumidor, a ineficá-
cia da cláusula que autoriza a construtora a hipotecar o bem objeto do contrato de
consumo, em posterior negociação voltada ao financiamento do conjunto da incor-
poração.37 Esta contagiação da ineficácia (ou invalidade, segundo Rodrigo Xavier
Leonardo) dá-se “ante a manifesta necessidade de proteção da operação econômica
unitária desenvolvida pelos diversos agentes: fornecer imóveis para consumidores”.38
Em outra oportunidade, o STJ enfrentou a problemática da função de contro-
le da boa-fé objetiva em sede de Recurso Especial no qual se discute a abusividade
cláusula inserida em contrato de compra e venda de imóvel sob o regime do Código
de Proteção e Defesa do Consumidor, a prever que não cabe o pedido de comple-
mentação de área do imóvel ou abatimento no preço caso se verifique diferença
inferior a 5% entre a área total mencionada no contrato e a área efetiva do bem
imóvel. In casu, concluiu-se que tal cláusula contratual importa na violação dos de-
veres de confiança e boa-fé objetiva, pois subtrai do consumidor uma parcela do que
ele entende haver adquirido legitimamente em virtude do contrato; o que o levaria
a pagar por certa quantidade e receber outra, inferior ao mencionado no contrato e
sem informação adequada em relação a tal questão. Concluiu, portanto, pela abusi-
vidade da referida cláusula, que termina por violar o dever de equidade contratual,
ao colocar o consumidor em desvantagem perante a fornecedora.39
Portanto, cada parte deve levar em conta os interesses da outra, sob certas
circunstâncias, por ser esta uma exigência da lealdade na relação jurídica. Assim,
a confiança em um comportamento alheio é digna de proteção jurídica. Destarte,
toda pessoa que, em razão do seu comportamento, passa a impressão de ocupar
certa posição jurídica deve ser tratada enquanto tal. Os atos que induzem ao erro, o
dolo e o comportamento arbitrário e contraditório (venire contra factum proprium)
constituem infrações ao dever de lealdade.40
No âmbito do STJ, apreciou-se questão relativa à proteção da confiança na
contratação de um seguro de vida, que gerou o ajuizamento de uma ação pelos
beneficiários de determinada segurada. Na petição inicial, os recorridos alegam que
a segurada (esposa de um deles e mãe dos demais) procedeu com a contratação do
denominado “super plano de saúde SP-20”, que compreendia seguro de vida auto-
mático e facultativo. Diante do óbito da segurada, que se encontrava adimplente no

37. Leonardo, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Ed. RT, 2003.
p. 190-191.
38. Idem, p. 194.
39. REsp 436.853/DF, j. 04.05.2006, rel. Min. Nancy Andrighi.
40. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p.
183.

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108    direito contratual

momento do falecimento, os beneficiários dela buscaram obter junto à operadora


do plano de saúde o pagamento da quantia contratualmente assegurada. Contudo,
a seguradora/recorrente recusou-se a efetuar o pagamento solicitado, ao argumento
de que era mera estipulante do contrato de seguro de vida entre a segurada e outra
seguradora, a quem cabia a liderança do seguro. Tal fato da operadora do plano de
saúde ser apenas estipulante do contrato de seguro, só foi levado ao conhecimento
dos recorridos após a realização de reclamação junto à Susep. Aduz a Ministra Rela-
tora que a recorrente gerou uma expectativa legítima – seja em relação à segurada ou
aos seus beneficiários –, de que ela arcaria com as obrigações próprias do contrato de
seguro de vida. Ademais, a segurada procedia mensalmente com o pagamento das
quantias referentes ao prêmio do seguro de vida à empresa recorrente, o que tornaria
evidente a responsabilidade da operadora do plano de saúde pelo adimplemento das
obrigações do seguro de vida. Some-se a isto que não foi dado conhecimento prévio
da condição da recorrente como mera estipulante do seguro de vida à segurada e
seus beneficiários, o que não lhe permite se eximir do cumprimento de tais obri-
gações, em virtude do que prescreve o art. 46 do CDC; bem como da nulidade de
cláusula que importe na transferência das responsabilidades do fornecedor a outrem
(art. 51, III, do CDC).41
Acreditamos que a primeira referência doutrinária nacional ao brocardo do
venire contra factum proprium deve-se ao Prof. José Soriano de Souza Neto (ou,
Soriano Neto), quando da publicação de um profundo estudo sobre a teoria do
ato jurídico em sentido estrito,42 e de pareceres por ele emitidos a referir situações
práticas de aplicação do brocardo, na mais do que centenária Revista Acadêmica da
Faculdade de Direito do Recife. No corpo do mencionado estudo, faz referência à
obra de Erwin Riezler – “Venire contra factum proprium – Studien in Römischen,
Englischen und Deutschen Civilrecht” –, publicada em Leipzig, no ano de 1912.43
Entretanto, Soriano Neto deixa de desenvolver a temática relativa ao brocardo do
venire contra factum proprium neste texto. Mas, vai retomar o argumento da vedação
do comportamento contraditório a fim de sustentar posição defendida em judicioso
parecer sobre os efeitos do reconhecimento da filiação, verbis:
“É, também, ponto pacífico na doutrina que o marido não pode fundar a
contestação da paternidade do filho, nascido, anteriormente, de sua atual mulher e
legitimado pelo subseqüente casamento, na exceção de diversos coabitadores, isto
é, de que, no momento da concepção, outros tiveram igualmente, relações sexuais

41. REsp 590.336/SC, j. 07.12.2004, rel. Min. Nancy Andrighi.


42. Souza Neto, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido
estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, ano
LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife.
43. Souza Neto, José Soriano de. A construção científica alemã sobre os atos jurídicos em sentido
estrito e a natureza jurídica do reconhecimento da filiação ilegítima. Revista Acadêmica, ano
LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 14.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  109

com ela. Isto, como escreve Crome, se contradiria com a circunstância de que ele
mesmo desposou a mãe. Exclue-se, pois, a exceção pela presunção de causalidade
das relações sexuais da mãe com o seu posterior marido”.44
Tal supressão da exceção de diversos coabitadores, nos termos formulados por
Soriano Neto, decorre do princípio da confiança, de modo a preservar a situação
de confiança legitimamente gerada. No venire contra factum proprium está um im-
perativo de coerência, pois impede “que se aja em determinado momento de uma
certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vá contra
aquela conduta tomada em primeiro lugar”.45
Este comportamento alheio a despertar a confiança pode se traduzir em reite-
radas ações ou omissões. Em Portugal, fala-se em supressio e surrectio. Na Alemanha,
em Verwirkung e Erwirkung. A supressio, ou preclusão, diz respeito à “supressão de
determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo”. Já a surrectio alude ao
aparecimento “de uma situação de vantagem em virtude de não ter sido feita qual-
quer oposição à situação fática verificada por um determinado período de tempo”.
Está-se diante, portanto, de uma forma de repercussão do tempo nas situações ju-
rídicas.46
Na Alemanha, devido à largueza dos prazos vigentes antes da reforma de
2001/2002, adotou-se a figura da Verwirkung (ou supressio) nos casos em que o
detentor de uma pretensão resta impedido de fazer uso dela em face de um retardo
de décadas no tocante ao exercício da pretensão, o que faz surgir no devedor a ex-
pectativa legítima de que não mais será demandado.
O STJ também já se pronunciou sobre o tema da suppressio. Trata-se de Re-
curso Especial no qual se discute sobre a interpretação de cláusula constante de
convenção de condomínio que determina o uso estritamente comercial das unida-
des condominiais, diante do fato da aceitação da destinação mista pela coletividade
dos condôminos e pelo próprio condomínio. Um dos residentes no condomínio,
incomodado com os ruídos provenientes da câmara frigorífica de um supermercado
que se estabeleceu no Condomínio, ajuizou demanda requerendo a cessação das
interferências prejudiciais e a percepção de indenização por danos morais. Contudo,
o exercício das posições jurídicas encontra-se limitada pela boa-fé objetiva. Assim,
concluiu-se que o condômino não pode exercer suas pretensões de forma desar-
razoada ou excessiva, no intuito de prejudicar o vizinho. A cláusula constante de

44. Souza Neto, José Soriano de. Eficácia da legitimação por subseqüente matrimônio e ação do
filho legitimado para investigar paternidade diferente da resultante da legitimação. Revista Aca-
dêmica, ano LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 301.
45. Duarte, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: Delgado,
Mário Luiz; Alves, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo Código Civil. Série grandes
temas de direito privado. São Paulo: Método, 2004. vol. 2. p. 425.
46. Idem, p. 427.

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110    direito contratual

convenção condominial a impor o uso estritamente comercial não pode prevalecer,


na medida que nunca foi observada na prática e não guarda relação com a realidade
cotidiana do condomínio em questão. Está-se diante justamente da figura da sup-
pressio: “regra que se desdobra do princípio maior da boa-fé objetiva e segundo a
qual o não exercício de direito por certo prazo pode retirar-lhe a eficácia”.47
Nem todo comportamento aparentemente contraditório está ao alcance da
proibição do venire contra factum proprium. Uma das questões debatidas em sede
Recurso Especial, verbi gratia, diz respeito à qualificação do comportamento do
acionista controlador de determinada sociedade anônima como violador da boa-
-fé objetiva, porquanto destitua Conselheiros na Assembléia Geral que foram por
ele mesmo aprovados, e indicados pelos sócios minoritários. No caso em tela, en-
tendeu-se que os acordos de acionistas – versados no art. 118 da Lei das Socieda-
des Anônimas –, tendo em vista a sua relevância e natureza, devem guardar certas
formalidades pertinentes, de modo que necessitam do arquivamento na sede da
empresa para que possam se tornar obrigatórios em relação a terceiros. Destarte, a
troca de correspondência informal (e-mails) fazendo-se alusão a possíveis posições a
serem adotadas nas assembléias de acionistas não pode ser tomada como vinculativa
das declarações de vontade, tendo em vista a legislação societária pertinente. No
intuito de não permitir que acordos informais entre acionistas em temas de relevân-
cia societária possa conflitar com interesses maiores da sociedade, o art. 118 da Lei
das Sociedades Anônimas “é enfático ao exigir que os acordos envolvendo compra
e venda de suas ações, preferência para adquiri-las, exercício do direito a voto, ou
do poder de controle, porque são de relevância societária, devem ser arquivados na
sede da empresa”.48
A boa-fé objetiva, ao impedir o exercício malévolo, também se desdobra no de-
nominado dever de mitigar as próprias perdas (duty to mitigate the loss). Excede os li-
mites da boa-fé o comportamento por parte do contratante no sentido de agravar os
prejuízos sofridos em virtude de ato praticado pelo outro contratante, no intuito de
majorar o valor da indenização que será requerida. No âmbito do STJ, tal aplicação
da boa-fé objetiva foi discutida no seio de uma controvérsia acerca do ressarcimento
dos honorários advocatícios dispendidos em virtude da mora do devedor. Neste
caso, o duty to mitigate the loss se constitui em um ônus imputável ao credor quanto
à minimização do dano sofrido em face do inadimplemento, a demandar a busca de
soluções amigáveis antes da contratação da prestação de serviços advocatícios. Mis-
ter se faz, portanto, que a contratação de advogado se evidencie estritamente neces-
sária. Destarte, concluiu-se pela abusividade da cláusula contratual que “previu, de
forma ampla e ilimitada, a possibilidade de ressarcimento dos honorários bastando,
na hipótese, que o consumidor esteja inadimplente”.49

47. REsp 1.096.639/DF, j. 09.12.2008, rel. Min. Nancy Andrighi.


48. REsp 1.102.424/SP, j. 18.08.2009, rel. Min. Massami Uyeda.
49. REsp 1.274.629/AP, j. 16.05.2013, rel. Min. Nancy Andrighi.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  111

Um instituto que se aproxima do dever de não agir contra os próprios atos cor-
responde ao brocardo do Tu quoque. Neste caso, a boa-fé objetiva impede que uma
pessoa que violou determinada regra possa exigir de outra o cumprimento dela.50 A
jurisprudência do STJ já fez alusão à tal impossibilidade de alegação do vício pelo
contratante que deu causa a ele. No caso em concreto, questionava-se a validade
da aposição de assinatura escaneada em nota promissória. O STJ considerou que a
assinatura de próprio punho pelo emitente da nota promissória constituiria pres-
suposto de existência e validade deste negócio jurídico. Somente a lei poderia criar
outras formas de assinatura. Entretanto, inexiste lei dispondo sobre a validade da
assinatura escaneada no Brasil. Contudo, verifica-se que tal assinatura escaneada foi
aposta na cártula pelo próprio emitente. O dever de boa-fé objetiva evidenciado no
brocardo latino Tu quoque impede que o violador de uma norma invoque a mesma
norma outrora violada por ele com o fito de beneficiar-se do descumprimento, ou a
fim de exercer a situação jurídica que essa norma lhe tivesse atribuído.51
Por fim, mas não menos importante, é de se considerar que a boa-fé objetiva
impõe o dever de cumprir o que foi prometido no contrato. Todavia, os contratos
devem ser interpretados e cumpridos conforme a boa-fé.52 Esta noção de boa-fé
impõe, por outro lado, a desnecessidade de cumprimento do contrato “quando
as circunstâncias de fato que fundamentaram o contrato se alteraram ao ponto do
cumprimento da promessa, como tal, não pode ser esperado, em conformidade com
o princípio da boa-fé”.53
Na Alemanha – após a revisão do BGB –, esclareceu-se mais quanto às situa-
ções que permitem a exclusão do direito à execução da prestação específica. Assim,
distinguiu-se entre a impossibilidade em sentido estrito e as situações em que não é
razoável esperar que o devedor execute a prestação. Destarte, de acordo com o atual
§ 275 (II) do BGB, o devedor pode recusar-se a executar a prestação desde que isto
demande um esforço do devedor grosseiramente desproporcional ao interesse do
credor no cumprimento da obrigação; o que deve levar em consideração o conteúdo
da obrigação e as exigências da boa-fé. Ademais, na interpretação do que pode ser
razoavelmente exigido do devedor, deve-se levar em consideração se ele foi o respon-
sável pelo óbice ao cumprimento da obrigação ou não.54

50. Lobo, Paulo. Teoria geral das obrigações... cit., p. 90.


51. REsp 1.192.678/PR, j. 13.11.2012, rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino.
52. Barcellona, Pietro; Camardi, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napo-
li: Jovene Editore, 2002. p. 232.
53. Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 75.
54. Zimmermann, Reinhard. Breach of contract and remedies under the new german law of obli-
gations. Saggi, conferenze e seminari, n. 48 (2002). Roma: Centro di studi e ricerche di diritto
comparato e straniero, p. 12.

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112    direito contratual

Tais ilações guardam relação com a questão dos efeitos da boa-fé objetiva na
apreciação de um contrato de longa duração, no seio da jurisprudência do STJ, em
sede de controvérsia que versou sobre a contratação de seguro de vida.55 O segurado
mantinha contrato de seguro de vida com a seguradora há mais de 30 anos, me-
diante cláusula de renovação automática. Em 1999, o segurado optou por aderir às
condições gerais de uma apólice coletiva oferecida pela mesma seguradora, vigente a
partir do ano 2000. Também a apólice coletiva seguiu sendo renovada automatica-
mente daí por diante. Contudo, ao final do ano de 2006, a seguradora comunicou
ao segurado que não desejava mais renovar o seguro nos termos outrora pactuados,
ofertando em substituição três alternativas que foram consideradas desvantajosas
pelo segurado. Diante disto, o segurado promoveu ação contra a seguradora, alegan-
do em síntese o seguinte: a) em vista do pagamento regular do prêmio do seguro,
restava obstado o direito da seguradora de rescindir ou modificar unilateralmente o
contrato; b) a Circular 302/2005, da Susep, terminar por violar a ato jurídico per-
feito, vez que permite a não renovação de apólices de seguro desde que observado o
pressuposta da prévia notificação; c) a boa-fé objetiva impede a alteração repentina
das condições de renovação da avença.
Em sede de contestação, a seguradora aduziu os seguintes argumentos: a) as
diversas transformações econômicas ocorridas no Brasil impedem que mantenha-
-se os seguros de vida sob o mesmo regime desde os anos de 1970, marco inicial da
série de seguros a que aderiu o autor; b) o Código Civil vigente, em harmonia com
tais transformações econômicas, restringiu a renovação automática de contratos
de seguro a apenas uma vez (art. 774 do CC/2002); c) as perdas econômicas su-
portadas pela seguradora, em face da permanência do antigo sistema de renovação
dos seguros, forçaram a seguradora a reduzir o seu capital social em mais de 200
milhões de reais; d) os contratos de seguro são anuais, e não vitalícios; de modo que
o segurado e a seguradora têm o direito de optar por rejeitar a renovação, sem que
isto configure rompimento do contrato; e) o aumento do seguro de vida, diante da
mudança de faixa etária do segurado, tem por fundamento a Circular 317/06, da
Susep; f ) o comportamento da seguradora no sentido de promover a rescisão do
contrato não resulta em violação às normas de proteção e defesa do consumidor,
pois se fundamenta no exercício do direito de liberdade contratual conferido à
seguradora; g) ao promover o aumento do prêmio do seguro, a seguradora bus-
cou impedir a transferência de todos os encargos advindos da alteração do cálculo
atuarial do seguro, levando em consideração um programa de readequação mais
favorável ao autor.
O juízo de 1º grau julgou improcedente o pedido formulado pelo autor. Entre
outras razões, asseverou que ao consumidor não é assegurado o direito adquirido e
perpétuo à renovação automática do contrato, de modo que a seguradora – lastreada
no princípio da liberdade contratual -, pode modificar as condições dos contratos

55. Cf.: RESP 1.073.595-MG.

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Capítulo 2 – Boa-fé objetiva  |  113

ofertados ao mercado de consumo, tendo em vista a preservação do equilíbrio do


contrato. Insatisfeito com o deslinde da demanda, o autor atacou a decisão com a
interposição de recurso de apelação; mas, o Tribunal de Justiça negou provimento
ao recurso, ao argumento de que não houve abusividade na conduta da seguradora,
vez que o contrato de seguro assegurava o direito à não renovação da apólice pelas
partes, desde que houvesse aviso prévio de 30 dias.
Contrariado, o autor interpôs recurso especial. A Min. Nancy Andrighi, rela-
tora designada para a análise do recurso, aduziu que não se pode perder de vista que
o contrato em questão possui as características dos chamados contratos relacionais,
ou contratos cativos de longa duração. Em tais contratos, deve-se ter em mira não
somente os direitos e deveres que constam expressamente no instrumento negocial,
mas também os chamados deveres anexos, que também vinculam as partes, ainda
que à falta de previsão específica. Impõe-se, portanto, a realização dos deveres de
cooperação, solidariedade, boa-fé objetiva e de proteção da confiança; a incidir
não apenas durante a conclusão do contrato, mas também na fase pré-contratual
e após o desfazimento do acordo de vontades. Para a Min. Nancy Andrighi, traço
característico dos contratos relacionais diz respeito ao fato do consumidor, após
longos anos de permanência em uma relação jurídica complexa, termina por se
expor de tal forma que se torna um cliente “cativo” do fornecedor, pois se reduz a
uma situação de dependência quanto a preservação da relação contratual. Assim,
o consumidor terminaria por aceitar com mais facilidade quaisquer novas condi-
ções impostas pelo fornecedor, no afã de manter o vínculo. O contrato celebrado
entre o segurado e a seguradora apresentaria tais traços característicos dos contra-
tos cativos ou relacionais, portanto. Disto resulta que a seguradora não pode ser
obrigada a suportar sozinha os prejuízos decorrentes das alterações econômicas e
sociais sofridas ao longo de 30 anos. O dever de cooperação impõe ao consumidor
o dever de colaborar com a seguradora, com o fito de contribuir para a preservação
do vínculo contratual.
Contudo, no entender da Min. Nancy Andrighi, “não é razoável imaginar que,
de um ano para o outro, a seguradora teve uma ‘súbita’ constatação de que amargava
prejuízos em sua carteira de seguros de vida, justificando a completa modificação
do sistema anterior de forma abrupta”. In casu, a seguradora deve responder por
não haver sido diligente na verificação do desequilíbrio em sua carteira, de modo a
estabelecer com o consumidor um programa de escalonamento, a fim de minimizar
as disparidades. O dever de boa-fé objetiva impõe, portanto, que se evite mudan-
ças bruscas que impeçam o cumprimento razoável das obrigações. Os aumentos
relacionados ao prêmio do seguro, bem como eventuais reduções na cobertura se-
curitária; devem ser informados com bastante antecipação ao consumidor, além de
observaram um processo escalonado e lento. Com isto, o consumidor poderia se
preparar para as mudanças a serem empreendidas, além de poder colaborar com
a seguradora no que toca ao prejuízos sofridos pela empresa, na medida dos seus
recursos financeiros.

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114    direito contratual

Como não houve a oferta ao consumidor de tal proposta de escalonamento


pela seguradora, nos termos do voto da Ministra relatora, interpretou-se que a resili-
ção unilateral não poderia prevalecer porquanto fosse exercida em desconformidade
com os limites impostos pela boa-fé objetiva; pelo que determinou o reestabeleci-
mento imediato a apólice de seguro. 56

56. REsp 1.073.595/MG, j. 23.03.2011, rel. Min. Nancy Andrighi.

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