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Editores: Danielle Candido de Oliveira, Elisabeth Bianchi, Flávio Viana Filho, Henderson Fiirst e Iviê Adolfo de Macedo Loureiro Gomes
Editorial
Coordenação
Juliana De Cicco Bianco
Analistas Documentais: Bruno Martins Costa, Cristiane Gonzalez Basile de Faria e Rodrigo Domiciano de Oliveira
Coordenação Administrativa
Renata Costa Palma e Rosangela Maria dos Santos
Equipe de Jurisprudência
Coordenação
Luiz Carlos de Souza Auricchio
Editoração Eletrônica
Coordenação
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Equipe de Editoração: Adriana Martins, Carolina do Prado Fatel, Gabriel Bratti Costa, Ladislau Francisco de Lima Neto,
Luciana Pereira dos Santos, Luiz Fernando Romeu e Vera Lúcia Cirino
Produção Gráfica
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Impresso no Brasil [10.2013]
Profissional
Fechamento desta edição: [10.10.2013]
ISBN 978-85-203-4979-3
ISBN Coleção 978-85-203-4982-3
A contraposição entre common law e civil law cedeu lugar à ideia de que estes
sistemas constituem dois aspectos de uma mesma e grande tradição jurídica oci-
dental. Mas o civil law e o common law, tendo surgido em circunstâncias políticas e
culturais diferentes, fizeram surgir tradições jurídicas particulares, caracterizadas por
institutos e conceitos próprios.
A tradição do civil law baseia-se em dogmas, próprios à Revolução Francesa,
que negam postulados que paulatinamente foram sendo fixados durante a transfor-
mação da realidade social e do conteúdo dos Estados que se formaram a partir da
doutrina da separação estrita entre os poderes e da mera declaração judicial da lei.
Contudo, apesar das mudanças que se operaram no âmbito do civil law – inclusive
nas concepções de direito e de jurisdição, marcadamente em virtude do impacto do
constitucionalismo –, há ainda grande resistência – para não se dizer indiferença –
a institutos do common law de fundamental importância ao aperfeiçoamento dos
sistemas judiciais de civil law.
Lembre-se que, embora a autoridade dos precedentes tenha sido fundamental
para o desenvolvimento do common law, o stare decisis – isto é, a eficácia vinculante
dos precedentes – tem sustentação na igualdade e na segurança jurídica. Ainda que
seja costume pensar o stare decisis como aspecto indissociável do common law, a verda-
de é que o primeiro surgiu no curso do desenvolvimento do segundo para, sobretudo,
propiciar a igualdade de todos perante o direito produzido pelas Cortes. Também
é equivocado imaginar que o stare decisis – ou a eficácia vinculante dos preceden-
tes – existe ou tem razão de ser apenas onde o juiz “cria” o direito. Em tempos
recentes,como adverte MacCormick – especialmente em Rethoric and the rule of
law –, mesmo nos países do common law, “direito jurisprudencial puro é relativa-
mente raro. Muito do direito jurisprudencial agora toma a forma de interpretações
explicativas (glosses) da lei”.1 Aliás, considerando-se a hoje fantasiosa suposição de
que o stare decisis existe em decorrência da inação do Legislativo, convém constatar
que, por exemplo, não há déficit de legislação nos Estados Unidos. Ao contrário,
1. MacCormick, Neil. Rethoric and the rule of law – A theory of legal reasoning. New York: Oxford
University Press, 2005. p. 247.
vários Estados americanos têm mais normas legais que muitos países de civil law.2
De modo que é descabida a alegação de que o precedente tem força vinculante por
falta de atuação do legislador.
De outra parte, a tradição do civil law, ancorada nas razões da Revolução Fran-
cesa, foi completamente descaracterizada com o passar do tempo. O juiz, inicial-
mente proibido de interpretar a lei, passou a paulatinamente interpretá-la, logo
caindo em desuso as comissões legislativas, instituídas para resolver as dúvidas de
interpretação, e, logo após, a primeira feição da Cassação, delineada como órgão de
natureza não jurisdicional para cassar as interpretações judiciais incorretas.
A evolução do civil law é a história da superação de uma ideia instituída para
viabilizar a realização de um desejo revolucionário, e que, portanto, nasceu com a
marca da utopia. Como ideologia, esta noção manteve-se viva ainda que a evolução
do civil law a descaracterizasse. A força do constitucionalismo e a atuação judicial
mediante a concretização das regras abertas fez surgir um modelo de juiz comple-
tamente distinto do desejado pela tradição do civil law. A evolução da teoria da in-
terpretação permitiu ver que de um texto legal é possível legitimamente extrair mais
de um significado, o que conduziu à dissociação entre texto legal e norma jurídica.3
As tradicionais Cortes Superiores de civil law - ligadas ao controle da legalidade –
sucumbem quando se admite que a interpretação jamais terá capacidade de revelar
o “sentido exato da lei”, mas apenas de atribuir-lhe significado legitimado por uma
“justificativa apropriada”. É nesse instante que os Tribunais Superiores corporificam
a essência de Corte de Interpretação, a quem cabe atribuir sentido ao Direito me-
diante “razões idôneas”, desenvolvendo-o de acordo com a evolução da sociedade.
2. Merrymann John Henry; Pérez-Perdomo, Rogelio. The civil law tradition: an introduction
to the legal systems of Europe and Latin America. Stanford: Stanford University Press, 2007, p.
65 e ss.
3. Ao contrário do que sustenta o formalismo teórico, as palavras da lei não têm um sentido próprio;
inexiste significado intrínseco ao texto legal. Assim, não cabe simplesmente averiguar a lei para
descrever a norma. A norma não está no texto legal; não há uma relação de sinonímia entre o
texto legal e o resultado obtido com a atividade interpretativa. O sentido, e não o texto, constitui
a norma, compreendida essa como o significado que é tomado em conta pelo juiz ao decidir. De
acordo com Guastini, “l’operazione intellettuale che conduce dall’enunciato al significato – o,
se si preferisce, l’operazione di identifcazione del significato – altro non è che l’interpretazione.
La disposizione è dunque l ‘oggetto dell’interpretazione, la norma è il suo risultato. O, detto
altrimenti, ‘la disposizione è fonte della norma attraverso l ‘interpretazione”. (Guastini,
Riccardo. Interpretare e argomentare, Milano: Giuffrè, 2011, p. 63 e 64). V. Tarello, Giovanni.
L‘interpretazione della legge. Milano: Giuffrè, 1980, p. 61, 63 e 64; Guastini, Riccardo. Se i
giudici creino diritto. Istituzioni e dinamiche del diritto. Milano: Giuffrè, 2009, p. 395; Jori,
Mario e Pintore, Anna. Manuale di teoria generale del diritto. Torino: Giappichelli, 1995. p. 205
e ss; Dicioti, Enrico. Interpretazione della legge e discorso razionale. Torino: Giappichelli, 1999,
p. 200 e ss; Sacco, Rodolfo. Interpretazione del diritto. Dato oggettivo e spirito dell’interprete.
Diritto, giustizia e interpretazione. Roma/Bari: Laterza, 1998. p. 111 e ss.
4. “Sin adoptar posturas extremas, reconecemos con Carrió, que afirmar que los jueces crean de-
recho es una expressíon ambigua; quizá sea esa ambigüedad la que possibilite el amplio con-
senso existente hoy en día al respecto. Pensamos, sin embargo, que se trata sólo de un consenso
aparente, pues el significante ‘los jueces crean derecho’ encierra múltiples significados que dan
lugar a las más diversas concepciones de la actividad judicial. Desde quienes pretenden asimilar
la actividad de los jueces a la de los legisladores hasta aquellos que hablan de creatividad judicial
en su sentido más débil como una dimensíon necesaria en la tarea de decidir. Como ni uno no
otro extremo nos ofrecen un modelo de actividad judicial que resista su comparacíon con la
realidad, creemos por el contrario que cierto grado de creacíon del derecho es inevitable y que en
instancias tales como el Tribunal Constitucional y el Tribunal Supremo la creatividad judicial se
asimilia a la función del legislador en lo que se ha venido llamando legislación negativa”. (Gil,
Ernesto J. Vidal; Pascual, Cristina García. Creacion Judicial del Derecho. Sentido y razón del dere-
cho – enfoques socio-juridicos para la sociedad democrática. Madrid: Hacer Editorial, 1992. p. 145-
146). V. Carriò, Genaro. Notas sobre derecho y lenguaje. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1979.
p. 24-51; Tarello, Giovanni. Il “problema” dell’interpretazione: una formulazione ambigua,
Rivista Internazionale di Filosofia del Diritto, 1966. p. 355.
5. Wróblewski, Jerzy. Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics
and in Law. Law and Philosophy, 1988. p. 325.
6. Wróblewski, Jerzy. Transparency and doubt. Understanding and interpretation in pragmatics
and in Law. Law and Philosophy, 1988. p. 325.
7. Shapiro, M., Stability and change in judicial decision-making: incrementalism or stare decisis?
In Law and the behavioral sciences. Indianápolis-Kansas-Nova Iorque: Ed. L. M. Friedman & S.
Macaulay, 1977.
11. Sobre a noção de ratio decidendi, ver Marinoni, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 3. ed.
São Paulo: Ed. RT, 2013. Parte 3, itens 1, 2 e 3.
12. A respeito das pautas para a indentificação da ratio decidendi ou dos fundamentos determinan-
tes dos precedentes, ver Marinoni, Luiz Guilherme. O STJ enquanto Corte de precedentes. São
Paulo: Ed. RT, 2013. Parte 3, item 3.
Apresentação da Editora....................................................................................................................................... 5
Nota do Diretor....................................................................................................................................................... 7
Sobre o Diretor........................................................................................................................................................ 13
Direito contratual
Existe como que um Zeitgeist jusprivatista que opta pelo retorno aos códigos
civis, mas não para aqueles mesmos códigos oitocentistas e supostamente “plenos”;
mas sim para códigos amplamente aparelhados por cláusulas gerais. A boa-fé obje-
tiva contratual, indubitavelmente, é uma das mais notáveis cláusulas gerais postas
hoje à disposição do jurista. As cláusulas gerais, já presentes nas codificações do
século XIX, têm a função de preservar o sistema e compensar a rigidez das regras
excessivamente abstratas, técnicas e especializadas; bem como de oferecer um con-
traponto ao conceitualismo. As cláusulas gerais, então, atuam como espécies de
“válvulas de segurança” em prol da flexibilização de certas regras, adaptando-as para
a obtenção de soluções mais eficientes diante dos casos concretos.1
No mesmo sentido, pode-se dizer ainda que cláusulas gerais (tais como a da
boa-fé objetiva) realizam funções supostamente “assistêmicas”, porquanto permi-
tam construções jurídicas não previstas pelo legislador. É por isto que a boa-fé (as-
sim como as demais cláusulas gerais) funciona como uma regra de “calibração”,
pois ela – assim como se dá com o “termostato da geladeira” – permite a adaptação
das situações jurídicas às circunstâncias, evitando que o sistema incorra em disfun-
ção.2 Ademais, a agilidade das trocas realizadas no ambiente do mercado demanda
expedientes tais como as cláusulas gerais, porquanto permitam que os particulares
“atuem sem a necessidade de a toda hora submeter-se ou aguardar a criação de lei
específica regulando o ato”.3
Esta valorização das cláusulas gerais resulta, também, em uma valorização de
doutrina de direito civil. Nos sistemas romano-germânicos, a doutrina sempre de-
sempenhou uma função fundamental: a de intérprete “natural” da lei, a atuar sobre
o conjunto da comunidade jurídica com um magistério que assume uma posição
privilegiada nos momentos que precedem as codificações.4
Contudo, os juristas sempre encararam as cláusulas gerais com reserva, devido
à “inevitável indeterminação do conteúdo” e ao receio de uma indevida interven-
ção do Estado-juiz nas relações privadas; receio este que já foi mais exacerbado em
épocas pretéritas de predomínio do individualismo liberal. Entretanto, o estado de
permanente mudança social, a imperativa realização da função social dos institutos
jurídicos e a necessidade de um tratamento adequado para o fenômeno da massifi-
1. Pasa, Barbara. Old terms for new concepts in consumer contracts? Jean Monet Working Paper. n.
09 (2007). New York: NYU School of Law, p. 12-13.
2. Castro Junior, Torquato da Silva. A “regra de calibração” da boa-fé enquanto ruptura sistêmica:
crítica à doutrina de Pontes de Miranda. In: Costa Filho, Venceslau Tavares; Castro Junior,
Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil. Recife: Nossa Livraria, 2011. vol. I.
p. 97.
3. Costa Filho, Venceslau Tavares. A morte e a morte da concepção sistemática do direito privado.
Abertura hermenêutica, tópica e cláusulas gerais. Revista de Informação Legislativa. a. 48. n. 189
(jan.-mar. 2011). Brasília: Senado Federal, p. 151.
4. Zenati-Castaing, Frédéric. La proposition de refonte du livre II du code civil: etude critique.
Revue trimestrielle de droit civil, n. 2 (avril-juin 2009). Paris: Dalloz, p. 212.
cação contratual e das assimetrias negociais; fazem com que as cláusulas gerais apre-
sentem-se como “ferramentas hermenêuticas indispensáveis e imprescindíveis”.5
A ascensão das cláusulas gerais como um expediente jurídico desejável nos có-
digos fez surgir um acalorado debate sobre os limites no uso destes instrumentos,
especialmente quando permitem o controle do conteúdo dos contratos. Até mesmo
porque um das questões cruciais do direito obrigacional contemporâneo reside, exa-
tamente, no tratamento que será dispensado à liberdade contratual, tida como “peça-
-chave” em uma economia de livre mercado. O problema está na legitimação desta
liberdade, porquanto se saiba que os contratantes não negociam necessariamente em
condições de igualdade. Assim, recorre-se a cláusulas gerais (como a da boa-fé, por
exemplo) para restringir a liberdade de contratar, em face da assimetria de informação.6
Ora, pode-se afirmar que o direito dos contratos está assentado basicamente
sob dois pilares fundamentais: a autonomia privada e a confiança. O ordenamento
jurídico conferiu aos particulares a prerrogativa de proceder a modelagem de certas
relações jurídicas, em um dado âmbito restrito. A autonomia privada consistirá jus-
tamente no direito conferido aos particulares de participar diretamente da formação
de suas obrigações e direitos, que serão geralmente impostos em razão da celebração
de contratos, mas também pela celebração de negócios jurídicos unilaterais.7 A tute-
la da autonomia privada assegura, portanto, que o contrato vincule as partes apenas
naquilo que foi efetivamente querido pelos contratantes.8
Ao lado do respeito a autonomia privada como espaço de modelagem das re-
lações jurídicas dos cidadãos, deve caminhar a tutela da confiança. A confiança na
palavra dada é um princípio fundamental do direito dos contratos.9 A fidelidade (ou
respeito) à palavra dada integrará o fundamento da regra dos “pacta sunt servanda”,
ao qual se soma a veracidade, que exclui o engodo da vida contratual. Tais elementos
fundamentam a confiança no comportamento do outro e na fé em relação ao que se
prometeu; de modo que são essenciais ao desenvolvimento pleno do tráfico negocial.10
5. Lôbo, Paulo Luiz Netto. Condições gerais dos contratos e o Código Civil. In: Costa Filho,
Venceslau Tavares; Castro Junior, Torquato da Silva (coords.). A modernização do direito civil:
volume I. Recife: Nossa Livraria, 2011, p. 145-146.
6. Dauner-Lieb, Barbara. Vers un droit européen des obligations? Enseignements tirés de la ré-
forme allemande du droit des obligations. Revue international de droit comparé, a. 56, n. 3 (Juil-
let-Septembre 2004). Paris: CNRS/Société de législation compare, p. 565.
7. Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 71.
8. Barcellona, Pietro; Camardi, Carmelita. Le istituzioni del diritto privato contemporaneo. Napo-
li: Jovene Editore, 2002. p. 203.
9. Zippelius, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Trad. Gercélia Batista de Oliveira Mendes.
Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 72.
10. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p.
146.
11. Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 132.
12. Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de direito privado – Parte Geral. 2. ed. Rio de
Janeiro: Borsoi, 1954, § 327, vol. III. p. 331-332.
13. Enneccerus, Ludwig; Nipperdey, Hans Carl. Derecho Civil (Parte General). Barcelona: Bosch,
1943. Volumen Primero. p. 216.
14. Noronha, Fernando. Op. cit., p. 155.
15. REsp 1.063.343/RS, j. 12.08.2009, rel. p/ o acórdão Min. João Otávio de Noronha.
16. Miranda, Francisco Cavalcanti Pontes de. Op. cit., p. 53.
17. Idem, t. XLIV, p. 418.
18. Idem, t. XLIV, p. 420.
explícita). Até mesmo porque não se pode olvidar que a aplicação da boa-fé objetiva
não poderá ser obstada por convenção firmada entre as partes contratantes.24
Neste diapasão, decidiu o STJ sobre a desnecessidade da mediação do acordo
de vontades para a incidência dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva. O Minis-
tro relator erigiu o seu raciocínio tomando por base a presença da ordem pública
e do interesse social nas normas de proteção e defesa do consumidor. Isto faz com
que tais normas reputem-se “indisponíveis e inafastáveis, pois resguardam valores
básicos e fundamentais da ordem jurídica do Estado Social, daí a impossibilidade
de o consumidor delas abrir mão ex ante e no Atacado”. Ora, o direito à informa-
ção é uma expressão concreta dos princípios da Transparência, da Boa-fé objetiva
e da Confiança nas relações de consumo. O dever de informação que se impõe aos
fornecedores, contudo, não deve levar em consideração apenas o homem médio, ou
a generalidade dos consumidores. Assim, tal dever se aprofunda em relação aos cha-
mados hipervulneráveis, a exemplo da necessidade de advertir sobre a presença do
glúten em determinados produtos e seus efeitos indesejáveis para os portadores de
doença celíaca; ainda que tal elemento não seja prejudicial ao grosso da população.25
Parece-nos que tal entendimento se coaduna, também, com o atual estágio de
desenvolvimento da ciência jurídica alemã, após a ampla reforma empreendida no
âmbito do direito obrigacional.26 Além de alterar as regras sobre a prescrição, a pro-
teção do consumidor, e diversos tipos contratuais; o Código Civil alemão passou a
referir a uma série de situações compreendidas no que se convencionou chamar de
Recht der Leistungsstörungen. Menezes Cordeiro traduziu a expressão por “Direito da
perturbação das prestações”.27
Todavia, consideramos atualmente que esta expressão é demasiadamente
equívoca, apesar de já havermos referido à ela em outro escrito (mas sem qualquer
crítica);28 não obstante o fato da tradução de Menezes Cordeiro ser mais próxima de
uma tradução literal , já que leistung pode ser traduzida como prestação, e o verbo
stören pode ter o sentido de perturbar, ou interferir. Pensamos ser mais adequa-
do traduzir por “Direito da perturbação no desempenho”. Isto porque a expressão
24. Lobo, Paulo. Teoria geral das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 77-80.
25. REsp 586.316/MG, j. 17.04.2007, rel. Min. Herman Benjamin.
26. Pedimos vênia para indicar a leitura de alguns dos nossos estudos sobre a mencionada reforma
legislativa: a) Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para a modernização do
direito das obrigações na Alemanha. Revista de Direito Privado. vol. 45. São Paulo: Ed. RT,
jan.-mar. 2011; b) Costa Filho, Venceslau Tavares. Sobre a prescrição e a boa-fé no exercício
da pretensão executiva: breves reflexões a partir da reforma do direito obrigacional alemão. In:
Adonias, Antonio; Didier Jr., Fredie; Cunha, Leonardo Carneiro da (coords.). Execução e
Cautelar – Estudos em homenagem a José de Moura Rocha. Salvador: Juspodivm, 2012.
27. Cordeiro, António Menezes. Da modernização do direito civil, I volume (aspectos gerais). Coim-
bra: Almedina, 2004. p. 100.
28. Costa Filho, Venceslau Tavares. Alguns aspectos da lei para... cit.
33. REsp 1.051.065/AM, j. 21.02.2012, rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva.
dos direitos subjetivos, das ações, exceções, pretensões, etc. O titular do direito não
pode exceder os limites fixados pela boa-fé, sob pena de incorrer na prática de ato
ilícito (art. 187 do CC/2002).34
Os eventuais direitos e deveres impostos em virtude do contrato podem so-
frer limitações quanto ao exercício tendo em vista os lindes da boa-fé objetiva. No
sentido de explicitar o alcance da relação jurídica obrigacional, especialmente no
tocante aos deveres de lealdade e boa-fé; o legislador alemão promoveu o acréscimo
do seguinte dispositivo no § 241 do Código Civil alemão (BGB): “Pode a relação
obrigacional, de acordo com o seu conteúdo, vincular qualquer das partes a ter o
especial apreço pelos direitos, bens jurídicos e interesses da outra”.
Disto resulta um dever de lealdade, compreendida como “permanente orien-
tação até a alma do outro” (dauernde Hinwendung zur Seele eines andern), a vedar
toda astúcia malévola, todo o dolo; e obriga a levar em consideração os interesses
do outro pólo da relação jurídica. Decorre daí, portanto, um conjunto de deveres
pertinentes à lealdade e boa-fé a incidir sobre as relações jurídicas em geral, a des-
peito do regramento contratual ou de declarações de vontade em sentido diverso.35
Este dever de considerar os interesses do outro contratante, rompe o antigo
paradigma do contrato como uma espécie de relação onde se verifica a presença de
interesses antagônicos, ou ainda, como relação na qual os contratantes só se pre-
ocupam com os seus próprios interesses. Torquato Castro, antigo Catedrático de
Direito Civil da Faculdade de Direito do Recife e membro da comissão responsável
pelo anteprojeto que originou o Código Civil vigente, pode ser considerado um dos
primeiros civilistas nacionais a defender a necessidade de superação deste suposto
antagonismo. Tal antagonismo deve ceder espaço para o que ele chamava de “visão
global da obrigação”, que impunha a necessidade de coordenação dos interesses do
credor e do dever para a realização de um só interesse considerado comum a ambos:
a realização da prestação.36
Neste sentido, o STJ pacificou a sua jurisprudência tendo em vista a boa-fé
objetiva e sua função de controle. Trata-se do Enunciado 308 da Súmula de Juris-
prudência dominante do STJ: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente
financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não
tem eficácia perante os adquirentes do imóvel”. Sem sombra de dúvida, um dos
principais fundamentos doutrinários deste enunciado repousa na teoria das redes
contratuais, formulada por Rodrigo Xavier Leonardo. Anos antes da aprovação do
34. Noronha, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada,
boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 167.
35. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950, p.
146-147.
36. Castro, Torquato. Prefácio. In: Costa Júnior, Olímpio. A relação jurídica obrigacional: situa-
ção, relação e obrigações em direito. São Paulo: Saraiva: 1994, p. XVI.
37. Leonardo, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: Ed. RT, 2003.
p. 190-191.
38. Idem, p. 194.
39. REsp 436.853/DF, j. 04.05.2006, rel. Min. Nancy Andrighi.
40. Coing, Helmut. Grundzüge der rechtsphilosophie. Berlin: Walter de Gruyter & Co., 1950. p.
183.
com ela. Isto, como escreve Crome, se contradiria com a circunstância de que ele
mesmo desposou a mãe. Exclue-se, pois, a exceção pela presunção de causalidade
das relações sexuais da mãe com o seu posterior marido”.44
Tal supressão da exceção de diversos coabitadores, nos termos formulados por
Soriano Neto, decorre do princípio da confiança, de modo a preservar a situação
de confiança legitimamente gerada. No venire contra factum proprium está um im-
perativo de coerência, pois impede “que se aja em determinado momento de uma
certa maneira e, ulteriormente, adote-se um comportamento que frustra, vá contra
aquela conduta tomada em primeiro lugar”.45
Este comportamento alheio a despertar a confiança pode se traduzir em reite-
radas ações ou omissões. Em Portugal, fala-se em supressio e surrectio. Na Alemanha,
em Verwirkung e Erwirkung. A supressio, ou preclusão, diz respeito à “supressão de
determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo”. Já a surrectio alude ao
aparecimento “de uma situação de vantagem em virtude de não ter sido feita qual-
quer oposição à situação fática verificada por um determinado período de tempo”.
Está-se diante, portanto, de uma forma de repercussão do tempo nas situações ju-
rídicas.46
Na Alemanha, devido à largueza dos prazos vigentes antes da reforma de
2001/2002, adotou-se a figura da Verwirkung (ou supressio) nos casos em que o
detentor de uma pretensão resta impedido de fazer uso dela em face de um retardo
de décadas no tocante ao exercício da pretensão, o que faz surgir no devedor a ex-
pectativa legítima de que não mais será demandado.
O STJ também já se pronunciou sobre o tema da suppressio. Trata-se de Re-
curso Especial no qual se discute sobre a interpretação de cláusula constante de
convenção de condomínio que determina o uso estritamente comercial das unida-
des condominiais, diante do fato da aceitação da destinação mista pela coletividade
dos condôminos e pelo próprio condomínio. Um dos residentes no condomínio,
incomodado com os ruídos provenientes da câmara frigorífica de um supermercado
que se estabeleceu no Condomínio, ajuizou demanda requerendo a cessação das
interferências prejudiciais e a percepção de indenização por danos morais. Contudo,
o exercício das posições jurídicas encontra-se limitada pela boa-fé objetiva. Assim,
concluiu-se que o condômino não pode exercer suas pretensões de forma desar-
razoada ou excessiva, no intuito de prejudicar o vizinho. A cláusula constante de
44. Souza Neto, José Soriano de. Eficácia da legitimação por subseqüente matrimônio e ação do
filho legitimado para investigar paternidade diferente da resultante da legitimação. Revista Aca-
dêmica, ano LVIII (1951-1956). Recife: Universidade do Recife, p. 301.
45. Duarte, Ronnie Preuss. A cláusula geral da boa-fé no novo código civil brasileiro. In: Delgado,
Mário Luiz; Alves, Jones Figueirêdo. Questões controvertidas no novo Código Civil. Série grandes
temas de direito privado. São Paulo: Método, 2004. vol. 2. p. 425.
46. Idem, p. 427.
Um instituto que se aproxima do dever de não agir contra os próprios atos cor-
responde ao brocardo do Tu quoque. Neste caso, a boa-fé objetiva impede que uma
pessoa que violou determinada regra possa exigir de outra o cumprimento dela.50 A
jurisprudência do STJ já fez alusão à tal impossibilidade de alegação do vício pelo
contratante que deu causa a ele. No caso em concreto, questionava-se a validade
da aposição de assinatura escaneada em nota promissória. O STJ considerou que a
assinatura de próprio punho pelo emitente da nota promissória constituiria pres-
suposto de existência e validade deste negócio jurídico. Somente a lei poderia criar
outras formas de assinatura. Entretanto, inexiste lei dispondo sobre a validade da
assinatura escaneada no Brasil. Contudo, verifica-se que tal assinatura escaneada foi
aposta na cártula pelo próprio emitente. O dever de boa-fé objetiva evidenciado no
brocardo latino Tu quoque impede que o violador de uma norma invoque a mesma
norma outrora violada por ele com o fito de beneficiar-se do descumprimento, ou a
fim de exercer a situação jurídica que essa norma lhe tivesse atribuído.51
Por fim, mas não menos importante, é de se considerar que a boa-fé objetiva
impõe o dever de cumprir o que foi prometido no contrato. Todavia, os contratos
devem ser interpretados e cumpridos conforme a boa-fé.52 Esta noção de boa-fé
impõe, por outro lado, a desnecessidade de cumprimento do contrato “quando
as circunstâncias de fato que fundamentaram o contrato se alteraram ao ponto do
cumprimento da promessa, como tal, não pode ser esperado, em conformidade com
o princípio da boa-fé”.53
Na Alemanha – após a revisão do BGB –, esclareceu-se mais quanto às situa-
ções que permitem a exclusão do direito à execução da prestação específica. Assim,
distinguiu-se entre a impossibilidade em sentido estrito e as situações em que não é
razoável esperar que o devedor execute a prestação. Destarte, de acordo com o atual
§ 275 (II) do BGB, o devedor pode recusar-se a executar a prestação desde que isto
demande um esforço do devedor grosseiramente desproporcional ao interesse do
credor no cumprimento da obrigação; o que deve levar em consideração o conteúdo
da obrigação e as exigências da boa-fé. Ademais, na interpretação do que pode ser
razoavelmente exigido do devedor, deve-se levar em consideração se ele foi o respon-
sável pelo óbice ao cumprimento da obrigação ou não.54
Tais ilações guardam relação com a questão dos efeitos da boa-fé objetiva na
apreciação de um contrato de longa duração, no seio da jurisprudência do STJ, em
sede de controvérsia que versou sobre a contratação de seguro de vida.55 O segurado
mantinha contrato de seguro de vida com a seguradora há mais de 30 anos, me-
diante cláusula de renovação automática. Em 1999, o segurado optou por aderir às
condições gerais de uma apólice coletiva oferecida pela mesma seguradora, vigente a
partir do ano 2000. Também a apólice coletiva seguiu sendo renovada automatica-
mente daí por diante. Contudo, ao final do ano de 2006, a seguradora comunicou
ao segurado que não desejava mais renovar o seguro nos termos outrora pactuados,
ofertando em substituição três alternativas que foram consideradas desvantajosas
pelo segurado. Diante disto, o segurado promoveu ação contra a seguradora, alegan-
do em síntese o seguinte: a) em vista do pagamento regular do prêmio do seguro,
restava obstado o direito da seguradora de rescindir ou modificar unilateralmente o
contrato; b) a Circular 302/2005, da Susep, terminar por violar a ato jurídico per-
feito, vez que permite a não renovação de apólices de seguro desde que observado o
pressuposta da prévia notificação; c) a boa-fé objetiva impede a alteração repentina
das condições de renovação da avença.
Em sede de contestação, a seguradora aduziu os seguintes argumentos: a) as
diversas transformações econômicas ocorridas no Brasil impedem que mantenha-
-se os seguros de vida sob o mesmo regime desde os anos de 1970, marco inicial da
série de seguros a que aderiu o autor; b) o Código Civil vigente, em harmonia com
tais transformações econômicas, restringiu a renovação automática de contratos
de seguro a apenas uma vez (art. 774 do CC/2002); c) as perdas econômicas su-
portadas pela seguradora, em face da permanência do antigo sistema de renovação
dos seguros, forçaram a seguradora a reduzir o seu capital social em mais de 200
milhões de reais; d) os contratos de seguro são anuais, e não vitalícios; de modo que
o segurado e a seguradora têm o direito de optar por rejeitar a renovação, sem que
isto configure rompimento do contrato; e) o aumento do seguro de vida, diante da
mudança de faixa etária do segurado, tem por fundamento a Circular 317/06, da
Susep; f ) o comportamento da seguradora no sentido de promover a rescisão do
contrato não resulta em violação às normas de proteção e defesa do consumidor,
pois se fundamenta no exercício do direito de liberdade contratual conferido à
seguradora; g) ao promover o aumento do prêmio do seguro, a seguradora bus-
cou impedir a transferência de todos os encargos advindos da alteração do cálculo
atuarial do seguro, levando em consideração um programa de readequação mais
favorável ao autor.
O juízo de 1º grau julgou improcedente o pedido formulado pelo autor. Entre
outras razões, asseverou que ao consumidor não é assegurado o direito adquirido e
perpétuo à renovação automática do contrato, de modo que a seguradora – lastreada
no princípio da liberdade contratual -, pode modificar as condições dos contratos