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Educação: fxperiêncio e Sent'1do

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Jorge Larrosa

Tradução de Cynthia Farina

Linguage1n e Educação
depois de Babel
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Aurentic::a
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ENSAIOS ERÓTICOS

Experiência e paixão

No combate entre você e o mundo, prefira o mundo.


Franz Kafka

Ir(
I,,, Costuma-se pensar a educação do ponto de vista da
relação entre ciência e tecnica ou, às vezes, do ponto de
vista da relação entre teoria e prática. Se o par ciência/téc-
nica remete a uma perspectiva positivista e coisificadora, o
par teoria/prática remete sobretudo a um<l perspectiva po-
lítica e critica. De fato, somente nesta última perspectiva
tem sentido a palavra "reflexão" e expressões como "refle-
xão crítica", "reflexão sobre a prát:ica ou na prática", "refle-
xão emancipadora" etc. Se na primeira :alternativa as pessoas
que trabalham em educação são construídas como sujeitos
técnicos que aplicam com maior ou menor eficácia as di-
versas tecnologias pedagógicas produzidas pelos cientistas,
pelos tecnólogos e pelos especialistas, na segunda alterna-
tiva essas mesmas pessoas aparecem como sujeitos críticos
que arinados de distintas estratégias reflexivas se compro-
metem, com maior ou menor êxito, com práticas educa-
tivas concebidas na maioria das vezes desde uma pers~
pectiva política.Tudo isso ésuficientemente conhecido, posto
que nas últimas décadas o campo pedagógico tem estado

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/ •
' Co•.EÇ.\O "EDJC.,cAo: éx'l"t"'" • SE~l'f!O" Ensoios er6ticos - Experiêncio e poixóo

escindido entre os chamados tecnólogos e os chamados uma ferramenta, mas que o homem é palavra, que o ho,
críticos, entre os partidc'irios da educação como ciência apli- mem é como palavra, que todo o humano tem a ver com
cada e os partidários da educação como práxis política, e a palavra, dá-se em palavra, está tecido de palavras, que o
não vou retomar a discussão. modo de viver próprio desse vivente que é o homem se dá
na palavra e como palavra. Por isso, ativldades como aten·
O que vou propor aqui é a exploração de outra possi-\
der às palavras, criticar as palavras, escolher as palavras,
bilidade, digamos que mais existencial (sem ser existen-
cuidar as p<1lavras, inventar palavras, jogar com as pala-
cialist<1) e mais estética {sem ser esteticisi::a), a saber: pensar ·.
vras, impor palavr<ls, proibir palavras, transformar pala-
~-ed~~ação valendo-se da e~ - · vras etc., não são atividades ocas ou vazias, não são mero
E·;~~- cO;; basellã~'O~vicção de que as palavras pro- palavrório, Quando fazemos coisas com as palavras, do
duzem sentido, criam realidades e às vezes funcionam que se trata é de como damos sentido ao que somos e ao
como potentes mecanismos de subjetivação. Eu creio n<r que nos acontece, de como juntamos as palavras e as coi-
poder das palavras, na força das palavras, em que fazemos sas, de como nomeamos o que vemos ou o que sentimos e
coisas com as palavras e também que as palavras fazem de como vemos ou sentimos o que nomeamos.
coisas conosco. As palavras determinam nosso pensamen- Nomear o que fazemos em educação ou em qualq'Lier
to porque não pensamos com pensamentos, mas com pa- outro lugar, como tE:cnica aplicada, como práxis reflexiva ou
lavras, não pensamos baseando-nos em nossa genialidade, como experiência, não é somente uma questão terminológi-
em nossa inteligência, mas valendo-nos de nossas palavras. ca. As palavras com que no1neamos o que somos, o que faze-
E pensar não é somente "raciocinar" ou "calcular" ou "ar- mos, o que pensamos, o que percebemos ou o que sentimos
gumentar", como nos tem sido ensinado algumas vezes, são mais do que simplesmente palavras. E por isso as lutas
mas é sobretudo d~r sentido ao que somos e ao que nos pelas palavras, pelo significado e pelo controle das palavras,
acontece. E isto, o sentido ou o sem-sentido, é algo que pe!a imposição de certas palavras e pelo silenciamento ou
tem a ver com as palavras. E portanto também tem a ver desativação de outras, são lutas em que se joga algo mais que
com as palavras o modo como nos colocamos diante de simplesmente palavras, algo mais que somente palavras.
nós mesmos, diunte dos outros e diante do mundo em que
vivemos. E o modo como agimos em relação a tudo isso.
Todo mundo sabe que Aristóteles definiu o homem como A destruição da experiência
zóon lógon échon. A tradução dessa expressão, porém, é
muito mais "vivente dotado de palavra" do que "animal Começarei com a palavra experiência. Poderíamos di·
dotado de razão" ou "animal racional~. Se há uma rradu· zer de início que a experiência é em espanhol "o que nos
ção que realmente trai no pior sentid; da palavra é justa· passa". Em português se diria que a experiência é "o que
mente essa de traduzir logos por ratio. E a tr:i.nsformação nos acontece"; em francês a experiência seria 1'ce que naus
de zôon, vivente, em animal. O homem é o vivente com arrive"; em italiano, "quello che nos succede", ou "quelo che
palavra. E isso não significa que o homem tenha a palavra nos accade"; em inglês, "that what is happening to us"; em
ou a linguagem como uma coisa ou uma faculdade, ou alemão, "was niir passiert".

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(OlfÇÁO "Eauuç;;o, Cxn~1!~C"' ! Sn·m~· Ensaios erólicos - E~periêncio e poixóo
'
A cx:periência é o que nos passa, ou o que nos aconte· Além disso, já ouvimos dizer que vivemos numa "socie-
cc, ou o que nos toca. Não o que passa ou o que acontece, dade de informação". E já nos demos conta de que essa estra·
ou o que toca, mas o que nos passa, o que nos acontece ou nha expressão funciona às vezes como sinônimo de "socie-
nos toca. A cada dia passam muitas coisas, porém, ao mes- dade do conhecimento" ou, até mesmo, de "sociedade de
mo tempo, quase nada nos passa. D ir-se-ia que tudo o que aprendizagem". Não deixa de ser curiosa a intercambiabilida-
passa está organizado para que nada nos passe. Walter Ben- de entre os termos "informação", "conhecimento" e "apren·
jamin, em um texto célebre, já certificava a pobreza de ex- dizagem". Como se o conhecimento se desse sob o modo da
periências que caracteriza o nosso mundo. Nunca se passa- informação e como se aprender não fosse outra coisa que
ram tantas coisas, mas a experiência é cada vez mais rara. adquirir e processar informação. E não deixa de ser interes-
Sftnte também que :is velh'1s metáforas organicistas do social,
Em primeiro lugar pelo excesso de informação. A infor-
que tantos jogos permitiram aos totalitarismos do século pas-
mação não éexperiência. E mais, a informação não deixa lugar
sado, estejam sendo substituídas por metáforas cognirivistas,
para a experiência, é quase o contrário d a experiência, quase
seguramente tamb?m totalitárias, ainda que revestidas agora
uma antiexperi&ncia. Por isso, a ênfase contemporânea na in-
de umLook liberal e democrático. Independentemente de que
formação, em estar informados e toda a retórica destinada a
seja urgente problematizar esse discurso que se está instalan-
conscituirmos como sujeitos informantes e informados, não
do sem crítica, a cada dia mais profundamente, e que pensa a
faz outra coisa que cancelar nossas possibilidades de experiên-
sociedade como um mecanismo de proces.~amento de infor-
cia. O sujeito da informação sabe muitas coisas, passa o tempo
mação, o que eu quero deixar apontado aqui é que uma soci-
buscando informação, o que mais lhe preocupa é não ter bas·
edade constituída sob o signo da informação é uma socieda-
tante informação, cada vez sabe mais, cada vez está melhor
de em que a experiência é impossível.
informado, porém, com essa obsessão pela informação e pelo
saber (mas saber não no sentido de "sabedoria", mas no senti- Em segundo lugar, a experiência é cada vez mais rara
do de e5tar informado), o que consegue é que nada lhe aconte- por excesso de opinião. O sujeito moderno é um sujeito
ça. A primeira coisa que gostaria de dizer sobre a experiência é informado que além disso opina. É alguém que tem uma
que há que separá-la da informação. E a primeira coisa que eu opinião supostamente pessoal e supostamente própria e
gostaria de dizer sobre o saber da experiência é que há que sepa- às vezes supostamente crítica sobre tudo o que se passa,
rá-lo de saber coisas, tal como se sabe quando se tem infor- sobre tudo aquilo do qual tem informação. Para nós, a
mação sobre as coisas, quando se está informado. É a língua opinião, como a informação, converteu-se em um impe-
mesma que nos dá essa possibilidade. Depois de assistir a uma rativo. Em nossa arrogância, passamos a vida opinando
aula ou a uma conferência, depois de ter lido um livro ou uma sobre qualquer coisa sobre a qual nos sentimos informa·
informação, depois de ter feito uma viagem ou de ter visitado dos. E se alguém não tem opinião, se não tem uma posi-
uma escola, podemos dizer que sabemos coisas que antes não ção própria sobre o que se passa, se não tem um julgamen-
sabíamos, que temos mais informação que antes sobre algu· to preparado sobre qualquer coisa que se lhe apresente)
ma coiSa, mas, ao mesmo tempo, podemos dizer também que sente-se em falso, como se lhe faltasse algo essencial. E pensa
nada nos passou, que nada nos tocou, que, com tudo o que que tem de ter uma opinião. Depois da informação vem a
aprendemos, nada nos sucedeu ou nos aconteceu. opinião. No entanto, a obsessão pela opinião também cancela

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Con~ÀO 'Eo~CAÇAO: fxp;~,~~c" ES>Nnoo"
Enso'1os erófü:os - Experiênc'10 e po'1xõo

nossas possibilidades de experiência, tatnhém faz com que significativa". A informação seria o objetivo, a opinião seria o
nada nos aconteça. subjetlvo, ela seria nossa reação subjetiva diante do objetivo.
Além disso, como tal reação subjetiva se nos fez automática,
Benjamin dizia que o periodismo é o grande dispositivo
quase reflexa: informados sobre qualquer coisa, nós opína-
1nodcrno para a destruição generalizada da experiência 1• O pe- mos. Esse "opinar" se reduz, na maioria das ocasiões, em es-
riodismo destrói a experiência, sobre isso não 11á dúvida, e o tar a favor ou contra. Com isso, convenen10-nos em sujeitos
periodisn10 não é outra coisa que aaiianÇ<\perversa entre infor- con1petentes para responder como deve ser as perguntas dos
mação ~opinião. O periodismo é a fabricação da informação e professores que cada vez mais se assemelh;i.m a con1prova-
a fabricação d:a opinião. E quando a infor1na~·ão e a opi11ião se ções de informações e a pesquisas de opinião. Diga-me o
sacralizam, quando ocupam todo o espaço do acontecer, então que você sabe, diga-1ne com que informação conta e expo-
o sujeito Individual não é outra coisa que o suporte informado nha, à continuação, sua opinião: esse é o dispositivo perio-
da opinião individual, e o sujeito coletivo, esse que teria de fa- dístico do saber e da aprendizagem, o dispositivo que torna
zer a história segundo os velhos marxistas, não é outra coisa impossível a experiência.
que o suporte informado da opinião pública. Quer dizer, um Em terceiro lugar, a experiência é cada vez mais rara por
sujeito fabricado e manipulado pelos aparatos da informação e falta de tempo. Tudo o que se passa, passa demasiadamente
da opinião, um sujeito incapaz de experiência. E o fato do peri- depressa, cada vez mais depressa. E, com isso, reduz~se a um
odismo destruir a experiência é algo mais profundo e mais ge- estÍn1ulo fugaz e instantâneo que é imediatamente substituído
ral do que aquao que derivaria do efeito dos meios de comuni- por outro estímulo ou por outra excitação igualmente fugaz e
cação de massas sobre a conformação de nossas consciências. efê1nera. o acontecimento nos ed;:ido na forma de choque, de
O par informação/opinião é muito geral e permeia tam- estímulo, de sensação pura, na forma de vivência instantânea,
bém, por exemplo, nossa idéia de aprendizagem, inclusive o pontual e desconectada. A velocidade com que nos são dados
que os pedagogos e psico-pedagogos chamam de "aprendi- os acontecimentos e a obsessão pela novidade, pelo novo que
zagem significativa". Desde pequenos até a Universidade, ao caracteriza o mundo moderno, llllpede sua conexão significati-
largo de roda nossa travessia pelos aparatos educativos, esta- va. Impede também a memória, já que cada acontecimento é
mos submetidos a um dispositivo quefunciona da seguinte Unedíatamente substituído por outro acontecimento que igual-
e
maneira: primeiro preciso informar-se e, depois, há que se mente nos excita por um momento, mas sem deixar nenhuma
opinar, há que sed<lr uma opinião obviamente própria, crítica marca. O sujeito moderno é um consumidor voraz e insaciável
e pessoal sobre o que quer que seja. A opinião seria como a de notícias, de novidades, um curioso impenitente, eternamen-
dimensão "significativa" da assim chamada "aprendizagem te insatisfeito. Quer estar permanentemente excitado e já se
tornou incapaz de silêncio. E a agitação que lhe caracteriza tam-
'Benjamin problematiza o periodismo em várias de suas obras; ver, por bém consegue que nada lhe passe. Ao sujeito do estímulo, da
exemplo, BENJAMIN, W. El narrador. ln: Para una crítica de la vivência pontual, tudo o atravessa, tudo o excita, tudo o agira,
'Viofr:nci" y otro1 ~1uayos. Mndrid: T,111rus, 1991, p. l l 1 e seguintes. (Ou tudo o choca, mas nada lhe acontece. Por isso, a velocidade e o
na ediç:i:o brasilc1r:1; BENJAMIN, W. Magia e recnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e hist6ria da cultura. In: Obras Escolhidas. 7°
que ela acarreta, a falta de silêncio e de memória, são também
ed., SRo Paulo: Br~siliense, 1994, v.l) inimigas morrais da experiência.

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Cc,iç~o "EoJO.Çi.O; faFt,.~.~c"' i S!NHJO" Ensaios eról•cos - ExperiCnôo e poixão

Nessa lógica de destruição generalizada da experiência, entre experiência e trabalho ei além disso, em criticar qual·
estou cada vez mais convencido de que os aparatos educacio- quer contagem de créditos para a experiência, qualquer
nais também funcionam cada vez mais no sentido de tornar conversão da experiência em créditos, em mercadoria, em
impossível que alguma coisa nos aconteça. Não somente, valor de troca. Minha tese não é somente que a experiên-
como já disse, pelo funcionamento perverso e generalizado cia não tem nada a ver com o trabalho, senão mais ainda,
do par informação/opinião, mas também pela velocidade. que o trabalho, essa modalidade de relação com as pessoas,
Cada vez estamos mais tempo na escola (e a Universidade e com as palavras e com as coisas que chamamos trabalho, é
os cursos de formação do professorado forrnam parte da es- também inimiga mortal da experiência.
cola), mas cada vez temos menos tempo. Esse sujeito da for- O sujeito moderno, além de ser um :;ujeito informa 4

mação permanente e acelerada, da constante atualização, da do que opina, além de estar permanentemente agitado e
reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um em movimento, é um ser que trabalha, guer dizer, gue
valor ou como uma mercadoria, um sujeira que não pode pretende conformar o mundo, tanto o mundo "natural"
perder tempo, que tem sempre de aproveitar o tempo por- quanto o mundo "social" e "humano'', tanto a "natureza
que não pode ser que fique defasado em alguma coisa, não externa" quanto a "natureza interna", segundo seu saber,
pode ser que não possa seguir o passo veloz do que passa, não seu poder e sua vontade. O trabalho é toda a atividade que
pode ser que fique para trás, e por isso mesmo, por essa ob- deriva dessa pretensão. O sujeito moderno está animado
sessão por seguir o curso acelerado do le1npo, já não tem por t11na portcnto.~a mescla de otimismo, de progrc.~sismo
tempo. E na escola o currículo se organiza em pacotes cada e de agressividade: crê gue pode fazer tudo o que se pro-
vez mais numerosos e mais curtos. Com o quê, também em põe (e se hoje não pode, algum dia poderá) e para isso não
educação, estamos sempre acelerados e nada nos acontece. duvida em destruir tudo o que percebe como obstáculo a
Em quarto lugar, a experiência é cada vez mais rara sua impotência. O sujeito moderno se relaciona com o
por excesso de trabalho. Esse ponto me parece importan- acontecimento do ponto de vista da ação. Tudo é pretex-
te porque às vezes se confunde experiência com trabalho. to para sua atividade. Sempre se pergunta sobre o que pode
Existe um clichê segundo o qual nos livro" e nos centros de fa7.er. Sempre está de~cjando fazer algo, produzir algo,
ensino se aprende a teoria, o saber que vem dos livros e das concertar <'ligo. Independentemente desse desejo estar
palavras, e no trabalho se adquire a experiência, o saber que motivado por uma boa vontade ou uma má vontade, o
vem do fazer ou da prática, como se diz atualmente. Quan- sujeito moderno está atravessado por um afã de mudar
do se redige o currículo, distingue-se formação acadêmica e as coisas. E nisso coincidem os engenheiros, os políticos,
experiência de trabalho. Tenho ouvido falar de certa ten- os fabricantes, os médicos, os arquitetos, os sindicalistas,
dência aparentemente progressista no campo educacional os jornalistas, os cientistas, os pedagogos e todos aqueles
que, depois de criticar o modo como nossa sociedade pri- que projetam sua existência em termos de fazer coisas. Não
vilegia as aprendizagens acadêmicas, pretende implantar e somos apenas sujeitos ultra-informados, transbordantes de
homologar formas de contagem de créditos para a experi- opiniões e superestimulados, mas também sujeitos cheios
ência e para o saber da experiência adquirida no trabalho. de vontade e hiperativos. E por isso, porque sempre esta-
Por isso estou especialmente interessado em distinguir mos querendo o que não é, porque estamos sempre ativos,

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CCL((ÀO "EÇUG\ÇÁO' b>E1 Ô<'C" E SENl•OO" Ensoio5 eróticos - Experiilílcio e poixóo

porque estamos se1npre mobilizados, não podemos parar. succede", ou "happen to us", o sujeito da experiência é
E por não podermos parar nada nos passa. sobretudo o espaço onde tem lugar os acontecimentos.
A experiência, a possibilidade de que algo nos passe Em qualquer caso, seja como território de passagem,
ou nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de inter· como lugar de chegada ou como espaço do acontecer, o
rupção, um gesto que é quase impossfvel nos tempos que sujeito da experiência se define não tanto por sua ativida·
correm: requer parar para pensar, para olhar, parar para de, como por sua passividade, por sua receptividade, por
escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar e escutar sua disponibilidade, por sua abertura. Trata-se, porém, de
mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demo- uma passividade anterior à oposição entre ativo e passivo,
rar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, de uma passividade feita de paixão, de padecimento, de
suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, paciência, de atenção, como uma receptividade primeira,
cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvi- como uma disponibilidade fundamental, como uma aber-
dos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, tura essencial.
escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, O sujeito da experiência é um sujeito ex-posto. Do pon-
ter paciência e dar-se tempo e espaço. to de vista da experiência, o importante não é nem a posição
(nossa maneira de pôr-nos), nem a o-posição (nossa maneira
de opor-no::;), nem a im-posição (nossa maneira de impor-
O sujeito da experiência nos), nem a pro-posição (no::;sa m:tneira de propor-no::;), mas
a exposição, nossa maneira de ex-por-nos, com tudo o que
Até aqui, a experiência e a destruição da experiência. isso tem de vulnerabilidade e de risco. Por isso é incapaz de
\'amos agora ao sujeito da experiência, a esse sujei40 que experiência aquele que se põe, ou se opõe, ou se impõe, ou se
não é o sujeito da informação, da opinião ou do trabalho, propõe, mas não se ex-põe. É incapaz de experiência aquele a
que não é o sujeito do saber ou do julg<lr, ou do fazer, ou quem nada lhe passa, a quem nada lhe acontece, a quem nada
do poder, ou do querer. Se escutamos em espanhol, nessa lhe sucede, a quem nada lhe toca, nada lhe chega, nada lhe
língua na qual a experiência é "lo que nos pasa", o sujeito de afeta, a quem nada lhe ameaça, a quem nada lhe fere.
experiência seria algo como um território de passagem, algo Vamos agora ao que nos ensina a própria palavra ex-
como uma superfície de sensibilidade na qual aquilo que periência. A palavra experiência vem do latim experi.rt, pro-
passa afeta de algum modo, produz alguns afetos, inscreve var. A experiência é, em primeiro lugar, um encontro ou
algumas marcas, deixa alguns vestígios, alguns efeitos. Se uma relação com algo que se experimenta, que se prova. O
escutamos em francês, em que a experiência é "ce que naus radical é periri, que se encontra também em pericuium, pe·
arrivc", o sujeito da experiência é um ponto de chegada, rigo. A raiz indo-européia é per, com a qual se relaciona
um lugar ao que chegam coisas, como u1n lugar que rece- antes de tudo a idéia de travessia e, secundariamente, a idéia
be o que lhe chega e que, ao receber, lhe dá lugar. E em de prova. Em grego há numerosos derivados dessa raiz que
português, em italiano e em inglês, em que a experiência marcam a travessia, o percurso, a passagem: peirô, atraves-
soa como "aquilo que nos acontece", "nos passa", "nos s"J.r; pera, mais além; pera.Ô, passar através; perainô, ir até o

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'"
Cotiç.o "fouCAW· fP1~1!~to1 l SEN11:io" En>oios eróticos - E•periêm;io P. pohõo

fim; peras, limite. Em nossas línguas há uma bela palavra O sujeito da experiência, se repassamos pelos verbos
que tem esse per grego de travessia: a palavra peiratês, pira- que Heidegger usa neste parágrafo, é um sujeito alcança·
ta. O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante do, tombado, derrubado. Não um sujeito que permanece
que se expõe atravessando um espaço indeterminado e pe- sempre em pé, ereto, erguido e seguro de si mesmo, não
rigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportu- um sujeito que alcança aquilo que se propõe ou que se
nidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex do exte- apodera daquilo que quer; não um sujeito definido por
rior~ do estrangeiro, do exílio, do estranho e ta1nbém o ex seus sucessos ou por seus poderes, mas um sujeito que perde
da existência. A experiência é a passagem da existência, a seus poderes precisamente porque aquilo do qual faz ex-
periência se apodera dele. Por outro lado, o sujeito da ex-
passagem de urn ser que não tem essência ou razão ou fun-
periência é também um sujeito sofredor, padecente, re-
damento, mas que simplesmente ex-iste de uma forma sem-
ceptivo, aceitante, interpelado, submetido. Seu contrário,
pre singular, finita, imanente, contingente. Em alemão, ex-
o sujeito incapaz de experiência, aquele a quem nada acon-
periência é Erfahrung, que contém o fahren de viajar. E do
tece, seria um sujeito firme, forte, impávido, inatingível,
antigo alto-alemão /ara também deriva Gefahr, perigo, e erguido, anestesiado, apático, autodeterminado, definido
gefiihrden, pôr em perigo. Tanto nas línguas germânicas por seu saber, por seu poder e por sua vontade.
como nas latinas, a palavra experiência contém insepara-
Nas duas últimas linhas do parágrafo, nisso de "po-
velmente a dimensão de travessia e perigo. demos ser assim transformados por tais experiências, de
Em Heidegger encontramos uma definição de expe- um dia para o outro ou no transcurso do tempo", pode-se
riência na qual soam muito bem essa exposição, essa re- ler outro componente fundamental da experiência: sua ca-
ceptividade e essa abertura, assim como essas duas dimen- pacidade de formação ou de transformação. É experiência
sões de travessia e perigo que acabamos de destacar: aquilo que nos passa, ou nos toca, ou nos acontece, e ao
nos passar nos forma e nos transforma. Somente o sujeito
fazer uma experiência com algo significa que algo
da experiência está, portanto, aberto a sua própria trans-
nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós,
formação.
que nos tomba e nos transforma. Quando f;o.lamos
em Nfazer~ significa aqui: sofrer, padecer, tomar o
ciue nos alcanç~ receptiva mente. aceitar, :i 1ncdidn Experiência e paixão
que nos submete1nos a algo, Fazer uma experiên-
cia quer dizer, portanto, deixar-nós abordar em nós
Se a experiência é o que nos acontece e se o sujeito da
próprios pelo que nos interpela, entrando e sub-
metendo-nos a isso. Podemos ser assím transfor-
experiência é um território de passagem, então a experi-
mados por tais experi~ncias, de um dia para o ou- ência é uma paixão. Não se pode captar a experiência va-
tro ou no transcurso do tempo. 2 lendo-se de uma lógica da ação, valendo-se de uma refle-
xão do sujeito sobre si mesmo como sujeito agente,
~ HEIDEGGER, Martin. La esencia dd halila. In: De ranano ai hah!a. valendo-se de uma teoria das condições de possibilidade
Barcelon,1: Ediciones dei Scrbal, 19&7. da ação, mas com base numa lógica da paixão, de uma

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COLEC•o "EOJO.ÇÀO: E<1u1!No.o. E StM1P.o" Er1soios erólicos - Experiêr1cio e poixõo

reflexão do sujeito sobre si mesmo como sujeito passio- de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, aliena-
nal. E a palavra paixão pode referir-se a várias coisas. do, transtornado.
Primeiro 1 a um sofrimento ou a um padecimento. Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravi-
No padecer não se é ativo, porém, tampouco se é simples- dão, no sentido de que o que quer o sujeito passional é
mente passivo. O sujeito passional não é agente, senão precisamente permanecer cativo, viver seu cativeiro, ~u<1
paciente, mas h!t n;1 paixão un1 assun1ir os padecimentos, dependência daquilo que lhe apaixona. Dá-se também uma
. .
como um viver, ou experimentar, ou suportar, ou aceitar, tensão entre prazer e dor, entre felicidade e sofrimento,
ou assumir o padecer que não tem nada a ver com a mera no sentido de que o sujeito passional encontra sua felici-
passividade. Como se o sujeito passional fizesse algo com dade ou ao menos o cumprimento de seu destino no pade·
o assumir de sua paixão. Às vezes, até, algo público, ou cimento que sua paixão lhe proporciona. O que o sujeito
político, ou social, como um testemunho público de algo, passional ama é precisamente sua própria paixão. Mais
ou uma prova pública de algo, ou um martírio público em ainda: o sujeito passional não é outra coisa e não quer ser
nome de algo, ainda que esse "público" se dê na mai.~ estrita outra coisa que não a paixão. Daí talvez a tensão que a
solidão, no mais completo anonimato. paixão extrema suporta entre a vida e a morte. A paixão
Paixão pode referir-se também a certa heteronomia, tem uma relação intrínseca com a morte, ela se desenvol-
ou a certa responsabilidade em relação com o outro gue, no ve no horizonte da morte, mas d'e urna morte que é queri-
entanto, não é incompatível com a liberdade ou com a au- da e desejada como verdadeira vida, como a única coisa
tonomia. Ainda que se trate, naturalmente, de outra liber- que vale a pena viver e, às vezes, como condição de possi·
dade e de outra autonomia que a do sujeito independente bilidade de todo renascimento.
que se determina por si mesmo. A paixão funda, mais bem,
uma liberdade dependente, determinada, vinculada, obri-
gada inclusive, fundada não nela mesma mas numa acelta-
ção primeira de algo que está fora de mim, de algo que não
sou eu e que por isso justamente é capaz de me apaixonar.
E "paixão" pode referir-se, por fim, à experiência
do amor, ao amor-paixão ocidental, cortesão, cavalhei-
resco, cristão, pensado como possessão e feito de um
desejo que permanece desejo e que quer permanecer de-
sejo, pura tensão insatisfeita, pura orientação para um
objeto sempre inatingível. Na paixão, o sujeito apaixo-
nado n~o possui o objeto am<1do, ma.ç é possuído por ele.
Por isso o sujeito passional não est{1 en1 si, no próprio,
na possessão de si mesmo, no autodomínio, mas está fora

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ENSAIOS ERÓTICOS

O corpo da linguagem

Ninguém sabe o que pode um corpo.


Spinoza. Ética. 1II, 2. Escólio.

Existe um discurso de Zaratustra, o que se intitula "Dos


denegridores do corpo", que começa reunindo em uma só
figura os motivos do corpo, da linguagem e da educação:

Quero dar meu conselho aos denegridores do corpo:


Nào devem mudar de método de ensino, mas unica-
1nente despedir-se de seu próprio corpo [ ... J, e assim
fazer-se mudos. A criança se expressa assim: "Eu sou
corpo e alma". E por quê não se expressar como as
crianças? Quem está desperto e consciente exclama:
Todo eu sou corpo e nenhuma outra coisa. A alma
só é uma palavra para urna partícula do corpo 1•

Despedir-se do corpo é despedir-se da língua, fazer-se


mudos ou, como diria José Luis Pardo, falar a língua sem
língua dos deslinguados, a língua descorporizada e deslingua-
da da pura comunicação, essa língua neutra e neutralizada

' NIETZSCHE, F. Así habló Zarat1Htra. Barcelona: Círculo de lectores,


1973, p. 46.

167
r COLECÃO "éll\ICl\ÇÁO: EiPER•!NCLI. f SENTl:>O" Ensaios eróticos - O corpo de linguogem

que se pensa a si mesma como transmissão de informação 2• o culto do corpo do mundo contemporâneo é tão doentio
Se a negação do corpo mutila o humano, essa mutilação é como o horror ao corpo de outros tempos. Nossa obsessão
também da linguagem. Porque assim como o homem, quan· pela fabricação e pela exibição do corpo também produz
do é ii1teiro, é corpo, também a linguagem quando é inteira sujeitos sem corpo e corpos sem sujeito. O tão cacarejado
é corpo. Não há logos senão encarnado e não há exiscência retorno do corpo convive (e às vezes coincide) com o apla-
humana que seja índependente do corpo. E do mesn10 modo namento geral do corpo produzido pelos discursos e pelas
que é a infância do homem a que nos dá uma idéia do ho· práticas nas quais os individuas tratam de se ajustar aos mo-
mem inteiro, do que ainda não foi dividido pelos denegri· delos corporais que lhes impõem desde os imperativos mo·
dores do corpo, também é a infância da linguagem, a poe- rais da saúde e da beleza.
sia, a que nos dá uma idéia da linguagem inteira, do que Tampouco o sujeito sem linguagem é o sujeito mudo,
aiI1da não foi emudecido por esses mesmos denegridores. silenciado. O poder se mostra, sem dúvida, pelo silêncio
que cria ao seu redor. O poder faz calar. Mas se mostra
Sujeitos sem corpo e sujeitos sem linguagem também no ruído que produz. O poder faz falar, incita a
língua, produz linguagem. Como diz Pardo, "para impor
pela violência uma linguagem lisa, sem manchas, sem som-
Talvez nossa história, tanto a coletiva como a indivi-
bras, sem rugas, sem corpo, a língua dos deslinguados, uma
dual, possa ser lida, ao mesmo tempo, como a da consti-
língua sem outro na qual ninguém se escute a si mesmo
tuição de um sujeito sem corpo (ou, o que é o mesmo, de
quando fala, uma língua despovoada"J.
um sujeito separado de seu corpo e que, por Ísso, se faz
Por isso a inflação comunicativa de nossos tempos
capaz de objetivá-lo e dominá-lo, de possuir do ponto de
passa, em grande parte, pelo aplanamento da linguagem
vista do seu uso, de fazê-lo suscetível de ser tratado tam·
envilecido por sua gestão informativa. E a assim chamada
bém, se convém, como um corpo sem sujeito, um corpo
sociedade da informação ou da comunicação também dá a
de ninguém, pura vida nua) e como a constituição de um
impressão de estar habitada por sujeitos sem linguagem e
sujeito sem linguagem (ou de um sujeito separado de sua
por linguagens sem sujeito~.
linguagem e, por isso, capaz de objetivá-la e dominá-la, de
tê-la con10 um instrumento, de tratá-la também, quando No mesmo discurso de Zaratustra com o que comecei
convém, como uma linguagem sem sujeito, uma lingua- o texto, Nietzsche chama o corpo de o "sábio desconheci-
gem de ninguém, pura informação). do", a "grande razão". De outro lado, ao que os denegrido-
res do corpo chamam "espírito", a isso que diz "eu" e que se
Mas o sujeito sem corpo não é só o da supressão ou da
crê "eu", Nietzsche chama "pequena razão". E continua:
ocultação do corpo. O homem está dividido de seu próprio
corpo tanto pelas disciplinas da negação e da passividade
'PARDO, J.L. Carne de palabr~s. In: José Angel Valente. Anato1nía de
como pelas disciplinas da afirmação e da atividade. Por isso la pafabra. Valencia: Pre-Textos, 2000, p. 190.
• GONZÁLEZ Placer, F. La frigidez dei lenguaje: la sociedad de la
2
PARDO, J. L. La lnrirnidad. Valencia: Pre-Textos, 1996, p. 122 e seguintes. información. {n: RELEA, n.9, Caracas, 1999, p. 89·90.

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CO.!CÃO "EDlJú<çi.O: EXPE.,!NClA f S~NllOO" Enso;os erófü:os - O corpo de linguagem

dizes 'eu' e te sentes orgulhoso desta palavra. Mas ain- mais e outra coisa que (esta) vida. A linguagem como excesso
da que não queiras acreditá-lo, o que é muito maior é e desbordamento da linguagem, como superabundância da
teu corpo e seu grande sis[ema de razão: ele não diz linguagem, como criação na linguagem do que é mais outra
'eu' mas ele é eu[... ]. H~ mais razão em teu corpo
coisa que (esta) linguagem. O homem, essa mescla portento-
que na melhor sabedoria5 .
sa de vida e dcsbordamento de vida e de linguagem desbor-
dante de linguagem, como excesso e desbordamento do ho-
A história do homem ocidental e a de cada um de
mem, como superabundância do homem, como criação no
nós seria, então, a história paralela da negação do corpo e
da diminuição da razão. Mas razão não traduz aqui ratio,
homem do que é mais e outra coisa que (este} homem.
mas logos. O homem é um vivente de palavra, de lingua- Mas essa vida e essa linguagem (e esse homem defini-
gem, de logos. E isso não significa que o homem tenha a do ao mesmo tempo como vivente e falante) são corpo e
palavra, ou a linguagem, como uma coisa, ou como uma fazem corpo: são modos do corpo. As diferentes modali-
faculdade, ou como uma ferramenta, mas que o modo de dades da humanidade são diferentes formas de ser corpo,
viver específico desse corpo ao mesmo tempo vivente e de fazer corpo. E ninguém sabe o que pode um corpo. Daí
mortal (vivente porque mortal e moí-ta! porque vivente) que a humilhação e a diminuição do corpo seja, ao mesmo
que é o homem se dá na palavra e como palavra. tempo, humilhação e diminuição da vida, da linguagem (e
A separação e posterior dominação do corpo junto do homem).
com a diminuição da linguagem que a acompanha são,
portanto, condições de possibilidade para a separação e
posterior dominação da vida, para a diminuição da vida, Carne de palavras
para conversão da vida em algo suscetível de administra-
ção e controle: literalmente para a biopolítica. Em um esquema tão limpo como eficaz, María Zam-
Talvez por isso, Nietzsche fecha assim o discurso de brano recorre o combate entre Filosofia e Poesia como um
Zaratustra: combate que se dá ao mesmo tempo em torno à palavra e
em torno ao corpo. Assim, a luta entre as duas formas da
Eu vos digo: vosso ser quer morrer e se aparca da
palavra, essa luta que se resolve no triunfo do logos filosófi-
vida. Já não é capaz de fazer o que preferiria: criar
co, é também, indiscernivelmente, uma lura pelo corpo,
acima de si mesmo[ ...]. Vosso ser quer desaparecer;
por isso haveis chegado a fazer de vós denegridores por cerro tipo de corpo:
do corpo! Porque já nada podeis criar acima de vós.
Por essa razão desejais mal para a vida e para a terra. 6 e é que a poesia foi cm todo o tempo, viver segundo
a carne. Foi o pecado da carne feito palavra, eterni·
A vida como excesso e desbordamento da vida, como zada na expressão, objetivado. O filósofo tinha que
superabundância da vida, como criação na vida do que e olhá-la com horror porque era a contradição do lo-
gos em si mesmo ao verter-se sobre o irracional. A
5
NIETZSCHE, F. Así habló Zaratustra. Op. cit., p. 46. irracionalidade da poesia se concretizava assim em sua
•Ibidem. forma mais grave: a rebeldia da palavra, a perversão

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Co.!ÇÃD "fD'.JCAÇÃO; Ex 0u1!NC11o, e S~NTIOO" Eruoios er61icos - O corpo de linguagem

do logos funcionando para descobrir o que deve ser Políticas do corpo, políticas da linguagem
calado, porque não é. 7

Sabe-se que a filosofia, em sua origem platônica, pro- Há que se expulsar aos poetas (há que se eliminar o
clama que o homem é sua alma ou, dito de outro modo, poético da linguagem) para que o logos possa constituir-se
que possui um corpo, que habita uma tumba ambulante, sem corpo. E não está demais recordar que essa dupla ope-
mas ele mesn10 não é seu corpo. O corpo como tumha, é raç:lo é essencial /i constituiç~o da educaç~o como um dis-
uma imagem órfica que Platão usa com toda energia a ser- positivo a serviço do Estado. As políticas educativas são,
viço de uma consideração das paixões como adversas à ima- desde sua origem, ao mesmo tempo políticas do corpo e
gem pura da alma, A atividade intelectual, portanto, e todo políticas da linguagem.
o mais próprio e o mais elevado do homem, o conhecimen-
to, o pensamento, a razão, a palavra, devem ser considera- Com base em uma hermenêutíca corporal, poderia tra-
dos em sua autonomia respeito ao corpo. E a palavra huma- çar-se uma história da educação como uma história das ope-
na, em correspondência, deve ser usada com a mesma rações de marcação, configuração e distribuição dos corpos.
pureza, sem mescla poética alguma. A filosofia se inicia A escola é um dispositivo cujas regras se reconhecem pelas
como um ascetismo intelectual que, em seu afã por trans- formas e pelas distribuições corporais que produz e exibe.
cender o corpo (e com o corpo, todo o âmbito do sensível, Poderia estabelecer-se toda uma gramática histórica do cor-
da aparência, e todo o âmbito do finito, do temporal), tem po escolarizado. Do mesmo modo que na educação como
muito de violência, de renuncia, de desgarramento. Por isso negação do corpo é o próprio corpo negado aquele que diz
a viol~ncia feita ao corpo e a violência feita linguagem são a os processos que conduziram a sua própria abolição, na edu-
parte da mesma violência, a que se mostra no combate con- cação como fabricação do corpo é o próprio corpo fabricado
tra os perigos da poesia. aquele que diz das técnicas e das práticas corporais que lhe
Em sua homenagem a Valente, Pardo diz que a poesia produziram. E o mesmo poderi<l fazer-se, baseando-se numa
expõe o corpo da palavra em sua carnalidade sensível. Na hermenêutica lingüística, das operações pedagógicas de mar-
poesia, cação, configuração e distribuição da linguagem.
a palavra se converte em um corpo para o qual não Mas tanto o corpo (porque é linguagem) como a lin-
temos palavras. E, nessa experiência, precisamente por- guagem (porque é corpo) escapam ao seu controle pedagó-
que a palavra recupera seu corpo, nós rambém reco- gico, a qualquer tipo de controle. Quando a vida humilha
bramos a carne! voltamos a ser densos e sensíveis[ ... ].
a vida, a vida resiste e se rebela. E tanto o corpo como a
A poesia é o modo em que a palavra acolhe algo que
está completamente fora dela, mas que ela leva aderi-
linguagem são vivos. Talvez por isso assistimos também
do como seu afora: sua carne, seu corpo, sua sensibili- hoje à rebelião dos corpos {negados ou fabricados) e à rebe-
dade, que são os nossos, que somos carne de palavras.~ lião das linguagens (submetidas e/ou incitadas). A posta em
marcha de n1últiph1s técnicas corporais a serviço dos impe-
1
ZAMBRANO, M. Filosofía y po~tía. Madrid: F.C.E., 1993, p. 47. rativos de saúde e beleza e o funcionamento massivo de •1
1
PARDO, J.L. Carne de palabras. Op. cit., p. 184-185. dispositivos de administração dos corpos perigosos não

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impede a proliferação de corpos inassimiláveis. Todos os ENSAIOS ERÓTICOS
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procedimentos da comunicação e da informação a serviço
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do controle do discurso e de sua conversão em in-signifi-
cância ou em mercadoria não evitam a emergência de lin-
guagens intoleráveis.
Pode dar a impressão de que a educação contemporâ-
nea contempla um retorno do corpo e um retorno da lin-
guagem. Pode parecer que se acabaram os tempos dos cor- Erótica e Hermenêutica
pos negados e das linguagens proibidas. Mas, se a negação
do corpo impõe certo corpo, também a restauração do
corpo impõe certos corpos. Do mesmo modo que o retor- As palavras, camaradas, tomemos-las e vamos esquarte-
no da linguagem se produz mediante a imposição de cer- jando-as uma a uma com amor, isso siin, já que temos
tas linguagens. nome de " amigos-
. das-paiavras
-1 "
; pois. e1as nao
• tem
• certa·
E, no entanto, dentro ou ao redor das instituições mente parte alguma nos males em que penamos dia após
educativas, continuam proliferando os corpos inassímilá- dia, e depois a noite nos !evolvemos em sonhos, mas
são os homens, maus homens, os que, escravizados às
veis e/ ou resistentes como continuam proliferando as lin-
coisas ou ao dinheiro, também como escravas têm em
guagens inassímiláveis e/ ou resistentes.Todas aqueles que uso as palavras. Mas elas, contudo, incorruptas e be-
escapam aos imperativos da biopolítica contemporânea. nignas; sim, é certo que por elas esta ordem ou cos-
Todos aqueles que dizem outra coisa que aquilo que deve- mos está tecido, enganos variados todo ele; mas se,
riam dizer. Todos aqueles que não podemos compreen- analisando-as e soltando-as, as deixamos obrar livres
der e com os que não sabemos o que fazer. alguma vez, em senrido inverso vão destecendo seus
Nós damos a palavra ao corpo e queremos escutá-lo próprios enganos elas, tal como Penélope de dia apa-
ziguava aos senhores com esperanças, mas por sua vez
mas, às vezes, é o corpo quem toma a palavra (ou a pala-
de noite se tornava em direção ao verdadeiro.
vra a que toma o corpo) para dizer, de uma forma intole-
Augustín García Calvo
rável, tanto os limites do que se pode dizer como os do
que nós queremos (ou podemos) ouvir. Ninguém sabe o
que pode um corpo. Também Nietzsche sabia muito bem que o conformis-
mo lingüístico está na raiz de todo corúormismo e que a
ordem da linguagem é inseparável de toda ordem. Nietzsche
sabia que ensinar a falar, a escrever e~\ ler é ensinar <I fJ]ar, a
escrever e a ler con10 'tem gue ser', quer dizer, a experitnen-
tar a realidade, a do n1undo e a de si próprio, como é devido
ou, o que é o mesmo, a portar-se co1no é devido. E para

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