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O Francês não

vem do Latim!
Ensaio sobre uma aberração linguística
Yves Cortez

O Francês não
vem do Latim!
Ensaio sobre uma aberração linguística

Tradução:
André Berri
Estela Carvalho

Florianópolis / 2013
PGET/UFSC
Tubarão / 2013
Capa, Diagramação e Projeto Gráfico:
Claudio José Girardi
cjgirardi@gmail.com

Revisão:
Luciana Rassier

Impressão:
Grafica e Editora Copiart
Rua São João 247, Tubarão - SC
copiart@graficacopiart.com.br
Fone: 48 3626 4481

Ficha Catalográfica

Elaborada por:
Índice

Prefácio............................................................................ 11
Comentários sobre a obra traduzida........................... 13
Apresentação dos Tradutores...................................... 19

Prólogo............................................................................. 21

Pesquisa sobre um dogma acima de


qualquer suspeita:.......................................................... 31
Primeira prova: O latim é uma língua
morta desde o séc. 1º d.C........................................................................31
Segunda Prova: O vocabulário de base das línguas
romanas não é latino...............................................................................40
Terceira prova: A gramática das línguas
românicas não “herdou” nada do latim...............................................72
Quarta Prova: As línguas evoluem muito lentamente.......................86
Quinta prova: A etimologia oficial do francês é fantasiosa ������������102
Sexta Prova: As línguas românicas são quase idênticas ������������������115
Sétima Prova: O francês antigo é um francês “italianizado” ���������120

De onde vem nossa cegueira?.................................... 125


A responsabilidade dos linguistas......................................................125
O parentesco itálico e indo-europeu...................................................129
A coexistência de dois povos...............................................................129
A ausência de textos em “italiano antigo”.........................................131
O enigma “osco”....................................................................................133

As extraordinárias e surpreendentes
descobertas subsequentes........................................... 135
As bases da pesquisa linguística são instáveis..................................135
O baixo-latim é uma ficção...................................................................137
A ortografia do francês é artificialmente latinizada.........................140

Conclusão...................................................................... 151

Léxico............................................................................. 167
A Sébastien, Emmanuel, Annabelle, meus filhos, para
que eles aprendam a se desfazer das ideias pré-concebidas.

Dirijo meus agradecimentos a Michel Malherbe,


que me deu o seu apoio e seus conselhos entusiasmados
Prefácio

Regras foram feitas para serem quebradas. Yves


Cortez tem como enfoque o latim tal como os linguistas,
segundo ele, o conceberam. E ele não mede as palavras!
Seu ponto de vista é interessante: o latim não seria
a mãe das línguas românicas, mas um “italiano antigo”.
Assim, seria possível explicar porque todas as línguas ro-
mânicas se parecem entre si, sem realmente se parecer com
o latim: elas não têm declinações, as palavras mais comuns
não foram criadas a partir de raízes latinas, etc. Os fatos
mencionados são inquietantes e as explicações acadêmicas
geralmente aceitas são pouco satisfatórias. O grande mé-
rito de Yves Cortez é levantar um verdadeiro problema e
tentar dar uma explicação.
Tive grande prazer em ler sua argumentação e
compartilho de boa vontade de sua tese de uma origem
“italiana” das línguas românicas. O que me incomoda
um pouco é que, além de quebrar tabus, ele levanta ain-
da mais problemas. De que chapéu saiu este “italiano
antigo” que deu origem às línguas românicas? Como ele
12 Yves Cortez

apareceu? Qual é o seu parentesco com o latim? Yvez Cor-


tez considera que sua origem é o itálico, que por sua vez
tem sua origem no indo-europeu, do qual nada se sabe.
E por que não? Mas a questão levantada no livro de um
elo perdido entre o latim e as línguas românicas encon-
tra-se um pouco mais distante no tempo: como nasceu
o “italiano antigo”? Como ele perdeu as declinações do
indo-europeu? Por não ter sido escrito, este “italiano anti-
go” continuará sendo um mistério. Mas não importa. Este
tema é revigorante e bom para a humildade intelectual ao
substituir as certezas por pontos de interrogação.

Michel Mallerbe
(Autor de Les langages de l’humanité: une encyclopédie des
3.000 langues parlées dans le monde, Éditions Robert Laffont).
Comentários sobre a obra traduzida

Em um livro clássico da linguística histórica,


amplamente lido e utilizado em uma variedade de
situações acadêmicas e científicas, Winfred Lehmann
(1992) destaca sucintamente os aspectos problemáticos da
noção de latim vulgar: “O latim falado, ou latim vulgar
(latim do povo), disseminava-se por todo o império
romano e foi a base a partir da qual as línguas românicas
se desenvolveram. Uma vez que o latim vulgar não está
tão completamente atestado quanto gostaríamos, existem
investigações dedicadas à reconstrução de um proto-
românico a partir dos dialetos modernos”1 (p.76). Isto
significa, em última análise, que há, de fato, um “elo
perdido” no processo de evolução histórica que resultou
no surgimento das línguas românicas.
A argumentação relacionada à ideia de uma língua
proto-românica é reforçada por um documento de au-
1
The spoken Latin, or Vulgar Latin (Latin of the people), was spread throughout the
Roman Empire and was the basis from which the Romance languages developed. Since
Vulgar Latin is not as completely attested as we might like, work has been devoted to
reconstruction of Proto-Romance from modern dialects. (A tradução é do autor deste
prefácio.)
14 Yves Cortez

tor desconhecido, o Appendix Probi, outrora atribuído ao


gramático Valerius Probus. Embora seja consenso, hoje
em dia, que a autoria é equivocada, o nome atribuído ao
documento (Probi equivale a feito por Probus) foi preser-
vado. Na medida do conhecimento atual, o documento
teria sido produzido no século III ou IV, ainda que tenha
sido encontrado como apêndice de um palimpsesto do
século VIII denominado Instituta Artium, o que justifi-
ca a primeira parte do título. As dúvidas não diminuem
em nada a importância do documento como indício da
realidade linguística de diglossia (ou, em uma termino-
logia radical, bilinguismo) em que viviam os romanos.
Os comerciantes e soldados falavam o sermo plebeius (dis-
curso plebeu), o qual, na concepção que Cortez chama de
etimologia oficial, seria uma forma distinta, porém não
muito distante, de latim clássico, conforme o conhecemos
através da literatura. Ainda nesta mesma concepção, as
classes mais altas falariam alguma forma de latim mais
próxima do clássico.
A despeito das controvérsias, o Appendix Probi con-
tém uma lista de mais de duzentos erros de ortografia,
organizados em uma sequência forma correta + NON +
forma incorreta, tal como em nunquam non numqua. Al-
gumas destas formas ditas incorretas acabaram se tor-
nando, no processo evolutivo, grafias padrão das línguas
românicas, como, por exemplo, nunca, em português.
A necessidade de criar um documento deste tipo mui-
to possivelmente revela uma situação em que formas da
língua falada estariam gradualmente invadindo a orto-
grafia do latim escrito. Atesta, além disso, que a existência
de uma diglossia na situação linguística da época é uma
conclusão bastante segura. Deste modo, o livro de Cortez
explora a possibilidade desta língua falada pelo povo ro-
mano no cotidiano ser uma outra língua, que ele chama de
“italiano antigo”, geneticamente ligada ao itálico, também
O Francês não vem do Latim! 15

precursor do latim. Em consequência, haveria parentesco


entre as duas línguas, mas a origem deste “italiano antigo”
proto-românico estaria no itálico, diretamente, sem a inter-
mediação do latim dito clássico, que já seria, do ponto de
vista do uso como língua falada, uma língua morta desde
o século I a.C.. As línguas românicas teriam origem neste
“italiano antigo”, e não no chamado latim vulgar.
Em uma comparação entre duas línguas, os cri-
térios utilizados para distinguir os dois tipos de relação
(parentesco ou origem?) sempre lançam mão, em maior
ou menor medida, de informações históricas. Uma vez
que a informação da anterioridade do surgimento do la-
tim em relação às línguas românicas atuais é indiscutível,
a possibilidade de estabelecer esta relação de maternida-
de teria que ser necessariamente levada em consideração.
Porém, os princípios metodológicos da linguística histórica
impõem a demonstração desta relação por meio de compara-
ções de vocabulário e gramática. O material apresentado por
Cortez procura demonstrar que a admiração dos estudiosos
pelo latim clássico acabou influenciando a imparcialidade
das análises etimológicas. De fato, algumas das derivações
descritas no livro parecem uma aproximação que sugere uma
conclusão preestabelecida. Esta distorção do método históri-
co-comparativo, característico da linguística histórica, ficaria
particularmente clara na derivação do vocabulário de uso
cotidiano e, sobretudo, na tolerância dos analistas com a au-
sência de heranças sintáticas da gramática latina nas línguas
românicas modernas.
O quadro das línguas românicas é, portanto, o de um
grupo de línguas com muitas características comuns, seja
de vocabulário ou de gramática, mas de semelhanças limi-
tadas com o latim. O livro de Cortez consiste, deste modo,
em uma contestação saudável, do ponto de vista científico,
desta origem latina tratada por muitos como indiscutível.
Esta contestação tem o mérito de apresentar uma explica-
16 Yves Cortez

ção alternativa, dentro do melhor espírito de uma linguís-


tica histórica digna do nome de ciência, no sentido de uma
busca pelo conhecimento que valoriza a existência de teo-
rias distintas em competição pelo aprimoramento da tota-
lidade deste corpo de conhecimento científico.
Outro elemento igualmente importante da discus-
são é a sugestão, implícita na explicação oferecida pela
“etimologia oficial”, de uma transformação do latim
clássico no seu uso pelas classes menos “cultas” da socie-
dade. Esta transformação teria sido profunda e bastante
rápida, em termos de história evolutiva das línguas de
um modo geral. Ainda que Cortez não especifique este
elemento no livro, a prevalência do chamado erro clás-
sico na história dos estudos gramaticais é amplamente
reconhecida. O erro clássico inclui dois aspectos: a va-
lorização da língua escrita, como mais “pura”, em de-
trimento da língua falada; e a definição de um padrão
ideal de uso da língua baseado na literatura consagrada.
Neste entendimento, a mudança linguística está associa-
da à deterioração da língua.
É pelo menos razoável suspeitar de uma concepção
etimológica que aponta para uma transformação radical,
pelo uso cotidiano, de um latim clássico, conhecido atra-
vés da literatura. Talvez isso oculte, na verdade, um re-
flexo do temor de deterioração da língua presente neste
equívoco tão profundamente enraizado entre os gramáti-
cos. A ideia de uma língua independente do latim como a
origem das línguas românicas invalidaria esta concepção.
Vale destacar, finalmente, que a tradução de Estela Carva-
lho e André Berri preserva com maestria o estilo mordaz
do original, tornando a leitura do texto em português bas-
tante rica e agradável.

Prof. Dr. Marco Rocha


DLLV - UFSC
O Francês não vem do Latim! 17

Referências
Lehmann, W.P. (1992). Historical Linguistics: an introduc-
tion. Londres e Nova York: Routledge.
Apresentação dos Tradutores

“O francês não vem do Latim”, de autoria de Yves


Cortez é, antes de tudo, uma obra corajosa. Com efeito,
ela propõe uma visão completamente nova daquilo que
há séculos se concebeu como verdade irrefutável dentro
da evolução das línguas neolatinas. Seu mérito reside,
portanto, no fato de ter proposto uma forma inovadora e
coerente de explicar as profundas transformações do latim
para o francês atual. Para isso, o autor apresenta 7 provas
que contrariam a lógica da linguística histórica tradicional,
quais sejam:

1. o latim é uma língua morta desde o século 1º d.C.;


2. o vocabulário de base das línguas românicas não é
latino;
3. a gramática das línguas românicas não “herdou”
nada do latim;
4. as línguas evoluem muito lentamente;
5. a etimologia oficial do francês é fantasiosa;
6. as línguas românicas são quase idênticas;
20 Yves Cortez

7. o francês antigo é um francês “italianizado”,


Acreditamos que essa obra terá tido o mérito de
provocar uma discussão acadêmica de grande valor para o
estudo da evolução do latim e das línguas neolatinas já que,
pela primeira vez, ao nosso conhecimento, um estudioso
propõe um trabalho competente que instiga a indagações
e estremece alicerces que perduram há vários séculos.
Salientamos, contudo, que a tradução dessa obra importante
para o estudo da história das línguas não teria sido possível
não fosse a generosidade de Joëlle Cortez (viúva de Yves
Cortez) e Annabelle Cortez Vounatsos (filha de Yves Cortez)
e da editora L’Harmattan, que não hesitaram, diante do
nosso entusiasmo, em nos conceder o direito autoral para
que realizássemos sua tradução, a quem agradecemos
calorosamente e, evidentemente, ao senhor Yves Cortez (in
memoriam). Da mesma forma, agradecemos ao Programa de
Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade
Federal de Santa Catarina por ter-nos proporcionado suporte
financeiro e logístico à publicação dessa obra. Agradecemos,
igualmente, a minuciosa revisão de texto feita pela Profa. Dra.
Luciana Rassier assim como ao Prof. Dr. Marcos Rocha pelas
considerações na área da linguística contidas em seu prefácio.

André Berri e Estela Carvalho


Prólogo

Não acredite em uma coisa baseado apenas em


rumores.
Não acredite na fé das tradições simplesmente
porque elas são respeitadas há várias gerações.
Não acredite em uma coisa pelo simples
testemunho de um sábio da antiguidade.
Não acredite em uma coisa porque as probabilidades
estão a seu favor, ou porque o hábito nos impele a consi-
derá-la verdadeira.
Não acredite em nada baseando-se apenas na
autoridade de seus mestres ou de sacerdotes.
(Buda)

Contrariamente à ideia geralmente concebida, o fran-


cês não vem do latim, assim como o italiano, o espanhol, o
romeno, [o português] e nenhuma outra língua românica.
Minha tese é a seguinte: o latim foi a única língua
dos romanos até o séc. 3º a.C. e, posteriormente, o latim
foi submergido pelo italiano, mas manteve-se como língua
22 Yves Cortez

do poder e das letras. Além disso, desde o séc. 2º a.C., os


romanos eram bilíngues: eles utilizavam o italiano como
língua falada e o latim como língua escrita, e são estas duas
línguas que os romanos levaram a todas as regiões que
conquistaram.
Assim, na França, na Espanha e na Romênia, os po-
vos abandonaram suas respectivas línguas para adotar
o italiano como língua falada, e só utilizaram o latim na
escrita, como o faziam os romanos. É possível que os ro-
manos chamassem sua língua falada de “românico”. Para
evitar qualquer confusão entre o uso que fazemos des-
ta palavra hoje, chamarei a língua falada pelos romanos
de “italiano antigo”. Utilizo esse termo intencionalmen-
te, pois os romanos não falavam um latim deformado, às
vezes denominado “latim vulgar” ou “baixo-latim”, mas
falavam outra língua, que não se originou do latim, mas
já se tratava, de fato, da língua italiana.
O bilinguismo língua falada / língua escrita não tem
nada de extraordinário. Em Jerusalém, no início da nossa
era, o hebraico, língua falada pelos judeus até aquela épo-
ca, cedeu lugar ao aramaico, mas manteve o seu status de
língua da religião e da literatura. Os judeus do tempo de
Jesus Cristo eram bilíngues: eles falavam aramaico e escre-
viam em hebraico.
Hoje, nos países árabes, fala-se o árabe dialetal e es-
creve-se apenas em árabe clássico. Na Suíça alemânica, o
idioma falado é o suíço alemânico, mas a língua escrita é o
alto-alemão. No Quebec, a língua falada possui um voca-
bulário original, mas o francês utilizado na escrita é sem-
pre perfeitamente acadêmico. Na África, na América e na
Ásia, o bilinguismo entre a língua falada e a língua escrita
é uma realidade que faz parte do cotidiano; os diferentes
povos continuam a utilizar suas línguas vernáculas e, para
escrever, utilizam uma língua oficial, geralmente a língua
dos antigos colonizadores: o inglês, o francês, o espanhol...
O Francês não vem do Latim! 23

A grande divergência entre o latim e as línguas ro-


mânicas gera controvérsia há muito tempo entre os lati-
nistas e os linguistas. Em 1940, o linguista dinamarquês
Louis Hjelmslev concluiu suas pesquisas com estas pala-
vras: “a língua-mãe que fomos levados a reconstituir não é
o mesmo latim que nos é transmitido pela literatura.” Em
1953, o linguista francês Jean Perrot também observou que
a língua-mãe que ele reconstituiu a partir das diferentes
línguas românicas “não corresponde ao latim que conhe-
cemos”. Ambos descobriram uma língua-mãe muito dife-
rente do latim, mas não ousam se distanciar do dogma e
afirmar que, de fato, o “outro latim” é, na verdade, uma
“outra língua”.
Em 1985, durante o Congresso Internacional de
Linguística e Filologia Românicas, o grande latinista Joz-
sef Herman reconheceu, perante uma plateia de letrados
vindos do mundo inteiro: “No que diz respeito a nós, os
“romanizantes”, além de, no máximo, os historiadores da
língua latina, somos mais ou menos os únicos que sabemos
que temos mais hipóteses e controvérsias do que certezas
em relação ao próprio processo de transformação do latim
em língua românica [...]”.
Neste final do séc. 20, quanto mais se aprofundam
as pesquisas, menos os pesquisadores entram num acor-
do a respeito de uma explicação sobre a transformação
do latim em línguas românicas. As dificuldades residem
no fato que os pesquisadores são prisioneiros do dogma
segundo o qual as línguas românicas viriam do latim, e se
esforçam para encontrar explicações para todas as supos-
tas transformações do latim. Assim, eles tentam explicar o
desaparecimento das declinações, do gênero neutro, dos
verbos depoentes, dos adjetivos verbais, além do apare-
cimento dos artigos, do passado composto, do condicio-
nal... Porém, eles não conseguem.
24 Yves Cortez

Antoine Meillet, o célebre linguista francês do iní-


cio do séc. 20, fez apenas demonstrações fragmentadas e
conclusões infundadas que mal dissimulam suas fórmu-
las peremptórias: “as inovações comuns resultam do fato
que um mecanismo delicado e complexo foi manipulado
por novos indivíduos de toda sorte.” 1 Como pessoas pro-
venientes de diferentes horizontes poderiam provocar as
mesmas inovações linguísticas? Existe aí um estranho mis-
tério. Para Antoine Meillet, a segunda grande explicação
reside no fato que o povo adoraria a simplicidade: “Na lín-
gua, o depoente é o tipo de complicação inútil.” O povo
teria se desfeito do depoente. E, mais adiante: “Abando-
nando o neutro, o românico se livrou de uma categoria que
não significava mais nada há muito tempo.”
O povo grego, por sua parte, manteve o neutro, as-
sim como os alemães e os russos! Antoine Meillet tem re-
gras variáveis.
Das duas uma: ou ficamos com o lirismo de Lit-
tré, que, na introdução de seu dicionário, exclamava:
“Para o grande espanto do erudito, as mutações ocor-
rem como se um acordo prévio as tivesse determinado”
2
ou então tentamos fazer uma análise rigorosa e um
tanto quanto científica.
Quais são as principais objeções que podemos fazer
em relação a uma origem latina das línguas românicas?

• Como puderam se produzir os mesmos desapare-


cimentos e os mesmos aparecimentos de formas
gramaticais em todas as línguas românicas?

1
Antoine Meillet, Esquisse d’une histoire de la langue latine, 1928. Librairie Klinck-
sieck.
2
Emile Littré, Dictionnaire de la langue française, Librairie Hachette, c. 1870.
O Francês não vem do Latim! 25

• Como explicar o desaparecimento das mesmas


palavras latinas e o aparecimento das mesmas pa-
lavras não latinas em todas as línguas românicas?
Os adjetivos, os advérbios, os verbos latinos mais
utilizados teriam todos eles desaparecido em todas
as línguas românicas?
• Como explicar que tal transformação tenha aconte-
cido em quatro séculos – desde o desaparecimen-
to do império romano por volta do ano 400 até o
aparecimento da língua românica mencionada no
Concílio de Tours no ano de 813 –, enquanto que
a estabilidade das línguas parece seguir uma lei
geral? Entretanto, Antoine Meillet destaca várias
vezes essa característica das línguas em seu livro
sobre a história da língua latina3: “língua de um
grande império, o latim manteve uma estabilidade
durante aproximadamente oitocentos anos.” Após
oito séculos de estabilidade, a língua teria repenti-
namente sofrido mutações em uma velocidade ver-
tiginosa, a ponto de se tornar irreconhecível!

Antoine Meillet percebe bem que, neste sentido,


existe uma curiosidade que seria própria apenas ao la-
tim, e ele se esforça para encontrar explicações para a
estabilidade de algumas línguas, como o fez para o tur-
co. “O turco de hoje é o turco de há mil anos; a esque-
matização rígida da língua preservou-a da mudança.”
Haveria uma lei que explicaria a preservação pelo esque-
matismo das línguas? Antoine Meillet também observa
que “a estrutura do árabe de hoje ainda é muito parecida
com a das línguas semíticas de há três mil anos”. E para
aqueles que conhecem o grego antigo e o grego moderno,

3
Na obra citada.
26 Yves Cortez

só podemos nos espantar diante da extraordinária conti-


nuidade do vocabulário e da gramática grega em dois mil
e quinhentos anos. Sim, as línguas são eminentemente es-
táveis, então, por que uma transformação do latim – e que
transformação! – no espaço de apenas quatro séculos?
Por que a língua latina se consolida, por que as lín-
guas românicas são tão parecidas entre si e tão diferentes
do latim?
Vamos rever com atenção todas estas questões e vou
me esforçar para fazer uma demonstração acessível aos
não-especialistas. Entretanto, é necessário que vocês te-
nham consciência dos dois obstáculos principais.
Em primeiro lugar, vocês não podem se esquivar do
peso do dogma e, assim, a mesma interrogação povoará suas
mentes: “Mas como pode ser que todas as universidades, de
todos os países, preguem que a língua latina tenha dado ori-
gem às línguas românicas? É possível que estejamos engana-
dos há tanto tempo e com a mesma constância? E por que um
amador faria esta descoberta, e não um catedrático?”
Justamente, eu não acredito que um homem da eli-
te pudesse questionar nem o dogma nem a tradição. Veja
como se autocensuram os linguistas Jean Perrot e Louis
Hjelmslev! Eles morrem na praia. Não sejam tímidos! Ou-
sem ir além do limite da lógica, sejam quais forem suas
convicções anteriores!
O segundo obstáculo provém da análise superficial
que pode nos fazer acreditar que o latim e os idiomas ro-
mânicos têm muitos pontos em comum. Aliás, isso não sig-
nifica que os segundos derivam do primeiro. O alemão e o
inglês, ambos idiomas germânicos, são bastante próximos e,
entretanto, o alemão não é a língua-mãe do inglês, e o mes-
mo acontece com o russo e o polonês, por exemplo.
O Francês não vem do Latim! 27

Os vários pontos comuns entre o latim e as línguas


românicas vêm de uma origem comum, o indo-europeu,
e até mesmo de um segmento deste, chamado itálico. In-
cluem-se também os efeitos de uma coexistência de qua-
se de vinte séculos entre as línguas românicas faladas e a
língua latina escrita, a ponto de várias palavras românicas
terem sido emprestadas do latim.
Enfim, a crença cega em uma origem latina das lín-
guas românicas levou os etimologistas franceses a inventar
uma origem latina para todas as palavras, ou quase. Todos
os procedimentos, dos mais engenhosos aos mais desones-
tos, foram utilizados para destacar uma pretensa filiação,
sem nenhuma regra científica. Mostrarei que a origem
indo-européia muitas vezes aparece com muito mais evi-
dência, e que é possível imaginar uma etimologia mais ra-
cional. Certamente vocês já ouviram falar milhares de ve-
zes que a palavra TRABALHO vem do latim TRIPALIUM
(instrumento de tortura), que a palavra ESCRAVO vem de
SLAVUS (eslavo), ou que a palavra FLORESTA vem de FO-
RESTIS (exterior). Estas etimologias não têm fundamento,
mas elas confortam a ideia de uma origem latina das lín-
guas românicas, enquanto que são apenas o resultado de
nossos velhos enganos.
Aqui também posso imaginar sua perplexidade.
Como? - vocês diriam - toda nossa etimologia seria falsa?
E quais são os seus títulos acadêmicos para se permitir tal
questionamento? Eu já disse, não faço parte da elite. Sim-
plesmente estudei, há anos, a linguística e várias línguas, e
descobri que havia outro caminho possível.
Permitam-me citar novamente Buda: “Não acredite
em uma coisa baseado-se apenas em rumores. Não acre-
dite na fé das tradições simplesmente porque elas são res-
28 Yves Cortez

peitadas há várias gerações. Não acredite em uma coisa


pelo simples testemunho de um sábio da antiguidade. Não
acredite em uma coisa porque as probabilidades estão em
seu favor, ou porque o hábito nos impele a considerá-la
verdadeira. Não acredite em nada se baseando apenas na
autoridade de seus mestres ou de sacerdotes.”
Livrem-se de suas crendices, não se entreguem aos
especialistas, julguem por si próprios.

Abaixo seguem dois esquemas de filiação


das línguas românicas. O esquema
“antigo”, aquele que é ensinado por todas
as universidades, e o esquema novo, aquele
que vou demonstrar neste livro.

No esquema antigo, o indo-europeu,


a língua primitiva seria transformada
em itálico, que por sua vez teria se
transformado em latim. Desde a época
romana, o latim teria se transformado em
baixo-latim, o qual teria dado nascimento
às línguas românicas.

No esquema novo, que vou demonstrar


neste livro, o indo-europeu teria se
transformado em itálico, que teria se
transformado, de um lado, em latim antigo,
bem antes da época romana e, de outro, o
italiano antigo teria dado nascimento às
diferentes línguas românicas, enquanto que
o latim não teve descendência.
O Francês não vem do Latim! 29

Esquema antigo

Indo-europeu

Itálico

Latim clássico

Época
romana
Baixo-latim

Línguas românicas
(italiano, francês, espanhol, romeno, [português]...)

Esquema novo

Indo-europeu 20.000 a.C.

Itálico 10.000 a.C.

Época
Italiano antigo Latim
romana

Línguas românicas
(italiano, francês, espanhol, romeno, [português]...)
Pesquisa sobre um dogma
acima de qualquer suspeita:
As sete provas irrefutáveis

Primeira prova
O latim é uma língua morta desde o séc. 1º d.C.

Obliti sunt Romae


loquier lingua latina.
Naevius
(aprox. 200 a.C.)

No séc. 2º a.C., em Roma, começa o


declínio da língua latina

Durante os primeiros séculos da história de Roma, o


latim era uma língua viva como o provam as primeiras pe-
ças de teatro. Ela não era nem a língua da aristocracia nem
uma língua artificial de uso do clero.
O início do desaparecimento do uso do latim, como
língua falada, data do séc. 2º a.C.. O latim não é mais falado
32 Yves Cortez

desde o séc. 1º da nossa era. Isso é testemunhado pelos es-


critos, pela evolução da literatura latina e pela concorrência
do grego. Vejamos...
Naevius, morto aproximadamente em 200 a.C.,
exigiu que se escrevesse em sua tumba: “OBLITI SUNT
ROMAE LOQUIER LINGUA LATINA”. (Em Roma não
se sabe mais falar a língua latina - citado por Aulu-Gelle
em Les nuits attiques1). Isso equivaleria a dizer que, 200
anos antes da nossa era, fala-se mal o latim, assim como
ouve-se na França alguns puristas se insurgindo contra o
mau uso que os jornalistas infringiriam à língua francesa.
Para os que acreditam que a língua latina está em plena
expansão, é difícil identificar no epitáfio2 que decora o tú-
mulo de Naevius um dado objetivo sobre o desapareci-
mento do latim “falado”. É por isso que, habitualmente,
eles escorregam em tais métodos. Entretanto, nada é dito
de forma inocente.
Suetônio, em seu estudo sobre os gramáticos e os
oradores aproximadamente 100 anos d.C., dizia sobre um
deles: “Caecilius Epitora [...] abriu uma escola [...] ele foi
o primeiro, dizem, a discursar em latim sem preparo”.
Então, seria necessário uma preparação para falar latim?
Nesse caso, igualmente, poderíamos não prestar atenção
alguma ao que está sendo dito. Por volta do ano 100 d.C.,
Suetônio se extasia diante da capacidade de um orador dis-
cursar “em latim sem preparo”. Que um orador se prepare,
nada de mais banal, mas que ele seja obrigado a se prepa-
rar para discursar em latim, me causa espanto.
Muitos historiadores da literatura latina observam
uma decadência e uma degradação da literatura e da lín-
gua latina no séc. 2º d.C.. Alexis Pierron exclama: “Após
Juvenal, a poesia desaparece; após Plínio o jovem, a elo-
1
Tradução da citação realizada pelos tradutores.
2
Inscrição tumular.
O Francês não vem do Latim! 33

quencia; após Tácito, a história.”3 Ele poderia ter lembrado


que o teatro também havia desaparecido há muito tempo.
Entretanto, restam grandes escritores do séc. 2º
d.C., como, por exemplo, Aulo-Gélio e Apuleius. Do pri-
meiro, Alexis Pierron disse: “ele usa muitas locuções es-
tranhas [...] ele tem, sobretudo, mania de arcaismo” e, do
segundo: “A barbárie que vemos despontar no estilo e nas
sentenças de Fronton e de Aulo-Gélio se estende compla-
centemente em Apuleius, e toma, por assim dizer, pos-
sessão da língua romana”, e mais adiante: “ A língua de
Apuleius é formada por todas as línguas ou, se preferir-
mos, de todos os patoás dos quais ele se impregnou du-
rante suas viagens.” Falando dos autores dos sécs. 3º e 4º,
suas qualidades literárias são inquestionáveis: “Nemesia-
no não passa de um imitador [...] seus poemas são quase
cópias de Virgílio [...]. As sentenças de Amiano Marcelino
são um tanto quanto bárbaras.”
H. Berthaut e C. Georgin, em sua Histoire Illustrée de
la Littérature Latine, são igualmente críticos: “a língua de
Apuleio é familiar, cheia de termos populares ou bárbaros
e neologismos. “4 Quanto aos outros cristãos do séc. 3º d.C.,
eles dizem que Arnóbio tem um estilo obscuro e bárbaro”,
de Lactâncio, que ele utiliza “algumas expressões bárba-
ras” e que a língua de Commodien “pulula de incorreções
e barbarismos.”
Morrisset e Thevenot, em Lettres Latines, obser-
vam que “os imperadores Adriano, Antonin e Commo-
de(117-192) conseguiram manter condições políticas
favoráveis”5 mas que isso não impede “uma decadência
das letras latinas profanas”.

3
Histoire de la Littérature Romaine, Hachette, 1882.
4
Publicação Hatier, 1939.
5
Publicação Magnard, 1966.
34 Yves Cortez

Jean Barbet6, em um livro clássico, conclui de sua


análise da literatura dos dois primeiros séculos da nossa
era: “os escritores continuaram a escrever uma língua clas-
sicizante, artificial [...] no séc. 2º eles até mesmo leram e
imitaram, de preferência, os autores arcaicos, cedendo a
uma tendência já bastante notável no tempo de Cícero”.

Arcaísmos e barbarismos no cardápio

Isso só pode ser explicado se o latim for considerada


língua morta, mais ou menos bem dominada pelos escrito-
res. Quando um escritor tem um conhecimento perfeito do
latim, ele imita os antigos (arcaísmos), e quando tem ape-
nas um conhecimento aproximativo, ele simplesmente co-
mete erros de latim, como alguns estrangeiros fazem erros
em francês ao falar a nossa língua (“barbarismos”). Parale-
lamente, a literatura latina se atrofia, por falta de letrados
que possam escrever em latim e de leitores que conheçam o
latim. O latim poderia ter caído no esquecimento, mas ele
foi salvo pela Igreja Católica que fez a escolha pelo latim
e não pelo grego.
Desde o séc. 2º a.C., o grego também era tão estudado e di-
fundido quanto o latim, tanto em Roma quanto em toda a Itália.
As línguas grega e latina eram ensinadas em igualdade de
condições nas escolas romanas, e os eruditos eram bilíngues,
manipulando-as com facilidade, utilizando uma ou outra
conforme sua vontade. No séc. 1º a.C., Salústio disse de um
de seus personagens: “Sempronia era instruída nas línguas
grega e latina de nascimento.”7 E isso, não porque ela tinha
sangue grego, mas porque ela era culta. A respeito de outro
personagem, Salústio disse: “Ele tinha um conhecimento
das línguas grega e latina tal qual os melhores eruditos.”8
6
Littérature Latine, Armand Colin, 1965.
7
La conjuration de Catalina, Les belles lettres, 1947.
8
La guerre de Jugurtha, Les belles lettres.
O Francês não vem do Latim! 35

Ao final do séc. 1º a.C., Ovídio, em A arte de amar, interpela


o leitor: “não considere como um cuidado fútil cultivar sua
inteligência pelas artes liberais e de se apropriar das duas
línguas.” Ele faz alusão, evidentemente, ao grego e ao latim.
No séc. 1º d.C., Petrônio, em Satiricon, testemunha a igual-
dade entre o latim e o grego: “E não creia que eu despreze
os estudos; tenho duas bibliotecas, uma grega e uma lati-
na”, disse um dos seus personagens. E falando de um es-
cravo particularmente brilhante, ele observa: “ele adquiriu
os rudimentos do grego e já dominava razoavelmente bem
o latim. “Haveria do que se espantar se um escravo come-
çasse a falar a língua dos seus senhores? Não, o que causa
a admiração de Petrônio é que o escravo começa a conhecer
a língua literária que se tornou o latim à época.
Suetônio diz que o imperador Tito, que reinou por
volta do ano 80 d.C., tem “uma performance perfeita tanto
na eloquência quanto na elaboração poética, tanto na lín-
gua grega quanto na latina, a ponto de improvisar poemas
e discursos nessas duas línguas.” Suetônio nos indica, tam-
bém, que na época de Domiciano, ao final do séc. 1º a.C.,
“disputavam-se os prêmios de eloquência e de prosa nas
línguas grega e latina”.
Juvenal, por volta de 120 d.C., em As Sátiras (VI), bra-
da: “Senhoras, não é mais vergonhoso ignorar o latim?”
Ele não recrimina as damas da alta sociedade por falarem
mal o latim; ele as recrimina por ignorá-lo! O vigor com o
qual Juvenal se expressa está à altura do mal. Não é tanto
por esnobismo que os patrícios falam grego, não é porque os
romanos são subjugados pela literatura e pelas artes gregas
que eles adotam o grego, mas porque o grego e o latim têm
o mesmo status. Ambas são línguas de erudição. E, nesta
concorrência, às vezes acontece de o grego ter a preferência
sobre o latim. Sabe-se que Favorino de Arlês, Cláudio Eliano
e Marco Aurélio escreviam essencialmente em grego e que
Suetônio e Apuleio escreviam nas duas línguas.
36 Yves Cortez

Como explicar um tal desenvolvimento do grego


em uma Roma cada vez mais dominante? Quando é que
já se viu um império acolher uma língua estrangeira com
tanta boa-vontade, sejam os impérios antigos (egípcio, as-
sírio, chinês...) ou contemporâneos (britânico, espanhol,
francês, russo)?
A língua latina há muito não era compreendida pelo
povo. Suetônio nos indica que Júlio César organizava,
em Roma “diferentes espetáculos: combates de gladia-
dores e jogos cênicos representados em todos os bairros
de Roma pelos histriões das três línguas”9.
Pierre Klossowski, na tradução que fez para a co-
leção “Le Livre de Poche”, em 1990, nos explica quais
seriam estas três línguas: “O latim, o grego e o osco (lín-
gua do teatro popular)”10. O povo compreendia o teatro
em osco! O quê? O osco seria ainda utilizado em Roma
à época de César e o povo assistia ao teatro em osco?
Na verdade, o latim e o grego eram, ao que tudo indica,
compreendidos apenas pela elite romana instruída e o
povo fala uma outra língua.
Além disso, quando o teatro não é apresentado em
língua popular, os atores recorrem à mímica, responsável
pelo seu sucesso. Quanto mais o tempo passa, menos o la-
tim é compreendido pelo povo, e as peças teatrais, escritas
em latim, não são acessíveis pela plebe. A mímica foi, no
início, um procedimento que visava ajudar a compreensão
dos textos; ela se tornou um recurso essencial de represen-
tação teatral à medida em que o latim desaparecia.
A evolução da língua de Roma conhece um caminho
inverso daquele conhecido pelas línguas dos grandes im-
périos. Ao que tudo indica, o latim não era mais a língua
do povo desde o início da conquista romana.

9
A Vida dos Doze Césares, Le Livre de Poche, 1990.
10
Ibid; nota 66.
O Francês não vem do Latim! 37

Além disso, Tito Lívio, para designar os diferentes


povos latinos, fala dos povos de nome latino (latini nomini)
e não de povos de língua latina.
A evolução linguística de Israel do séc. 5º ao séc.
1º a.C. apresenta muita semelhança com a de Roma.
Durante séculos, a língua falada em Jerusalém foi o hebreu.
Esta língua foi suplantada pelo aramaico, cujo uso cobria
uma vasta região do Oriente Médio. Por outro lado, o he-
breu continuou sendo a língua da religião e da literatura
do povo judeu. Assim, duas línguas coexistiam: o hebreu,
uma língua escrita, reservada à religião e à erudição, e o
aramaico, a língua falada.
Todos os elementos que expus, os escritos de Sa-
lústio, Suetônio e Juvenal, a evolução da literatura lati-
na, e o tratamento das letras gregas de forma equânime
com relação às letras latinas, só podem ser explicados se
for considerada a hipótese do desaparecimento precoce
do latim.
Portanto, os soldados e os colonos romanos levaram
consigo uma outra língua falada que não o latim, já que
esta já era uma língua morta à época da conquista roma-
na. Mas a vivacidade e a continuidade da escrita nos fize-
ram acreditar que a língua latina continuava viva além do
primeiro século da nossa era.
A Igreja Católica teve um papel involuntário na ilu-
são de que o latim era uma língua de uso corrente, fazendo
dela uma espécie de “língua franca” durante muitos sécu-
los, mesmo se uma concessão tenha sido feita às línguas
romana e germânica quando do Concílio de Tours, em 813,
quando foi exigido que os padres pregassem em “língua
romana rústica ou em língua germânica”, a fim de que to-
dos pudessem compreender mais facilmente”.
38 Yves Cortez

A língua romana rústica: um singular bem singular

O texto do Concílio de Tours emprega a expressão


de “lingua romana rustica” e, não, “língua latina rústica”.
Vejam só! A língua é qualificada de “romana” e nós esta-
mos em 813. Os redatores do texto do concílio poderiam
ter falado de língua “latina” rústica. Mas a língua falada
é designada sob o nome de “romana”. Este termo se refe-
re explicitamente a Roma e aos romanos. Mas, além dis-
so, utiliza-se o singular. Os redatores poderiam autorizar
o uso das línguas romanas rústicas. Não. Eles autorizam
a utilização da língua romana rústica.
Portanto, teria havido desde essa época, tão so-
mente quatro séculos após a queda do império romano,
uma mesma língua, uma única língua, na totalidade do
espaço cristão.
A única explicação plausível para este fato é que a
língua romana existia há muitos séculos, e que ela ainda
era relativamente homogênea para que fosse designada
por um singular. A intercompreensão era ainda grande
entre os diferentes povos de língua romana.
O texto do Sermão de Estrasburgo, escrito em 842,
que apresentarei no capítulo dedicado à lenta evolução
das línguas, desvenda um vocabulário muito próximo do
italiano. Esta língua romana rústica não é nada mais que
o “italiano antigo”, e eu vou demonstrá-lo nos capítulos
que seguem.
Nossa visão da paisagem linguística da Itália à época
romana é conturbada. É preciso dizer que nem a literatura,
nem a arqueologia nos ajudam de fato.
A história nos ensina que, antes da conquista da
Itália pelos romanos, no sécs. 4º e no 3º a.C, existia uma
diversidade de povos: ao norte de Roma, os etruscos e os
úmbrios, à leste os sabinos, os équos, e os samnitas e, ao
sul, os oscos, os volscos, os campanienses, os hérnicos e os
O Francês não vem do Latim! 39

latinos. Estes povos eram mais ou menos poderosos, e de


culturas mais ou menos desenvolvidas. Mas não sabemos
quase nada a respeito de sua língua. Inscrições e peque-
nas placas em bronze foram achadas num raio de duzentos
quilômetros nos arredores de Roma, escritas em três lín-
guas diferentes do grego e do latim: o osco, o úmbrio e o
etrusco. Mas os textos são curtos e não permitem um estu-
do completo e comparativo das línguas. Enquanto não des-
cobrirmos uma “pedra de roseta itálica”, não poderemos
concluir coisa alguma. A única coisa que se pode afirmar
com certeza é que, além do latim, outras línguas escritas
eram utilizadas pelos povos vizinhos dos romanos.
Arrisco fazer uma comparação perigosa, mas que re-
mete à mesma realidade. Na Argélia de hoje, o povo arge-
lino fala duas línguas: o árabe dialetal, em sua maioria e,
em algumas regiões, a língua cabila. No entanto, se aconte-
cesse na Argélia uma catástrofe como a que aconteceu em
Pompéia, e que arqueólogos removessem as ruínas vinte
séculos mais tarde, o que eles encontrariam? Inscrições em
árabe clássico e em francês. Assim, eles concluiriam que,
no séc. 21, o povo argelino falava árabe clássico e francês;
no entanto, ele não fala nem uma nem outra dessas lín-
guas. Na Argélia, os idiomas árabe clássico e francês estão
presentes na escrita, mas são quase inexistentes como lín-
guas faladas.
Levante a mesma hipótese para os países andinos
na América Latina. Os arqueólogos descobririam uma
abundância de inscrições em espanhol e, às vezes, em
algumas igrejas, inscrições em latim, mas não encontra-
riam nenhum vestígio das duas grandes línguas indíge-
nas ainda amplamente utilizadas: o quéchua e o guarani.
É um erro grave e constante cometido pela linguística
oficial quando confunde língua escrita e língua falada.
Os vestígios escritos nem sempre testemunham a reali-
dade da língua falada.
40 Yves Cortez

Da mesma forma, nada nos permite afirmar que a lín-


gua “osca” e a língua “etrusca” eram ainda faladas à épo-
ca romana. Acredito, sobretudo, que elas tenham mantido
um caráter sagrado durante séculos, mas que o “italiano
antigo”, depois de destronar o latim em Roma, impôs-se
em toda a Itália, como consequência da conquista romana,
que suprimiu as barreiras físicas, culturais e econômicas
entre todos os povos conquistados.
A idéia segundo a qual o latim teria desapareci-
do gradualmente durante os primeiros séculos da nossa
era, não resiste à análise. O latim, que foi uma língua
muito utilizada nos primeiros tempos da história de
Roma, provavelmente entrou em declínio desde o séc. 2º
a.C., tornando-se uma língua morta no séc. 1º d.C., ser-
vindo apenas a usos administrativos e acadêmicos. Se a
língua latina tivesse evoluído depois do séc. 1º, encon-
traríamos vestígios escritos. No entanto, observa-se ou
reproduções malfeitas (haja vista os arcaísmos) ou o des-
conhecimento da língua (haja vista os barbarismos). Mas
em momento algum aparece, nem no vocabulário, nem
na gramática, o que se poderia qualificar como estágio
intermediário da língua. Portanto, os soldados e os co-
lonos romanos não puderam levar o latim como língua
falada, e isso em momento algum da conquista romana.
Por outro lado, eles levaram o latim como língua escrita
para todo o império romano.

Segunda Prova
O vocabulário de base das línguas romanas
não é latino

A dificuldade de comparar os vocabulários de


duas línguas, por exemplo, o latim e o italiano, ou o in-
O Francês não vem do Latim! 41

glês e o alemão, pode ter duas origens. Ou estas línguas


estiveram em estreito contato, devido à coexistência de
dois povos em um mesmo território, ou devido a uma
dominação política e militar de um povo sobre o outro,
o que pode ter provocado vários empréstimos de voca-
bulário. Ou, então, as línguas tem a mesma origem, e foi
a mesma base inicial que as formou. Portanto, torna-se
difícil distinguir a parte do vocabulário que foi empres-
tada da parte que tem uma origem comum. Desta forma,
o inglês e o alemão são duas línguas germânicas, e sua
semelhança é oriunda de uma base comum.

O vocabulário de base e os empréstimos

O vocabulário das línguas romanas é muito diferente


daquele do latim. Entretanto, os empréstimos do latim fo-
ram tão importantes que eles podem esconder esta realida-
de. Portanto, convém extrair as palavras emprestadas para
redescobrir o vocabulário original.
As palavras emprestadas se caracterizam de duas
formas:

1. Elas se relacionam a domínios específicos caracte-


rísticos de um estado avançado do desenvolvimen-
to, como o direito, a filosofia, a teologia...
2. E elas foram pouco afetadas pelas transformações
fonéticas.

Em outras palavras, elas são quase idênticas às pala-


vras da sua língua de origem.
Apresento nas tabelas seguintes a tradução em fran-
cês de adjetivos e palavras do vocabulário latino, que evi-
dencia a grande semelhança entre as palavras francesas e
latinas. As diferenças dizem respeito apenas às termina-
ções das palavras.
42 Yves Cortez

ADJETIVOS
Latim Francês

Abjectus Abject [Abjeto]

Aeternus Éternel [Eterno]

Beatus Béat [Beato]

Bellicosus Belliqueux [Belicoso]

Ferox Féroce [Feroz]

Foetidus Fétide [Fétido]

Gracilis Gracile [Grácil]

Honestus Honnête [Honesto]

Horribilis Horrible [Horrível]

Ignominiosus Ignominieux [Ignominioso]

Illicitus Illicite [Ilícito]

Immobilis Immobile [Imóvel]

Imperiosus Impérieux [Imperioso]

Incertus Incertain [Incerto]

Inquietus Inquiet [Inquieto]

Obsequiosus Obséquieux [Obsequioso]

Perpetuus Perpétuel [Perpétuo]

Probus Probe [Probo]

Puerilis Puéril [Pueril]

Pugnax Pugnace [Pugnaz]

Sordidus Sordide [Sórdido]

Viscosus Visqueux [Viscoso]

SUBSTANTIVOS
Latim Francês

Dedicatio Dédicace [Dedicatória]

Gleba Glèbe [Gleba]

Globus Globe [Globo]

Grabatus Grabat [Grabato]


O Francês não vem do Latim! 43

Latim Francês

Haeresis Hérésie [Heresia]

Haesitatio Hésitation [Hesitação]

Hereditas Hérédité [Hereditariedade]

Historia Histoire [História]

Humilitas Humilité [Humildade]

Ignoratio Ignorance [Ignorância]

Illustratio Illustration [Ilustração]

Imitator Imitateur [Imitador]

Imperitia Impéritie [Imperícia]

Impulsio Impulsion [Impulso]

Inanitas Inanité [Inanidade]

Incendium Incendie [Incêndio]

Incitatio Incitation [Incitação]

Indecentia Indécence [Indecência]

Indignatio Indignation [Indignação]

Indulgentia Indulgence [Indulgência]

Industria Industrie [Indústria]

Inertia Inertie [Inércia]

Infamia Infamie [Infâmia]

Inscriptio Inscription [Inscrição]

Inundatio Inondation [Inundação]

Preaerogativa Prérogative [Prerrogativa]

Simulacrum Simulacre [Simulacro]

Voracitas Voracité [Voracidade]

Mediante a leitura destas listas de palavras, verifi-


cam-se dois fatos:
1. Essas palavras francesas são quase idênticas às
latinas. (Apenas a última sílaba destas palavras é
ligeiramente transformada).
2. Quase todas essas palavras tem uma conotação li-
44 Yves Cortez

terária, técnica ou erudita.


Mais precisamente, as palavras emprestadas são rara-
mente deformadas, pois trata-se especificamente de palavras
latinas. Primeiramente, elas foram utilizadas pelos clérigos,
que tinham um perfeito conhecimento do latim, depois fize-
ram parte do uso corrente.
Para se comparar duas línguas, é necessário eliminar
as palavras de empréstimo sob pena de fazer afirmações
descuidadas relativas ao seu parentesco. Assim, todos os
linguistas admitem que o inglês é uma língua germânica
mesmo contendo muitas palavras semelhantes ao fran-
cês. O inglês e o alemão têm uma origem comum batizada
“germânica”. Contudo, a língua inglesa absorveu, durante
séculos após a conquista normanda, milhares de palavras
do francês, a tal ponto que certos textos do inglês são bem
próximos do francês. Eis alguns exemplos:

The information contained in this message is confidential.


L’information contenue dans ce message est confidentielle.
[A informação contida nesta mensagem é confidencial.]

Spanish is a rich and expressive language.


L’espagnol est une langue riche et expressive.
[O espanhol é uma língua rica e expressiva.]

The grammatical structure of the language has


changed enormously.
La structure grammaticale de la langue a changé énormément.
[A estrutura gramatical da língua mudou enormemente.]

Lendo essas frases, um observador pouco atento po-


deria concluir que as línguas francesa e inglesa têm uma
relação de parentesco. Esse observador seria, de fato, ilu-
O Francês não vem do Latim! 45

dido pelas palavras inglesas emprestadas do francês. Daí a


necessidade de separar as palavras emprestadas das pala-
vras de “base”.
Em seu primeiro estágio, as línguas possuíam um
vocabulário feito de palavras correntes que constituem “o
vocabulário de base”. O inglês possuía um vocabulário de
base germânico, ao qual foi agregado, pouco a pouco, um
vocabulário francês. O mesmo acontece para as línguas
românicas, que tinham um vocabulário de base “italiano
antigo” que, ao longo dos séculos, sofreu acréscimos de
inúmeras palavras emprestadas do latim.
As línguas românicas e o latim continuaram em con-
tato durante mais de vinte séculos e parte do vocabulário
latino foi incorporado às línguas românicas durante três
grandes períodos.

• Do séc. 3º a.C. ao séc. 1º d.C., os povos latino e ita-


liano coexistem e o aporte é direto.
• Do séc. 2º ao 16, o latim, apesar de língua morta,
continua sendo a única língua escrita da Europa
Ocidental e, os eruditos, religiosos e juristas op-
tam continuamente às fontes, seja para emprestar
uma palavra latina, e até mesmo uma palavra gre-
ga por intermédio do latim, seja para cunhar um
novo termo.
• Em tempos modernos, a necessidade de novas pa-
lavras nos domínios científico e técnico abre uma
nova era aos empréstimos feitos às línguas antigas.

Assim, as línguas românicas contam com milhares


de palavras latinas, mas essas palavras quase nunca são
palavras da vida quotidiana.
Lembro que meu esquema das línguas itálicas é o
seguinte.
46 Yves Cortez

Itálico

Italiano antigo Latim

Línguas românicas
(italiano, francês, espanhol, romeno, [português]...)

É preciso detalhá-lo como segue, para ressaltar


os aportes contínuos do vocabulário latino às línguas
românicas:

Itálico

Época
romana
Italiano antigo Latim

Línguas românicas Época moderna


(italiano, francês, espanhol, romeno, [português]...)

As flechas ilustram não apenas uma relação de pa-


rentesco, mas um fluxo de vocabulário. Esquematicamen-
te, ilustrei dois fluxos, apesar de que, na verdade, trata-se
de um único fluxo desdobrado em mais de 20 séculos.
Isso me leva a conceber um vocabulário de base que
deve representar as palavras correntes relativas à atividade
humana, à exceção dos domínios sofisticados da política,
religião, arte, técnica, direito, filosofia...
Apesar de menos complexo que o vocabulário con-
O Francês não vem do Latim! 47

temporâneo, nem por isso ele é rudimentar. Escrita em


uma época na qual a organização social e os conheci-
mentos técnicos estavam apenas iniciando, a Bíblia conta
com mais de 6.000 palavras distintas. Os povos qualifica-
dos como “bárbaros” pelos gregos possuíam, igualmen-
te, um vocabulário bem extenso. Mas, antes disso, quero
precisar a segunda razão que induz os linguistas ao erro.
O latim e o “italiano antigo” têm uma origem comum, e
tem, portanto, pontos em comum, como as línguas in-
glesa e alemã têm pontos comuns, pois elas também são
provenientes de uma mesma origem.

Uma origem comum: o itálico

O latim e o “italiano antigo” têm a mesma origem,


chamada “itálica”. Para fixar as ideias, eu diria que esta
origem comum remonta a 10.000 anos a.C.. É impos-
sível precisar cientificamente a data em que os povos
itálicos, que falavam a mesma língua, se separaram e
criaram, a partir de um mesmo tronco comum, duas
línguas tão distintas quanto o latim e o “italiano anti-
go”. Eu poderia ter indicado não 10.000 anos, mas um
intervalo entre 1.000 e 10.000 anos. No capítulo sobre a
evolução das línguas, mostrarei como, em geral, as lín-
guas evoluem lentamente, o que me leva a pensar que
1.000 anos seria pouco tempo para criar duas línguas
tão diferentes quanto o latim e o “italiano antigo” e é
por isso que eu estabeleço, de preferência, uma faixa de
10.000 anos.
Meu objetivo é, antes de tudo, expor que, apesar de
bem distintos, o latim e o “italiano antigo” têm uma ori-
gem comum, que eu represento da seguinte forma:
48 Yves Cortez

Itálico

Italiano antigo Latim

Sob a forma gráfica de



círculos, apresento conjuntos
e subconjuntos de vocabulários.

,WiOLFR


 


 ,WDOLDQR
/DWLP DQWLJR
 
 

Esta apresentação permite desdobrar os vocabulá-


rios das três línguas e salientar diferentes subconjuntos.
O grupo 1 representa o vocabulário da língua-mãe,
o itálico, que não foi transmitido às línguas descenden-
tes. Esse grupo tem pouca importância. Em geral, a cria-
ção dos vocabulários se faz através de estratos sucessi-
vos, sem abandono do vocabulário anterior.
O grupo 2 representa o vocabulário da língua-mãe,
que foi transmitido a uma língua, mas não à outra.
O grupo 3 representa palavras de origem itálica que
foram transmitidas tanto a uma quanto a outra língua, e
dão a impressão que uma língua provém da outra.
O Francês não vem do Latim! 49

O grupo 4 representa as palavras próprias à cada


língua descendente. Elas são “autofabricadas” pelos pro-
cedimentos clássicos: metonímia, palavras compostas, de-
formação fonética... Cada povo, ao desenvolver o seu me-
canismo próprio, cria pouco a pouco sua própria língua.
O grupo 5 corresponde às palavras comuns às duas
línguas que não provêm da língua-mãe: são as palavras de
empréstimo.
Essas distinções complexas são necessárias para uma
boa compreensão do que segue.
Vamos nos deter no grupo 3. Quando palavras são
semelhantes em italiano e em latim, isso pode provir de
sua origem comum. Isto não prova, contudo, que as lín-
guas românicas vêm do latim. Os vocabulários de base do
inglês e do alemão são próximos, o que não significa di-
zer que o inglês vem do alemão, e vice-versa. Contudo, os
vocabulários de base do inglês e do alemão são mais pró-
ximos que o são os vocabulários latino e românico. Como
isso pode não ter chamado a atenção dos linguistas? Como
as línguas alemã e inglesa, que são “línguas irmãs”, seriam
mais próximas uma da outra que o são o latim e o italiano
que, supostamente, têm uma filiação direta?
Assim, não devemos nos extasiar prematuramente a
respeito das semelhanças observadas entre os vocabulários
das línguas latina e românica. Estas podem ser devidas à
sua origem itálica única.

Antes do itálico: o indo-europeu

Os linguistas concordam que as grandes similarida-


des existentes entre as diferentes línguas da Europa, do Irã
e da Índia sugerem uma língua comum, a qual eles cha-
mam de língua indo-europeia. Através de sucessivos fra-
cionamentos, o indo-europeu deu origem a diferentes lín-
guas europeias, iranianas e indianas.
50 Yves Cortez

Assim, no que diz respeito ao francês, as etapas fo-


ram as seguintes: do indo-europeu surgiram várias ramifi-
cações, dentre as quais o itálico. O itálico deu origem a pelo
menos duas ramificações: o latim, que não deu origem a
nenhuma outra língua, e o “italiano antigo”, que deu ori-
gem a todas as línguas românicas.
O fluxograma a seguir representa as diferentes famí-
lias e as diferentes línguas oriundas do indo-europeu:
Indo-europeu
Itálico

Latim Italiano antigo

Italiano
Frances
Espanhol
Romeno
[Português]

Germânico

Anglo-saxão Proto-alemão Escandinavo

Inglês Alemão Sueco


Frísio Alemãnico Norueguês
Neerlandês Dinamarquês

Proto-eslavo

Russo Polonês Tcheco Búlgaro

Proto-indiano

Indiano

Proto-iraniano

Iraniano

Grego antigo

Grego moderno

Proto-celta

Bretão Gaélico

Outras línguas indo-europeias distintas:


albanês, armênio, lituano, letão
O Francês não vem do Latim! 51

Assim como eu situo o itálico por volta de 10.000


anos a.C., situo o indo-europeu por volta de 20.000 a.C..
Em outros termos, para mim, o homem de Cromag-
non e seus descendentes utilizavam a língua indo-europeia.

Os três primeiros estratos do vocabulário


das línguas românicas

A longa filiação que acabo de apresentar, que vai do


indo-europeu ao francês, passando pelo itálico e o “italiano
antigo”, deixou no vocabulário vestígios de cada uma das
etapas da história da língua.

1. O ESTRATO INDO-EUROPEU; exemplo, a pala-


vra NEZ [nariz]:
Tomemos a palavra NEZ [nariz]. Verifica-se uma se-
melhança desta palavra nas línguas itálicas, germânicas e
eslavas (italiano NASO, alemão NASE, russo NOS). Levanto
a hipótese de que a palavra indo-europeia era NAS, que deu
origem ao itálico NAS, o qual deu origem ao latim NASUS,
de um lado e, de outro, no “italiano antigo”, NASO, que, por
sua vez, originou a palavra NASO no italiano moderno e,
em francês, NEZ, conforme o fluxograma seguinte:
Indo-europeu (-20.000) NAS

Itálico (-10.000) NAS

Italiano antigo e latim NASO NASUS


(italiano antigo) (latim)

Línguas românicas NEZ NASO


(francês) (italiano)
52 Yves Cortez

Os etmologistas oficiais querem absolutamente que


a palavra NEZ tenha origem no latim NASUS; na verda-
de, a palavra NEZ mantém vestígios de sua origem indo-
-europeia, e nos foi transmitida pelo itálico e depois pelo
“italiano antigo”.

2. O ESTRATO ITÁLICO; exemplo, a palavra MAIN


[mão]:
Verifica-se, no que diz respeito à palavra MAIN
[mão], semelhança entre as línguas romanas e o latim. Po-
demos considerá-la uma palavra itálica, que se transmitiu
aos dois ramos oriundos do itálico: o latim e o “italiano
antigo”.
Por outro lado, a palavra MAIN é diferente nas outras
línguas indo-europeias; portanto, ela não é indo-europeia,
mas unicamente itálica, segundo o fluxograma abaixo:
Indo-europeu (-20.000) ?

Itálico (-10.000) MANO

Italiano antigo e latim MANO MANUS


(latim)

Línguas românicas MAIN MANO


(francês) (italiano)

Os etimologistas atribuem a origem da palavra


MAIN ao latim MANUS. Considero que a palavra MAIN
tenha uma origem itálica, e não latina.

3. O ESTRATO “ITALIANO ANTIGO”; exemplo, a


palavra JAMBE [perna]:
Nas diferentes línguas indo-europeias, a palavra
O Francês não vem do Latim! 53

JAMBE se apresenta de formas muito diferentes. Assim, a


palavra não é indo-europeia ou, mais precisamente, esta
palavra ainda não existia à época indo-europeia; portan-
to, ela não foi transmitida às diferentes famílias linguísti-
cas. Ela se apresenta de forma diferente em latim (CRUS).
Tampouco se trata de uma palavra itálica. Por outro lado,
diz-se GAMBA em italiano e em romeno. Portanto, lanço a
hipótese de que a palavra JAMBE venha do “italiano antigo”
GAMBA que, em francês, sofreu uma pequena alteração.
Indo-europeu ?

Itálico ?

Italiano antigo GAMBA

Línguas românicas GAMBA JAMBE


(italiano) (francês)

Exemplo de classificação das palavras: aplicações às


palavras relativas ao corpo humano.

Acabei de apresentar o método de classificação que


apliquei às palavras mais correntes do corpo humano, ten-
do-o feito segundo sua origem.

1. AS PALAVRAS INDO-EUROPEIAS
As palavras NEZ [nariz], OREILLE [orelha], OEIL
[olho], DENT [dente]... são praticamente idênticas em to-
das as línguas indo-europeias.

NEZ It NASO Lat NASUS Port NARIZ Alemão NASE Russo NOS
OREILLE It ORECCHIO Lat AURIS Port ORELHA Alemão OHR Russo OUXO
OEIL It OCCHIO Lat OCULUS Port OLHO Alemão AUGE Russo OTCHI
DENT It DENTE Lat DENS Port DENTE Alemão ZAHN Hindi DANT
CABOCHE It CAPO Lat CAPUT Port CABEÇA Alemão KOPF Russo GOLOV
54 Yves Cortez

COEUR It CUORE Lat CORDIS11 Port CORAÇÃO Alemão HERZ Grego KARDIA
LÈVRE It LABRO Lat LABRUM Port LÁBIO Alemão LIPPE
POIL It PELO Lat PILUS Port PELO Alemão PELZ Russo VOLOS

Portanto,11tratam-se de palavras indo-europeias, ou


seja, elas existiam numa época muito antiga, antes de seu
desdobramento em diferentes famílias linguísticas.

2. AS PALAVRAS ITÁLICAS
As palavras PIED [pé], MAIN [mão], CHEVEU [ca-
belo], LANGUE [língua], BRAS [braço] e DOIGT [dedo]
são idênticas em todas as línguas românicas e em latim,
mas diferentes das palavras das línguas das outras famílias
indo-europeias.
PIED It PIEDE Lat PEDIS Port PÉ Ing. FOOT Russo NOGA
MAIN It MANO Lat MANUS Port MÃO Ing. HAND Russo ROUKA
CHEVEU It CAPELLO Lat CAPILLUS Port CABELO Ing. HAIR Russo VOLOS
LANGUE It LINGUA Lat LINGUA Port LÍNGUA Ing. TONGUE Russo IAZIK
BRAS It BRACCIO Lat BRACHIUM Port BRAÇO Ing. ARM Russo ROUKA
DOIGT It DITO Lat DIGITUS Port DEDO Ing. FINGER Russo PALETS

As palavras PIED, MAIN, CHEVEU, LANGUE,


BRAS e DOIGT têm origem itálica e não latina.

3. AS PALAVRAS EM “ITALIANO ANTIGO”


Francês Italiano Português Espanhol Romeno Latim
COUDE GOMITO12 COTOVELO CODO COT CUBITUS
FOIE FEGATO FÍGADO HÍGADO FICAT IECUR
JAMBE GAMBA PERNA PIERNA13 GAMBA CRUS

É possível descobrir,12nesta categoria, palavras que


não vêm do latim, e que são quase idênticas em todas as
línguas românicas,13com algumas poucas exceções. O mais
surpreendente é que as palavras romenas são eminente-

11
Esclareço aos puristas que preferi escolher a forma do genitivo quando esta é
diferente do nominativo. Nada me permite afirmar que o genitivo provém do
nominativo e não o inverso.
12
Palavras divergentes em relação às outras línguas românicas. Note-se, além
disso, que elas são pouco numerosas.
13
Idem observação 15
O Francês não vem do Latim! 55

mente “românicas”. No entanto, a Romênia se libertou do


Império Romano no ano de 270 da nossa era, o que nos leva
a pensar que a língua que foi levada para a Romênia já era
o “italiano antigo” e não o latim.
Quando uma palavra é de origem indo-europeia ou
itálica, os etimologistas decretam sem hesitação que a pala-
vra vem do latim. Assim, para eles, a palavra NEZ [nariz],
viria do latim NASUS e a palavra PIED [pé] viria do latim
PES. Eles cometem um erro grave de raciocínio, mas não
estão conscientes disso. Eles nem questionam o fato. Para
eles, a origem latina do vocabulário das línguas români-
cas é um axioma. Eles enganam a si próprios e aos outros.
Vejam, dizem eles, não há dúvida a respeito da semelhança
entre as palavras latinas e as palavras francesas! Para a in-
felicidade deles, existem palavras do “italiano antigo” que
não se assemelham em nada ao latim e isso os desnorteia.

O vocabulário do “italiano antigo”

O vocabulário das línguas românicas é bem dife-


rente do vocabulário do latim, se deixarmos de lado as
palavras eruditas que são, em sua maioria, emprestadas
do latim.
Sugiro uma análise detalhada do vocabulário de base
das línguas românicas, do vocabulário da vida quotidiana
dos Romanos, agrupando as palavras por temas: a guerra,
o ambiente natural, a vida doméstica, a família, o vestuá-
rio, os animais, a medida do tempo, a organização social,
os números e, por fim, os adjetivos, os verbos e as palavras
mais correntes.
Poderia-se esperar que, no domínio da guerra,14o
latim, suposta língua dos conquistadores romanos,15tenha
transmitido o seu vocabulário às línguas românicas.
14
Idem observação 15
15
Idem observação 15
56 Yves Cortez

Mas não é bem assim. Julguem por si mesmos.


Francês Italiano Português Espanhol Romeno Latim
TRAITÉ TRATTATO TRATADO TRATADO TRATAT FOEDUS

OTAGE OSTAGGIO REFÉM REHÉN14 OSTATIC OBSES

GUERRE GUERRA GUERRA GUERRA RAZBOI15 BELLUM

DÉSASTRE DISASTRO DESASTRE DESASTRE DEZASTRU CLADES

LUTTE LOTTA LUTA LUCHA LUPTA PUGNA

FLOTTE FLOTTA FROTA FLOTA FLOTA CLASSIS

BRONZE BRONZO BRONZE BRONCE BRONZ AES

ESCLAVE SCHIAVO ESCRAVO ESCLAVO SCLAV SERVUS

GÉNÉRAL GENERALE GENERAL GENERAL GENERAL IMPERATOR

BRAVE BRAVO BRAVO BRAVO BRAVA PROBUS

CASQUE CASCO CAPACETE CASCO CASCA GALEA

ORPHELIN ORFANO ÓRFÃO HUÉRFANO ORFAN ORBUS

COUP COLPO GOLPE GOLPE LOVITURA16 ICTUS

GALOP GALOPPO GALOPE GALOPE GALOPA CURSUS

MASSACRE MASSACRO MASSACRE MATANZA MASSACRU CAEDES

MASSUE MAZZA MAÇA MAZA MACIUCA CLAVA

Curioso, não? Poderia-se acrescentar a esta


lista as palavras SOLDAT [soldado], BATAILLE
[batalha],16MARÉCHAL [marechal]... e tirar disso as mes-
mas conclusões: constata-se sempre a extraordinária pro-
ximidade dos vocabulários das línguas românicas, do ro-
meno ao espanhol. Observa-se que não há mais vestígios
nas línguas românicas das palavras PROELIUM, ORBUS,
ICTUS, etc.. As palavras PUGNACITÉ [pugnacidade],
HOSTILITÉ [hostilidade], BELLIQUEUX [belicoso]... são
literárias, manifestadamente emprestadas.
No que se transformaram as palavras latinas AG-
MEN, ACIES, ARX, CERTANEM, DIMICATIO, ENSIS,
INSIDIAE, MUNIO, SAGITTA, TELUM...? Elas teriam de-
saparecido... em todas as línguas românicas!
Tenho dificuldade em acreditar que os romanos di-
ziam GUERRE e escreviam BELLUM, que eles diziam
16
Idem observação 15
O Francês não vem do Latim! 57

COMBAT e escreviam PROELIUM, que eles diziam MAS-


SACRE e escreviam CAEDES...
Tenho dificuldade em acreditar que o vocabulá-
rio que chegou até nós seja um latim deformado. Não há
vestígio algum de latim nas palavras GUERRE [guerra],
COMBAT [combate], LUTTE [luta], ENNEMI [inimigo],
ESCLAVE [escravo], BRAVE [bravo], CASQUE [capace-
te], ORPHELIN [órfão], COUP [golpe], GALOP [galope],
MASSACRE [massacre], MASSUE [maça]...
E então, de onde vêm essas palavras?
A partir da tabela seguinte, introduzirei uma co-
luna intitulada “italiano antigo” onde aparecem pala-
vras originais que deram origem às palavras das lín-
guas romanas.
Assim, por exemplo, a palavra ROCHER [rochedo] se
diz ROCCIA em italiano, ROCA em espanhol e em rome-
no. Considero que, no início, houve uma palavra italiana
antiga que deu origem às palavras das diferentes línguas
românicas, e esta é muito provavelmente a palavra ROCA.
A palavra PLAGE [praia], que se diz SPIAGGIA em
italiano, PLAYA em espanhol e PLAJA em romeno, origi-
na-se certamente da palavra em “italiano antigo” PLAJA.
Minha abordagem visa à encontrar a palavra que
mais se aproxima de seus descendentes. Devem haver
poucos erros, dada a proximidade das palavras das lín-
guas românicas.
Vou apresentar as palavras do “italiano antigo” fa-
zendo-as preceder de um pequeno sinal para lembrar de
que se tratam de palavras recompostas.
Vejamos agora as palavras relativas ao ambiente na-
tural e à vida doméstica.
58 Yves Cortez

Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto

BAIE BAIA BAÍA BAHÍA BAIE ° BAIA SINUS

BOIS BOSCO BOSQUE BOSQUE LEMN ° BOSCO NEMUS / SILVA

CAMPAGNE CAMPAGNA CAMPANHA CAMPANA CAMPANIE ° CAMPANIA RUS

CHAMBRE CAMERA CÂMARA CÁMARA CAMARA ° CAMARA CUBICULUM

CHEMIN CAMMINO CAMINHO CAMINO CALE ° CAMINO ITER / SEMITA

EST EST LESTE ESTE EST ° EST ORIENS

FÛT FUSTO FUSTE TONEL BUTOI ° FUSTO CADUS

GRANGE GRANAIO GRANJA GRANERO HAMBAR ° GRANARO HORREUM

JARDIN GIARDINO JARDIM JARDÍN GRADINA ° JARDINO HORTUS

NORD NORD NORTE NORTE NORD ° NORD SEPTEMTRIONES

OUEST OVESTE OESTE OESTE VEST ° OVESTE OCCIDENS

PLAGE SPAGGIA PRAIA PLAYA PLAJA ° PLAJA LITUS

ROCHER ROCCIA ROCHEDO ROCA ROCA ° ROCA SAXUM

SUD SUD SUL SUR SUD ° SUD MERIDIES

Não é impressionante que as línguas românicas não


tenham herdado vocábulos da língua latina para descrever
o ambiente imediato e a vida doméstica? Como acreditar
que se dizia NORD [norte], SUD [sul], EST [leste], OUEST
[oeste] e que se escrevia SEPTEMTRIONES, MERIDIONES,
ORIENS, OCCIDENS, ou que se dizia ° BAHIA, ° PLAJA, °
ROCA... e que se escrevia SINUS, LITUS e SAXUM!
À primeira vista, as palavras relativas à família pa-
recem se originar diretamente do latim. Vou me esforçar
para esclarecê-lo.
Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto
BÉBÉ / BANBIN /
BAMBINO BEBÊ BEBÉ PRUNC INFANS
BAMBIN BÉBÉ
ÉPOUSE SPOSA ESPOSA ESPOSA SOTSIE SPOSA UXOR
MÈRE MADRE MÃE MADRE MAMA MADRE MATER

ONCLE / PATRUUS /
ZIO TIO TIO OUNKI TIO
TONTON AVUNCULUS

PÈRE PADRE PAI PADRE TATA PADRA PATER

TANTE / AMITA /
ZIA TIA TIA MATOUCHA TIA
TATA MATERTERA
O Francês não vem do Latim! 59

Constata-se a existência de palavras do “italiano anti-


go” que não têm relação alguma com o latim: ° TIO, ° TIA,
° SPOSA, ° BANBIN, enquanto que as palavras PATRUUS,
AMITA, MATERTERA e UXOR não deixaram vestígio em
nenhuma língua românica!
A palavra francesa PÈRE [pai], e a palavra italiana
e espanhola PADRE são apresentadas normalmente como
derivadas do latim PATER. No entanto, as palavras das
línguas românicas são as únicas a ter uma segunda sílaba
que começa pela letra D, enquanto que nas outras línguas
indo-europeias encontra-se um T: alemão, VATER, grego
PATIR. A letra D é provavelmente do “italiano antigo”. No
Sermão de Estrasburgo, escrito em 842, a palavra francesa
FRÈRE [irmão] se diz FRADRE e não FRATRE.
Você pode dizer que estamos entrando em deta-
lhes. Isso é necessário para que se possa fazer uma aná-
lise objetiva.
Vamos comparar as palavras relativas ao vestuário.
Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto
CUECA /
CALEÇON CALZONI CALZONCILLOS IZMENE CALZON ?
CEROULA

CHAPEAU CAPELLO CHAPÉU SOMBRERO PALARIE CAPELO PETASUS

CHEMISE CAMICIA CAMISA CAMISA CAMASA CAMISA SUBUCULA

CASACO /
MANTEAU MANTELLO ABRIGO MANTOU MANTO PALLIUM
MANTO

PANTALON PANTALONI CALÇA PANTALON KILOTI PANTALON BRACAE


SARTO /
TAILLEUR SARTO TAILLEUR SASTRE TAIETOR ?
TAIETOR

A moda do vestuário teria evoluído a este ponto, ou


seria necessário admitir que os Romanos falavam PANTA-
LON [calças], CAMISA (chemise) e CAPELO (chapeau)
[chapéu] e escreviam BRACAE, SUBUCULA e PETASUS?
Para mim, não se trata nem de um e nem de outro.
A única explicação plausível é admitir que se trata de
duas línguas diferentes.
60 Yves Cortez

Os latinos tinham as mesmas palavras que os italia-


nos para designar os animais, ou havia animais diferentes?
Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto
CHASSER CACCIARE CAÇAR CAZAR GONI ° CASSAR VENARI
CHAT GATTO GATO GATO PISICA ° GATO FELES
CHEVAL CAVALLO CAVALO CAVALLO CAL ° CAVALLO EQUUS
JUMENT GIUMENTA ÉGUA JINETE IAPA ° JUMENTA EQUA
RAT RATTO RATO RATA SOROLAN ° RATO MUS
SANGLIER CINGHIALE JAVALI JABALI MISTRET ° SINGIALE APER

Poderia-se objectar que ao lado da palavra latina


EQUUS se encontra a palavra CABALLUS, que seria a ori-
gem das palavras das línguas românicas que significam
CAVALO. Mesmo que seja este o caso, convenhamos que
este resultado não convence. Mas a palavra CABALLUS
aparece tardiamente na literatura. Assim, lanço a hipótese
que esta palavra é a prova de um empréstimo invertido.
O latim teria tomado emprestada do “italiano antigo” esta
palavra que não fazia parte do seu vocabulário.
Objecta-se, ainda, que a palavra latina EQUUS deu
origem às palavras ÉQUESTRE [equestre] et ÉQUITATION
[equitação]. Essas palavras têm uma conotação um pouco
erudita, e me parecem palavras de empréstimo recente,
das quais não encontramos vestígios no francês antigo.
A medida do tempo é uma velha instituição ditada
ao homem pelo sol e pela lua. Seria lógico que os latinos ti-
vessem transmitido o seu vocabulário e o seu conhecimen-
to aos povos subjugados. Mas não é bem assim!
Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto
ZDEMAIN DOMANI AMANHÃ MAÑANA MAINE ° DOMANI CRAS
HIVER INVERNO INVERNO INVIERNO IARNA ° INVERNO HIEMS
JAMAIS GIAMMAI JAMAIS JAMÁS NICIODATA ° JAMAI NUNQUAM
DIA/
JOURNÉE GIORNO JORNADA JORNO ° JORNO DIES
JORNADA
MAINTENANT ORA AGORA AHORA ORA? ° ORA ? NUNC
O Francês não vem do Latim! 61

Italiano
Francês Italiano Português Espanhol Romeno antigo Latim
recomposto
°
SEMAINE SETTIMANA SEMANA SEMANA SETTIMANA HEBDOMADA
SETTIMANA
SIESTE SIESTA SIESTA SIESTA SIESTA ° SIESTA MERIDIATIO
SOIR SERA NOITE NOCHE SERA ° SERA VESPER

Esta diferença entre as línguas românicas e o la-


tim parece explicável? Este desaparecimento, total, radi-
cal, sem nenhum vestígio, em nenhuma das línguas ro-
mânicas, das palavras latinas CRAS, VESPER, HIEMS,
NUNC... parece normal? E o aparecimento de palavras
comuns a todas as línguas românicas, inclusive na dis-
tante Romênia, isolada de Roma e sob influência eslava,
há tantos séculos, não é surpreendente?
As palavras NUIT [noite] e MOIS [mês] pelo menos
parecem próximas do latim. Sim, mas vamos compará-las
às outras línguas europeias e veremos que estas palavras
não são latinas, mas sim indo-europeias.
Francês Português Alemão Grego Russo
NUIT NOITE NACHT NIKHTA NOTCH
MOIS MÊS MONAT MIN MESSIAT

Os latinos não conheciam a semana. Seus meses eram


seccionados em calendas, nonas e idos. E para designar
esta curiosidade italiana que lhes parecia completamente
estranha, considerando que a divisão dos meses em frações
de 7 dias é uma velha instituição, eles tomaram empresta-
do a palavra grega HEBDOMAS em vez da palavra italia-
na SETTIMANA, que significa simplesmente SETE LUAS
(ou seja, sete dias).
Os romanos eram um povo muito organizado.
Os gauleses e outros povos dominados viviam aos seus
olhos anarquicamente, e a “pax romana” lhes teria pro-
porcionado uma organização social que eles não conhe-
ciam. Mas o vocabulário não conserva vestígio algum.
62 Yves Cortez

Italiano
Francês Italiano Português Espanhol antigo Latim
recomposto
ASSEMBLÉE ASSEMBLEA ASSEMBLEIA ASAMBLEA ° ASSEMBLEA CONTIO
COMTE CONTE CONDE CONDE ° CONTE CONSUL
COUR CORTE CORTE CORTES ° CORTE AULA

MESTRE /
MAÎTRE MAESTRO MAESTRO ° MAESTRO DOMINUS
MAESTRO
PASTOR /
PRÊTRE PRETE PADRE ° PRETE SACERDOS
PADRE
RACE RAZZA RAÇA RAZA ° RASA GENS
TOMBEAU TOMBA TUMBA TUMBA ° TOMBA SEPULCRUM
VASSALE VASSALLO VASSALO VASALLO ° VASALO CLIENS

Assim como os latinos não influenciaram os italianos


com relação ao vocabulário da guerra, tampouco o influen-
ciaram quanto à organização social.
Os italianos tinham, de longa data, uma estrutura
social cujos vestígios nos foram transmitidos pelo voca-
bulário, apesar dos sete séculos de dominação latina.
Quanto às palavras francesas: ROI [rei], SIRE [se-
nhor], SIEUR [senhor]... são palavras indo-europeias. Para
a palavra “ROI”, vamos compará-la com o alemão “REI-
CH” (império), ao hindi “RAJA” (rei), ao gaulês “RIX” (rei).
Ser RICO em temos antigos queria dizer simplesmente ser
“REAL”, enquanto que, para os latinos, ser rico (DIVES)
equivalia a ser como um “deus”.
Para a tradução da palavra “SEPULCRUM”, su-
geri a palavra “tumba” e, não, “sepultura”. Não ignoro
esta palavra, mas o meu objetivo é evidenciar que existe
uma palavra comum a todas as línguas românicas, que
não existe em latim. A palavra SEPULTURA, que é en-
contrada em algumas línguas românicas, parece ser um
empréstimo do latim, visto que ela foi pouco deformada.
Os italianos colocavam seus mortos em “tumbas” e os
latinos em “sepulturas”.
Quando consulto ao acaso o vocabulário latino
atual, constato a mesma diferença em relação às lín-
guas românicas.
O Francês não vem do Latim! 63

Italiano
Francês Italiano Português Espanhol antigo Latim
recomposto
CHOSE COSA COISA COSA ° COSA RES
CITÉ CITTÀ CIDADE CIUDAD ° SITA URBS
ÉTRANGER STRANIERO ESTRANGEIRO ESTRANJERO ° STRANIERO EXTRANEUS
FOLIE FOLLIA LOUCURA LOCURA ° FOLIA INSANIA
FORCE FORZA FORÇA FUERZA ° FORZA VIS
FORRAGE FORAGGIO FORRAGEM FORRAGE ° FORAGGIO PABULUM
MARIN MARINAIO MARINHEIRO MARINERO ° MARINARO NAUTA
MARQUE MARCA MARCA MARCA ° MARCA NOTA
MARTEAU MARTELLO MARTELO MARTILLO ° MARTELLO MALLEUS
MASQUE MASCHERA MÁSCARA MASCARA ° MASCARA PERSONA
ORGUEIL ORGOGLIO ORGULHO ORGULLO ° ORGOLIO SUPERBIA
PAROLE PAROLA PALAVRA PALABRA ° PAROLA VERBUM
PLACE PIAZZA PRAÇA PLAZA ° PLAZA PLATEA
RETARD RITARDO ATRASO RETRASO ° RITARDO MORA

Assim, observa-se nesta lista que há palavras co-


muns: COISA, FORÇA, PALAVRA... que não provêm ma-
nifestadamente do latim.
A propósito, observo que a etimologia oficial atribui
a palavra ORGUEIL [orgulho] ao frâncico. Ele tem costas
largas, esse frâncico! Quando não encontram a origem la-
tina, os etimologistas inventam uma etimologia ao seu bel-
-prazer. Se eles tivessem um mínimo de conhecimento das
línguas românicas, saberiam que a palavra ORGUEIL é co-
mum a todas elas e que é pouco provável que uma palavra
frâncica, ou seja, trazida pelos francos, tenha se difundido
uniformemente em todas as línguas românicas. Se, ainda
assim, é possível continuar cético, continuemos!
Os algarismos e os números também são uma prova
do parentesco itálico, mas não da origem latina.
Italiano
Francês Italiano Português Espanhol antigo Latim
recomposto
UN UNO UM UNO ° UNO UNUS
DEUX DUE DOIS DOS ° DU DUO
TROIS TRE TRÊS TRES ° TRE TRES
QUATRE QUATTRO QUATRO CUATRO ° CUATRO QUATTUOR
CINQ CINQUE CINCO CINCO ° CINCO QUINQUE
SIX SEI SEIS SEIS ° SEIS SEX
SEPT SETTE SETE SIETE ° SETE SEPTEM
64 Yves Cortez

Italiano
Francês Italiano Português Espanhol antigo Latim
recomposto
HUIT OTTO OITO OCHO ° OTO OCTO
NEUF NOVE NOVE NUEVE ° NOVE NOVEM
DIX DIECI DEZ DIEZ ° DIS DECEM
ONZE UNDICI ONZE ONCE ° ONZE UNDECIM
DOUZE DODICI DOZE DOCE ° DOZE DUODECIM
TREIZE TREDICI TREZE TRECE ° TREZE TREDECIM
VINGT VENTI VINTE VEINTE ° VENTI VIGINTI
TREINTE TRENTA TRINTA TREINTA ° TRENTA TRIGINTA
OCTANTE OTTANTA OITENTA OCHENTA ° OTTANTA OCTOGINTA
NONANTE NOVANTA NOVENTA NOVENTA ° NOVANTA NONAGINTA
CENT CENTO CEM CIENTO ° CENTO CENTUM
MILLE MILLE MIL MIL ° MILLE MILLE

Se os algarismos de 1 a 10 são bastante semelhantes,


esta semelhança desaparece a partir de onze e encontramos
de 11 a 16 uma terminação em -ZE em “italiano antigo” em
vez da terminação latina -DECIM e, para as dezenas de 20
a 90, uma terminação em -ANTA em vez da terminação
latina -GINTA.
Constata-se também que 18 e 19 não são formados
como em latim, que se diz, respectivamente, “dois menos
vinte” e “um menos vinte”.
A numeração grega, por sua parte, não mudou em
vinte e cinco séculos, apesar de uma longa dominação es-
trangeira, primeiramente romana e, em seguida, turca. A
numeração árabe também não mudou em nada em cator-
ze séculos.
A comparação dos adjetivos abaixo também é
ilustrativa.
Italiano
Francês Italiano Português Romeno antigo Latim
recomposto
AGRÉABLE GRADEVOLE AGRADÁVEL AGRADABIL ° AGRADABLE JUCUNDUS
BAS BASSO BAIXO SCUND ° BASSO INFRA
BLANC BIANCO BRANCO ALB ° BLANCO ALBUS
BLEU BLU AZUL ALBASTRU ° BLU CAERULEUS
FIER FIERO ORGULHOSO MANDRU ° FIERO ELATUS
FIN FINO FINO FIN ° FINO EXILIS
FRAIS FRESCO FRESCO RACOROS ° FRESCO FRIGIDUS
O Francês não vem do Latim! 65

Italiano
Francês Italiano Português Romeno antigo Latim
recomposto
FRANC FRANCO FRANCO LIBER ° FRANCO SINCERUS
FROID FREDDO FRIO RECE ° FREDO FRIGIDUS
GALANT GALANTE GALANTE CURTENIOR ° GALANTE PROBUS
GENTIL GENTILE GENTIL AMABIL ° GENTILE VENUSTUS
GRIS GRIGIO CINZA GRI ° GRI PULLUS
GROS GROSSO GROSSO GROS ° GROSSO CRASSUS
IMPORTANT IMPORTANTE IMPORTANTE IMPORTANT ° IMPORTANTE MAGNUS
JAUNE GIALLO AMARELO GALBEN ° GIALLO FLAVUS
LARGE LARGO LARGO LARG ° LARGO LATUS
LEVE /
LÉGER LEGGERO UCHOR ° LEGERO LEVIS
LIGEIRO
MÊME MEDESIMO MESMO ASELASI ° MESMO SIMILIS
MESQUIN MESCHINO MESQUINHO MESCHIN ° MESQUINO EXIGUUS
MODERNE MODERNO MODERNO MODERN ° MODERNO RECENS
MOUILLÉ BAGNATO MOLHADO MUIA ° MOUJA MADIDUS
PETIT PICCOLO PEQUENO MIC ° PICOLO PAVUS
RICHE RICCO RICO BOGAT ° RICO DIVES
ROUGE ROSSO VERMELHO ROSU ° ROSSO RUBER
SAUVAGE SELVAGGIO SELVAGEM SALBATIC ° SALVAGIO FERUS
VIEIL VECCHIO VELHO VECHI ° VECCIO VETUS

A semelhança entre os adjetivos mais correntes dos


vocabulários das línguas românicas é espantosa! Nenhuma
dessas palavras parece advir do latim! É claro que UTILIS
também quer dizer UTILE [útil], mas quis mostrar que, em
todas as línguas românicas, existe a palavra “intéressant”
[interessante], que não tem equivalente em latim.
Os adjetivos latinos ATER (negro), ACER (vivo),
INGENS (imenso),... e dezenas de outros não têm equiva-
lente nas línguas românicas! Prova de que se trata de dois
vocabulários diferentes.
Tendo chegado a este ponto, não é de se surpreender
que os verbos latinos e os das línguas românicas apresen-
tem as mesmas divergências.
Italiano antigo
Francês Italiano Português Espanhol Latim
recomposto
CHAMAR /
(S’) APPELER CHIAMARE LLAMAR ° CHIAMARE VOCARI
APELAR
AIDER AIUTARE AJUDAR AYUDAR ° AIUTARE ADJUVARE
APPRENDRE APRENDERE APRENDER APRENDER ° APPRENDERE DISCERE
AVERTIR AVVERTIRE ADVERTIR ADVERTIR ° AVERTIRE MONERE
66 Yves Cortez

Italiano antigo
Francês Italiano Português Espanhol Latim
recomposto
CALMAR /
CALMER CALMARE CALMAR ° CALMARE SEDARE
ACALMAR
CHANGER CAMBIARE MUDAR CAMBIAR ° CAMBIARE MUTARE
COMPTER CONTARE CONTAR CONTAR ° CONTARE COMPUTARE
FORCER FORZARE FORÇAR FORZAR ° FORZARE COGERE
GAGNER GUADAGNARE GANHAR GANAR ° GANARE ? LUCRARI
GARDER GUARDARE GUARDAR GUARDAR ° GUARDA CUSTODIRE
MANGER MANGIARE COMER COMER ° MANGIARE EDERE
MANCAR /
MANQUER MANCARE FALTAR ° MANCARE EGERE
FALTAR
MARCHAR /
MARCHER MARCIARE MARCHAR ° MARCIARE INGREDIOR
ANDAR
PARLER PARLARE FALAR HABLAR ° PARLARE LOQUI
PAYER PAGARE PAGAR PAGAR ° PAGARE PENDERE
PENSER PENSARE PENSAR PENSAR ° PENSARE COGITARE
PRÉFÉRER PREFERIRE PREFERIR PREFERIR ° PREFERIRE MALLE
PRÊTER PRESTARE EMPRESTAR PRESTAR ° PRESTAR COMMODARE
RACLER RASCHIARE RASPAR RASCAR ° RASCA RADERE
RÉUSSIR RIUSCIRE CONSEGUIR LOGRAR ° RUICHIRE PROCEDERE
RISQUER RISCHIARE ARRISCAR ARIESGAR ° RISCARE
SE MARIER /
SPOSARE CASAR-SE CASAR ° CASARE COLLOCARE
SE CASER
SOUFFRIR SOFFRIRE SOFRER SUFRIR ° SOUFFRIRE DOLERE
TROUVER TROVARE ENCONTRAR ENCONTRAR ° TROVARE INVENIRE

E os verbos AUDERE (ousar), COEPISSE (começar),


NOLLE (não querer), NEQUIRE (não poder), QUIRE (po-
der), DELERE (destruir), SCIRE (saber), DEFODIO (enter-
rar), DEPELLO (caçar)... e mais de uma centena de outros,
acabaram evaporando devido a uma lei da linguística que
seria própria apenas ao latim? Convenhamos, só sendo
pouco exigente para ver uma origem latina no vocabulário
das línguas românicas.
Termino agora o apanhado das palavras correntes
com as palavras mais usadas.
Italiano
Francês Italiano Português Romeno antigo Latim
recomposto
ADIEU ADDIO ADEUS ADIO ° ADIO VALE
ATTENTION ATTENZIONE ATENÇÃO ATENTSIE ° ATENSIONE CAVE
ADEUS / ATÉ À LA
AU REVOIR ARRIVEDERCI ° A RIVEDER VALE
VISTA REVEDERE
AU SECOUR ° AIUTO /
AIUTO SOCORRO AJUTOR ?
/ À L’AIDE SECORO
O Francês não vem do Latim! 67

Italiano
Francês Italiano Português Romeno antigo Latim
recomposto
BONJOUR BUONGIORNO BOM DIA BUNA ZIUA ° BONJORNO SALVE
UNUS QUIS
CHACUN CIASCUNO CADA UM FIECARE ° CASCUNO
QUE
COMMENT CE MAI
COME STA COMO VAI ° COME VA ? UT VALES
ÇA VA FACI
DE DI DE DE ° DE A / AB
ENTÃO /
DONC DUNQUE DECI ° DUNC ERGO
PORTANTO
ENCORE ANCORA AINDA INCA ° ANCORA IN SUPER
ET / QUE
ET E E SI °E/Y
/ AC
EXCUSEZ- MIHI
SCUSI DESCULPE SCUZA ° SCUZI
MOI IGNOSCE
JEU IO JOGO EU ° IO EGO
JE VOUS EN
PER FAVORE POR FAVOR VA ROG ° PER FAVOR AMABO
PRIE
MAIS PERO / MA MAS DAR / CI ° PERO / MA AT
NON /
NON NO NÃO NU ° NO
IMMO
OU O OU SAU °O AUT / VEL
OUI / SI SI SIM DA ° SI ITA / VERO
PARCE QUE PERCHÉ PORQUE PENTRU CA ° PERQUE QUIA
PARDON PERDONO PERDÃO SCUZA ° PERDON PARCITE
POURQUOI PERCHÉ POR QUE DE CE ° PER QUE CUR
PUIS POI DEPOIS APOI ° POI DEINDE
SALUT SALUTE OLÁ SALUT ° SALUTE SALVE
TOUT TUTTO TUDO TOT ° TUT OMNIS
TROP TROPPO MUITO PREA ° TROPPO NIMIS

Enfim, onde foram parar as palavras latinas APUD


(em), GLAM (às escondidas), CORAM (na presença
de), DECET (convém), DENIQUE (enfim), ENIM (pois),
ETIAM (ainda), ERGO (então), IDEO (por esta razão),
IGITUR (portanto), INQUIT (diz ele), MODO (somen-
te), MOX (em breve), NAM (com efeito), NUM (o quê?),
NUPER (recentemente), OLIM (outrora), PARUM (muito
pouco), PAULATIM (pouco a pouco), PLANE (verdadeira-
mente), POSTEA (em seguida), SATIS (o bastante), SED (mas),
SEMEL (uma vez), STATIM (tão logo), TAMEN (entretan-
to), UTINAM (queiram os céus), VIX (com dificuldade)?
Fugiram! Desapareceram! Mesmo procurando com uma
lupa nas línguas francesa, italiana, espanhola e romena!
Nada, não há o menor vestígio! Estranha língua-mãe que
68 Yves Cortez

não teria nos transmitido nenhuma de suas expressões cor-


rentes e praticamente nenhum advérbio!
A comparação dos vocabulários, focada nas palavras
de uso corrente, mostra a improbabilidade de uma filiação
entre o latim e as línguas românicas.

E as outras línguas-mães?

Observa-se o mesmo fenômeno para as outras lín-


guas? Existe a mesma distância entre uma língua-mãe e as
línguas dela oriundas? Não, é claro que não. É o inverso
que se constata a cada vez, por vezes até se enganam de
língua-mãe, o que nos mostra que não é tão simples assim.
Portanto, atenção para não confundir parentesco e filia-
ção direta!
Para destacar ainda mais a distância entre o la-
tim e as línguas românicas que, lembro, teria se forja-
do em apenas quatro séculos após a queda do império
romano,17primeiramente vou comparar o vocabulário do
grego moderno ao do grego antigo, que estão separados
por vinte e cinco séculos.

PALAVRAS USUAIS
Francês Português Grego antigo17 Grego moderno
OUI SIM NÉ NÉ
ET E KÉ KÉ
OU OU I I
MAIS MAS ALLA ALLA
POURQUOI POR QUE ĎIOTI IATI
ARTIGOS Idênticos em grego
ARTICLES DÉFINIS
DEFINIDOS E antigo e em grego
ET CHIFFRES
NÚMEROS moderno

O TEMPO
Francês Português Grego antigo Grego moderno
DEMAIN AMANHÃ AVRION AVRIO
HIVER INVERNO O XIMON O XIMONAS

17
Optei por uma transcrição fonética
O Francês não vem do Latim! 69

Francês Português Grego antigo Grego moderno


JAMAIS JAMAIS OU POTÉ POTÉ
JOUR DIA I MERA I MERA
SOIR NOITE I ESPERA TO VRADI

A FAMÍLIA
Francês Português Grego antigo Grego moderno
PÈRE PAI O PATER O PATERAS
MÈRE MÃE I MATER I MITERA
FILLE FILHA I FIGATER I FIGATERA, I KORI
FILS FILHO O YIOS O YIOS
FRÈRE IRMÃO O ADELFOS O ADELFOS
SOEUR IRMÃ I ADELFI I ADELFI

OS VERBOS
GREGO GREGO
FRANCÊS PORTUGUÊS
ANTIGO MODERNO
AIDER AJUDAR VOITHEO VOITHO

AIMER AMAR AGAPAO AGAPO

BATTRE BATER TIPTO KHTIPO

BOIRE BEBER PINO PINO

BOUGER MEXER-SE KINEO KOUNIEME

COMMENCER COMEÇAR ARKHOME ARCHIZO

COURIR CORRER TREKHO TREKHO

COUVRIR COBRIR SKEPAZO SKEPAZO

CROIRE CRER PISTEVO PISTEVO

DESCENDRE DESCER CATAVENO CATAVENO

DIRE DIZER LEGO LEO

DONNER DAR DIDOMI DINO

ENTENDRE ENTENDER / ESCUTAR AKOUO AKOUO

FERMER FECHAR CLIO CLINO

LAVER LAVAR PLINO PLENO

LUTTER LUTAR PALEO PALEVO

OUVRIR ABRIR ANIGNIMI ANIGO

PORTER PORTAR / LEVAR FERO FERO

RIRE RIR GELAO GELO

SAUTER SALTAR PIDAO PIDO

TOMBER TOMBAR / CAIR TIPTO PEFTO

VENDRE VENDER POLEO POULO

VENIR VIR ERKHOMÉ ERKHOMÉ


70 Yves Cortez

GREGO GREGO
FRANCÊS PORTUGUÊS
ANTIGO MODERNO
VIVRE VIVER ZAO ZO

VOIRE VER VLEPO VLEPO

Não, eu não fiz uma seleção específica. Vocês leram


corretamente. Podem ser encontradas palavras pratica-
mente idênticas em vinte e cinco séculos de distância.
Surpreende-me que os latinistas, que têm frequentemente
um bom conhecimento do grego, não tenham sido aler-
tados para a estabilidade do grego e não tenham tentado
aprofundar a análise. Pelo contrário, eles concluem que o
grego é uma exceção, que só o grego apresenta uma gran-
de perpetuidade. Eles raciocinam pelo avesso, persuadi-
dos que as línguas românicas vêm do latim e que, portan-
to, é possível uma transformação radical, tanto no que diz
respeito ao vocabulário quanto à gramática.
Para ressaltar a estabilidade do vocabulário no
tempo, comparo a seguir os verbos mais correntes
do inglês e do alemão:
FRANCÊS PORTUGUÊS INGLÊS ALEMÃO
AIDER AJUDAR HELP HELFEN
AIMER AMAR LOVE LIEBEN
ALLER IR GO GEHEN
APPRENDRE APRENDER LEARN LERNEN
ATTENDRE ESPERAR WAIT WARTEN
AVOIR TER HAVE HABEN
BAIGNER BANHAR (-SE) BATHE BADEN
BOIRE BEBER DRINK TRINKEN
COMMENCER COMEÇAR BEGIN BEGINNEN
DIRE DIZER SAY SAGEN
DONNER DAR GIVE GEBEN
DORMIR DORMIR SLEEP SCHLAFEN
ENVOYER ENVIAR SEND SENDEN
FAIRE FAZER MAKE MACHEN
MANGER COMER EAT ESSEN
OUVRIR ABRIR OPEN ÖFFNEN
PÊCHER PESCAR FISH FISCHEN
PENSER PENSAR THINK DENKEN
POUVOIR PODER CAN KÖNNEN
REMERCIER AGRADECER THANK DANKEN
RÉPONDRE RESPONDER ANSWER ANTWORTEN
O Francês não vem do Latim! 71

FRANCÊS PORTUGUÊS INGLÊS ALEMÃO


RÉVEILLER ACORDAR / DESPERTAR (-SE) WAKE WECKEN
SALUER SAUDAR GREET GRÜSSEN
SAVOIR SABER KNOW KENNEN
SUIVRE SEGUIR FOLLOW FOLGEN
TRAVAILLER TRABALHAR WORK WERKEN
TROUVER ENCONTRAR FIND FINDEN
VENIR VIR COME KOMMEN
VIVRE VIVER LIVE LEBEN
VOIR VER SEE SEHEN

O que podemos observar? Que os verbos são qua-


se idênticos. No entanto, o inglês não vem do alemão.
O inglês e o alemão são apenas parentes próximos e,
entretanto, a semelhança entre seus verbos é espantosa.
Poderíamos repetir o exercício comparando o russo e o
polonês, ou o hindi e o panjabi. Em todos os casos, os
vocabulários das línguas “irmãs” são muito próximos.
Parece claramente que, através dos séculos, a conserva-
ção das palavras é uma constante em todas as famílias
linguísticas.
Por que os linguistas imaginam que dois vocabulários
(um para a língua escrita, outro para a língua falada) pode-
riam coexistir de maneira tão estanque? Em que outra lín-
gua existe tal estranheza?
Os vocabulários latino e românico são mais diver-
gentes, no que diz respeito a palavras de base, comparados
aos vocabulários do alemão e do inglês ou do grego anti-
go e do grego moderno. Os linguistas deveriam ser bem
experientes para comparar duas línguas e comparar suas
palavras de base, para evitar todo tipo de amálgama com
as palavras emprestadas.
A partir desta pesquisa preliminar a respeito do
vocabulário, constata-se de maneira inegável que o vo-
cabulário latino e os vocabulários das línguas români-
cas não correspondem. Isso fundamenta minha segunda
dúvida sobre uma eventual filiação entre o latim e as
línguas românicas.
72 Yves Cortez

Terceira prova
A gramática das línguas românicas
não “herdou” nada do latim

As coincidências de formas gramaticais


particulares são grandes, as coincidências
de vocabulário praticamente não o são.18
A. Meillet,
Introduction à l’étude des langues
indo-européennes
(1937)

Em boa lógica acadêmica, eu deveria ter começado


minha pesquisa pelo estudo comparado das gramáticas,
pois para a escola francesa de linguística, fora da gramática
não há salvação! Para A. Meillet, mestre do pensamento da
linguística francesa, somente as concordâncias gramaticais
têm força de prova. O linguista Jean Perrot, formado na
mesma escola, tem opinião idêntica: “A tentativa de aproxi-
mação entre as diversas línguas [...] frequentemente apresenta-
ram pouca solidez pelo fato de que elas diziam respeito a elemen-
tos do vocabulário. Esta aproximação adquire um valor probante
somente na medida em que elementos morfológicos intervêm na
comparação” (Jean Perrot, La Linguistique, PUF, 1953).
Com certeza muitos excessos foram cometidos nas
primeiras décadas da descoberta do parentesco entre as
línguas, muitas afirmações fantasiosas foram feitas sobre
bases pouco sólidas. Era preciso criar alguns limites. Mas a
ênfase sobre a gramática comparada tornou-se um dogma
sem nuances. A correta utilização do vocabulário compara-
do pode ser tão eficaz quanto a gramática comparada, e os
linguistas franceses se privam erradamente de uma fonte
de riquezas extraordinária.
18
Tradução da citação realizada pelos tradutores.
O Francês não vem do Latim! 73

Para tanto, neste capítulo, vamos nos situar no terri-


tório dos gramáticos. Assim, se houvesse um forte paren-
tesco, uma filiação direta entre o latim e as línguas româ-
nicas, haveria “coincidências”. No entanto, no mínimo, o
que se pode afirmar é que estamos diante de dois sistemas
gramaticais totalmente diversos e estranhos entre si.
Émile Littré elencava a lista dessas diferenças na in-
trodução do seu Dictionnaire de la langue française19: “A re-
dução da declinação latina, a supressão do neutro, a criação do
artigo, a introdução do tempo composto para o passado, na con-
jugação, a formação de um novo modo, o condicional, o passivo
expresso não mais pelas desinências, mas por uma combinação
do verbo “être” [ser] com o tema, a organização dos auxiliares a
serviço da conjugação, a concepção de um novo tipo de advérbio,
através do sufixo -ment [-mente]”20. Ele poderia ter incluído
os comparativos, a forma interrogativa, os plurais, os adje-
tivos verbais, os verbos depoentes e, sobretudo, a sintaxe...
resumindo, tudo! Mas ninguém se espanta que, na passa-
gem do grego antigo ao grego moderno, em dois mil anos
as mudanças gramaticais tenham sido mínimas.
Isso tudo é perturbador! Vamos olhar mais em de-
talhe a seguir!

Primeiro indício: as declinações - um


“desaparecimento” brutal!

Que espanto constatar que, face ao latim, cujas de-


clinações são numerosas e complexas, as línguas români-
cas não possuem nenhuma forma de declinação. Os que
sustentam a tese da filiação entre o latim e as línguas ro-
mânicas o explicam como a simplificação da língua latina
feita pelo povo (VULGOS), que piada! Não restou vestígio
algum em nenhuma língua românica nem do acusativo,
19
Éditions Hachette, 1863.
20
Tradução da citação realizada pelos tradutores.
74 Yves Cortez

nem do genitivo, nem do dativo, nem do ablativo, nem do


vocativo. Apenas o romeno tem o sistema de declinação,
bem rudimentar, mas não se pode observar nele vestígio
algum da origem latina.
Não acredito que haja, de um lado, línguas distintas
e complexas (o latim, o grego, o sânscrito...) e, de outro,
línguas populares, simples e pobres. A título de exem-
plo, comparemos o alemão e o inglês. Ambas as línguas
são germânicas. A primeira possui um sistema de declina-
ção variado, a segunda não apresenta declinação alguma.
Devemos considerar o inglês como um alemão bastardo,
como uma língua de gente simples? Não abordarei aqui
um assunto tão subjetivo. Penso simplesmente que o in-
glês, língua do povo anglo-saxão, divergiu do germânico
durante longos séculos -- para forjar sua própria gramáti-
ca, tão complexa quanto a do alemão – não em termos de
declinação, mas em outras áreas.
A ideia de que poderiam existir línguas estabelecidas
ou, pelo menos, codificadas pelos gramáticos, está presen-
te entre alguns linguistas. Para A. Meillet, por exemplo, “o
sânscrito clássico é apenas um contrato tradicional e regulamen-
tado pelos gramáticos entre a língua védica e as línguas faladas”.
De fato, se o sânscrito difere do védico, isso nada tem a ver
com a ação dos gramáticos, mas com a existência de dois
povos e, portanto, de duas línguas diferentes.
Não acredito que tenha havido, de um lado, línguas
escritas artificiais e, de outro, línguas faladas. Compartilho
do ponto de vista segundo o qual “as regras de gramática
são apenas usos redigidos em código pelos gramáticos.
Esses usos são a obra secular do povo. Existe um direito
linguístico, cuja existência nada tem a ver com o escrito.”
(Rémy de Gourmont, La langue française et les grammairiens).
De forma mais simples, eu diria como o escritor francês Ju-
les Renard, há aproximadamente um século: “escrever é
uma maneira de falar sem ser interrompido”.
O Francês não vem do Latim! 75

Segundo indício: o plural. Uma estranha descoberta!

Em latim, no nominativo, o plural se forma essencial-


mente com as seguintes desinências: AE, I, A, ES, IA, US,
UA, conforme o tipo de declinação. No que diz respeito às
línguas românicas, os substantivos não se declinam, dife-
rentemente do latim.
Podem-se distinguir dois tipos de plural que corres-
pondem a duas áreas geográficas diferentes:
• Uma compreende os países onde se fala italiano
e romeno. Nestas línguas, os plurais se formam
com a desinência “I” para o masculino e “E” para
o feminino.
Italiano Romeno Português
Masculino Singular AMICO PRIETEN AMIGO
Plural AMICI PRIETENI AMIGOS
Feminino Singular CASA CASA CASA
Plural CASE CASE CASAS

• A outra compreende os países onde se fala por-


tuguês, espanhol, catalão, ocitano, reto-romano e
francês. Os plurais se formam com a desinência “S”
no masculino e no feminino.
Francês Espanhol Português
Masculino Singular AMI AMIGO AMIGO
Plural AMIS AMIGOS AMIGOS
Feminino Singular MAISON CASA CASA
Plural MAISONS CASAS CASAS

Os plurais das línguas românicas nada têm a ver com


os plurais da língua latina.
Para o primeiro grupo, encontramos algumas seme-
lhanças com os nominativos plurais gregos.
Para o segundo, encontramos uma semelhança com
o inglês (as outras línguas germânicas formam o seu plu-
ral de maneira diferente).
Para explicar a homogeneidade dos plurais em vas-
tas zonas geográficas e, ao mesmo tempo, o fato de que
76 Yves Cortez

há dois sistemas distintos, formulo a hipótese de que “o


italiano antigo” não era uniforme. A colonização da re-
gião narbonense (sul da França) e da Espanha foi feita por
povos italianos diferentes dos que impuseram o seu falar
na Itália e conquistaram a Romênia vários séculos mais tar-
de. A probabilidade para que “o italiano antigo” não fosse
ainda uniforme é grande. A unidade econômica e política
começou apenas na época romana. Entretanto, se variantes
dialetais resistiram, elas não diziam respeito ao conteúdo
da língua italiana antiga, mas sim aos detalhes.

Terceiro indício: os artigos. Uma geração espontânea!

O latim não possui nem artigo definido, nem arti-


go indefinido. Pelo contrário, todas as línguas românicas
possuem tanto um quanto o outro, que são praticamente
os mesmos.

ARTIGOS DEFINIDOS
Francês Espanhol Português Italiano Romeno
Masculino Singular LE EL O IL -UL
Feminino Singular LA LA A LA -A
Masculino Plural LES LOS OS I / GLI -I
Feminino Plural LES LAS AS LE -LE

ARTIGOS INDEFINIDOS
Francês Espanhol Português Italiano Romeno
Masculino Singular UN UN UM UN UN
Feminino Singular UNE UNA UMA UNA O

Os defensores da tese da filiação inventaram uma


origem latina para esses artigos. Ali eles encontraram, para
os artigos definidos, uma transformação dos demonstrati-
vos ILLE (masculino) e ILLA (feminino).
Como eles podem explicar que o plural dos artigos
definidos das línguas românicas se parecem com os de-
monstrativos no nominativo plural na área das línguas
italiana e romena (ILLI, ILLAE), e que eles se parecem
com os demonstrativos no acusativo plural da área das
O Francês não vem do Latim! 77

línguas espanhola, portuguesa, catalã e ocitana (ILLOS,


ILLAS)? Os romanos teriam trazido o nominativo até o
leste e o acusativo até o oeste? Ou então, as pessoas do
leste teriam mantido apenas o nominativo e as do oeste
apenas o acusativo?
Pelo contrário, vejo nisso a confirmação da minha
hipótese: os romanos falavam uma língua não unificada,
de fato duas variantes dialetais do “italiano antigo” e, se-
gundo a origem dos colonos vindos da Itália, um ou outro
dialeto era dominante.
Não apenas o latim e as línguas românicas diferem
quanto aos artigos, mas, sobretudo, há uma grande seme-
lhança entre os artigos das diferentes línguas românicas,
enquanto que nem sempre é o caso das línguas de uma
mesma família - longe disso. Na família das línguas germâ-
nicas, por exemplo, o alemão tem artigos que se declinam
e o inglês tem artigos invariáveis. Quanto às línguas escan-
dinavas, elas colocam seus artigos ao final das palavras.
Na família eslava, o russo não tem artigo enquanto que o
búlgaro os coloca no final das palavras.
Face a tantas evoluções possíveis dentro de uma
mesma família, não há razão alguma para que o latim te-
nha evoluído da mesma maneira da Romênia a Portugal.
Acredito que a língua que foi levada às duas extremida-
des da Europa Românica já comportavam os artigos e
esta língua parecia ser uma irmã gêmea do italiano.

Quarto indício: o gênero neutro. O crime perfeito!

O latim tem três gêneros: masculino, feminino e neu-


tro (como o alemão, o grego e o russo). As línguas româ-
nicas têm apenas dois: masculino e feminino. Se essas lín-
guas viessem do latim, seria surpreendente constatar que
todas tivessem perdido o gênero neutro, do qual não há
mais vestígio algum.
78 Yves Cortez

Sabendo da inércia que existe através dos tempos


para os gêneros dos nomes nas línguas, cuja evolução
podemos acompanhar ao longo dos séculos (hebreu,
grego, árabe...), só me resta imaginar que o gênero neu-
tro tenha sido “eliminado” uniformemente em todas as
línguas românicas.
Assim como para o plural e os artigos, constata-se
uma grande diferença entre o latim e as línguas românicas,
e uma total semelhança entre as línguas românicas.

Quinto indício: uso do voseamento e a plebe

O tratamento através da utilização do voseamento


não existe em latim, mas ele tem a mesma forma em todas
as línguas românicas (à exceção da língua italiana que uti-
liza, como em alemão, a terceira pessoa do singular!)
Francês TU VOUS

Catalão TU VOSTÉ

Português TU VÓS

Espanhol TU USTED

Romeno TU (DUMNEA) VOASTRA

Italiano TU LEI

Para povos supostamente “rústicos”, notamos nas


línguas românicas uma fineza que os latinos não possuíam.
O “latim vulgar” atinge por vezes alturas insuspeitáveis.
Mas, o que nos surpreende no plano linguístico é a incrível
semelhança entre as diferentes formas da segunda pessoa
do plural.
Pode-se recompor a palavra “do italiano antigo”
VOSTE, ancestral do francês VOUS, do português VÓS, do
espanhol USTED,... A palavra espanhola USTED é certa-
mente oriunda do “italiano antigo” VOSTE, apesar de que,
para alguns, ela é oriunda do árabe OUSTED (mestre) e,
para outros, da contração de VUESTRA MERCED. Cons-
O Francês não vem do Latim! 79

tata-se com prazer que não é somente a França que conta


com etimologistas fantasiosos!
Os defensores da tese de uma filiação direta expli-
cam a ausência, nas línguas românicas, das particularida-
des da gramática latina (gênero neutro, declinações, voz
passiva, verbos depentes, supino, adjetivos verbais) pelo
fato de que a língua vulgar seria uma forma simplificada
da língua clássica. Na França jamais se ouve, mesmo quan-
do se utiliza gíria, frases do tipo:
Il faut que je pars21.
S’il ferait beau demain, je viendrais22.
A língua popular inova, modifica, transforma,
mas não transgride os fundamentos. A ideia de uma
degradação da “bela” língua pela “plebe” encontra
seus limites no fato de que as línguas românicas têm
formas gramaticais que o latim não possui, como o
modo “condicional” e o tempo “passado composto”23.
O latim tem apenas um verbo auxiliar (ser) e as línguas
românicas têm dois (ser e ter). Algumas línguas români-
cas têm dois verbos “ser” diferentes, como o espanhol24
SER e ESTAR. Enfim, não se pode dizer que o voseamento
e os artigos sejam a prova de uma “simplificação” da lín-
gua clássica.

Sexto indício: os advérbios. Divagando entre


verbos e advérbios!

O latim forma os seus advérbios com as desinências


“TER” ou “E”. Não encontramos vestígio algum disso nas
línguas românicas, que frequentemente recorrem à desi-
21
N.T.: A norma culta prevê a seguinte forma: Il faut que je parte.
22
N.T.: A norma culta prevê a seguinte forma: 1) S’il fait beau demain, je viens.
23
N.T.: O pretérito mais utilizado na língua francesa.
24
N.T.: E no português.
80 Yves Cortez

nência MENT (francês) ou MENTE (espanhol, italiano e


português). Eis a explicação que dá Émile Littré no comple-
mento do prefácio do seu dicionário: “As línguas românicas
desprezam completamente os advérbios em TER, como PRU-
DENTER (prudentemente) e em E, como MALE (malmente).
Assim, obrigadas a inverter, elas criam uma nova combinação
que prevaleceu não somente em francês, mas também no proven-
çal, no espanhol e no italiano25, tomando o substantivo MENS,
MENTIS - que significa “espírito” - atribuindo-lhes o sentido de
“modo, maneira”, e fazendo disso, com o adjetivo, um composto
orgânico, resultando no uso do advérbio.”
Este texto me parece particularmente interessante.
Ele revela o pensamento muito pouco científico de um ho-
mem que foi, e ainda é, atualmente, uma autoridade da
etimologia. Vejamos mais de perto:
“As línguas românicas desprezam completamente os ad-
vérbios em TER e em E”. Esta é a lógica do autor que quer
absolutamente que as línguas românicas venham do latim.
Ele considera que, se não achamos mais terminações em
TER e em E, é porque as línguas românicas as abandona-
ram. Ele não se espanta que não haja mais o menor vestígio
disso, e que esse desaparecimento possa ser total e geral.
Notemos igualmente a “personalização” das lín-
guas por Émile Littré. Foram as línguas que “despre-
zaram” as desinências latinas! Da mesma forma, mais
adiante, face a esta situação, são elas que são “obriga-
das a inventar” e a “criar uma combinação nova”. Como
se artesãos obscuros fizessem e desfizessem a seu bel-
-prazer! Em suma, criações ex nihilo 26! Que curiosa con-
cepção da evolução das línguas!
“Uma combinação nova prevaleceu não somente para o
francês, mas também no provençal, no espanhol e no italiano.”
25
N.T.: E no português.
26
N.T.: Tiradas do nada.
O Francês não vem do Latim! 81

Que milagre! Divina Providência, todos esses povos româ-


nicos fizeram exatamente a mesma escolha! Émile Littré re-
torque no mesmo texto aos que se espantam com isso que
“as conexões mútuas as obrigam a modificar o latim segundo
analogias idênticas”. Cúmulo de verborragia pomposa. Ele
detalha, enfim: “o campo das divergências era ilimitado; nele,
nenhuma das línguas se engaja! O que as une é o fato de que
todas estacionaram ali.” E ainda por cima fornece uma lista
completa das divergências entre o latim e as línguas româ-
nicas, descrevendo duas gramáticas totalmente distintas.
O texto de Émile Littré, assim como o prefácio de seu
dicionário, é tudo menos científico. O lirismo substitui a
explicação! Mas, sobretudo, como todos os que acreditam
que o latim é a origem de todas as línguas românicas, ele
raciocina ao avesso. Em vez de deduzir da diferença, que
ele descreve aliás muito bem, entre o latim e as línguas ro-
mânicas, que se está diante de dois sistemas linguísticos
diferentes, ele se maravilha com o “ponto de encontro” e o
“ponto único” para onde convergiram as línguas românicas
enquanto que o campo da divergência era “ilimitado”.

Sétimo indício. As conjugações ou o ilusionismo em ação!

O quadro abaixo compara o presente do indicativo


latino ao presente do indicativo do francês, do italiano,
do espanhol [e do português]. À primeira vista, podemos
nos estasiar diante das grandes semelhanças aparentes.
Mas o estudo atento mostra que essas semelhanças são
próprias das línguas indo-europeias. A título de compa-
ração, acrescentei as conjugações do alemão e do grego.
Grego
Latim Francês Espanhol Português Italiano Romeno Alemão
modermo
AM-O AIM-E AM-O AM-O AM-O IUB LIEB-E -O
AM-AS AIM-ES AM-AS AM-AS AM-I IUB-I LIEB-ST -IS
AM-AT AIM-E AM-A AM-A AM-A IUB-E LIEB-T -I
AM- AM-
AIM-ONS AM-AMOS AM-AMOS IUB-IM LIEB-EN -OME
AMUS IAMO
82 Yves Cortez

Grego
Latim Francês Espanhol Português Italiano Romeno Alemão
modermo
AM-ATIS AIM-EZ AM-ÁIS AM-AIS AM-ATE IUB-ITSI LIEB-T -ETE
AM-ANT AIM-ENT AM-AN AM-AM AM-ANO IUB LIEB-EN -OUN

Como constatamos para os plurais, notamos uma


diferença entre as línguas italiana e romena, de um lado
(segunda pessoa do singular em I) e as línguas espanhola,
francesa [e portuguesa], de outro lado (segunda pessoa do
plural sem T), reforçando a ideia da existência de duas va-
riantes dialetais do “italiano antigo”.
Comparemos, agora, as conjugações no futuro.
Latim Francês Italiano Espanhol Português
AM-ABO AIM-ERAI AM-ERÓ AM-ARÉ AM-AREI
AM-ABIS AIM-ERAS AM-ERAI AM-ARÁS AM-ARÁS
AM-ABIT AIM-ERA AM-ERA AM-ARÁ AM-ARÁ
AM-ABIMUS AIM-ERONS AM-EREMO AM-AREMOS AM-AREMOS
AM-ABITIS AIM-EREZ AM-ERETE AM-ARÉIS AM-AREIS
AM-ABUNT AIM-ERONT AM-ERANNO AM-ARÁN AM-ARÃO

A comparação entre as conjugações no futuro do la-


tim e de três [quatro, incluindo o português] línguas româ-
nicas (não indiquei a forma do futuro na língua romena
porque ela é muito divergente) permite observar imedia-
tamente que, se o latim se transformou em italiano, fran-
cês, espanhol [e português], o B do futuro no latim teria
se transformado em R. As transformações fonéticas do B
existem, em V, por exemplo, mas nunca foi observado uma
que tenha originado o som R. Além disso, seria improvável
que em todo o domínio das línguas românicas o B tenha
se transformado da mesma maneira. Penso que se trata do
mesmo futuro em R que foi trazido pelos romanos.
Diante de tal curiosidade e cegos pelo dogma, os que
postulam uma origem latina das línguas românicas têm
duas escolas. Para uns, a forma românica do futuro se ori-
ginaria do subjuntivo imperfeito (é preciso procurar bem
os R onde eles existem, sob a condição de creditar ao povo
a capacidade de utilizar o subjuntivo imperfeito!). Para os
outros, o futuro das línguas românicas “proveniente de
O Francês não vem do Latim! 83

uma perífrase com o infinitivo”. Nessa segunda hipótese, o


infinitivo é utilizado como recurso para explicar a presen-
ça do R. Mas suas explicações caem em descrédito. Com-
preendo e compartilho perfeitamente a dificuldade deles
em explicar o inexplicável!
A comparação do passado simples traz a mesma con-
clusão.
Latim Francês Italiano Espanhol Português
AM-AVI AIM-AI AM-AI AM-É AM-EI

AM-AVISTI AIM-AS AM-ASSI AM-ASTE AM-ASTES

AM-AVIT AIM-A AM-Ó AM-Ó AM-OU

AM-AVIMUS AIM-ÂMES AM-AMMO AM-AMOS AM-AMOS

AM-AVISTIS AIM-ÂTES AM-ASTE AM-ASTEIS AM-ASTEIS

AM-AVERUNT AIM-ERENT AM-ARONO AM-ARON AM-ARAM

O passado simples em latim contém uma sílaba


AV, que teria sido misteriosamente volatizada em to-
das as línguas românicas.

Oitavo indício. A sintaxe, silêncio perturbador!

A semelhança das línguas românicas evidencia que


todas as línguas românicas apresentam a mesma sintaxe,
que nunca corresponde à do latim.
Lembro alguns pontos específicos do latim:

• a posição do verbo em fim de frase:

ROSA ALBA EST


A rosa branca é

DOMINA IN VILLA LABORAT


A fazendeira na fazenda trabalha

Em latim, o verbo se encontra frequentemente no fi-


nal da frase. Isso nunca acontece nas línguas românicas.
Quando então esta mutação teria acontecido?
84 Yves Cortez

Ninguém sabe precisar, já que os textos latinos escritos


tanto no séc. 4º quanto no séc. 8º mantêm a mesma ordem
das palavras, enquanto que as línguas românicas jamais to-
mam a liberdade de tal inversão!

• a posição do complemento nominal antes do subs-


tantivo:

NATURAE OPUS
(literalmente: da natureza à obra)
A obra da natureza

EGREGIAE ROMANORUM LEGES


(literalmente: notáveis / dos romanos / as leis)
As leis notáveis dos romanos

Em latim, o complemento nominal aparece sempre


antes do substantivo; nas línguas românicas o complemen-
to nominal aparece sempre depois do substantivo e é sem-
pre introduzido pela preposição “de”.

• posição dos adjetivos possessivos depois do subs-


tantivo:

PATER MEUS
Meu pai

MARE NOSTRUM
Nosso mar (Mediterrâneo)

• exemplo complementar:
Apresento a totalidade de uma frase extraída de A
Guerra Civil (Farsália) de Lucano (livro VII).
NON TAMEN ABSTINUIT VENTUROS PRODERE
CASUS PER VARIAS FORTUNA NOTAS.
O Francês não vem do Latim! 85

A tradução feita por A. Bourgery na coleção Budé é


a seguinte:
La fortune pourtant ne manqua pas de révéler les malheurs
à venir par des signes divers27.
Mas a tradução literal destaca a extraordinária orga-
nização das palavras em latim.
Ne pas pourtant manqua à venir révéler les malheurs par
variés fortune signes28.
Comparem as duas traduções e ponderem o que quer
dizer “sintaxe latina”. O latim tem uma sintaxe totalmente
diferente daquela das línguas românicas.
Se as línguas românicas se originassem do
latim, haveria uma transformação total no pla-
no da sintaxe? Mas, sobre isso, os que apoiam a fi-
liação preferem manter um silêncio absoluto.
Nós os compreendemos. Seu método consiste em extrair
pequenos pedaços de gramática ou vocabulário, para
glosar a respeito das semelhanças e evoluções. Mas o
seu mal-estar é extremo quando eles têm que analisar o
conjunto da gramática. Não esperem que eles expliquem
como os romenos e os portugueses fizeram as mesmas
mutações sintáticas; eles invocam leis que não são aces-
síveis à plebe.

Oito indícios: nossa defesa cresceu.

Bem curiosa a língua-mãe, o latim, que não teria le-


gado aos seus descendentes nem sua sintaxe, nem suas
declinações, nem suas conjugações, nem o gênero neutro,
nem o passivo, nem os verbos depoentes, nem os adjeti-
vos verbais...
N.T.: A fortuna, entretanto, não deixou de revelar as futuras desgraças através
27

de diversos sinais.
28
N.T.: Não entretanto faltou futuro revelar as tristezas através de diversos for-
tuna sinais.
86 Yves Cortez

E, ao mesmo tempo, observamos que as línguas


românicas herdaram (de algum lugar, através de uma
ação misteriosa!) a mesma sintaxe, os mesmos plurais,
os mesmos artigos, a mesma conjugação, o mesmo con-
dicional, o mesmo passado composto, a mesma utiliza-
ção do voseamento...
Essas observações reforçam aquelas que eu fiz sobre
o vocabulário. O latim não pôde evoluir da mesma forma,
tão radicalmente e em tão pouco tempo, da Romênia a Por-
tugal. Isso me conduz naturalmente a confirmar minha
hipótese da existência de uma língua distinta do latim,
e não originária do latim, ancestral de todas as línguas
românicas.

Quarta Prova
As línguas evoluem muito lentamente

A resistência da inércia coletiva é, de todas


instituições sociais, a que oferece
menos tomada de iniciativas.
Ferdinand de Saussure
Curso de linguística geral (1910)

A transformação do latim teria acontecido


há seis séculos

Acabamos de nos dar conta da diferença entre o la-


tim clássico e as línguas românicas. Ela é enorme! Mas,
além disso, esta transformação teria acontecido em um
prazo relativamente curto.
A transformação do latim em língua românica
teria acontecido em um espaço de tempo de seis sé-
O Francês não vem do Latim! 87

culos aproximadamente. J. Marouzeau 29 resume a tese


geralmente admitida: “O latim, língua do conquista-
dor, progride em todas as rotas da colonização, difun-
dida ou imposta pelos soldados, funcionários públi-
cos, comerciantes, colonos, que elimina pouco a pouco
os falares endógenos, particularmente o gaulês; mas,
desde o séc. 3º e, sobretudo, o séc. 10º, ele se depara
com as línguas trazidas quando das invasões germâ-
nicas. A ação destes aportes, associada aos substratos
locais, precipita a evolução do latim, e, desde o início
do séc. 9º, a língua à qual chamamos “língua roma-
na rústica” apresenta as características essenciais do
que mais tarde será o francês.” Para Antoine Meillet:
“O latim manteve uma certa estabilidade durante
aproximadamente oitocentos anos. Quando a unidade
da língua falada começou a se romper, do séc. 3º ao
séc. 5º d.C., a unidade da língua escrita persistiu.” 30
A transformação do latim teria começado entre o séc.
3º e 4º, segundo os autores, e teria acabado entre os séc.
9º e 10º.
É neste espaço de tempo bastante curto que o latim
teria se transformado totalmente. Uma tal evolução seria,
de qualquer forma, um fato excepcional na história das lín-
guas, e eu apresento a prova para a análise das línguas cuja
evolução podemos acompanhar ao longo de vários sécu-
los. Vocês constatarão a extraordinária constância dessas
línguas através do tempo. Bastam alguns dias de estudo
para um francês ou um italiano aprender textos datados
de oito séculos. Que italiano culto teria dificuldade em ler
Dante? Um leitor árabe não tem dificuldade alguma para
passar da leitura do Corão aos textos escritos em árabe
clássico moderno. Quanto ao grego antigo, com aproxi-

29
J. Marouzeau, Du latin au français, Les belles lettres, 1957.
30
Antoine Meillet, Esquisse d’une histoire de la langue latine, librairie Klincksieck,
1985.
88 Yves Cortez

madamente vinte séculos, é preciso um certo aprendizado


para um cidadão grego de hoje, mas a continuidade é tal
que a dificuldade não é intransponível.
Caro leitor, você sabe certamente o quanto é difícil
decifrar qualquer texto em latim, mesmo depois de anos
de estudo.
A propósito, antes que vocês resmunguem por cau-
sa das poucas diferenças que encontrarão entre os textos
antigos das diferentes línguas e sua tradução em língua
contemporânea, proponho a vocês a leitura de dois textos
latinos, extraídos de um excelente livro que lhes recomen-
do, em latim ou em francês, De natura rerum, de Lucrécio.
Apresento a vocês a tradução do primeiro. Para o segundo,
deixo a vocês o prazer de decifrá-lo, pois o latim e o francês
[e o português] são muito próximos, pelo menos é o que
parece! Assim, vocês estarão melhor preparados para a lei-
tura dos textos que seguem, em francês antigo, em inglês
antigo, em “italiano antigo” e em árabe antigo.

“Inter enim cursant primordia principiorum moti-


bus inter se, nihil ut secernier unum possit, nec spa-
tio fieri divisa potestas: sed quasi mutae vis unius
corporis exstant.”
“Os átomos em seus movimentos se entrecruzam a
tal ponto que é impossível isolá-los e nem localizar
cada uma de suas faculdades, as quais são, ao con-
trário, propriedades múltiplas de um único corpo.”31

Quanto a esse segundo texto e, para facilitar sua


compreensão, indico que ele diz respeito à explicação dos
movimentos da lua. Boa sorte...

“Denique cur nequeat semper nova luna creari ordi-


ne formarum certo certisque figuris inque dies pri-
31
No original, tradução para o francês por Henri Clouard, Librairie Garnier-
frères, 1939.
O Francês não vem do Latim! 89

vos aborisci quaeque creata atque alia illius reparari


in parte locoque.”

Não, não. Não passe tão rápido pelo texto. Isso não é
hebraico, mas latim. Você bem sabe, a língua-mãe de todas
as línguas românicas! Como? Você não está entendendo
nada? Bem, passe então à leitura de textos antigos.

Do francês antigo ao francês moderno: um contraexemplo

Por vezes, escutamos nossos pais dizerem que seus


filhos não falam mais a mesma língua que eles. Brincadei-
ra! Restariam apenas resquícios do verlan32 e da gíria estu-
dantil ou dos subúrbios. Temos uma visão deformada do
nosso vocabulário e pensamos que nossa própria gíria é
uma criação recente, enquanto que ela vem, como o restan-
te, do nosso vocabulário dos tempos mais antigos.33
Étiemble escreveu, há aproximadamente quarenta
anos, um panfleto34 para denunciar a invasão do vocabu-
lário inglês na língua francesa. Seu livro queria denunciar
que o inglês avançava em todos os domínios, e que o fran-
cês estava ameaçado de se transformar em inglês. Houve,
certamente, depois da guerra, um modismo, uma época
em que os franceses descobriam o jazz, o jeans, e as gomas
de mascar. Mas constatamos hoje que centenas de palavras
inglesas citadas por Étiemble praticamente não são mais
utilizadas. Cito, entre outras, background, living-room, lunch,
garden-party, feedback, businessman, pick-up, corned-beef, duf-
fle-coat, pin-up... Todas estas palavras são ou desconhecidas
dos mais jovens ou fora de moda. É o princípio da “inércia
linguística”, enunciado por Ferdinand de Saussure, segun-
32
Verlan vem de l’envers (pronunciado lanver, em francês), que significa “o inver-
so”. Verlan é um conjunto de palavras cujas letras ou sílabas foram invertidas.
33
Le français que l’on parle, Yves Cortez, l’Harmattan, 2002.
34
Parlez-vous franglais? Étiemble, Gallimard, 1964.
90 Yves Cortez

do o qual uma palavra só subsiste se é compreendida e


admitida pela maioria dos locutores.
Todo tipo de inovação passa pelo crivo da prática e
esbarra na capacidade de absorção do maior número de
pessoas. É por essa razão que, na maior parte dos casos,
as gírias permanecem limitadas a pequenas comunidades.
Convido-os a ler La méthode de Mimile35, que supostamen-
te apresenta a gíria francesa. Esse livro é incompreensível,
uma vez que apresenta palavras e expressões próprias a
um ambiente marginal. A gíria do “método Mimile” não
se disseminou, da mesma forma que o verlan, do qual se
compreende apenas algumas palavras.
Testemunho da evolução do francês durante três sé-
culos, este texto de Molière, extraído de O Avarento, escri-
to em 1668, na época do Rei Luís XIV:

“ÉLISE: [...] Quem é esta a quem você ama?


CLÉANTE: Uma jovem, que vive há pou-
co nestes bairros, e que parece ser feita para
dar amor a todos que a veem. A nature-
za, minha irmã, nada criou de mais amável.
Ela se chama Marianne, e mantém a conduta de uma
boa mãe, que está quase sempre doente, e para quem
esta amável filha tem sentimentos de amizade inima-
gináveis. Ela a serve, lastima por ela, e a consola com
uma ternura que lhe tocaria a alma...”

Eis um texto que tem mais de três séculos e cuja lín-


gua apenas difere do francês contemporâneo por poucas
modificações de vocabulário. Todo o texto desta peça em
prosa está de acordo. Pode-se dizer que os franceses do séc.
21, com poucas exceções, se expressam como os franceses
do séc. 17.

35
La méthode à Mimile, Alphonse Boudard et Luc Étienne, Éditions du Rocher, 1988.
O Francês não vem do Latim! 91

Vejamos agora dois textos de Rabelais datados de


quinhentos anos.

En esté je ne sçay quel vent courra ; mais je sçay bien qu’il


doibt faire chault et régner vent marin. Toutefois si autre-
ment arrive, pourtant ne fauldra renier Dieu.36

En été je ne sais quel vent soufflera ; mais je sais bien qu’il


fera chaud et que règnera le vent marin. Toutefois, si cela
se passe autrement, il ne faudra pas pour autant renier
Dieu.
(La traduction est de moi: je parle couramment le français
ancien !)37

Outro texto de Rabelais:


“Ceste année les aveugles ne verront que bien peu,
les sourdz oyront assez mal, les muetz ne parleront
guieres, les riches se porteront un peu mieux que les
pauvres, et les sains mieux que les malades.”38

Tradução: “Cette année les aveugles ne verront que bien


peu, les sourds entendront assez mal, les muets ne parle-
ront guère, les riches se porteront un peu mieux que les
pauvres et les bien-portants mieux que les malades.”39
A ortografia, ainda não codificada, torna difícil a
leitura dos textos desta época. Mas, se adotarmos uma
transcrição moderna, a língua parece impressionante-
mente estável.

36
Pantagruélienne pronostication, 1532.
37
Tradução para o português: “No verão, eu não sei qual vento soprará; mas eu
bem sei que fará calor, e que o vento marítimo reinará. Entretanto, se acontecer
de outra forma, não poderemos por isso renegar a Deus. (A tradução é minha: eu
falo fluentemente o francês antigo!).”
38
Ibid.
Tradução para o português: Neste ano, os cegos só verão um pouco, os surdos
39

ouvirão bem mal, os mudos não falarão de forma alguma, os ricos se portarão um
pouco melhor que os pobres e os saudáveis melhor que os doentes.
92 Yves Cortez

É claro, há cinco séculos, o vocabulário se enriqueceu


sobremaneira em consequência da evolução da sociedade,
nos planos social, político e econômico; mas nem o vocabu-
lário de base e nem a estrutura da língua se transformaram.
Mais antigo ainda, esse texto datado de oitocen-
tos anos, extraído do romance Enéas, de aproximada-
mente 1200.
“EN LA CHANBRE EST TOT SOLEMENT CELUI
QUI M’EN FIST DON COMME FOLE L’AI TANT AMÉ.
SOR CES DRAS VOIL FENIR MA VIE ET SOR LE LIT OU
FUI HONIE.”
Que eu traduzi como segue: “en la chambre, elle est
toute seule, celui qui m’en fit don, comme une folle, je l’ai
tant aimé. Sur ces draps, je veux finir ma vie et sur ce lit où
je fus honnie.”40
A leitura de um texto do fim do séc. 12 é logica-
mente difícil, primeiro porque a ortografia ainda não está
estabelecida, como se vê neste mesmo texto onde VEUT
[quer] se escreve tanto VELT, para se aproximar artificial-
mente do latim, quanto VOIL. A isso acrescentam-se as
inevitáveis mudanças de vocabulário, mas as distorções
não tocam os pontos fundamentais da gramática.
Neste trecho da Canção de Rolando, eu me limitei a
modernizar a ortografia, sem inverter a ordem das pala-
vras e nem modificá-las.

LE ROI MASILE EUT FINI SON CONSEIL.


DIT A SES HOMMES : “SEIGNEURS, VOUS EN IREZ,
BRANCHES D’OLIVE EN VOS MAINS PORTEREZ
SI ME DIREZ A CHARLEMAGNE, AU ROI,
POUR LE SIEN DIEU QU’IL AIT MERCI DE MOI,

40
Tradução para o português: No quarto ela está sozinha. Como uma louca, eu
me ofereci àquele que tanto amei. Quero terminar minha vida sobre estes lençóis
e sobre este leito, em que fui desonrada.
O Francês não vem do Latim! 93

AINS NE VERRA PASSER CE PREMIER MOIS


QUE JE L’SUIVRAI OD MIL DE MES FIDELES.”41

Estes textos nos fazem voltar oito séculos atrás. No


entanto, com exceção da ortografia, não há praticamente
dificuldade alguma de compreensão, exceto por algu-
mas construções que não são mais correntes atualmente.
Nos últimos dois textos, muito antigos, não há inovação
alguma no que diz respeito ao plano gramatical, nenhu-
ma transformação significativa da sintaxe, ou seja, nada
comparável com a distância entre o latim clássico e as
línguas românicas.
Não tenho aqui a intenção de entrar no detalhe das
evoluções do francês antigo até o francês contemporâneo,
mas de ressaltar a extraordinária estabilidade da língua.
Daí meu ceticismo em relação a uma suposta transforma-
ção radical do latim no espaço de apenas alguns séculos.

Do inglês antigo ao inglês moderno,


segundo contra-exemplo:

Reproduzo agora um texto do poeta inglês Chau-


cer escrito por volta de 1390, e a tradução para o inglês
42

moderno.

Whan that Aprille with hise shoures soote


WHEN APRIL WITH ITS SWEET SHOWERS
the droughte of March hath perced to the roote
THE DROUGHT OF MARCH HAS PIERCED TO
THE ROOT
and bathed every veyne in swich licour
AND BATHED EVERY VEIN IN SUCH LIQUID
of wich vertu engendred is the flour.
41
A canção de Rolando, escrita em 1050, mas talvez reescrita em 1200.
42
Geoffrey Chausser, The Canterbury Tales, 1390, in The English language. David
Crystal, Penguin Books, 1988.
94 Yves Cortez

FROM WHICH STRENGHT THE FLOWER IS EN-


GENDERED
Com exceção da ortografia, que ainda não está esta-
bilizada, observa-se que os seis últimos séculos não altera-
ram muito o inglês falado à época de Chaucer. Se deixar-
mos de lado as construções propriamente poéticas, nota-se
quase uma estabilidade da língua! Um século mais tarde,
no fim do séc. 16, a ortografia está normalizada e a conti-
nuidade linguística aparece de maneira mais evidente. “To
be or not to be, that is the question” não adquiriu uma úni-
ca ruga em cinco séculos, nem qualquer um dos grandes
textos de Shakespeare.

O exemplo fulgurante do “italiano antigo”

Eis, agora, o célebre texto de Dante, extraído da “Di-


vina Comédia”.

NEL MEZZO DEL CAMMIN DI NOSTRA VITA


MI RITROVAI PER UNA SELVA OSCURA,
CHÉ LA DIRITTA VIA ERA SMARRITA,
AHI QUANTO A DIR QUAL ERA È COSA DURA,
ESTA SELVA SELVAGGIA E ASPRA E FORTE
CHE NEL PENSIER RINOVA LA PAURA!
TANT’È AMARA CHE POCO È PIÙ MORTE;
MA PER TRATTAR DEL BEN CH’I’ VI TROVAI,
DIR’O DE L’ALTRE COSE CH’I’ V’HO SCORTE.
IO NON SO BEN RIDIR COM’I’ V’ENTRAI:
TANT’ERA PIEN DI SONNO A QUEL PUNTO
CHE LA VERACE VIA ABBANDONAI.43

Tradução em italiano contemporâneo:

43
Dante, A Divina Comédia, 1300.
O Francês não vem do Latim! 95

Nel mezzo del cammino di nostra vita


Mi ritrovai per una selva oscura,
Perché la dritta via era smarrita.
Ahi, quanto a dire quale era è cosa dura,
Questa selva selvaggia e aspra e forte
che nel pensiero rinnova la paura!
Tanto è amara che poco più è morte;
ma per trattare del bene che io vi trovai,
dirò delle altre cose che vi ho scorte.
Io non so ben ridire come vi entrai:
tanto ero pieno di sonno a quel punto
che la vera via abbandonai.44

O italiano não constitui exceção à regra da estabili-


dade das línguas no tempo, como mostra toda a obra de
Dante. Quando se compara um texto de Dante de 1300 d.C.
e sua tradução em italiano contemporâneo, pode-se cons-
tatar a pouca distância entre os dois textos em termos de
vocabulário. Quanto à sintaxe e a gramática, não há uma
única diferença em sete séculos!
Mais surpreendente é constatar que, voltando sete
séculos atrás, não chegamos nem perto do latim. Faz-se
a mesma constatação ao se estudar o francês antigo. Se o
latim tivesse se transformado em diferentes línguas româ-
nicas, isto só poderia ter acontecido paulatinamente e nós
deveríamos encontrar vestígios de latim de uma forma ou
outra. Isso não acontece!
Se nos sete séculos que passaram não houve pratica-
mente transformação alguma do italiano, é evidente que
o italiano falado há vinte séculos, ou seja, na época dos
conquistadores romanos, era praticamente o mesmo que
44
Tradução Champan, 2005.
96 Yves Cortez

o falado hoje. Compreende-se melhor porque todas as lín-


guas românicas, da Romênia a Portugal, são tão parecidas.
Se, de maneira geral, as línguas evoluíram pouco,
o italiano na verdade quase não evoluiu, já que, di-
ferentemente das outras línguas, está estabilizado há
vários séculos.

A língua árabe: outra ilustração da


estabilidade das línguas

A língua árabe é uma das melhores ilustrações da


estabilidade das línguas, pois ela nos oferece a possibili-
dade de estudar a evolução por um período bastante lon-
go. Qualquer arabista que estuda tanto os textos antigos
(notadamente o Corão escrito há catorze séculos) quanto a
literatura contemporânea, sabe que se pode passar de um
período a outro sem dificuldade. A semelhança é grande
entre o árabe antigo e o árabe clássico utilizado hoje, tanto
no que diz respeito ao vocabulário quanto à gramática e a
sintaxe. Os dialetos árabes utilizam as mesmas palavras de
uso corrente comparadas àquelas utilizadas na época do
Profeta Maomé.
A título de ilustração, apresento este famoso texto
do séc. 7º, indicando entre parênteses a tradução em árabe
contemporâneo, nos únicos casos em que se pode conside-
rar que as palavras antigas não são mais correntes.

“YÀ MAACHARA BIKR,


HÀLIKOUN MAADHOUROUN KHAYROUN
MINE
FAROUROUN
(FÀRRAN),
INNA ALHADHARA LÀ YANJY MINA ‘LKADA-
RI,
WA INNA’SABRA MINE ASBÀDI ADDAFARI
(ANNASRI),
O Francês não vem do Latim! 97

ALMANIYA (ALMAOUTOU) WA LA’DANIYA,


ISTIKBALOU ALMAOUTOU KHAYROUN MINE
INSTIDBÀRIHI!45

Ó povo de Bikr,
um homem que é morto no combate é mais
respeitado que um
fugitivo ileso,
a precaução não protege do destino,
a paciência é uma causa de vitória,
a morte é preferível à danação,
acolher a morte vale mais do que lhe virar as costas!46
O Corão data do séc. 7º. O estudo do vocabulário e
da gramática deste livro sagrado mostra uma grande es-
tabilidade da língua árabe durante os treze séculos que se
passaram. Frases inteiras do Corão não se diferenciam em
nada do árabe contemporâneo. Isto nunca acontece com
relação ao latim.

O caso Cipriota: exemplo surpreendente da


estabilidade das línguas

A Grécia conservou sua língua durante mais de trin-


ta e cinco séculos e o caso de Chipre é, neste sentido, con-
vincente. Jacques Lacarrière, grande conhecedor do mun-
do grego, escreveu: “Chipre é uma ilha grega, ou seja, uma
ilha de língua e cultura gregas, desde tempos remotos.
Esses tempos podem ser definidos exatamente através das
escavações arqueológicas que revelaram, a esse propósito,
documentos difíceis de contestar. O que se pode concluir
disso é que se falava uma língua aparentada ao grego, des-
de a época creto-micênica, ou seja, dezoito séculos antes de
Cristo e que se falava uma língua totalmente grega apro-
45
Discurso de Bnou Kaçiba Achibàny (séc. 7º)
46
Tradução para o francês de N. Serraj, 2005.
98 Yves Cortez

ximadamente seis séculos mais tarde, com a chegada dos


aqueus. A partir desta data, e até os dias de hoje, a língua e
a cultura de Chipre ‒ tendo em vista as características locais
e dialetais ‒ não deixarão de ser as da Grécia. Através dos
fatos expostos, o que me parece impressionante é que Chi-
pre apresenta o caso único de um território de uma cultura
helenófona, apesar de a ilha jamais ter sido grega nem liga-
da de forma alguma à Grécia. Acrescentemos que, longe de
estar ligada à Grécia, ao longo dos séculos ela sempre foi
(à exceção de dois períodos de relativa independência, no
início dos tempos bizantinos) ocupada, dominada, saquea-
da por uma sequência sem fim de conquistadores, dentre
os quais muitos se instalaram de forma duradoura, por
exemplo: assírios, egípcios, persas - fenícios, ptolemaicos,
romanos, antes da era cristã e, depois, como consequência
das cruzadas: francos, venezianos, sarracenos, árabes, tur-
cos (durante muitos séculos) e, finalmente, ingleses (que
compraram a ilha dos turcos em 1878). Chipre conquistara
a independência apenas recentemente, em consequência
dos tratados de Zurique, em 1959”.47
Mais uma vez, o caso cipriota mostra que uma lín-
gua submetida a várias influências externas pode se man-
ter intacta, apesar dos séculos de supremacia estrangeira.
Assim, a transformação do latim em latim vulgar, no con-
texto da pax romana, me parece ainda muito improvável.
Colin Renfrew, em seu livro L’Énigme indo-européen-
ne observa: “A estabilidade de certas línguas, notadamen-
48

te o grego, mostra bem que o ritmo de mudança linguística


pode ser muito lento [...] Compreende-se frequentemente
tão bem o grego micênico como se se tratasse de grego clás-
sico. Em algumas frases, a semelhança é tão grande que a
transliteração tem sentido mesmo em grego moderno.”
No entanto, a época micênica se situa aproximada-
47
L’été grec, Jacques Lacarrière, Plon, 1975.
48
Flammarion, 1987.
O Francês não vem do Latim! 99

mente há trinta e cinco séculos da nossa era. Todos os co-


nhecedores do grego antigo e do grego moderno estão de
acordo a respeito da impressionante semelhança entre as
duas línguas, apesar dos séculos que as separa, e os espe-
cialistas do grego micênico nos dizem que a semelhança
se estende muito além da época de Péricles. Entretanto, o
seu espanto está ligado à ideia de que o latim, por outro
lado, teria se transformado em diferentes línguas româ-
nicas; e haveria, para eles, dois tipos de línguas: as que
como o grego não se transformaram ou se transforma-
ram pouco, e aquelas que, como o latim, se transforma-
ram profundamente. Na verdade, não há dois tipos de
línguas, mas um único, dado que a evolução de todas as
línguas é sempre muito lenta. Acabo de dar vários exem-
plos incontestes.

Um documento excepcional: o Sermão de Estrasburgo

O Sermão de Estrasburgo é um documento notável


do ponto de vista linguístico, já que foi escrito em 842.
Um dos raros da época, que vai da queda do Império Ro-
mano ao séc. 10º. Ele é apresentado erradamente como
um elo perdido entre o latim e o francês. Nele não há
nada de latim; foi escrito em língua românica.
Eis o texto do Sermão pronunciado por Luís o Ger-
mânico:

PRO DEO AMUR ET PRO CHRISTIAN POBLO ET


NOSTRO COMMUN SALVAMENT, D’IST DI EN
AVANT, IN QUANT DEUS SAVIR ET PODIR ME
DUNAT SI SALVARAI EO CIST MEON FRADRE
KARLO, ET IN CADHUNDA COSA, SI CUM OM
PER DREIT SON FRADRE SALVAR DIFT, IN O
QUID IL MI ALTRE SI FAZET. ET AB LUDHER NUL
PLAID NUNQUAM PRINDRAI QUI MEON VOL
100 Yves Cortez

CIST MEON FRADRE KARLO IN DAMNO SIT.

A utilização deste texto apresenta algumas dificul-


dades:
• Ele é pouco legível e a transcrição de algumas pala-
vras está sujeita a dúvidas.
• É possível que ele tenha sido ligeiramente latiniza-
do por redatores que tinham muito mais hábito de
escrever em latim que em qualquer língua româ-
nica. Exemplo: NUNQUAM para escrever muito
provavelmente NUNCA, QUID para QUI.
• A ortografia, nessa época, estava longe de ser pa-
dronizada e a arbitrariedade está muito presente.
• Por fim, o texto é muito curto para que se possa
fazer uma análise completa do falar da época.
Apesar destas reservas, não nos surpreendemos
ao descobrir um texto escrito numa língua próxima das
línguas românicas contemporâneas. A tabela seguinte
compara os vocabulários do texto do Sermão de Estras-
burgo com o francês, o italiano, o espanhol, [o portu-
guês] e o latim.
Sermão de
Francês Italiano Espanhol Português Latim
Estrasburgo
ADIUDHA AIDE AIUTO AYUDA AJUDA ADJUMENTUM
CADAUNA
CADHUNA CHACUNE CIASCUNA CADA UNA CADA UMA QUISQUE
OGNUNA
CIST CET QUESTO ESTE ESTE HIC / ISTE
COSA CHOSE COSA COSA COISA RES
DREIT DROIT DIRITTO DERECHO DIREITO JUS
IO / EO JE IO YO EU EGO
NOSTRO NOTRE NOSTRO NUESTRO NOSSO NOSTER
SALVAMENT SALUT SALVEZZA SALVACIÓN SALVAÇÃO SALUS
SALVAR SAUVER SALVARE SALVAR SALVAR SERVARE

O vocabulário do Sermão de Estrasburgo parece bem dife-


rente do latim. A comparação com as diferentes línguas români-
cas mostra, ao contrário, um parentesco entre o vocabulário do
Sermão de Estrasburgo e aquele das línguas românicas. O pa-
O Francês não vem do Latim! 101

rentesco parece mais forte com o italiano e o espanhol que com o


francês. Seria esta a prova que o francês, contrariamente ao ita-
liano e ao espanhol, teria continuado a evoluir? Ou foi o “italiano
antigo” que teve preferência em relação ao francês antigo? Hipo-
teticamente, trata-se de um texto puramente românico e muito
distante do latim.
Os textos do Sermão de Estrasburgo não ilustram,
portanto, a passagem do latim para o francês. Eles são, ao
contrário, uma forma manifesta de que uma língua existia
em 842, que era praticamente um tipo de italiano.
Este percurso dos textos antigos das línguas francesa, in-
glesa, italiana, grega e árabe destaca a extraordinária estabilidade
dos vocabulários e das gramáticas ao longo de um grande período.
O mesmo acontece com o latim! Comparemos dois es-
critores, Plauto, por volta de 200 a.C. e Juvenal, em 120 d.C..
O primeiro escreveu peças de teatro – trata-se, portanto, do
latim falado; o segundo escreveu sátiras. Em trezentos anos, a
língua mudou muito pouco. Passa-se de um texto a outro sem
dificuldades. Não há transformação alguma do latim. Com
exceção de mínimos detalhes, desde o nascimento do Império
Romano até o seu apogeu, não houve nenhuma transforma-
ção radical do latim, enquanto que o latim estava aprisionado
entre o grego, no caso dos textos eruditos, e o italiano, como
língua veicular. O latim é, em si, uma prova da estabili-
dade das línguas.
O latim não é exceção à regra. Por que seria? Pois, a regra
que prevalece, e que eu evidenciei com os textos anteriores, é a
extraordinária estabilidade de todas as línguas ao longo dos tem-
pos. Paradoxalmente, esta estabilidade não é conhecida, pois em
vez de fazer uma observação científica, os linguistas e os etimo-
logistas postulam que as línguas evoluem rapidamente, uma vez
que, para eles, o latim teria se transformado em diversas línguas
102 Yves Cortez

românicas, que estão muito distantes dele. Em outros termos, o


dogma do parentesco do latim e das línguas românicas têm efeitos
em cadeia sobre toda a análise científica, e oculta as leis funda-
mentais da linguística.
As línguas podem desaparecer, como o gaulês, na França,
e o celtibero, na Espanha. As línguas podem absorver um voca-
bulário complementar, como o vocabulário latino absorveu do vo-
cabulário grego, e como o inglês absorveu do vocabulário franco-
-normando. Mas os vocabulários de base e as gramáticas
das línguas nunca se modificam rapidamente.

Quinta prova:
A etimologia oficial do francês é fantasiosa

A etimologia oficial é baseada no arbitrário, nas fantasias e na


falsa erudição. Repetida de geração em geração, assim como por to-
dos os dicionários, acaba se tornando lei. Repete-se frequentemente,
por exemplo, que a palavra Trabalho vem do latim Tripalium (ins-
trumento de tortura), que a palavra Sanglier [javali] vem do latim
Singularis (solitário), que a palavra Escravo vem do latim Slavus
(eslavo)... e mil outras besteiras, que jamais foram demonstradas.

Os três pressupostos da etimologia oficial:

Não há o mínimo rigor. Nunca, como para o “bai-


xo latim”, foi formulada uma metodologia científica que
seria a base da etimologia oficial. De fato, a etimologia
oficial se apoia em três pressupostos que conduzem os
etimologistas a se enganarem, com uma constância que
força a minha admiração.

Primeiro pressuposto: o francês vem do latim. Os eti-


mologistas, persuadidos que o francês vem do latim, traba-
O Francês não vem do Latim! 103

lham, portanto, contra qualquer tipo de lógica, à procura


de um meio qualquer para explicar a origem latina.

Segundo pressuposto: quando os etimologistas, ape-


sar de sua imaginação fértil, não conseguem chegar a uma
origem latina, consideram que as palavras foram neces-
sariamente emprestadas de uma outra língua, e têm a ten-
dência de se voltar para as línguas que conhecem bem: o
alemão, o holandês, o italiano e o espanhol. Contudo, lem-
bremos que aquilo que eles consideram empréstimos do
latim e do espanhol é, na verdade, simplesmente um apor-
te direto pelo canal do “italiano antigo”.
Por outro lado, imaginar que tenhamos absorvido mil
e quinhentas palavras de origem holandesa é uma idiotice
inominável. Basta comparar - e eu o farei mais tarde - as
palavras supostamente de origem holandesa e as palavras
italianas, para que se perceba o parentesco infinitamente
mais evidente com estas últimas. Não, o povo francês não
é um povo de cretinos, que passa o seu tempo roubando
palavras das línguas de outros povos; uma língua não se
constrói com base em empréstimos de grande número de
palavras estrangeiras.

Terceiro pressuposto: para os etimologistas, fora


da escrita não há salvação! A etimologia oficial se dedi-
ca a seguir a evolução das palavras através de textos de
diferentes períodos e quer escrever a história semântica
e fonética das palavras. A ambição é louvável, mas o erro
consiste em acreditar que os textos sejam suficientemen-
te confiáveis para dar conta verdadeiramente do estado
da língua. “Fora da escrita não há salvação”. Tal poderia
ser o lema da etimologia oficial. No entanto, basear-se
total e unicamente na escrita tem seus limites. Com efei-
to, os escritos são suspeitos:

• A literatura não tem vocação em si mesma para tra-


104 Yves Cortez

tar de todos os assuntos da vida comum. Ela não


transmite de maneira exaustiva o vocabulário da
vida doméstica: alimentação, cozinha, vestuário,
anatomia, agricultura, animais...
• A literatura era elaborada, ao menos antigamente,
pelos eruditos, que estavam próximos do poder e
pertenciam à nobreza (os latinos, os egípcios e os as-
sírios), ou eram especialistas na área, na filosofia ou
nas ciências, como os gregos, notadamente. Ela não
reflete em nada o modo de vida do povo, e negligen-
cia, assim, uma parte do vocabulário.
• Os próprios escritores se autocensuram e utilizam
um vocabulário pensado. O exemplo da literatura
francesa, que baniu centenas de gírias – incluindo
palavras que não são de cunho vulgar – serve de
exemplo.
• Enfim, a ortografia está longe de ser confiável: ela
não está nem baseada em dados científicos sóli-
dos (a fonética é uma ciência recente), nem estável
e nem uniforme. Ela pode até mesmo ser mais ou
menos conscientemente alterada como mostrare-
mos a seguir.

Ferdinand de Saussure dizia no seu Curso de Linguís-


tica Geral: “a evolução ininterrupta [da língua] é-nos amiúde
encoberta pela atenção concedida à língua literária”. Decidida-
mente, este Ferdinand de Saussure se distingue claramente
dos outros.

O latim a todo custo

Para encontrar a origem latina das palavras france-


sas, contra qualquer tipo de evidência, os etimologistas
não têm medo de utilizar procedimentos falaciosos, pe-
O Francês não vem do Latim! 105

quenas trapaças, e aceitar todo tipo de arranjo necessário,


desprezando qualquer tipo de lógica.
Identifiquei quatro procedimentos por eles utilizados:

Procedimento n° 1: consiste em encontrar uma pa-


lavra latina com a mesma sonoridade e afirmar que ela
origina uma palavra do francês. Vou citar alguns exemplos
ao acaso. Você poderá fazer o exercício por si mesmo, quando
compreender as chaves para decifar a fraude.

BAILLE [tina, navio velho]. Esta gíria ou, mais exatamen-


te, palavra popular, significa água ou mar, na expressão “aller à la
baille” [banhar-se]. O dicionário Petit Robert propõe a etimologia
seguinte: “1325, italiano baglia, latim bajula (carregador de
água)”. Chamo sua atenção para a menção da data (1325),
que traz a impressão de rigor nesta imprecisão “artística”.
Para mim, a palavra BAILLE tem a mesma origem que
a palavra BAIE [baía]; ambas originárias do italiano BAIA,
palavra que se encontra em todas as línguas românicas. As-
sim “aller à la baille” quer dizer simplesmente ir à praia.

CHANTIER [canteiro]. O Petit Robert propõe “fim


do séc. 12, peça de madeira, escora, latim, CANTARIUS
(cavalo ruim), cf. cavalete e viga”. Esta etimologia é ex-
traída do dicionário etimológico de Bloch e Wartburg, que
acrescenta que a palavra latina CANTARIUS é provavel-
mente emprestada do grego KANTHELIOS “burro”. Sic!
Como verificamos, esta proposta não poderia ser
mais fantasiosa. Eu a refuto totalmente. Onde está a rela-
ção entre construção, pangarés ou burros? Ou seja, deu-se
com os burros n´água.
CHANTIER poderia ser uma palavra composta:
CHAN-TIER. A primeira sílaba remete à CHAMP (lugar,
espaço) e, a segunda, é construída a partir do radical TR,
que encontramos em TRUIRE (construir, destruir), em
TOUR [torre] ou em TRUELLE [colher de pedreiro]. Este
106 Yves Cortez

radical remete explicitamente à construção. Um CHAN-


TIER poderia ser simplesmente um local destinado à cons-
trução, mais do que um pangaré ou um burro.

CANCAN: Uma obra prima da falta de nexo. O Pe-


tit Robert propõe “1602: Quanquan de colégio. 1554, latim,
QUAMQUAM “quoique” [apesar de que] com a antiga
pronúncia”. Essa etimologia foi tirada de Bloch e Wart-
burg, mas o Petit Robert a abrevia, pois a segunda parte é
ainda mais ridícula. Cito-a na íntegra: “no sentido de dan-
ça vulgar e barulhenta, 1836, vem provavelmente de um
nome infantil do pato, verificado em 1808; Cancan signi-
ficaria, portanto, propriamente “dança que evoca o cami-
nhar dos patos”.
É preciso reconhecer que chega-se, assim, ao auge do
absurdo, pontuado de datas de uma extraordinária preci-
são que são apresentadas com um verniz científico.
Os etimologistas oficiais, que conhecem tão bem o la-
tim, e que fazem com que tudo venha do latim, poderiam
ter feito uma aproximação com o verbo latino CANERE
(cantar). Além disso, a duplicação de um radical é muito
frequente nos termos que se reportam aos sons: em francês
MURMURER [murmurar], BROUHAHA [zum-zum], TA-
POTER [fazer tapotagem], ZÉZAYER [problema de articu-
lação típico da língua francesa que consiste em pronunciar
“ze” em vez de “je” ou “ce”], SUSURER [sussurrar]... Para
mim, a raiz CAN vem do latim e do “italiano antigo”; trata-
-se, portanto, de uma raiz itálica, que significa cantar. O
CANCAN é um tipo de canto baseado na repetição.

ÉQUARRIR [esquartejar, quadrar]: Viria do latim


EXQUADRARE, tornar quadrado. Há algo de incorreto
nisso tudo.
Decomponhamos a palavra E.QUARRIR.
O prefixo “E” tem o sentido de exclusão e QUARRIR
vem do itálico CAR (a carne).
O Francês não vem do Latim! 107

Équarrir, não há nada para se rir. Quer dizer sim-


plesmente “retirar a carne”. Não está suficientemente claro
desta forma?

ÉPICE [especiaria]: A palavra viria do latim SPE-


CIES (espécie).
Não há relação alguma entre as duas palavras, ape-
sar do que pensam os etimologistas oficiais.
A palavra ÉPICE se divide em E-PICE, onde PICE é
construído a partir do radical PS, que é uma deformação
do radical PT, que serviu em todas as línguas europeias
para forjar palavras relativas à alimentação:
Francês: PÂTE, PATÉ, POTAGER, POPOTE, PIN-
TE, PITANCE, PLAT... (port.: massa, patê, horta, cozinha
[gíria], medida, pitança, prato), italiano: PIZZA, russo
PIT’ (beber), inglês PIE (bolo) , e mesmo em latim PIS-
TOR (padeiro)...
Em resumo, PICE é o alimento e É-PICE é o que está na
parte exterior do alimento e não o alimento em si, neste caso,
eu entendo ÉPICE como acompanhamento do alimento.

ESCLAVE [escravo]: O Larousse e o Petit Robert49


dão a mesma etimologia: “vem do latim medieval SCLAVUS
de SLAVUS (eslavo), tendo o povo germânico levado os eslavos
à escravidão”.
Notemos, inicialmente, que a palavra ESCLAVE se
diz em alemão SKLAVE, SCHIAVO em italiano, ESCLAVO
em espanhol. Todas essas línguas teriam incluído a letra
adicional “K” à palavra SLAVE [eslavo]. O que me leva a
pensar que a palavra ESCLAVE não tem nada a ver com os
SLAVES [eslavos], mas que ela é bem anterior a isso.
Em ESCLAVE, vejo uma palavra composta ESC-
-LAVE, onde LAVE remete a trabalho (latim LABOR,
italiano LAVORO, francês LABEUR, português LABOR.
49
Tradicionais dicionários da língua francesa.
108 Yves Cortez

O LABEUR é compreendido no sentido nobre da palavra.


O escravo é o que está excluído do LABEUR, por exercer
tarefas ingratas.
A escravidão é uma velha instituição humana e os
indo-europeus não esperaram os SLAVES [eslavos] para
denominá-la.

SANGLIER [javali]: Viria do latim SINGULARIS (so-


litário). Como se o javali vivesse sozinho! Para fazer etimo-
logia, é preciso às vezes sair dos livros ou, na falta disso,
interrogar os caçadores. Eles lhes dirão que os javalis rara-
mente estão sozinhos e vivem mesmo de maneira muito
agrupada.
A primeira sílaba SAN é indo-europeia, e sob for-
mas fonéticas variadas mais próximas, SIN, CHAN,
CAN... Nós a encontramos em várias palavras relativas
aos animais: CAN.ICHE [poodle], CAN.ASSON [mau ca-
valo], CAN.ARD [pato], SIN.GE [macaco], GEN.ISSE [no-
vilha], CHIEN [cão], CHAM.OIS [camurça], CHAM.EAU
[camelo]...
A segunda sílaba GLIER não é fácil de decifrar, eu
admito. Talvez ela remeta à GUEULE [goela]. O javali seria
simplesmente um animal que teria uma grande goela.
TRAVAIL [trabalho]: Esta palavra viria da palavra
latina TRIPALIUM (instrumento de tortura feito de três es-
tacas). Quem fez essa descoberta? A história não diz. Não
vou insistir no fato de que observamos sempre a mesma
lógica, que consiste em achar ao acaso uma palavra latina
que tenha uma consonância próxima. Ou seja, encontra-
ram uma palavra “TRIPALIUM” e eles concluem, portan-
to, que o trabalho era uma tortura.
Primeiramente, é uma evidência, toda palavra longa
é uma palavra composta. A primeira dificuldade é decom-
pô-la corretamente. Pode-se decompor a palavra em TRA.
VAIL ou em T.RAVAIL. Vamos ver que a segunda proposi-
O Francês não vem do Latim! 109

ção é a correta. Estudemos, primeiramente, as sílabas finais


RA.VAIL.
Quando se analisam várias línguas, percebe-se que
as vogais são muito sensíveis a mudanças, mas que as con-
soantes mudam muito pouco, e sempre da mesma forma.
Assim, para simplificar, diria que o que nos interessa em
RAVAIL são as consoantes, portanto, as letras R e V. No
entanto, o R se transforma foneticamente, com muita fre-
quência em L e o V se transforma foneticamente, também
com muita frequência, em B. Portanto, este conjunto de le-
tras RV, que eu chamo de radical, pode ser encontrado sob
as formas LV, LB, ou RB. Em alemão e em russo, que são
línguas indo-europeias, trabalho se diz, respectivamente,
ARBEIT e RABOT. Primeira constatação: as palavras que
designam trabalho em alemão e em russo utilizam o mes-
mo radical RB.
Em italiano, se diz LAVORO e, em latim, LABOR.
Portanto, nas duas línguas itálicas a palavra trabalho é
construída sobre o radical LB, do qual disse acima que era
o equivalente a RB. Nas palavras francesas L.ARBIN [pes-
soa responsável por pequenos trabalhos], CORVÉE [cor-
veia], TURBIN [gíria para trabalho: TRAMPO]... Encon-
tra-se sempre o radical RB, que é o vestígio indelével de
uma palavra antiga relativa ao trabalho. Voltemos à pa-
lavra trabalho, que decompomos em T.RAVAIL. O T ini-
cial é um prefixo indo-europeu que significa a exclusão.
Portanto, os que trabalham são excluídos do RAVAIL, do
LABOR no sentido nobre. O TRAVAIL em francês seria,
portanto, a atividade dos servos, oposta às outras ativida-
des mais nobres.
Falarei disso num próximo livro sobre a vida social
dos nossos longínquos ancestrais, identificada graças a
uma etimologia completamente renovada.

TRIVIAL [trivial]. A palavra TRIVIAL não tem nada


110 Yves Cortez

a ver com a palavra latina TRIVIUM (três vias), como o


sugere a etimologia oficial, que obedece à mesma lógica
de pesquisa arbitrária de uma palavra latina que contém a
mesma consonância. TRIVIAL se decompõe em T.RIVIAL
e significa, seguindo a demonstração anterior, o que não
tem um caráter de trabalho nobre.
A pequena explanação que acabo de fazer tinha por
objetivo fazê-lo entrever um mundo novo, e mostrar-lhe
que existe uma verdadeira alternativa à etimologia oficial.
É evidente que é muito mais fácil ir à procura da primei-
ra palavra latina que tem a mesma sonoridade, mas uma
abordagem racional é infinitamente mais produtiva.

Procedimento n° 2: Consiste, pela etimologia ofi-


cial, em tomar a tradução latina da palavra francesa ou
uma palavra de sentido afim e decretar que houve ou uma
transformação fonética ou uma grande alteração da pala-
vra latina. Vejamos alguns exemplos dentre milhares de outros.
ALLER [ir]: Esta palavra viria do latim AMBULARE.
Deixamos o leitor imaginar quais transformações, quais alte-
rações e quais deformações teriam sido necessárias para passar
de uma à outra. E se uma tal evolução tivesse realmente ocor-
rido, poderíamos encontrar formas intermediárias, mas não
há nenhuma.

CONVOITER [cobiçar]: Esta palavra viria do latim po-


pular CUPIDIETARE, por sua vez originada da palavra CUPI-
DITAS [cupidez]. Essa etimologia resulta de um parentesco
aparente, que estaria entre CONVOITISE [cobiça] e CUPIDITÉ
[cupidez], sem que a correspondência fonética seja demonstrada.

CONVOITER é uma palavra composta de CON-VOI-


TER, onde VOITER é baseado no radical VD/VT (ver): em latim
VIDERE (ver), em russo VIDET’ (ver), em sueco VETA (saber),
em sânscrito VEDA (conhecimento)... O prefixo CON tem o sen-
tido de reforço. CONVOITER é olhar com insistência.
O Francês não vem do Latim! 111

COUSIN [primo]: viria do latim CONSOBRINUS. O


parentesco evidente da palavra COUSIN com o italiano CUGI-
NO [primo] me faz pensar que esta palavra é uma deformação do
italiano, não tendo este vindo do latim, mas sim constituindo-se
uma palavra composta CO-GENE (da mesma “gente”; da mes-
ma família).

DURER [durar]: O Petit Robert propõe a etimologia se-


guinte “fim do séc. 11, latim, DURARE (endurecer, resistir e
durar)”. Essa etimologia é característica de uma parte importan-
te da etimologia oficial, que despreza a semântica, ou seja, o sen-
tido das palavras. Ela subentende que o que é duro pode durar.
Mas, na realidade, a dureza não tem nada a ver com a duração.
Por outro lado, os etimologistas poderiam ter sido alerta-
dos pela aproximação com a palavra alemã DAUERN (durar)
ou o latim DIURNUS (que dura um dia). A palavra DURER
contém o radical indo-europeu UR/OR/ER, que na maioria das
línguas indo-europeias deu a noção de tempo: em francês HEURE
[hora], JOUR [dia], ALORS [então], HIER [ontem], ÈRE [era],
em grego moderno MERA (dia), KAIROS (tempo), etc.

EAU [água]: Viria do latim AQUA. A palavra francesa e


a palavra latina não apresentam um único som em comum! Que-
riam nos fazer acreditar que houve uma transformação total da
palavra AQUA apenas para a língua francesa! Enquanto que, em
italiano e em espanhol, diz-se respectivamente, AQUA e AGUA
e que, em ocitano e em catalão, a evolução fonética resultou em
AÏGO, que se mantém bem próximo do italiano.
A palavra EAU é uma abreviação de uma palavra indo-eu-
ropeia OD ou OT, cujos vestígios encontramos em inglês WATER,
em russo VODA e em francês GOUTTE [gota], OUTRE [além
de], MOITE [umedecido]...

MANGER [comer]: Essa palavra viria do latim MAN-


DUCARE (mastigar). Sim. Há uma certa semelhança entre a
palavra francesa e o latim. Mas, na realidade, esta palavra deriva
mais certamente de um radical indo-europeu MS:
112 Yves Cortez

Russo MIASO (carne)


Hindi MANS (carne)
Inglês MOUTH (boca), MEAT (carne)
Latim MENSA (mesa de refeições)
Grego MEZE (petisco)
Alemão MAGEN (estômago)

Em francês, esse radical MS deu origem às pa-


lavras METS [pratos de um menu], MACHER
[mascar], MASTIQUER [mastigar], MESS [can-
tina de um regimento], MUSEAU [focinho]...
E, coisa banal, MANGER [comer] se diz MANGIARE em
italiano!

Procedimento n° 3: Quando, por infelicidade, a eti-


mologia oficial não encontra palavra alguma do latim,
tem a genial ideia de inventá-la! E se tira do chapéu uma
palavra batizada de “baixo latim”. Os etimologistas fazem
muitos truques com o chapéu!

BOUGER [mexer-se]: A etimologia oficial atrela esta pala-


vra ao latim °BULICARE (palavra reconstituída), construída a
partir da palavra latina BULLIRE (ferver). O movimento suge-
rido em BOUGER viria, então de efervescência!
Na realidade, a palavra BOUGER está baseada no radical
BG que, na sua forma mais corrente, VG, é um radical indo-
-europeu, que é encontrado em francês em VOGUER [vogar / va-
guear], DI-VAGUER [di-vagar], VAGABOND [vagabundo]...
Em latim, VAGUS (errante), VAGOR (errar), em alemão WEG
(caminho), WAGEN (carro)... O verbo BAGUENAUDER [fla-
nar] é construído a partir do mesmo radical.

CHANGER [mudar]: Esta palavra viria de uma “palavra


latina” da época baixa CAMBIRE, esta palavra originada, por
sua vez, do gaulês” (sic!).
Curioso que esta palavra latina CAMBIRE não seja
O Francês não vem do Latim! 113

encontrada em nenhum texto clássico. De onde vem, então,


a ideia dos etimologistas de imaginar uma origem gaulesa?
Em que eles se baseiam para tal afirmação? Teriam eles à
disposição textos gauleses? Ou eles teriam conseguido re-
construir a língua gaulesa?
Vejo em CHANGER o prefixo CH e um verbo °AN-
GER (cf. francês AGIR [português: AGIR], latim AGERE),
da mesma forma que RANGER se decompõe em R.ANGER
(agir de novo) ou MEN.AGER (agir menos). O prefixo
CH/S remete à exclusão. Da mesma forma, CH.ANGER é
“agir fora de, agir diferentemente”.

RINCER [enxaguar]: A etimologia oficial atribui a


origem deste verbo a um suposto verbo latino, °RECEN-
TIARE (derivado de RECENS, no sentido de “fresco”, di-
zem eles). A palavra RECENTIARE não existe em latim!
Prefiro ver aqui uma palavra construída a partir do
radical RN: alemão RINNEN (escorrer), inglês RAIN (chu-
va), grego REON (líquido). A toponímia nos dá as palavras
RHIN (Reno), RHONE (Ródano) e GARONNE (Garona).
É evidente, não?

Procedimento n° 4: Enfim, quando todos os procedi-


mentos foram utilizados à exaustão, a etimologia oficial
faz uma encenação digna dos maiores charlatães. Quise-
ram nos fazer acreditar que algumas palavras francesas
surgem a partir da contração de expressões latinas.

AVIS [opinião]: O Petit Robert e o Larousse, reto-


mando o Bloch e Wartburg propõem: “ce m’est avis” [pa-
rece-me] do latim “MIHI EST VISUM”. Eis aqui uma pura
elucubração. É bem pouco provável que as palavras sejam
formadas de tal forma. Aproximo AVIS de AVEU [confis-
são], AVOUER [confeçar], onde o prefixo A ou AVE signi-
fica procedência, origem. Dar uma opinião significa sim-
plesmente “expressar-se”.
114 Yves Cortez

FORÊT [floresta]: Esta palavra viria de FORESTIS


(a qual pertenceria ao baixo latim) através de uma locução
recomposta °SILVA FORESTIS “floresta fora do cercado”.
De acordo com o procedimento habitual, os etimologistas
oficiais acharam por bem atribuir à palavra FORÊT uma
consonância com a palavra latina FORIS, que significa
“fora”. Portanto, eles inventaram uma expressão latina
“SILVA FORESTIS”, na qual SILVA é a palavra latina para
designar a floresta e FORESTIS é uma palavra inventada
para o bem da causa (primeiro passe de mágica) e que
significaria exterior. Assim, nossa floresta seria uma SIL-
VA (!) externa. Você está entendendo? E a palavra SILVA
teria desaparecido (segundo passe de mágica) para deixar
apenas a palavra FORESTIS, que teria dado origem à pa-
lavra FORÊT.
Eis, caro leitor, o tipo de “demonstração” que nos
fazem engolir, baseada em expressões que nunca encon-
tramos, a partir de palavras que não existem e de desapa-
recimentos oportunos.
Para mim, a FORÊT vem mais seguramente da pa-
lavra indo-europeia FOR (fogo). Cf. o francês FOUR [for-
no], FORGE [forja], EN.FER [inferno], o grego PHAROS, o
alemão FEUER... A FORÊT é, antes de mais nada, o lugar
onde se encontra lenha para o fogo.

MÊME [mesmo]: Os etimologistas ficam muito sem


jeito diante desta palavra simples. Assim, eles vão dar um
golpe de mestre e utilizar toda a panóplia de truques pos-
síveis. MÊME viria do latim popular METIPSIMUS, super-
lativo da palavra latina popular METIPSE, que viria do la-
tim clássico “EGOMET IPSE”, que quer dizer “eu mesmo”,
“em pessoa”.
O latim popular, como você sabe, é o latim que
todo mundo procura, mas que ninguém jamais encon-
trou. A palavra METIPSE é uma invenção baseada na
O Francês não vem do Latim! 115

ideia de que, na expressão latina EGOMET IPSE, a uti-


lização desta palavra teria acarretado o abandono da
primeira parte EGO da palavra EGOMET. Mas, como
este termo está ainda muito distante da palavra francesa
MÊME, inventou-se para ela um superlativo para intro-
duzir um M adicional. Os etimologistas oficiais deixam
ao leitor o cuidado de deduzir que a palavra METIPSI-
MUS transformou-se em MÊME.
Conclui-se, portanto, que a imaginação dos etimolo-
gistas é excessiva.
Espero que estes exemplos os terão convencido que
a etimologia oficial é totalmente fantasiosa e também es-
pero ter-lhes aberto outras perspectivas mais frutíferas e
mais racionais.
O que alguns etimologistas mostram como prova
que o francês vem mesmo do latim baseia-se, de fato, em
seus postulados. Não, ao contrário, a etimologia bem en-
tendida mostra que o francês não vem do latim. Esta foi a
nossa quinta prova.

Sexta Prova
As línguas românicas são quase idênticas

A estranha semelhança das línguas românicas

Nos capítulos sobre vocabulário e gramática, mostrei


o quanto as línguas românicas eram próximas umas das
outras, independentemente de suas posições geográficas
(da Romênia a Portugal) e independentemente também
das suas datas de ruptura com o Império Romano. Lem-
brem-se de todas as palavras da vida cotidiana quase idên-
ticas em todas as línguas românicas e totalmente diferentes
das palavras latinas:
116 Yves Cortez

• VOLCAN [vulcão], BAIE [baía], PLAGE [praia],


ROCHER [rochedo], LAVE [lava]...
• PANTALON [calças], CHEMISE [camisa], CHA-
PEAU [chapéu], TAILLEUR [tailleur]...
• CHAT [gato], CHEVAL [cavalo], JUMENT [égua],
RAT [rato], SANGLIER [javali]...
• DEMAIN [amanhã], SOIR [noite], JAMAIS [jamais],
SEMAINE [semana], JOURNÉE [dia/jornada]...
• COMTE [conde], VASSALE [vassalo], ASSEMBLÉE
[assembleia], RACE [raça]...
• PAROLE [fala], FOLIE [loucura], ORGUEIL [orgu-
lho], FORCE [força], CHOSE [coisa]...

Lembre-se de todas as formas gramaticais idênticas


em todas as línguas românicas e diferentes do latim: a au-
sência das declinações, a ausência do gênero neutro, o pas-
sado composto, o voseamento.
Para ilustrar ainda mais a grande semelhança das lín-
guas românicas, escolhi quatro frases latinas ao acaso, e as
traduzi em quatro línguas românicas.
Julgue por si mesmo como é grande a semelhança
das frases românicas e o quanto elas divergem do latim.
Você observará que a ordem das palavras de uma frase
(o que os gramáticos chamam de sintaxe) é sempre a mesma
em todas as línguas românicas, e sempre diferente da do latim.
Comecemos por uma frase bem simples:
Latim Musicane delectaris?

Francês Tu aimes la musique?

Espanhol Te gusta la musica?

Português Tu gostas de música?

Italiano Ti piace la musica?

Romeno Iti place muzica?


O Francês não vem do Latim! 117

Somente no latim a forma interrogativa “ne” aparece


como sufixo. Não há vestígio algum desta forma nas lín-
guas românicas. Também apenas em latim a forma passiva
utiliza o “r” final (DELECTO atrair, DELECTOR ser atraí-
do). Da mesma forma, não há nenhum vestígio disso nas
línguas românicas. Todas as línguas românicas apresen-
tam artigos, mas não o latim. Para estas quatro frases ro-
mânicas, observamos uma mesma sintaxe e mesmo frases
praticamente idênticas.
Latim Quor eunt equi quatuor?

Francês Où vont les quatre chevaux?

Espanhol Adonde van los cuatro cavallos?

Português Aonde vão os quatro cavalos?

Italiano Dove vanno i quattro cavalli?

Romeno Unde merg cei patru cai?

Neste exemplo, vê-se claramente sintaxes totalmente


diferentes: o latim (cavalos quatro) corresponde a (os qua-
tro cavalos) em todas as línguas românicas.
A palavra latina EQUUS (cavalo) não existe em ne-
nhuma língua românica na qual se utiliza a palavra CA-
VAL, mais ou menos deformada.
Há ainda a palavra QUATRE [quatro], que parece
próxima do latim. Mas não é bem assim! Em latim a pala-
vra termina por “T-vogal-R”, enquanto que, em todas as
outras línguas românicas, ela termina por “T-R-vogal”.
Latim Falicius in mensa ponitur poculum

Francês Il est plus facile de poser le verre sur la table

Espanhol Es más facil poner el vaso sobre la mesa

Português É mais fácil pôr o copo sobre a mesa

Italiano È più facile di porre il bichiere sul la tavola

Romeno Este mai usor sa pui paharul pe masa


118 Yves Cortez

Nesta frase, temos várias formas gramaticais que são


próprias apenas ao latim: sintaxe, verbo depoente, compa-
rativo, ausência de artigo, conjugação. Por outro lado, ob-
servem o quanto as frases nas línguas românicas são pró-
ximas, tanto no plano vocabular quanto no plano sintático.
Além disso, no latim FALICIUS é o comparativo de
FACILIS, que quer dizer “mais fácil”. Não há uma única lín-
gua românica em que, para formar um comparativo, acres-
centa-se uma terminação ao adjetivo. As línguas românicas
utilizam os advérbios PLUS, MÁS, MAIS, PIÙ, MAI.
Latim Certus sum me alicujus rei oblitum esse

Francês Je suis sûr d’ avoir oublié quelque chose

Espanhol Estoy seguro de haber olvidado algo

Português Estou certo de ter esquecido algo

Italiano Sono sicuro di avere dimenticato qualcosa

Romeno Sunt sigur ca am uitat ceva

Neste último exemplo, encontramos a utilização, no


latim, de um verbo depoente: forma gramatical que não
existe nas línguas românicas. Também observamos que o
verbo latino “ser” (esse) é traduzido por “ter”.
A tradução literal desta frase é a seguinte: “seguro
estou eu algo esquecido ser”. Este exemplo ilustra, mais
uma vez, que a ordem das palavras nas frases latinas não
tem correspondência nas línguas românicas, e que a or-
dem das palavras das frases das línguas românicas é sem-
pre a mesma.

Uma grande semelhança, apesar das diversas influências

A grande semelhança das línguas românicas só pode


ser explicada por uma evolução idêntica do latim, em to-
das as regiões do império romano, pois cada uma das zo-
O Francês não vem do Latim! 119

nas geográficas românicas, a Dalmácia, a Península Ibérica,


a Gália, etc., tem sua história linguística própria. A cada
vez, a nova língua trazida pelos romanos era adotada pelos
falantes de várias línguas, posteriormente transformadas
sob a pressão dos sucessivos invasores.
No que diz respeito à Gália, por exemplo, podemos
imaginar que os gauleses misturaram a língua dos roma-
nos para originar o Galo-Romano, submetido mais tarde à
influência dos francos que falavam o frâncico.
Na Romênia, encontramos o mesmo cenário: os dál-
matas adotaram o falar dos romanos para criar um daco-ro-
meno, que, por sua vez, foi submetido à influência de povos
germânicos e eslavos durante o período das invasões.
As histórias das línguas francesa e romena são to-
talmente diferentes. Se tanto o francês quanto o rome-
no fossem originados do latim, deveríamos, então, en-
contrar transformações diferentes a partir do latim. Por
exemplo, uma língua poderia ter conservado o gênero
neutro, a forma passiva, uma parte das declinações...
Mas o que constatamos, nos capítulos dedicados ao
vocabulário e à gramática, é que o francês e o romeno
teriam “abandonado” as mesmas palavras latinas e as
mesmas formas gramaticais, e teriam “adotado” as mes-
mas palavras não latinas e as mesmas formas gramati-
cais igualmente não latinas.
A única explicação plausível que se pode dar para
a semelhança das línguas, apesar das diversas influências
externas, é que os romanos levaram para essas regiões uma
língua românica que não o latim. E esta língua românica só
pode ser o “italiano antigo”.
Da mesma forma, a ideia geralmente aceita segundo
a qual o francês é diferente do latim devido a sucessivas
120 Yves Cortez

influências linguísticas (o gaulês e o frâncico) não resiste


a esta linha de pensamento. Se o francês e o romeno são
diferentes do latim, não significa dizer que isso acontece
por causa da influência dos gauleses e dos francos, nem
da influência dos dálmatas e dos invasores germânicos e
eslavos. Pois não podemos sequer imaginar que tipo de
milagre faria com que povos tão diferentes provocassem
linguisticamente as mesmas mudanças.

Sétima Prova
O francês antigo é um francês “italianizado”

Se o francês viesse do latim devido a uma evolução


através dos séculos, o francês do séc. 11 deveria ser inter-
mediário entre o latim e o francês do séc. 21; no entanto,
não é o que acontece. O francês antigo difere muito pouco
do francês atual.
Se fizermos o inventário de todas as palavras dife-
rentes (próprias ao francês antigo) e se as compararmos
com o italiano e o latim, observamos, de maneira geral,
que as palavras do francês antigo não se assemelham às
do latim, e que, praticamente, todas são intermediárias
entre o francês e o italiano.
O francês antigo é intermediário entre o francês e
o italiano
A tabela seguinte apresenta a tradução, em francês
moderno, em italiano, [em português] e em latim, das pala-
vras do francês antigo: Eneias, de Jean-Jacques de Salverda
de Gravre e O Conto do Graal, de Chrétien de Troyes, escri-
tos por volta de 1200. Organizei a coluna das palavras em
francês antigo entre o francês moderno e o italiano, para
mostrar a continuidade fonética.
O Francês não vem do Latim! 121

Francês
Francês antigo Italiano Português Latim
moderno

AIDE AIUDE AIUTO AJUDA AUXILIUM

BAIE BAILLE BAIA BAÍA SINUS

CE / CET CIST QUESTO ESSE / ESTE HIC

COUP COP COLPO GOLPE ICTUS

COUR CORT CORTE CORTE AULA

ÉPÉE ESPEE SPADA ESPADA GLADIUS

ÉTRANGER ESTRANGIER STRANIERO ESTRANGEIRO EXTERNUS

FEMME FENNE DONNA MULHER UXOR

HIVER INVERN INVERNO INVERNO HIEME

JAMBE GAMBE GAMBA PERNA CRUS

JE JO IO EU EGO

LA SIENNE LA SOUE LA SUA A SUA SUUS / EJUS

não existe o artigo


LE LI IL O
definido

MAÎTRE MESTRE MAESTRO MESTRE DOMINUS

MANTO /
MANTEAU MANTEL MANTELLO PALLIUM
CASACO

MARTEAU MARTEL MARTELLO MARTELO MALLEUS

MASSUE MASSE MAZZA MAÇA CLAVA

MÊME MESME MEDESIMO MESMO (A) IDEM

NÉANT NIANT NIENTE NADA NIHIL

PEAU PEL PELLE PELE CUTIS

INDUERE
VÊTIR VESTIR VESTIRE VESTIR
VESTEM

O artigo LI parece intermediário entre o francês


moderno LE e o italiano IL (português O). O prono-
me JO é intermediário entre JE e IO. A palavra ESPEE
é intermediária entre ÉPÉE e SPADA (espada). Assim
acontece com cada uma das palavras desta tabela.
O francês antigo se aproxima foneticamente do italia-
no, mas não do latim.
122 Yves Cortez

Na tabela seguinte, apresento as palavras do fran-


cês antigo que são totalmente diferentes do francês mo-
derno. Elas se parecem com o italiano, mas em nada com
o latim.
Francês Francês antigo Italiano Português Latim
moderno

BEAU-FILS FILATRE FIGLIASTRO GENRO / ENTEADO GENER

JETER BOUTER BUTTARE JOGAR FORA JACIO

MAINTENANT ORES ORA AGORA NUNC

TROMPER ENGEIGNER INGANNARE ENGANAR DELUDERE

Após termos descoberto, na primeira tabela, que pa-


lavras do francês antigo eram intermediárias entre o ita-
liano e o francês moderno, sob o efeito de uma transfor-
mação fonética contínua, descobrimos, na tabela seguinte,
que existem casos em que palavras do francês antigo são
diferentes das do francês moderno, mas semelhantes à do
italiano e não das do latim.
Diante das semelhanças evidentes de inúmeras pa-
lavras francesas e italianas, os etimologistas recorrem fre-
quentemente ao Renascimento e à influência cultural ita-
liana desta época. Infelizmente, estamos no ano de 1200 e
os contatos entre o Reino Franco e a Itália são, no mínimo,
extremamente reduzidos.
A partir desta segunda tabela, temos a prova de
que a evolução das línguas às vezes conduz ao desapa-
recimento de certas palavras.

A falsa semelhança entre o francês antigo e o latim

Frequentemente, os comentaristas de textos anti-


gos se referem ao latim para explicar que uma palavra
do francês antigo não se parece com a do francês moder-
no. Assim, BEAUCOUP [muito] se dizia outrora MOULT.
O Francês não vem do Latim! 123

Esta palavra, comparada ao latim MULTUS, cuja seme-


lhança é grande, é considerada, assim, de origem latina.
No entanto, constato que as palavras do francês an-
tigo que se parecem com as do latim sempre se parecem
também com as do italiano. Não encontrei nenhum caso
em que uma palavra do francês antigo se assemelhe ao la-
tim sem que se assemelhe também ao italiano.
Lembro, caro leitor, que a semelhança entre as pala-
vras italianas e as palavras latinas pode ter duas causas: ou
as palavras têm a mesma origem itálica (na tabela seguinte,
é o caso de BUONO / BONUS, ANELLO / ANNULUS), ou
as palavras italianas foram emprestadas do latim (é o caso
das palavras REGNE [reino], NOBLE [nobre]).
Da mesma forma, essas palavras francesas antigas,
que se parecem com o latim, não nos foram trazidas dire-
tamente pelo latim, mas vêm do italiano do qual guardam
vestígios. Assim, a palavra BON [bom] se dizia BUEN. Ela
se parece mais com o “italiano antigo” BUONO que com o
latim BONUS; assim, a palavra NOTRE [nosso(a)], que se
dizia NOSTRE se parece mais com o italiano NOSTRO que
com o latim NOSTER.
Francês Francês antigo Italiano Português Latim

ANGE ANGELE ANGELO ANJO ANGELUS

ANNEAU ANNEL ANELLO ANEL ANNULUS

AUTRE ALTRE ALTRO OUTRO ALTER

BEAUCOUP MOULT MOLTO MUITO MULTUS

BON BUEN BUONO BOM BONUS

COLÈRE IRE IRA CÓLERA / IRA IRA

CUISINIER QUEU CUOCO COZINHEIRO COQUUS

DANS EN IN EM IN

FEMME MULIE MOGLIE MULHER MULIER


124 Yves Cortez

Francês Francês antigo Italiano Português Latim

NOBLE NOBIL NOBILE NOBRE NOBILIS

NOTRE NOSTRE NOSTRO NOSSO (A) NOSTER

ROYAUME REGNE REGNO REINO REGNUM

SE SI SI SE SI

TOMBER CADER CADERE CAIR / TOMBAR CADERE

Trata-se ou de preguiça intelectual, ou de má-fé,


pretender que o francês antigo nos aproxima do latim.
Não. O francês antigo não é intermediário entre o fran-
cês moderno e o latim, mas entre o francês moderno e o
“italiano antigo”.
De onde vem nossa cegueira?

Sete diferentes abordagens permitiram demonstrar


que o francês não vem do latim. Como podemos aceitar que
tal evidência não tenha saltado aos olhos dos linguistas?
Como é possível que se repita há gerações, contra toda a
lógica, que as línguas românicas vêm do latim? Por que
esta cegueira persiste?

A responsabilidade dos linguistas

Séculos se passaram, marcados pelo desmem-


bramento do império romano, pelas invasões “bárba-
ras”, pela instabilidade econômica, assim como pela
instauração de um poder religioso. Tantos séculos
durante os quais, passando da pax romana aos anos
de fome, de invasões e guerras civis, a produção lite-
rária quase se extinguiu.
A memória coletiva não havia esquecido que os ro-
manos tinham trazido, colonizando a Europa, sua organi-
zação, seu Direito, seu know-how e sua língua. Assim, era
naturalmente aceito que as línguas românicas, por sua vez,
126 Yves Cortez

viessem do latim. Não se sentia necessidade alguma de


uma análise científica a esse respeito. Mais tarde, este pre-
conceito se transmitiu de geração em geração.
A partir do séc. 19, os linguistas se tornaram pesa-
damente responsáveis pelo obscurantismo linguístico da
época. Alguns, como Louis Hjemslev, Jean Perrot e Jozsef
Herman expressaram suas dúvidas mas jamais contesta-
ram a tese oficial. Outros, como Antoine Meillet, Alfred
Ernout, e André Martinet teorizaram sobre a origem latina
do francês. Utilizando várias vertentes da linguística, como
a morfologia e a fonética, conferem um aspecto erudito
a seus escritos, mas frequentemente confundem declara-
ção peremptória e demonstração.
Esquisse d’une histoire de la langue latine1, o livro de
Antoine Meillet, mestre do pensamento da escola linguísti-
ca francesa, é o exemplo do lirismo universitário totalmen-
te anti-científico. Indico algumas de suas afirmações dentre
as mais características:
“O prestígio da civilização grega não foi, em parte
alguma, suficiente para impor o grego às populações do
interior das terras conquistadas ou ocupadas”. Como pode
o prestígio bastar para se impor uma língua?
“Com o tempo, a língua culta, sempre atacada, só
pode sucumbir, ao menos em sua expressão oral, tanto
assim que a língua escrita assume, cada vez mais, carac-
terísticas de língua morta e, por isso mesmo, age cada
vez menos no falar corrente.” Como se a língua escrita
pudesse ter qualquer influência sobre a língua falada.
“O valor absoluto do latim diminuía, seu valor rela-
tivo só crescia.” Isso se parece com uma afirmação vazia!
É uma verborragia que não diz nada.

1
Esboço de uma história da língua latina (tradução livre de Esquisse d´une histoire
de la langue latine).
O Francês não vem do Latim! 127

“As inovações comuns resultam da estrutura do la-


tim e do fato que um mecanismo delicado e complexo foi
manipulado por pessoas de todas as origens.” Eis a grande
explicação: pessoas de todas as origens, incapazes de falar
uma língua aristocrática, são as responsáveis pela transfor-
mação do latim. Mas como? Meillet diz “por um mecanis-
mo delicado e complexo”.
Temos a impressão de escutar os médicos da obra de
Molière. Meillet é incapaz de explicar o que quer que seja,
mesmo tendo ele recursos para tanto, segundo um de seus
hábitos favoritos, que consiste em produzir expressões
obscuras que não querem dizer nada. E ele continua!
“O depoente é, na língua, o tipo de complicação inú-
til”. Fora com o depoente! Ele é muito complicado para
a plebe. “Eliminando o neutro, o românico se livrou de
uma categoria que há tempos não significava mais nada.”
Eis como o gênero neutro teria desaparecido de todas as
línguas românicas! Ele não significa mais nada há muito
tempo! Os alemães e os russos, cujas línguas possuem os
três gêneros (masculino, feminino, neutro) e declinações
(seis em russo e quatro em alemão) seriam, portanto, me-
nos rústicos que os pobres descendentes dos romanos, que
não souberam conservar a riqueza da gramática latina!
“O latim vulgar se tornou algo que os homens mais
variados e menos cultos podiam manipular; uma ferra-
menta prática, adaptada a todas as mãos.” Você se lembra,
“as pessoas de todos os tipos”.
Não, com certeza nada disso é sério. Em lugar algum
se encontra uma demonstração mais rigorosa. Toda a obra
de Meillet é feita de fórmulas literárias, encantamentos e
declamações, às quais ele mistura pseudoanálises gramati-
cais de várias línguas. Em alguns casos, como no “osco” e
no “úmbrio”, ele se baseia em línguas cujo conhecimento é
incipiente, não fossem os raros textos encontrados. É uma
incrível bagunça, que cria uma ilusão muito prolixa para
128 Yves Cortez

possibilitar uma contra-análise rigorosa. Passamos de Lit-


tré, o literato puro, a Meillet, o multilíngue trapalhão, sem
progredir um único milímetro na área científica.
Antoine Meillet sabe, entretanto, que as línguas não
evoluem tão rapidamente. “A estrutura do árabe se asse-
melha ainda às das línguas semíticas de três mil anos atrás
[...]”. Como se poderia colocar em xeque que o latim seja
exceção, se ele ignora o argumento afirmando: “A língua
turca atual é o turco de mil anos atrás, a esquematização
rígida da língua a preservou de toda e qualquer mudan-
ça.” Se o turco não mudou em mil anos, a causa estaria
então na rigidez da língua. Eis mais uma lei da linguística!
Seria necessário então distinguir entre línguas rígidas, que
se conservam, e as outras, que não. Não querendo ofender
o Sr. Meillet, todas as línguas são rígidas.
“O valor durável da língua latina está relacionado a
um tipo de civilização rica e cuja influência foi decisiva.”
Ele tem resposta para tudo. Entretanto, Antoine Meillet
especifica que “o latim conservou uma considerável esta-
bilidade durante aproximadamente oitocentos anos”. Por-
tanto, o latim se caracterizaria por ser duplamente uma ex-
ceção. Não apenas, ao contrário das outras línguas, o latim
poderia ter evoluído bastante, mas ele não o teria feito de
forma contínua, uma vez que ele teria ficado estável duran-
te oito séculos. Que maravilha!
Eu me pergunto como seu jargão pode ter sido refe-
rência da linguística francesa durante tantos anos. Como
podemos ter aceito sua retórica inconsistente? Como nun-
ca se perceberam todas as incoerências de suas reflexões?
Há sem dúvida um respeito inquestionável em rela-
ção aos doutos professores e uma incapacidade de se ques-
tionar o dogma, própria da universidade francesa. Para se
O Francês não vem do Latim! 129

tornar professor, todo estudante deve praticar a religião


dos seus antecedentes, feita de veneração pelos antigos e
de adesão ao dogma. Sem isso, ele corre o risco de não re-
ceber a unção

O parentesco itálico e indo-europeu

É inadmissível que os linguistas se enganem com


frequência. Por outro lado, é compreensível que o mais
simples dos mortais possa ser ludibriado. Como vimos, o
latim e as línguas românicas são línguas itálicas, as quais
têm um tronco comum: o indo-europeu. Portanto, há ne-
cessariamente pontos em comum entre o latim e as línguas
românicas. Mas parentesco não quer dizer relação filial.
O latim e as línguas românicas apresentam pontos em co-
mum, não há dúvida, mas não se pode concluir que o latim
seja a língua-mãe das línguas românicas.
Antes de se esbaldar com as raras (sim, eu disse ra-
ras mesmo!) semelhanças que existem entre o latim e as
línguas românicas, há que se aprofundar um pouco a aná-
lise. As semelhanças que existem entre o latim e as línguas
românicas, quando é possível identificá-las, são as de duas
línguas que têm uma origem em comum. Lembro que o
alemão e o inglês são duas línguas que se parecem infini-
tamente mais que o latim e o francês e que, no entanto, são
apenas primas distantes da mesma família linguística.

A coexistência de dois povos

Latinos e italianos coabitaram durante sécu-


los e, mesmo se o latim não se impôs como língua vei-
cular, como língua de poder tornou-se a língua da
administração e do direito. Além disso, língua da
cultura dominante, o latim foi utilizado para forjar o voca-
bulário de todas as áreas científicas, artísticas e religiosas.
130 Yves Cortez

A presença massiva de palavras latinas no vocabulário das


línguas românicas, apesar de limitada a certos domínios,
dá a impressão de uma filiação ao observador não atento.
O fenômeno é muito corrente no mundo. Todos os
povos que cotejaram ou viveram sob a dominação de um
povo absorveram uma parte importante do vocabulário
deste. O basco conta com uma grande proporção de pala-
vras espanholas. O inglês conta com milhares de palavras
de origem francesa. O persa tomou emprestado muitas
palavras do árabe... E o latim, do grego! Podemos imagi-
nar facilmente que a coabitação de aproximadamente sete
séculos (da conquista da Itália pelos romanos à queda do
Império Romano) tenha deixado numerosos vestígios.
Ainda mais que, depois deste primeiro período, as línguas
românicas tiveram, durante séculos, um aporte contínuo
de palavras latinas pelo duplo canal: o da igreja e o das
universidades. São milhares de palavras latinas relativas
à religião, às artes e às ciências que, incorporadas às lín-
guas românicas, reforçam a impressão de um alto grau de
parentesco entre o latim e as línguas românicas. Somente
uma análise refinada do vocabulário de base permite des-
vendar uma língua desprovida dos aportes latinos.
É coerente pensar que o latim, ao contrário, pouco
tomou emprestado do “italiano antigo”, e isso devido a um
reflexo da aristocracia romana, que considerava a outra lín-
gua como a língua do povo, dos dominados, dos escravos.
Em Satiricon, um dos personagens de Petrônio diz: “Mas as
almas bem nascidas têm horror de palavras vazias [...]. É preciso
se resguardar de tudo o que eu chamaria de linguagem barata,
escolher termos fora do vocabulário da plebe...”.2
Constata-se a unilateralidade das trocas em todos
os países bilíngues, mas não multilíngues, como a Suíça

2
Petrônio, Satiricon, Les Belles Lettres, 1955.
O Francês não vem do Latim! 131

ou a Bélgica, mas bilíngues pelo fato da presença de uma


língua colonial. Quantas palavras passaram na Índia do
Hindi para o inglês? Quase nenhuma. Quantas palavras
passaram do árabe argelino para o francês falado na Argé-
lia? Resposta: um punhado. Quantas palavras da língua
uólofe3 passaram para o francês? Apenas um punhado.
(O uólofe é a língua majoritária do Senegal. Descobri que
BOU.GNOULE [insulto racista árabe] quer dizer “homem
negro” em uólofe. Quer dizer que esta gíria viria do uó-
lofe?). Inversamente, as línguas dominadas tomam mas-
sivamente emprestado palavras das línguas coloniais.
Em árabe dialetal marroquino, por exemplo, carro se diz
TOMOBIL (e não SAYARA), a semana se diz SIMINA (e
não OUSBOUA)...

A ausência de textos em “italiano antigo”

É verdade que não há vestígios do “italiano antigo”


escrito. Isso significaria que o “italiano antigo” não teria
existido? Não há no mundo inteiro hoje dezenas de casos
semelhantes nos quais se utiliza uma língua para falar e
outra para escrever? Já mencionei o caso do Magrebe e
do Quebec. Lembro, para reforçar, que a língua majorita-
riamente falada nos países do Magrebe é o árabe diale-
tal; tudo o que é escrito em árabe, o é em árabe clássico.
Em muitos séculos ou milênios, os historiadores ou arqueó-
logos não encontrarão o menor vestígio de um documento
escrito em árabe dialetal e como neste caso também a con-
fusão é total, no que diz respeito à denominação das duas
línguas árabes, ambas designadas de forma simplificada,
através do nome “língua árabe” eles concluirão, provavel-
mente, que a língua falada no Magrebe era o árabe clássico.
3
N.T. Uólofe, em francês Wolof, é uma língua falada na África Ocidental, no
Senegal, em Gâmbia e na Mauritânia, sendo a língua nativa do grupo étnico “Uó-
lofe” (cf. Wikipédia).
132 Yves Cortez

O exemplo do Quebec é igualmente interessante.


Os franceses que chegaram no Quebec falavam duas lín-
guas. Uma língua falada, o francês das regiões do oeste da
França, do Poitou à Normandia, que deu origem a uma
língua franco-quebequense, e uma língua escrita, o francês
acadêmico, único a ser utilizado na forma escrita. É por
esta razão que na literatura quebequense antiga ou con-
temporânea não se encontra uma única palavra, uma única
expressão da língua falada, uma vez que, por convenção,
tudo o que é escrito é feito em língua francesa clássica.
Os pesquisadores não poderão jamais reconstruir a língua
falada no Quebec a partir dos textos à disposição.
Nas Antilhas Francesas, foram necessários quatro sé-
culos para que o crioulo fosse reconhecido como língua e
publicado pela primeira vez. Mas o francês continua sendo
quase exclusivamente a língua escrita.
Na China, os ideogramas permitem a intercom-
preensão através da forma escrita de norte a sul, mas nas
províncias chinesas são faladas línguas diferentes. Daqui
há alguns séculos ou milênios, baseando-se apenas nos tex-
tos escritos, será impossível descobrir a situação linguística
da China do séc. 21.
A situação é idêntica na África Negra, onde, à exce-
ção do suaíli, as línguas utilizadas na escrita são os idiomas
que foram trazidos pelos colonizadores europeus: inglês,
francês e português, enquanto que a África contabiliza vá-
rias centenas de línguas.
Nossa tarefa teria sido simplificada se tivéssemos à
nossa disposição textos escritos em “italiano antigo”, ou
descrições precisas da realidade linguística da Itália roma-
na. Mas qual escritor indiano anglófono se preocuparia em
detalhar em quais línguas falavam os heróis de seus ro-
mances? Aparentemente, todos falam inglês. Que escritor
africano francófono indica a língua utilizada por seus per-
sonagens de ficção? Aparentemente, todos falam francês.
O Francês não vem do Latim! 133

A presença da escrita não impede um mínimo de


circunspecção. A escrita raramente reflete a língua falada.
Imaginem que, dentro de vinte séculos, sejam extraídas
das ruínas das nossas bibliotecas, obras de Rabelais, Raci-
ne, Victor Hugo, Baudelaire e Céline. Em quais conjuntu-
ras se aprofundariam as análises para conseguir diferen-
ciar a língua falada na França do séc. 16 daquela do séc. 20?

O enigma “osco”

A descoberta em todas as regiões que vão da Úmbria


à Lucânia (ou seja, a grosso modo, em um raio de duzen-
tos quilômetros ao redor de Roma) de inscrições em monu-
mentos e placas de bronze onde é utilizada praticamente a
mesma língua, batizada de “osco”, que não tem nada em
comum nem com o latim nem com o “italiano antigo”, faz
supor a existência de uma língua antiga, falada no início
da história de Roma, por todos os povos da metade sul
da Itália.
Sobre esta língua não sabemos quase nada, uma
vez que os escritos que nos chegaram são muito frag-
mentados e não nos possibilitam definir com precisão
sua gramática e seu vocabulário. Dos poucos vestígios
à nossa disposição, podemos simplesmente concluir a
utilização por escrito de uma língua singular. Qual foi a
extensão dessa língua? Em que regiões precisamente ela
foi falada? A partir de que momento ela se tornou uma
língua morta? Não sabemos nada a este respeito. Faz-se,
às vezes, alusão a essa língua na literatura latina.4 Mas
aqueles que falam sobre essa língua, eles a ouviram, ou
relatam testemunhos mais antigos a seu respeito?
Comparada ao “italiano antigo”, essa língua tem a
vantagem de ter deixado vestígios escritos, e isso acrescen-
4
Tito Lívio, História de Roma. Livro 10: “um pouco antes do dia, ele envia ho-
mens que conhecem a língua osca.” [tradução sugerida de “Un peu avant le jour,
il envoie des hommes qui savent la langue osque”]
134 Yves Cortez

ta um pouco mais de confusão ao assunto, fazendo com


que certos pesquisadores pensem que esta língua era mui-
to difundida, e mesmo compreendida pelo povo de Roma
na época de César.5
Minha demonstração sobre a origem italiana das lín-
guas românicas faz do italiano a língua dos romanos. Esta
língua fez submergir todas as línguas da Península Itálica,
tanto o latim quanto o osco, o úmbrio e o etrusco. O fato de
que se descobriu inscrições em língua osca pode simples-
mente indicar a importância cultural e mesmo religiosa da
língua osca antes do advento do latim como língua de cul-
tura, mas não lhe confere o status de língua veicular do Sul
da Itália antes da expansão romana.

5
Cf. Meus comentários a respeito da posição de Pierre de Klossowski no capítulo
“Primeira Prova”.
As extraordinárias e
surpreendentes descobertas
subsequentes

Gostaria de lembrar minhas três descobertas


fundamentais:
1. As línguas românicas não vêm do latim.
2. O latim deixou de ser uma língua viva já a partir do séc.
1º d.C. e, nessa época, os romanos já falavam ita-
liano.
3. Toda etimologia oficial da língua francesa é falsa.
Isso tudo tem consequências em cadeia em diferentes
áreas: pesquisa linguística, etimologia, história, ensino...

As bases da pesquisa linguística são instáveis

É preciso inicialmente questionar os dois axiomas


funda-mentais da escola francesa de linguística, que re-
sumo da seguinte forma: primeiramente, «longe da es-
crita não há verdade» e, em segundo lugar, «a gramática
136 Yves Cortez

comparada deve primar sobre o estudo comparado dos


vocabulários».
Os linguistas dão voltas sem sair do lugar há déca-
das, como moscas em torno de uma lâmpada. Eles não en-
tenderam que os escritos não refletem necessariamente a
língua falada, que pode haver uma distorção enorme entre
a língua escrita e a língua falada, que uma língua pode es-
tar morta há séculos e continuar sob a forma escrita. Diante
de um texto antigo encontrado em um lugar qualquer e da-
tado por métodos científicos ou por uma abordagem histó-
rica, não se pode jamais afirmar peremptoriamente que ele
foi escrito na língua falada pelo povo que vivia neste lugar.
Pode-se dizer, no máximo, que o texto encontrado prova-
velmente ilustra a língua escrita que era utilizada nesse lo-
cal e nessa data.
Não se pode acreditar com certeza nas indicações
fornecidas pelos escritores e historiadores antigos. Deve-se
pensar na imprecisão dos termos, que às vezes descrevem
línguas muito diferentes. Lembro que a palavra “alemão”
pode designar igualmente alemânico ou o alto-alemão, que
a palavra “árabe” pode designar o árabe dialetal ou o árabe
clássico, que a palavra “chinês” pode designar línguas tão
diferentes quanto o mandarim ou o cantonês.
O segundo pilar da linguística francesa é a “gramá-
tica comparada”. A descoberta, há mais de um século, de
grandes semelhanças entre as gramáticas das línguas euro-
peias (ou seja, para ser claro, sobretudo de semelhanças en-
tre as conjugações e as declinações) privilegiou a gramática
comparada e negligenciou a comparação dos vocabulários.
Uma tal escolha representa uma amputação do domínio
da pesquisa que priva os pesquisadores de verdadeiros te-
souros. Mostrei todo o interesse que havia em comparar
os vocabulários para identificar as relações de parentes-
co, conquanto se referisse aos vocabulários de base, evi-
tando, assim, todo risco de confusão com os empréstimos
O Francês não vem do Latim! 137

de outras línguas. É preciso decretar, com toda a força, o


interesse pelo estudo do “vocabulário comparado”.

O baixo-latim é uma ficção

É muito surpreendente que sobre o conceito banal de


“baixo-latim” e de “latim vulgar”, utilizado para explicar
a suposta transição do latim clássico para as línguas româ-
nicas, nossos pesquisadores sejam frequentemente muito
discretos. É preciso confessar que eles têm muita dificulda-
de em precisar suas ideias e preferem manter uma impre-
cisão total.
Jozsef Herman, um dos latinistas mais eruditos do
fim do séc. 20, expunha suas dúvidas durante o Congres-
so Internacional de Linguística e Filologia Românicas, em
Aix-en-Provence, em 1985: “é preciso lembrar as intermi-
náveis discussões às quais se entregam eminentes linguis-
tas a respeito da denominação que convém dar ao con-
junto dos traços linguísticos que anunciam e marcam a
falta de inflexão da estrutura latina com relação às futuras
estruturas românicas [...]. Para alguns autores, sobretudo
nos manuais, é dito que o latim, de forma geral, unitário,
começa a apresentar diferenças territoriais por volta do
séc. 4º ou 5º, sabendo que tudo isso se baseia mais em um
compromisso de bom senso que em fatos de ordem ver-
dadeiramente linguística.”
Essa declaração é uma confissão de impotência.
O grande especialista que é Jozsef Herman refere-se aos
manuais, e não aos estudos científicos, ou seja, a tradição
escolar e acadêmica, que reproduz, há séculos, a ideia de
que as línguas românicas vêm do latim. Essa tradição ad-
quiriu força de lei. Entretanto, ele precisa que isso não se
baseia em “fatos de ordem verdadeiramente linguística”,
mas “mais em um compromisso de bom senso”. Essa afir-
mação desorientadora revela que a escolha utilizada pelos
138 Yves Cortez

linguistas é justamente de silenciar a realidade linguística


(os fatos de ordem linguística) para se transformar em um
dogma. Para isso, eles não preconizam a fé na ciência, mas
no “bom senso”, digamos, na “história da carochinha”.
A incoerência da tese oficial é tão grande que deixa espaço
para todo e qualquer tipo de prova, uma mais mal formu-
lada que a outra, de onde vem a necessidade de um acordo
para colocar um fim em um debate sem saída.
Por não poder encontrar em qualquer tipo de “ma-
nual” uma definição precisa de baixo-latim, tentarei re-
sumir o que significa baixo-latim para os criadores deste
conceito: o baixo-latim (ou latim vulgar) seria a língua
falada pelo povo romano. Esta língua teria sua origem
no latim. Ela seria diferente do latim a ponto de se tor-
nar um estágio intermediário entre o latim clássico e as
línguas românicas.
Na realidade, o conceito de baixo-latim é uma fic-
ção pura e simples, inventada para mascarar a incom-
preensão total da origem das línguas românicas. Ele con-
forta a ideia de que o povo poderia deformar a língua, a
bela língua, a língua escrita, a língua da aristocracia.
Duas opiniões divergentes se afrontam. De um lado,
Antoine Meillet, e muitos outros homens de letras de to-
das as épocas apoiam-se em uma pretensa ruptura entre o
latim clássico e o baixo-latim para afirmar que língua es-
crita e língua falada podem ser muito diferentes. Por outro
lado, linguistas e escritores que fazem do oral o princípio
essencial da língua e da escrita um acessório que se adapta
ao oral, e não o contrário. A análise científica dá razão ao
segundo grupo.
Antoine Meillet, com o seu tom professoral, que ele
tanto estima, afirma: “de certa forma, somente o vocabu-
lário da aristocracia se manteve, não havendo mais quase
nenhuma palavra popular.”1 Ele já tinha adiantado a ideia
1 Introduction à l’étude comparative des langues indo-européennes, Hachette, 1937.
O Francês não vem do Latim! 139

de que o povo não era confiável no prefácio do documentá-


rio etimológico de Bloch e Wartburg: “a utilização popular
joga com as palavras.”2 Sempre o povo! Foi por causa dele
que as línguas românicas não se parecem com o latim, por-
que ele [o povo] joga com as palavras, não utilizando as
palavras da aristocracia. Meillet e consortes riem bastante
da lógica científica, eles se contentam em perorar para que
se continue a acreditar no dogma.
O pensamento de Antoine Meillet é o oposto da ou-
tra corrente de pensamento. Ferdinand de Saussure expu-
nha no seu Curso de Linguística, em 1915: “a língua tem,
pois, uma tradição oral independente da escrita e bem di-
versamente fixa; todavia, o prestígio da forma escrita nos
impede de vê-lo.” O linguista Claude Hagège retoma esta
afirmação: “a invenção da escrita [...] não ameaçou o impé-
rio do oral.”3 Jean-Jacques Rousseau, um grande filósofo
francês do séc. 18, já escrevia em seu Ensaio sobre as origens
das línguas: “as línguas são feitas para serem faladas, a es-
crita serve tão somente de complemento à fala.”
A falta de compreensão por parte de Antoine Meil-
let entre língua escrita e língua falada vem da sua teimo-
sia em ver no latim a língua-mãe das línguas românicas.
As línguas românicas não vêm do latim, e a ideia de “bai-
xo-latim” foi concebida de forma artificial por aqueles que
querem criar um vínculo entre elas.
É preciso parar de falar de “transformação do la-
tim”. O latim não teve tempo para se transformar, uma
vez que ele morreu há mais de vinte séculos. Da mesma
forma, não se pode falar de desaparecimento de uma par-
te do vocabulário latino ou de uma parte da gramática
latina. Nada desapareceu. O latim continuou intacto.
O latim não foi transformado nem pelo povo, nem pelo
desgaste do tempo.
2 PUF, 1932.
3 C. Hagège, L’homme de paroles, Fayard, 1985.
140 Yves Cortez

A ortografia do francês é artificialmente latinizada

A ortografia do francês é curiosa. Ao invés de se


aproximar o máximo possível dos sons e reproduzir uma
ortografia depurada como acontece com todas as línguas
românicas, os eruditos franceses se enredaram num siste-
ma de rara complexidade.

• Para o som “O”, escreve-se em francês: O, AU, EAU


• Para o som “E”, escreve-se em francês: E, EU, OEU
• Para o som “AN”, escreve-se em francês: AN, AM,
EM, EN
• Para o som “IN”, escreve-se em francês: IN, IM,
AIN, EIN...
É dito que a ortografia de uma palavra nos indica a
sua origem. Isso seria verdade se os primeiros redatores
em língua francesa não tivessem tido a triste ideia de
latinizar deliberadamente a ortografia.
Tomemos como primeiro exemplo a conjugação dos
verbos do primeiro grupo. Consultem a tabela comparativa
que apresentei no capítulo sobre a gramática. O que vocês
observam? Na primeira pessoa do plural do presente do
indicativo aparece um «s», que não é pronunciado. Escre-
ve-se NOUS AIMONS [nós amamos / gostamos], mas se
pronuncia apenas NOUS AIMON. O “s” que foi acrescen-
tado tem apenas como justificativa estabelecer um paralelo
fictício com o latim. Na terceira pessoa do plural aparece
um “t” final, que também não se pronuncia: escreve-se ILS
AIMENT [eles amam / gostam de] e deveria-se escrever
ILS AIMEN, evidenciando a terminação em “EN”, mais
próximo das terminações românicas: italiano AMANO
[amam], espanhol AMAN [amam]. Este “t” final é apenas
uma latinização artificial.
O Francês não vem do Latim! 141

Além disso, nos verbos do segundo grupo pode-


mos encontrar um “t” final na terceira pessoa do singu-
lar. Escrevemos IL FINIT [ele termina] e se pronuncia
IL FINI. Em nenhuma das línguas românicas aparece
essa letra na terceira pessoa do singular (ver tabelas do
capítulo sobre a gramática).
A tabela a seguir recapitula, para a conjugação do
verbo FINIR [terminar / acabar] do presente do indicati-
vo, os acréscimos ortográficos que dão conta da “latiniza-
ção” excessiva:

IL FINIT [ele termina]


NOUS FINISSONS [nós terminamos]
ILS FINISSENT [eles terminam]
Proponho agora que identifiquemos a latinização ar-
tificial escondida na ortografia do francês.

COMPTER [contar]: Escuta-se CONTER e, no entan-


to, o “n” se tornou um “m”, e uma letra “p” foi intercala-
da. Por conta de qual milagre? Simplesmente porque os
primeiros redatores em francês, imersos no latim, estavam
convencidos de que a palavra vinha do latim COMPUTA-
RE, enquanto que ela vem do italiano CONTARE.
Em todas as línguas românicas se diz da mesma
forma: espanhol CONTAR, português CONTAR, romeno
CONTA. Os “tradicionalistas” nos dirão que estas palavras
românicas são todas uma contração do latim COMPUTA-
RE e os mais desonestos lhes dirão que há vestígios dela na
ortografia francesa!
Na realidade, a palavra latina COM-PUTARE quer
dizer “examinar junto”, enquanto que a palavra do “italia-
no antigo” CONTAR é uma das numerosas derivações do
radical indo-europeu CT que originou, assim: CITER [ci-
tar], CONTER [conter], CHANTER (CANTARE) [cantar],
É-COUTER [escutar], RA-CONTER [contar / narrar]...
142 Yves Cortez

COUR (corte do rei): Eis aqui, por outro lado, uma


palavra que deveria ser escrita COURT apesar de não se
escutar mais o “t” final (no francês antigo, a ortografia pre-
via a letra “t”). De fato, COUR vem do “italiano antigo”
CORTE (cf. espanhol CORTE, português CORTE, romeno
CURTE). O “t” final aparece, aliás, nas palavras COURTI-
SAN [cortesão], CORTÈGE [cortejo], ESCORTE [escolta /
séquito], COURTOIS [cortês], ACCORT
[afável]... Mas, se o “t” desapareceu, foi porque se
quis aproximá-lo da palavra latina CURIA (a curia roma-
na). É certo que o “t” final não se pronuncia mais e que
pelo menos desta vez, por acaso, a ortografia está de acor-
do com a pronúncia.
DOIGT [dedo]: Em francês pronuncia-se /’dwa/ e se es-
creve DOIGT. Por quê? A palavra DOIGT vem do “italiano
antigo”. Vamos tentar reconstruir a palavra do “italiano an-
tigo” a partir de palavras análogas das diferentes línguas ro-
mânicas: italiano DITO, espanhol DEDO, português DEDO,
ocitano DET. A palavra do “italiano antigo” era, portanto,
DIT ou DET. Daí o “t” final que podemos encontrar na pala-
vra DOIGTÉ [dedilhado]. Mas, que absurdo, de onde vem a
letra “g” se não do latim DIGITUS? Poderia-se pelo menos
escrever DOIT para ser fiel à fonética e à história da palavra!

ET [e]: Pronuncia-se “e” e se escreve ET para se apro-


ximar do latim ET. A comparação com as outras línguas
românicas nos confirma que o “t” é um acréscimo, com
apenas o intuito de latinizar a palavra (italiano E, espanhol
Y / E, português E, romeno SI).

EXCUSE [escusa]: Podemos ouvir dois tipos de pro-


núncia para esta palavra: ou EXCUSE ou ESCUSE. A pri-
meira forma é rara; a segunda é mais difundida. Diria-se
então que se trata de uma corrupção da linguagem. Minha
convicção é de que o prefixo EX é característico do latim,
tendo sido escolhido por ser latino. Ao contrário, o “s” ini-
O Francês não vem do Latim! 143

cial é característico do “italiano antigo”. Em todas as lín-


guas românicas o “s” prevaleceu: italiano SCUZI, espanhol
DESCULPA, português DESCULPA, romeno SCUZA.
Deveríamos então escrever ESCUSE e não EXCUSE.

SIX [seis]: Pronuncia-se SIS e se escreve com [X]


como em latim SEX. A palavra do “italiano antigo” pode
ser recomposta a partir das línguas românicas: francês SIX,
italiano SEI, espanhol SEIS, português SEIS, romeno SASE.
Encontramos a palavra SEIS ou SIS, e constatamos que o
“x” final que aparece na ortografia da palavra francesa é
um acréscimo de caráter latino.

POIDS [peso]: Recompomos a palavra do “italiano


antigo”: italiano PESO, espanhol PESO, português PESO,
ocitano PES; a palavra do “italiano antigo” seria PESO, o
que nos permitiria explicar o “s” final que encontramos
no verbo PESER. Mas como explicar a presença do “d” a
não ser que ele tenha sido introduzido por analogia com
a palavra latina PONDUS, que deveria assim dar origem à
palavra POIDS!

SEPT [sete]: Pronuncia-se SET e se escreve SEPT (la-


tim SEPTEM), enquanto que esta palavra se escreve SET-
TE em italiano, SIETE em espanhol e SETE em português.
Sem dúvida, o acréscimo do P lembra algumas formas do
indo-europeu (cf. grego HEPTA); o duplo T italiano é pro-
veniente das letras PT ou BT mas, neste caso, a presença
do P é devida à vontade de antigos escritores no intuito de
“latinizar” a ortografia.
Eis alguns exemplos que colocam as coisas em ordem.
Sim, a ortografia da palavra DOIGT lembra o latim DIGI-
TUS; sim, a ortografia da palavra SIX lembra o latim SEX...
Mas a pronúncia nunca está de acordo com a ortografia.
DOIGT se pronuncia /’dwa/, SIX se pronuncia SIS. Por outro
lado, no caso das palavras das outras línguas românicas, há
uma concordância entre a pronúncia e a escrita.
144 Yves Cortez

Não é certo afirmar que a língua francesa traz


em sua ortografia vestígios da origem latina. Sua orto-
grafia apresenta vestígios de uma latinização abusiva
e deliberada.

O francês é uma língua muito pouco


germânica e muito pouco céltica.

A ideia segundo a qual a língua francesa conteria


muitas palavras de origem germânica e céltica baseia-
-se no desconhecimento da origem italiana das línguas
românicas. Apesar dos esforços realizados, ao descobrir
que muitas palavras não apresentavam vestígio algum da
origem latina, os etimologistas franceses lançaram a hi-
pótese de que houvera uma influência linguística a partir
das invasões germânicas, notadamente dos francos, ou
que tais vestígios se originariam do substrato da língua
celta. Mas, na maior parte dos casos, uma filiação direta
do italiano é mais apropriada que uma pretensa origem
frâncica ou gaulesa.
No seu livro “L’aventure des langues en Occident”,
Henriette Walter apresenta uma lista de palavras francesas
que seriam de origem germânica, dando a ela o subtítulo
“Palavras germânicas em profusão”.
Analisemos mais de perto as palavras, colocando-
-as lado a lado com a tradução em italiano e a suposta
origem germânica, tal como ela é indicada nos princi-
pais dicionários.
Francês Italiano Português Etimologia oficial
BOUÉE BOA boia Viria do alto-alemão BAUKN
BRÈCHE BRECCIA brecha Viria do alto-alemão BRECHA
ESPION SPIONE espião Viria do germânico °SPEHA
FOURRAGE FORAGGIO forragem Viria do frâncico (reconstituído): °FODAR
GUERRE GUERRA guerra Viria do germânico °WERRA
JARDIN GIARDINO jardim Viria do frâncico °GART
LUCARNE LUCERNARIO lucarna Viria do frâncico (reconstituído): °LUKINNA
MARCHER MARCIARE andar / marchar Viria do frâncico (reconstituído): °MARKON
O Francês não vem do Latim! 145

O que podemos constatar?


– Que as palavras italianas são, em geral, muito
próximas do francês. Deduzo, portanto, que seria muito
mais lógico, mais simples e mais de acordo com as leis da
natureza que as palavras francesas tenham se originado
do “italiano antigo”, e não que o italiano tenha adotado
palavras francesas, estas últimas trazidas pelos francos.
Por que tipo de canal os italianos teriam adotado as mes-
mas palavras germânicas e, sobretudo, as teriam transfor-
mado da mesma maneira?
– Quando palavras francesas se assemelham a pa-
lavras germânicas, isso significa que todas as palavras
têm a mesma origem indo-europeia e não há, portanto,
nada de extraordinário no fato de elas se parecerem com
as línguas com suas primas “germânicas”.
O vocabulário francês apresenta muito pouco do
vocabulário germânico e céltico. Ele é fundamentalmente
e quase exclusivamente italiano.
Em outros termos, a língua do invasor romano, o
“italiano antigo”, praticamente estratificou o substrato
gaulês; e, mais tarde, os francos adotaram o francês sem
marcá-lo com seus vestígios. Quando os francos se insta-
laram na França, no séc. 5º, tomaram o poder mas não im-
puseram sua língua, nem influenciaram a língua francesa,
pois eram numericamente minoritários, mesmo porque já
existia uma língua veicular em todo o território há mais
de cinco séculos.
Como os primeiros etimologistas pensavam, a prio-
ri, que o francês era feito de uma mistura de diferentes
aportes, eles acreditaram poder identificar vestígios de
falares germânico e céltico.
Historicamente, há um outro exemplo em que a
língua não foi afetada pelos invasores: o franco-norman-
do. Quando os normandos se instalaram na Norman-
146 Yves Cortez

dia, no ano 900, chegaram com uma língua germâni-


ca em um país de língua francesa. Pouco tempo depois,
quando os normandos invadiram a Inglaterra (após a
Batalha de Hastings), em 1066, ou seja, menos de dois
séculos após sua chegada na Normandia, foi o falar fran-
co-normando que eles levaram para a Inglaterra, o qual
é praticamente o francês atual. Somente a toponímia na
Normandia manteve alguns vestígios do passado pro-
priamente normando (Le Havre, Honfleur, Barfleur...).
Os normandos adotaram a língua francesa na sua totalidade.
Não houve, portanto, mistura alguma!
A história nos dá exemplos, não de mistura de vo-
cabulário, mas de integração de um vocabulário novo e
complementar: o inglês, com um vocabulário francês ex-
pressivo, transmitido pelos normandos; o “italiano antigo”
contava com várias palavras latinas, assim como o latim in-
corporou várias palavras gregas. Isso sempre ocorre quan-
do se trata de aportes ligados a uma cultura dominante.
Um vocabulário mais elaborado, resultante de uma civili-
zação mais desenvolvida, é adotado pelo povo dominado.
Os gregos eram mais “desenvolvidos” que os latinos, que,
por sua vez, o eram mais que os italianos. Os franco-nor-
mandos, cuja cultura foi impregnada por mais de mil anos
de civilização greco-romana, levaram consigo um vocabu-
lário original sem equivalente no inglês da época.
Algumas pessoas ficariam tristes em consta-
tar que o francês possui apenas ínfimos vestígios
das línguas de seus ancestrais gauleses e germâni-
cos. Infelizmente, é preciso se render à evidência.
O francês vem quase exclusivamente do “italiano antigo”.

Nossos primos longínquos: os latinos

A língua latina não é a língua-mãe das línguas româ-


nicas, mas apenas um parente longínquo. Quando se tem
O Francês não vem do Latim! 147

em mente a extraordinária continuidade das línguas atra-


vés dos séculos, como já observei em relação ao grego, ao
árabe, ao francês, ao italiano e ao próprio latim, tudo leva a
crer que foram necessários muitos séculos para que o itáli-
co tenha dado origem a duas línguas tão diferentes quanto
o latim e o “italiano antigo”.
Quando observo a pouca variação entre grego me-
cênico e o grego moderno, apesar de trinta e cinco sé-
culos de distância, eu seria tentado a pensar que o itáli-
co, língua-mãe do latim e do “italiano antigo”, levou ao
menos dez mil anos para divergir em duas línguas tão
diferentes como o são o latim e o “italiano antigo”, assim
como para produzir sintaxes, vocabulários e gramáticas
tão distintas.
Deduz-se que a origem dos indo-europeus deve
acompanhar tal recuo; eu não concordo com a tese de um
desdobramento da família europeia por volta de 6.500
a.C., como já foi comumente admitido. Seria preciso re-
cuar o desdobramento das famílias indo-europeias para
mais de 20.000 anos a.C.
Admitir que o latim não seja a língua-mãe das lín-
guas românicas tem repercussões consideráveis sobre nos-
sa análise dos indo-europeus. Decididamente, a descober-
ta da origem das línguas românicas apresenta inúmeras
consequências em cadeia.

Os franceses e a língua italiana

Nosso olhar sobre a língua italiana muda comple-


tamente após essa demonstração. Sempre tivemos uma
certa simpatia por essa língua cantante, melodiosa, en-
solarada e feliz. Mas descobrimos que a ligação de pa-
rentesco entre o francês e o italiano é mais forte do que
imaginávamos. O italiano e o francês são, evidentemen-
te, membros de uma mesma família, mas o italiano é a
148 Yves Cortez

língua-mãe do francês. O italiano está totalmente asso-


ciado ao passado da nossa língua. E também ao nosso
passado. Lembremos do estudo do vocabulário, quan-
do identificamos várias diferenças fundamentais entre
o latim e as línguas românicas, e que nos desvendavam
uma organização social própria dos italianos, uma vida
cultural e espiritual distinta daquela dos latinos.
Evidenciei principalmente que o calendário italiano
não tinha nada em comum com o calendário latino, que
os italianos colocavam seus mortos em tumbas, enquanto
que os latinos os colocavam em sepulturas, que os latinos
tinham cônsules, senadores e pretores, enquanto que os
italianos tinham reis, condes, vassalos, que os latinos usa-
vam togas e “palio”, enquanto que os italianos utilizavam
calças, camisas e mantos.
É um novo olhar que devemos dar ao italiano e, é
claro, uma língua que devemos estudar menos superfi-
cialmente do que fazemos atualmente.

“Italiano antigo” ou românico?

Batizei a língua falada pelos romanos de “italiano


antigo” por analogia ao grego. Em grego, pode-se distin-
guir o grego moderno, falado atualmente, do grego antigo,
falado na antiguidade. Ao falar de “italiano antigo”, de-
monstro a continuidade do italiano contemporâneo.
Os romanos tinham um termo para designar sua lín-
gua falada: o românico.
Na Romênia, a língua falada é o ROMÂN. Curioso,
não? Lembremos que a Romênia se separou do Império
Romano no ano 270. Os habitantes deste país não utilizam
a palavra “latim” para falar da sua língua, mas a palavra
“românico”. O fato de eles se autodenominarem romanos
é totalmente normal, mas é surpreendente que eles não se
refiram ao latim para falar de sua língua.
O Francês não vem do Latim! 149

Na Suíça, uma das línguas românicas utilizadas é o


“romanche”. Como na Romênia, poderia-se admitir que
um povo tivesse conservado os vestígios de sua origem ro-
mânica, mas por que sua língua se chamaria “romanche”
e não latim?
Enfim, o Concílio de Tours, em 813, faz explicita-
mente referência à “língua rústica românica”, sendo esta
preferida ao latim no intuito de facilitar a compreensão
de todos. Já mencionei o fato de que o singular era utili-
zado; quero enfatizar mais uma vez que não se trata de
forma alguma de língua latina rústica, mas de língua ro-
mânica rústica.
Considero que o termo língua românica remete ex-
plicitamente a uma língua falada “por todos”, em toda a
área do ex-Império Romano.
Acrescentemos a isso que as línguas se transformam
muito lentamente; esta língua românica não apareceu mi-
lagrosamente no ano de 813. Ela já era necessariamente fa-
lada há vários séculos. A língua românica se transformou
com os séculos em diferentes línguas românicas. A deno-
minação “línguas latinas” para designar as línguas româ-
nicas (italiano, francês, espanhol, [português], romeno) é
recente. Sua denominação foi atribuída pelos linguistas
contemporâneos.
A palavra ROMÂN para designar a língua falada
pelos romenos, a palavra ROMANCHE, para designar a
língua falada pelo povo montanhês suíço, a expressão “lín-
gua românica rústica”, para designar as línguas compreen-
didas pelo povo em 813 não são pura coincidência. São
vestígios da denominação da língua falada pelos romanos,
o românico.
Não podemos negar que os alemães falam alemão,
que os ingleses falam inglês, que os poloneses falam polo-
nês... prova que cada povo tem o mesmo nome para desig-
nar sua própria raça e sua própria língua.
150 Yves Cortez

Mas não. Olhando mais de perto observamos que os


argelinos falam árabe e não argelino, os austríacos falam
alemão e não austríaco, e que os suíços não falam suíço.
Os romanos não tinham vergonha de dizer que falavam
latim, mas, no fundo, eles sabiam que falavam “români-
co” e não latim.
Desta reflexão tiramos duas conclusões:
– Primeiramente, que é errado se falar de línguas la-
tinas, como às vezes escutamos quando se trata de línguas
românicas,
– Além disso, há duas possibilidades para designar
a língua falada pelos romanos: o “italiano antigo” e o
românico.
A primeira dá conta da filiação com o italiano con-
temporâneo; a segunda é certamente a designação origi-
nal, mas a utilização atual da palavra românica dá mar-
gem a confusão. Seria necessário muito tempo para que
“italiano antigo” e românico fossem algum dia conside-
radas sinônimos.
Conclusão

Não se pode ensinar o que quer que


seja a alguém, pode-se tão somente ajudá-lo
a descobrir por si mesmo.
Galileu

Amigo leitor, que acompanhou minha demonstra-


ção até aqui e fez esta descoberta formidável: os romanos
não falavam latim, mas italiano. Os linguistas adivinha-
ram, com razão, a existência de uma língua falada, dife-
rente do latim. Mas, ao invés de ir além na análise até as
últimas consequências, preferiram declarar que a língua
falada era tão somente um latim deformado e que eles
batizaram de “baixo latim” ou “latim vulgar”. Eles não
imaginaram que não havia, de fato, relação alguma entre
a língua falada e a língua escrita. Não imaginaram sequer
que os romanos eram bilíngues, que utilizavam o italiano
para falar e o latim para escrever. Não compreenderam
que o latim foi inicialmente uma língua viva, mas que ser-
viu apenas para a escrita. Eles tornaram sagrado o latim
152 Yves Cortez

clássico para fazer dele uma língua aristocrática, que o


povo seria incapaz de dominar.

Não há nem latim clássico e nem baixo latim:


há apenas um latim.

Não existem dois latins. De um lado, um latim “clás-


sico”, utilizado pelos eruditos e, de outro, um “baixo la-
tim”, utilizado pela plebe. Existe apenas um latim. Quan-
do o latim se tornou uma língua morta, ele foi reservado
à escrita. Somente os letrados o utilizavam, assim como
a nobreza romana, apegada às suas origens latinas, que
imaginou poder perpetrar a utilização do latim. Diante
do “italiano antigo”, que tinha pelo menos duas formas
dialetais, como mostrei, e que não apresentava forma de
expressão escrita unificada, o latim era a única língua en-
sinada em todas as escolas romanas, era o meio de comu-
nicação adaptado a um imenso império.
Em momento algum o latim se transformou. Foi bem
o contrário o que aconteceu. O latim se solidificou e petri-
ficou. Ele não sofreu alteração alguma desde a sua morte,
por volta da primeira era pré-cristã. Ele nunca mais foi al-
terado, nem foneticamente e nem semanticamente.
O “italiano antigo” conheceu um outro destino.
Como qualquer língua viva, ele se transformou, mas len-
tamente, ao ponto de continuar sendo designado pelo sin-
gular até 813 como “língua românica rústica”. Até a queda
do Império Romano, por volta de 400 d.C., a circulação de
bens e pessoas era tão intensa que favoreceu a homoge-
neização do “italiano antigo”, apesar de que, logicamente,
os diferentes substratos já tivessem deixado seus vestígios,
pelo menos no que diz respeito à pronúncia. Depois do
desmantelamento do Império Romano, a fragmentação do
território induziu à dialetação do “italiano antigo”, refor-
çada pela chegada de novos povos. Analisando a situação,
O Francês não vem do Latim! 153

parece que se superestimou os aportes linguísticos dos in-


vasores e o que muitas vezes é apresentado como palavras
de origem germânica, por exemplo, são frequentemente
palavras do “italiano antigo”.
Foi na Idade Média que a diversificação linguísti-
ca se acelerou em todo espaço românico, até a imposição
progressiva das línguas nacionais ligadas a fortes poderes.
Mas, na Itália, a transformação do “italiano antigo” em
cada região levou muito tempo, em função de uma unifica-
ção tardia da nação, criando um mosaico de dialetos ainda
muito ativo atualmente.

A origem italiana das línguas românicas


esclarece todas as interrogações

Formular a hipótese de que a língua-mãe de todas


as línguas românicas é o italiano responde a todas as nos-
sas dúvidas.
Por que alguns linguistas, que tentam reconstruir o
latim falado, se maravilham ao descobrir uma língua tão
diferente do latim? Porque a língua que eles reconstroem é
pura e simplesmente o italiano, procurando, em vão, uma
origem latina.
Por que todas as línguas românicas parecem mais
com o italiano que com o latim? Porque os romanos leva-
ram o italiano a toda parte.
Por que o latim é tão diferente das línguas români-
cas, tanto no que diz respeito ao vocabulário quanto à gra-
mática? Porque as línguas românicas não vêm do latim.
Como as línguas românicas, que deveriam ter sido
influenciadas por invasores tão diferentes quanto os fran-
cos, os visigodos, os vândalos, os eslavos, continuaram tão
semelhantes? Porque elas sempre foram uma variante do
italiano e, como povos primitivos, os invasores as modifi-
caram muito pouco.
154 Yves Cortez

Por que a literatura latina começa a decair a partir do


séc. 2º d.C., enquanto que o Império Romano ainda é prós-
pero? Porque o latim tornou-se uma língua morta.
Por que o teatro latino desaparece no séc. 1º d.C.?
Porque o latim não é mais compreendido pela maioria
dos romanos.
Por que a língua latina parece enrijecida a partir do
séc. 2º d.C., e por que vê-se apenas pálidas cópias de Vir-
gílio e de Cícero? Porque o latim já era uma língua morta.
Por que, uma vez que todas as línguas antigas como
o grego, o árabe e o hebraico parecem evoluir tão lenta-
mente no decorrer de longos séculos, o latim seria exceção
e teria se transformado totalmente em alguns séculos, mu-
dando completamente seu vocabulário e sua gramática?
Porque o latim não se transformou de forma alguma em
línguas românicas.
Mas também, por que a língua grega teve tanta im-
portância em Roma? Por que se utilizava tanto a mímica?
Por que tantos autores clássicos se insurgiram contra
o abandono do latim? A resposta é sempre a mesma!
O empobrecimento do latim e a origem italiana das línguas
românicas respondem a todas essas interrogações!

Razões objetivas explicam nossos erros

Pode-se compreender que uma tal evidência não nos


tenha jamais saltado aos olhos. O latim e o “italiano anti-
go” têm uma relação de parentesco. As duas línguas têm
sua origem na família itálica e têm, portanto, alguns pon-
tos em comum. Acrescenta-se a isso que, sendo o latim a
língua da erudição, os romanos e, posteriormente, outros
povos romanos, buscaram, sem limites, enriquecer o seu
próprio vocabulário através do léxico latino. Os emprés-
timos ao latim duraram mais de vinte séculos, conferindo
um ar latino a todo texto literário contemporâneo. A últi-
O Francês não vem do Latim! 155

ma razão objetiva da nossa cegueira reside na ausência de


documentos escritos em “italiano antigo” e de referência
explícita a esta língua nos textos latinos.
Da mesma forma, não parecia uma aberração consi-
derar que os romanos, e os povos por eles colonizados, fala-
vam e escreviam uma única língua até a queda do Império
Romano, e que as grandes invasões tinham não somente
desestruturado o Império Romano, mas teriam igualmente
transformado o latim em diferentes línguas românicas.

Razões subjetivas nos desviaram ainda mais a atenção

A crença na origem latina das línguas românicas tor-


nou-se, com o tempo, um dogma. E, presos a este dogma,
os letrados impuseram a ideia que a maior parte do nosso
vocabulário provinha do latim. Ressaltei os procedimen-
tos mais grosseiros, mais expeditivos e mais inventivos da
etimologia oficial. Esta etimologia do francês, construída
da maneira mais irracional possível, tornou-se referência e
alimenta, por sua vez, o dogma da origem latina do voca-
bulário das línguas românicas.
Parecia ainda mais difícil a tarefa de explicar a ori-
gem latina da nossa gramática. Mas a nossa pouca curiosi-
dade nos fez acreditar no milagre da transformação total,
através da iniciativa de um povo inculto para quem o latim
teria sido muito complicado. Alguns homens de renome
apoiaram essa tese e, assim, aquiescemos a esta ideia.
Desde então, pesquisadores investiram em outros
domínios para apoiar a tese oficial. Especialistas em fo-
nética “demonstraram” a continuidade latim - línguas ro-
mânicas. Outros encontraram vestígios do latim nos tex-
tos do Sermão de Estrasburgo. Por fim, outros se apoiam
na latinização da ortografia do francês para encontrar
razões adicionais para acreditar na origem latina das lín-
guas românicas.
156 Yves Cortez

Amigo leitor, concordemos que dispúnhamos de


circunstâncias atenuantes. Todas as escolas, todas as
universidades, todos os homens de letras recitam o dog-
ma e o ensinam, como eles próprios aprenderam, e isso
em toda a Europa românica, apoiando-se uns nos ou-
tros. Entretanto...

Sugiro abolir para sempre o conceito de “baixo latim”

Face a uma suposta total transformação da língua


latina, a linguística oficial tem uma resposta para se es-
quivar: o baixo latim ou latim vulgar. Peço, contudo, que
sobre este conceito, deixemos de alimentar a imprecisão.
Peço que se descreva, com precisão, este baixo latim, que se
explique quando ele se formou, qual é o seu vocabulário,
qual é a sua gramática.
Peço aos que defendem a tese oficial para explicar:

• O aparecimento, em todas as línguas românicas, da


mesma sintaxe,
• O desaparecimento, em todas as línguas români-
cas, das mesmas palavras latinas,
• O aparecimento, em todas as línguas românicas,
das mesmas palavras não latinas,
• O desaparecimento de todas as declinações em to-
das as línguas românicas,
• O desaparecimento do gênero neutro em todas as
línguas românicas,
• O desaparecimento da forma passiva dos verbos
depoentes, dos adjetivos verbais, do supino, do im-
perativo futuro, do infinitivo futuro... em todas as
línguas românicas,
• O aparecimento, em todas as línguas românicas,
dos mesmos artigos definidos, dos mesmos artigos
O Francês não vem do Latim! 157

indefinidos, dos mesmos plurais, do mesmo futu-


ro, do mesmo passado composto, do mesmo vosea-
mento, dos mesmos advérbios...

Essa pesquisa conduzirá necessariamente à desco-


berta do “italiano antigo”. É uma profunda desonestida-
de intelectual batizar esta língua antiga com o nome de
“latim vulgar”, fazendo supor que a língua falada pe-
los romanos tinha qualquer relação com o latim, quan-
do sabemos que este não é o caso. Lanço a hipótese que
o desaparecimento do latim não se deu pela fantástica
expansão do território romano, que, englobando novos
povos, teria levado a fazer do latim uma língua minori-
tária. É sem dúvida o enorme crescimento da cidade de
Roma, para onde durante séculos afluíram povos adja-
centes que já falavam o italiano, que fez dos primeiros
romanos de língua latina uma comunidade numérica e
linguisticamente reduzida.

As consequências no ensino são consideráveis

Imaginem o terremoto que provocará no ensino a


descoberta da origem italiana das línguas românicas. Será
preciso que todos os professores de francês revejam suas
bases e, para começar, que eles se desfaçam de algumas
ideias pré-concebidas, fortemente enraizadas, resultantes
de nosso erro passado.
Em nenhum povo existe, de um lado, uma plebe que
fala mal e, de outro, uma elite que “sabe” falar corretamen-
te. Com o tempo, é sempre o povo, ou seja, a maioria, que
impõe a sua língua. Dante escreveu na língua do povo,
bela como era, assim como o fez Montaigne, Shakespeare,
Lutero e Cervantes...
As línguas se modificam muito lentamente. Acreditar
que o francês evoluirá porque os jovens se comunicam de ma-
158 Yves Cortez

neira particular por SMS, ou porque eles utilizam algumas


expressões da moda, ou porque um jargão está em voga
no subúrbio parisiense, significa não enxergar a realidade
da situação francesa. O que vivemos de maneira acelera-
da há um século na França é uma fantástica homogenei-
zação da língua em todo o território, resultante da mis-
tura de populações e da influência das mídias nacionais.
Quanto mais o tempo passa mais o campesino
“berrichon”1 fala como o executivo parisiense, e vice-
-versa. E a anglicização da língua francesa, tantas vezes
denunciada, se manteve.

É preciso rever radicalmente a história da língua francesa

A história da língua francesa tal como foi ensinada


é totalmente falsa. Eis como ela deveria ser ensinada de
forma lógica.
Antigamente, a Gália era provavelmente povoada
por uma maioria de tribos celtas, à exceção de uma gran-
de parte do sudoeste da França, que devia ser basca, como
agrada a alguns verificar na palavra «Gascogne» [Gasco-
nha], que soa como «Bascogne», à exceção da costa medi-
terrânea, que estava sob influência grega.
Depois vieram os romanos, em duas vagas sucessivas.
A primeira investiu na região batizada de Narbonense,
que corresponde aproximadamente à Provença e ao Lan-
guedoc-Roussillon, e que se tornaria o cadinho da língua
ocitana. A segunda vaga, por volta do ano 50 a.C., levou
os romanos a conquistar toda a Gália. Os soldados e colo-
nos romanos falavam italiano e o italiano se impôs pouco
a pouco em toda a Gália. Os gauleses foram romanizados,
adotaram a língua italiana, marcando-a com raras parti-
cularidades, dentre as quais as mais notáveis são: a letra

1
N.T.: O “berrichon” é um dialeto da região de Berry, na França.
O Francês não vem do Latim! 159

«u», que se pronuncia «ou»2 em todas as línguas români-


cas, contrariamente ao francês, e a nasalização dos digra-
mas “AN”, “EN”, “IN”, “ON” e “UN”.
No que diz respeito ao vocabulário e à gramática,
o estudo do francês antigo nos mostra que a transforma-
ção do italiano em francês foi progressiva. Evidenciei
que o vocabulário francês antigo ainda é muito próximo
do italiano.
Acreditou-se ver no vocabulário francês muitos
aportes germânicos, qualificados de frâncico ou de neer-
landês. Estas afirmações não repousam sobre fundamen-
to algum e são descartadas a partir do momento em que
se lança a hipótese da origem italiana das línguas româ-
nicas. É preciso não ter medo do ridículo para afirmar a
hipótese oficial que sustenta que os neerlandeses teriam
sido responsáveis pelo aporte de aproximadamente mil e
quinhentas palavras na língua francesa. Quando se pres-
siona um pouco os etimologistas oficiais, eles afirmam
que os neerlandeses eram excelentes marinheiros, e que
essas palavras novas chegaram pelos portos. Que os ma-
rinheiros ingleses, espanhóis, portugueses e italianos se
resignem! Os marinheiros neerlandeses eram certamen-
te mais falantes que eles, e sua língua devia parecer tão
acessível aos mercadores franceses com os quais negocia-
vam, que estes abandonaram novamente a língua fran-
ca em favor do neerlandês. Não, nada disso faz sentido.
Nossa língua não conta com 1.500 palavras de origem
neerlandesa, mas, no máximo, um punhado delas!
Mesmo desagradando os etimologistas oficiais, que
veem apenas duas fontes para a origem do nosso voca-
bulário: a origem latina ou o empréstimo a uma língua
estrangeira; uma língua evolui através de um método de
grande simplicidade e eficácia (que é utilizado até mes-
mo pelos neerlandeses, cujos portos não foram invadidos
2
N.T.: Representação gráfica da pronúncia percebida pelos francófonos.
160 Yves Cortez

pelos franceses!): a autoprodução. O povo francês é tão


inventivo linguisticamente falando quanto todos os ou-
tros povos do planeta.
Eis o resumo em linhas gerais da história da nossa
língua, bem distantes da história oficial.

É preciso reescrever todos os nossos dicionários

É preciso assumir as consequências da descoberta da


origem italiana das línguas românicas. É preciso igualmen-
te admitir, desde já, que todas as etimologias, baseadas na
origem latina do vocabulário francês, são falsas, à exceção,
é claro, das palavras que são claramente emprestadas do
latim. Portanto, é preciso rever todos os nossos dicionários.
Mostrei, por exemplo, que a palavra TRAVAIL [tra-
balho] não vem da palavra TRIPALIUM. Mas, mesmo se
esta etimologia é grosseiramente falsa, ela é conhecida por
milhões de pessoas, como o são quase todas as etimologias
das palavras correntes. A palavra TRIPALIUM é mais do
que uma etimologia, tornou-se um código. E mesmo mais
do que um código, tornou-se um rito. Qualquer pessoa que
faça alusão ou comentário acerca do trabalho começa inevi-
tavelmente por uma referência à etimologia oficial. «Como
todos sabem, a palavra TRAVAIL [trabalho] vem do latim
que significa instrumento de tortura” ou então “sabe-se que
originalmente o trabalho era tortura”.
A etimologia oficial funciona bem, não porque ela é
exata, mas porque é parte integrante da cultura comum.
A desaprendizagem será muito longa depois de tantos
anos de condicionamento.
Será necessário classificar os dicionários Larousse,
Robert e afins, nas prateleiras das nossas bibliotecas, ao
lado do dicionário do bem-amado Littré. Eles serão as tes-
temunhas de uma época, interessantes para consulta para
as definições que eles fornecem para as palavras, sempre
O Francês não vem do Latim! 161

úteis para pesquisa de uma citação, mas totalmente falsos


no que diz respeito à etimologia.
Será um imenso trabalho reescrever a etimologia de
todo o vocabulário da língua francesa, mas a tarefa não é
intransponível. O mais difícil será fazer com que nossos
linguistas façam sua revolução coperniciana, que eles ad-
mitam ter-se enganado, e que eles são involuntariamente
cúmplices de um enorme erro científico.

Mas não modifiquemos a ortografia

A ortografia da língua francesa é de uma rara com-


plexidade, pelo fato de que os primeiros escribas escolhe-
ram aproximar o francês do latim, ao invés de fazer, como
o fizeram os outros povos românicos, uma simples trans-
crição fonética.
Poderíamos imaginar uma ortografia infinitamente
mais simples, o que teria sobremaneira simplificado a tare-
fa dos estudantes. Mesmo assim, é possível imaginar uma
modificação da ortografia da língua francesa? A resposta é
evidente. A reforma teria como consequência romper com
cinco séculos de literatura, ela tornaria totalmente ilegível
as obras passadas, enquanto que nós mesmos temos difi-
culdades para ler Rabelais e seus antecessores, unicamente
por questões ortográficas.
Em suma, não há que se ter medo, pois se trata de
uma área onde prima o conservadorismo. Basta pensar nos
debates acalorados que suscitaram as tentativas de refor-
ma da ortografia. Imaginem então “deslatinizar” a orto-
grafia do francês: é mais uma hipótese de escola que uma
possibilidade factível.
O que se poderia fazer no máximo é fornecer aos
jovens estudantes explicações para a discordância entre a
pronúncia e a escrita. Será necessário explicar a eles que a
nossa ortografia não reflete uma origem latina, mas uma
162 Yves Cortez

vontade dos primeiros escribas de acrescentar letras às pa-


lavras para aproximá-las do latim.

Viva o latim!

O ensino do latim ainda tem futuro se as línguas ro-


mânicas não vêm do latim? Minha demonstração sobre a
origem não latina das línguas românicas não afeta em nada
a primazia que a língua latina teve durante mais de vinte
séculos na Europa. O latim era uma língua morta? Prefiro
utilizar o termo “língua escrita” ao termo “língua morta”,
por considerá-lo mais apropriado. Trata-se aqui de “língua
escrita” unicamente e não de língua oral. Há várias línguas
no mundo que têm este mesmo status. O páli3 é a língua
usada pelos hindus na religião. Ela não é mais utilizada
como língua corrente, mas sim na escrita por todos os sa-
cerdotes do hinduísmo. Ela vive pela escrita de certa forma.
O hebraico tinha o mesmo status até antes de se tornar a
língua oficial do Estado de Israel. Até então, o hebraico era
considerado uma língua morta, mas todo judeu praticante
tinha um conhecimento perfeito dela, e os eruditos judeus
continuavam a escrever em hebraico. A literatura hebraica
sempre esteve viva, assim como a literatura latina, apesar
de que o hebraico tenha sido considerado língua “morta”.
Mesmo que o latim não seja mais falado há mais de vinte
séculos, ele continua a estar vivo, e de forma bastante notável.
Sua particularidade como língua “não falada” o impediu
de ser o idioma da literatura romanesca e teatral, mas o
latim prosperou nas áreas da poesia, da sátira, do direito,
da história, da ciência e da religião. E, sobretudo, ele era
a língua escrita de todos os cidadãos do Império Romano,
o idioma da comunicação e, portanto, o veículo do pen-
samento. Em latim se sedimentaram séculos de uma civi-

3
N.T.: Língua sagrada do Sri Lanka (antigo Ceilão) e do Sul da Índia, aparentada
ao sânscrito e usada no cânon budístico.
O Francês não vem do Latim! 163

lização, a nossa civilização. O latim forjou o pensamento


dos eruditos durante séculos. Assim, tudo isso mostra
que ele proporcionou uma grande contribuição, que não
é negligenciável.
Um certo número de utilitaristas gostaria que o
estudo de línguas estrangeiras se resumisse apenas ao
inglês, convencidos de que o conhecimento de algumas
palavras do jargão internacional bastaria. Gostaria de me
opor à ideia segundo a qual apenas os franceses que têm
um bom conhecimento de línguas estrangeiras falam
bem inglês. Seria infinitamente mais produtivo para
nossas crianças se elas aprendessem a falar uma língua
estrangeira que lhes seja próxima, como o italiano, o
espanhol, o alemão, o português; o inglês seria, neste
caso, uma consequência natural.
Os utilitaristas dizem também que não é necessário
conhecer o latim para que se tenha acesso a toda a literatu-
ra latina, haja vista as boas traduções. Eu gostaria de obser-
var que o produtivismo progride tanto neste mundo que
não haverá em breve mais espaço para o estudo de textos
antigos. No entanto, como descobrir verdadeiramente as
obras de Virgílio, Lucrécio, Sêneca, Plínio, e tantos outros,
se o latim não é ensinado, se professores não fazem com
que os alunos avancem nos estudos, iniciando-os, progres-
sivamente, nas riquezas da nossa cultura? Como estudar
quando não existe um âmbito apropriado? Ler o texto ori-
ginal não é a melhor forma de compreendê-lo?
No fundo, o problema é saber que escola realmen-
te queremos. Queremos uma escola unicamente técnica,
onde as únicas disciplinas que contariam seriam o inglês
e a matemática, ou uma escola encarregada de transmitir
a cultura ancestral e, assim, despertar o conhecimento? A
primeira forma robôs e, a segunda, homens. O objetivo da
escola não deve ser o de preparar o homem para se adaptar
à máquina. Ao contrário, a escola deve continuar sendo o
164 Yves Cortez

local privilegiado da transmissão da cultura, ou seja, de to-


dos os saberes antigos e, neste contexto, o latim e a cultura
latina têm o seu lugar garantido.
Continuemos, portanto, a ensinar o latim.

Apelo aos pesquisadores

A linguística é uma ciência nova. Pode-se datar o seu


nascimento no início do séc. 19, com os trabalhos de Franz
Bopp, Rasmus Rask e Jacob Grimm. Ela nos permitiu com-
preender melhor o universo das línguas. Hoje, conceitos
como famílias linguísticas nos parecem evidentes, mas não
o eram há apenas dois séculos. Eles são o resultado de anos
de desenvolvimento da ciência linguística.
Desde sempre, a linguagem apaixonou os homens
e podemos encontrar testemunhos disso nos escritos dos
hebreus, dos gregos e dos romanos, onde vemos reflexões
a respeito da tradução, tentativas de explicação da etimo-
logia de várias palavras, assim como de gramáticas. Hoje,
o método científico substitui cada vez mais as abordagens
empíricas. Mas nem tudo foi explorado até hoje. Longe
disso. E a descoberta da origem italiana das línguas abre
perspectivas novas, apaixonantes e importantes do ponto
de vista científico.
Convém inicialmente reconstruir o “italiano antigo”,
seu vocabulário e sua gramática. Em seguida reconstruir o
itálico, voltando atrás graças à análise comparada do “ita-
liano antigo” e do latim, o que proporcionará uma base só-
lida à construção do indo-europeu.
A reconstrução do “italiano antigo” permitirá dis-
tinguir, em todas as línguas românicas, a contribuição real
dos substratos e dos aportes ulteriores; resumindo, cons-
truir uma etimologia científica, muito mais rigorosa que
aquela que consiste em buscar a primeira palavra latina ou
neerlandesa de consonância idêntica.
O Francês não vem do Latim! 165

Será preciso fazer uma pesquisa sistemática sobre as


formas dialetais do “italiano antigo”, e pesquisar se encon-
tramos vestígios nos dialetos italianos contemporâneos.
A análise da língua romena já abriu novas perspectivas
nesta área, depois da descoberta das estranhas semelhan-
ças entre o romeno e uma forma dialetal do italiano.
Alguns anos de pesquisas voltadas para uma direção
radicalmente nova nos permitirão dar um salto prodigioso
no conhecimento das línguas românicas.

Apelo aos homens e mulheres de boa vontade

A resistência à minha tese será muito grande,


como o é a resistência a qualquer tipo de mudança.
Jamais os anti-copernicanos teriam prosperado tanto
tempo, jamais a igreja se oporia com uma tal obstinação
às propostas de Copérnico, se a maioria da população ti-
vesse aderido a essa nova tese. Mas a massa ficou inerte
durante longas décadas.
A minha tese vai de tal forma de encontro à ideia co-
mumente admitida que esbarra em um pelotão de nega-
ções. A fração mais importante dos opositores é composta
por todos aqueles que têm um conhecimento superficial
do latim, e que se contentam com algumas semelhanças
de vocabulário para apoiar sua convicção. Ela é confortada
por uma parcela de linguistas prisioneiros de esquemas de
pensamento inculcados pelos seus predecessores e que fi-
cam assustados com a nova descoberta.
A resistência virá também daqueles que repetem
ininterruptamente nas rádios, ao longo dos anos, que o
francês vem do latim e que correm o risco de perder seu
ganha-pão. A resistência virá enfim e, sobretudo, de potên-
cias financeiras que publicam os dicionários e que preferi-
rão ficar na defensiva.
166 Yves Cortez

A responsabilidade é de vocês, homens e mulheres


de boa vontade, a quem me dirijo, a vocês que não fo-
ram formatados, a vocês que não confiam cegamente nos
especialistas, a vocês que são receptivos a novidades, a
vocês que questionam de boa-fé, a vocês que, finalmente,
admitiram que a Terra não era plana e que o Sol, apesar
das aparências, não girava em torno da Terra!
Não aceitem nada sem provas. Façam sua própria
pesquisa, forjem sua própria opinião.
Léxico

Os linguistas são tão excelentes na arte de criar


palavras novas, que alguns de seus textos são, por vezes,
recheados de um jargão impenetrável. Eu me esforcei ao
máximo para empregar palavras simples, acessíveis a
todos. Há, contudo, algumas palavras de caráter um pouco
técnico que merecem ser explicadas.

BAIXO LATIM: O “baixo latim”, também


chamado “latim vulgar” é supostamente a lín-
gua falada pelos romanos, originária do latim clás-
sico, e que seria a origem das línguas românicas.
O conceito de “baixo latim” é utilizado para explicar a
enorme diferença constatada entre o latim clássico e as lín-
guas românicas. Mostro que o baixo latim é uma ficção, já
que a língua falada pelos romanos não tinha nada a ver
com o latim.

BLOCH e WARTBOURG: O dicionário etimológico


de Bloch e Wartbourg, publicado em 1932, cujo prefácio é
168 Yves Cortez

de Antoine Meillet, renova em profundidade a obra de


Littré. Ele é a fonte quase exclusiva dos dois grandes di-
cionários franceses, o Larousse e o Robert. Seu método
não é muito explícito. Contudo, pode-se ver que ele está
apoiado em dois axiomas fundamentais, ambos extrema-
mente criticáveis:

• O francês vem do latim;


• Ou então, as palavras francesas são o resultado de
empréstimo às línguas dos países vizinhos.

Como Bloch e Wartbourg conhecem bem as línguas


germânicas, eles vêm origens germânicas em muitas pala-
vras francesas. Duas fontes germânicas seriam preponde-
rantes: o frâncico e o neerlandês! Ou essas palavras teriam
sido trazidas pelos francos, que falavam uma língua ger-
mânica, o frâncico, ou elas viriam da língua neerlandesa, e
teriam sido trazidas pelos marinheiros neerlandeses (sic!).
É bem conhecido o fato de que os marinheiros neerlande-
ses eram muito mais numerosos nos portos franceses do
que os marinheiros espanhóis, portugueses, ingleses, ita-
lianos, etc.
É com base nisso que os etimologistas afirmam, com
seriedade, que a língua francesa conta com uma bagatela
de 1.500 palavras de origem neerlandesa. Acredito que se-
ria apropriado verificar a história da França e certificar-se
de que a França jamais foi invadida durante vários séculos
pelos neerlandeses.

depoente: Os verbos depoentes são verbos que


têm a forma passiva e o sentido ativo. Essa é uma curio-
sidade latina.

ETRUSCO: Cf. “osco”.


O Francês não vem do Latim! 169

ETIMOLOGIA OFICIAL: Cf. o verbete “Larousse”.

FRÂNCICO: O frâncico era a língua germânica fala-


da pelos francos, invasores da antiga Gália. Não temos ne-
nhum vestígio escrito desta língua. O frâncico é o recurso
frequente, mas totalmente artificial para os etimologistas,
quando não conseguem explicar a origem de uma palavra
pelo latim. Na verdade, não há praticamente vestígio lin-
guístico algum dos invasores francos.

GAFFIOT: O dicionário de latim mais conhecido pe-


los estudantes. Para cada verbete, o dicionário apresenta
frequentemente vários textos de autores latinos onde figu-
ra a palavra a ser traduzida para situá-la em seu contexto.
Apesar de datar de 1934, ele continua sendo uma excelente
ferramenta de trabalho.

GERMÂNICO: As línguas germânicas formam uma


das famílias do conjunto “indo-europeu”. Entre as línguas
germânicas estão o inglês, o alemão, o neerlandês, o sueco,
o norueguês e o dinamarquês.

GRAMÁTICA COMPARADA: A descoberta ao fi-


nal do séc. 19 da semelhança da conjugação dos verbos
das línguas da Europa, do Irã e da Índia, foi uma verda-
deira revelação. Concebeu-se, então, que todas as línguas
derivavam de uma língua original comum a todos os po-
vos da Europa, do Irã e da Índia: o indo-europeu.
Essa descoberta notável pesou bastante na sequên-
cia da pesquisa linguística até os nossos dias, uma vez
que ela fundou um método conhecido como “gramática
comparada”, que defende que o único meio de comparar
as línguas repousava na gramática e excluía a compara-
ção dos vocabulários.
170 Yves Cortez

Entretanto, a comparação dos vocabulários de for-


ma sistemática foi desenvolvida pelos americanos e ofe-
rece perspectivas muito promissoras (ver as pesquisas de
Greensberg e de Ruhlen).

INDO-EUROPEU: O indo-europeu seria uma língua


que teria sido falada há muito tempo. Eu a situo em torno
de 10.000 a 20.000 anos a.C. Essa língua teria dado origem
às línguas dos povos da Índia, do Irã e da Europa. Uma
primeira divisão teria ocorrido e dado origem a um con-
junto de línguas que, por sua vez, teriam dado origem às
línguas modernas. Aceita-se igualmente que o indo-euro-
peu teria dado origem ao Proto-eslavo, o qual teria dado
origem a todas as línguas eslavas: russo, polonês, búlgaro,
servo-croata; ao Proto-germânico, do qual teriam se origi-
nado: o alemão, o inglês, o sueco, etc.; o Proto-indiano, que
teria originado o hindi, o panjabi, o guzerate...

INÉRCIA LINGUÍSTICA: Em mecânica, a inércia é


o princípio segundo o qual um corpo em movimento con-
tinua a mesma trajetória, caso não seja submetido a nenhu-
ma força nova. Inércia linguística é um conceito eviden-
ciado pelo eminente linguista Ferdinand de Saussure, que
vem da sua observação que as línguas não se modificam
conforme as circunstâncias, mas elas só podem evoluir se
há um consenso entre todos os locutores de uma língua,
o que explica que as línguas só se modificam muito len-
tamente: portanto, as línguas são caracterizadas por uma
forte inércia.

INVASÃO NEERLANDESA: Ver Bloch e Wartburg.

ITALIANO ANTIGO: O “italiano antigo” seria a


língua falada pelos romanos. Esta língua teria sido trans-
O Francês não vem do Latim! 171

mitida a todos os povos do Império Romano e teria se


transformado nas diferentes línguas românicas. Portanto,
o “italiano antigo” se pareceria muito com o italiano mo-
derno.

ITÁLICO: Os italianos, antes da era cristã, falavam


várias línguas, dentre as quais o latim e o “italiano antigo”.
Essas duas línguas apresentam alguns pontos em comum
e que nos levam a pensar que elas têm a mesma origem,
chamada de “itálico” e que eu situo em torno de 5.000 a.C.

LÍNGUA-MÃE: Toda língua provém de uma língua


mais antiga, a qual deu origem a várias línguas de uma
mesma família linguística.
O Proto-germânico é a língua-mãe de todas as lín-
guas germânicas (cf. mais adiante o verbete “reconstruir”);
e o “italiano antigo” é a língua-mãe de todas as línguas
românicas.

LAROUSSE: Dois grandes dicionários franceses são


referência: o Larousse e o Robert. Tanto um como o outro
indicam, para cada palavra da língua francesa, uma etimo-
logia. Na maioria dos casos, as etimologias apresentadas
são estritamente idênticas nos dois dicionários pela sim-
ples razão que eles se referem aos mesmos dicionários eti-
mológicos anteriores e, mais particularmente, ao Bloch e
Wartburg (cf. este verbete). Nunca o Larousse e o Robert
arriscam sugerir uma etimologia original. No máximo,
quando as etimologias do Bloch e Wartburg parecem-lhes
confusas e, até mesmo - francamente - ridículas, o Larousse
e o Robert apresentam apenas um trecho sucinto ou, ex-
cepcionalmente, sequer propõem etimologia alguma.
As etimologias propostas por estes dois grandes di-
cionários são consideradas pelos letrados, e pelo mais co-
172 Yves Cortez

mum dos mortais, como a verdade absoluta e são, portan-


to, a seus olhos, indiscutíveis. Jamais alguém se aventura a
questioná-las, apesar de jamais conhecermos as fontes que
levaram a estas etimologias. Qualifico as etimologias de
Bloch e Wartburg, reproduzidas no Larousse e no Robert,
como “oficiais”. Elas têm um caráter oficial, mas não se ba-
seiam em fundamento científico algum. Eu contesto todas
elas. Aliás, provavelmente todas são falsas, como expus no
capítulo sobre etimologia.

LATIM CLÁSSICO: O “latim clássico” é o latim que


nos é transmitido pelos textos. Ele é considerado, portanto,
oposto ao “latim vulgar” (ou “baixo latim”). Na verdade,
existe apenas um tipo de latim. O latim, chamado erronea-
mente de “clássico”, era a língua dos romanos até ter sido
submergido pela língua italiana.

LATIM VULGAR: Cf. “baixo latim”.

LITTRÉ: Dicionário da língua francesa dentre os


mais prestigiosos, e muito apreciado pelos letrados. En-
tretanto, as etimologias apresentadas refletem a formação
pouco científica do autor deste dicionário.
Eu os aconselho mais particularmente ler a introdu-
ção do dicionário, no qual o autor explica a passagem do
latim para as línguas românicas. É uma bela antologia!

LINGUÍSTICA: A linguística é o estudo das línguas.


Recente, essa ciência está em constante evolução, assim
como a física. Profundas divergências dividem os linguis-
tas. A pesquisa mais notável diz respeito ao reagrupa-
mento das línguas em famílias e à origem dessas famílias.
Assim, os linguistas descobriram primeiramente a família
indo-europeia e, depois, com o passar do tempo, foram
O Francês não vem do Latim! 173

descobertas famílias das línguas do Oriente, da Oceania,


da África e da América.

ÚMBRIO: Cf. «Osco».

OSCO: A língua “osca” foi uma língua falada na


Itália antes da dominação romana. Por vezes ela é mencio-
nada nas obras de escritores latinos. Inscrições e placas de
bronze foram encontradas nas regiões limítrofes do Lácio:
a Úmbria e a Campanha.
Os poucos textos disponíveis nos impedem de defi-
nir com precisão o parentesco do Osco com as outras lín-
guas faladas na Itália, antes da preponderância de Roma,
como o etrusco, o úmbrio e o latim.
É possível que a língua osca tenha conhecido o mes-
mo destino que o latim. Ela foi submergida pelo “italiano
antigo” e manteve uma utilização religiosa e administra-
tiva, uma vez que era escrita. Nada nos permite afirmar
que se falava osco onde foram encontrados textos escritos
em osco.

RADICAL: O “radical” é uma noção de linguística


que introduzi sumariamente, mas que desenvolverei lon-
gamente em um próximo livro sobre etimologia.
Digamos simplesmente, a título de exemplo, que as
palavras “pâte” [massa], “paté” [patê], “potée” [variação
de um tradicional cozido francês, o Pot-au-feu], “potager”
[horta], “pitance” [pitança], “potion” [poção], etc.; todas
possuem as consoantes P e T. Chamo de radical esta “es-
trutura” das palavras que pertencem a um mesmo campo
semântico. Neste caso, o radical das palavras precedentes
é PT. Não me espanta encontrar nas palavras pâte [massa,
pasta], paté [patê], potée [compota], potage [sopa], pitance
[pitança, ração diária], popote [sopa], patate [batata], poti-
174 Yves Cortez

ron [abóbora] e nas palavras de todas as línguas indo-euro-


peias relacionadas à comida: grego PITA, italiano PIZZA,
russo PIT’...
O radical é essencialmente uma referência. Ele não
explica a origem das palavras.

RECONSTRUIR: Os linguistas lançam a hipótese


que as línguas de uma mesma família têm uma origem co-
mum. Por exemplo, o alemão, o inglês e o norueguês po-
deriam ter origem na língua chamada “proto-germânica”,
ou o russo, polonês e o servo-croata seriam originárias do
proto-eslavo.
A proximidade das línguas românicas atesta sua ori-
gem comum. Podemos dizer que as línguas românicas têm
a mesma língua-mãe.
Reconstruir o vocabulário desta língua-mãe signifi-
ca tentar encontrar, a partir das línguas -”filhas” a palavra
que logicamente poderia se transformar para dar origem
às diferentes palavras.
Exemplo: a palavra FOIE [fígado] se diz FEGATO em
italiano, [FÍGADO em português], HÍGADO em espanhol
e FICAT em romeno. A palavra FIGATO poderia ter so-
frido uma transformação, levando às diferentes variantes
acima e nós poderíamos admitir que essa era a palavra uti-
lizada em “italiano antigo”. Nós “reconstruímos” a pala-
vra FIGATO.

ROBERT: Cf. LAROUSSE

ROMÂNICO: As línguas românicas são um con-


junto das línguas originadas do “italiano antigo”, a saber,
principalmente: o italiano moderno, o francês, o espanhol,
o português, o romeno, o catalão, o reto-românico e o ocita-
O Francês não vem do Latim! 175

no. Não aceito de forma alguma o termo “línguas latinas”


para designar as “línguas românicas”.
As línguas românicas são muito próximas umas das
outras, tanto no que diz respeito à gramática quanto ao vo-
cabulário. Elas são muito diferentes do latim.

SUBSTRATO: Toda língua que foi leva-


da a uma determinada região deveria logicamen-
te apresentar vestígios mais ou menos marcan-
tes da língua falada anteriormente: desta forma o
francês poderia conter vestígios dos falares gauleses; o ára-
be dialetal do Norte da África poderia conter vestígios das
línguas bérberes; o espanhol poderia conter vestígios do
celtibero e do basco... A ideia que as línguas românicas se
transformaram a partir do latim sob o efeito de substratos
não resiste à análise, nem para o vocabulário, nem para a
gramática. Os únicos vestígios bem marcados dizem res-
peito à fonética. Exemplos: a vogal francesa “U” e o “JOTA”
espanhol são próprios a cada língua e bem divergente do
“italiano antigo” reconstituído.

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