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7. Correntes contemporaneas Filosofia araltica e fenomenologia Bertrand Russell, no mesmo ano da publicagio do livro de Perrin sobre os étomos, publica um volume intitulado Os problemas da filosofia, no qual expdeas teses da fisica de seu tempo sobre a “natureza da matéria”, No ha af qualquer tentativa de fazer a filosofia escapar do imperialismo da ciéncia, como é 0 caso, na mesma época, de Bergson. Para Russell, a filosofia deve construir seus problemas com base na cigncia, Entretanto, sobre a questdo da natureza da matéria, ele ndo evoca em momento algum a teoria atimica, sinal de que, mesmo que a controvérsia cientifica tenha chegado a um fim, essa teoria ainda nao é plenamente aceita. O ano de 1913 & também o ano da publicagio de Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenologica, de Edmund Husserl, livro destinado a ter um papel decisivo na evolugio da filosofia no século XX. As Ideias partem da constatacao de uma distingao entre ciéncia dos fatose ciéncia das esséncias. Todas as ciéncias, explica Husserl, partem dos fatos; a fenomenologia, a seu turno, que pretende ser a ciéneia da filosofia, parte das esséncias. Seus objetos so as esséncias assim como 08 objetos da fisica so os dtomos. Mas 0 que é uma esséncia? F aquilo que nos permite acessar a etal dld crete: De enallln sceniline uri iaeiieeee que desperta nossa atengio durante uma caminhada nas montanhas. Nos ros perguntamos sobre a natureza desse objeto: um telhado de palha em chamas, um efeito ético, uma pessoa que fuma seu cachimbo, um trator cujo motor sofre um sério vazamento de Gleo ete. O fendmeno visual que cativa nossa atencao é tinico. Mas, a cada vez que imaginamos uma_ causa diferente para aquilo que vemos, experimentamos, por assim dizer, 6 fenémeno visual nas vestes de uma esséncia diferente, Entre o fendmeno visual e o fendmeno do pensamento ha a diferenga entre um fato © uma esséncia. A esséncia é 0 fato interpretado de certa maneira, visto sob certo Angulo, compreendido de certa forma. Ora, rigorosamente falando, explica Husserl, estamos sempre lidando com esséncias, jamais com fatos. Portanto, ha espago para uma ciéncia das esséncias, que pode ser vista como a ciéncia filoséfica verdadeira. Ela no importuna verdadeiramente a ciéncia dos fatos. Classicamente, a ciéncia distingue o fato de sua interpretag20. A fenomenologia os associ Vemos aqui surgir duas abordagens que vao conduzir a anélises bastante ccontrastantes ¢ a escolas de pensamento as vezes (frequentemente até) rivais: a filosofia cientifica afirma que nés podemos sempre, ao menos idealmente, distinguir um fato de sua interpretagao; a fenomenologia parte, a0 contrario, do postulado segundo o qual um fato sempre é dado por sua interpretagio. Baseado nisso, surgem duas escolas cujas relagdes com a ciéncia vio ser muito diferentes. De um lado, a filosofia analitica vai se desenvolver rejeitando, como todo positivismo, a metafisica, buscando tomar a ciéncia como pedestal de suas especulagdes ~ veremos, com 0 Circulo de Viena, desenvolver-se essa tendéncia com cores militantes; do outro, a fenomenologia vai se consagrar 8 andlise das “esséncias” ¢ seri vista pela filosofia analitica como 0 iiltimo avatar da metafisica. Entretanto, existe entre as disciplinas cientificas uma ciéncia que parece ter um ponto comum com as discussdes que Husserl inicia: psicologia. A fenomenologia é claramente um discurso que conduz psique, jf que éa psique humana a responsavel pela formagio das essénei A palavra “psicologia”, no entanto, é tradicionalmente empregada n0 sentido de “ciéneia dos fatos psiquicos”. Ora, como acabamos de ver, & das cestacies, nko comaaa fenamtnoingis os colnesicome waee.ciled iéncia dos fatos. Husserl vai insistir constantemente sobre esse ponto: a fenomenologia nao evolui no campo dos fatos, mesmo que sejam fatos Psiquicos. Mas os fatos de que tratam os psicélogos so, bem entendido, aqueles de que tratam os fenomendlogos. Dai a possivel confusio. Uns € outros, no entanto, nao falam de seu objeto da mesma maneira. Na verdade, o modo adequado de falar do objeto “esséncia dos fendmenos” est, segundo Husserl, inteiramente por ser inventado, e 6 & invengio dessa linguagem das esséncias que ele se aplica em Ideias. Esse desenvolvimento vai conduzir ao seu tiltimo livro, A crise das ciéncias eucopeias ¢ a fenomenologia transcendental (1938), no qual ciéncia dos fatos e fenomenologia vao estar mais uma vez em oposigao, sistindo-se sobre a diferenga que convém realizar entre o conhecimento corrente, que Husserl vai nomear “do mundo da vida", ¢ 0 conhecimento cientifico. Reencontraremos essa corrente em um ponto posterior de seu desenvolvimento, com Heidegger. De Descartes a Husserl, a filosofia se mantém constantemente proxima as ciéncias de seu tempo. Mas tudo muda depois de Husserl. Dai em diante, os fil6sofos vao se opor mais frequentemente a cigncia, Heidegger € 0 exemplo mais surpreendente ¢ evidente dessa reviravolta, Seu julgamento culmina na formula to citada quanto mal interpretada: “a ciéncia no pensa”. Mas, antes, sigamos o nascimento ¢ o desenvolvimento da outra corrente, aquela da filosofia analitica. O Circulo de Viena Falar do “nascimento” de uma corrente de pensamento implica fazer uma escolha, que necessariamente vai ter um carter arbitrério, sobre 0 momento desse nascimento, Poderiamos tomar como ponto de partida ou 0 trabalhos de Hume, em razao do ceticismo radical que testemunham © que conduz 0 autor a rejeitar qualquer metafisica, ou os trabalhos de Comte, que, 90r outras razdes, cheyam a um resultado anslogo, ou aqueles do légico Gettlob Frege, ou 08 de Russell, dos quais acabamos de tratar, ‘ou outros ainda. Para as necessidades desta apresentacdo. eccnthe como ponto de partida da filosofia analitica nao a obra de um desses pensadores em particular, mas o fruto de um trabalho que pretende ser coletivo: aquele do Circulo de Viena. Viena, Austria, nos anos que seguem a Primeira Guerra Mundial. Pensadores de “varios horizontes”, mas todos envolvidos com as ciéncias, adquiriram o habito de se reunir nas noites de quinta-feira em diversos cafés da cidade. Viena nao tem boa reputaci “vienenses”? Ela também vai ter por seu “circulo”, no qual se elabora © por seus chocolates uma filosofia que no se pretende ser ela propria ciéncia (como aquela de Husserl), mas que se “apoia sobre a cigncia”,o que é totalmente diferente €, até mesmo, 0 contrario. indicam, Os autores que se agrupam sob essa denominagio Fe ‘Hume; pensam descobrir nele um mestre, um filésofo analitico avant la lettre. De onde vem esse sentimento? Podemos evocar varias razdes. Em primeiro lugar, a clareza de seu estilo. Desde Hericlito, classificado “o obscuro”, a expressio do pensamento filoséfico se confronta com odilema que representa sua propria tecnicidade. Como apresentar um pensamento ponto sem pedir ao leitor que também faca um esforgo de linguagem? Dess de vista, cada autor est em um certo nivel de clareza. Hume é certamente um daqueles que, em filosofia, exprime-se com a maior simplicidade clareza. Vimos exemplos desse estilo no capitulo consagrado a indugio, Mas, no basta obviamente escrever de forma limpida para ser filosofo. ‘Também notamos em Hume um sentido do problema filoséfico que contribui para colocar sua escrita a servigo das problemiticas mais gerai ‘Além disso, no interior dessa forma de proceder de Hume reconhecemos facilmente uma atragao pelos problemas fundadores voltados & teoria do conhecimento. Na histéria do pensamento empirista, Locke ¢ Hobbes poderiam ser considerados tao importantes quanto Hume. Como eles 0 precedem cronologicamente, poderiamos esperar que eles se beneficiassem com a prioridade. Ora, isso nao acontece, pois os empiristas do Circulo de Viena nao se referem a cles. Por qué? Porque é Hume que coloca os problemas fundadores, sublinhando de sair de certas aporias. Sobretudo, ele impossibilidade que ele experimenta (0 se autoriza jamais a sair de uma aporia por um decreto metafisico, qualquer que seja, porque qualquer solugdo “metafisica” de um problema Ihe parece, de partida, derriséria ¢ risivel. Os empiristas légicos partilham plenamente desse sentimento, ¢ 6 certamente nele que se funda a fraternidade que eles declaram sentir com respeito a obra de Hume, Uma fraternidade, portanto, negativa, fundada sobre a rejei¢io da metafisica Em 1929, esses autores ~ Otto Hahn, Hans Neurath ¢ Rudolf Carnap (aos quais convém acrescentar Moritz Selick, a quem o documento foi dedicado) ~ publicam um texto destinado a ser 0 programa oficial que permanece, ainda hoje, a exposigio mais concisa ¢ mais nitida do objetivo geral da filosofia analitica. © texto se intitula “A concepgio cientifica do mundo: © Circulo de Viena”. Os aurores se apresentam como os porta-vores da Sociedade Ernst Mach, nome do intransigente delator (morto em 1916) das “mitologias cientificas” que vimos entrar em conflito com a teoria atémica. A celebracao do vigor critico de Mach visa agora, portanto, estabelecer uma “concepgao cientifica do mundo”, que se caracteriza ‘menos por suas teses proprias ~ explicam os autores ~ do que por sua atitude fundamental, Essa atitude visa a “ciéncia unitéria” e da destaque a0 trabalho coletivo, Correlativamente, uma desconfianga & erguida em relagdo s kinguas histéricas. Que algumas ideias, por exemplo, possam ser expressas mais facilmente em uma lingua do que em outra significa, 0s olhos dos membros do Circulo de Viena, nao que existe um “espirito das linguas*, mas uma imperfeigao da abordagem tradicional da filosofia, que pensa poder se exprimir no meio (ntédin) constituido por uma dada lingua vernicula, como se esse meio nao tivesse ele proprio certo efeito sobre a maneira de compreender ¢ julgar. Heidegger vai sustentar, por exemplo, que 0 alemao é a lingua da metafisica; Nietzsche pensava que 0 francés era a ngua da psicologia; e Russell, que o inglés era aquela da iéncia. Mas, aos olhos dos positivistas légicos, todas essas qualificagoes iio provas suficientes do carter insatisfatério das linguas verndculas para a.expressio de um pensamento rigoroso. A ideia de uma lingua que seria a expresso direta do pensamento, um tipo de esperanto do conceito,

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