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6. Materialismo e atomismo O materialismo © termo “materialismo” foi inventado por Leibniz. no inicio do século XVIII reivindicado, pela primeira vez, por La Mettrie, em 1748, em seu livro O homen-mquina, Portanto, foi apenas retrospectivamente que Leucipo, Demécrito, Epicuro ¢ Luerécio foram chamados “materialistas”. Esse materialism implica uma posigao ontolégica frequentemente reivindicada com intransigéncia: 0 mundo € constituido de matéria; 0 proprio espirito é também matéria, Ele se apresenta como uma doutrina sobrea natureza que afirma: “Por convencio existem o doce ¢ o amargo, ‘© quente € 0 frio, ou mesmo a cor; na verdade, apenas existem étomos ¢ * (esse € um dos fragmentos de Demécrito que foi conservado por Lucrécio). Nada, além de atomos ¢ do vazio, existe realmente. Um som 6a matéria (do ar) em movimento. A imagem de um objeto é a matéria em movimento. E assim por diante. vazi Em sua monumental Histoire du matérialisme, o livro de cabeceira de Nietzsche, cuja primeira edigdo data de 1869, Friedrich-Albert Lange apresenta as teorias atomistas da Antiguidade, colocando-as em relagio com seus seguidores modernos na matéria, sua estrutura, sua composicao, sua origem constituem alguns dos principais enigmas que os physiologo# tentavam resolver por meio ica de meados do século XIX, A de especulagées por vezes aventurosas. Antes do século XIX, nenhuma teoria cientifica unificada fornecia a esse enigma solugdo verdadeira, 0 atomismo cientifico Em 1789, 0 quimico francés Antoine Lavoisier (1743-1794) publicou em Paris seu Tratado elementar de quimica, apresentado em uma ordem nova e segundo as descobertas modernas, Essa obra langa as bases da quimica moderna. Lavoisier especifica o conceito de elemento quimico: substancia simples que niio pode ser decomposta em outras substancias. ‘As concepgdes evolugao no ini igidas & natureza da matéria estao, portanto, em plena io do século XIX (momento em que Laplace apresenta na Escola Normal seu curso, 0 qual evoca, como vimos, “o tomo mais Jeve” para Ihe aplicar as leis do movimento de Newton). Essas concepgies tomam relevos diferentes segundo 0 lado em que estivermos do canal da Mancha. No continente, vemos elementos quimicos li onde, na Gri- Bretanha com Dalton, comegamos a ver dtomos. John Dalton (1766-1844) expos pela primeira ver, em 1803, a teoria segundo a qual a matéria seria composta de étomos de massas diferentes {que se combinam segundo proporgdes simples. Essa teoria vai se tornar a pedra angular da quimica. Em 1808, Dalton publica Ut nouveau systéme de philosophie chimique, em que estabelece a lista das massas atémicas de certo ntimero de elementos em comparacao com a massa de hidrogénio. Fis 0 que escreve Jean Perrin (1927, pp. 14-15) a respeito de Dalton: Devemos ao grande Dalton a intuigao genial que daria as teorias moleculares uma importéncia capital na compreensio ¢ na previsio dos fendmenos quimicos. Dalton supds que cada uma das substancias elementares com as quais se compoem os diferentes corpos éformada por um tipo determinado de particulas, todas rigorosamente idénticas, particulas que atravessam, sem se deixar jamais subs fisicas que sabemos provocar e que, indivisiveis por seus meios de agio, iit, as diferentes transformagies quimicas ou podem, portanto, ser chamadas atomos, em sentido etimologico, Os Stomos nao sao, portanto, apenas particulas de matéria indivisiveis nessa primeira teoria atomica. Eles sio também particulas de matéria intercambidveis (“particulas todas rigorosamente idénticas”). Nada distingue um tomo de hidrogénio de um outro dtomo de hidrogenio. Os dtomos so como bolas de bil har: todos reagem exatamente da mesma forma nas mesmas condicdes. Se dois homens nunca reagem da mesma forma nas mesmas cond ies, € porque os homens sao formados por um numero to grande de dtomos que jamais sua organizagao pode ser idéntica, Mas seus componentes elementares, 0s étomos que 0s constituem, sao idénticos ¢ intercambiaveis. Parece, e aqui se trata de um paréntese, que Dalton era também afetado por uma doenga que nao tinha jamais sido notada até entao e que chamamos hoje “daltonismo”. O daltonismo nao consiste, contrariamente a0 que, As vezes, afirmamos, no fato de inverter cores (ci mos geralmente © verde eo vermelho), mas em nao poder distinguir um objeto verde de um ob eto idéntico em tudo, mas de cor vermelha. Portanto, temos aqui um caso de percepgio alterada. Ela interessa ao empirismo, pois mostra que nés nao percebemos todos a mesma realidade. A realidade, o mundo nos aparece, como Kant tinha pressentido, segundo nossa constituigio. £ até possivel dizer o que precisamente esta alterado na constituigio de um individuo e que resulta na sindrome chamada “daltonismo”. Um dos canais pelos quais percebemos as cores do mundo esta modificado. O resultado & que, no espectro de cores, certas nuances nao sio mais percebidas. A cor verde é percebida da mesma forma que a cor vermelha, a qual € percebida como um ci a humanidade se tone daltonica; assim, mais nenhum humano teria za claro. Mas suponhamos que toda experiéncia da nuance que existe entre o verde ¢ o vermelho. Entretanto, no deixaria de existir na natureza. Nos nao temos experiencia sensivel do que é um raio X ou uma particula alpha, os quais atravessam, ho entanto, nés mesmos € nosso ambiente todo dia intensamente. Uma a vermelha nao se tornaria idéntica a uma magi verde, m: poderiamos distingui-las pela cor. Um objeto que nos aparecesse como cinza claro poderia ser verde ou vermelho. A “coisa em si” teria nuances que seriam imperceptiveis por nossos sentidos. Uma humanidade dalténica no é algo totalmente absurdo, Basta uma mudanga quase insignificante em nossa constituigio (uma mutagéo em apenas um gene provoca 0 daltonismo). Ela é uma forma dentre outras de assinalar os limites do empirismo que Kant também havia percebido lendo Hume. Mas pudemos recentemente destacar que certas pessoas afetadas pelo daltonismo possufam, no entanto, um conhecimento da diferenca entre 0 vermelho eo verde, quando eram também afetadas por sinestesia (capacidade de associar cores a letras ou ntimeros, como fez Rimbaud no seu poema célebre “Vogais”: “A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul (...)"; nao E certo que Rimbaud tenha sido sinestésico, mas se 0 foi, além de ter sido também daltonico, ele teria conseguido distinguir 0 vermelho do verde, a despeito de seu daltonismo, gragas As associagbes que estabelecia entre as cores € as letras). Isso parece indicar que 0 conhecimento das cores tem um earater transcendental (independente de todo conhecimento empi argumento suplementar para opor ao empi bastante para esses parénteses. mo radical. Mas isso é 0 Annogio de atomo Se olharmos um objeto em cobre, notaremos facilmente que sua forma é uma coisa, a matéria de que é feito é outra. Uma esfera de cobre, uma folha de cobre, um anel de cobre, um cubo de cobre tm formas diferentes, mas reconhecemos neles a mesma matéria. Percebemos, pelo aspecto visual da matéria, por sua textura, pela impressiio ao toque, certos tragos caracteristicos que sio aqueles do cobre. Tendo inclinagio experimental, poderiamos até imaginar realizar, sobre esse pedago de matéria, diversas experiéncias: aquecé-lo, por exemplo, para ver como cle se comporta quando a temperatura aumenta. E entio constatarfamos, como esperado, que a esfera de cobre,a folha de cobre, o anel de cobre se liquidificam na mesma temperatura (por volta de 1.080°C). Se nés fossemos: nda mais espertos, poderiamos tentar ver se essa matéria transmite ou no sletricidade. E, também nisso, seguramente encontrariamos 0 mesmo resultado com a esfera, a folha, o anel ou com qualquer outra forma que pudesse revestir o pedago de cobre que temos diante de nds. Mas poderiamos também conduzir nossas investigagdes em outro sentido. Poderfamos dizer: 0 que ocorre com essa esfera de cobre, s¢ et corti-la a0 meio? Eu teria, evidentemente, dois pedagos, e sic dois pedagos decobre. A dircita um pedago de cobre, a esquerda outro pedago de cobre, que antes formavam uma esfera (ou qualquer outra forma geométrica). ‘Mas, ser que nao posso refazer essa operagdo, que consiste em cortar em dois um pedago de matéria? Nao posso tomar um dos pedagos e, de novo, corté-lo em dois? Posso certamente fazé-lo, e obterei entao pedagos ‘menores que os primeiros, mas 10 ser ainda pedagos de cobre. Sea esfera inicial pesa trés gramas, dividindo-a uma centena de vezes, eu vou obter tum pedago que nao pesa mais do que alguns centésimos de geamas, Ma ainda é de cobre. Tao longe quanto en possa levar essa operagdo, parece que devo chegar indefinidamente ao mesmo resultado: sempre cobre, Mas se trata mesmo de uma certeza? £ sobre esse ponto precisamente que o atomismo levanta uma objegao. Para 0 atomismo, ¢ j4 0 atomismo antigo, a operacio nao pode continuar indefinidamente, pois, em dado momento, a partir de um certo ntimero de divisdes, atingimos um elemento de matéria que é indivisivel. E esse elemento que é chamado tomo (a-tomos: que nao se divide). Mas o atomismo antigo nada dizi sobre 0 mimero de operagdes de divisio que poderiamos efetuar, Em outros termos, nenhum dos filésofos antigos que sustentaram o ponto de vista emitido pela primeira vez por Demécrito, segundo 0 qual a matéria é formada por dtomos, especificava o tamanho do elemento indivisivel postulado. atomismo acrescentava ainda que existiam varios tipos de atomos gue se combinavam entre si, mas sem precisar quantos tipos de étomos podiam ser distinguidos, nem em virtude de qual lei cles se combinavam (as torias que avangavam nese terreno, como a dos stomos curvos de Lucrécio, nao explicavam de onde vinha seu saber), Tudo isso fazia da 1 tal qual a encontramos na Antiguidade, algo de intuigio atomisti

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