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Apresentação

O diabetes, na perspectiva clínico-epidemiológica, insere-se no grupo


das doenças crônicas não transmissíveis, que apresentam um longo período de
latência, curso assintomático prolongado, acarretando alterações patológicas
irreversíveis com consequente incapacidade residual (Lessa, 1998). Distingue-
se, por oposição etiológica, das doenças não infecciosas e, temporalmente, das
não agudas, segundo Achuti e Azambuja (2004a), ao lado do câncer e das
doenças cardiovasculares e respiratórias crônicas. Embora a designação tenha
sido amplamente usada pela epidemiologia, Lotufo (2004) questiona a sua ge-
neralidade, afirmando haver doenças crônicas para as quais esses critérios não
se sustentam e não se aplicam. O autor sugere que se abandone o amplo leque
de doenças crônicas e que se analisem, detidamente, os seus principais grupos,
com base nos capítulos da Classificação Internacional de Doenças (CID), sem
esquecer de considerar as especificidades contextuais de sua ocorrência.
Entretanto, o importante a reter dessa classificação é o fato de as enfer-
midades crônicas compartilharem, segundo o paradigma causal corrente, um
pequeno número de fatores de risco, que demandam assistência continuada de
serviços e ônus progressivo, na razão direta do envelhecimento dos indivíduos e
da população, e são alvos potenciais de intervenções preventivas como o taba-
gismo, as dislipidemias, a obesidade, o sedentarismo, a própria hipertensão e o
diabetes (Achuti & Azambuja, 2004b).
De modo geral, na sociedade contemporânea, é crescente a presença de
doenças crônicas, e nos países em desenvolvimento, como o Brasil, é comum que
estas convivam com as enfermidades infectocontagiosas e reemergentes. A ex-
pressiva frequência com que incidem sobre os perfis de mortalidade e morbidade
é atribuída ao envelhecimento da população, à alteração na expectativa de vida, à
transição epidemiológica e às mudanças comportamentais e de estilo de vida
(especialmente em relação aos padrões alimentares). A esses fatores, Lotufo
(2004) acrescenta o atual avanço da noção de cidadania e a consequente exten-
são de benefícios, havendo maior pressão por medidas de rastreamento (e, então,
diagnósticos) e preventivas para as pessoas anteriormente excluídas dos serviços
de saúde, advertindo, contudo, para o fato de que, no que se refere à realidade
brasileira, não há reais bases empíricas que permitam falar em tal avanço.

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Sob outro ângulo, a cronicidade pode ser vista como um conceito forjado
pela sociedade ocidental na interação com o sistema de saúde mental (Heurtin-
Roberts & Becker, 1993), para se referir àquelas condições de saúde gerenciadas,
mas não curadas, em que se apresentam sintomas contínuos ou periódicos que,
de certo modo, podem interferir em várias dimensões da vida do adoecido e no
seu entorno. Não obstante a fluidez da sociedade moderna e a centralidade do
conhecimento biomédico no sistema de cura, o conceito é interpretado de forma
diferenciada pelos grupos sociais que, para tanto, se apoiam em conhecimentos
de senso comum sobre as doenças em geral (Canesqui, 2007a).
Essa autora, ao rever a literatura sobre o assunto, verificou que a socio-
logia e a antropologia da medicina, norte-americana e inglesa, apresentam
acúmulos importantes sobre as enfermidades crônicas, por terem enfocado as
concepções leigas e privilegiado, mediante pesquisas qualitativas, o ponto de
vista dos enfermos. As enfermidades crônicas levam a viver “com e apesar da
doença” e incluem as que não ameaçam a vida, mas impõem a aprendizagem e
a convivência com elas, as que impõem ameaça à vida (como o câncer), en-
quanto outras são estigmatizantes ou geram incertezas ao seu portador, com-
pletando-se por outro conjunto de doenças que impõem sofrimento mas são
absolutamente deslegitimadas pelo saber médico (Conrad, 1987, 1990). As en-
fermidades crônicas referem-se a um trabalho autorreflexivo (Dubet apud
Herzlich, 2004) que caracteriza, sob um determinado olhar, a experiência da
doença, voltando a atenção para os aspectos privados, a vida cotidiana, as
rupturas das rotinas, o gerenciamento da doença e a própria vida dos adoeci-
dos, cujos cuidados não se restringem aos serviços de saúde e ao contato com
os profissionais. Contudo, Canesqui (2007a: 20) lembra que
a vivência dos adoecidos crônicos também se molda por um conjunto de
externalidades às experiências, que se referem às políticas sociais e de
saúde, que lhes proporcionam acesso aos serviços de saúde e aos meios
diagnósticos e terapêuticos e a outros condicionantes que interferem
nas suas vidas.
Quanto à literatura nacional, Canesqui (2007a) constatou a escassez de
produção científica na área da saúde coletiva sobre as doenças crônicas e o
predomínio das colaborações epidemiológicas sobre as sociológicas e antropoló-
gicas, e sugeriu maior atenção, da pesquisa de ciências sociais no campo da
saúde, para aquelas enfermidades. Analogamente, no contexto brasileiro, o dia-
betes figura como uma doença crônica pouco estudada pela socioantropologia,
apesar de sua magnitude e do fato de constituir um evento significativo na
biografia das pessoas, pois sendo uma doença de longa duração e processual,
envolve boa parcela da vida dos adoecidos.

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A pesquisa aqui apresentada resultou da tese de doutorado desenvolvida
no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade
de Campinas, concluída em 2006. Consiste na análise das representações sociais
e da experiência com o diabetes em adultos residentes em um bairro popular de
Piracicaba, São Paulo, articulando a dimensão simbólica, com base nos signifi-
cados e no sentido atribuído à enfermidade, com a dimensão concreta do seu
gerenciamento presente nas ações organizadas, situadas e vivenciadas pelos
adoecidos. Para se compreender melhor esse objeto, foram analisados de for-
ma complementar mais dois aspectos envolvidos na vivência do diabetes: as
características do saber biomédico e as intervenções oficiais dirigidas à doença
em relação aos seus fundamentos, definição, classificação, tratamento e pre-
venção, bem como as ideias, os conceitos e as formas de lidar com o diabetes
e com os diabéticos, expressos por familiares e pelos profissionais da saúde dos
serviços locais de saúde de referência à população selecionada.
Devido à cronicidade, o processo de vivência da doença (iniciado antes
do diagnóstico) se estende por toda a vida do adoecido, obrigando-o a desen-
volver formas personalizadas de pensar sobre a sua condição e com ela lidar, e
envolve fatores de ordem estrutural, simbólica, do contexto da vida diária, da
biografia, da experiência (prévia e atual, pessoal e de outras pessoas) e do
próprio curso da doença. Esses fatores e as formas de interpretar e gerenciar
a doença mantêm uma relação recíproca em que os elementos envolvidos são
constantemente atualizados, definidos, redefinidos, inovados, reinterpretados,
transformados ou reproduzidos.
Assim, a opção de estudar as representações sociais e a experiência dos
adoecidos de diabetes foi motivada pelos seguintes aspectos: a importância
epidemiológica dessa doença no quadro das condições de saúde, também ex-
pressa na atual ênfase das ações e programas oficiais da política nacional de
saúde, podendo este estudo contribuir com o processo de planejamento de ações
mais sensíveis e coerentes com as especificidades socioculturais e contextuais
dos diferentes grupos sociais; a carência de pesquisas sobre as enfermidades
ou condições crônicas específicas, constatada nas revisões sobre a produção
científica na área de antropologia e saúde; a escassez de estudos qualitativos
sobre o diabetes; a oportunidade de articular os planos micro e macroanalíticos
no estudo do adoecimento por meio das representações sociais e da experiên-
cia da doença.
Para justificar o aprofundamento na discussão sobre a representação
social e a experiência da enfermidade, recorro a Geertz (1989: 18), para quem
“os estudos constroem-se sobre outros estudos, não no sentido de que retornam
onde outros deixaram, mas porque melhor informados e melhor conceitualizados,

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eles mergulham mais profundamente nas mesmas coisas”. Acredito que este
estudo, apesar de proporcionar informações restritas a uma situação específi-
ca, em dado espaço e tempo, poderá contribuir com categorias teórico-conceituais
generalizáveis que se constituam em parâmetros para investigações de outras
doenças crônicas, em outros lugares e momentos. No estudo aqui relatado,
optei pela metodologia qualitativa e por uma abordagem socioantropológica,
por privilegiar (não exclusivamente) a perspectiva do sujeito. Os dados não se
restringiram aos adoecidos e seus discursos, mas abrangeram também os pro-
fissionais da saúde e o discurso biomédico, por se constituírem em importantes
matrizes de significado, integrando o objeto em questão. As técnicas para cole-
ta dos dados compreenderam a pesquisa documental, a entrevista, o relato oral
e a observação em campo (bairro, residência, unidade de saúde) própria do
método etnográfico.
O estudo das representações sociais, com outros elementos contextuais e
com o privilégio do ponto de vista dos adoecidos, pode informar sobre as formas
de pensamento que permeiam as relações na sociedade e que influenciam, em
parte, as formas de lidar com a enfermidade. Pretende-se, aqui, contribuir com a
formulação e implementação de ações em saúde que sejam culturalmente mais
adequadas ou, ao menos, não conflitivas com os valores de grupos sociais-alvo.
O conceito de representações sociais aqui adotado fundamenta-se na
abordagem herzlichiana, que as entende como construções mentais com
enraizamentos social e histórico, mas também como interpretação e questão de
sentido e cuja análise comporta diferentes níveis, como o macrossocial, o
microssocial e o singular/biográfico. A experiência da doença, por sua vez,
apresenta-se como um fluxo de eventos, processos corporais e trajetória de
vida, tomando lugar em um cenário social conectado; portanto, aos contextos
social e cultural e à biografia pessoal, que moldam a condição do adoecido.
O suporte teórico fenomenológico mostrou-se adequado, mas as interações
face a face que o caracterizam foram extrapoladas para as relações sociais
históricas mais amplas, isto é, dos homens com o seu corpo e a sociedade.
Trabalhou-se com os polos representacional e o da experiência em arti-
culação, relativizando-se as determinações e reducionismos sociais, culturais
ou individuais. Dessa forma, levou-se em conta o sujeito em ação lidando com
as contingências da vida diária e atribuindo sentido aos acontecimentos na diver-
sidade de matrizes de significados disponíveis às quais está exposto na sociedade
contemporânea. Esse movimento não se dá em mão única, mas em uma influên-
cia circular, que tem como pano de fundo elementos que podem constranger ou
viabilizar a conformação da interação. Os elementos estruturais, contextuais
(sociais e culturais), simbólicos e biográficos foram considerados na análise

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das representações sociais e da experiência da doença, observando-se os pla-
nos de análise que comportam.
A abordagem teórica aqui adotada foi designada como construtivista
integradora, por partir da compreensão de que a realidade social se constitui
pelas ações interacionais e interpretativas dos sujeitos sociais, reconhecendo,
concomitantemente, a participação de elementos da estrutura social nesta
constitutividade, o que a distancia da perspectiva construtivista radical. Assim,
a análise do adoecimento relativizou tanto a determinação social ou cultural
quanto a autonomia/liberdade do indivíduo, tomando esses termos em uma rela-
ção de influência circular ou recíproca. Como desdobramento, empreendeu-se
uma integração dos níveis de análise (nos planos macrossocial, microssocial e
biográfico) efetivada pela abordagem articulada das representações sociais e
da experiência da enfermidade que comportam tais dimensões.
O volume está organizado em seis capítulos. No primeiro, procede-se à
verificação do estado da arte pela revisão crítica da literatura socioantropológica
sobre o diabetes, destacando-se os limites e as possibilidades das abordagens, e
explicitam-se os conceitos-chave e os fundamentos teóricos das representa-
ções sociais e da experiência da enfermidade adotados, bem como a proposta
da abordagem integradora como forma de articulá-los.
O esclarecimento sobre a metodologia qualitativa utilizada figura no se-
gundo capítulo, no qual se descreve o percurso do estudo, seu delineamento, as
técnicas e os instrumentos empregados na coleta dos dados, a seleção dos
sujeitos e a sua caracterização, a operacionalização do trabalho de campo (co-
leta de dados primários mediante a realização de entrevistas, e de dados secun-
dários nas fontes textuais), o tratamento e a análise dos dados.
No terceiro capítulo analisa-se o saber biomédico em relação à sua cons-
trução e às características do conhecimento e da prática clínica, bem como a
intervenção dirigida ao diabetes em seus aspectos teóricos e técnicos mais
gerais, recorrendo-se à literatura básica sobre a enfermidade e a documentos
oficiais da política nacional de saúde dirigida a essa doença.
Nos dois capítulos seguintes, debruçou-se sobre o material de caráter
etnográfico, dando voz aos profissionais da saúde vinculados à medicina cientí-
fica e aos adoecidos no tocante aos aspectos das representações, da experiên-
cia e do gerenciamento do diabetes. As representações sobre o diabetes, sua
etiologia e classificação, os pontos-chave do tratamento assentado na catego-
ria central do controle da enfermidade (obtido pela tríade medicação, dieta,
exercícios físicos) e as ideias gerais sobre o paciente diabético com as suas
características mais marcantes foram focalizados na perspectiva dos profissio-
nais da saúde e compõem o quarto capítulo. No quinto capítulo são trazidas à
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discussão as formas de pensar e gerenciar o diabetes do ponto de vista dos
adoecidos na sua vivência com essa enfermidade desde a compreensão da sua
origem e o processo de descoberta formalizada pelo diagnóstico médico. Dian-
te disso, verificou-se que tanto os conceitos são revistos em função da experi-
ência como esta é interpretada e se apoia em elementos ideativos mais gerais
sobre a saúde, a doença e os elementos relacionados ao controle e tratamento
do diabetes.
No sexto capítulo são apresentados dois estudos de caso sobre a vivência
do diabetes, relatados por uma mulher e por um homem. O volume se encerra
com uma síntese dos principais aspectos evidenciados na investigação, desta-
cando-se algumas das divergências e convergências nas formas como os adoeci-
dos e os profissionais da saúde pensam sobre o diabetes e com ele lidam.
A esse respeito, observou-se que, em ambos os segmentos, o adoecimento
mobiliza saberes e práticas que, reciprocamente, são reelaborados em função
da experiência vivida, além de passarem pelo filtro das representações, popula-
res e eruditas, e pela intermediação de elementos contextuais.
Gostaria de registrar meus sinceros agradecimentos a todos que, de al-
guma maneira, contribuíram para a existência deste trabalho, entre os quais
destaco os sujeitos da pesquisa, pela generosidade e disponibilidade em relatar
suas experiências, o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPq), pelo financiamento do projeto, e a Secretaria de Estado
de Saúde de Mato Grosso, por minha liberação integral das atividades, que foi
fundamental para a conclusão da pesquisa no tempo regulamentar. Agradeci-
mento especial dirijo à profa. dra. Ana Maria Canesqui, por quem tive o privilé-
gio de ser orientada – sua competência, presença e apoio iluminaram (e ilumi-
nam) decisivamente esta caminhada.

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