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A lenda da Gruta do Bicho

GUAECÁ É uma das mais belas praias de São Sebastião. Nesta praia, existe uma grande gruta. Sua entrada é bem grande e, quanto mais se penetra nela, seu tamanho vai diminuindo até não passar mais
nada. De suas entranhas, goteja água constantemente.
       Contam que aí, muito tempo atrás, morava uma enorme serpente. Esta serpente era maligna. Atraía para si as embarcações e devorava seus tripulantes. O terror era tanto que as embarcações
procuravam navegar bem distante da praia.
       Nesse período, Anchieta viajava de Bertioga para Ubatuba e ficou sabendo da serpente pelos marinheiros do navio em que navegava. Intrigado, Anchieta resolveu verificar se era verdade o que lhe
contavam. Desembarcou em Barequeçaba, subiu o Morro das Sete Voltas e ficou esperando para ver a enorme serpente.
       Depois de um certo tempo de espera, o monstro saiu da gruta. Era feio e enorme. Anchieta não teve medo pois Deus estava a seu lado. Fez uma oração e aspergiu água benta na enorme serpente... Esta
soltou um urro tenebroso e começou a vomitar sangue dos náufragos que tinha devorado. Anchieta continuou a rezar e a aspergir água benta. A serpente não agüentou mais: saiu da gruta e jogou-se no mar.
       As águas que gotejam na gruta, dizem que é milagrosa. Acreditam ser a água benta de Anchieta que protege o lugar para que o monstro nunca volte.

VIVIANE, Patrícia (org.).  Mitos e lendas de São Sebastião. il.


Marcelo Brossler Toledo.  3.ed.  São Sebastião SP : Secretaria
de Cultura e Turismo, 1996.  p. 17.

Kaguya Hime
UM CASAL DE VELHINHOS morava bem ao fundo de um bambuzal... Eles não tinham filhos e viviam modestamente fazendo cestos e caixotes de taquara.
Certo dia, quando o velhinho cortava bambus, viu que um deles brilhava muito pela raiz. "Mas o que será isso?" Curioso, o velhinho cortou o bambu com o
machado. Dentro do bambu, uma linda menininha! Ela era tão pequenina que cabia na palma da mão. O velhinho levou a menina para casa e mostrou para

a mulher: "Foi Deus quem nos enviou!" A velhinha também ficou muito feliz e disse:
       __ Vamos chamá-la de Kaguya Hime!

       Depois desse dia, o velhinho começou a encontrar outros bambus brilhando. E, de dentro, saíam muitas moedas de ouro. Só havia uma explicação: era a
menina quem lhes trazia tanta sorte.
       Kaguya Hime cresceu rápido. Depois de três meses, ela se transformou em uma bela moça, tão bela quanto um raio de luar. Logo a beleza da jovem
começou a ser comentada pela região. Muitas pessoas vinham só para vê-la e formava-se uma longa fila em frente a casa. Pretendentes também não paravam

de chegar: alguns vinham de muito longe, outros eram pessoas importantes. Mas ela...
       Ela não queria se casar com ninguém!
       No entanto, cinco dos pretendentes vinham todos os dias, sempre com pedidos de casamento. Kaguya Hime então disse "Se algum de vocês conseguir
trazer os objetos que eu pedir, então me casarei com essa pessoa: um vaso de pedra dos deuses que nunca se quebra, o galho de uma árvore de pedras

vermelhas, um manto de pele de animal que não se queima no fogo." Os objetos que Kaguya Hime pediu eram todos impossíveis de serem conseguidos. Os
pretendentes tentaram falsificá-los, mas todos foram desmascarados.
       Um dia, o próprio príncipe chegou à casa de Kaguya Hime:
       __ Sua beleza é ainda maior que sua fama. - e ele pediu: Gostaria muito que se casasse comigo. Mas a moça respondeu: "Eu não posso me casar com

ninguém." O príncipe respeitando a sua vontade, voltou triste para o seu palácio.
       As cores do Outono tingiam o céu...

       Kaguya Hime começou a olhar para a lua, com grande tristeza... uma tristeza que ia aumentando a cada dia. Os pais ficaram muito preocupados e,
então, perguntaram:

       __ Por que você fica olhando a lua, assim tão triste?
       __ Estou triste porque logo preciso ir embora. Na verdade vim de muito longe. Sou uma princesa do reino da lua e, na próxima cheia, virão me buscar.

       Os velhinhos ficaram muito assustados: como se separar de uma filha tão querida?

       Chegou a temida noite de lua cheia.


       Os velhinhos pediram ajuda ao príncipe que enviou um batalhão de mil homens para impedir que alguém se aproximasse da casa. A princesa foi levada

para o quarto dos fundos e os velhinhos aguardaram ao lado da jovem.


       De repente, a lua começou a brilhar, brilhar, brilhar cada vez mais forte. "Preparem os arcos!" -- gritou o chefe da Guarda! Cegos com a luz da lua,

ninguém pôde ver a chuva de pétalas que caía, nem a grande comitiva que descia, montada em nuvens, trazendo uma carruagem dourada... Quando todos
puderam abrir os olhos, a comitiva já ia alta, levando embora a princesa.

       CONTAM AINDA que Kaguya Hime deixou para os pais uma poção mágica de vida eterna. Mas sem a filha querida, os velhinhos não quiseram viver
eternamente. Então, queimaram a poção na montanha mais alta e, até hoje, um fio de fumaça bem branquinha continua subindo ao céu, ou talvez, até a lua...
essa montanha é o Monte Fuji.

KAGUYA HIME, a princesa da lua.  adapt. Lúcia Hiratsuka e Peter O'Sagae.


Narração: Bia Grimaldi.  In:  MUKASHI... IMA - contos e lendas do Japão. São
Paulo: Casa de Bambu/MCD, 1997.  faixa 1.

História do Grão-de-Milho
ERA UMA VEZ uns casados e não tinham filhos. A mulher tanto pediu a Nossa Senhora que lhe desse um filho, ainda que fosse do tamanho de um greiro de

milho, que ao fim de nove meses ela pariu um filho, mas tão pequeno, tão pequeno, que era mesmo do tamanho de um greiro de milho. Foi-se passando
tempo e o pequeno não crescia nada, de sorte que ficou sempre do mesmo tamanho.
       O pai era lavrador e, quando andava a trabalhar no campo, era o Grão-de-Milho que lhe ia levar o jantar numa cesta; mas, como era tão pequeno,
ninguém o via o que fazia correr aquela cesta pela rua abaixo. O pai recomendava-lhe que não se chegasse para o pé dos bois, mas uma vez que ele tinha ido
levar o jantar ao pai, a brincar trepou para cima de uma folha de milho e um dos bois, pensando que era um greiro de milho, lambeu-o com a língua. O pai
quando quis voltar para casa, por mais que o procurasse não deu com ele, mas tanto chamou que por fim ouviu responder que o boi o tinha comido e estava

dentro da tripa. O pai ficou muito aflito e matou logo ali o boi e começou a procurá-lo nas tripas, mas por mais que procurasse não o encontrou, até que
deixou ficar tripas e tudo. De noite um lobo, atraído pelo cheiro da carne, veio e comeu as tripas do boi, e deitou a fugir. O lobo teve umas grandes dores de

barriga e o Grão-de-Milho começou a gritar-lhe: "C... aí, c... aí!" Mas o lobo, ouvindo isto teve tanto medo que mais fugia e não podia obrar. O Grão-de-
Milho continuava a gritar: "C... aí, c... aí!", até que o lobo tão atrapalhado se viu que fez as suas necessidades.
       O Grão-de-Milho logo que saiu para fora, lavou-se muito bem lavado numa pocinha que ali estava e foi por ali fora. No meio caminho encontrou uns
almocreves que levavam os machos carregados de dinheiro e disse-lhes.

       De repente, saltam uns ladrões, matam os almocreves e levam os machos com o dinheiro para uma casa que havia nuns pinheirais. O Grão-de-Milho,
como ia medito numa alforjes, foi também sem ser pescado. Os ladrões despejaram o finheiro em cima de uma grande mesa e começaram a contá-lo. O Grão-
de-Milho pôs-se debaixo da mesa e começou a gritar: "Quem dá dé-reis, quem dá dé-reis!" Os ladrões, assim que ouviram isto, tiveram tanto medo que
deitaram a fugir. Então o Grão-de-Milho ensacou o dinheiro, pô-lo em cima dos machos e foi para casa.

       Quando lá chegou, era ainda de noite e bateu à porta. O pai perguntou: "Quem está aí?" e ele respondeu: "Sou eu, meu pai; abra depressa." O pai veio
logo abrir a porta e o Grão-de-Milho contou-lhe então tudo, entregou-lhe os machos e o dinheiro e o lavrador, que era pobre, ficou muito rico.
(Coimbra)

COELHO, Adolfo.  Contos populares portugueses.   5.


ed.  Lisboa: Dom Quixote, 1999.   pp. 181-182.

O Bicho Manjaléu
ERA UMA VEZ um velho que tinha três filhas muito bonitas, mas um velho muito pobre, que vivia de fazer gamelas. Uma vez passou pela sua casa um lindo
moço a cavalo; parou e declarou que comprar uma das moças. O velho se ofendeu; disse que por ser pobre não era nenhum malvado que andasse vendendo

as filhas; mas diante das ameaças do moço teve que aceitar o negócio. Lá se foi a sua primeira filha na garupa do cavaleiro, e o velho ficou olhando para o
ouro recebido.
       No dia seguinte apareceu outro moço, ainda mais lindo, montado num cavalo ainda mais bonito e propôs-se a comprar a filha do meio. O velho, bastante

aborrecido, contou o que se tinha passado com a primeira, e não quis aceitar o negócio. O moço ameaçou matá-lo, e também lá se foi com a segunda moça na
garupa, deixando com o velho dois sacos de dinheiro.
       No dia imediato apareceu terceiro moço e depois da mesma discussão lá se foi com a derradeira moça na garupa, deixando em troca três sacos de
dinheiro.

       O velho ficou muito rico, mas sem as filhas, e começou a criar com grandes mimos um filhinho que havia nascido fora de tempo. Quando já estava na
escola esse menino teve uma briga com um companheiro, o qual lhe disse: "Você está prosa por ter pai rico, mas saiba que ele já foi um pobre diabo que vivia

de fazer gamelas. Está rico porque vendeu as filhas."


       O menino voltou pensativo para casa, mas nada disse. Só quando ficou moço é que pediu ao pai que lhe contasse a história das três irmãs vendidas. O pai

contou tudo e ele resolveu sair pelo mundo em procura das irmãs.
       No meio do caminho encontrou três irmãos brigando por causa duma bota, duma carapuça e duma chave. Indagando o valor daquilo, soube que eram

uma bota, uma carapuça e uma chave mágicas. Quando alguém dizia à bota: "Bota, bote-me em tal parte!" a bota botava. E se diziam à carapuça:
"Carapuça, encarapuce-me!" a carapuça encarapuçava, isto é, escondia a pessoa. E se diziam à chave: "Chave, abre!" a chave abria qualquer porta.
       O moço ofereceu pelos três objetos o dinheiro que trazia e lá se foi com eles.
       Logo adiante parou e disse: "Bota, bote-me em casa de minha primeira irmã." Mal acabou de pronunciar tais palavras, já se achou na porta de uma

palácio maravilhoso. Falou com o porteiro. Pediu para entrar, dizendo que a dona do palácio era sua irmã. A irmã soube de sua chegada, acreditou em suas
palavras e o recebeu muito bem.

       __ Mas como conseguiu chegar até aqui, meu irmão?


       __ Por meio da bota mágica - respondeu ele.

       E contou toda a história de sua partida e do encontro dos três objetos mágicos.
       Tudo correu muito bem, mas assim que começou a entardecer a irmã pôs-se a chorar.
       __ Por que chora, minha irmã?
       __ Ah - respondeu ela - choro porque sou casada com o rei dos Peixes, um príncipe muito bravo que não quer que eu receba ninguém neste palácio. Ele

não tarda a chegar, e mata você, se enxergar você aqui...


       O moço deu uma risadinha, dizendo:
       __ Não tenha medo de nada. Com a carapuça mágica saberei esconder-me.
       O rei chegou e logo levantou o nariz para o ar, farejando: - "Sinto cheiro de gente de fora!" mas a rainha mostrou que não havia por ali ninguém e ele

sossegou. Tomou um banho e se desencantou num lindo moço.


       Durante o jantar a rainha fez esta pergunta:

       __ Se aparecesse por cá um irmão meu, que faria vossa Majestade?


       __ Recebia-o muito bem - disse o rei - porque o irmão da rainha, cunhado do rei é. E se ele está por aqui, que apareça.
       O irmão encarapuçado apresentou-se, sendo muito bem recebido. Contou toda a sua história, mas não aceitou o convite de ficar morando ali por ter de
continuar pelo mundo em procura das outras irmãs. O rei olhou com inveja para as botas mágicas, dizendo: "Se eu as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."

       Na hora da partida o rei deu-lhe uma escama. "Quando estiver em apuros, pegue nesta escama e diga: Valha-me, rei dos Peixes!"
       O moço agradeceu o presente e lá se foi depois de dizer à bota: "Bota, bote-me na casa de minha segunda irmã", e imediatamente se achou defronte de

outro palácio, onde foi recebido pela segunda irmã, que era a esposa do rei dos Carneiros. "Meu marido logo chega por aí, a dar marradas a torto e a direito,
e você não escapa."

       __ Com a minha carapuça escapo - respondeu o rapaz, rindo-se. E contou a virtude da carapuça encantada. E de fato foi assim, correndo tudo direitinho
como lá no palácio do reis dos Peixes. Na hora da partida o rei dos Carneiros disse: "Tome este fio de lã. Quando estiver em apuros, basta que pegue nele e
diga: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Em seguida, olhou com inveja para as botas mágicas. "Se as pilhasse, iria ver a rainha de Castela."
       Logo que o moço se viu na estrada, parou e disse à bota. "Bota, bote-me em casa da minha terceira irmã", e a bota botou-o no portão dum terceiro

palácio ainda mais belo que os outros. Era ali o reino do rei dos Pombos, onde tudo aconteceu como no reino do rei dos Peixes e no reino do rei dos
Carneiros. Foi muito bem recebido e festejado, até que na hora da partida o rei do Pombos suspirou olhando para as botas, e disse: "Se eu pilhasse essas

botas, iria ver a rainha de Castela." Em seguida deu ao moço uma pena, dizendo: "Quando estiver em apuros, pegue nesta pena e diga: "Valha-me, rei dos
Pombos!"

       Logo que o moço se viu na estrada, pôs-se a pensar na tal rainha de Castela que os três príncipes queriam visitar, e disse à bota mágica: "Bota, bote-me
no reino da rainha de Castela!" e num instante a bota o botou lá.

       Soube que era uma princesa solteira, tão linda que ninguém passava pela frente de seu palácio sem erguer os olhos, na esperança de vê-la à janela - mas a
princesa tinha jurado só se casar com quem passasse pelo palácio sem erguer os olhos.
       O moço então passou pela frente do palácio sem erguer os olhos e a princesa imediatamente casou com ele. Depois do casamento a princesa quis saber

para que serviam aqueles objetos que ele sempre trazia consigo - e o que mais a interessou foi a chave de abrir todas as portas.
       A razão disso era haver no palácio uma sala sempre fechada, onde o rei não permitia que ninguém entrasse. Nela morava o Manjaléu - um bicho feroz,
que por mais que o matassem revivia sempre. A princesa andava ardendo de curiosidade de ver o bicho Manjaléu, e certa vez, em que o rei e o marido foram
à caça, pegou a chave e abriu a porta da sala do mistério. Mas o bicho feroz pulou e agarrou-a, dizendo: "Era você mesma que eu queria!" E lá se foi para a

floresta com a pobre moça ao ombro.


       Quando o rei e o marido da princesa voltaram da caça e souberam do acontecido, ficaram desesperados. Mas o dono das botas mágicas prometeu

consertar tudo. Agarrou-as e disse: "Bota, bote-me onde está minha esposa." E a bota botou-o.
       O moço encontrou a princesa sozinha, pois que o Manjaléu andava pelo mato caçando.

       __ Minha querida esposa - disse ele - precisamos dar cabo desse monstro feroz, mas para isso é necessário que eu saiba onde é que ele tem a vida. A vida
do Manjaléu está tão bem oculta que todas as tentativas para matá-lo têm falhado. Trate de saber onde ele tem a vida.

       A princesa prometeu que assim faria, e quando o Manjaléu voltou deu jeito da conversa recair naquele ponto. Manjaléu desconfiou.
       __ Ahn! Quer saber onde eu tenho a vida para me matar, não é? Não conto, não.
       Mas a princesa, teimosa, tanto insistiu durante dias que o bicho Manjaléu resolveu contar tudo. Antes disso ele amolou, bem amolado, um alfanje,
dizendo: "Vou contar onde está minha vida mas se perceber que alguém quer dar cabo de mim corto sua cabeça com esse alfanje, está ouvindo?"

       A princesa aceitou a proposta. Ele que contasse tudo que ela ficaria com pescoço às ordens do alfanje, no caso de alguém atentar contra a vida do
monstro. E o bicho Manjaléu então contou: "Minha vida está no mar. Lá no fundo há um caixão; nesse caixão há uma pedra; dentro da pedra há uma

pomba; dentro da pomba há um ovo; dentro do ovo há uma velinha, que é a minha vida. Quando essa vela se apagar, eu morrerei."
       No dia seguinte, quando o bicho Manjaléu saiu novamente a caçar, o marido da princesa, que estivera escondido pela carapuça, apresentou-se. "E

então?" - perguntou. A princesa contou-lhe direitinho tudo que ouvira ao monstro.


       O moço dirigiu-se à praia do mar e pegou na escama, dizendo: "Valha-me, rei dos Peixes!" E imediatamente o mar se coalhou de peixes que indagavam
do que ele queria.
       __ Quero saber em que ponto do fundo do mar há um caixão assim e assim.

       __ Eu sei - respondeu um enorme baiacu. - Ainda há pouquinho esbarrei nele. Esse caixão está em tal e tal parte.
       __ Pois quero que me tragam aqui esse caixão.
       Os peixes saíram na volada; logo depois apareceram empurrando um caixão para a praia. O príncipe abriu-o e encontrou a pedra. Como quebrá-la?
Lembrou-se do fio de lã. Pegou no fio de lã e disse: "Valha-me, rei dos Carneiros!" Imediatamente apareceram inúmeros carneiros, que deram tantas

marradas na pedra que a partiram.


       Enquanto isso, lá longe, o Manjaléu, com a cabeça no colo da princesa e o alfanje na mão, ia sentindo coisas esquisitas.

       __ Minha princesa - disse ele - estou me sentindo doente. Alguém está mexendo na minha vida.
       E sua mão apertou o cabo do alfanje.
       A princesa engambelou-o como pôde, para ganhar tempo. Ela saiba que seu marido, estava em procura da vida do monstro.
       Assim que os carneiros quebraram a pedra, uma pombinha voou de dentro e lá se foi pelos ares. O moço lembrou-se da pena, pegou-a e disse: "Valha-

me, rei dos Pombos!" Imediatamente o ar se encheu de pombos, que o moço mandou voarem em perseguição da pombinha. Os pombos foram atrás dela e a
pegaram. O moço tomou-a, espremeu-a e fez sair um ovo.

       Lá longe o Manjaléu se sentia cada vez mais pior. Começava a desfalecer; e como não tivesse dúvidas sobre o que era aquilo, foi levantando o alfanje
para degolar a princesa. Mas não teve tempo. O moço havia quebrado o ovo e assoprado a velinha. A mão do Manjaléu moleou - e seus olhos fecharam-se

para sempre.
       Estava o reino de Castela livre daquele horrendo monstro. O moço levou a princesa para o palácio, onde o rei a recebeu com lágrimas nos olhos. E para
comemorar o grande acontecimento decretou uma semana inteira de festas. E acabou-se a história.

MONTEIRO LOBATO, José Bento.  Histórias de Tia Nastácia.   São


Paulo: Brasiliense, 1972.  Obras Completas - vol. 4A.   pp. 102-5.

Almofadinha de Ouro
ERA UMA VEZ UMA MENINA muito bonita e graciosa, filha única, e que teve a infelicidade de ficar órfã da mãe. Seu pai ainda ficou e casou novamente,

com uma viúva que tinha uma filha, pondo-se mocinha e muito feia e orgulhosa. A madrasta, na presença do marido, tratava a enteada bem, mas como esse
vivia viajando, vingava-se, obrigando-a a trabalhos pesados, como lavar roupa, limpar a estrebaria, o galinheiro, a casa inteira, etc.. A mocinha começou a
viver amargurada e sofrendo toda a espécie de privações e insultos. De tanto padecer, perdeu a paciência e achou que o remédio era fugir daquele
purgatório.

       Antes de tomar essa decisão, a moça rezava todas as noites à Nossa Senhora, que era sua madrinha, pedindo que lhe ensinasse os caminhos do bom
proceder. Nossa Senhora virou-se numa velhinha e falou com ela no caminho do rio, explicando tudo. Abençoou-a e lhe deu uma almofadinha de ouro que

era encantada. Quando precisasse de alguma coisa, pedisse à almofadinha de ouro que fora dotada por Deus com poderes.
       Deixando a casa, a moça andou muitos dias, com fome e sede, e acabou encontrando uma ocupação num palácio vistoso, residência de um príncipe

solteiro e muito agradável.


       A moça, para não causar suspeitas e despertar maldades, sujou o rosto e andava tão imunda que só lhe deram o serviço de tratar das galinhas e dos

porcos, dormindo no fundo do quintal, num quartinho escuro e isolado do palácio.


       Dia vai e dia vem, anunciaram três dias de festas e toda a gente ficou influída para esse divertimento preparando as roupas novas, encomendando os
arranjos e fazendo cálculos. O príncipe era um dos mais alegres e as moças da cidade desejavam que ele se engraçasse de uma delas e casasse, por ocasião das
festas.

       Chegando o primeiro dia, o príncipe foi para o baile e os empregados do palácio fugiram para ver as luzes e a entrada das pessoas que iam dançar. A
princesa-velha, mãe do príncipe, foi também.

       Ficando sozinha, a moça tomou banho, penteou-se e pediu à almofadinha de ouro que lhe desse um vestido cor do campo com suas flores e uma
carruagem com criados.

       Apareceu, incontinente, o pedido, e a moça vestiu-se e compareceu à festa, causando um assombro pela sua formosura e lindeza de traje. O príncipe
largou todas as outras e só dançou com ela. Como lembrança do encontro, fez-lhe presente um anel. Perto da meia-noite a moça desapareceu, fugindo para
casa onde trocou a roupa, o vestido e o carro sumiram.
       No segundo dia aconteceu a mesma coisa. A moça levou um vestido cor do mar com todos o seus peixinhos e o príncipe ficou encantado por ela,

dançando, servindo-a e conversando. Deu-lhe uns brincos. Antes da meia-noite a moça não foi encontrada em parte alguma. Já estava em casa, suja e feia
como habitualmente parecia aos olhos de todos.
       No terceiro dia, o mesmo sucedido. Desta vez o vestido era da cor do céu com todos os seus astros e a moça encandeava a vista pelo brilho das jóias. O
príncipe só faltava gritar de contente. Presenteou-lhe um colar e ficou triste quando ela desapareceu, antes da meia-noite.

       Passados os três dias, só se falava na cidade naquele assunto da moça desconhecida, com os três vestidos mais bonitos do mundo. O príncipe procurou-a
como um cego procura a luz e não a encontrou em parte alguma. Estava tão apaixonado que adoeceu de cama, trancou-se no quarto e só deixava entrar sua

mãe. Todo mundo lastimava a doença do príncipe e os médicos não tinham mais remédio para aconselhar nem receita que servisse. O príncipe nem queria
comer e a princesa-velha fazia as maiores promessas para que o filho se alimentasse, fosse como fosse.
       Um dia a moça disse à princesa-velha que queria fazer um bolo para o príncipe doente. A princesa achou graça no atrevimento, mas tanto a moça pediu
e rogou que obteve o consentimento. Preparou-se, foi para a cozinha e fez um bolo dourado, colocando dentro da massa o anel que o príncipe lhe dera na

primeira noite do baile.


       O príncipe nem queria ver a comida, mas sua mãe tanto pediu que ele cortou um pedaço do bolo e, ao levar à boca, reparou num objeto que aparecia na

parte restante do prato. Puxou com o bico da faca e reconheceu o anel. Comeu todo o bolo, melhorando, e declarou que queria outro bolo feito pela mesma
pessoa. A moça fez outro bolo e neste mandou o brinco, que o príncipe achou e ficou certo que a moça estava por perto. Pediu outro bolo e neste veio o colar.

Então sem ter mais dúvida, disse à princesa-velha que mandasse ao seu quarto quem fizera os três bolos. A princesa obrigou a moça a mudar de roupa,
perfumar-se para tirar o mau cheiro do galinheiro, e disse que se apresentasse ao seu filho.
       A moça subiu a escada, com a almofadinha de ouro na mão, e assim que bateu na porta, pediu que lhe aparecesse no corpo o vestido do terceiro dia da
festa, dos pés à cabeça. Quando a porta se abriu e ela entrou, o príncipe deu um grito de alegria, levantou-se da cama bonzinho de saúde, chamando pela mãe

e mostrando a moça que estava mais bonita do que nas noites passadas.
       Casaram-se imediatamente, contando a moça sua história, e foram felizes até a morte.

Laurença Maria da Conceição.


São José de Mipibu. Rio Grande do Norte.

CASCUDO, Luís da Câmara.  Contos tradicionais do Brasil. Belo


Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universi-dade de São
Paulo, 1986.   pp. 62-3.
O Voador
Era uma vez um caçador que, entrando em uma floresta para caçar, ouviu um choro de criança. Aproximou-se do lugar de onde ele vinha, e viu, no alto de

uma árvore, uma criancinha que para lá fora levada por uma ave de rapina, que a arrancara dos braços da mãe, que adormecera debaixo da árvore.
       O caçador trepou na árvore e tirou a criança, um menino, disposto a levá-lo para casa e criá-lo, junto com sua filhinha Lina. De fato, as duas crianças
cresceram juntas.
       Como fora levado por uma ave para o alto de uma árvore, o menino ficou chamando Voador. Voador e Lina gostavam tanto um do outro, que ficavam

muito tristes quando tinham de se separar.

       O caçador tinha uma cozinheira que todas as tardes pegava dois baldes e ia buscar água, e não ia uma só vez, mas muitas vezes, ao poço. Lina teve
curiosidade e perguntou à cozinheira, que se chamava Sanna:

       __ Por que trazes tanta água?


       __ Eu lhe direi, se prometeres não contar a ninguém - disse Sanna.

       Ela prometeu não contar, e a cozinheira disse:


       __ Amanhã bem cedo, quando teu pai estiver caçando, vou ferver a água toda que eu trouxer, em um balde muito grande, e jogar Voador dentro.
       Na manhã seguinte, o caçador saiu bem cedo para caçar, deixando as crianças ainda na cama. E Lina disse a Voador:
       __ Se nunca me deixares, eu também nunca te deixarei.

       __ Nem agora nem em tempo algum te deixarei - replicou Voador.


       __ Vou dizer-te então - falou Lina. - Ontem, vendo a velha Sanna trazer para casa muitos baldes de água, perguntei-lhe porque estava fazendo aquilo, e

ela, depois de me fazer prometer que não contaria a ninguém, disse que hoje de manhã cedo ferveria água suficiente para encher uma grande tina, e jogaria
você dentro da tina com água fervendo. Mas nós vamos nos levantar logo, vestirmos logo e sairmos daqui juntos.

       E as duas crianças levantaram-se, vestiram-se rapidamente e saíram. Quando a água estava fervendo, a cozinheira foi ao quarto procurar Voador para
jogá-lo dentro da tina com água fervendo, e, não encontrando-o, assim como Lina, ficou alarmada, perguntando a si mesma:
       "O que irei fazer, quando meu patrão voltar para casa e descobrir que as crianças saíram? Tenho de mandar alguém imediatamente atrás delas."
       Deu ordem, então, a três criados de saírem em perseguição às crianças e trazê-las de volta. Elas estavam descansando fora da floresta e, quando viram de

longe os três criados correndo, Lina disse a Voador:


       __ Se nunca me deixares, eu também não te deixarei.
       __ Nem agora nem em tempo algum te deixarei. - replicou Voador.
       __ Vais virar uma roseira e eu a rosa da roseira - decidiu Lina.

       Quando os três criados chegaram à floresta, não viram nem sinal das crianças, mas apenas uma roseira com uma rosa. Certos de que nada se poderia
fazer ali, os criados voltaram para casa para anunciarem o seu fracasso, contando que nada mais tinham visto de novidade, a não ser uma roseira com uma
rosa:
       __ Idiotas! - exclamou a cozinheira, furiosa. - Deveríeis ter cortado a roseira, colhido a rosa e trazido para cá. Ide fazer isso, imediatamente.

       Os criados chegaram à floresta, mas as crianças de longe viram-nos se aproximarem. Lina disse então:
       __ Se nunca me deixares, eu também jamais te deixarei.

       __ Nem agora nem em tempo algum te deixarei - replicou o outro.


       __ Então, vais virar uma igreja e eu o candelabro da igreja.

       Assim foi feito, de modo que, quando os três criados lá chegaram, coisa alguma encontraram, a não ser a igreja com um candelabro. Voltaram para
junto da cozinheira para se desculparem, e contaram então que só haviam encontrado uma igreja com um candelabro.

       __ Idiotas! - exclamou a cozinheira. - Por que não derrubastes a igreja e trouxestes o candelabro?
       E a própria cozinheira resolveu ir com os três criados em perseguição aos fugitivos. Estes, porém, mais uma vez avistaram de longe a aproximação de
seus perseguidores, e Lina disse a Voador:
       __ Se nunca me deixares, eu também não te deixarei.

       __ Nem agora nem em tempo algum te deixarei. - replicou Voador.


       __ Serás uma lagoa e eu serei um pato nadando nela - disse a menina.

       E de fato assim aconteceu.


       A cozinheira não tardou a aparecer, e, quando viu a lagoa, deitou-se junto dela, para saciar a sede que o calor e a caminhada haviam provocado.
       Então, o pato pousou em sua cabeça e com fortes bicadas empurrou-a para dentro da água, até que a velha bruxa se afogou.

       As crianças voltaram para casa, satisfeitíssimas e satisfeitíssimas continuaram, e, se ainda não morreram, estão vivas até hoje.

GRIMM, Jacob e Wilhelm.  Contos de fadas.  Belo Horizonte/ Rio de


Janeiro: Villa Rica, 1994.  pp. 273-7.

Os Sapatinhos Encantados
ERA UMA VEZ uma mulher muito bonita que dava estalagem e a todos os almocreves que lá iam perguntava se tinham visto uma mulher mais bonita do
que ela. Ela tinha uma filha mais bonita do que ela e tinha-a fechada para ninguém a ver. Disse-lhe um dia um almocreve: «Ainda agora ali vi uma mulher
mais bonita a uma janela a pentear-se.» «Ai! Era a minha filha; pois vou mandar matá-la.»
       E mandou dois criados matá-la a um monte e ela disse-lhes que a não matassem, que a deixassem, que prometia não tornar a casa. Os criados tiveram dó

dela e deixaram-na. Ela foi indo e chegou a uma serra e viu uma casa; era noite; pediu se a acolhiam e não achou ninguém. Entrou para dentro e fez a ceia, e
assim que a acabou de fazer, escondeu-se; nisto chegaram ladrões que vinham de fazer um roubo e, depois que viram a ceia feita, começaram a dizer: «Ai!

Quem nos dera saber quem é que fez a ceia. Se por aí está alguém, apareça.»
       E ela apareceu-lhes e contou-lhes a sua sorte, coitadinha, e eles disseram: «Agora não se aflija; há-de ficar conosco e fazemos a atenção que você é nossa

irmã.» Daí por diante os ladrões lá iam para os seus roubos e ela ficava sempre; eles estimavam-na muito e tratavam-na.
       Ia uma velhota a casa da mãe dela que andava sempre em recados por muitas terras e a mãe dela disse-lhe: «Você, como anda por muitas terras, diga-me

se já viu uma cara mais linda do que a minha.»


       E ela disse-lhe: «Vi, vi uma rapariga que ainda era mais linda que você em tal banda.» «Você quando vai para lá? Quero que lhe leve uns sapatos.» E deu

uns sapatos à velha e disse-lhe: «Leve-lhos e diga-lhe que é a mãe que lhos manda; mas ela que os calce antes de você de lá sair; eu quero saber de certo que
ela os calça; olhe que eu pago-lhe bem.»
       A mulher levou os sapatos à filha; chegou lá e disse-lhe: «Aqui tem esses sapatos que lhe manda a sua mãe.» Ela disse-lhe: «eu não quero cá sapatos
nenhuns; meus irmãos dão-me quantos sapatos eu quiser; não os quero.»

       A velha ateimou tanto com ela que ela pegou neles; calçou um, fechou-se um olho; calçou outro, fechou-se-lhe o outro olho e ela caiu morta. Depois
vieram os ladrões, choraram muito ao pé dela, lastimaram muito a morte dela e depois disseram: «Esta cara não há-de ir para debaixo da terra; levemo-la

num caixão à serra de tal banda que vem lá o filho do rei à caça para ele ver esta flor.»
       Depois levaram-na a esse sítio; veio o filho do rei e viu-a e achou-a muito bonita e depois tirou-lhe um sapato e ela abriu um olho, tirou-lhe outro, abriu
outro olho e ficou viva. E ele então levou-a para casa e casou com ela e foram visitar a bêbeda da mãe e esta ainda depois mesmo a queria mandar matar, mas
não o conseguiu.

(Ourilhe)

COELHO, Adolfo.  Contos populares portugueses.   5.


ed.  Lisboa: Dom Quixote, 1999.   pp. 186-7.

Bola de Manteiga
ERA UMA VEZ um casal de camponeses que morava numa cabana junto a uma grande floresta. Eles tinham um filho, tão gordinho que era conhecido de
todos como Bola de Manteiga. E tinham também um cachorrinho, pequeno de porte mas forte de voz, que atendia pelo nome de Dente de Ouro.
       Certa tarde, em que o pai do Bola de Manteiga havia ido à floresta cortar lenha e a mãe estava às voltas com seus afazeres na cozinha, o Dente de Ouro
começou a latir, a latir muito.

       __ Vá lá fora ver o que está acontecendo, meu filho - disse a mãe do Bola de Manteiga.
       O Bola de Manteiga espiou pela porta, mas voltou correndo para dentro da cozinha.

       __ Mãe, mãe! É uma troll horrível, com a cabeça debaixo do braço e um saco nas costas e está vindo pra cá!
       __ Ih, meu filho, esconda-se logo debaixo da mesa da cozinha - disse a mãe.

       Mas a Troll chegou até a porta e bateu: Pã, pã, pã! E não teve outro jeito: a mãe do Bola de Manteiga foi atender.
       __ Boa tarde, minha senhora, o que deseja?
       __ Boa tarde - disse a Troll. - Por acaso o Bola de Manteiga está?

       __ Não, infelizmente, ele saiu. Foi até a floresta com o pai, ajudar a cortar lenha - mentiu a mãe.
       __ Que pena! - disse a Troll. - Eu tenho aqui uma faquinha de prata que eu queria tanto dar de presente pra ele! Pelo visto, vou ter que achar outro
menino pra presentear.
       __ Oi, oi, aqui estou eu! - disse o Bola de Manteiga, saindo debaixo da mesa.

       __ Que bom que você está aí, meu filho! - disse a Troll. - Mas, sabe o que é, acordei hoje com um dor terrível nas costas. Você não quer entrar aqui neste
saco e pegar a faquinha você mesmo?

       O Bola de Manteiga não pensou duas vezes e enfiou-se saco adentro. Quando a Troll percebeu que o garoto estava todo dentro do saco, esqueceu-se das
dores nas costas, pegou o saco, jogou-o sobre o ombro e foi-se embora, bem rapidinho.

       Mas era um tarde quente. Os borrachudos zuniam por toda parte, o Bola de Manteiga era mesmo bastante pesadinho, e a Troll tinha apenas um braço
disponível para segurar o saco. Por isso, depois de andar um tanto, resolveu encostar num barranco, para descansar um pouco. E, não demorou muito,

acabou cochilando. Quando o Bola de Manteiga percebeu a respiração regular da Troll, pegou a faquinha de prata, cortou um rombo no saco, saiu, enfiou lá
dentro um toco de árvore, amarrou o lugar do corte e foi correndo de volta para a casa de seus pais.
       Daí a pouco, a Troll acordou. Percebeu que o tempo havia passado e, sem pensar noutra coisa, pegou de novo no saco e foi andando, no trote, até chegar
em casa, onde sua filha já estava com o caldeirão no fogo.

       __ Onde você esteve todo esse tempo, mãe! - perguntou a Trolleta. - A água que a senhora me mandou pôr pra ferver já secou quase toda!
       A Troll fez a filha colocar mais água e adicionar sal, pimenta, cebola, batata e cenoura. Quando a água chegou ao ponto de fervura, a Troll pôs a cabeça

na mesa da cozinha e, com as duas mãos livres, pegou no saco e foi despejar o Bola de Manteiga no caldeirão. Mas o toco de árvore que saiu do saco espalhou
água fervente para tudo quanto é canto, queimou as mãos e o rosto da Trolleta, apagou o fogo e só não fez mal à Troll porque ela havia deixado sua cabeça

longe do corpo.
       E passaram-se alguns dias. Mas, numa outra tarde, de grande mormaço, quando o pai do Bola de Manteiga havia saído para caçar, a mãe do Bola de
Manteiga estava na cozinha, assando pão, e o seu menino, como de costume, brincando e azucrinando a paciência. De repente, ouviram o latido forte e
zangado do Dente de Ouro.

       __ Vá lá fora ver o que está acontecendo, meu filho - disse a mãe do Bola de Manteiga.
       O Bola de Manteiga espiou pela porta, mas voltou correndo para dentro da cozinha.
       __ Mãe, mãe! É aquela Troll horrível de novo, com a cabeça debaixo do braço e um saco nas costas e está vindo pra cá!
       __ Ih, meu filho, esconda-se logo debaixo da mesa da cozinha, - disse a mãe.

       Mas a Troll chegou até a porta e bateu: Pã, pã, pã! E não teve outro jeito: a mãe do Bola de Manteiga foi atender.
       __ Boa tarde, minha senhora, o que deseja?

       __ Boa tarde - disse a Troll. - Por acaso o Bola de Manteiga está?
       __ Não, infelizmente, ele saiu. Foi até a floresta com o pai, ajudar na caçada - mentiu a mãe.
       __ Que pena! - disse a Troll. - Eu tenho aqui um garfinho de prata que eu queria tanto dar de presente pra ele! Pelo visto, vou ter que achar outro
menino pra presentear.

       __ Oi, oi, aqui estou eu! - disse o Bola de Manteiga, saindo debaixo da mesa.
       __ Que bom que você está aí, meu filho! - disse a Troll. - Mas, sabe o que é, quando me levantei hoje, dei um mau jeito na cintura. Você não quer entrar

aqui neste saco e pegar o garfinho você mesmo?


       O Bola de Manteiga não pensou duas vezes e enfiou-se saco adentro. Quando a Troll percebeu que o garoto estava todo dentro do saco, esqueceu-se do

mau jeito da cintura, pegou o saco, jogou-o sobre o ombro e foi-se embora, bem rapidinho.
       Mas o calor da tarde, o zunido dos insetos e o peso do Bola de Manteiga, que certamente não havia emagrecido desde a última vez, tudo isso fez a Troll
sentir-se sonolenta, cansada. E, depois de um par de léguas, resolveu encostar num barranco, para descansar um pouco. Não demorou muito, acabou
cochilando. Quando o Bola de Manteiga percebeu a respiração regular da Troll, pegou o garfinho de prata, fez um furo no saco, saiu, enfiou lá dentro uma

pedra bem grande, amarrou o lugar do furo e foi correndo de volta para a casa de seus pais.
       Daí a pouco, a Troll acordou. Percebeu que o tempo havia passado e, sem pensar noutra coisa, pegou de novo no saco e foi andando, no trote, até chegar

em casa, onde sua filha já estava com o caldeirão no fogo.


       __ Onde você esteve todo esse tempo, mãe! - perguntou a Trolleta. - A água que a senhora me mandou pôr pra ferver já secou quase toda!

       A Troll fez a filha colocar mais água e adicionar sal, pimenta, cebola, batata e cenoura. Quando a água chegou ao ponto de fervura, a Troll pôs a cabeça
na mesa da cozinha e, com as duas mãos livres, pegou no saco e foi despejar o Bola de Manteiga no caldeirão. Mas a pedra que saiu do saco espalhou água

fervente para tudo quanto é canto, queimou as mãos e o rosto da Trolleta, rachou o caldeirão no meio e apagou o fogo.
       Dessa vez, a Troll ficou furiosa e jurou que da próxima o Bola de Manteiga não escapava.
       E passaram-se mais alguns dias, parece até que pouco mais de uma semana. Foi daí que, numa outra tarde, em que o verão parecia estar dando seu

último sobressalto de maior calor, quando o pai do Bola de Manteiga havia saído para a floresta para colher frutos silvestres, a mãe do Bola de Manteiga
estava na cozinha, preparando conservas, e o Bola de Manteiga, para variar, fazendo das suas. Subitamente, ouviram o latido zangado do Dente de Ouro.
       __ Vá lá fora, meu filho, e veja por que o Dente de Ouro está latindo tanto - disse a mãe do Bola de Manteiga.
       O Bola de Manteiga espiou pela porta, mas voltou correndo para dentro da cozinha.

       __ Mãe, mãe! É aquela Troll horrível de novo, com a cabeça debaixo do braço e um saco nas costas!
       __ Ih, meu filho, esconda-se logo debaixo da mesa da cozinha - disse a mãe.

       Mas a Troll chegou até a porta e bateu: Pã, pã, pã! E não teve outro jeito: a mãe do Bola de Manteiga foi atender.
       __ Boa tarde, minha senhora, o que deseja?

       __ Boa tarde - disse a Troll. - Por acaso o Bola de Manteiga está?
       __ Não, infelizmente, ele saiu. Foi à floresta com o pai, ajudar a colher amoras - mentiu a mãe.

       __ Que pena! - disse a Troll. - Eu tenho aqui uma colherinha de prata que eu queria tanto dar de presente pra ele! Pelo visto, vou ter que achar outro
menino pra presentear.
       __ Oi, oi, aqui estou eu! - disse o Bola de Manteiga, saindo debaixo da mesa.
       __ Que bom que você está aí, meu filho! - disse a Troll. - Mas, sabe o que é, acordei hoje com um reumatismo terrível nas juntas. Você não quer entrar

aqui neste saco e pegar a colherinha você mesmo?


       O Bola de Manteiga não pensou duas vezes e enfiou-se saco adentro. Mas, quando a Troll percebeu que o garoto estava todo dentro do saco, esqueceu-se

do reumatismo, pegou o saco, jogou-o sobre o ombro e foi-se embora, bem rapidinho.
       E dessa vez ela não ia se deixar enganar e, apesar do calor e do peso do Bola de Manteiga, foi num trote só, por entre atalhos e caminhos pedregosos, até

chegar à sua casa. Lá chegando, a Troll largou o saco com o Bola de Manteiga num canto da cozinha e disse para sua filha, a Trolleta:
       __ Vou agora me arrumar para ir à missa e, quando voltar, vão vir comigo uns vizinhos para jantar. Enquanto eu estiver fora, você me prepare um bom
ensopado de Bola de Manteiga, do jeito que eu te ensinei.
       __ Sim, mamãe - disse a Trolleta e apressou-se a pôr o caldeirão no fogo, enquanto a Troll se arrumava e saía. Quando a água do caldeirão já estava

fervendo e a Trolleta já havia colocado os temperos, a batata e a cenoura, ela abriu o saco; e lá estava o Bola de Manteiga, sentado, bem quietinho. Mas a
Trolleta ficou apenas olhando para ele, com o olhar aparvalhado.
       __ O que é que foi? - perguntou o Bola de Manteiga. - Por que você está me olhando assim?
       __ É que eu tenho que fazer ensopado de você - disse a Trolleta. - E não sei como tenho que fazer para te matar e picar.

       __ Ora, isso é muito fácil - disse o Bola de Manteiga. - Quer que eu te mostre?
       __ Quero, quero sim - disse a Trolleta.

       __ Você tem algum machado por aí?


       __ Tem um que fica junto do monte de lenha, atrás do celeiro.
       __ Então, traga o machado aqui - instrui Bola de Manteiga. E, quando a Trolleta voltou, disse-lhe:
       __ Agora, deite a cabeça em cima daquele banquinho.

       E a tonta da Trolleta fez o que o Bola de Manteiga lhe disse e ele, mais do que depressa, desferiu-lhe um golpe e cortou-lhe a cabeça.
       Então, o Bola de Manteiga ajeitou a cabeça da Trolleta na cama e forrou com cobertores e acolchoados, para dar impressão de que ela estava deitada,

dormindo. Com o resto da Trolleta, preparou o ensopado que a Troll havia encomendado. Depois, pegou o toco de árvore e a pedra, subiu com os dois para o
telhado e ficou esperando.

       Depois de algum tempo, a Troll voltou da missa com o casal de trolls vizinhos. Quando abriram a porta, cheiraram o ar e foram logo dizendo:
       __ Huum... que cheirinho bom de ensopado de Bola de Manteiga! - E lá do telhado, chaminé abaixo, o Bola de Manteiga sussurrou:
       __ Que cheirinho bom de ensopado de Trolleta!
       Os trolls ouviram, mas, como tudo parecesse em ordem, fizeram de conta que nada acontecera. Viram a Trolleta na cama e, certos de que ela estava

descansando depois de ter preparado o jantar, entraram na cozinha, destamparam o caldeirão e foram logo pegando um colher de pau para experimentar o
caldo. E cada um que tomava uma colherada do caldo ia dizendo:

       __ Huum... que caldo gostoso de Bola de Manteiga!


       E o Bola de Manteiga, lá do telhado, retrucava, a cada vez, chaminé abaixo:

       __ Que caldo gostoso de Trolleta!


       Então, os trolls ficaram cismados e correram até a porta para ver o que estava acontecendo. Mas, quando suas cabeças apareceram do lado de fora, o

Bola de Manteiga deixou cair o toco de árvore e a pedra e matou-os todos. A seguir, o Bola de Manteiga desceu e, percorrendo a casa de cômodo em cômodo,
juntou o ouro e toda a prata que conseguiu carregar e voltou para a casa de seus pais, que nunca mais passaram qualquer necessidade.
AUBERT, Francis Henrik (org.).  Askeladden e outras
aventuras - uma antologia de contos populares
noruegueses.  2. ed.  São Paulo: Editora da Univer-
sidade de São Paulo, 1995.   pp. 37-48.

O Rato e o Caçador
Antigamente havia um caçador que usava armadilhas, abrindo covas no chão. Ele tinha uma
mulher que era cega e fizera com ela três filhos.
Um dia, quando visitava as suas armadilhas, encontrou-se com um leão:
__
Bom dia, senhor! Que fazes por aqui no meu território? (perguntou o leão)
__
Ando a ver se as minhas armadilhas apanharam alguma coisa, respondeu o homem.
__
Tu tens de pagar um tributo, pois esta região pertence-me. O primeiro animal que apanhares
é teu e o segundo meu e assim sucessivamente.
O homem concordou e convidou o leão a visitar as armadilhas, uma das quais tinha uma presa
__
uma gazela. Conforme o combinado, o animal ficou para o dono das armadilhas.
Passado algum tempo, o caçador foi visitar os seus familiares e não voltou no mesmo dia. A
mulher, necessitando de carne, resolveu ir ver se alguma das armadilhas tinha presa. Ao tentar
encontrar as armadilhas, caiu numa delas com a criança que trazia ao colo.
O leão que estava à espreita entre os arbustos, viu que a presa era uma pessoa e ficou à espera
que o caçador viesse para este lhe entregar o animal, conforme o contrato.
No dia seguinte, o homem chegou a sua casa e não encontrou nem a mulher nem o filho mais
novo. Resolveu, então, seguir as pegadas que a sua mulher tinha deixado, que o guiaram até à
zona das armadilhas. Quando aí chegou, viu que a presa do dia era a sua mulher e o filho. O
leão, lá de longe, exclamou ao ver o homem a aproximar-se:
__
Bom dia amigo! Hoje é a minha vez! A armadilha apanhou dois animais ao mesmo tempo. Já
tenho os dentes afiados para os comer!
__
Amigo leão, conversemos sentados. A presa é a minha mulher e o meu filho.
__
Não quero saber de nada. Hoje a caçada é minha, como rei da selva e conforme o combinado,
protestou o leão.
De súbito, apareceu o rato.
__
Bom dia titios! O que se passa?, disse o pequeno animal.
__
Este homem está a recusar-se a pagar o seu tributo em carne, segundo o combinado.
__
Titio, se concordaram assim, porque não cumpres? Pode ser a tua mulher ou o teu filho, mas
deves entregá-los. Deixa isso e vai-te embora, disse o rato ao homem.
Muito contrariado, o caçador retirou-se do local da conversa, ficando o rato, a mulher, o filho e
o leão.
__
Ouve, tio leão, nós já convencemos o homem a dar-te as presas. Agora deves-me explicar
como é que a mulher foi apanhada. Temos que experimentar como é que esta mulher caiu na
armadilha (e levou o leão para perto de outra armadilha).
Ao fazer a experiência, o leão caiu na armadilha.
Então, o rato salvou a mulher e o filho, mandando-os para casa.
A mulher, vendo-se salva de perigo, convidou o rato a ir viver para a sua casa, comendo tudo o
que ela e a sua família comiam.

Foi a partir daqui que o rato passou a viver


em casa do homem, roendo tudo quanto existe...

http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto9.html

A Menina
que não Falava
Certo dia, um rapaz viu uma rapariga muito bonita e apaixonou-se por ela. Como se queria
casar com ela, no outro dia, foi ter com os pais da rapariga para tratar do assunto.
__
Essa nossa filha não fala. Caso consigas fazê-la falar, podes casar com ela, responderam os
pais da rapariga.
O rapaz aproximou-se da menina e começou a fazer-lhe várias perguntas, a contar coisas
engraçadas, bem como a insultá-la, mas a miúda não chegou a rir e não pronunciou uma só
palavra. O rapaz desistiu e foi-se embora.
Após este rapaz, seguiram-se outros pretendentes, alguns com muita fortuna, mas ninguém
conseguiu fazê-la falar.
O último pretendente era um rapaz sujo, pobre e insignificante. Apareceu junto dos pais da
rapariga dizendo que queria casar com ela, ao que os pais responderam:
__
Se já várias pessoas apresentáveis e com muito dinheiro não conseguiram fazê-la falar, tu é
que vais conseguir? Nem penses nisso!
O rapaz insistiu e pediu que o deixassem tentar a sorte. Por fim, os pais acederam.
O rapaz pediu à rapariga para irem à sua machamba, para esta o ajudar a sachar. A
machamba estava carregada de muito milho e amendoim e o rapaz começou a sachá-los.
Depois de muito trabalho, a menina ao ver que o rapaz estava a acabar com os seus produtos,
perguntou-lhe:
__
O que estás a fazer?
O rapaz começou a rir e, por fim, disse para regressarem a casa para junto dos pais dela e
acabarem de uma vez com a questão.
Quando aí chegaram, o rapaz contou o que se tinha passado na machamba. A questão foi
discutida pelos anciãos da aldeia e organizou-se um grande casamento.

http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto10.html

A Lua Feiticeira
e a Filha que não sabia pilar
A LUA TINHA UMA FILHA BRANCA e em idade de casar. Um dia apareceu-lhe em casa um monhé
pedindo a filha em casamento. A lua perguntou-lhe:— Como pode ser isso, se tu és monhé? Os
monhés não comem ratos nem carne de porco e também não apreciam cerveja... Além disso, ela não
sabe pilar...
O monhé respondeu:
__
Não vejo impedimento porque, embora eu seja monhé, a menina pode continuar a comer
ratos e carne de porco e a beber cerveja... Quanto a não saber pilar, isso também não tem
importância pois as minhas irmãs podem fazê-lo.
A lua, então, respondeu:
__
Se é como dizes, podes levar a minha filha que, quanto ao mais, é boa rapariga.
O monhé levou consigo a menina. Ao chegar a casa foi ter com a sua mãe e fez-lhe saber que a
menina com quem tinha casado comia ratos, carne de porco e bebia cerveja, mas que era
necessário deixá-la à-vontade naqueles hábitos. Acrescentou também que ela não sabia pilar
mas que as suas irmãs teriam a paciência de suprir essa falta.
Dias depois, o monhé saiu para o mato à caça. Na sua ausência, as irmãs chamaram a rapariga
(sua cunhada) para ir pilar com elas para as pedras do rio e esta desatou a chorar.
As irmãs censuraram-na:
__
Então tu pões-te a chorar por te convidarmos a pilar?... Isso não está bem! Tens de aprender
porque é trabalho próprio das mulheres.
E, sem mais conversas, pegaram-lhe na mão e conduziram-na ao lugar onde costumavam pilar.
Quando chegaram ao rio puseram-lhe o pilão na frente, entregaram-lhe um maço e ordenaram
que pilasse.
A rapariga começou a pilar mas com uma mágoa tão grande que as lágrimas não paravam de
lhe escorrer pela cara. Enquanto pilava ia-se lamentando:
__
Quando estava em casa da minha mãe não costumava pilar... Ao dizer estas palavras, a rapariga,
sempre a pilar e juntamente com o pilão, começou a sumir-se pelo chão abaixo, por entre as pedras
que, misteriosamente, se afastavam. E foi mergulhando, mergulhando... até desaparecer.
Ao verem aquele estranho fenômeno, as irmãs do monhé abandonaram os pilões e foram a correr
contar à mãe o que acontecera. Esta ficou assustada com a estranha novidade e tinha o coração
apertado de receio quando chegou o monhé, seu filho.
Este, ao ouvir o relato do que acontecera à sua mulher, ralhou com as irmãs, censurando-as
por não terem cumprido as suas ordens. Apressou-se a ir ter com a lua, sua sogra, para lhe dar
conta do desaparecimento da filha.
A lua, muito irritada, disse:
__
A minha filha desapareceu porque não cumpriste o que prometeste. Faz como quiseres, mas
a minha filha tem de aparecer!
__
Mas como posso ir ao encontro dela se desapareceu pelo chão abaixo?
A lua mudou, então, de aspecto e, mostrando-se conciliadora, disse:
__
Bom, vou mandar chamar alguns animais para se fazer um remédio que obrigue a minha
filha a voltar... Vai para o lugar onde desapareceu a minha filha e espera lá por mim.
O monhé foi-se embora e a lua chamou um criado ordenando:
__
Chama o javali, a paca, a gazela, o búfalo e o cágado e diz-lhes que compareçam, sem
demora, nas pedras do rio onde desapareceu a minha filha.
O criado correu a cumprir as ordens e os animais convidados apressaram-se para chegar ao
lugar indicado. A lua também para lá se dirigiu com um cesto de alpiste. Quando chegou ao
rio, derramou um punhado de alpiste numa pedra e ordenou ao porco que moesse.
O porco, enquanto moía, cantou:
__
Eu sou o javali e estou a moer alpiste para que tu, rapariga, apareças ao som da minha voz!
Nesse momento ouviu-se a voz cava da menina que, debaixo do chão, respondia:
__
Não te conheço!
O javali, despeitado, largou a pedra das mãos e afastou-se cabisbaixo. Aproximou-se em
seguida a paca e, enquanto moía, cantou:
__
Eu sou a paca e estou a moer alpiste para que tu, rapariga, apareças ao som da minha voz!
Ouviu-se novamente a voz da menina que dizia:
__
Não te conheço!
A gazela e o búfalo ajoelharam também junto do moinho, fazendo a sua invocação, mas a
menina deu a ambos a mesma resposta:
__
Não te conheço!
Por último, tomou a pedra o cágado e, enquanto moía, cantou:
__
Eu sou o cágado e estou a moer alpiste para que tu, rapariga, apareças ao som da minha voz!
A menina cantou, então, em voz terna e melodiosa:
__
Sim, cágado, à tua voz eu vou aparecer!...
E, pouco a pouco, a menina começou a surgir por entre as pedras do rio, juntamente com o
pilão, mas sem pilar. Quando emergiu completamente parou e ficou silenciosa.
Os animais juntaram-se todos, curiosos, à volta da menina.
Então, a lua disse:
__
Agora a minha filha já não pode continuar a ser mulher do monhé pois ele não soube
cumprir o que me prometeu. Ela será, daqui para o futuro, mulher do cágado, pois só à sua voz
é que ela tornou a aparecer.
Então o cágado levantou a voz dizendo:
__
Estou muito feliz com a menina que acaba de me ser dada em casamento e, como prova da
minha satisfação, vou oferecer-lhe um vestido luxuoso que ela vestirá uma só vez, pois durará
até ao fim da sua vida. E, dizendo isto, entregou à menina uma carapaça lindamente
trabalhada, igual à sua.

Da ligação do cágado com a filha da lua


é que descendem todos os cágados do mundo...

Eduardo Medeiros (org.). Contos populares moçambicanos, 1997


http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto2.html

O Homem chamado Namarasotha


Havia um homem que se chamava Namarasotha. Era pobre e andava sempre vestido com
farrapos. Um dia foi à caça. Ao chegar ao mato, encontrou uma impala morta. Quando se
preparava para assar a carne do animal apareceu um passarinho que lhe disse:
__
Namarasotha, não se deve comer essa carne. Continua até mais adiante que o que é bom
estará lá.
O homem deixou a carne e continuou a caminhar. Um pouco mais adiante encontrou uma
gazela morta. Tentava, novamente, assar a carne quando surgiu um outro passarinho que lhe
disse:
__
Namarasotha, não se deve comer essa carne. Vai sempre andando que encontrarás coisa
melhor do que isso.
Ele obedeceu e continuou a andar até que viu uma casa junto ao caminho. Parou e uma mulher
que estava junto da casa chamou-o, mas ele teve medo de se aproximar pois estava muito
esfarrapado.
__
Chega aqui!, insistiu a mulher.
Namarasotha aproximou-se então.
__
Entra, disse ela.
Ele não queria entrar porque era pobre. Mas a mulher insistiu e Namarasotha entrou,
finalmente.
__
Vai te lavar e veste estas roupas, disse a mulher. E ele lavou-se e vestiu as calças novas. Em
seguida, a mulher declarou:
__
A partir deste momento esta casa é tua. Tu és o meu marido e passas a ser tu a mandar.
E Namarasotha ficou, deixando de ser pobre.
Um certo dia havia uma festa a que tinham de ir. Antes de partirem para a festa, a mulher
disse a Namarasotha:
__
Na festa a que vamos quando dançares não deverás virar-te para trás.
Namarasotha concordou e lá foram os dois. Na festa bebeu muita cerveja de farinha de
mandioca e embriagou-se. Começou a dançar ao ritmo do batuque. A certa altura a música
tornou-se tão animada que ele acabou por se virar.
E no momento em que se virou, ficou como estava antes de chegar à casa da mulher: pobre e
esfarrapado.

NOTA: Todo o homem adulto deve casar-se com uma mulher de outra linhagem. Só assim é
respeitado como homem e tido como «bem vestido». O adulto sem mulher é «esfarrapado e pobre». A
verdadeira riqueza para um homem é a esposa, os filhos e o lar.
Os animais que Namarasotha encontrou mortos simbolizam mulheres casadas e se comesse
dessa carne estaria a cometer adultério. Os passarinhos representam os mais velhos, que o
aconselham a casar com uma mulher livre. Nas sociedades matrilineares do Norte de
Moçambique (donde provém este conto), são os homens que se integram nos espaços
familiares das esposas. Nestas sociedades, o chefe de cada um destes espaços é o tio
materno da esposa. O homem casado tem de sujeitar-se às normas e regras que este traça.
Se se revolta e impõe as suas, perde o seu estatuto de marido e é expulso, ficando cada
cônjuge com o que levou para o lar.
Cumprindo sempre o que os passarinhos lhe iam dizendo durante a sua viagem em busca de
«riqueza», Namarasotha acabou por encontrá-la: casou com uma mulher livre e obteve um
lar. Mas por não ter seguido o conselho da mulher, perdeu o estatuto dignificante de homem
adulto e casado.

Eduardo Medeiros (org.). Contos Populares Moçambicanos, 1997


http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto8.html

A Gazela e o Caracol
Uma gazela encontrou um caracol e disse-lhe:
__
Tu, caracol, és incapaz de correr, só te arrastas pelo chão.
O caracol respondeu:
__
Vem cá no Domingo e verás!
O caracol arranjou cem papéis e em cada folha escreveu: «Quando vier a gazela e disser
"caracol", tu respondes com estas palavras: "Eu sou o caracol"». Dividiu os papéis pelos seus
amigos caracóis dizendo-lhes:
__
Leiam estes papéis para que saibam o que fazer quando a gazela vier.
No Domingo a gazela chegou à povoação e encontrou o caracol. Entretanto, este pedira aos
seus amigos que se escondessem em todos os caminhos por onde ela passasse, e eles assim
fizeram.
Quando a gazela chegou, disse:
__
Vamos correr, tu e eu, e tu vais ficar para trás!
O caracol meteu-se num arbusto, deixando a gazela correr.
Enquanto esta corria ia chamando:
__
Caracol!
E havia sempre um caracol que respondia:
__
Eu sou o caracol.
Mas nunca era o mesmo por causa das folhas de papel que foram distribuídas.
A gazela, por fim, acabou por se deitar, esgotada, morrendo com falta de ar. O caracol venceu,
devido à esperteza de ter escrito cem papéis.

Comentário do narrador : «Como tu sabes escrever e nós não,


nós cansamo-nos mas tu não. Nós nada sabemos!».

Eduardo Medeiros (org.). Contos populares moçambicanos, 1997


http://www.terravista.pt/Bilene/4619/Conto1.html

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