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IV Simpósio Internacional Ousia – Filosofia e Retórica

2013

Sobre a sofística de Górgias e Alcidamante


(Traços do Palamedes Eleático na escrita de Platão)

Lucio Lauro B. Massafferri Salles (doutorando em filosofia – PPGF/UFRJ)1


www.pec.ufrj.br/ousia
www.letras.ufrj.br/proaera
Contato: lucio.m.salles@gmail.com

Filóstrato foi um dos pensadores da chamada segunda sofística que notou que o
pensamento de Górgias tem perspectivas que são próprias a dois personagens centrais na
produção poética de Eurípides.
Refiro-me a Helena de Esparta e a Palamedes de Eubéia, dois heróis do ciclo épico
homérico que emprestaram seus nomes a tragédias de Eurípides, assim como também são,
ambos, protagonistas nos manuscritos Elogio de Helena e Apologia de Palamedes, de Górgias
Leontino.
É no Elogio de Helena que Górgias constrói a sua analogia, entre a linguagem humana –
seja ela oral, escrita ou imagética2 – e as drogas, isto é, os phármaka. E, Helena, cabe lembrar, é
uma personagem ideal, para se pensar a linguagem como uma droga para a alma, uma vez que
ela é conhecedora dos segredos das plantas da terra, sabedoria essa que, segundo Homero, ela
obteve no Egito3.
Helena sabe fabricar misturas de phármakon com vinho, misturas essas que são capazes
de fazer com que os homens não sofram dores da alma, na medida em que esses remédios são
capazes de agir sobre as emoções e a memória, promovendo o esquecimento de sofridas
lembranças. Helena é aquela que circunda o gigantesco cavalo de madeira usando sua voz como
uma sereia, para imitar a vozes das esposas dos soldados escondidos dentro do cavalo4. Trata-se
aqui, de uma representação da dýnamis da linguagem falada, que, através de mímesis, é potente o
suficiente para dar forma a múltiplas imagens na mente humana.

1
Trabalho apresentado no IV Simpósio Internacional Ousia – Filosofia e Retórica; em 2013.
2
Elogio de Helena. §13 e §14.
3
Odisseia. IV. 220-234.
4
Odisseia. 277-279.
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Aproximadamente em 415 a.C, Eurípides encenou a tragédia Palamedes – para nós


perdida – que é referida tanto por Aristófanes, na Tesmoforiantes, como por Platão, na
República. Ésquilo e Sófocles também encenaram tragédias chamadas Palamedes, restando-nos
dessas, poucos fragmentos. E, por sua vez, em função da sua Apologia de Palamedes, Górgias se
tornou uma das mais antigas fontes sobre este personagem dos Cantos Cyprios, datados
aproximadamente do séc. VII a.C. Os Cantos Cyprios aludem a eventos referentes ao início e ao
fim da Guerra de Tróia, eventos esses que não são cantados por Homero, nem na Ilíada, nem na
Odisseia.
Tanto pelos fragmentos do Palamedes de Ésquilo, como nos de Sófocles e de Eurípides,
pode-se notar que o mito grego de Palamedes corresponde, em termos de inventividade, ao deus
egípcio Theuth, ao titã Prometeu e ao deus Hermes. Sendo notável que, a todas essas quatro
formas arquetípicas, se atribua a fabricação da escrita, uma vez que Prometeu, Palamedes e
Theuth, são considerados criadores da grafia como um phármakon, para o uso dos homens.
Segundo Marcel Detienne, o nome Palamedes é um epônimo da sua destreza, pois
Palamé significaria a palma, a mão, “o giro de mão” do timoneiro, conduzindo o seu barco, ou,
a “mão inventiva e instrumental”, com as suas técnicas e saberes.
Encontra-se no hino homérico a Hermes o hápax διαπυρπαλάµησεν5, que pode denotar
práticas mágicas ou de prestidigitação com o fogo, isto é, a ação de “empregar artifícios ou fazer
mágicas”. Assim como o Theuth, de Platão, Palamedes é o inventor da grafia e do gamão, sendo
ambos, remédios para os homens minorarem as suas aflições e a sua inferioridade, diante do
incontrolável fluxo da natureza.
Na tragédia Palamedes, de Sófocles, o gamão é apresentado como um ákos, uma
criação de Palamedes6, que serviria de remédio para os homens nos seus momentos de ócio, em
Tróia.
E, no caso da escrita, cito aqui um dos fragmentos da peça perdida Palamedes, de
Eurípides, que é onde o poeta descreve esse herói dos Cantos Cyprios como o criador da escrita-
phármakon; um remédio para a memória humana (fr. 578.1):

Sozinho estabeleci remédios para a memória, para o esquecimento,


sem discurso, sem falas, pela criação de sílabas
eu inventei a escrita para o conhecimento dos homens,

5
A Hermes. 357 (c.f. a tradução de Maria Celeste C. Dezzoti). Ver também em Marcel Detienne (A Escrita de
Orfeu. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar. 1989, pg. 82).
6
Frag. 479. Palamedes, de Sófocles.
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desta forma um homem que se lança ao mar,


quando retorna a casa pode adquirir informação
sobre todos os assuntos ocorridos durante a sua ausência,
e os homens próximos da morte então descreverão
a dimensão de suas riquezas aos seus filhos, e estes passam a adquiri-las.
E para que os males que fazem com que os homens caiam em discórdias,
uma tabuinha escrita pode dirimir questões prevenindo sobre falsidades.7

De acordo com várias versões míticas, Palamedes foi injustamente acusado de alta
traição8, sendo condenado a uma morte injusta devido a uma carta falsificada por Odisseu, onde
o rei de Ítaca, por vingança, forja um ato de traição. Tanto Platão, como Xenofonte, fazem
referência a esse episódio, comparando Sócrates com Palamedes, na medida em que observam as
semelhanças entre as destinações trágicas e injustas, do filósofo e do herói, diante dos tribunais.
Na Apologia de Palamedes, Górgias enumera algumas das invenções de Palamedes,
estando entre elas: os números, o cálculo, os pesos e as medidas, os sinalizadores, o gamão, e a
escrita como um instrumento para a memória humana (γράµµατά τε µνήµης ὄργανον). E, sobre
essa definição gorgiana da escrita como instrumento mnemônico9 é interessante lembrar que, nas
Refutações Sofísticas10, Aristóteles diz que Górgias, seguindo uma tradição que remonta a Tísias
de Siracusa, usava textos escritos como instrumento de memorização, talvez, quem sabe (?), um
tipo de exercício voltado para os discursos agonísticos das assembléias e dos tribunais, os quais
Górgias, inclusive, se refere no Elogio de Helena11.
Falarei agora de uma passagem do Fedro que costuma ser compreendida como uma
referência a Górgias, e que, creio, encobre uma alusão a Alcidamante, que foi considerado o
herdeiro dos ensinamentos de Górgias, assim como seu sucessor, a frente de uma Escola em
Atenas12.
No Fedro13, o personagem Sócrates diz ao personagem Fedro que a retórica é uma
“arte de psicagogia” que se realiza por meio de palavras. Diz Sócrates, que a retórica é uma arte
que é própria às práticas de Górgias, sendo Górgias um rétor que possui discursos que paralisam
os seus ouvintes, tal como ocorre com os que miram a cabeça da Górgona, podendo estes

7
A tradução é de Henrique Fortuna Cairus.
8
A mais antiga versão, que nos restou, em que Palamedes é justamente acusado de traição é a que se encontra no
texto Contra Palamedes, por Traição [Odisseu], da autoria do discípulo de Górgias, Alcidamante de Eléia.
9
C.f também no Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos (Sobre os Sofistas. §32), de Alcidamante, uma
alusão à escrita como instrumento mnemônico.
10
183 b.
11
Elogio de Helena. §13
12
Suda (Górgias. 388.1 e Alcidamas. 1283.1) e em Dionisio de Halicarnasso (Sobre Isaeu. 19)
13
261 b.
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discursos ser proferidos não somente em tribunais, mas, também, nas assembléias e conversas
privadas14. Ao dizer de Sócrates, Fedro acrescenta que: “é, sobretudo, nos processos forenses
que se fala e que se escreve com arte”15.
Nesse momento da dramatização, Sócrates se a refere dois personagens da Ilíada e da
Odisséia (Nestor e Odisseu), conhecidos pela habilidade oratória, e também ao personagem
Palamedes, ausente destes textos de Homero, mas presente tanto nos Cantos Cyprios como nas
tragédias gregas:
Cito a passagem: “Mas então [Fedro] só ouviste falar das artes de Retórica de Nestor e
de Odisseu, que ambos escreveram em Tróia nos momentos de ócio? E da de Palamedes nunca
ouviste falar?
É possível que aqui, Platão tenha fabricado um hábil jogo de máscaras, uma espécie de
sobreposição de personagens do ciclo épico, que estariam relacionados tanto às práticas de
discursos orais, do modo como elas nos são descritas nas assembléias de guerra na Ilíada, assim
como às relacionadas à redação de discursos, a logografia, sendo essa concebida como uma nova
ferramenta, na movimentada vida política ateniense do Vo século a.C.
Na sequencia do drama, Fedro diz desconhecer tais manuais de arte retórica, a não ser
que Sócrates estivesse designando Nestor por Górgias, e Trasímaco, ou Teodoro, por Odisseu16,
observando-se que, no texto, de fato, Sócrates não somente não confirma essa possibilidade,
como ainda pede a Fedro que “os deixe em paz ”17.
Um pouco a frente dessa passagem, a ênfase continua sobre os discursos de tribunais,
que envolvem o que é justo ou injusto, assim como a prática da antilogia, isto é, da disputa entre
teses contrárias proferidas por litigantes, cito: “Não é verdade que as partes contrárias travam
um combate de palavras (antilogia), a respeito do justo e do injusto?
Após estender esse aspecto da antilogia às assembléias, Platão menciona um nome, um
personagem desconhecido, certo “Palamedes de Eléia”, alguém que seria capaz de falar de tal

14
Essa mesma idéia é reproduzida no Sofista, de Platão, pelo enigmático personagem Estrangeiro de Eléia.
15
É exatamente esta idéia a que propõe Alcidamante, no seu Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos,
quando, provavelmente provocando Isócrates, esse eleata diz que os melhores escritores são os que preparavam
discursos de tribunal, uma vez que a sua arte consistiria em reproduzir, por escrito, o movimento vivo da fala
presencial dos bons oradores.
16
Em minha pesquisa, trabalho com a hipótese de que esta passagem esteja encobrindo as figuras de Antifonte, cujo
apelido em Atenas, era Nestor (Em Plutarco [Vida dos dez Oradores. 833 c-d] e em Filóstrato [Vida dos Sofistas.
2.15-16 Kayser = 498 Olearius), de Antístenes, que tinha Odisseu como um herói paradigmático, e de Alcidamante,
que além de escrever um manuscrito onde confronta a oralidade com a escrita, também compôs uma peça forense
sobre Palamedes, uma peça complementar a Apologia de Palamedes, de seu mestre Górgias.
17
Fedro 261 c. A ambigüidade aqui estaria tanto em sugerir que não se tratava nem de Górgias, nem de Trasímaco e
nem de Teodoro, como também em que, à época da confecção do Fedro, estes antigos sofistas já não estariam vivos,
ao contrário, por exemplo, de Alcidamante e de Isócrates.
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maneira, com arte, que “as mesmas coisas aparecem aos ouvintes como semelhantes e
dessemelhantes, como unas e múltiplas, ou ainda em repouso e movimento”. Esse personagem é
tradicionalmente interpretado como uma referência a Zenão, que é considerado por Aristóteles
como o criador da dialética, mesmo não se tendo nenhuma notícia de que Zenão tenha, em algum
momento do seu percurso, escrito manuais sobre retórica.
A leitura que proponho – que é uma hipótese em minha pesquisa – encontra eco em
Quintiliano18, quando ele afirma que Palamedes Eleático é uma alcunha que Platão usou para se
referir a Alcidamante de Eléia. E, de fato, existem indícios que sustentam a possibilidade de que
o Palamedes Eleático seja uma referência, disfarçada, do discípulo herdeiro da escola de
Górgias, em Atenas, que teria sido um rival e crítico contundente das limitações oratórias de
Isócrates, assim como da sua predileção pela atividade de escritor, em detrimento da prática da
oralidade. Entre outros textos, Alcidamante é autor do manuscrito forense conhecido como
Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos (ou Sobre os Sofistas), além de ser autor
também de uma peça complementar a Apologia de Palamedes, de Górgias, datada do final do V
ou início do IV a.C., cujo título nos é conhecido como Contra Palamedes, por Traição (ou
Odisseu).
Os discursos que dizem os contrários e que compõe a unidade de um tribunal, discursos
esses capazes de fazer parecer que algo é e não é, diante de juízes, podem ser observados nestes
dois textos, em que mestre e discípulo, isto é, Górgias e Alcidamante, irão acusar e defender um
fictício personagem, apresentando, deste modo, um estilo dialético distinto do estilo socrático
que é defendido por Platão, no Fedro.
Esse estilo discursivo antilógico, cuja orientação e aplicação política remontaria às
técnicas discursivas dos sicilianos Córax e Tísias, é, de fato, um estilo que ressalta mais a
potência ambivalente da linguagem, do que uma pretensa busca pela verdade; una, formal ou
ideal.
Na própria Apologia de Palamedes, Górgias reforça essa ambivalência, quando aponta
para a força das palavras, capazes de absolver Palamedes, ao mesmo tempo em que denuncia a
limitação do lógos, discurso, quando nos diz, Górgias, que: “Se, mediante os discursos fosse
possível tornar pura e límpida, aos olhos dos ouvintes, a verdade dos fatos, seria fácil a
sentença, logo após o que foi dito (§35).

18
C.f. em Quintiliano (Instituto Oratória. III. 1. 8-10).
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Por outro lado, para Górgias, as palavras são soberanas19, pois elas são capazes de
imprimir marcas na alma e de constituir memória, individual e coletiva, ou, também, como diz o
eleata Alcidamante: as palavras podem “trazer os que erram, à razão”, elas têm potência
suficiente para “consolar os que se encontram infelizes” e para “acalmar os desesperados”20; a
linguagem é um phármakon potente.
Além disso, é notável que muitas das imagens com que Alcidamante ironiza e censura
Isócrates e os demais escritores contumazes, possam ser reconhecidas no Fedro, estando entre
essas imagens, por exemplo, a de que o discurso proferido com a técnica da improvisação
(αὐτοσχεδιαστικῆς)21estaria pleno de vida22, assemelhando-se a corpos vivos, ao invés de
pinturas imóveis, como no caso das letras, escritas, que são sempre fáceis de serem atacadas,
segundo Alcidamante23, principalmente quando estão desacompanhadas daquele que as escreveu,
como propõe Platão24.
Encerro a minha fala, compartilhando uma sutileza que se encontra na escrita de Platão,
onde se vislumbra esta possibilidade de ter existido algum grau de emulação entre ele, Platão, e o
herdeiro prodígio de Gorgias, Alcidamante.
É um fato que logógrafos renomados como Lísias eram também alvo de Alcidamante,
assim como era Isócrates, conforme se lê no Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos.
Alcidamante dizia que esses escritores profissionais (logógrafos) eram demasiadamente
artificiais, pois, seus textos eram sem naturalidade, precisos em demasia, tal como se carecessem
da sabedoria dos que falam partindo da própria inteligência.
Alcidamante chamava pejorativamente de “poetas”, “artífices”, estes escritores que
não sabiam improvisar as suas falas e os seus argumentos. E, talvez não por coincidência, é
também no Fedro que se encontra a pista, deixada por Platão.
Corroborando em parte a tese alcidamantina de que os discursos escritos são fáceis de
serem atacados, o personagem Sócrates nos brinda com a seguinte fala, antes de iniciar, diante de
Fedro, a sua primeira contestação do discurso escrito pelo logógrafo Lísias.

19
Elogio de Helena. §8- §14.
20
Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos (Sobre os Sofistas). §10.
21
C.f. o Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos, de Alcidamante. A única outra ocorrência de
αὐτοσχεδιαστικῆς, em textos conhecidos, é na Poética, de Aristóteles (1449 a 10), onde Aristóteles diz que a
“técnica da improvisação” remontava aos primeiros poetas, a partir dos quais teria surgido tanto a poesia épica
como a trágica.
22
Op. Cit. §10.
23
Op. Cit. §3.
24
Fedro. 275 d- 275 e.
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Dirá Sócrates: “Caro Fedro, leigo como sou, farei um papel ridículo, se, depois de um
poeta de verdade [como Lísias], eu me pôr a falar de improviso [αὐτοσχεδιάζω]25sobre o mesmo
assunto”.
De fato, é deliciosamente engraçado observar como que Platão parece inverter a ironia
que Alcidamante dirige, a princípio a Isócrates, e, por contigüidade a Lísias, sugerindo algo
como: nem mesmo a força do improviso, que era própria do ensino de Górgias e de Alcidamante,
seria capaz de suplantar a escrita de um “poeta” como Lísias, meu caro Fedro.
Enfim, em um ponto nuclear, concordam Górgias, Alcidamante e Platão.
Há algo que, de fato, confere a grafia o seu caráter de paidía; jogo, ou brincadeira26.

25
Raras vezes Platão usa esse termo, em seus dramas, o que reforça a idéia de que, de fato, pudesse vir da tradição
principiada com Górgias o uso de αὐτοσχεδιαστικῆς para significar uma técnica específica de sofistas que
ensinavam e que praticavam filosofia, de um modo diferente como a filosofia é apresentada nos textos de Platão.
26
C.f. em Górgias (Elogio de Helena. § 21), em Alcidamante (Contra Aqueles que Escrevem Discursos Escritos.
§34), e em Platão (Fedro. 277 e).
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