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Jornal Gazeta do Povo – Caderno G - 15/02/2014
https://www.gazetadopovo.com.br/caderno-g/colunistas/jose-castello/o-
desviante-ercvicgpbbjnprqsjacg2trny/
Não existe nada que tenha sido alguma vez escrito, ou pintado, esculpido,
modelado, construído, inventado, a não ser para sair do inferno — escreveu o
poeta e ator francês Antonin Artaud (1896-1948). A frase, que guardo anotada
em um marcador de livros, não me saiu da cabeça enquanto lia Terra Avulsa
(Record), o novo e desafiador romance do gaúcho Altair Martins. A história do
tradutor Pedro Vicente, um homem que, depois de ser assaltado na rua, tranca-
se em casa e nela constrói seu próprio país, com suas regras, sentidos e
valores autônomos — a "terra avulsa" de que trata o título do livro. Recebe
visitas dominicais da fotógrafa Eudora, a partir de cujas fotos escreve
estranhos poemas. Romance embutido no romance de Altair, outra história — a
dos assaltantes de Pedro — se mistura à sua própria história.
Para sair do inferno — a violência que se espalha pelas ruas e que o atinge —,
o narrador cria um mundo independente, com suas próprias normas, rituais,
crenças, superstições. Transporta, assim, a literatura para a própria vida, que
toma a forma inesperada de uma ficção. Ele se deixa guiar por uma figura de
linguagem, a hipálage — expediente retórico que produz uma troca ou
substituição de lugar entre as palavras, funcionando, assim, como um
deslocamento, ou um desvio. "Eu podia provar que, apesar de ser uma figura
de retórica antiga, aquela era a figura do brasileiro", escreve. O que o seduz na
hipálage? Ela mostra "um desajuste entre gramática e lógica e também a
ruptura da linha sintática". Desajuste e ruptura, duas palavras que definem com
precisão não só a figura retórica, mas a aventura do personagem de Altair
Martins. Deslocamento, deslize, desvio.
Sabe que, se escreve sobre objetos externos, escreve, ainda assim, para falar
de si. Pergunta-se: "Estou tentando uma biografia? Nasci, é certo, e ninguém
assumiu minha autoria. Sou um tradutor, mas preciso entender qual é o meu
idioma de chegada". O tradutor é um intermediário, que oferece sua voz a
outro. Lugar, portanto, de um vazio — pois seu principal objetivo é ausentar-se
ao máximo das palavras traduzidas para que outro fale em seu lugar. Pergunta-
se: onde ele mesmo fica em tudo isso? Pensa no pai, "e não é porque creia
que não tive pai", mas é "porque sei que não tive a sensação disso". Conclui:
"Uma ausência-ausência é invenção e é o meu caso". Sobre esta ausência-
ausência — muito diferente da ausência clássica, que ocupa o lugar de uma
presença — o personagem de Altair constrói as linhas de seu território, tendo
compromisso apenas consigo mesmo e mais ninguém. Ao fundar seu próprio
país, chega à estranha conclusão de que "não precisava existir para existir". Há
algo que se aproxime mais da ficção, algo que, a rigor, não existe (presença da
ausência?) e que, no entanto, possui uma força descomunal e uma presença
atordoante?
O personagem de Altair não só escreve poemas, mas funda seu país particular
para sair do inferno (Artaud). Consegue mesmo sair, ou só lhe dá novas e
disfarçadas feições? Seus arriscados desvios para chegar a si mesmo
constroem a beleza do romance que lemos. Uma beleza discreta, substantiva,
fanaticamente agarrada aos fatos — ainda que aos fatos ausentes da ficção.
Desvios da ordem banal do mundo e também da boa norma literária, o que
transforma Altair Martins em um dos mais surpreendentes escritores de sua
geração. O que Terra Avulsa, enfim, só vem reafirmar.