A palavra Barroco teve em princípio um significado depreciativo. Aplicado mais
especificamente às novidades arquitetônicas e das artes plásticas. A palavra derivou de um termo português para designar uma pérola imperfeita. Esta depreciação reflete claramente sob qual prisma o século XVII contemplava as gerações anteriores. Considerava-se que o chamado Barroco seria uma degeneração ou decadência do Renascimento, uma outra “Idade Média”, que se interporia entre o luminoso cinquecento e o clacissismo do século XVIII. Todavia, se reconhece hoje que o Barroco é um período com pleno direito, desenvolvimento intrínseco e particular; e normas estéticas próprias. Este período abarca aproximadamente o século XVII e a primeira metade do século XVIII. Os indícios de mudança estética se fazem patentes em finais do século XVI e durante certo tempo, os traços renascentistas e barrocos irão coexistir. Assim como as características que conduziriam à época clássica surgiram em princípios do século XVIII, de forma simultânea às manifestações mais significativas da música barroca. Os termos ‘música renascentista e barroca’ foram tomados da História da Arte como designações cômodas para os períodos, e são utilizáveis na História da Música e em outros campos do saber humano. Embora resulte muitas vezes em uma arbitrária generalização. Só uma terminologia histórica capaz de reconhecer a unidade de cada época estilística poderia nos dar uma interpretação mais precisa. A aplicação da palavra “Barroco” à música sempre foi objeto de críticas e questionamentos, já que a qualidade do chamado “Barroco” não se poderia extrair das notas musicais. Na verdade, quem esperar descobrir as qualidades do Barroco na música como se tratasse com alguma substância química misteriosa, confundirá o significado da palavra, que em essência se refere à unidade estilística e profunda do período. Tecer paralelos entre a música do período e outras artes só poderia ser efetivado considerando particularidades e em minuciosas análises técnicas; não mediante abstrações generalizantes e comparativas. A teoria de que o Barroco se manifestaria de maneira uniforme em todos os campos e que toda obra de arte da época é caracteristicamente barroca, deve ser questionada e dirigida ao exame de casos específicos. Existem correntes subjacentes de forças opostas que não estão de acordo com o chamado “espírito do tempo” – outra abstração. A vida concreta de um período encerra contradições internas, conflitos entre ideias que prevaleceram e outras que desapareceram; relíquias de períodos anteriores e anúncios dos que se seguirão. Apesar dessa complexidade, as ideias gerais de uma era se destacam e merecem maior atenção. As pautas dominantes da música barroca, dessa forma, se correspondem com as da arte e literatura barrocas e são um derivado inevitável de qualquer estudo do período. A passagem da música renascentista para a barroca difere de todas as outras mudanças estilísticas da História da música em um aspecto importante: O estilo anterior (chamado da Antiga Escola, derivado da polifonia dos franco-flamengos e representado enfim no estilo de Palestrina), foi naturalmente sendo suplantado pelo novo estilo (representado pelo estilo madrigalesco e os estilos Recitativo e Representativo – concitato – precursor da ópera), que ocupou seu lugar, transformando os últimos vestígios das técnicas anteriores e assegurando uma clara unidade estilística a cada período. Todavia, no princípio do barroco, o estilo antigo ou antiga Prática, não foi proscrito, mas deliberadamente preservado; como uma ‘segunda linguagem’, conhecida como “Stile Antico” da música sacra. A unidade estilística se desintegrou e os compositores se viram obrigados a ser ‘bilíngues’. O Renascimento se destaca como a última era da unidade estilística. O termo Estilo Antigo passou a designar o de Palestrina, sendo utilizado pelos que seguiram o severo estilo coral à capela do período barroco. Se convertendo numa bagagem indispensável para a educação do compositor, que poderia escolher escrever no Estilo Moderno (Nova Prática) – veículo de sua expressão espontânea ou no austero estilo antigo, adquirido através de estudos aprofundados. Esta eleição estilística foi um passo relevante no sentido do historicismo musical. A tão discutida e mal resolvida divisão da música no sentido de “estrito” e “livre” remonta à disposição de estilos antigo e Moderno daquele período (que também eram chamados de Stylus Gravis e Stylus Luxurians). Preconizando a controversa questão do “erudito” e “popular”, tão presente em nossos dias. As regras do Antigo Estilo seriam diligentemente codificadas por teóricos como Bontempi e Fux, em cujas obras se estabelecem contrastes drásticos entre os estilos antigo e novo. Apesar disso, o que estabelecem em seus tratados difere em muitos pontos do modelo, perpetuando um padrão estrito fictício que apenas recorda a música renascentista; diferindo consideravelmente com relação ao modelo, que por sua vez, se achava impregnado de licenças modernas. Resultando enfim que tal distinção residia mais no julgamento técnico do que na prática, se sustentando mais em sentido lato do que na observação minuciosa das obras. Outra distinção surgida no período foi a de música Sacra (musica ecclesiastica ou cubicularis) e Teatral (teatralys). Ocorre que tal distinção radicaria, na verdade, mais na função sociológica do que numa efetiva diferença de técnicas composicionais, pois que se podia compor qualquer desses tipos recorrendo-se a ambos os estilos – antigo e moderno. O que se destaca nesse momento da história da música, no entanto, é uma Consciência de Estilo. Que até então, sem tais diferenças, não se instaurara ainda. Angelo Berardi (1636- 1694), compositor e teórico, em seu tratado Miscelanea Musicale, diz que os antigos mestres – do Renascimento – só tinham um estilo, portanto uma só prática. Os modernos teriam três estilos: sacro, de câmara e teatral; e duas práticas: a Antiga e a Moderna. Fica claro como a consciência de diferenças se estabelece, ressaltando assim também o contraste entre os pensamentos dos dois períodos. Segundo Berardi, a diferença essencial entre a Prima e Seconda práticas residiria na mudança de relações entre texto e música. “Na Renascença a harmonia era a mestra da letra, enquanto que no Barroco a letra era a mestra da harmonia”. Sendo a nova prática norteada pela “representação musical do texto’. Uma representação de cunho intelectual e pictórico, antes de emocional e psicológico. Os sentimentos, por sua vez, se classificavam e convertiam em estereótipos, formando um conjunto dos chamados “afetos”, representativos de estados mentais. Era função do compositor fazer com que a tendência do material sonoro correspondesse à do texto. Conforme o racionalismo da época, o compositor dispunha de um arsenal de figurações musicais catalogadas e relacionadas a diferentes estados de alma; pensadas para representar em música tais afetos. Embora a Musica Reservata do Renascimento já trouxesse em si a essência dessa relação entre música e letra, naquele período se favoreciam os afetos de comedimento e nobre simplicidade, enquanto que no Barroco se privilegiavam os afetos extremos, que iam da dor à alegria exuberante. Obviamente que tais representações demandariam um vocabulário musical mais rico que o necessitado até então.
BUKOFZER, Manfred. La Música en la época Barroca – De Monteverdi a Bach. Madrid,