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Crimes Passionais: A Campanha Contra os Assassinatos de Mulheres no Brasil: 1910- 1940° RESUMO Maridos, noivos, amantes, pais ¢ irmdos vingavam a “honra manchada” assassinando as mulheres que cometiam o crime do amor ilegal. Essa prdtica da justiga pelas préprias méos crescia assustadoramente no inicio deste século fazendo com que se produzisse uma ampla campanha contra os chamados crimes da paixdo. Este artigo analisa as posi¢ées assumidas por diferentes setores da sociedade brasileira, com especial atengdo para as obras de juristas, mulheres homens de letras. Susan K. Besse** ABSTRACT Husbands, fiancés, lovers, fathers and brothers avenged their tainted honor by Killing women for the crime of illegal love. This practice of taking justice into one’s own hands grew so alarmingly at the beginning of the century that it produced a widespread campaign against so-called crimes of passion, This articles analyses the positions taken by different sectors of Brazilian society, with special attention to jurists, women and men of letters. “Hoje - como conseqiiéncia natural da.anarquia que domina os espiritos ¢ as tepiragtes homanas ¢ do proprio deseo que leva x haminidae procang solugdes morais e justas para of problemas sociais, incluindo jue ‘concementes 20 sexo € A classe — todas as teorias chocam-se com a dolorosa uta entre a moral que esth desaparecendo ¢ a moral que a esth substituindo, enquanto a luz da verdade ainda néo chegou para iluminar nossos al corngies. De seu posto no Chile, o diplomata brasileiro Fonseca Hermes elogiou 9 que encarava como uma “verdadeira cruzada regeneradora” contra a “indulgéncia, a complacéncia ¢ a benevoléncia” que a sociedade brasileira "Tradugdo de Marta Avancini. "Departament of History, CUNY-EUA. Meus agradecimentos « Donna Guy, x L{gin Prado ¢ « Emilia Viotti da Costa por seus ‘comentirios numa versio anterior. Este ensaio foi apresentado pela primeira vez na Conferéncia sobre a Histéria da Mulher em Wesley College em 1987. 'Ronseca Hermes, “El amor en el banquillo de los acusados: El crime passional desde el panto de vista psicologico y social”, Revista de Direito Penal. 3 (1933), 445. [Rev. Bras. de Hist TS. Paulo [v.98 [pp.181-197_[_ago.89/ecr.89 sempre havia manifestado pelos individuos acusados de “crimes da paixdo”. € este termo refere-se a homicidios resultantes de conflitos ligados a relagdes amorosas ¢/ou sexuais. Na prdtica, geralmente tratava-se de um crime masculino, envolvendo o assassinato de mulheres — ou de seus parceiros — por maridos, noivos, amantes, ou pais e irmios.) Fonseca Hermes elogiou os juizes, advogados e especialistas em medicina legal que estavam promovendo esta campanha em tribunais, saldes de conferéncia Piiblicos, livros, imprensa popular ¢ organizag6es profissionais. E apoiava seus objetivos: expor as verdadeiras motivagdes causadoras dos crimes da paixdo; reeducar a sociedade, através da destruicao das convengoes sociais ¢ crengas populares que protegiam estes criminosos; rejeitar as doutrinas legais que os perdoavam; e impor rigorosamente penas severas como um meio necessério de intimidagao coletiva.? O veiculo organizador desta campanha foi o Conselho Brasileiro de Hygiene Social (CBHS), fundado no Rio de Janeiro em 25 de fevereiro de 1925, por quatro promotores piiblicos proeminentes: Roberto Lyra, Carlos Sussekind de Mendonga, Caetano Pinto de Miranda Montenegro e Lourengo de Mattos Borges.? Com a colaboragao do juiz Nelson Hungria, eles Prosseguiram vigorosamente em sua “campanha moral” para acabar com a tolerancia aos crimes da paixfo. De acordo com 0 tinico estudo estatistico disponivel, eles tiveram um sucesso considerdvel: em 1932, de 36 casos de crimes da paixdo investigados nas cortes da cidade do Rio de Janeiro, 24 acusados foram condenados com a pena maxima, 7 tiveram seus casos tornado piiblicos ¢ foram punidos menos severamente e 5 foram absolvidos.4 -Além disso, os membros do Conselho encarregaram-se de obter uma revisio do cddigo penal a fim de que um criminoso nao pudesse mais ser considerado isento de responsabilidade se ele ou ela fosse julgado como estando num estado de “perturbacdo total dos sentidos e da inteligéncia ao cometer 0 crime”. O cédigo penal de 1940 especificava que “a emogao ou a paixdo ndo eliminam a responsabilidade criminal”; elas tornaram-se, ao invés, um fator atenuante.> Esta campanha nao surgiu no vazio. Ela acompanhou a explosao de uma preocupagao social intensa e muito difundida com os crimes da paix4o, que surgiu na década de 1910 e permaneceu até os anos de 1930, Embora os 2Bhid., 466. 3Ver Roberto Lyra, O amor e a responsabilidade criminal (Sio Paulo, 1932), 210. 4Margarinos Torres, “O jury ¢ seu rigor contra os passionacs ou o amor no banco des reas", Revisia de Direito Penal, | (1933), 78. Ver © comentério do Juiz Nelson Hungria sobre 0 Artigo 24:1 nos seus Comentdrios a0 Cédigo Penal (de 7 de dezembro de 1940), 4 ediglo, vol. 1, n? 2 (Rio de Inneiro, 1958), 370- 382. 182 crimes da paixdo nao fossem de forma alguma um fendmeno novo no Brasil,® repentinamente cles comecaram a ser vivenciados como algo Pparticularmente ameagador. A percepeao popular era de que a situagdo estava fora de controle, Relatos horripilantes de crimes da paix4o tornaram-se matéria-prima da imprensa popular (que muitas vezes apoiava-se fortemente no sensacionalismo para aumentar as vendas).” Tribunais ficavam lotados de espectadores que vinham testemunhar o espetdculo ptiblico. E advogados transferiam sua oratéria grandiosa dos tribunais para os jornais. Conforme 0 némero de casos registrados aumentava num ritmo constante, criticos apocalipticos comegaram a fazer alarde. Os editores da famosa revista para mulheres, Revista Feminina, afirmavam que as mulheres estavam sendo assassinadas “aos montes.” Eles afirmavam que o nimero de mulheres mortas por homens no Brasil crescera de uma a cada doze horas em 1919 para uma a cada meia hora em 1924!8 Outras pessoas também conclufam que a sociedade estava sendo perturbada por uma “proliferagao extraordinéria”, uma “epidemia”, uma “coleg&o assustadora de massacres” de mulheres quebrando todos os recordes anteriores.? A comentarista social Maria Eugénia Celso exortava seus contemporaneos a protestar contra o que considerava 0 “retrocesso da civilizagéo”, ou o “abomindvel renascimento de prdticas barbaras antigas”.!° O jomal progressista A Esquerda concordava que 0 Rio de Janeiro estava atravessando um periodo de “auténtica selvageria”, e incitava as mulheres a se unirem para se protegerem contra “a covardia masculina que matava sorrateiramente”. Nas palavras dos editores do jomal, uma “explosdo de insanidade [foi] desencadeada sobre a familia do Rio, estilhagando lares, destruindo jovens em idade de formagio, tomando criancas SDe acordo com 4 lei portuguesa (@ qual o Brasil estava submetido durante o perfodo colonial), um homem casado que descobrisse sua mulher no ato do adultério tinha o direito legal de matar tanto cla quanto seu parceiro. Para uma breve histéria do tratamento dos crimes da paixio no Brasil, ver Mariza Corréa, Os crimes da paixdo, (Sio Paulo, 1981). ‘De fato, o sensacionalismo era outro problema que preocupava os promotores pablicos que lidcravam a campanha contra os crimes da puixio. Ver: Sensacionalismo. Conferéncias de Roberto Lyra e Carlos Sussekind de Mendonca (Rio de Janciro, 1933), Barbosa Lima Sobrinho, “O sensacionalismo”, Revista de Direito Penal, 5 (1934), 167-175. Sanna Rita Malheiros, “Junho”, Revista Feminina, 9:97 (Junho de 1922), “Os assassinos de mutheres”, Revista Feminina, 7:71 (Abril de 1920) “O assassin de mulheres”, Revista Feminina, 11:119 (Abril de 1924). (A partir daqui, a Revista Feminina sera citada como RE.) Lola de Oliveira, Passadismo e modernismo, 2* edicio (Sio Paulo, 1932), 124; Maria Eugénia Celso, De relance: Chronicas de B.E. (Sao Paulo, 1923), 31; Maria Lacerda de- Moura, Han Ryner 0 amor plural, ed. rev. (So Paulo, 1933), 49; “Os crimes passionaes”, A Esquerda (Rio de Janeiro), 28 de abril de 1931, reimpresso em Lyra, Amor ¢ responsabilidade, 86-88. 'Cets0, De relance, 32. 183

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