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Numismática e Medalhística
N.º 0 · 2017
FICHA TÉCNICA
Revista M
Número 0 · 2017
Âmbito e objetivos
A Revista M é a revista digital do Museu Casa da Moeda. De periodicidade anual, nela se publi-
cam textos que representam contributos relevantes para os estudos de Numismática, Medalhís-
tica e outras ciências afins. Admitem-se textos para publicação nas línguas portuguesa e inglesa
e acolhem-se propostas para números monográficos dedicados a temáticas específicas.
Diretor
REVISTA M · Nº 0 · 2017
Mário de Gouveia (INCM/MCM)
Conselho Editorial
Alberto Canto García (UAM, Madrid)
Maria João Gaiato (INCM, Lisboa)
Maria Rosa Figueiredo (FCG, Lisboa)
Mário Barroca (FLUP, Porto)
Rita Martins de Sousa (ISEG, Lisboa)
Rui Centeno (FLUP, Porto)
Ruth Pliego Vázquez (IEA, Paris)
Propriedade
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda
Avenida António José de Almeida
Edifício Casa da Moeda
1000-042 Lisboa (Portugal)
museucasadamoeda@incm.pt
www.museucasadamoeda.pt
Design
Vivóeusébio
Paginação
Imprensa Nacional-Casa da Moeda
ii
www.museucasadamoeda.pt
ÍNDICE
Nota de convite à
editorial apresentação apresentação
02 04 de artigos
112
• • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • ARTIGOS • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • •
REVISTA M · Nº 0 · 2017
conhecimento e lazer microrrepresentações do século III
ISABEL MANSO RIBEIRO de diferentes modelos José Ruivo
artísticos: da Grécia
Clássica à formação
06 dos modelos 50
bizantinos
Mário BRUNO PASTOR
25
Notas sobre um O retrato e as
tesouro monetário representações
da época islâmica ornamentais
encontrado em Moedas da primeira nas armas reais
Silves (INCM/MCM dinastia provenientes portuguesas em
22990-23079) do Castelo dos amoedações de ouro
Mário de Gouveia Mouros (Sintra): cunhadas entre
notícia preliminar 1722 e 1878
das escavações Mário BRUNO PASTOR
63 arqueológicas de
2009-2011
Mário de Gouveia, 80
Maria João de Sousa
73
EDITORIAL
Revista M: Money, Medal, Mint, Museum, Modernity
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anual, que nasce com um conceito novo. Digital porque procura res-
ponder às exigências de um público interessado em aceder à investi-
gação de topo através da rede global. Novo porque se apresenta como
a única publicação periódica no país, dedicada à Numismática e à Me-
dalhística, a incorporar toda a gama de potencialidades do mundo em
rede.
Num tempo em que a internet é um dos mais rápidos motores da
criação de novas formas de interação humana, a Revista M nasce com
o propósito de se transformar numa plataforma de diálogo científico,
regulada por elevados padrões de exigência e capaz de levar a todos o
que de melhor se faz naqueles domínios. Os autores que com ela cola-
boram e os artigos que nela se publicam convergem para a constatação
de um facto que é, para nós, inquestionável: a ciência só se faz com
base na interseção permanente entre passado, presente e futuro.
A Revista M publica textos que promovam novas abordagens ao
estudo da moeda e da medalha numa perspetiva interdisciplinar. Os
textos podem apresentar-se sob a forma de artigos, recensões e notí-
cias, sendo, em qualquer caso, reveladores da importância que subjaz
à liberdade de expressão e à pluralidade de opinião.
Com a publicação deste número, estamos convictos de que a Revis-
ta M se afirmará no panorama editorial como uma revista de referên-
cia. Convidamos, por isso, os interessados a enviar-nos as suas colabo-
rações, na expetativa de que a Revista M se transforme também num
2
espaço de comunicação com o público. O contributo de todos aqueles
que são capazes de pensar a ciência é indispensável para que este pro-
jeto cresça ao longo dos anos que se seguem.
O Diretor da Revista M
Mário de Gouveia
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NOTA DE
APRESENTAÇÃO
O presente número da Revista M é constituído por um total de seis
artigos escritos por cinco investigadores portugueses, representando
diversos caminhos possíveis no estudo da Numismática como ciência
de foro próprio. Assinados por Isabel Ribeiro, Mário Bruno Pastor, José
Ruivo, Mário de Gouveia e Maria João de Sousa, estes artigos têm em
comum o facto de partirem da consideração da moeda como objeto
que pode ser estudado nas suas várias componentes, permitindo até
enquadramentos científicos e metodológicos mais amplos, como os
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relativos à função social da cultura e à articulação entre as noções de
património e memória.
Os artigos publicados resultam de investigações originais, que fo-
ram desenvolvidas no âmbito de trabalhos sistemáticos conducentes
à realização de teses de doutoramento e dissertações de mestrado, de
estudos sobre problemáticas historiográficas e museográficas e de re-
latórios de escavações arqueológicas levadas a cabo em sítios de in-
teresse patrimonial. Estes artigos resultam da aplicação de métodos
empíricos concretos e devem entender-se também como pontos de
partida para futuras reflexões teóricas sobre os temas explanados.
A proposta de abordagem que cada artigo preconiza é de caráter
monográfico, estando todos eles organizados, ao longo das páginas
da revista, numa sequência cronológica que se inicia com o estudo
da moeda antiga e termina com o estudo da moeda contemporânea.
Neles se abordam temas muito variados, que abrangem, por um lado,
a função desempenhada pela comunicação digital na sociedade me-
diatizada, e, por outro, alguns problemas tipológicos e metrológicos
suscitados pelo estudo de moedas e tesouros monetários.
Isabel Ribeiro propõe uma série de reflexões sobre a importância
das revistas digitais como meio privilegiado para a fruição do conhe-
cimento e o lazer. Mário Bruno Pastor visita o universo das moedas
gregas, romanas e bizantinas através da observação dos modelos ico-
nográficos e suas leituras simbólicas. José Ruivo equaciona a proble-
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mática da crise por que o Império Romano terá passado no século III
através da análise das moedas e tesouros encontrados na Lusitânia.
Mário de Gouveia propõe algumas notas acerca de um tesouro forma-
do por moedas islâmicas e escondido em Silves por ocasião da con-
quista da cidade no século XII. Mário de Gouveia e Maria João de Sou-
sa dão notícia das moedas encontradas em escavações arqueológicas
na necrópole do adro da igreja de São Pedro de Canaferrim, junto ao
Castelo dos Mouros, em Sintra, datáveis da primeira dinastia. Num se-
gundo artigo, Mário Bruno Pastor tece considerações sobre o retrato e
as armas reais a partir da análise de moedas de ouro portuguesas dos
séculos XVIII e XIX.
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ISABEL MANSO RIBEIRO
Instituto de Educação da Universidade de Lisboa
ribeiro3@campus.ul.pt
As duas faces da
Moeda em revistas
digitais: conhecimento
e lazer
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Resumo
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divíduos da sociedade dos ecrãs, sendo, também, um incentivo à leitura em ambiente digital.
Abstract
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sobre qual a orientação da comunicação tra o divertimento. Pela sua versatilidade
digital? E a enunciação da resposta fa- as revistas digitais são publicações que
vorece, à semelhança da serendipity in- se posicionam, privilegiadamente, como
vestigada por Kop3, uma proliferação de um elemento de intercessão na gestão e
outras inquietações. Algumas com um organização de conteúdos.
enquadramento abrangente e a implicar Pelo descrito reafirma-se que a quan-
um pensamento profundo mas célere, ci- tidade de informação disponível em
tando exemplos: que competências em acesso aberto, e em diversos casos sem
literacia digital se devem deter para per- revisão de conteúdo4, implica a emer-
manecer em pleno no espaço comuni- gência de novos mediadores na comu-
cativo digital? Como promover junto da nicação de conhecimentos. Arrisca-se a
população essas competências digitais? audácia de, pelas suas propriedades, se
Que cidadania se deseja na cibercultura? situar as revistas digitais como um ex-
Como gerir a qualidade e a quantidade celente interveniente nesta intermedia-
dos recursos de acesso aberto? Outras, ção. Exemplos de revistas votadas a este
com um enquadramento mais específi- papel de curadoria são bem visíveis nas
co: qual o papel das revistas digitais no pesquisas online, pesquisas que passarão
atual contexto digital? Existe espaço a incluir a recente Revista M. Com a sua
para mais revistas digitais num domínio inauguração no espaço digital a Revis-
já por si tão repleto de informação? Este ta M, tenciona oferecer aos leitores, tal
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
como se pode ler na nota de divulgação, contram ao seu dispor, o que pressupõe
temas como a Numismática, a Medalhís- um entendimento acerca das tendências
tica, a Arqueologia, a História, a História da comunicação digital adequadas a
da Arte e outras ciências afins, posicio- uma determinada conjuntura7. Contudo,
nando-se, desta forma, na sociedade do para que a comunicação seja produtiva é
conhecimento digital. necessário um raciocínio cuidadoso ma-
A estrutura deste artigo está organi- terializado em recursos ajustados às ne-
zada em quatro tópicos. No primeiro te- cessidades do leitor digital, o que implica
cem-se algumas considerações teóricas saber: quais as práticas de leitura digital?
sobre a comunicação digital com relevo Inerente a esta pergunta deparamo-nos
para a importância da detenção de com- com outra: em que tipo de leitores digi-
petências em literacia digital. O segundo tais nos estamos a tornar? E ainda, quem
assunto debruça-se sobre a leitura digital são os leitores de revistas especializadas?
como processo intrínseco à comunica- As respostas a estas questões passam
ção e aquisição de saber no espaço digital. inevitavelmente por uma observação à
No terceiro tema apresenta-se o concei- literacia digital da população e pela im-
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to de revista digital, enumeram-se cara- plementação das competências identi-
terísticas deste Media assim como algumas ficadas nessa pesquisa. Se analisarmos
potencialidades. No último tópico faz-se o estudo de Lee, Lau, Carbo & Gendina
uma sugestão da narrativa a ser utilizada sobre a literacia digital e a sociedade do
nas revistas digitais e, por fim, redigem- conhecimento certificamos que:
-se as considerações finais.
The 21st century is an era of change. The
1. Comunicação Digital globe is under the influence of three
major world trends: the revolutionary
Os ambientes digitais com a integração development of information and
de múltiplos Medias num único dispo- communication technologies, the
sitivo estão a alterar a forma como co- transition to a knowledge society and the
municamos e nos relacionamos. A Web new learning mode of the Net Generation.
abriu aos cidadãos a possibilidade de te- These trends have generated a shift in the
rem um papel ativo na comunicação5. De educational paradigm, giving rise to the
divulgarem e partilharem conhecimento need to cultivate new competencies for
a qualquer hora e em qualquer lugar. De citizens in knowledge societies.8
adquirirem informação e participarem
em comunidades virtuais6. De fazerem Os autores deste relatório assinalam que
um uso consciente dos recursos que en- as tecnologias digitais irão acentuar a
5. Perrin 2015.
6. Duggan 2015.
7. Scolari 2012.
8. Lee, Lau, Carbo & Gendina 2013: 4.
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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cação em outros panoramas. conteúdos digitais; (iv) Segurança; pro-
Avaliar esta realidade é fundamental teção dos dados pessoais; a proteção
na medida em que a comunicação que de aparelhos e dispositivos conetados
se produz através dos ecrãs9 implica que à Internet; a proteção da saúde e a pro-
os sujeitos participantes detenham novas teção do ambiente; (v) Resolução de
aptidões. Estas capacidades têm sido ampla- problemas, identificar a necessidade da
mente debatidas pelos organismos institu- utilização de recursos digitais; decidir
cionais, entre os quais se destaca a Comissão conscientemente qual a ferramenta di-
Europeia. Atualmente, assume-se uma esta- gital mais apropriada para determinada
bilização em torno dos seus princípios base. tarefa ou determinado objetivo; utilizar
Princípios estes declarados na proposta do criativamente as tecnologias da infor-
quadro de referência das competências mação e comunicação para a resolução
digitais de Vuorikari, Punie, Carretero de problemas; identificar e resolver pro-
Gomez & Van den Brande10, da DigComp. blemas inerentes aos ambientes digitais;
Segundo este referencial, as competên- reconhecer a necessidade de atualização
cias digitais estão distribuídas em cinco das suas próprias competências digitais.
áreas: (i) Informação, que implica; locali- É elementar saber pesquisar a infor-
zar, identificar, analisar, guardar e organi- mação, analisá-la e utilizá-la de forma
zar informação obtida ou disponível nos adequada, Como destacam Cordón &
meios digitais, bem como reconhecer e Lopes11 e Cardoso12, a multiplicação de
9. Cardoso 2013.
10. Vuorikari, Punie, Carretero Gomez & Van den Brande 2016.
11. Cordón & Lopes 2011.
12. Cardoso 2013.
10
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
ecrãs está a mudar a nossa relação com ald19 refletem esta tendência. A ideia que
a leitura, quer do ponto de vista dos con-
tem sobressaído sobre o perfil de leitor
teúdos quer no modo como lemos. Os digital tipifica-o como sendo: (i) disper-
Media oferecem-nos quadros comuni- so, “salta” de conteúdo em conteúdo; (ii)
cacionais que podem ser aplicados a di- curioso, tem muita informação disponí-
versas práticas de aquisição de informa- vel; (iii) insatisfeito, pode aceder sempre
ção. A Web é amplamente utilizada para a mais assuntos. O leitor digital dispõe
pesquisar informação e os Media digitais de um tempo e de um espaço virtual. O
são usados como fonte de difusão da ecrã do dispositivo é simultaneamente
informação. Todo este enfoque de troca instrumento de trabalho, meio de comu-
delineia uma aprendizagem informal13 e nicação, recurso de informação e porta
apela à disponibilização de recursos ade-de entrada ao conhecimento. A leitura
quados a este ambiente, como por exem- no ecrã ganha novos adeptos e as vanta-
plo, e na perspetiva de Tavares14, Natan-gens são amplamente mencionadas.
sohn15, Leslie16 ou Hogarth17, as revistas Os leitores destacam a quantida-
digitais. de de informação e a rapidez de acesso,
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Estamos perante abordagens comu- como fatores impulsionadores de se ler
nicacionais que requerem novos mode- mais e mais rapidamente. Num artigo
los de disseminação de conteúdos. As publicado em 2015 concluíram Leu, For-
revistas digitais enquadram-se nesta zani, Rhoads, Maykel, Kennedy & Tim-
tipologia de recursos que aceleram a di- brell que estamos perante um novo tipo
luição das fronteiras entre o formal e o de leitores que tendem a executar três
informal traduzindo-se numa forma efi- tarefas quando leem no ecrã. Começam
caz de promover a transmissão do saber, por colocar uma pergunta de partida
de organizar e apresentar a informação que permite avançar na pesquisa, pros-
numa narrativa multimédia que permite seguem com a avaliação e síntese da
interatividade, proporcionando siner- informação e, por fim, comunicam essa
gias entre autor e leitor. informação. Os leitores digitais são leito-
res que, por norma, gostam de partilhar
2. Leitura Digital ideias através do envio de hiperligações,
posts de blogues, redes sociais, mensa-
É visível a sequência de estudos orien- gens instantâneas ou comunidades de
tados para a prática da leitura efetuada aprendizagem. Mas como é interpretada
no ecrã. Os trabalhos de Carr18 e McDon- a leitura digital?
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
A leitura digital é por vezes encarada McDonald, com base numa revisão
como “um conceito vago e multidimen- sistemática da literatura, de 150 autores,
sional”, expressões que se encontram na que estudaram a leitura em suporte di-
análise a um inquérito realizado à popu- gital, divulga conclusões que sugerem
lação portuguesa e coordenado por Car- que os nossos cérebros reagem de forma
doso20. De acordo com este projeto, sob diferente à leitura digital e à leitura em
esta designação estamos a agrupar exis- papel:
tências extraordinariamente díspares:
estamos a falar de livros e jornais, mas Neuroscience has made enormous strides
também de pequenos textos escritos e in the past decade and is now one of
partilhados nas redes sociais, de mensa- the most exciting fields in the natural
gens no Twitter, de e-mails e outros con- sciences. Though the field is still young
teúdos textuais que são publicados na and there is an emerging body of work
Internet onde os utilizadores são simul- emanating from it that is helping to
taneamente consumidores e produtores. highlight differences in the ways that our
Outra ideia importante, confirmada nes- brains respond to information presented
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te inquérito, é a de que os mais novos e on paper compared to information
a população com maior nível de escola- presented screens. In conjunction, with
ridade são os que tendem a ler mais em studies using more traditional behavioral
formato digital. O inquérito identificou tools, including surveys, eye-tracking,
ainda que os leitores assíduos nos su- question and answer testing, this
portes digitais são, tipicamente, leitores literature suggests that: Reading on paper
frequentes de formatos impressos. Já o is slower and deeper, while reading on
inverso não é verdade: os que leem mui- screen is faster and more in “scan” mode;
to em papel não são necessariamente Paper-based reading benefits from more
desmedidos leitores digitais. focused attention, less distraction, less
Do ponto de vista da sua linguagem o anxiety related to interruption, multi-
idioma digital rege-se segundo uma gra- tasking and cognitive load; Paper-based
mática hipermédia em que os textos, os reading is widely associated with better
sons e as imagens, se encontram ligados transfer to longterm memory and clearer
entre si por hiperligações. Perante estas comprehension…21
ilações questionamo-nos sobre se existe
algum benefício na leitura digital relati- Em estudos individuais encontramos di-
vamente à leitura em papel? A resposta versos relatos acerca dos diferentes for-
continua a ser muito controversa e os es- matos de leitura. A tendência permane-
tudos sobre esta temática multiplicam- ce a mesma, duas linhas de pensamento
-se sem que se chegue a um consenso. com cientistas a utilizarem argumentos
Debrucemo-nos sobre alguns pareceres. a favor da leitura em papel e outros a
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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minha mente ficava agarrada às voltas da pesquisa foi realizada a voluntários com
narrativa e às reviravoltas do argumento, idade compreendida entre os 55 e os 76
e eu passava horas a deambular através anos. Enquanto pesquisavam na Web fo-
de longos trechos de prosa. Agora, isso ram submetidos a testes com ressonân-
raramente acontece. A minha concentra- cia magnética funcional. Os investigado-
ção começa a andar à deriva após uma res perceberam que a exposição à rede
ou duas páginas”23. Afirma ainda que a fortalecia alguns circuitos neuronais. A
superficialidade da leitura e a distração internet pode, na ótica destes cientistas,
fazem parte dos leitores digitais: “Quan- ser uma fonte de exercícios para a mente,
to mais usam a Web, mais têm de lutar atenuando a degradação provocada pela
para se manterem focados em textos idade. Realçam que este aspeto benéfico
longos”24. Outros investigadores como, para o cérebro só ocorre com o uso mo-
Small, Moody, Siddarth & Bookheimer25 derado da Web. A superexposição tem,
referem que a leitura digital proporciona pelo contrário, efeitos nocivos. O impac-
um estado de contínua atenção parcial. to negativo potencial da nova tecnologia
Estamos permanentemente ocupados. no cérebro depende muito do conteúdo,
Não nos focamos em nada. A atenção da duração e do contexto dessa exposi-
parcial contínua é diferente da multita- ção. As mudanças visualizadas, através
refa na qual temos um propósito para de ressonâncias magnéticas, dependem
cada uma das ações paralelas e tentamos da frequência com que acedemos à rede
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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menciona as experiências desenvolvidas e ter uma compreensão idêntica em to-
por dois neurologistas, Marcus Raichle e das elas. Nos testes de controlo realiza-
Jan Born, os quais terão concluído que: dos compararam dois grupos de leitores:
um submetido a multitarefas relaciona-
El modo offline o desconectado del cere- das com a comunicação digital e outro
bro (cuando duerme pero, también, cuan- submetido a uma só tarefa de cada vez.
do descansa y deja de estar sometido a las O grupo de multitarefas não foi capaz de
incitaciones digitales o a las premuras de reter informações relevantes e organi-
la agenda), es simplemente imprescin- zá-las de forma adequada. Os níveis de
dible para adquirir una conciencia cabal desempenho foram consideravelmente
de nuestra propia identidad, para rumiar mais baixos comparativamente ao grupo
nuestros problemas y para aportar solu- que realizou uma tarefa de cada vez.
ciones o ideas innovadoras fruto de esa
digestión pausada.26 The present research suggests that
individuals who frequently use multiple
O resultado desta investigação não é media approach fundamental information
novidade à prática da leitura digital, a processing activities differently than
situação descrita aplica-se a todos os do those who consume multiple media
procedimentos vivenciais. O cérebro ne- streams much less frequently: their
cessita de descansar para absorver mais breadth-biased media consumption
informação. Porém, fica o reforço de que: behavior is indeed mirrored by breadth-
biased cognitive control. HMMs have
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
greater difficulty filtering out irrelevant leva a que se leia mais. A socióloga con-
stimuli from their environment (as sidera que os utilizadores que passam
seen in the filter task and AX-CPT with mais tempo na Internet são os que leem
distractors), they are less likely to ignore mais. Ler é, aliás, segundo a autora, uma
irrelevant representations in memory (two- condição absolutamente necessária para
and three-back tasks), and they are less se navegar e participar na Web. Como
effective in suppressing the activation of destacam Arévalo & Córdon, o contexto
irrelevant task sets (task-switching).This digital:
last result is particularly striking given the
central role attributed to taskswitching in … traerá nuevas prácticas de aprendizage
multitasking. 28 cada vez más alejadas de la lectura lineal
y más próximas a narrativas reticulares
Quanto mais intensamente a multitarefa proporcionadas por las capacidades de la
é praticada menos capacidade têm para integración entre hipertextualidad, multi-
selecionar a memória em funcionamen- media, y realidade aumentada que abren
to e maior é a distração. Perdem sistema- nuevos escenarios para la adquisición de
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ticamente a capacidade de diferenciar conocimientos, en dispositivos, que con
entre o que é importante e o irrelevan- un solo toque de pantalla, facilitan la in-
te. Reagem a qualquer informação que teracción, la exploración y la investigación
atrai a sua atenção, levando-os a perder en profundidad.30
a capacidade de avaliação. Em síntese,
segundo esta equipa de investigadores, a O neurologista António Damásio31 en-
concentração e a qualidade da avaliação contra-se entre o grupo de cientistas que
da informação dos que praticavam ta- considera que a tecnologia não prejudica
refas em simultâneo e de forma assídua a capacidade de concentração. O cérebro
descia gradualmente. consegue adaptar-se sem perder capaci-
Os resultados das investigações aqui dade de aprendizagem. Um ambiente
destacadas em nada contrariam a impor- estimulante como o da Web aumenta a
tância da leitura digital, apenas alertam possibilidade de a inteligência se desen-
para a necessidade de um maior esforço volver.
na concentração, organização e sentido E estará a população disposta a con-
crítico. Como a realidade virtual é um sumir leitura digital? A resposta a esta
mundo de contrariedades examinemos pergunta, baseada nos estudos de diver-
alguns estudos que apontam outro tipo sos investigadores que se dedicam a este
de considerações para a leitura digital. tema32, é a de que os cidadãos estão na
Wendy Griswold29 sugere que a Web sua generalidade dispostos ao consumo
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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utilizadas. que escrevem sobre esta temática. Hol-
mes & Nice35, Scalzo36, Leslie37, Hogart38,
3. Revistas Digitais, o Conceito Dourado39 são algumas das referências
na delimitação terminológica deste ter-
Como salienta Ribeiro33, olhar para uma mo. Se é certo que os peritos destacam
revista é quase irresistível. O impacto características comuns a este Media
visual é instantâneo. O design desper- também é comum ver o conceito asso-
ta-nos o desejo para a leitura dos con- ciado a diversos formatos de publicação,
teúdos. Os leitores estabelecem um elo por exemplo, réplicas da versão impres-
emocional com este objeto. A mensagem sa, revistas multimédia, revista interativa,
é lida sem grande complexidade. só para mencionar algumas das atribui-
Juízo “agradável” e sustentado na ções. Como explica Leslie, no contexto
revisão da literatura. As revistas têm, ao contemporâneo a revista continua a
longo do seu percurso histórico, desem- ser uma forma de comunicação “that
penhado uma função central na capta- can avoid the template-driven urgency
ção de leitores. Diz-nos a bibliografia que of the newspaper or website, while
este Media continua a fascinar o público not demanding the timeless reflection
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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Para Hogarth as revistas oferecem con-
teúdos de informação e de lazer o que Com base nas aceções examinadas, as-
justifica o seu sucesso, “This formula has sume-se que uma revista digital é uma
always been – and continues to be – the publicação periódica concebida e forma-
key to successful publishing”43. Revela tada para ser lida no ecrã. Carateriza-se
ainda duas boas práticas para o sucesso por conter recursos interativos e hiper-
das publicações, que são: conhecer o lei- textuais, o que permite novas experiên-
tor e a especialização temática. Hogarth cias narrativas. Normalmente é concebi-
declara que no conceito as edições digi- da para ser lida em dispositivos móveis.
tais são muito similares às versões im- A portabilidade, acessibilidade, e funcio-
pressas, contudo: “digital versions allow nalidades, são categorias associadas a
far more possibilities such as embedding este formato de comunicação.
video or links into the pages thus enhan-
cing the user`s experience and enabling 3.1. Categorização das Revistas Digitais
the reader to build a library of issues wi-
thout the bulk of print versions.”44 Como Cada revista tem a sua identidade pró-
os leitores são o principal foco na con- pria mas todas elas têm caraterísticas em
ceção e desenvolvimento deste Media comum e, por isso mesmo, e indepen-
acrescenta-se a reflexão de Holmes & dentemente do suporte de publicação,
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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do leitor às versões periódicas e não uma resultam da elaboração de estudos sobre
alternativa ao conteúdo impresso ou di- esta temática apontam para classifica-
gitalizado para dispositivos móveis. ções distintas de acordo com o meio, o
Uma revista digital implica um traba- formato da publicação e a natureza do
lho em equipa. Um corpo editorial, uma conteúdo. Alguns autores, como Dou-
redação, fotografias e ilustrações, design rado48 admitem que as revistas digitais
gráfico. Implica plataformas e softwares podem ser distribuídas em três formatos:
adequados. Os artigos são concebidos na Web, em Smartphone e em Tablet. No
com narrativa multimédia. A fórmula estudo realizado por esta investigadora
editorial assinala a personalidade de é possível identificar seis modelos de
uma revista. O tipo de conteúdo, a for- revistas digitais: Sites de Revistas, Webzi-
ma como é apresentado, a imagem que nes, Revistas Portáteis, Revistas Expandi-
sustenta o texto ou que funciona como o das, Revistas Nativas Digitais e Revistas
próprio conteúdo, aliado a toda uma es- Sociais. Em relação aos Sites de Revistas
tratégia de posicionamento junto do lei- refere que praticamente todas as revis-
tor contribuem para a imagem de marca tas impressas têm Sites de Revistas que
de uma determinada publicação. funcionam com objetivos distintos, no-
As revistas digitais resultam de uma meadamente, a fidelização do cliente ao
mistura de caraterísticas herdadas das produto impresso, ou como canal para
publicações impressas a que se juntaram aprofundar os assuntos tratados, ou pro-
particularidades digitais. Horie & Pluvi- porcionando ao cliente recursos multi-
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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minam o mercado com vendas e anún- mações noticiosas ou da esfera privada.”
cios afirmam a presença editorial tam- As informações são organizadas funcio-
bém nos dispositivos móveis, suporte em nando como agregadores de conteúdo.
que são disponibilizadas as publicações “A prática destes produtos, intitulados re-
deste paradigma. Tais revistas utilizam a vistas, tem relação direta com a cultura
versão impressa na íntegra e adicionam vigente no ciberespaço, principalmente
novos elementos de conteúdo multimé- em termos de autonomia de produção e
dia em níveis de aplicações diversas. Por de distribuição de conteúdos”51. A autora
serem uma extensão potencializada da salienta que os quatro modelos iniciais
versão impressa, Dourado49 optou por de- têm muitas semelhanças com as carac-
signá-las Revistas Expandidas. As Revis- terísticas das revistas impressas, “tendo
tas Nativas Digitais constituem o quinto a capa como principal representação
modelo. São publicações desenvolvidas simbólica e identitária da revista, e com
exclusivamente para Tablet e têm cres- conteúdo disponibilizado de modo se-
cido no mercado editorial. “Pelo caráter quencial, algumas com simulação do
exclusivo, pensadas e desenvolvidas com folheio, como as Webzines, que são pen-
foco na plataforma, a expectativa é que sadas para leitura em computador, note
as produções sejam interativas e expe- ou netbook. O folheio é adaptado – não
rimentais, propondo uma linguagem simulado – nas Revistas Expandidas e
inovadora, condizente com as caracterís- Nativas Digitais, ambas consumidas em
ticas do suporte Tablet. A proposta da re- tablets, com navegação por conteúdo e
19
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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tura de cada tipo de publicação digital. rem ler revistas digitais em dispositivos
Burke classifica-os em quatro classes: móveis em detrimento de um ecrã de
computadores, smartphones, ereaders e computador. Tal opção deve-se às capa-
tablets. Destaca ainda diversos tipos de cidades que a narrativa multimédia ofe-
publicação digital em relação aos seus rece nestes dispositivos.
formatos, dos quais destacamos: o Pdf, As revistas digitais56 oferecem uma
a réplica digital e a revista interativa. O narrativa que combina elementos está-
Pdf foi, e continua a ser para algumas ticos, como texto, com elementos dinâ-
publicações, o formato privilegiado para micos, como áudio, vídeo, infográficos,
a distribuição das publicações digitais. gráficos dinâmicos. Esta conjugação
Possui alguma interatividade através de entre os elementos comunicacionais
hiperlinks e é possível a sua leitura em proporciona uma experiência multisen-
quase todos os dispositivos. A réplica di- sorial em que é usada a visão, a audição
gital é, como o próprio nome indica, uma e o tato. Permite experiências de leitura
cópia da versão da revista impressa e sensíveis ao toque e a obtenção de infor-
permite a introdução de hiperlinks, com mação mais completa.
texto, audio e vídeo. A revista interativa A narrativa para uma revista digital
nasceu, segundo a classificação proposta é uma narrativa multimédia e, esta está
por Burke, com o ipad e apresenta uma associada à migração das revistas para o
interatividade acentuada. É um formato ambiente digital. As potencialidades do
20
AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
meio são, deste modo, os canais promo- história das revistas e nas suas narrativas.
tores do conteúdo. Como se processou As revistas utilizam uma linguagem
esta evolução? Anthony Quinn57 identi- que agrada, os temas proporcionam re-
fica sete fases na migração das revistas flexão, concentração e experiências de
para o ambiente digital. Começa por leitura diversificada. A revista digital é
descrever a produção digital com início na sua essência interativa. Os conteúdos
em 1980; seguindo-se a revista em CD- são formatados para serem lidos no ecrã.
-Rom em meados de 1990; prosseguindo Têm um tratamento estético atraente
com os Websites também em meados de sendo um fator motivador para a leitura.
1990; ainda as revistas digitais online em
meados de 1990; a Extensão da marca em Considerações Finais
início de 2000, as revistas digitais, em
formato exclusivamente online em mea- Os estudos comentados neste artigo
dos de 2000 e, por fim, a partir de 2010 revelam que nos estamos a tornar em
as revistas digitais exclusivamente para leitores mais frequentes, motivados em
leitura em dispositivos móveis, com uma grande parte pelo uso da tecnologia di-
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narrativa multimédia. Acrescentando gital. O desenvolvimento das tecnologias
alguns elementos a esta perspetiva his- da informação e comunicação e o acesso
tórica diz-nos Freire58, que para Anthony aberto ao conhecimento contribuíram
Quinn a primeira fase é anterior ao iní- para alterar positivamente o número de
cio da Internet. As revistas circulavam leitores na sua generalidade. No caso
por e-mail ou em serviços de teletexto. A concreto de revistas digitais é possível
segunda fase é a da produção digital con- observar um aumento no acesso atra-
solidada com a utilização de programas vés dos números divulgados em estatís-
de edição eletrónica. As revistas em CD- ticas nacionais, como os da Associação
-Rom consistiam em publicações grava- Portuguesa para o Controlo de Tiragem
das exclusivamente para este dispositivo. (APCT, 2017) e em estatísticas interna-
A terceira fase, carateriza-se pela criação cionais, como The Magazine Publishers
de Websites destinados à divulgação das of American (MPA, 2017). Sublinhe-se,
revistas. As versões eram reproduções porém, que os estudos não revelam um
em pdf, a que Quinn atribui a denomi- acréscimo da leitura digital em profun-
nação de digital facsimiles. A extensão didade mas evidenciam um aumento
da marca inclui a introdução de redes no número de horas dedicados à leitu-
sociais e canais no Youtube. A partir de ra. Estamos em permanência ligados ao
2006 encontram-se criadas condições e-mail, aos tweets, às conversas nas redes
para a publicação de edições exclusiva- sociais, às SMS, às notícias. Existem exce-
mente online. Em 2010, com o lançamen- ções à leitura digital? Claro que sim, po-
to do ipad, dá-se um importante salto na rém é cada vez mais difícil abstermo-nos
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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ção e novas competências para a gerir.
Novidades nos recursos mediáticos pro-
porcionam outras formas de acesso ao
conhecimento, sendo um desses recur-
sos as revistas digitais que se afiguram
como um elemento para estabelecer o
diálogo entre os leitores e o conhecimen-
to. Reconsidera-se o conceito de revista
digital como um produto que motiva a
leitura, que através dos diferentes géne-
ros de escrita permite a pluralidade e a
diversidade de perspetivas, que apresen-
ta saberes relevantes para a vida, e que,
ao fazê-lo em pequenas unidades, com
narrativa multimédia, permite a gestão
do tempo de cidadãos ativos e a criati-
vidade na aplicação do conhecimento à
prática. As revistas digitais são uma via
de leitura desejável e acessível à popu-
lação, as narrativas empregues estão em
consonância com a sociedade digital, ta-
manho do texto, diversidade de Medias,
design atrativo, e formatadas para leitura
numa pluralidade de plataformas, com
destaque para os dispositivos móveis.
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AS DUAS FACES DA MOEDA EM REVISTAS DIGITAIS: CONHECIMENTO E LAZER
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MÁRIO BRUNO PASTOR
CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologias das Artes
Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes
mbrunopastor@gmail.com
As moedas da
Antiguidade enquanto
microrrepresentações
de diferentes modelos
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artísticos: da Grécia
Clássica à formação
dos modelos bizantinos
Resumo
Abstract
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They can be read as paradigms of aesthetic tendencies that not only represent the
iconographic languages of their era, but also, given their democratic nature, as currency, can
be considered as diffusing agents, among the common people, of the avant-garde aesthetic
models advocated in their time.
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clara de autoria, ou não, mas subenten- do cronológica) arqueológica. Por outro
didas sempre como trabalho de autor, lado, as características miniaturiais das
ou de oficina de autor2. Como tal, a obra moedas também poderão ter afastado
de arte enquanto fonte acaba por ficar um pouco as atenções dos historiado-
reduzida à peça única. Os objetos de res da arte sobre esta temática: “the
produção mecanizada e em série não art-history of coinage has been to some
são, normalmente, alvo de particular extent neglected in the past while that
atenção por parte do historiador da arte, of painting or sculpture or architecture
ou, quando o são, trata-se de objetos de has thrived, a reason is possibly to be
produção contemporânea, e a sua inscri- found in the very small scale of the coins
ção no universo analítico da História da themselves.” 5
Arte é feita num contexto de reflexão de Assim, o que propomos explanar é
crítica artística e até sociológica. uma leitura diacrónica dos elementos
Deste modo, o objeto do quotidia- de valorização artística e a sua corres-
no, o fragmento utilitário do passado pondente contextualização conceptual,
1. Referimo-nos à categorização clássica das belas-artes, no entanto, consideramos que as novas formas de
representação artística de natureza gráfica, como a fotografia, o cinema e a banda desenhada, ainda que
não representativas para o presente trabalho (por estarem fora do âmbito cronológico de estudo), são, de
certa forma, herdeiras da mesma metodologia das artes tradicionais.
2. No caso de produções artísticas da Pré-História, ou de natureza antropológica ou etnográfica, a questão
da autoria, ou do contexto autoral, é definida seguindo mais ou menos os mesmos critérios tipológicos,
através da inserção das obras em correntes ou estilos de produção
3. Janson & Janson 2004: 164.
4. A produção monetária, mesmo a clássica e a medieval, de cunhagem a martelo, segue padrões de organiza-
ção e produção do trabalho claramente proto-industriais, de modo distintivo em relação a qualquer outro
tipo de produção massificada anterior à Revolução Industrial.
5. Grant 1995: 108.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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de sistematização de momentos-
-chave de conceptualização da Arte. Platão, República, 476c
As reproduções são todas apresenta- (tradução de Maria Helena da Rocha Pereira)
das numa escala superior às dimensões
das peças, com a exceção do Camafeu Quando são referidos os modelos con-
de Paris (figura 15)6, que é representa- ceptuais estéticos coevos para o mundo
do em tamanho próximo do natural. clássico grego, normalmente é invocado
Ainda em termos metodológicos, o pensamento socrático-platónico sobre
optamos por não sobrecarregar o texto a arte e a beleza. Com efeito, a definição
e legendagem com as referências nu- platónica de beleza é sobretudo um mo-
mismáticas tradicionais de catálogo, delo abstrato9 e não representativo (ou
bastante pesadas e iniciáticas, nomeada- não-figurativo) da realidade, visto que
mente as descrições de eixos, orientação essa representação seria sempre imita-
da legenda ou mesmo a leitura completa tiva (mimesis), e, como tal, redutora e
das legendas imperiais romanas7. Assim, medíocre do conceito mais puro e ver-
não recorremos, pelo menos em termos dadeiro de beleza. O belo sensível ficaria
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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autores não serão imunes às impressões
do dia a dia e ao que elas poderão esti-
mular, mesmo a nível subconsciente, em
termos de estruturação de pensamento
e de definição de ideias. As moedas são
um pequeno espelho do seu tempo10. Figura 1 – Didracma ateniense em prata,
Neste sentido, é interessante refletir um cerca de 545-510 a.C. Platão, em Timeu, sec-
pouco sobre o dinheiro que circulava ção 56e, refere a composição de triângulos
diariamente na Atenas de Sócrates e de no quadrado equilateral como exemplo de
Platão (na viragem do século V para o estabilidade.
século IV a.C.). As moedas, sendo deriva-
ções miniaturizadas da arte escultórica,
Em contrapartida, a dracma ateniense
seriam, à primeira vista, sempre ele-
dos séculos V e IV a.C. (figura 2), a famo-
mentos miméticos da Natureza, peças
sa dracma da coruja, foi efetivamente a
conceptualmente menores dentro das
principal moeda que circulou nos tem-
premissas platónicas. No entanto, vale
pos de Platão. O modelo base utilizado é
a pena observar e refletir um pouco
já de natureza figurativa e mimética: no
sobre as primeiras moedas atenienses.
anverso apresenta a cabeça, ainda que
As didracmas (figura 1) ainda do sé-
estilizada e de feição um pouco arcaica,
culo VI a.C., anteriores, portanto, ao
de Atena, com capacete ático. O reverso
nascimento de Platão, mas que, dada
preserva uma memória, poderíamos
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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do século V a.C. tornou-se o padrão para a dra- A modelação imitativa da Natureza
cma até meados do século III a.C. Contrapondo e a sua contemplação, seja de caráter
a dracma clássica com o modelo arcaico da fi- estético, científico ou simplesmente
gura 1, podemos verificar uma alteração de um por prazer, passou a fazer parte do pa-
modelo abstrato conceptual para um modelo radigma artístico helénico, o chamado
figurativo mimético. Em termos platónicos, naturalismo.
seria um bom exemplo da representação mi- Do ponto de vista monetário, a tetra-
mética menor de um conceito original de ideal dracma macedónica foi a grande moeda
de belo. do período helenístico, e a sua evolução,
desde os primeiros exemplares cunha-
2. O Helenismo: imitação, proporção e dos por Filipe II (ou pelo filho, em seu
expressão nome) até sensivelmente meados do
século II a.C., revela não só a evolução
(...) imitar é uma qualidade congénita nos do conceito de retrato, de um princípio
homens, desde a infância (e nisto diferem ainda um pouco idealista, passando pelo
dos outros animais, em serem mais dados naturalismo mais conseguido, até a uma
à imitação e em adquirirem, por meio dela, degeneração formalista, já muito acade-
os seus primeiros conhecimentos); (...) mizada, do chamado Nouveau Style ou
todos apreciam as imitações. Novo Estilo15.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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Plínio, na sua História natural (VII 37), O refinamento do retrato, bem como
refere que Alexandre confinou a re- das temáticas dos reversos16 nas te-
presentação da sua imagem a apenas tradracmas helenísticas, vai-se de-
três autores: Apeles, na pintura; Lisipo senvolvendo ao longo dos séculos IV
de Sícion (possivelmente da escola e III a.C., para ganhar, nos inícios do
de Policleto), enquanto escultor, e século II a.C., o que consideramos o
Pirgoteles, como abridor dos sinetes máximo de expressividade, nomeada-
reais com a sua efígie. Enquanto abri- mente com os retratos de Antímaco17.
dor, Pirgoteles poderá ser o inspirador Ao mesmo tempo, a continuação da
dos modelos do retrato numismático representação de Alexandre (que ultra-
de Alexandre. Contudo, é de referir que, passou até o período helenístico, sendo
em vida de Alexandre, as efígies nas pontualmente recuperada durante o
suas moedas são sempre identificadas próprio Império Romano) revelou não
com Héracles, e não com a personalida- só o programa político de legitimação
de viva. Na verdade, os únicos retratos das autoridades, mas também a evolu-
monetários claramente identificados ção da retratística de Alexandre, possi-
com uma personalidade real são as re- velmente inspirada em outras obras de
presentações póstumas de Filipe II, em arte, como estatuária, pintura e cama-
alguns estáteres e tetradracmas cunha- feus que, entretanto, se perderam18.
dos já no tempo de Alexandre.
Nesta primeira fase, o retrato ainda
16. Neste tipo de cunhagem, o reverso é normalmente ocupado por representações deísticas, nomeadamente
dos deuses protetores de cada cidade ou da personalidade emissora.
17. Janson & Janson 2004: 164.
18. Dahmen 2007: 58.
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MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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Alexandre”). de Alexandre, o acabamento do retrato, bem
como a sua expressão forte e a dinâmica pro-
porcional e delicada da imagem de Atena, no
reverso, refletem de forma exímia a alteração
do paradigma artístico na transição do século
IV para o III a.C.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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corativos em ambas as faces da moeda, retira-
O chamado Novo Estilo é um conceito -lhe criatividade e surpresa, remetendo-a para
usado para caracterizar as novas emis- um estilo mais académico e formalista.
sões do Mundo Grego. São moedas
cunhadas a partir de meados do século
II a.C., como forma de recuperar algu-
ma confiança económica, resultado da
conquista romana, efetivada em 146 a.C.
Uma das estratégias para recuperar a
boa moeda (entretanto depreciada) foi
precisamente o recurso à temática clás- Figura 9 – Denário romano em prata, emissão
sica ateniense: busto de Atena e coruja. de 211-207 a.C. (Sear 99). Cabeça de Roma, à
Contudo, o novo modelo, de um hele- direita, com capacete alado e marquilha X,
nismo já muito tecnicista, denuncia um indicadora do valor facial; reverso, gémeos
estilo muito canónico, próximo do que Dióscuros, Castor e Pólux, a cavalgar sobre-
Plínio (História natural XXXIV 83) atri- postos, à direita. Legenda do exergo ROMA. De
bui à escola de Xenócrates (também na- influência claramente helenística, os primei-
tural de Sídon, como Policleto e Lisipo)19. ros denários romanos (originalmente valiam
Terá sido este modelo formal e ca- dez asses, depois foram revalorizados para
nónico que os romanos terão importado dezasseis asses ou quatro sestércios) procuram
para a sua República, ainda durante o reproduzir a expressividade e dinâmica das
século II a.C. amoedações helenísticas anteriores ao Novo
Estilo.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
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A procura de alguma leveza, tanto na efígie (ou pretendente) vivo na amoedação
do anverso, como na cena bucólica do rever- romana, foi mantida até ao final do
so, condiciona um pouco a expressividade da século, quando Octávio, por fim, se fez
gravação, imprimindo-lhe pouco movimento nomear Augusto, em 27 a.C., iniciando
e uma plasticidade convencional muito bidi- formalmente o título imperial e a pri-
mensional, possivelmente imitativa do modelo meira dinastia, a Dinastia Júlio-Cláudia.
canónico do Novo Estilo ou de temáticas deco- Em termos estilísticos, o retrato pro-
rativas de outras artes visuais, como a pintura. to-imperial e dos primeiros tempos do
império pode ser considerado como
Não só as Guerras Púnicas, mas sobretu- algo rígido, mas já com tendência
do as Guerras Civis romanas do século para a expressão realista. A tradição
I a.C. também se manifestaram, inevi- é de imobilidade e de alguma sageza,
tavelmente, na produção monetária e, acentuada pela inclusão das rugas e
mais concretamente, na retratística. A de expressões cerradas dos retratados.
tradição republicana de não repre- Suetónio, em As Vidas dos Doze Césares
sentar personalidades vivas, a aversão (II 50) refere que os sinetes que Augusto
romana ao conceito de rex, de tirano usava para selar a sua documentação
ou qualquer poder autocrático era per- começaram por ostentar uma esfinge
manentemente zelada pelo Senado. O (provavelmente de influência egípcia),
reflexo desse programa de organização depois o retrato de Alexandre e, final-
política é patente nas representações mente, a sua própria efígie. Suetónio
dos anversos da amoedação republicana atribui a Dioscórides a autoria deste
romana (figuras 9 e 10) em que apenas último sinete que, aliás, terá sido usado
alegorias ou divindades (normalmente também pelos sucessores do imperador.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
Das poucas peças que se conhecem Quinto Nasídio, entre 44-43 a. C. (Sear 343). O
de Dioscórides, destaca-se o Camafeu retrato do anverso é de Pompeio Magno (pai
de Paris (figura 15), propriedade da de Sexto), portanto, já póstumo. Manifesta,
Bibliothèque Nationale de France, com contudo, uma tradição realista, mas um pouco
a efígie de Augusto. A comparação do mais expressiva do que a das amoedações
camafeu com o retrato oficial das moe- de César, em Roma; no reverso, uma galé em
das imperiais de Augusto leva-nos a crer movimento, representativa do domínio medi-
que o modelo de Dioscórides terá sido terrânico de Pompeio.
o modelo oficial para referência dos
moedeiros, o que, ao contrário das moe-
das pré-imperiais, parece ter aberto um
momento excecional de retrato idealista
romano.
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Figura 13 – Denário em prata de Octávio,
presumível emissão de Roma, c. de 31-30 a.C.
(Sear 464). Retrato descoberto, à esquerda; re-
verso, Vitória em pé, sobre um globo, estenden-
do uma coroa de louros, legenda evocativa do
Figura 11 – Denário em prata de Júlio César, divino César. O retrato de Octávio, aqui com
emissão de Roma, pelo moedeiro Sepúlio cerca de 32 anos, manifesta uma expressão
Macro, janeiro-fevereiro de 44 a.C. (Sear neutra e oficial, contudo, os traços são realistas,
359). No anverso, o retrato laureado de César, nomeadamente no tratamento da forma do
à direita, com uma estrela (planeta Vénus) à nariz.
esquerda; reverso, a deusa Vénus em pé, com
uma vitória e lança. O retrato é rígido, de
feição mais realista do que naturalista, com
acentuação das rugas de César, por exemplo.
Por seu turno, Vénus, no reverso, é harmoniosa
e até bastante dinâmica, com alguma expressi-
vidade de movimento.
Figura 14 – Áureo de Augusto e Tibério, Roma,
c. do ano 13-14 (Sear 520). Efígie laureada de
Augusto, à direita, no anverso; reverso, Tibério,
de cabeça descoberta, também à direita.
Cunhado nos últimos meses de vida de Octávio
César Augusto, este áureo serviu de apresenta-
ção pública do seu sucessor, Tibério. É curiosa
Figura 12 – Denário em prata de Sexto a disposição dos dois retratos: Augusto, na al-
Pompeio, cunhado na Sicília, pelo moedeiro tura com setenta e cinco anos, e Tibério, com
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
cinquenta e cinco anos. Na verdade, Augusto é ainda Cristo, houve, de Cícero a Marco
representado de forma idealizada, como eter- Aurélio, um momento único em que só exis-
no jovem, num modelo corrigido da imagem tiu o homem.
mais aguda e aquilina da sua verdadeira juven- Marguerite Yourcenar,
tude (figura 13). A expressão do imperador é Apontamentos sobre As memórias de Adriano
serena e pouco expressiva. Ao mesmo tempo, (tradução de Maria Lamas)
Tibério, no reverso, é representado de forma
mais realista, anacronicamente mais velho, A tendência do retrato romano, ainda
ainda que igualmente pouco expressivo. que ligeiramente interrompida na
transição do século I a.C. para o século
seguinte, seguiu, como vimos, o cami-
nho de acentuação do realismo, ainda
que inicialmente apenas tenuamente
expressivo, da efígie monetária imperial.
Deste modo, sobretudo após a morte
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de Augusto, no ano 14, o vinco realista
intensificou-se, chegando, em alguns
momentos, como no final do século I e
no início do século II, a atingir o hiper-
-realismo quase caricatural.
Durante o chamado Século de Ouro,
mais especificamente durante os princi-
Figura 15 – Camafeu da Biblioteca de Paris, ou pados de Trajano e de Adriano a Marco
Camafeu Augustano, atribuído a Dioscórides, Aurélio, a tendência estilística parece
cerca de 25-20 a.C. em sardónica e marfim, ter recuperado um pouco o naturalis-
com montagem do século XIV em prata dou- mo21 expressivo do retrato helenístico.
rada, com safiras, cristais vermelhos e pérolas. O próprio Cómodo fez-se representar
O modelo estático e idealizado de Augusto várias vezes como Hércules22, não só
parece ter servido de base para a retratística manifestando uma afirmação política de
monetária do imperador, um pouco ao arrepio confronto com a tradição do principado
da tendência para o realismo na gravação mo- dos imperadores adotivos que o prece-
netária romana. deram (nomeadamente o próprio pai,
Marco Aurélio), mas também para exibir
4. Realismo e hiper-realismo romano: uma afirmação visual de aproximação
a proporção única do Homem identitária com a memória de Alexandre
(figura 24).
Não existindo já os deuses e não existindo Com os Severos, já nos primeiros
21. Utilizamos o termo naturalismo no sentido simplesmente semântico, como inspirado pela Natureza, à ma-
neira mimética do conceito aristotélico de arte, sem confusão, portanto, com o movimento naturalista da
História da Arte, que é do século XIX.
22. Rebuffat 1996: 182.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
MODELOS ARTÍSTICOS: DA GRÉCIA CLÁSSICA À FORMAÇÃO DOS MODELOS BIZANTINOS
anos do século III, mas ainda num módulos de 25 a 33 mm), são o material
momento de forte afirmação da raiz numismático privilegiado para aprecia-
cultural tradicional romana, nomeada- ção do retrato.
mente do realismo, o retrato retoma a
expressividade anterior. Aliás, o peso e a
cerimónia do retrato imperial acentua-
ram-se sobremaneira logo no início da
Dinastia Severiana, com o incremento
de uma maior ritualização da cerimónia
de colocação do busto dos imperadores
e família imperial nos templos23. Na se-
quência da tradição do retrato realista
recuperado pelos Severos, os imperado- Figura 16 – Sestércio em bronze de Nero,
res da chamada Anarquia Militar, que cunhado em Roma no ano 65 (Sear 682).
dilacerou Roma a partir do ano 23524, Cabeça laureada de Nero, à direita, no anver-
ainda preservaram um pouco a tradição
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so; reverso, Roma sentada com uma vitória na
realista, mas, em meados do século, um mão. Legenda S-C (Senatus Consulto) e ROMA,
novo paradigma estilístico viria a afir- no exergo. O estilo forte, próprio do realismo
mar-se. Depois da década de 250, ainda romano, mostra-nos Nero, com vinte e oito
em plena anarquia, curiosamente pou- anos, enquanto indivíduo pesado, possivel-
cos anos após a chegada e instalação de mente para exprimir força física, quase brutali-
Plotino em Roma25, o filósofo que viria a dade. O olhar acentua uma expressão dura. Por
recuperar a originalidade grega do pla- seu turno, Roma, no reverso, segue o cânone
tonismo26, o modelo realista romano co- perfeito de harmonia e proporção.
meça a ser paulatinamente abandonado.
Neste período, que vai do século I até
meados do século III, as grandes peças
de bronze, como os sestércios (com
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anos, é sobretudo caracterizado pelo nariz
aquilino que viria a servir de imagem caricatu-
ral para o nariz romano. A expressão nervosa
confere-lhe um aspeto de estadista mais buro-
crático do que protetor.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
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representação canónicas anteriores, apresenta segurar uma balança. Com cerca de sessenta e
mais expressão do que movimento, fazendo cinco anos, este retrato revela-nos um impera-
lembrar a estatuária fúnebre. dor sem coroa de louros, com traços de alguma
calvície e de olhar expressivo, algo desassom-
brado. A figura da Igualdade (bastante signifi-
cativa na escolha do primus inter pares) segue
a linhagem académica, bastante diferente da
Vitória da figura 20.
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século II. O camafeu, em sardónica negra, com de Roma, agosto-dezembro de 165. Busto
revestimento dourado muito posterior (já bi- laureado e couraçado de Marco Aurélio, à
zantino), representa Antínoo, togado, voltado direita, no anverso; Felicidade (Felicitas) em
à esquerda. Junto à orla direita da peça, veem- pé, à esquerda, com cornucópia e caduceu,
-se os vestígios de uma assinatura, por vezes pisando um globo, no reverso. Marco Aurélio,
associada a Antoniano de Afrodísias, o escul- com cerca de quarenta e quatro anos, é retra-
tor grego. A imagem, que Yourcenar especula tado com traços realistas, nomeadamente no
poder ter pertencido ao próprio imperador trabalho do cabelo e da famosa barba estóica,
Adriano, é um excelente exemplo do reviva- mas também com uma expressividade muito
lismo helenístico que caracterizou os meados vincada no olhar, como quem está a sonhar
do século II. Antínoo, de fronte inclinada, tem acordado. No reverso, a figura da Felicitas, mais
uma expressão serena que invoca alguns retra- do que canónica, parece começar a estilizar-se
tos de Alexandre (figuras 4 e 6), de uma beleza um pouco. De notar ainda uma ligeira grada-
natural bastante distante do modelo de realis- ção dos elementos volumétricos das letras das
mo forte romano. legendas.
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
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a maça, são atributos de Hércules, mas tam- Geta também como Augusto, preparando uma
bém, por associação, de Alexandre, o Grande sucessão conjunta, contudo, em menos de um
(figura 3). Nesta representação, do ano da sua ano após a morte de Septímio, em 211, Caracala
morte, Cómodo, com trinta e um anos, pro- mandou assassinar o irmão.
cura associar-se à imagem dos heróis gregos.
O estilo, um pouco grosseiro, é de invocação
do naturalismo anterior, muito próximo das
amoedações de seu pai (figura 23), mas sem
grande conteúdo expressivo. O reverso, por seu
turno, apresenta uma composição muito mais
gráfica do que figurativa, onde se realçam a
organização e a avolumação da ornamentação Figura 26 – Áureo de Caracala, emissão de
dos carateres, nomeadamente nas serifas, ten- Roma, de 213. Anverso, efígie laureada e coura-
dência que viria a ser recuperada em meados çada de Caracala, à direita; no reverso, a Vitória
do século III. avançando à direita, com troféu e coroa de
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louros. Contrastando com a figura anterior, o
retrato apresenta agora os traços vincados do
realismo romano. Caracala, de fronte franzida
e enrugada, barba militar e cabelo ralo, ma-
nifesta uma expressão dura, implacável. No
reverso, a Vitória, ainda que harmoniosa e pro-
porcional, tem também uma expressão deter-
Figura 25 – Áureo de Marco Aurélio Antonino, minada e belicista, impressa pela dinâmica um
dito Caracala, batido em seu nome, como pouco agressiva do movimento. É interessante
Augusto, e em nome do irmão Geta, este contrastar esta Vitória com a da figura 20.
como César. Emissão de Roma do ano 202.
No anverso, efígie pueril laureada de Caracala,
à direita, com toga; no reverso, o seu irmão,
sem os louros imperiais. Apesar da cunhagem
ser de 202 (quando Caracala e Geta tinham
catorze e treze anos, respetivamente) a natu-
reza infantil das efígies leva-nos a considerar
que terão sido gravados em 198, aquando da Figura 27 – Denário em prata de Gordiano
ascensão de Caracala ao título imperial e de II, Roma, março-abril de 238. No anverso, efí-
Geta ao título de jovem César. Nessa altura, gie de Gordiano, à direita, com couraça, toga
os irmãos tinham dez e nove anos apenas. O e coroa de louros; no reverso, a Providência
estilo acentuadamente helenístico denota (Providentia) de frente, encostada numa colu-
uma forte influência grega. A expressão de na e olhando à esquerda, com uma cornucópia
ambos conjuga inocência e uma serenidade e vareta que aponta para um globo. Ainda que
que se revelaria efémera. Em 209, Septímio seja uma moeda cunhada num período difícil
Severo, o imperador e pai de ambos, nomeou de anarquia (nota 24), o conjunto estético
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AS MOEDAS DA ANTIGUIDADE ENQUANTO MICRORREPRESENTAÇÕES DE DIFERENTES
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moldar tornar-se-á una, até aonde a multi-
plicidade existir. salentado, da continuidade entre a maté-
ria e a consciência que o estoicismo, tão
Plotino, Enéada VI 6 [1] 2 presente no Século de Ouro30, propagava.
Com efeito, o neoplatonismo procu-
A segunda metade do século III foi ca- rou recuperar o conceito de Ideia pri-
racterizada por inúmeras mudanças po- mordial e de alma eterna, incorpórea,
líticas, económicas e culturais que, em não sujeita, portanto, à desagregação e
grande medida, abriram caminho para integração (no sentido estóico do termo)
uma profunda transformação dos mo- no todo que é o Cosmos31. Nesse sentido,
delos tradicionais do Império Romano. o corpo, ainda que igualmente secunda-
A nível político, a anarquia gerada pelas rizado, como no pensamento estóico32,
lutas militares constantes pelo poder, é apenas um recetáculo provisório, não
a captura e humilhação de Valeriano27, só da alma, mas também da própria
por Sapor, na Pérsia, em 26028, a fratu- consciência.
ra do império nas províncias da Gália Plotino, em meados do século III,
27. Valeriano, já com sessenta anos, liderou pessoalmente uma expedição contra os partos e viria a ser captura-
do. Terá morrido em cativeiro, esfolado vivo, segundo algumas fontes, ou por ter sido forçado a ingerir ouro
derretido, de acordo com outros autores clássicos. O seu corpo terá sido empalhado e exposto no salão dos
embaixadores, no palácio de Sapor.
28. Gibbon 2010: 151-152.
29. O Império Secessionista da Gália só viria a terminar após a conquista de Aureliano, em 274.
30. Basta referir Adriano e, claro, Marco Aurélio: “O que é, em suma, a perpetuidade da alma? O vácuo, apenas.”
(Pensamentos IV 33).
31. O'meara 2010: 32
32. A alma, no estoicismo clássico, não é considerada exatamente como imaterial, de certa forma, é entendida
como substância que integra e se funde, após a morte, no Cosmos. No fundo, é uma premissa que está
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essa Forma seria o intelecto, através de ressalvá-lo, não foi só o universo cristão
uma gradação de impressões que, em a integrar o unimismo plotiniano, as
conjunto, se harmonizariam num Uno religiões mitrais também se identifica-
universal. O modelo de aproximação ram com estes princípios. Em meados
ao Uno é, de certo modo, teorizado do século IV, o imperador Juliano II,
através de um princípio geométrico: chamado o Apóstata, quando tentou
ponto – linha – superfície – e, finalmen- recuperar o paganismo clássico, não
te, o sólido33 –, sendo este a represen- o fez, como tão apressadamente se
tação da unidade, do todo universal. possa pensar, no sentido de recuperar
Após a morte de Plotino, em Roma, a simples religião cívica e cerimonial
no ano 270, a difusão do seu pensa- romana: fê-lo com o sentido de remora-
mento foi sobretudo empreendida por lizar o império e banir os excessos dos
um dos seus discípulos, Porfírio, que epicuristas e da hipocrisia das elites
recolheu os cinquenta e quatro tratados cristãs35, na sua missão, foi fortemente
próxima do princípio atómico da matéria que, desagregando-se continuamente, continua a ser a mesma
matéria desde o Big Bang, ainda que em contínua reorganização: “Considera de contínuo que o mundo é
como um ser único, contendo uma substância única e uma única alma.” (Marco Aurélio, Pensamentos IV
40).
33. O'meara 2010: 58-59.
34. As Enéadas, assim propostas por Porfírio, dividem-se em torno da cifra considerada perfeita que é o 6 (1 + 2
+ 3 ou 1 x 2 x 3), o somatório desconstruído da cifra é o 9 (Ἐννεάς), último número primo até ao 10 e símbolo
da totalidade (O'meara 2010: 15-16). A questão fulcral é que a organização de Porfírio torna a obra bastante
mais complexa e circular, os tratados originais seguem temáticas mais contínuas. Contudo, Porfírio enten-
deu aplicar aos textos de Plotino o próprio princípio de agregação das partes até à unidade absoluta, que
seria o conhecimento.
35. Benoist-Méchin 2006: 213.
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cada indivíduo ao belo seria apenas maioritariamente, mas também pagã,
aparente, pois, numa progressão de durante a exceção de Juliano) acaba
conhecimento, todas as almas redes- por substituir quase totalmente os an-
cobririam a essência da beleza que as tigos elementos realistas e miméticos.
conduzirá ao fim último, que é o Uno. Ainda no século IV, nas vésperas
Deste modo, o reconhecimento da be- do saque de Roma por Alarico, Santo
leza é um processo também de gradação Agostinho, nas Confissões (X 34), refletia
geométrica: ponto – linha – superfície e lamentava que “as belezas que passam
– sólido; a sintetização do belo poderia da alma para as mãos do artista, proce-
ser, pois, o processo inverso: do sólido dem daquela Beleza que está acima das
geométrico (representação conceptual nossas almas e pela qual a minha alma
do Uno) para a parte mais ínfima, o suspira de dia e de noite. Mas os artis-
ponto, sendo que o ponto é, na verda- tas e amadores destas belezas externas
de, o símbolo que desperta a sugestão tiram desta suma Beleza apenas o cri-
de belo. Pode ser uma abstração (como tério para as apreciarem”. O caminho
uma forma geométrica ou a música), depois dele seria precisamente o de
mas também pode ser uma estiliza- estilização ainda maior, o trilho bizanti-
ção, um modelo não mimético do belo no para levar o artista a indicar apenas
total, com tendência, aliás, para a bidi- a Beleza que está acima da alma, para
mensionalidade: a linha e a superfície. que a alma, e não o critério, a reconheça.
A expressão artística numismática, a A partir daí, a tendência crescente,
partir de meados do século III, inicia, dentro do cristianismo, para a abstração,
precisamente, uma tendência para a a representação do conceito e não da
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realidade (da Cidade de Deus e já não Efígie raiada e couraçada de Cláudio, à direita;
a Cidade dos Homens), acentuar-se-á no reverso, Vitória em pé, à esquerda, com
ainda mais profundamente, abrindo ca- uma coroa de louros. Cunhada no ano da
minho para a estilização bidimensional morte de Cláudio, com cinquenta e cinco anos,
e iconográfica, do mundo bizantino. mas também do filósofo Plotino. Esta série de
Em meados do século VI, a propó- antoninianos (dois denários) anuncia já um
sito da contramarcha justiniana38, o novo movimento estilístico: o retrato procura
Império Bizantino, a partir da iniciativa preservar a tradição romana do realismo, mas
de Justiniano, que reconquistou parte o reverso caminha já para a estilização do
da África romana e restaurou, já em tema; se bem que a roupagem ainda revele os
território italiano, o centro cultural de drapeados, a figura é representada em linhas
Ravena e com ele a redignificação do muito simples e inacabadas; as asas, por exem-
latim como língua culta, em prejuízo plo, são mais sugeridas que definidas.
do grego, a numária bizantina retoma a
legenda em latim, tentando recuperar o
conceito de Império Romano que vigo-
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rou antes do saque de Odoacro a Roma,
em 476. Contudo, apesar do recurso ao
latim (figura 38) a conceção estética da
numária bizantina já pertence, absolu-
tamente, ao novo paradigma. Mesmo a
recuperação estilística (não da legenda,
mas do tipo monetário) de Constantino Figura 29 – Argenteu de prata, cunhado em
IV, já na segunda metade do século VII, 294, em Roma, por Diocleciano.
não passou de uma ideia, um pouco imi-
tativa (figura 39) do numerário romano
do início do século V39.
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da Forma.
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como o contorno da base da cabeça e as linhas
do cabelo). O tema do reverso, já de natureza
cristã, representa a luta contra o mal (será a
heresia), numa composição, onde se inclui a
legenda SPES PVBLIC/A, de simbolismo mais
gráfico que descritivo. A volumetria das letras
denota uma acentuação grande das serifas, o Figura 36 – Síliqua em prata de Teodósio I, o
próprio X, de MAX (Maximus) foi aberto em Grande. Emissão de Constantinopla, 379-383.
forma de suástica, revelando a intenção simbó- No anverso, efígie, à direita, do imperador
lica e representativa das letras, mais do que o togado e com diadema de rosetas. No reverso
seu imediato valor fonético. a inscrição votiva VOT X/MVLT XX (Votis de-
cennalibus multis vicennalibus, “votos pelos
dez anos [de governo] e pela renovação até
aos vinte”) dentro de uma coroa de louros.
Moeda cunhada no final do século IV, num
momento em que tanto São Jerónimo como
Santo Ambrósio (já bispo de Milão) eram re-
ferências vivas e culturais no mundo cristão. O
Figura 35 – Grande bronze (provavelmente próprio Santo Agostinho, ainda antes da con-
um múltiplo de maiorina) de Juliano II, o versão, escrevera o, agora perdido, Do belo e do
Apóstata. Emissão de Constantinopla, cunha- conveniente, em 380 (Confissões IV 13). Apesar
do entre 361-363. No anverso, efígie barbada e do traço estilizado, nota-se algum recrudesci-
togada de Juliano, com diadema de pérolas; no mento tecnicista na abordagem do retrato, não
reverso, um touro, à direita, com duas estrelas só pelo tratamento dado às roupagens, mas
sobrepostas (Vénus e o Sol?). Juliano, bisneto mesmo em termos de representação da face
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do imperador. Seria este o dinheiro que circu- relançar a tradição cultural latina no seio do
lava quando Agostinho escreveu o seu comen- Império Bizantino. Exemplo disso foi a adoção,
tário sobre a passagem da Beleza suprema para em latim, da titulatura tradicional do domi-
as mãos dos artistas tecnicistas. nato, visível na legenda do anverso da moeda:
DN IVSTINI-ANVS PP AVG (o correto seria PF
AVG – pius et felix Augustus – figuras 35-37),
contudo, e é sintomático no erro da legenda
da moeda, bem como no estilo inseguro das
letras, o universo latino já não era familiar aos
moedeiros de Constantinopla. O resultado da
composição parece, pois, pouco consciente de
si e algo artificial. No reverso, a composição
Figura 37 – Sólido de Teodósio II, emissão ANNO XV (décimo quinto ano do reinado de
de Constantinopla, 420-422. No anverso, em Justiniano), na vertical, e as marcas da casa da
posição quase frontal (há uma ligeira rotação moeda A (primeira) e CON(stantinopolis) no
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para a direita), o imperador equipado com exergo são forçadamente em carateres latinos,
couraça, lança, escudo e capacete perolado na mas revelam que o traço habitual seria o grego.
cabeça; no reverso, a Vitória segurando uma A letra M é o numeral grego 40, valor pelo qual
cruz encastrada de pedraria. Um século depois circulava a moeda.
dos primeiros ensaios do retrato frontal (figura
33), esta disposição passou a ser a norma para
as moedas de ouro e pontualmente usada no
bronze. Seria este modelo gráfico, agora mais
profusamente decorado, o padrão que viria a
inspirar a cunhagem bizantina.
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como Vagi40, que houve uma longa con- interpretativas que mereceriam, de igual
tinuidade das características da moeda, modo, uma reflexão, nomeadamente no
até mesmo dentro do Império Romano. campo da inscrição de elementos simbó-
A haver continuidade, é meramente em licos (como o crescente lunar, a introdu-
termos de produção e de organização do ção de alguns animais, como os pavões, o
sistema, mas em termos estilísticos as tipo de toucado ou de véu, etc.) e mesmo
ruturas são bem visíveis. elementos textuais, como a inscrição de
Por outro lado, um dos pontos que adjetivação de virtuosismo nas legendas
mereceria ainda ser tratado, como forma das moedas, por exemplo.
de melhor compreender as mutações Em todo o caso, cremos que, de
estilísticas, bem como as respetivas in- um modo muito sintetizado, podemos
fluências conceptuais, seria uma análise traçar uma correspondência simples
de diferenciação dos estilos monetários entre os princípios e correntes artís-
um pouco pelas províncias. Isto é, o es- ticos que moldaram as grandes obras
tilo da mesma série monetária cunhada da Antiguidade e a sua manifestação
em Alexandria não é necessariamente nas moedas. Correspondência esta que
igual ao da produção de Lugdunum, por poderá permitir, em abordagens futu-
exemplo. Contudo, as diferenças perce- ras, uma inclusão mais consistente de
tíveis estariam, no nosso entender, mais material numismático nos estudos de
relacionadas com a qualidade dos artífi- representações estilísticas no contexto
ces do que propriamente com diferenças da História da Arte.
de modelos subjacentes. Uma análise
dessa natureza levar-nos-ia para a refle-
xão e descrição de técnicas de produção
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Estudos
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JOSÉ RUIVO
Museu Monográfico de Conimbriga
joseruivo@mmconimbriga.dgpc.pt
Algumas observações
sobre a circulação da
moeda na Lusitânia
do século III
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Resumo
Abstract
In this essay one presents a set of reflections concerning monetary circulation in the
province of Lusitania during the 3rd century, related to the main conclusions achieved
by the author in the mark of his doctoral thesis presented to the Faculdade de Letras da
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Universidade do Porto.
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à luz dos contínuos progressos efetuados (1,28%) (28,21%) (29,49%)
- 1 1
pela arqueologia3, uma vez que as mar- Balbino/Pupieno
- (1,28%) (1,28%)
1
1. Veja-se, a este propósito, a forma como o tema da crise tem sido abordado pela historiografia espanhola
contemporânea (Peña Cervantes 2000: 469-492).
2. Callu 1969: 401-402; Corbier 1985: 105; Hollard 1995: 1066 ss.
3. No mesmo sentido: Cepas Palanca 1997: 249-253.
4. Fabião 2004: 404; Mayet & Silva 1998a: 113-123; Lagostena Barrios 2001: 308 ss.
5. Alarcão et alii 1975: 251. Contudo, na Casa dos Repuxos, o período dos Severos é o mais rico no que
respeita à execução da decoração musiva (Lancha 2004: 80).
6. Vázquez de la Cueva 1985: 31-37.
52
ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
0 5 10 15 20 25 30
afigura-se francamente mais animador7,
transmitindo a imagem dinâmica de Ammaia
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apesar de trabalharmos quase sempre Gráfico 1 – Representação gráfica das permi-
com exemplares estratigraficamente lagens de 12 sítios lusitanos (I: 222-238 d.C.; II:
descontextualizados, percebe-se algu- 238-260 d.C.; III: 260-274 d.C.; IV: 274-294 d.C.;
ma renovação do numerário de bronze, V: 294-305 d.C.).
acompanhado pelo denário até 240 e,
depois, por um número crescente de an- Até aí, como bem demonstra o depósito
toninianos, à medida que vai decaindo de Valhascos I10, a moeda radiada con-
a emissão do bronze e o teor de fino da tinuará sob a mira dos aforradores e as
moeda radiada. No entanto, a circulação moedas perdidas tenderão a ser com
massiva desta nova espécie só terá lugar frequência recuperadas pelos antigos
após a sua desvalorização em larga esca- proprietários ou por terceiros. É muito
la, o que não sucederá verdadeiramente possível que a injeção deste numerá-
antes de 266. rio nos circuitos locais esteja associda à
atividade comercial ou a investimentos
públicos realizados pelo Estado, bem do-
cumentados durante a primeira metade
do século III, nomeadamente em infraes-
truturas viárias. Entre 192 e 253 foram
contabilizados 164 miliários na Hispânia,
15 dos quais na província lusitana, osten-
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
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a Filipe I, talvez em retribuição de uma os transformarem em emissões cada
qualquer liberalidade de que as fontes vez mais volumosas de antoninianos,
são omissas (CIL II 188) num momento sucessivamente cerceados no peso e no
em que a cidade parece gozar de um cer- teor de fino, a fim de financiarem as in-
to prestígio no contexto peninsular15. A termináveis campanhas militares nas
crise monetária agudizar-se-á verdadei- províncias orientais e danubianas17. Em
ramente a partir de meados do século paralelo, o Estado sofre a concorrência
III, sobretudo a partir do principado de dos aforradores privados, como bem
Valeriano e com especial incidência en- mostra o depósito de Valhascos I, que
tre Galieno e Cláudio II. A redução dos imobilizam temporariamente uma parte
stocks de metal precioso à disposição do stock de metal precioso cunhado. K.
do Estado, embora iniciada na segunda W. Harl nota que grandes quantidades
metade do século II, vai agravar-se a par- de metal precioso (ouro e prata) abando-
tir de Septímio Severo, que não hesitará naram definitivamente as fronteiras do
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NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
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inícios da segunda metade do século III queológicas de que os supostos raides de
(nomedamente os que pereceram em francos (e alamanos, como pretenderam
Abrittus com Trajano Décio). A rendição alguns investigadores) ao tempo de Ga-
e captura de Valeriano em 260 colocou lieno tenham afetado a província19. Os
na mão dos persas centenas de milhares numerosos depósitos lusitanos recensea-
de antoninianos, que estes rapidamente dos para o terceiro quartel do século III,
recunharam em dirhams18. que surge aqui como o grande momento
Em consequência, o Tesouro depa- crítico em termos de ritmo de entesou-
rou-se com um stock de metais preciosos ramento (cf. mapa 1), poderão sugerir a
cada vez mais reduzido, ao mesmo tem- existência de focos de instabilidade, mas
po que era pressionado por necessidades o facto de serem constituídos essencial-
crescentes. O ponto mais agudo da crise mente pelo bilhão desvalorizado de Ga-
financeira do Estado romano tem lugar lieno e Cláudio permite interpretá-los
entre cerca de 260 e cerca de 274, em es- também como um sinal da forte insta-
pecial a partir de 266, quando as casas bilidade monetária reinante, um sinal
da moeda começam a emitir, em quan- de desconfiança dos utilizadores face às
tidades sem precedentes, moeda radiada contínuas manipulações de que a moeda
de valor intrínseco quase nulo (com um era alvo por parte do Estado20.
teor de fino a rondar os 20‰). A julgar
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Mapa 1 – Localização dos depósitos monetários lusitanos do século III.
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
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Nalguns casos, chega mesmo a ser lícito segunda metade da centúria, em parti-
questionarmo-nos sobre as reais inten- cular a partir do último terço, apesar de
ções dos seus proprietários no respei- eventuais problemas surgidos entre a
tante a uma futura recuperação. É isso morte de Tácito e o reconhecimento de
que nos recorda o depósito de Freiria II21, Probo e de a Hispânia poder ter sido afe-
que se encontrava acompanhado por tada pelas rebeliões de Próculo e Bonoso.
uma série de fragmentos inutilizados de Para tal contamos com uma série de in-
objetos que se poderiam destinar à fun- dicadores positivos que têm vindo a ser
dição. Verifica-se também que a esmaga- postos em evidência pela arqueologia,
dora maioria das moedas achadas isola- apesar de a sua valorização não deixar
damente nos sítios lusitanos é atribuível de encerrar alguma subjetividade inter-
precisamente ao período 260-270/274 (cf. pretativa. Entre estes conta-se o restau-
gráfico 1), ao qual há que acrescentar uma ro da rede viária lusitana a partir de 275,
impressionante massa de radiados da sé- elemento essencial para a circulação de
rie Divo Claudio de fabrico irregular, que pessoas e bens, assinalado por abundan-
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cremos passível de abandono progressi- tes miliários de Tácito, Probo, Numeria-
vo ao longo do último quartel do século no, Constâncio Cloro e Galério, incidin-
III e de inícios do seguinte, à medida que do particularmente na área ocidental da
o numerário das reformas de Aureliano e província, nas vias Olisipo-Bracara, Olisi-
da Tetrarquia vai entrando nos circuitos, po-Scallabis-Emerita e Emerita-Bracara22,
embora aparentemente com reduzido não obstante o caráter frequentemente
sucesso, segundo nos é dado perceber propagandístico de muitos destes ele-
pelas moedas descobertas isoladamen- mentos da paisagem viária.
te nos sítios lusitanos. É bem possível Em simultâneo nota-se um incre-
que muito deste bilhão desvalorizado mento das importações de cerâmicas de
se mantenha em circulação até à época prestígio, nomedamente sigillata africa-
constantiniana, vista a incapacidade do na clara C, cuja chegada continuada co-
aurelianus e do nummus em substituí-lo, meça a impor-se na segunda metade da
devido à sua rápida imobilização pelos centúria, em especial as formas Hayes
aforradores, o que força estas moedas 45A e Hayes 50A, datadas respetivamen-
de baixo valor intrínseco a manterem-se te de c. 230/240-320 e c. 240-320/330, e
nas pequenas trocas quotidianas. Não que marcam presença significativa em
obstante, a situação económica lusitana vários locais da província, de que temos
parece conhecer melhoras sensíveis na exemplos em Augusta Emerita23, Conim-
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
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saicos da Casa dita dos Esqueletos, que Em Torre de Palma, os riquíssimos
aquela autora atribui aos séculos III-IV, pavimentos musivos da villa foram re-
embora a data terminal nos pareça tal- centemente datados de finais do século
vez excessivamente tardia, uma vez que III-inícios do IV32, tendo sido realizados
tudo parece apontar para a demolição provavelmente por uma oficina africana.
destes edifícios nas últimas décadas da A vinda de pessoal especializado do nor-
terceira centúria ou inícios da seguin- te de África para a Lusitânia implicaria,
te28. A boa conservação da maior parte decerto, um clima de tranquilidade, ne-
dos mosaicos sugere que o abandono cessário à laboração e deslocação pela
destes complexos habitacionais se pro- região dado o caráter frequentemente
cessou pouco depois da execução dos itinerante destes ateliers.
pavimentos e a cronologia das moedas Os elevados níveis de prosperidade
provenientes dos achados isolados e do de algumas elites durante as últimas dé-
tesouro (Tesouro G), recolhidos nas es- cadas da centúria podem igualmente ser
cavações realizadas por Jorge de Alarcão aferidos pela importação de produtos
nos edifícios comerciais contíguos ao de luxo destinados a realçar o prestígio
decumanus da cidade, não ultrapassa o económico e social dos encomendan-
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
tes detetáveis, por exemplo, na tampa rados de peixe, algumas das quais, como
do Sarcófago dos Filósofos e das Musas, o Porto dos Cacos, nunca interromperam
peça descoberta em Chelas e importa- a produção37. Na zona de Tróia/Caetobri-
da provavelmente de Roma33. Wegner e ga a segunda metade do século III mar-
García y Bellido atribuíram-na, respe- ca uma nova fase de prosperidade38. Na
tivamente, ao terceiro quartel e ao últi- costa algarvia, os fornos do Martinhal
mo terço do século III34. Outro exemplo produziram ânforas Almagro 50, 51a-b e
de importação de luxo é o Sarcófago da 51c. Na Quinta do Lago fabricaram-se ân-
Vindima, procedente de Castanheira do foras Almagro 50 e, sobretudo, Almagro
Ribatejo, talvez executado no Mediterrâ- 51c. Em São João da Venda estão presen-
neo Oriental e tradicionalmente datado tes as formas Almagro 51a e 51b, em Torre
de meados do século III35. de Ares, as Almagro 51c e, em Cacela, as
Um outro indicador de que o século Almagro 5039, só para citar alguns locais
III não pode ser visto globalmente como algarvios. Ainda que o auge da produção
um período de crise permanente é-nos de algumas destas formas possa atribuir-
fornecido pela indústria conserveira lu- -se ao século IV, o início da sua fabrico
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sitana, atividade económica basilar nos remontará, em muitos casos, aos finais
estuários do Tejo e do Sado, num ou nou- da terceira centúria. Ao mesmo tempo,
tro ponto da costa alentejana e na costa assiste-se a uma diversificação das rotas
algarvia36, e na qual assenta grande par- destes produtos; para além do comércio
te do dinamismo da província durante marítimo, realizado à distância, para Ós-
esta fase. Neste momento a investigação tia e Roma ou para o limes germânico,
é coincidente no facto de o setor ter ex- intensifica-se a difusão regional destes
perimentado algumas dificuldades na produtos: em São Cucufate abundam os
primeira metade do século III, em espe- contentores de fabrico lusitano Almagro
cial na época dos Severos. Porém, à me- 50 e 51c40, o mesmo sucedendo na Quinta
dida que vamos entrando pela segunda das Longas41 ou em Conimbriga.
metade da centúria, nota-se uma pro- Este renascimento da atividade eco-
gressiva reativação da atividade produ- nómica na Lusitânia de finais do século
tiva, também detectada nas olarias que III, nomedamente associado à indústria
fabricavam os contentores necessários conserveira42, é bem visível em termos
ao envasamento e transporte dos prepa- monetários na facilidade com que alguns
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
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lia central é responsável pelo facto de os nem todos os períodos se encontrarem
poucos depósitos lusitanos conhecidos uniformemente representados na tota-
da época diárquica tenderem a indivi- lidade dos sítios estudados, o padrão de
dualizar-se dos depósitos ocidentais seus distribuição das moedas perdidas não
contemporâneos, como se nota na fase sofre grandes variações de local para lo-
terminal do depósito de Sampão e, em cal, refletindo a omnipresença da moeda
particular, no de Porto Carro, em termos enquanto instrumento de troca na Lusi-
percentuais o depósito que atualmen- tânia do século III.
te mais aureliani da moeda romana dos
anos 285-294 fornece e o segundo em
termos numéricos – a seguir a La Venè-
ra –, mas com a vantagem de possuir um
espetro cronológico amplamente mais
vasto, o que transforma o achado lusita-
no num dos mais importantes até agora
descobertos para este período43.
A partir da reforma de 294 os acha-
dos isolados traduzem uma notória re-
novação das espécies monetárias, não
tanto ao nível do nummus – escasso não
só na circulação corrente como entre os
aforradores, apesar do papel de reserva
de valor que estes lhe conferem –, mas
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ALGUMAS OBSERVAÇÕES SOBRE A CIRCULAÇÃO DA MOEDA
NA LUSITÂNIA DO SÉCULO III
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62
MÁRIO DE GOUVEIA
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda (INCM/MCM)
Instituto de Estudos Medievais (IEM, NOVA FCSH)
mario.gouveia@incm.pt
Notas sobre um
tesouro monetário da
época islâmica
encontrado em Silves
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(INCM/MCM
22990-23079)
Resumo
Palavras chave: Silves; época islâmica (século XII); tesouro monetário; dirham almóada.
Abstract
In this essay one presents a set of reflections concerning a monetary treasure of the
Islamic period found in Silves, formed by ninety Almohad darāhim datable to the first
Christian conquest of the city (1189), belonging to the collection of the Portuguese
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Mint and Official Printing Office/Portuguese Mint Museum.
Keywords: Silves; Islamic period (12th century); monetary treasure; Almohad dirham.
NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)
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prata e cobre pelas principais dinastias divulgação do acervo nele patente.
que governaram al-Andalus entre os sé- Por diligência de Pedro Batalha Reis,
culos VIII e XV. o Museu Numismático Português foi
A parte mais significativa deste nú- criado como museu nacional em 1933,
cleo de moedas começou a constituir-se ao abrigo do decreto n.º 22682, de 14 de
e a organizar-se nas últimas décadas do junho, incorporando, nesta data, quatro
século XIX, época coincidente com o rei- núcleos principais: a coleção de D. Luís,
nado de D. Luís, monarca que se dedicou a coleção da Casa da Moeda, parte do
com especial afinco à prática do colecio- Gabinete Numismático da Biblioteca Na-
nismo numismático e criou o Gabinete cional e a coleção de medalhas da Acade-
Numismático do Palácio da Ajuda. Após mia das Ciências. Estes núcleos começa-
a morte deste rei, a coleção transitou ram a ser alvo de inventário sistemático a
para a posse de D. Carlos, primeiro, e de partir de 1937, data em que Damião Peres
D. Manuel II, depois. Com a implantação deu início ao registo em livro do acervo
da república, a 5 de outubro de 1910, e o do museu, identificando a Coleção D.
consequente encerramento do Palácio Luís no Livro 1.º de Inventário, e o Fundo
da Ajuda, a coleção de moedas passou a Geral no Livro 2.º de Inventário.
estar em situação de arrolamento sob a Entre 1938 e 1941 teve lugar o proces-
dependência de um funcionário superior so de transferência de todos os serviços
da Direção-Geral da Fazenda Pública. da Casa da Moeda da rua de São Paulo
Na sequência da alteração do estatu- para o edifício de traça modernista onde
to do Palácio da Ajuda, a coleção do Ga- atualmente se encontra, na avenida An-
binete Numismático foi transferida para tónio José de Almeida. Este processo,
a Casa da Moeda, na rua de São Paulo, ao apenas concluído com a entrega da tota-
abrigo do decreto n.º 9730, de 26 de maio, lidade das moedas que haviam pertenci-
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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)
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A coleção de moedas da época islâmica nier justificaria no prefácio do catálogo,
que tinha integrado o acervo em expo- separando, de um lado, a época da “for-
sição no Palácio da Ajuda e na Casa da mação e desmembramento do Império
Moeda da rua de São Paulo passou, a Muçulmano”, e, do outro, a dos “Estados
partir de 1946, a estar patente na Casa Muçulmanos das Idades Moderna e Con-
da Moeda da avenida António José de temporânea”2. De uma forma geral, esta
Almeida. Numa altura em que o Museu obra continha um prefácio sobre a histó-
Numismático Português dispunha já do ria da presença árabe, berbere e islâmica
registo de inventário das peças que in- na Península Ibérica entre os séculos VIII
tegravam o respetivo acervo, Joaquim e XV, no qual se falava também acerca da
Figanier (1898-1962), investigador da forma como se encontrava organizada a
época árabe e islâmica, interessou-se por coleção de moedas da instituição, reu-
aquela coleção e dedicou-se ao estudo nida na sequência da incorporação das
das peças em depósito na instituição. Os séries pertencentes à Coleção Real ou da
resultados do trabalho que este investi- Ajuda e ao Fundo Geral.
gador desenvolveu foram apresentados Na altura em que Joaquim Figanier
ao público entre 1949 e 1959, data da deu início ao inventário das moedas da
publicação, com a chancela da Casa da época islâmica, nomeadamente das que
Moeda/Museu Numismático Português, integravam a Coleção Real ou da Ajuda,
do único catálogo das moedas islâmicas uma parte destas encontrava-se já suma-
editado até à data. riamente descrita em pequenos papéis
Este catálogo, resultante dos traba- com notas escritas em castelhano, ante-
lhos de “inventariação, classificação e riormente utilizados para acondicionar
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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
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Nestas fichas, as epígrafes árabes foram mero de inventário nas coleções do Mu-
transcritas e traduzidas para português. seu Numismático Português e do Museu
Algumas moedas mais representativas Casa da Moeda. Atualmente encontram-
foram fotografadas e organizadas em -se reunidas no interior de uma caixa de
estampas. À data da conclusão dos tra- cartão azul, com uma etiqueta branca
balhos de inventário da coleção islâmica, na tampa com anotação referente ao nú-
Joaquim Figanier tinha conseguido iden- mero de inventário, acompanhadas por
tificar, para a Coleção Real ou da Ajuda, um pequeno bilhete em papel, de 115 x
duzentas e oitenta moedas (82,59%), e, 90 mm de dimensão, escrito em ambas
para o Fundo Geral, cinquenta e nove as faces com tinta castanha e paleogra-
(17,40%), perfazendo um total de trezen- fia uniforme, contendo notas redigidas
tas e trinta e nove peças. A Coleção Real em português, no anverso, e em francês
ou da Ajuda era constituída por vinte e e árabe, no reverso. À semelhança das
sete moedas de ouro (9,64%), duzentas outras peças pertencentes à coleção do
e vinte e sete de prata (81,07%) e vinte e museu, a caixa encontra-se hoje em de-
seis de cobre (9,28%); o Fundo Geral, por pósito no edifício-sede da Imprensa Na-
treze moedas de ouro (22,03%) e quaren- cional-Casa da Moeda, em Lisboa.
ta e seis de prata (77,96%)3. A face primária do bilhete contém o
seguinte texto (figura 1):
INCM/MCM 22990-23079: um tesouro
monetário da época islâmica “Moedas arabes do tempo / da conquista de
Silves 1189 / as moedas devem ter sido cu-/
Na altura em que se encontrava a ser pu- nhadas nos principios do / seculo 12”.
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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)
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informação concreta acerca da área em
A face secundária do bilhete contém o que se terá procedido à descoberta – al-
seguinte texto (figura 2): cáçova, almedina ou arrabalde – ou até
da eventualidade de esta ter tido lugar
À esquerda: “[transcrição epigráfica árabe] não propriamente na cidade, mas sim
/ Dieu est notre maitre. / Mahomet notre / nas suas imediações. Para além desta
prophète. / Le Mahdi notre / Pontif.”. informação de caráter mais objetivo, o
À direita: “[transcrição epigráfica árabe] anotador do bilhete procurou integrar
/ Il n’y a de Dieu que / Dieu. / Toutes les o achado no contexto histórico que lhe
affaires sont / confiées à Dieu. / Il n’y a de pareceu ser mais plausível, relacionan-
force qu’en / Dieu.” do-o com a conquista de Silves pelo rei D.
Sancho I, ocorrida, com o auxílio da ter-
ceira cruzada, em 11895, e considerando a
possibilidade de a sua cunhagem ter tido
lugar em data situada em torno dos prin-
cípios do século XII. Embora aquele não
tenha justificado a relação que procurou
estabelecer entre o tesouro monetário e
a conquista cristã, não se pode descar-
tar a hipótese de o achado ter sido feito
paralelamente ao de outros materiais
suscetíveis de permitir idêntica aferição
cronológica, como tem sido registado a
5. David 1939; Pereira 2003: 109-141; Branco 2006; Pereira 2010; Azevedo 2012: 73-77, 149-162.
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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
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da conquista de Silves por D. Sancho I. Se que, para o seu anotador, a face primária
esta hipótese parece sugerir o terminus continha a referência à missão profética
ante quem para a data de formação do te- de Muḥammad e à intermediação do
souro e respetiva ocultação, deixa, contu- Mahdī, e a face secundária, a referência
do, por esclarecer o terminus a quo para à unicidade de Allāh.
a data de emissão das moedas. Em nossa
opinião, este silêncio pode ser explicado
com base em dois fatores: em primeiro
lugar, a inexistência de outras informa-
ções arqueológicas que permitam afinar
a cronologia proposta, e, em segundo, a
impossibilidade de se extrairem dados
adicionais a partir da tipologia das moe-
das, constituída por epígrafes caracterís-
ticas de séries anónimas.
O anotador do bilhete procedeu tam-
bém à leitura da epígrafe árabe represen-
tada nas faces de uma moeda que não
se pode identificar com rigor, mas que Figura 3 – Fotografia de conjunto do tesouro
se pode relacionar com a tipologia mais monetário (INCM/MCM 22990-23079).
comum do dirham almóada de séries
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NOTAS SOBRE UM TESOURO MONETÁRIO DA ÉPOCA ISLÂMICA ENCONTRADO EM SILVES
(INCM/MCM 22990-23079)
De uma forma geral, as moedas que inte- tesouro monetário. Numa das faces da
gram este tesouro (figura 3) encontram- moeda encontra-se a fórmula caracterís-
-se em condições que permitem fácil lei- tica da época almóada: Allāhu rabbunā
tura. As moedas apresentam a tipologia / wa-Muḥammad rasūlunā / wa’l-Mah-
mais característica do dirham almóada dī imāmunā (“Allāh é o nosso Senhor,
de séries anónimas, contendo, em am- Muḥammad é o nosso profeta, o Mahdī é
bas as faces, epígrafe inscrita em gráfila o nosso guia”). Na outra face encontra-se
quadrada semelhante à que se encontra a fórmula indicativa de alguns princípios
transcrita no bilhete. O caráter exclusiva- de fé da religião islâmica.
mente religioso da epígrafe não permite Muito comuns na moeda identifica-
retirar quaisquer informações cronológi- da com o dirham8, estas fórmulas dão tes-
cas sobre a data de emissão das moedas, temunho do papel central atribuído a Ibn
apesar de um número reduzido de peças Tūmart como impulsionador da reforma
mostrar epígrafe indicativa da ceca de unitarista, subjacente ao surgimento do
Fez (Fās). As moedas de maior módulo califado almóada durante o século XII, e
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medem 15 x 15 mm, embora várias outras sublinham dois aspetos basilares da reli-
apresentem módulo de menores dimen- gião islâmica: a crença na unicidade de
sões com indícios de cerceio. O peso das Allāh (tawḥīd) e a confiança do homem
moedas varia entre 1,49 g e 1,68 g, oscilan- em Allāh (tawakkul). Na religião islâmica,
do entre os seguintes valores numéricos: a proclamação da unicidade divina cor-
1,55 g (dezassete exs.), 1,54 g (onze exs.), respondia à primeira parte da profissão
1,60 g (dez exs.), 1,59 g (sete exs.), 1,57 g de fé e traduzia a crença na existência de
(sete exs.), 1,58 g (seis exs.), 1,53 g (seis um Deus único dotado de uma série de
exs.), 1,62 g (quatro exs.), 1,61 g (quatro atributos divinos, que reforçavam a Sua
exs.), 1,56 g (quatro exs.), 1,52 g (quatro absoluta transcendência. A confiança
exs.), 1,67 g (dois exs.), 1,63 g (dois exs.), em Deus derivava diretamente da crença
1,51 g (dois exs.), 1,68 g (um ex.), 1,66 g na unicidade divina e compreendia, en-
(um ex.), 1,64 g (um ex.), 1,49 g (um ex.). tre outros aspetos, a submissão do mu-
Ainda que o tesouro seja constituí- çulmano aos desígnios de Deus, numa
do por noventa moedas, o anotador do atitude de entrega confiante capaz até
bilhete optou por transcrever apenas de proporcionar, em última instância, a
uma epígrafe de apoio à leitura de todas união mística.
as moedas que o integram. Esta opção
parece ter sido justificada pelo facto de
as moedas apresentarem características
metrotipológicas muito semelhantes,
que apontam não só para a hipótese
de sincronicidade de circulação, mas
também para a sua interpretação como
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(INCM/MCM 22990-23079)
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MÁRIO DE GOUVEIA
Imprensa Nacional-Casa da Moeda/Museu Casa da Moeda (INCM/MCM)
Instituto de Estudos Medievais (IEM, NOVA FCSH)
mario.gouveia@incm.pt
Moedas da primeira
dinastia
REVISTA M · Nº 0 · 2017 · 73 - 79
provenientes
do Castelo dos
Mouros (Sintra):
notícia preliminar
das escavações
arqueológicas
de 2009-2011
Resumo
Apresenta-se neste artigo uma notícia preliminar acerca do conjunto de moedas, datáveis
da primeira dinastia portuguesa (séculos XII-XIV), encontrado no decurso de escavações ar-
queológicas na necrópole da igreja de São Pedro de Canaferrim (Castelo dos Mouros, Sintra),
entre 2009 e 2011.
Abstract
The aim of this essay is to present a preliminary note concerning the first Portuguese dinasty
(12th-14th centuries) monetary set found in the archaeological excavations of the necropolis
of the church of São Pedro de Canaferrim (Castelo dos Mouros, Sintra), between 2009 and
2011.
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Keywords: Middle Ages; graves; coins; symbolic economy.
MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011
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Lua, S.A., a quem a gestão do castelo está apresenta neste estudo.
entregue, incidiram fundamentalmente
nas zonas onde se pretendiam implantar O conjunto monetário
novos equipamentos de apoio ao visitan- Entre 2009 e 2011 foi possível proceder-
te, mas acabaram por abranger outras -se à recolha de um conjunto de moedas
áreas de modo a alargar, integrar e apro- no exterior do perímetro de muralhas
fundar estudos anteriores, dando desta do Castelo dos Mouros, em Sintra, no
forma a conhecer, de modo mais objeti- local onde foi escavada uma necrópole
vo, as ocupações humanas do castelo, as de inumação datável da época medie-
suas fases construtivas e os espaços da val cristã associada à igreja de São Pedro
vida quotidiana. de Canaferrim. Os trabalhos de campo
Os trabalhos arqueológicos realiza- foram conduzidos sob a direção de um
dos nos vários setores de investigação, dos signatários (MJS), e, na sequência da
na zona da necrópole cristã e nas áreas intervenção arqueológica, este conjunto
dentro da fortificação, como as antigas de moedas foi depositado no Palácio de
cavalariças e a praça de armas, revela- Monserrate e daí transferido tempora-
ram estratigrafias bastante perturbadas, riamente para as instalações do antigo
devido às diversas intervenções que ti- Museu do Banco de Portugal, em Lisboa,
veram lugar no castelo ao longo dos úl- onde se procedeu ao respetivo estudo
timos séculos. Se, por um lado, a própria (MG).
construção da fortificação, em época A análise preliminar do conjunto
medieval, a fundação da igreja de São de moedas ali identificado, formado
Pedro de Canaferrim e a respetiva ne- por cerca de cinco dezenas de moedas
crópole afetaram os níveis arqueológicos encontradas avulsas numa zona carac-
anteriores, as reformas de que o castelo terizada pela presença de mais de trin-
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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011
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xando extra muros a igreja de São Pedro rei de Portugal e do Algarve. O pilarte, o
de Canaferrim e a necrópole adjacente. meio-tornês de escudo e a barbuda, es-
Durante a intervenção arqueológica foi pécies associadas à reforma do sistema
ainda possível identificar-se um con- monetário que teve lugar no país duran-
junto de outras moedas de emissão his- te o século XIV, conservam-se inteiros e
pânica, provenientes do reino de Leão e ostentam características mais facilmente
Castela, como um pepión de Fernando IV individualizáveis no conjunto das peças
(1295-1312), um noven de Afonso XI (1312- encontradas, dados os elementos gráfi-
1350) e um cornado de João I (1379-1390), cos e epigráficos que surgem claramente
perdidos em Sintra muito possivelmente representados nas respetivas faces.
na sequência da morte do rei D. Fernan- No tocante aos tipos das diferentes
do I e das guerras que se seguiram pela espécies monetárias identificadas, re-
tomada de Lisboa contra D. João, mestre gista-se o predomínio dos de simbologia
de Avis, nomeado regente e defensor do política e eclesiástica: para além dos que
reino no quadro da crise dinástica de se identificam como símbolos nacionais
1383-1385. – como os escudetes brasonados com
Na sua generalidade, as moedas re- besantes em número variável, dispostos
colhidas são de difícil caracterização em cruz ou em aspa, os bustos régios de
metrotipológica, facto que se deve às perfil e as coroas –, encontram-se ainda
condições em que atualmente se encon- o báculo e, muito particularmente, no
tram, resultantes não só de um manuseio caso do dinheiro e da mealha, a cruz de
excessivo, como de um contexto deposi- formas e dimensões muito variáveis –
cional pouco favorável à sua preserva- como a cruz simples inscrita em círculo
ção, tornando-as de difícil legibilidade central, a cruz de hastes longas extrava-
e de cronologia nem sempre fácil de se sando o círculo central, a cruz cantona-
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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
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da por crescentes e pontos, a cruz can- ter sido possível identificar-se a presença,
tonada por crescentes e estrelas, a cruz na maior parte das estruturas escavadas,
cantonada por castelos ou ainda a cruz de restos pertencentes a mais do que um
cantonada por castelos com escudete ao indivíduo, entre adultos, adolescentes e
centro –, para além de outros motivos fi- crianças. Estas sepulturas faziam parte
tomórficos e geométricos geralmente co- de uma necrópole que terá funcionado
nhecidos como signos ocultos. A barbuda como espaço de inumação associado à
do reinado de D. Fernando I é a única igreja que se situava nas suas imediações,
peça deste conjunto que contém um si- ainda hoje conhecida localmente como
nal braquigráfico indicativo do respetivo igreja de São Pedro de Canaferrim. As ca-
local de cunho: a cidade do Porto. racterísticas das sepulturas e a sua asso-
ciação a esta igreja permitem-nos datar
Problemáticas histórico-arqueológicas com segurança esta necrópole da época
medieval cristã, facto corroborado pelo
O conjunto de moedas identificado en- conjunto de moedas nela encontrado.
tre 2009 e 2011 durante a intervenção A maior parte das moedas encon-
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arqueológica que teve lugar no Castelo tradas pode datar-se dos reinados de D.
dos Mouros, em Sintra, pode datar-se Afonso III e D. Dinis, sendo, por este mo-
genericamente dos séculos XII a XIV, não tivo, atribuíveis a um arco cronológico
se registando outras espécies que ultra- genericamente situado entre as últimas
passem este espetro cronológico com décadas do século XIII e as primeiras dé-
ampla representação diacrónica. Embo- cadas do século XIV, apesar de ter sido
ra a ausência de contexto arqueológico possível a exumação de outras espécies
não nos tenha permitido retirar ilações não só anteriores como também poste-
significativas sobre as circunstâncias que riores a estes dois reinados. É de se des-
terão envolvido a utilização destas moe- tacar o aparecimento de uma mealha
das, o facto de estas terem sido encontra- atribuível ao reinado de D. Afonso I, bem
das avulsas em sepulturas de inumação como de um pilarte, um meio-tornês de
datáveis da época medieval cristã, asso- escudo e uma barbuda datáveis já do rei-
ciadas a uma igreja, deixa-nos entrever a nado de D. Fernando I. As peças atribuí-
hipótese de as moedas terem sido utiliza- veis a estes dois reinados podem consi-
das com um objetivo fundamentalmente derar-se como termini a quo e ad quem
simbólico, ligado à tradição que, desde a para a cronologia de ocupação da necró-
época antiga, se convencionou designar pole. A aferição da cronologia das peças
como óbolo de Caronte ou viático. encontradas permite-nos dizer que esta
As sepulturas identificadas no decur- esteve ativa durante cerca de duzentos
so dos trabalhos arqueológicos encon- anos, servindo seguramente como local
travam-se profundamente revolvidas e de inumação da população que residia
continham numerosos materiais arqueo- no primitivo povoado ou já no interior
lógicos reveladores de diferentes crono- do recinto que veio a ser delimitado por
logias de ocupação do espaço, apesar de muralhas em épocas um pouco mais tar-
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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011
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racterizados por fraco poder fiduciário e escavadas de norte a sul do país, com
reduzido praticamente às espécies mais idêntica cronologia, facto que nos per-
utilizadas no quadro do quotidiano de mite dizer que a prática registada na
populações dotadas de fracos recursos necrópole da igreja de São Pedro de Ca-
económicos. naferrim se deve entender apenas como
De uma forma geral, é possível di- uma nova evidência arqueológica de um
zer-se que as moedas encontradas terão tipo de comportamento muito comum,
sido utilizadas como complemento de ligado a rituais religiosos indicadores da
atividades económicas tradicionais, liga- pervivência de práticas pagãs em con-
das à subsistência em regime de auto-su- textos cristãos. À semelhança do que se
ficiência, como a agricultura e a pecuária, encontra atestado noutras necrópoles da
características de paisagens dominadas época, é possível que estas peças tenham
pela presença da montanha. Se é lícito sido depostas sobre os olhos, na boca,
pensar-se na hipótese de este conjunto nas mãos ou nos pés dos indivíduos se-
de moedas ter estado em circulação em pultados de forma a se garantir o paga-
data anterior à sua deposição em contex- mento do viático, tradição popular que
to de necrópole, o número relativamen- preconizava o sustento da passagem do
te pequeno de peças encontradas, bem falecido à vida após a morte através de
como o estado em que estas chegaram uma moeda capaz de evitar o seu retor-
até aos nossos dias, sugerindo elevado no. Neste contexto, a prática registada
grau de manuseio, parece apontar para arqueologicamente nesta igreja deve en-
um quadro económico ainda caracteri- tender-se numa dimensão simbólica, as-
zado pelo predomínio das trocas diretas sente sobre pressupostos fundamentais
e em que a moeda era apenas ocasio- do culto dos mortos próprios de comu-
nalmente utilizada em transações mais nidades enraizadas em velhas tradições.
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MOEDAS DA PRIMEIRA DINASTIA PROVENIENTES DOS CASTELOS MOUROS (SINTRA):
NOTÍCIA PRELIMINAR DAS ESCAVAÇÕES ARQUEOLÓGICAS DE 2009-2011
Conclusões
aos confrontos travados entre as forças
As escavações arqueológicas levadas a portuguesas e castelhanas a propósito da
cabo no Castelo dos Mouros, em Sintra, tomada de Lisboa no quadro da crise di-
entre 2009 e 2011, permitiram a recolha nástica de 1383-1385.
de um conjunto de moedas datáveis da A maior quantidade de informações
época medieval cristã cuja notícia preli- disponíveis para este período da ocupa-
minar procurámos efetuar ao longo das ção do espaço corrobora a hipótese de as
páginas precedentes. Apesar de muito muralhas erguidas neste local, com o ob-
deteriorado pelo uso ou pelo contexto jetivo de abrigar o primitivo povoado, te-
deposicional pouco favorável à preserva- rem sido construídas várias décadas após
ção das suas características originárias, o a tomada do castelo de Sintra pelos exér-
conjunto de moedas encontrado na ne- citos cristãos, apesar de se poder tomar
crópole adjacente à igreja de São Pedro por certa a informação de que a necrópo-
de Canaferrim pode atribuir-se à primei- le e a igreja de São Pedro de Canaferrim
ra dinastia, sendo, por este motivo, gene- lhe são muito anteriores. Para além de
ricamente enquadrável numa diacronia nos facultarem informações sobre a cro-
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que se estende da segunda metade do sé- nologia de construção desta estrutura, as
culo XII à segunda metade do século XIV. moedas encontradas podem ser conside-
Este conjunto de moedas integra radas como indicadores seguros da exis-
cerca de cinco dezenas de peças encon- tência de uma população dotada de um
tradas avulsas, mostrando característi- certo grau de monetarização mas que
cas metrotipológicas que permitem a possivelmente viveria num estado de au-
sua fácil identificação com diferentes tarcia económica, próprio de uma comu-
espécies monetárias, entre as quais o nidade de fracos recursos económicos. O
dinheiro, a mealha, o pilarte, o meio-tor- contexto arqueológico das peças indica
nês de escudo e a barbuda. A mais antiga que, não obstante esta função originária,
pode atribuir-se ao reinado de D. Afonso as moedas encontradas foram também
I, e a mais recente, ao de D. Fernando I, canalizadas para a satisfação de neces-
apesar de se registar um predomínio de sidades simbólicas específicas, ligadas a
espécies cunhadas sob D. Afonso III e pressupostos fundamentais do culto dos
D. Dinis, isto é, datáveis da transição do mortos, característicos da época medie-
século XIII para o século XIV. Comple- val, como o pagamento do viático.
mentarmente, foi possível proceder-se à
identificação de três moedas de origem
hispânica, entre as quais um pepión de
Fernando IV, um noven de Afonso XI e
um cornado de João I, todos datáveis do
século XIV e possivelmente associados
79
MÁRIO BRUNO PASTOR
CITAR – Centro de Investigação em Ciência e Tecnologias das Artes
Universidade Católica Portuguesa – Escola das Artes
mbrunopastor@gmail.com
O retrato e as
representações
ornamentais nas armas
reais portuguesas em
Abstract
From 1721, king John V of Portugal tried to modernize the Portuguese coinage. The main
objective was to use the coins as a new sophisticated tool for international affirmation. The
reforms, expressed mainly in the golden coinage, launched a tradition of stylistic and artistic
1. As últimas emissões (não considerando os ensaios posteriores) de ouro portuguesas são, de facto, dos pri-
meiros meses de 1889, contudo, o último modelo de cunho usado era ainda o das coroas de 10$000 réis, de
82
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
1878.
2. Santos 2001: 199-201
3. Trata-se de um escudo primitivo, de 253 reais, sem filiação direta com os escudos do século XVIII que
abordaremos posteriormente.
4. A reforma das armas nacionais levada a cabo por D. João II, bem referida tanto por Rui de Pina, como
por Garcia de Resende, nem sempre tem sido datada com facilidade. Aceitamos, contudo, a datação mais
consensual que é da reunião do conselho real em Beja, em 25 de março de 1485, quando o rei adota o título
de Senhor da Guiné (Seixas 2010: 47).
83
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
Não obstante este modelo mais ou me- nas amoedações portuguesas, nem tam-
nos definitivo para as moedas portu- pouco modificações assinaláveis no sis-
guesas dos séculos XVI e XVII, podemos tema monetário. Contudo, do ponto de
assinalar alguns momentos de excecio- vista tecnológico, o regente D. Pedro in-
nalidade, como a cunhagem dos São troduziu uma alteração radical: a cunha-
Vicentes e Meios São Vicentes de ouro gem mecanizada, primeiro em Lisboa,
(1000 e 500 reais, respetivamente), em em 1677, e logo depois no Porto, em 1688.
1555, com os cunhos abertos por Antó- Os tipos monetários cunhados ma-
nio de Holanda e pelo filho, Francisco de nualmente e os cunhados por balancé
Holanda. De facto, apenas abridores de mecânico diferem em termos estilísticos
exceção como os dois Holanda poderiam uns dos outros apenas nos acabamentos
marcar a diferença nas amoedações por- técnicos, os elementos de composição
tuguesas do século XVI com os referidos preservaram-se inalterados na fórmula
São Vicentes, moedas de ouro que osten- tradicional: armas reais coroadas no an-
tam a representação oficial singela das verso e cruz de Cristo (por vezes, nas fra-
Figura 2 – São Vicente (1000 reais), emissão Figura 3 – Dez cruzados de ouro (moeda) de
de Lisboa, lei de 10 de Junho de 1555, gravu- 1664, batida em nome de D. Afonso VI, em Lis-
ra de Francisco de Holanda. Os São Vicentes boa, mediante método de cunhagem ainda
foram cunhados apenas até 1560, já durante a manual, a martelo.
menoridade de D. Sebastião.
84
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
5. A separação entre intervenção militar e intervenção diplomática é, para nós, algo tão bem definido e dis-
tinto como a paz da guerra; contudo, convém relembrar que, no Antigo Regime, estas fronteiras não eram
assim tão claras. Uma incursão militar terrestre ou uma armada naval revestiam-se de todo um cerimonial
de aparato cénico, quase operático, cujos objetivos passavam também por causar um impacto de delegação
internacional ou de afirmação diplomática.
6. Não obstante a sua localização bem próxima da Ribeira das Naus, a Casa da Moeda não foi particularmente
afetada em 1755; em dezembro desse mesmo ano estava já a laborar novamente, a refundir, branquear e
recunhar dinheiro retirado dos escombros, e a servir de depósito dos cofres da Fazenda Real, que havia sido
no Paço (Aragão 1964: II 100-101).
7. Aragão 1964: I 65.
85
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
gin e François Marteau, a 26 de maio e 29 Mengin poderá não ser a única pela qual
de outubro, respetivamente8. O primeiro pesquisar o nome do abridor, na verda-
como abridor de cunhos e o segundo de, o apelido Mangin é a fórmula que se
como abridor de medalhas. vê na gravura que reproduz a medalha
Antes de analisarmos o trabalho de invocativa da Batalha do Cabo Matapão
Mengin, cabe aqui abrir uma reserva (1717)12. Com efeito, a medalha hoje desa-
para esclarecer um pequeno ponto que parecida13 aparece reproduzida no tomo
poderá ser útil para um posterior estudo IV da Historia genealogica14, lendo-se cla-
sobre o trabalho e a vida de Mengin em ramente sob o busto de D. João V a assi-
Portugal. A primeira referência bibliográ- natura A(ntoine). MANGIN F(ecit).
fica a Mengin que encontramos surgiu
pela mão de Cyrillo, em 1823, na sua Col-
lecção de memorias, contudo, o abridor é
identificado como Mangem9.
A próxima referência a Mengin é
86
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
15. Sabemos, evidentemente, que essas variantes de nome são muito comuns, o próprio Marteau, referido an-
teriormente, também surge como Marto. Contudo, pareceu-nos pertinente debater um pouco esta questão,
sobretudo como nota de sugestão para futuros eventuais estudos.
16. Lamas 1907: 59.
87
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
88
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
Figura 10 – Luís de ouro de Luís XIV, Paris, 1714, No que concerne aos reversos, a lei tam-
gravação de Joseph Roettier. O abridor labo- bém é descritiva:
rou também em Londres como John Roettier.
“(...) e da outra parte as Armas Reaes com a
letra: IN HOC SIGNO VINCES; este reverso
se poderá mudar na conformidade do que
eu mandar declarar ao Conselho de minha
89
O RETRATO E AS REPRESENTAÇÕES ORNAMENTAIS NAS ARMAS REAIS PORTUGUESAS EM
AMOEDAÇÕES DE OURO CUNHADAS ENTRE 1722 E 1878
Fazenda, sem que para isso se necessite de armas reais (tabela da figura 21). No en-
publicar nova Ley” tanto, inusitadamente, o primeiro tipo
apresentado por Vaz corresponde a uma
Relação de valores da nova série dos moeda falsa, produzida muito provavel-
escudos de ouro de 1722 mente já no século XX.
– Dobra de 24 escudos (38$000 réis) Não obstante, utilizaremos, neste pe-
– Dobra de 16 escudos (25$600 réis) queno catálogo de amostragem, a siste-
– Dobra de 8 escudos (12$800 réis) matização proposta por Vaz.
– Peça de 4 escudos (6$400 réis)
– Meia peça de 2 escudos (3$200 réis)
– Escudo (1$600 réis)
– Meios escudo (800 réis)
– Cruzadinho (400 réis)
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nalmente notado o despropósito que dinâmica, rematada por elementos fitados, tí-
era a legenda IN HOC SIGNO VINCES a picos do joanino.
ladear as armas reais. A célebre legenda
invocativa de Ourique22, emblemática A partir de 1723 foi esta a tendência prin-
da fundação da monarquia portuguesa cipal para a decoração das armas reais:
e recorrente nos reversos monetários de uma dinâmica de moldura simétrica
cruz, pois é esse o signo, manteve-se nas muito sugestiva, os elementos fitados
amoedações do sistema e feitio antigo, ondulantes e uma paulatina introdução
mas foi prontamente retirada das novas de elementos orgânicos nos remates de-
moedas a 26 de abril de 172323. corativos.
Mantendo-se os mesmos punções Em 1727 chegaram aos Brasil, nomea-
do retrato, a emissão de 1723 introduziu damente à Baía, Rio de Janeiro e Minas
uma dinâmica um pouco diferente no re- Gerais, os cunhos, sempre produzidos
verso. Em termos formais propriamente em Lisboa, da nova série monetária para
ditos (i.e. não decorativos) o escudo das as cunhagens na colónia25.
22. Por sua vez, já ela própria uma recriação da legenda constantiniana da Batalha da Ponte Múlvia, no ano
312: hoc signo victor eris.
23. Aragão 1964: II 83.
24. Carlos 2012: 89.
25. Dizemos na colónia e não coloniais ou provinciais porque, ao contrário do que por vezes é pretendido, a
série dos escudos de ouro não era uma moeda do padrão colonial. As produções no Brasil destas moedas
eram feitas para a metrópole (Amaral 1984: II 338). O padrão monetário brasileiro era a moeda de 4$000
réis, introduzida por D. Pedro II e que se manteve até 1822, ela própria sem curso na metrópole. A série dos
escudos de retrato (onde se enquadra a peça de 6$400, a que viria a ser mais popular na segunda metade
do século XVIII e no início do século XIX) tinha circulação condicionada no Brasil por imposição de taxas
de conversão cambial prejudiciais ao mercado colonial. É pois incorreto integrar a série dos escudos de
retrato no numerário colonial brasileiro.
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26. Como referido anteriormente, o espécime da dobra de 1717, utilizado aqui como modelo para o tipo I de
desenho de armas, dificilmente se poderá considerar verdadeiro, foi, aliás, incluído na categoria de falsi-
ficação por Alberto Gomes (Gomes 1996: 683) pelo que uma taxionomia mais rigorosa deverá excluí-lo,
integrando apenas vinte e cinco tipos, a contar a partir de 1722 e até 1732.
27. Vaz 1987: 380-381.
28. Aragão, 1964: I 76.
29. Aragão: I 77.
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tivamente, ainda em 1723, por ocasião contudo, o filho de Mengin, Paulo Aure-
da prestação de provas35 para admissão liano Mengin, nomeado terceiro abridor
na Casa da Moeda de Francisco Pimen- em 176140.
tal, ourives da prata, foi registado “Que A par do Mestre Mengin e de Ber-
só o mestre francez assistia ao trabalho, nardo Jorge, um outro importante abri-
como devia, e que os outros dois abrido- dor laborou na Casa da Moeda entre as
res poucas vezes ali compareciam”36. A décadas de 1720 e 1730, primeiro como
referência ao absentismo dos outros dois aprendiz, mas logo em 1724 como abri-
abridores, que seriam, sem dúvida, Ber- dor. Trata-se do já referido João Baptista
nardo Jorge e François Marteau37 parece- Gomes, sem dúvida um dos responsáveis
-nos ser reveladora de um certo sentido pela grande diversidade e riqueza dos
crítico face à falha das obrigações por cunhos de reverso da série dos escudos
parte dos abridores e ao cumprimento de ouro de D. João V. Bernardo Jorge é um
por parte de Mengin. dos poucos abridores, ou executante de
Ainda assim, Bernardo Jorge con- gravura em ôcco41 enumerado por Cyril-
35. As provas de Francisco Pimental decorreram durante um mês, entre fevereiro e março de 1723.
36. Apud Aragão: I 78.
37. Em 1723 não poderia ser ainda João Baptista, que só seria admitido em novembro de 1724.
38. Aragão: I 76.
39. Como classe regimentada, os moedeiros preservavam ainda os privilégios típicos dos ofícios do Antigo
Regime, um desses privilégios era o vencimento vitalício. Mengin, em 1753, pedira dispensa por não con-
seguir executar os vinte e quatro punções com o retrato de D. José que lhe foram pedidos para fornecer as
casas da moeda do Brasil, mas sabe-se que continuou a laborar durante os anos seguintes.
40. Aragão: I 81.
41. Machado 1922: 221.
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mulava com as suas funções de professor Janeiro45, o que nos indicia, numa pri-
de desenho42 – uma quantia muito consi- meira análise, que o talento e as mais-va-
derável e generosa, reflexo, seguramente, lias artísticas que João Baptista Gomes
mais da qualidade do seu trabalho, do representaria na colónia superavam a
que do seu zelo profissional. De facto, tal desconfiança e o melindre que o seu cri-
como sucedia com Bernardo Jorge, João me em Lisboa possa ter levantado. Por
Baptista Gomes também não era reputa- outro lado, tendo-lhe sido atribuído um
do por ser assíduo ao serviço, mantendo, cargo de responsabilidade financeira e
inclusivamente, as mesmas más relações de contacto direto com o vil metal, en-
com Mengin, que se recusava a instruí-lo, quanto abridor de cunhos na Casa da
fosse por melindre de caráter (como tem Moeda do Rio de Janeiro, também somos
sido tantas vezes apontado), fosse por di- inclinados a sugerir que o abuso de con-
ficuldade de relacionamento com os seus fiança de João Baptista não terá sido de
discípulos aparentemente tão agitados. natureza financeira, ou de furto. Poderá
Sem que se saiba exatamente o que ter sido, sim, de natureza de sangue ou
42. Luís Camilo de Oliveira Neto refere que João Baptista Gomes poderá ter muito provavelmente sido discípu-
lo de Vieira Lusitano, em Lisboa (Neto 1940: 87-88).
43. Neto 1940: 90.
44. Machado 1922: 222.
45. Tanto Cyrillo Volkmar Machado, como Teixeira de Aragão, que o cita, colocam João Baptista como abridor
de cunhos na fundição de Vila Rica, em 1739.
46. A fundição abriu em 1751, João Baptista foi aí colocado, transferido da Casa da Moeda do Rio de Janeiro,
pelo próprio governador.
47. Neto 1940: 90-110.
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da Véspera de Natal de 1788, o padre José superior à peça de 6$400 réis49. Tanto o
da Encarnação, daquela paróquia, assen- retrato como o programa decorativo do
tava: reverso das armas se mantiveram iguais
até ao final do reinado, em 1777. A peça
“Aos vinte e coatro de dezembro de mil de 6$400 réis foi cunhada ainda em 1750
setecentos e oitenta e oito nesta freguesia e a sua emissão foi ininterrupta, durante
fallece, digo, falleceu com todos os sacra- todos os anos, até 1777, inclusive em 1755.
mentos e solemne testamento João Go- Os cunhos usados no Rio de Janeiro,
mes Baptista solteiro, Abridor dos Cunhos em Minas Gerais e na Baía continuaram
da Real Intendencia, natural da cidade de a ser produzidos em Lisboa e não dife-
Lisboa (...)”48 rem uns dos outros, exceto na marca mo-
netária distintiva de cada casa da moeda:
Será, ao que tudo indica, o mesmo João R (Rio de Janeiro), B (Baía) e M (Minas
Baptista Gomes, discípulo de Mengin e Gerais).
que, por vicissitudes ainda mal conheci- Se por um lado o sistema monetário
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Marquez Presidente do Real Erario; e tira- facilmente poderia decair em linhas grosseiras
da a moeda de seis mil e quatro centos reis e excessivas.
encerrada no mesmo embrulho, Se achou
ser a que se havia cunhado nos Cunhos Tal como anteriormente havia feito o seu
pai, D. Maria I só determinou cunhar o
abertos pelo Ponçaõ feito pelo Abridor Ge-
ral Joseph Gaspar (...)”51 ouro até às peças de 6$400 réis. O de-
senho das armas manteve-se inalterado
Ainda que o documento não seja total- até à substituição do numerário pelo da
mente esclarecedor, pois refere-se aos regência de D. João, mesmo quando o
cunhos de Gaspard, na realidade trata- cunho do retrato do anverso foi alterado,
-se apenas do cunho do reverso52, o que por perecimento de D. Pedro III, em 1786.
destacamos aqui é que podemos verifi-
car que cerca de quatro anos depois de
ter sido contratado pela Casa da Moeda,
José Gaspard era já o abridor geral e o seu
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Sabemos que António do Vale foi nomea- sugerir, dada a excecionalidade do traba-
do para a Casa da Moeda, como abridor lho, sobretudo em termos de retrato, tão
de cunhos e medalhas, em 1802, e que diferente da escola de Mengin, Bernardo
nesse ano, em conjunto com o próprio Jorge, João de Figueiredo ou do próprio
Gaspard, Xavier de Figueiredo e Simão Gaspard58 (muito aproximada da grande
Francisco55 gravaram os punções para o linha europeia, do retrato de Maria Tere-
retrato de D. João, seguindo o desenho sa, ou mesmo de Catarina II), que o seu
de Domingos António de Sequeira. autor poderá ser efetivamente José Antó-
Apesar de ter entrado ao serviço em nio do Vale, transportando para Portugal
1802, António do Vale não era chamado as suas recentes influências italianas. No
para a abertura dos cunhos e, como tal, entanto, há um problema cronológico
não podia praticar o seu ofício. Ao lon- que poderá inviabilizar um pouco esta
go de décadas foi tentando, através de tese: dos três ensaios conhecidos, dois
vários ofícios, que a sua nomeação fosse são datados, o primeiro é de 1797, data
cumprida: “José Antonio do Valle tem anterior, portanto, à referida por Aragão
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mental, tornou-se célebre com o nome vido que V. M.ee passe ordem, a José Gas-
de peça de jarra. pard, Abridor geral da Caza da Moeda, que
este cunhe huma da nova fabricaçaõ, para
que esta junta á que fabricar Cyprino da
Silva Moreira venhaõ ambas á Prezença do
Mesmo Senhor.”61
60. Cipriano da Silva Moreira, nascido em 1755, entrou ao serviço em agosto de 1804, como abridor da Casa
da Moeda. A 19 de agosto desse ano, contudo, o seu nome é já referido no aviso de 3 de agosto, pelo que
suspeitamos que os novos punções tivessem funcionado como exame do trabalho do próprio Cipriano. Em
1826, ano da sua morte, Cipriano da Silva Moreira é referido como segundo abridor (Aragão 1964: I 85).
61. Apud Aragão 1964: II 379.
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A Revolução de 1820 e a nova ordem li- A morte de D. João VI, em plena con-
beral determinaram também alterações vulsão política, fez com que D. Pedro,
profundas no panorama das amoeda- imperador do Brasil, fosse aclamado rei
ções portuguesas. A primeira grande re- de Portugal, no seio de grande contenda
forma do Governo Constitucional foi a política, entre a herança absolutista, pro-
subida do preço da peça de quatro es- tagonizada por D. Miguel, e a afirmação
cudos para 7$500 réis, contemporizan- liberal, que vinha dos homens do 24 de
do assim o dinheiro em ouro português agosto e das Cortes Constituintes. Para a
com o guinéu inglês de fábrica antiga63. elaboração dos novos cunhos, o governo
Ao mesmo tempo, o governo liberal recorreu aos restantes moedeiros da es-
também se empenhou na extinção dos cola antiga, que ainda se encontravam ao
privilégios dos moedeiros, pela lei de 3 serviço em 1826, Simão António dos San-
de agosto de 1824: tos, que executou o retrato de D. Pedro IV
e Cipriano da Silva Moreira, para execu-
“Tendo cessado com o andar dos annos tar a gravação das armas reais, segundo
63. Com esta elevação de preço, o escudo de ouro português passou a ter um valor de 1$875 réis. Cada guinéu
inglês correspondia, com esta reavaliação, a 4$355 réis. O velho guinéu de ouro inglês, cotado a 21 xelins de
prata (a libra de ouro cotava-se a 20 xelins) foi paulatinamente sido abandonado em favor da libra a partir
da reforma monetária inglesa de 1816, introduzida sob a influência de David Ricardo.
64. Collecção de todas as leis, alvarás e decretos, etc. (folheto III) (1845). Lisboa: Imprensa Nacional, 8.
65. Simão António dos Santos viria a morrer em 1829, e Cipriano da Silva Moreira falecera no próprio ano de
1826.
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67. Não nos foi possível aferir, por enquanto, o momento em que Jean Dubois desapareceu da Casa da Moeda
de Lisboa. Ao que tudo indica, terá sido nos primeiros anos da guerra civil, talvez em 1832.
68. O próprio Aragão sugere essa hipótese. Devemos relembrar que do Vale estudou em Itália técnicas de
abertura a fino em pedra, que é a xilografia, arte complexa, sem dúvida, mas diferente da abertura de
cunhos.
69. Aragão 1964: II 178.
70. José António do Vale encontrava-se como primeiro abridor da Casa da Moeda em 24 de julho de 1833,
aquando da entrega da cidade ao duque da Terceira. Logo no dia 30 do mesmo mês, o lugar de António do
Vale era confirmado pelo gabinete da rainha.
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